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«George», de Maria Judite de Carvalho

Síntese: Guia de estudo: «George», de Maria Judite de Carvalho


Contextualização

Maria Judite de Carvalho escreve de forma muito intimista e realista acerca do


mundo contemporâneo, abordando os mais diferentes temas, tendencialmente ligados
ao comportamento humano. Descreve detalhadamente a consciência moderna,
vestindo-a de uma roupagem dura, cruel e verdadeira. Destaca-se uma certa frieza que
pauta os textos de uma realidade ímpar na qual os temas são tratados com a
seriedade de que necessitam.
Podemos considerar que a autora revela traços da consciência moderna com o rigor e
a clareza necessários à transmissão de uma mensagem literária forte e reflexiva. As
suas personagens recriam o comportamento que observa nos seus semelhantes e que
resulta de um tempo inquietante, no qual a humanidade se mostra conformada,
desatenta e decadente.
A sua escrita é caracterizada pelas narrativas breves, nas quais se encaixa o conto
«George», onde são abordadas questões bastante atuais acerca da mulher, do tempo e
do modo como se delineia a vida. Estes temas emergem num tom desconcertante e
revestido de uma assertividade impiedosa, despertando os leitores para a pertinência e
urgência das reflexões invocadas.

O título «George» remete diretamente para a identidade da personagem principal


do conto. Este retrata a vida de uma mulher, apresentando as três fases da sua vida
de um modo peculiar e original: George, nome associado ao presente, dirige-se à sua
terra natal onde, lentamente, se encontra com Gi, o seu eu da juventude, e, na viagem
de regresso a casa, no comboio, cruza-se com Georgina, o seu eu do futuro.
Assim, a protagonista é identificada através de três nomes: Gi, George e Georgina
que representam a juventude, a maturidade e a velhice, respetivamente.
A personagem do presente, George, evoca pela memória a figura da juventude
(passado), Gi. Dialogando com ela, recorda a menina que fora, os desafios pelos quais
passou até alcançar o sucesso profissional que ambicionava. Depois, imagina a figura
de Georgina (futuro) e dialoga com ela própria, mais velha. Este diálogo revela os seus
receios de isolamento e solidão e as alterações físicas decorrentes da passagem
do tempo.

Temáticas

Podemos destacar algumas linhas orientadoras em relação aos assuntos abordados


neste conto. Estando todas elas interligadas de modo explícito, distinguem -se as
seguintes temáticas: as três fases da vida; a metamorfose da figura feminina; o
diálogo entre realidade, memória e imaginação; a complexidade da natureza
humana.
Todas pretendem construir um quadro de relevo acerca da complexidade da vida
humana, exprimindo metaforicamente um diálogo com os vários eus de cada pessoa,
neste caso uma figura feminina que, só por sê-lo, tem as suas particularidades. Vamos
analisar detalhadamente cada temática.

