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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
SELEÇÃO PARA O MESTRADO EM PSICOLOGIA

ASSIM COMO NO CÉU, NA TERRA: AS FIGURAS SANTAS DO FEMININO


SACRIFICADO E A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER CARIRIENSE

Linha de Pesquisa: Subjetividade e Crítica do Contemporâneo

Fortaleza
2023
Resumo

A pesquisa inicia-se com uma contação de mito da narrativa do Povo Kariri, onde foca na
figura do feminino divino sacrificado. Segue-se a observação de figuras femininas
humanas santificadas através do sacrifício. Analisa-se a relação dessas figuras divinas e
santificadas com o discurso invisível que colabora para reforçar o contexto de violência
contra a mulher da região: a formação de uma cultura psicológica, que reforça e propaga
valores onde o feminino é posto em um lugar de sacrifício simbolicamente em prol da
sobrevivência de um povo. Discute-se a ideia de que quando esse sacrifício sai do lugar
simbólico e é manifestado na realidade, gera o ponto onde vemos brotar as estatísticas. É
preciso investigar o motivo de a violência se mostrar descarada mesmo com a atuação de
todo o aparato das políticas públicas implementadas, e buscar traçar um perfil psicológico
dessa mulher, identificando os mecanismos de reforçamento dessa violência e como ela
age sendo repassada de geração em geração através dos valores.

Palavras-chave: Feminino; Violência de Gênero; Sacrifício.

Introdução

A Região do Cariri cearense é marcada por recorrentes casos de violência contra a


mulher e feminicídio. Apesar de não ser um fenômeno recente, visto que encontramos
registros dessas ocorrências também nas gerações anteriores à nossa, os números se
mantêm em estado de ascensão apesar do desempenho das políticas públicas para as
mulheres aplicadas no estado do Ceará.
Uma das maneiras de compreender os fenômenos sociais é estudando as variáveis
que o atravessam, como mostram no nosso caso, as pesquisas que apontam o profundo
relacionamento entre gênero, violência, raça, classe social e o sistema capitalista. Tais
estudos são essenciais para gerar dados concretos da realidade sobre os mais diversos
fenômenos sociais, auxiliando na criação de intervenções adequadas e políticas públicas
efetivas que atendam as legítimas necessidades no campo das nossas mais diversas
realidades.
O recorte ao qual nos ateremos nessa pesquisa é o contexto de violência contra a
mulher e sua relação com as figuras femininas sacrificadas por um outro indivíduo, o qual
assume o papel do homem, e santificadas no âmbito coletivo patriarcal do território caririense.
Abordaremos a fonte sobre um mito da cosmogonia do Povo Kariri, ancestrais dos caririenses
contemporâneos, buscando amplificar a compreensão sobre os mecanismos invisíveis de
manutenção dessa mulher na posição de subjugada à violência.
A narrativa Kariri a ser trabalhada se trata de um mito sobre a criação do mundo, onde
aparece o protagonismo da trindade sagrada dos deuses masculinos Badzé, Warakidzã e
Poditã, junto à breve aparição de uma única deusa, a qual é brutalmente assassinada pelos
humanos a mando da trindade divina em prol da fertilidade dos homens e da terra. A análise
desse mito é de suma importância para traçar um paralelo de sacrifício do feminino em prol da
honra do homem e da sobrevivência do sistema patriarcal, tanto na narrativa primitiva quanto
nos relatos dos casos contemporâneos dessa mesma região.
O intuito de dialogar e comparar tais narrativas é amplificar a compreensão sobre os
mecanismos que reforçam e naturalizam, quase como uma herança, o contexto de violência
praticado contra a mulher. Segundo (HARDING, 2019, p. 27), “Se nos voltarmos para o
fundo da consciência descobriremos que as ideias, como os mitos primitivos, formam a base
dos sentimentos e estados de espírito do homem contemporâneo. Antigos pensamentos-
sentimentos possuem poder indiscutível”.
O intuito desta pesquisa não é oferecer resoluções utópicas no campo das violências
contra a mulher, ou mesmo esgotar as discussões sobre o tema, mas estudar mais um braço
deste fenômeno social que atravessa o cotidiano caririense e que tem peso na existência
individual e coletiva. O recorte do qual iremos tratar, apesar de atuar na realidade caririense,
pode ser tido como um pequeno reflexo da realidade brasileira, visto que somos um país com
profundas raízes no âmbito da religiosidade e cujo surgimento de figuras femininas
santificadas através do sacrifício se estende por todo o território nacional.
Problema de Pesquisa e Marco Teórico

