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A FÍSICA NA CASA DE FARINHA E UMA VISÃO POPULAR DE ALGUNS CONCEITOS FÍSICOS

NA PRODUÇÃO DE FARINHA

Aspectos relacionados à Física envolvidos no manuseio dos equipamentos de uma casa de


farinha.

RESUMO

Este artigo apresenta o resultado de uma investigação dos aspectos relacionados à Física
envolvidos no manuseio dos equipamentos de uma casa de farinha localizada na zona rural do
município de Mucambo. A pesquisa foi realizada a partir de observações e análise dos
equipamentos e de uma entrevista semi-estrurada, organizada numa linguagem coerente com a
usada na comunidade. A entrevista aconteceu de forma espontânea com o proprietário da casa
de farinha, visando a coleta de dados para análises e estudos. O registro das informações foi feito
através da gravação de áudio para aproveitamento integral do conteúdo, que após serem
analisados os resultados, comprovaram que a vivencia diária é rica em conhecimentos culturais,
podendo ser aproveitada de maneira contextualizada com o ensino de Física das escolas, através
de esquematizações e situações problemas desafiadores oriundos de elementos conhecidos e
populares, como são os elementos envolvidos na produção de farinha.

Palavras-chave: Física. Currículo. Cotidiano. Casa de Farinha.

1. INTRODUÇÃO

A ciência tem um papel fundamental na busca incessante por respostas aos acontecimentos do
cotidiano e é responsável pelo desenvolvimento social e tecnológico de uma nação. Ao ser
desenvolvido em consonância com a educação gera uma qualidade educacional promissora ao
crescimento do país. O ramo da ciência que tem como objetivo de investigar os fenômenos da
natureza e esclarecer, com bases neles, os acontecimentos concretos do dia a dia é a Física.
Além dessas funções básicas, através dela se conseguem avanços tecnológicos necessários ao
progresso do mundo, desde a antiguidade até os dias atuais.
Por outro lado, o indivíduo é, ao mesmo tempo, produto e sujeito de um conjunto de hábitos,
crenças e atitudes, guardado por fronteiras móveis, abertas, indefinidas, cujas influências deixam
marcas, em seu universo cultural, oriundas do senso comum. É impossível separar o indivíduo
de sua cultura, já que está envolto na correnteza da história local e global. Paulo Freire é
oportuno quando diz: “Por que não estabelecer uma “intimidade” entre os saberes curriculares
fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como indivíduos?” (FREIRE, 1996,
p. 30).
Neste aspecto, a própria escola muitas vezes é deficiente ao deixar transparecer que os
conhecimentos repassados não vão ter aplicabilidade no cotidiano do aluno, ou que estes
saberes estão muito distantes da realidade de vida deles, ou que os conhecimentos prévios e
populares não podem ser aproveitados no contexto de sala de aula. Com essa realidade, os
alunos não sentem interesse pelo que está sendo ensinado e não se engajam no processo
educativo, por desenvolver uma visão que estes conhecimentos não servem pro seu mundo
cotidiano.
Essa desconexão é presencial no ensino de Física atual, gerando uma falta de relação entre
teoria e prática. A Física passa então a ser tida como uma ciência desconecta da realidade do
aluno e isso conduz o mesmo a pensar que ela não tem nenhuma relevância com os fenômenos
vividos por ele. Devido a este e outros fatores muitos alunos não compreendem ou não dão
importância a essa ciência, e assim, a escola não consegue despertar a curiosidade do aluno em
aprofundar seus conhecimentos nessa área, já que, segundo eles, esta se apresenta de maneira
inválida.
Este trabalho tem como objetivo investigar os conhecimentos populares envolvidos com o
manuseio dos equipamentos da casa de farinha, confrontar o saber popular de conceitos
envolvidos na produção de farinha com o saber científico, diferenciando o conhecimento
intelectual e cultural e mostrar a importância desse elo no ensino-aprendizagem de Física.
Ao traçar os objetivos desse estudo, visou-se uma investigação dos saberes comuns envolvidos
nos equipamentos da casa de farinha e no processo de produção da mesma. Conhecendo e
enaltecendo o conhecimento popular, é possível usá-lo de forma construtiva no ensino de Física,
através da elaboração de esquemas, situações desafiadoras e curiosas, provindas do próprio
cotidiano do aluno e contextualizadas com a teoria conhecida no saber escolar.

