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AO DOUTO DESEMBARGADOR RELATOR DA COLENDA TERCEIRA CÂMARA

CRIMINAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MATO GROSSO

Autos nº 1002959-34.2022.8.11.0046

ARLINDO BEZERRA LIMA, devidamente qualificado na ação penal


em epígrafe, vem, respeitosamente, apresentar RAZÕES DE APELAÇÃO
CRIMINAL, nos termos do art. 600, §4º, do Código de Processo Penal, pelos
fundamentos de fato e de direito a seguir articulados.

1. SÍNTESE DOS FATOS

Arlindo Bezerra Lima foi denunciado pelo Ministério Público como


incurso no delito do art. 33 da Lei 11.343/2006, por ter sido surpreendido por
agentes do GEFRON, no dia 21 de julho de 2022, nas imediações da MT 388,
próximo ao Município de Campos de Júlio, quando transportava 217,15 kg de
cloridrato de cocaína acondicionados em um Caminhão Bitren, 9 eixos, cor
branca.

O processo seguiu seu trâmite regular com a realização de


audiência de instrução e julgamento, oportunidade na qual foram ouvidas as
testemunhas de acusação e de defesa e interrogado o acusado.

Ao final da audiência, as partes apresentaram suas alegações


finais em formato de memoriais, sendo o processo concluso ao Juízo para
prolação de sentença.

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Ao prolatar a sentença, o Juízo decidiu por condenar Arlindo nas
sanções do art. 33 da Lei 11.343/2006, reconhecendo a causa de diminuição
de pena do tráfico privilegiado, sendo a pena-definitiva fixada em 2 anos e 6
meses de reclusão, em regime inicial aberto, bem como negado o direito a
substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos.

Inconformado com a sentença, Arlindo interpôs recurso de


apelação e apresenta as suas razões nesta oportunidade.

2. PRELIMINARMENTE: DA NECESSIDADE DE REMETER OS


AUTOS AO MINISTÉRIO PÚBLICO DE PRIMEIRO GRAU PARA
ANALISAR A POSSIBILIDADE DE OFERTA DE ACORDO DE NÃO
PERSECUÇÃO PENAL

Com o advento do Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/2019), o


Código de Processo Penal (CPP) incorporou algumas peças à sua enorme
colcha de retalhos. Uma das novidades é o acordo de não persecução penal
(ANPP), incluído no art. 28-A para ampliar os espaços de consenso e abarcar
crimes praticados sem violência ou grave ameaça a pessoa, com pena mínima
inferior a 04 (quatro) anos, exigindo, contudo, que o investigado confesse
formal e circunstanciadamente a prática delitiva.

Segundo o texto legal, o cumprimento integral das cláusulas


acordadas resulta na extinção da punibilidade, persistindo o registro com o
único objetivo de vedar novo acordo pelo prazo de 05 (cinco) anos.
Nos interessa analisar, especialmente, a previsão do §2º do art.
28-A do CPP, que dispõe: “para aferição da pena mínima cominada ao delito a
que se refere o caput deste artigo, serão consideradas as causas de aumento e
diminuição aplicáveis ao caso concreto”.

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Tal previsão pode, em tese, atrair a aplicação do ANPP aos casos
de tráfico privilegiado, pois a pena mínima do delito do art. 33 da Lei
11.434/2006 é de 05 anos e a causa de diminuição (chamada de privilégio),
prevista no §4º do mesmo artigo, permite a subtração de 1/6 a 2/3 da
reprimenda se o acusado for primário, de bons antecedentes, não se dedicar às
atividades criminosas, nem integrar organização criminosa, o que
potencialmente conduzirá a pena a patamar inferior a quatro anos1 – como
ocorreu no presente caso, EM QUE A REPRIMENDA FINAL RESTOU FIXADA EM
2 ANOS E 6 MESES.

Contudo, observa-se que o Ministério Público, de modo geral, não


está oferecendo o ANPP após o recebimento da denúncia, consubstanciado em
posicionamento institucional no sentido de que “cabe acordo de não
persecução penal para fatos ocorridos antes da vigência da Lei nº 13.964/2019,
desde que não recebida a denúncia2”, fato que impede a composição nos casos
de tráfico privilegiado, uma vez que essa causa de diminuição de pena é
reconhecida, via de regra, no momento da prolação de sentença3.

Argumenta-se, na trincheira ministerial, que (i) a interpretação


literal do art. 28-A do CPP, (“não sendo caso de arquivamento”) indica que o
momento oportuno para oferecer o ANPP é anterior ao recebimento da
denúncia; (ii) a interpretação topológica do art. 28-A (logo após tratar de
inquérito policial e antes de adentrar o tema da ação penal) indica que o
momento oportuno para oferecer o acordo é anterior ao recebimento da
denúncia4.