No princípio era a trindade, e o quarto elemento. No mito fundador do mundo


Kariri, podemos perceber a existência de uma trindade masculina sagrada e uma única
deusa, a mãe-de-todos:

Afirma a tradição que o Cariri era o território mítico de Badzé – o deus do fumo e
civilizador do mundo. No princípio era a Trindade: Badzé era o Grande- Pai, Poditã
era o filho maior e Warakidzã (senhor do sonho), o filho menor. Os dois irmãos
habitavam a constelação de Órion. Badzé enviou Poditã, o seu filho preferido, para a
terra Cariri e esse ensinou aos índios a reconhecer os frutos, a caçar animais, a fazer
farinha de mandioca, a preparar utensílios de uso cotidiano, a dançar, a cantar e a
fazer os rituais de pajelanças. Os índios viviam felizes, mas tinham apenas uma
Única-Mulher, a Deusa-Mãe, princípio primevo do cosmo de onde se originaram
todas as coisas. Eles desejavam mais… desejavam possuir muitas mulheres que
pudessem preparar os alimentos que colhiam e caçavam e que gostassem de se deitar
com eles nas redes para afugentar o frio da noite. Para satisfazer os desejos dos
Cariri, Poditã orientou-os para que eles, quando fossem catar piolhos na Única-
Mulher, ferissem a sua cabeça com um espinho mágico e a matassem. Depois, eles
deveriam cortar o corpo da Única-Mulher em tantos pedaços quanto fossem os
homens e cada homem deveria envolver o seu pedaço da mulher com capuchos de
algodão. Os índios fizeram tudo, conforme as orientações de Poditã, e depois foram
para a caça. Quando regressaram, viram admirados que, na aldeia, havia muitas
mulheres. Elas alimentavam o fogo e tinham preparado uma grande quantidade de
bebidas e comidas. Saciadas a fome e a sede, os índios e as índias sussurucaram em
suas redes. Tiveram muitos curumins (crianças) e ficaram felizes, pois a Única-
Mulher tinha se transformado na Iara – a Mãe das Águas (o feminino cósmico,
inumano), o que assegurava a fertilidade da terra, possibilitando grande abundância
de caças e de frutas. Por tudo isso, os índios viviam felizes e agradecidos, dançando
e cantando em honra de Poditã (...). (CARIRY, 2001)

O que, provavelmente, é o primeiro relato de um feminicídio na região caririense,


trata-se de uma narrativa passada de geração em geração através da oralidade, e forma o
conjunto de tradições dos Povos Kariris que temos conhecimento. Não sabemos datar essa
tradição oral, mas temos conhecimento que os nativos dessa terra foram massacrados entre o
final do séc. XVII e início do séc. XVIII, sendo esse o recorte de tempo usado para dar idade
a tais narrativas e seus valores expressados. A Única-mulher morava na terra com a tarefa dos
cuidados das criaturas e da criação, em oposição à morada da trindade que habitava as
constelações inalcançáveis. O pedido dos homens recém-criados culmina no sacrifício da
deusa, cujo corpo se transforma em muitas mulheres, garantindo a fertilidade e portanto um
futuro para a tribo, e sua alma se aloja embaixo da terra, de onde jorra a abundância
de águas da região, garantindo a fertilidade das matas. Um sacrifício causado pelo indivíduo,
com o aval dos deuses, e em prol do coletivo.
Entre os séculos XIX e XX temos registros de feminicídios em várias partes da Região
do Cariri, também mulheres sacrificadas pelo indivíduo, sempre no papel de um homem, com
o aval dos deuses, os valores da época, em prol do coletivo, a honra desse homem na esfera
pública:

Beata Benigna (Santana do Cariri - 1941), que foi assassinada diante da recusa de
manter relações sexuais com o agressor; Luzia Coelho (Barbalha
- 1952), morta pelo enteado diante de um conflito familiar que eclode em meio às
relações simétricas de poder e mando no interior da família tradicional; Francisca
Augusta da Silva (Aurora - 1958), assassinada pelo ex-noivo depois de a mesma ter
rompido com a promessa de casamento; Francisca Maria do Socorro (Milagres -
1943), morta após uma tentativa de estupro quando buscava água em uma fonte de
água nas proximidade de sua residência; Rufina (Porteiras - XIX-XX) violentada,
assassinada e esquartejada em face da suspeita de adultério com um rico senhor de
engenho, pela esposa traída; Maria Caboré (Crato - 1920-30), mulher tida como
louca e que encontra santidade diante da dedicação aos doentes do cólera e Maria
Filomena de Lacerda (Mauriti - 1975), assassinada pelo marido em companhia da
amante. (BARRETO, 2018, p.52)

Todos esses casos comungam mais um traço em comum: a santificação dessas


mulheres pela movimentação popular, tornando-se verdadeiras intercessoras pelo
sofrimento daqueles que as buscam. Há relatos de mulheres vítimas de violência
doméstica que recorrem com preces e promessas à Beata Benigna e a Mártir Francisca em
favor de findar o seu sofrimento. Nesses casos, o fenômeno de santificação de mulheres
deve ser olhado não como um episódio isolado, mas como um elemento que dialoga com a
violência de gênero.
As estatísticas apontam que há uma média de 211 casos de violência doméstica por
mês na região metropolitana do Cariri (Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha), tendo sido
contabilizadas 13 vítimas de feminicídio (o assassinato de mulheres por menosprezo ou
discriminação à condição de mulher) no período de 2020-2021, e mais as subnotificações,
pois muitas dessas mortes entram nas estatísticas como homicídio apenas. Os fatores de
vulnerabilidade dessas vítimas perpassam por gênero, raça, cor e etnia, baixa escolaridade
e desemprego.
Safiotti (1987, p.28) nos aponta que “outro fator frequentemente lembrado para
explicar a inferioridade social da mulher concerne aos preconceitos milenares, transmitidos
através da educação, formal e informal, as gerações mais jovens. Não há dúvida de que
existem preconceitos contra a mulher”.
Pergunta de Partida e Objetivos

Considerando que a Região do Cariri se faz notar pelas demandas de violência contra a
mulher, a pergunta de partida é qual é a relação dessa realidade com o contexto de sacrifício
das mulheres caririenses santificadas vítimas de feminicídio no séc. XX e com a expressão de
valores que apontam para a soberania do homem sobre a mulher passado de geração em
geração na narrativa do mito da criação Kariri.
O objetivo geral desse trabalho é buscar identificar os paralelos nessas relações,
caminhando no sentido de alcançar a compreensão do motivo pelo qual a mulher é
naturalmente colocada no lugar de vítima da violência bem como possivelmente revelar quais
mecanismos desses atos violentos são reforçados pelo coletivo, especialmente no imaginário
místico-religioso.
Os objetivos específicos são: a) Abranger uma forma de estudo que leve em conta os
saberes populares e busque as narrativas ancestrais como fonte de pesquisa para a
compreensão do funcionamento da vida interna do indivíduo atual; b) Buscar traços de
valores passados de geração em geração no que se refere ao contexto de violência de gênero;
c) Compreender qual é o lugar em que a mulher é colocada na sociedade patriarcal nessa e
quais mecanismos reforçam essa posição; d) Conhecer as formas de resistência feminina
oprimidas através das épocas; e) Interpretar o contexto atual de violência como uma
construção e manutenção de valores arraigados na sociedade caririense desde os tempos
antigos.