Três fases da vida

George é uma mulher de 45 anos. É pintora, viaja e vive de forma livre e


desprendida. Configura o protótipo da mulher independente e segura, cujo sucesso
profissional e financeiro é valorizado e reconhecido. Aparentemente não tem razões
para lamentar o seu passado nem para temer o seu futuro. Porém, confronta-se com
ambos e esse receio perturba-a.
Este nome alude à figura feminina que lutou pelo seu sonho, concretizando os seus
projetos e sentindo-se realizada e feliz com a vida construída. Nesta fase de
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maturidade, regozija-se pelo êxito que conquistou, pela sua liberdade económica,
intelectual e amorosa. Caracteriza-se pela independência das pessoas, dos lugares e
dos bens; pelo desapego aos sentimentos e aos objetos.
George mostra que vive reconfortada com o seu sucesso como pintora e com as
vantagens financeiras que o trabalho lhe oferece. Mora em Amesterdão e construiu a
vida com que sonhara. Do seu passado guarda apenas uma fotografia sua.
Contudo, no dia em que visita a sua terra natal e se reencontra com o seu eu de
juventude, revela algumas memórias desse período, aparentemente desprovidas de
grandes saudades desses tempos. George mostra alguma resistência em valorizar as
recordações, evitando lentamente o confronto com a sua ligação àquele lugar já
esquecido.
Gi, a jovem que fora, é uma menina de 18 anos, sonhadora e ingénua em relação à
vida. Demonstra a falta de bagagem cultural e intelectual que, mais tarde, George
constrói. Porém, foi essa jovem que ousou sair de casa dos seus pais, na pequena vila
onde crescera, para lutar pelas suas ambições e alcançar os seus objetivos.
Ali seria apenas uma mulher que cumpriria as expectativas dos outros, reservando-se
aos papéis que a sociedade dita à figura feminina: esposa e mãe. A comunidade
esperava que essa realidade se concretizasse.
No entanto, Gi desejava muito evadir-se, desenvolver as suas capacidades e
conhecimentos, afirmar-se na pintura e atingir reconhecimento profissional e social. Esta
figura possui, desde tenra idade, uma ânsia de liberdade que a fará conquistar as
suas metas.
Não se conformou com o destino traçado a muitas jovens da sua idade na sua vila,
não se resignou às vontades dos pais, que lhe preparavam o enxoval e o casamento,
não se contentou com as perspetivas do seu namoro. Casar, ter filhos e edificar uma
casa de família na vila não eram os seus sonhos; pertenciam aos outros em seu
redor. A rapariga, frágil e inocente, procurou o seu caminho longe das convenções.

Na viagem de regresso a Amsterdão, George dirige-se à estação do comboio. Após


o seu confronto com o passado, aqui encontrou-se, portas abertas, com o seu futuro.
Uma figura feminina já envelhecida, com visíveis marcas físicas dos tempos vividos,
surge diante da protagonista, sorri-lhe e dialoga com ela. É o seu eu dali a alguns anos.
Tem cerca de setenta anos, é reservada e exibe uma certa sofisticação discreta.
Autocaracteriza-se como solitária e considera que cometeu um crime: envelheceu.
Georgina representa a velhice, marcadamente amargurada e arrependida do seu
desapego emocional ao longo da vida. Nesta fase, recorda com saudades os tempos
idos, tendo solicitado aos seus conhecidos algumas fotografias, uma vez que não as
tinha guardado.
O envelhecimento trouxe consigo a solidão, o isolamento e o abandono. Georgina
sente-se só, não tem companhia. Perdera a sua beleza, juventude e o tempo deixou
as suas mazelas na pele. Trata-se de uma velha, imperfeitamente maquilhada, pela
mão trémula, com vários tons de rosa, cabelos cor de acaju; no entanto, usa uma
carteira cara de marca italiana.
Assim, esta senhora idosa pressagia a George o seu futuro, um tempo marcado
pela solidão e pela degradação física, o que impedirá a protagonista de pintar. É um
retrato construído a partir da imaginação, perspetivando o «amanhã» de George. Ela
é a voz da experiência que denuncia as consequências das suas escolhas de vida e
o modo como a desvalorização das relações pessoais a conduz a uma vivência de
sucessivas perdas: a beleza física, a atividade profissional e a companhia.

Metamorfose da figura feminina

A protagonista do conto sofre diversas transformações ao longo da sua vida.


Estruturada em três fases distintas, George é uma figura marcada pelos contextos e
pelos momentos que vivenciou. Deste modo, a passagem do tempo e a viagem por
diferentes espaços operam mudanças na figura feminina.

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A nível físico, verifica-se que, na sua fase adulta, alterou imensas vezes a cor do seu
cabelo. A pintura revestia-a de um desprendimento e de uma liberdade consigo própria
que lhe agradava. Além disso, os anos foram marcando a sua pele com rugas,
indisfarçáveis pela maquilhagem que usava. Denota-se, no texto, a importância
atribuída ao aspeto do corpo. A beleza feminina modifica-se com o tempo, o que é
alvo de desgosto e sofrimento para a figura feminina.

Também a sua situação económica se altera. Na juventude, quando decide


abandonar a casa dos pais, há apenas uma mala velha e gasta, na qual pode
transportar os seus pertences pessoais. A mala assume um papel simbólico, pois, anos
mais tarde, Georgina usa uma mala de um preço avultado, de marca conhecida e
moderna. Demonstra-se o poder de compra que a personagem adquiriu ao longo da
vida profissional. Estabelecida como pintora de renome, tem a possibilidade de gastar o
seu dinheiro nos bens que quiser.