2. REFERENCIAL TEÓRICO

O CONHECIMENTO POPULAR E O ENSINO FORMAL

O conhecimento é o ato ou a atividade de conhecer, realizado por meio da razão e/ou da


experiência. Conhecimento popular é o adquirido no dia a dia. Essa forma de conhecimento é
adquirida também por experiências vividas ou presenciadas diante de fatos, obtendo conclusões.
É uma forma de conhecimento superficial, sensitiva, subjetiva, acrítica e assistemática e que não
precisa ter comprovação científica, e esta também não tem importância. O fato é que se sabe e
pronto, não precisa ter um motivo de ser. "É o saber que preenche a nossa vida diária e que se
possui sem o haver procurado ou estudado, sem a aplicação de um método e sem se haver
refletido sobre algo". (BABINI, 1957, p. 21).
O conhecimento científico é importante porque precisa de fontes mais seguras que abordem os
fatos e fenômenos da realidade de forma sistemática, aplicando métodos e realizando análise e
síntese, sem a interferência das crenças do pesquisador. Ruiz o descreve como um
conhecimento que vai além do empírico, procurando conhecer, além do fenômeno, suas causas e
leis (RUIZ, 2002).
A conexão do conhecimento empírico com o científico aproxima o aluno da realidade e amplia o
universo de saberes mediante a comprovação do aprendizado na prática de sua própria vivencia
social, já “que todo conhecimento mantém diálogo com outros conhecimentos” (BRASIL, 2002, p.
88). É possível o diálogo entre os dois tipos de conhecimentos, o cotidiano e o escolar, apesar
das especificidades contidas em cada um deles. O aprender vai além do vivenciar e do conhecer,
demanda dar significado, para que se possa pensar, questionar e construir o conhecimento,
tornando-o seu, ou seja, produzindo sínteses provisórias. Tornar-se humano e construir sua
própria identidade requer conhecimento de outros saberes que vão além daqueles que já temos
na nossa vida diária, e esta é uma das funções do processo de escolarização.
Vygotsky explica que os conhecimentos construídos no dia-a-dia, cotidianos ou informais, são
diferentes daqueles elaborados na instituição escolar, uma vez que os primeiros são provenientes
da prática social e sem nenhuma preocupação com a atividade intelectual, pois a aprendizagem
da vida cotidiana traz seu significado referentes a si mesma, baseada no experimentalismo, no
pragmatismo e na espontaneidade, ou seja, no sensível-concreto. Por outro lado, o conhecimento
escolar ou formal, demanda que na relação professor-aluno haja uma orientação intencional e
explícita de promover o processo ensino-aprendizagem de saberes que foram produzidos ao
longo da história da humanidade e que na escola são sistematizados. A aquisição deste
conhecimento necessita de estratégias específicas e cabe ao professor criá-las e utilizá-las ao
lecionar, ou seja, precisa-se da intervenção do educador, por meio da mediação, para que o
educando apreenda e aprenda este saber (VYGOTSKY, 1993).
Apesar da diferenciação de nomenclaturas e titulações é possível haver uma conexão entre os
conhecimentos populares e científicos produzindo aprendizagens significativas no âmbito escolar.
De acordo com Forquin, a educação e a cultura estão intimamente ligadas e “toda educação, e
em particular toda educação do tipo escolar, supõe sempre, na verdade, uma seleção no interior
da cultura e uma reelaboração dos conteúdos da cultura destinados a serem transmitidos às
novas gerações” (FORQUIN, 1993, p. 14).
A conexão entre a Física e os a conhecimentos culturais aproxima os fenômenos teóricos
estudados de suas aplicações no dia a dia do aluno. Partindo do seio cultural e direcionando o
aluno para o ensino escolar da Física é viável uma melhor compreensão dos fenômenos físicos e
das leis que regem o universo. Isso é concernente com o que trata os Parâmetros Curriculares
Nacionais, ao destacar que:
O contexto que é mais próximo do aluno e mais facilmente explorável para dar
significado aos conteúdos da aprendizagem é o da vida pessoal, cotidiano e
convivência. O aluno vive num mundo de fatos regidos pelas leis naturais e está
imerso num universo de relações sociais. Está exposto a informações cada vez
mais acessíveis e rodeado por bens cada vez mais diversificados, produzidos
com materiais sempre novos. Está exposto também a vários tipos de
comunicação pessoal e de massa. O cotidiano e as relações estabelecidas com
o ambiente físico e social devem permitir dar significado a qualquer conteúdo
curricular, fazendo a ponte entre o que se aprende na escola e o que se faz,vive
e observa no dia-a-dia (BRASIL, 1999, p. 94).
O planejamento das estratégias de ensino viabiliza a ascensão da aprendizagem dos alunos de
forma significativa. Na elaboração de métodos de aplicação dos conteúdos deve-se pensar na
realização de aulas inovadoras, diferentes, despertando a curiosidade dos alunos, favorecendo a
aprendizagem dos mesmos. Segundo Petrucci e Bastion, a palavra estratégia pode ser usada
como ações ligadas ao ensino de forma norteadora ao objetivo educacional que é a
aprendizagem:
[...] a palavra estratégia possui estreita ligação com o ensino. Ensinar requer arte
por parte do docente, que precisa envolver o aluno e fazer com que ele se
encante com saber. O professor precisa promover a curiosidade, a segurança e
a criatividade para que o principal objetivo educacional, aprendizagem do aluno,
seja alcançado (PETRUCCI e BASTION, 2006, p. 263).
Os resultados desse processo de contextualização de saberes escolares com os populares
enriqueceram o ambiente de ensino e o processo de apreensão dos conceitos envolvidos na
disciplina de Física. Para Duarte, considerar o cotidiano como ponto de partida revela outras
possibilidades ao ato docente, e que, não necessariamente, afeta o conhecimento escolar,
expresso nos currículos escolares como conteúdo disciplinar. Ao se trabalhar com o saber
informal, é necessário desenvolver a criticidade, pois é o que irá demandar o trabalho com o
saber formal, e assim eliminar espontaneísmos, pragmatismos e empirismos. A educação escolar
apresenta um papel relevante na formação do indivíduo, é ela que efetiva o papel mediador entre
a vida cotidiana e as esferas não cotidianas das práticas sociais do homem (DUARTE, 2007).