Metodologia

Para tratar da complexidade do tema, propomos uma análise sob a perspectiva


metodológica da Psicologia Social Crítica. Devido à sua característica de engajamento com as
questões sociais e políticas do fenômeno pesquisado, tal metodologia se difere das demais por
oferecer à produção de conhecimento largo potencial de vir a ser “uma estratégia para a
melhoria nas condições de vida das pessoas, especialmente as mais empobrecidas e
vulneráveis” (Lima & Lara, 2014, p. 08).
A discussão teórica é delineada pelo diálogo entre autores de várias áreas do
conhecimento, os quais oferecem aportes conceituais para a compreensão do atravessamento
da violência de gênero no campo religioso, no que diz respeito às
figuras femininas sacrificadas e como estas comungam com a realidade violenta com as
mulheres na sociedade caririense.
Os marcos teóricos para análise das fontes se distribui no diálogo entre SAFIOTTI
(1987; 2004) e SCOTT (1988) nas perspectivas de gênero e patriarcado; JUNG (2013) e
WOLFF (1956) no que diz respeito à estrutura psíquica da mulher; VON FRANZ (1995) e
HARDING (2019) trazendo o recorte da função psicológica do feminino e a imagem da
mulher no coletivo; BOURDIEU (2014) na conceituação de violência simbólica; e demais
autores que nos auxiliarão no entendimento dos atravessamentos da mitologia e do conceito
de sacrifício e santidade no tema tratado.
Para mapear essas perspectivas analíticas dos discursos serão utilizados os três
princípios das possibilidades metodológicas das abordagens da análise do discurso em
Psicologia Social Crítica, apontados por (Lima & Lara, 2014, p. 36), como norteadores deste
trabalho: (a) a dimensão histórica dos fenômenos discursivos; (b) a fundamentação teórica
que subsidia a análise do discurso; e, (c) o respeito à dimensão subjetiva do processo de
pesquisa.
Nesse entrelaçamento entre história, teoria e subjetividade, o desenvolvimento da
pesquisa seguirá, ainda, os procedimentos de revisão bibliográfica (um levantamento teórico-
conceitual), do método de interpretação filológico e hermenêutico (ferramenta para a
interpretação e comparação do material coletado, permitindo um diálogo entre os saberes),
perpassado pelas inflexões individuais (fruto de leituras, atividades de pesquisa em grupos de
estudo e aproximação do tema através da experiência de atendimento clínico a mulheres
vítimas de violência).

Planejamento e Cronograma do Projeto

2024
Meses
Atividades
Ago

Nov
Mai
Mar

Abr

Dez
Out
Fev

Jun

Set
Jan

Jul

Disciplinas x x x x x x x x x
Obrigatórias e
Eletivas
Estágio em x x x x x x x x x
Docência
Qualificação x
2025
Meses
Atividades

Abr

Mai
Mar

Ago

Nov
Jul

Out
Fev

Dez
Set
Jun
Jan
Revisão x x x x x x x x x x x
Bibliográfica
Redação Final e x x x x
Submissão do
Artigo
Defesa da x
Dissertação

Referências

BARRETO, Polliana de Luna Nunes. Educação e Santidade: as representações do


feminino na região do Cariri cearense Psicologia Social – Fortaleza, 2018.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina: a condição feminina e a violência


simbólica. Rio de Janeiro: Edições Best Bolso, 2014.

CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. 30. ed. Com Bill Moyers. Organização: Betty Sue
Flowers. Tradução: Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas Athena, 2014.

CARIRY, Rosemberg. A Nação das Utopias. Enapegs, UFCA, mar. 2001. Disponível em
http://enapegs2018.ufca.edu.br/210-2/. Acesso em 14 ago. 2023.

HARDING, M. Esther. Os mistérios da mulher. Tradução: Maria Elci Spaccaquerche


Barbosa. São Paulo: Paulus, 2019. 4ª reimpressão. Coleção Amor e Psique.

HUBERT, H.; & MAUSS, M. Ensaio sobre a natureza e a função do sacrifício. In:
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JUNG, C.G. Símbolos da transformação. 9.ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2013. LIMA,

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MEDEIROS, Luciene & FREITAS, Rita. Epistemologia feminista e direitos


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MINAYO, Maria Cecília de Souza (org.). Pesquisa Social. Teoria, método e


criatividade. 18 ed. Petrópolis: Vozes, 2001.

SAFFIOTI, Heleneith. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Fundação Perseu


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SAFFIOTI, Heleieth. 0 poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987. (Coleção Polêmica).

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VON FRANZ, Marie-Louise. O feminino nos contos de fada. Tradução: Regina Grisse
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Watzlawick. Zurich: C.G.Jung Institute, 1956.

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