No fim do conto, George reflete sobre a importância desta conquista: a fortuna que
ganhou com o seu trabalho far-lhe-á companhia.

A condição social da protagonista altera-se. A jovem, vinda de um meio rural,


regida por normas sociais bastante conservadoras, sob as expectativas convencionais
da sua mãe, torna-se uma mulher cosmopolita, livre, viajada, emancipada. A sua vida
girou no sentido oposto àquele que seria o esperado. Cresceu e desenvolveu-se
enquanto cidadã do mundo, construindo-se independente e profundamente
desprendida.
Por fim, outra metamorfose operada na sua vida diz respeito à sua relação com os
outros e com o mundo que a rodeia. Durante o período de juventude, vivia com uma
tremenda vontade de voar, libertando-se daquele meio pequeno e reservado, mas
mantinha laços afetivos com a sua família, amigos e namorado. Na fase adulta,
torna-se uma mulher livre de compromissos, desprendida de longas e sólidas
ligações sentimentais. Casou, divorciou-se, mudou de cidade várias vezes, não
criando raízes em qualquer lugar ou com alguém.
Estas ideias mostram que George era inconstante nas relações amorosas. Tinha
uma personalidade complexa, que a obrigava a constantes mudanças. Não se
compadecia com uma vida monótona e sossegada, repetitiva e estável. Ela desapegou-
se completamente das relações afetivas, dos lugares e das mobílias. Viveu em
casas alugadas, não comprava objetos de grande valor e porte, dado que não queria
experienciar a sensação de pertença a um lugar nem sentir o dever de permanência
numa habitação ou cidade. O seu foco era a pintura, o seu trabalho era a sua paixão.

Porém, este desapego custa a Georgina os laços afetivos: a idosa sente-se só e


vazia. Na fase da velhice, não consegue encontrar felicidade e aconchego. As escolhas
que fez determinam o que será o seu futuro e como passará o final da sua vida.

Diálogo entre realidade, memória e imaginação

As três fases da vida de George narradas no conto resultam de um diálogo próximo


entre a realidade, a memória e a imaginação, respetivamente. Num primeiro momento
narrativo, o encontro entre Gi e George, quando esta regressa à sua vila natal
constitui uma viagem ao seu passado. Tal é projetado pela recordação do seu eu
anterior ao momento atual de vida. É através da reconstrução da memória que a
protagonista revisita a sua juventude.
Entretanto, o leitor vai conhecendo a realidade de George, ou seja, o que corresponde
à sua vida no momento presente. Ela é uma reconhecida pintora, que vive liberta de
toda e qualquer exigência ou convenção social. Este eu é a sua verdadeira

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personalidade. As restantes são evocadas por si, de modo a complexificar, mas também
a entender, o seu percurso, os seus pensamentos íntimos e interiores.
Por outro lado, na viagem de comboio, de regresso a Amesterdão, Georgina vem
perturbar George com uma previsão do seu futuro. É a revelação dos anseios da
própria protagonista. A sua imaginação leva-a a projetar este diálogo com uma figura
velha, marcada pelo tempo a nível físico e psicológico. Antevê um período amargo,
com saudades e arrependimentos, imaginando-se a recordar nostalgicamente
algumas fotografias.

Complexidade da natureza humana

O modo como o ser humano gere a sua vida e lida com as suas decisões e
emoções é retratado neste texto narrativo, de forma dura e realista, principalmente sob
a ótica feminina. A divisão interior de George em três figuras que a identificam revela a
fragmentação do eu, uma mulher repartida entre a jovem inocente que abandonou,
a adulta realizada que se sente e a idosa desalentada que receia vir a ser.

No fundo, o conto conduz à reflexão acerca da complexidade humana: quantas


camadas cabem dentro de um indivíduo? Quantos eus habitam em cada um? Como
recalcamos as nossas recordações e os nossos arrependimentos? Como escondemos os
nossos medos?