1 DE BEM, Leonardo Schmitt. Os requisitos do acordo de não persecução penal. Acordo de


não persecução penal. Belo Horizonte: D’plácido, 2021. p. 226.
2 Enunciado 20 do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos

Estados e da União (CNPG) e o Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio


Criminal (GNCCRIM).
3 TORTADO, Moacir Rogério; PORTELA, João Filho. O acordo de não persecução penal e a

figura do 'tráfico privilegiado'. Revista Consultor Jurídico. 27/03/2021. Disponível em:


https://www.conjur.com.br/2021-mar-27/tortado-portela-anpp-figura-trafico-privilegiado.
4 DE BEM, Leonardo Schmitt; MARTINELLI, João Paulo. O respeito à constituição federal na

aplicação retroativa do ANPP. Acordo de não persecução penal. Belo Horizonte: D’plácido,
2021. p. 127.
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Esses argumentos fundados no método de interpretação da
norma também eram utilizados pelo Ministério Público para buscar o
afastamento da transação penal aos casos com denúncia recebida.

O primeiro em razão do art. 90 da Lei dos Juizados Especiais


prever expressamente: “as disposições desta Lei não se aplicam aos processos
penais cuja instrução já estiver iniciada”. O segundo pelo fato do
descumprimento da transação penal importar no oferecimento da denúncia, o
que indica que o momento oportuno para as tratativas é anterior à exordial
acusatória.

No bojo da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1719, ficou


assentado que as disposições da Lei dos Juizados Especiais, em especial a
transação penal, devem ser aplicadas retroativamente, pois a norma possui
caráter híbrido (processual e material), atraindo a aplicação do art. 5º, XL, da
Constituição Federal.

Ora, nos parece evidente que o ANPP também possui natureza


híbrida, pois guarda diversas semelhanças5 com a transação penal e,
especialmente, substitui a aplicação de uma pena pelo cumprimento de um
acordo.

Por esta ótica, toda a jurisprudência aplicada à transação penal


deve ser estendida ao ANPP, em especial a previsão da Súmula 337 do
Superior Tribunal de Justiça: “é cabível suspensão condicional do processo na
desclassificação do crime e na procedência parcial da pretensão punitiva”.6

5 As semelhanças entre os institutos são analisadas de minudentemente por Marco Paulo Dutra
Santos, que relaciona: (a) Transação penal e ANPP objetivam o não oferecimento de denúncia;
(b) A sentença que chancela transação penal e ANPP é meramente homologatória; (c) O
descumprimento da transação penal e do ANPP resulta no oferecimento de denúncia; (d) A
celebração da transação penal e do ANPP não gera reincidência e o registro persiste apenas
com a finalidade de impedir novo acordo pelo prazo de 05 (cinco) anos. (SANTOS, Marco
Paulo Dutra. Comentários ao Pacote Anticrime. São Paulo : Grupo GEN, 2020, P. 191-192).
6 NETO, Pedro Faraco; LOPES, Vinicius Basso. Acordo de não persecução penal – a

retroatividade da lei penal mista e a possibilidade dos acordos após a instrução


processual. Boletim Especial IBCCRIM. Ano 28 – nº 331 – junho/2020. ISSN 1676-3661.
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Neste fluxo de ideias, a aplicação dos precedentes firmados em
relação a transação penal para o ANPP decorre do princípio constitucional da
fundamentação das decisões judiciais, previsto no art. 93, IX, da Constituição
Federal, com força normativa no art. 489, §1º, do Código de Processo Civil e no
art. 315, §2º, do Código de Processo Penal, dos quais se extrai que qualquer
decisão judicial que deixar de seguir jurisprudência invocada pela parte deve
demonstrar a distinção no caso em julgamento ou a superação do
entendimento.

Assim, enquanto não superados os fundamentos que admitem a


retroação da transação penal, sua aplicação analógica ao ANPP é uma
garantia do acusado7.

Analisando caso análogo, no qual já havia, inclusive, trânsito em


julgado, o Supremo Tribunal Federal determinou a remessa dos autos ao
Ministério Público para analisar a possibilidade de oferecimento de ANPP:

EMENTA : SEGUNDO AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS


CORPUS. MATÉRIA CRIMINAL. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA.
INOCORRÊNCIA. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL.
APLICAÇÃO DO ART. 28-A DO CPP. NORMA DE CONTEÚDO
MISTO. RETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS BENÉFICA. ART.
5º, XL, CF. ILEGALIDADE FLAGRANTE. CONCESSÃO DA ORDEM
DE OFÍCIO. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA
PROVIMENTO. (...) 2. A expressão “lei penal” contida no art. 5º,
inciso XL, da Constituição Federal é de ser interpretada como
gênero, de maneira a abranger tanto leis penais em sentido
estrito quanto leis penais processuais que disciplinam o
exercício da pretensão punitiva do Estado ou que interferem
diretamente no status libertatis do indivíduo. 3. O art. 28-A do
Código de Processo Penal, acrescido pela Lei 13.964/2019, é
norma de conteúdo processual-penal ou híbrido, porque consiste
em medida despenalizadora, que atinge a própria pretensão
punitiva estatal. Conforme explicita a lei, o cumprimento integral
do acordo importa extinção da punibilidade, sem caracterizar
maus antecedentes ou reincidência. 4. Essa inovação legislativa,
por ser norma penal de caráter mais favorável ao réu, nos
termos do art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal, deve ser
aplicada de forma retroativa a atingir tanto investigações
criminais quanto ações penais em curso até o trânsito em
julgado. Precedentes do STF. 5. A incidência do art. 5º, inciso XL,