Acresce-se, ainda, algumas considerações acerca do papel da mulher enquanto objeto


de beleza, de sensualidade, agente social. É narrada a história de uma adolescente que
luta pela sua emancipação, não se regendo pelas expectativas alheias a si e aceitando
apenas as suas convicções como influências no seu percurso de vida.
De resto, torna-se uma adulta que usa radicalmente a sua liberdade, defendendo uma
cultura de indiferença em relação a objetos e lugares, descomprometida com os
sentimentos e as pessoas. Vive satisfeita e plenamente consciente do seu sucesso
profissional, que prioriza, relegando a vida pessoal.
Mesmo no final, essa adulta conversa, embora desconfortável, com uma senhora
velha que pretende mostrar as consequências desse estilo de vida, alegando
nostalgia, sofrimento e solidão. Vive, nesta fase, rodeada de remorsos e com um
sentimento de consternação pela falta de ligações afetivas.

Culpa-se pelo facto de a passagem do tempo a ter envelhecido. Está velha,


visivelmente enrugada; perdera a sua beleza física. Não vê bem, as mãos tremem-lhe,
o que a fará deixar aquilo que mais a apaixonou: a sua arte.

Linguagem, estilo e estrutura

O conto «George» é uma narrativa curta, predominando uma unidade de ação que
facilita a compreensão da mensagem transmitida e que, além disso, centra os reduzidos
acontecimentos nos diálogos da protagonista, intensificando a importância dos
assuntos em causa. Permite ao leitor atentar na profundidade da fragmentação do eu e
na sua divisão em diferentes personalidades de acordo com um momento e contexto de
vida.

Verifica-se uma forte concentração nas categorias de espaço e tempo. O espaço


físico concentra-se na terra natal de George, visita-a num dia e regressa de comboio
para Amesterdão. O espaço psicológico é invadido pelos encontros imaginários que a
protagonista tem com o seu passado e o seu futuro, respetivamente.
A duração da ação é bastante breve. Trata-se de um tempo cronológico balizado em
apenas um dia. No entanto, o tempo «real» não se pode comparar ao tempo
psicológico: George traça o seu percurso de toda a vida, recuperando o passado,
relatando o presente e antevendo o futuro.
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Acresce, ainda, o número limitado de personagens. A ação centra-se na
personagem principal: George, que se desdobra noutras duas figuras, Gi e Georgina.
Assim, concretamente, ela é a única personagem da narrativa, embora assuma
diferentes formas e, até, personalidades, retratando a evolução humana ao longo da
vida.

A predominância das sequências dialogais é uma característica notória neste conto,


pois representam grande parte do discurso narrativo. As modalidades de reprodução do
discurso exploram basicamente o discurso direto, que abrange duas vertentes: os
diálogos «interiores» entre os diferentes eus, marcados pelo uso do itálico; e os
monólogos interiores, reflexivos dos diferentes eus.

Numa escrita singela e contida, pautada pela simplicidade do léxico e pela


presença de vocabulário ligado ao campo lexical da pintura, o conto apresenta-se ao
leitor como uma narrativa descomplicada, evocando assuntos complexos acerca do
comportamento humano. O discurso é marcado pela clareza das ideias e dos conceitos
essenciais que aborda.
São utilizados alguns recursos que imprimem expressividade ao texto. Vejamos
alguns exemplos.

- Adjetivação: «O ar está muito levemente morno e quase agradável.»

- comparação: «[…] como se se negasse a compartilhar os seus problemas […].»

- metáfora: «[…] agora já não há vestígios daquela aragem de forno aberto.»

- enumeração: «[…] a exposição que vai fazer, aquele quadro que vendeu muito bem
o mês passado, a próxima viagem aos Estados Unidos, o dinheiro que pôs no banco.»

- interrogação retórica: «Ela pensa – sabe? – que com dinheiro ninguém está
totalmente só […].»

Tratando-se de um texto profundamente reflexivo, nomeadamente sobre a condição


humana, as sensações assumem grande relevo. De entre os cinco tipos de
sensações, intimamente ligados aos sentidos humanos, podemos destacar a tátil e a
visual, por forma a apelar precisamente à visão e ao toque.

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