7SANTOS, Marco Paulo Dutra. Comentários ao Pacote Anticrime. São Paulo : Grupo GEN,
2020. P. 195.
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da Constituição Federal, como norma constitucional de eficácia
plena e aplicabilidade imediata, não está condicionada à atuação
do legislador ordinário. 6. A indevida negativa de aplicação
retroativa do art. 28-A do CPP configura hipótese de concessão
da ordem de habeas corpus de ofício. 7. Agravo regimental
desprovido.
(SEGUNDO AG.REG. NO HABEAS CORPUS 217.275, SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL, REL. MIN. EDSON FACHIN, JULGADO NA SESSÃO
VIRTUAL DE 17/03/2023 À 24/03/2023).

Pelos argumentos acima ventilados, requer a remessa dos autos


ao Ministério Público para que análise a possibilidade de oferecimento do
Acordo de Não Persecução Penal ao senhor Arlindo Bezerra Lima.

3. DAS INCORREÇÕES NA DOSIMETRIA DA PENA

3.1. OCORRÊNCIA DE BIS IN IDEM

O Juízo acertadamente aplicou a redutora do tráfico privilegiado,


contudo, ao realizar a dosimetria da pena, incorreu em bis in idem, na medida
em que valorou o vetor quantidade e natureza da substância entorpecente na
primeira fase da dosimetria para agravar a pena-base, bem como na terceira
fase para modular a fração de diminuição referente ao tráfico privilegiado,
aplicando-a em ½.

Em casos como o presente, o Supremo Tribunal Federal tem


entendimento consolidado (tema 712) no sentido de que o Juízo deve escolher
em qual das fases da dosimetria irá valorar a quantidade e a natureza da
substância entorpecente.

Caso opte por valorar na primeira fase (como ocorreu no


presente caso), torna-se ilegal nova valoração na terceira fase.

Sendo assim, a dosimetria da pena deve ser reformulada,


aplicando-se a fração de redução do tráfico privilegiado em seu grau máximo,
qual seja, 2/3.

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3.2. FUNDAMENTAÇÃO GENÉRICA E CONTRADITÓRIA PARA
AFASTAR A APLICAÇÃO DOS ARTS. 44 E 77 DO CÓDIGO PENAL

Ao final da sentença condenatória, o Juízo apresentou


fundamentos contraditórios e genéricos para afastar a aplicação do art. 44 e 77
do Código Penal ao acusado.

Neste sentido, o Juízo reconheceu que o réu é primário, possui


bons antecedentes, não se dedica a atividades criminosas, tampouco integra
organização criminosa, o que indica que se trata de um indivíduo que não
possui histórico criminal relevante.

Contudo, baseou a recusa da substituição da pena privativa de


liberdade pela restritiva de direitos e da concessão da suspensão condicional
da pena em premissas que atribuem ao acusado uma responsabilidade penal
objetiva, ou seja, a mera presunção de que o benefício aumentaria a sensação
de impunidade na região fronteiriça e, por conseguinte, incentivaria a
proliferação de delitos dessa natureza.

Ocorre que a fundamentação apresentada carece de elementos


concretos que comprovem tal assertiva. A simples menção à região fronteiriça
como justificativa para negar a aplicação de benefícios previstos em lei é
insuficiente para estabelecer uma relação de causa e efeito.

Além disso, a suposição de que a concessão de penas restritivas


de direitos ou suspensão condicional da pena resultaria na banalização do
crime não encontra respaldo nos princípios do devido processo legal e da
individualização da pena, que devem ser observados rigorosamente em
qualquer sentença criminal.

Dessa forma, diante da contradição entre o reconhecimento dos


elementos favoráveis ao réu e a negativa da substituição da pena, fica evidente
a necessidade de uma revisão criteriosa da decisão proferida, afinal, o acusado
tem direito a uma fundamentação clara e consistente, que leve em conta suas

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características individuais, bem como os princípios norteadores do sistema
penal.

Sendo assim, faz-se necessária a revisão da dosimetria da pena,


aplicando-se a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de
direitos, nos termos do art. 44 do Código Penal.

4. DOS PEDIDOS

Diante do exposto, requer seja o presente Recurso de Apelação


Criminal totalmente provido para:

(i) preliminarmente: determinar a remessa dos autos ao Ministério


Público para que analise a possibilidade de ofertar acordo de não
persecução penal ao recorrente;

(ii) No mérito: a correção da dosimetria da pena, afastando-se a


ocorrência de bis in idem, com a aplicação da redutora do tráfico
privilegiado em seu grau máximo, qual seja, 2/3, bem como a
substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de
direitos, nos termos do art. 44 do Código Penal.

Pede Deferimento.

Cuiabá-MT, 20 de julho de 2023.

Matheus Salomé de Souza

OAB-MT 24.554/O

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