O COTIDIANO NO ENSINO DE FÍSICA

No ensino das ciências de modo geral, e da Física em particular, mais que em outras áreas, se
torna evidente que os alunos convivem com acontecimentos sociais significativos estreitamente
relacionados com a ciência, a tecnologia e com produtos tecnológicos. No entanto, os alunos
recebem na escola um ensino de ciências que se mostra distante de seus debates atuais. Em
muitos casos os alunos acabam por identificar uma ciência ativa, moderna, e que está presente
no mundo real, todavia, distante e sem vínculos explícitos com uma Física que só existe na
escola.
No atual cenário educacional, o ensino de Física está imerso na problemática da falta de ligação
entre os conhecimentos ensinados e o universo de interesses dos alunos (ALVES e STACHAK,
2010; REIS, 2007). Neste contexto, uma questão a ser debatida é o significado de ensinar
ciências para a vida em um mundo de diversidade cultural cada vez mais globalizada.
O ensino de Física atual está trabalhando a disciplina como sendo uma parte separada do
conjunto universo, como se os conhecimentos escolares não tivessem nenhum vínculo com a
realidade do aluno, fugindo do que rege os parâmetros curriculares nacionais (PCNs) que
orientam que há “um amplo conjunto de atividades [...] que podem contribuir para que o ensino de
Física promova competências de caráter cultural e social, conferindo ao conhecimento cientifico
suas dimensões mais humanas” (BRASIL, 2002, p. 85).
Parte do desinteresse do aluno é causado por não verem a aplicabilidade dos conceitos
estudados no dia a dia. Outro fator marcante é a forma como são transmitidos os conteúdos, pois
nem sempre os professores são capazes de instigar o aluno a aprofundar seus estudos nessa
disciplina, uma ciência explicativa da realidade que os circunda.

3. METODOLOGIA

A casa de farinha objeto desse estudo está situada na comunidade de Poços Verdes, zona rural
do município de Mucambo, tem aproximadamente 50 anos de construção e possui uma estrutura
física e de equipamentos basicamente igual à de sua origem, com destaque para a confecção
artesanal dos equipamentos, que preservam uma herança cultural da comunidade. O proprietário
e conservador da mesma é o senhor Eduardo Rodrigues de Carvalho, responsável direto pela
maior parte das informações coletadas neste trabalho.
Com o objetivo de investigar os conhecimentos populares envolvidos no manuseio dos
equipamentos da casa de farinha foram elaboradas perguntas que, compondo o corpo de uma
entrevista semi-estruturada, ajudaram a coletar dados para análise e estudo. A entrevista primou
por perguntas elaboradas numa linguagem coerente com a usada pelos moradores da
comunidade e investigou tanto sobre a origem cultural quanto sobre o conhecimento funcional
dos equipamentos da casa de farinha. A entrevista ocorreu de forma espontânea e flexível às
fluições de pensamentos do momento.
No decorrer da entrevista, que teve duração de 40 minutos, o entrevistado foi relatando fatos
relevantes, exemplificando e simulando o funcionamento de alguns instrumentos, como a roda, a
prensa de fuso e a torragem de farinha no forno de trilho, enriquecendo as informações dadas.
O registro da entrevista foi feito através da gravação de áudio, visando o aproveitamento integral
e legitimidade das informações e melhor rendimento no resultado nas discussões do projeto. Os
principais equipamentos também foram fotografados.
Após a obtenção das informações e da audição da entrevista repetida vezes, as informações
principais foram transcritas e organizadas em tópicos para melhor análise.

4. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

ETAPAS DE FABRICAÇÃO DA FARINHA

A casa de farinha ou aviamento é o local onde acontece o processo de transformação da


mandioca em farinha. É o espaço onde o homem exercita sua habilidade técnica,
quotidianamente desenvolvida através dos anos de convívio-aprendiz com os mais velhos. Pode-
se dividir em nove fases a fabricação da farinha, como ilustra o esquema mostrado na Fig. 01.
Figura 01 – Esquema representativo das principais fases envolvidas na produção da farinha de
mandioca.
Plantação: a melhor época para o plantio é o início do período mais chuvoso, geralmente no mês
de janeiro.
Colheita: para um melhor rendimento e qualidade da farinha, a mandioca deve ser colhida entre
1 ano e 4 meses e 1 ano e 8 meses após o plantio.
Transporte: o transporte normalmente ainda é feito através de animais, mas já se usam
caminhões para esta tarefa.
Limpeza: feita em duas etapas, lavagem seguida de descascamento ou raspagem da mandioca,
para a retirada das fibras da casca e de parte do veneno.
Serragem ou ralação: após a limpeza, as mandiocas são serrradas (raladas), formando uma
massa embibida no líquido da mandioca (manipueira).
Prensagem: a massa, depois de ralada, é comprimida com o uso de uma prensa. O líquido
extraído da massa (manipueira) é bastante tóxico.
Esfarelamento: após retirar a massa compactada da prensa, a mesma é esfarelada.
Peneiração: a peneiração separa os fragmentos menores dos maiores, homogenizando a
gramatura da mesma, assim proporcionando melhor qualidade. Os fragmentos retidos pela
peneira são chamados crueira.
Torragem: a massa, após passar pela peneiração, é colocada no forno para a retirada da
umidade e neutralizar a toxidade, sendo mexida constantemente pelo forneiro (farinheiro). É esta
etapa que transforma a massa em farinha.
A mandioca fermenta com grande facilidade em temperatura ambiente, após a colheita, sendo
usado a torragem ou a refrigeração para evitar a fermentação. O início da fermentação ocorre em
cerca de 48 horas, mas em condições de maior calor ou umidade este tempo pode ser reduzido e
a mandioca escurece (início da fermentação). Para evitar a fermentação e o escurecimento da
farinha a ser produzida, o processo todo deve ocorrer o mais rápido possível.
A mandioca necessita de limpeza por dois motivos principais: para a diminuição dos agentes
produtores de ácido cianídrico (HCN) e para a retirada de terra e de possíveis contaminações
vindas do solo. Já a granulação da massa, a temperatura do forno, o tempo de secagem da
massa no forno e a técnica de mexê-la são fatores que influenciam o tipo e qualidade da farinha
produzida.

CONHECIMENTO CULTURAL E FUNCIONAL DOS EQUIPAMENTOS

Através do levantamento feito por meio da entrevista semi-estruturada foi possível perceber e
compreender a atuação dos conhecimentos empíricos na vida de um povo, transmitidos de uma
pessoa para a outra, bem como os avanços significativos no histórico estrutural da casa de
farinha. As mudanças ocorridas na forma organizacional e funcional da casa de farinha mostram
a variação de saberes de uma comunidade em prol da melhoria e da busca incessante por
artifícios que tornem suas atividades diárias menos dificultosas.
O conhecimento dominado nesta área foi adquirido e passado de pai para filho e, com a
convivência cotidiana dessas atividades farinheiras, foram transmitidas por herança cultural, como
uma alternativa de fonte de renda familiar. Juntamente com esse conhecimento veio também o
domínio da arte artesanal, visto que os equipamentos usados na casa de farinha eram fabricados
por eles mesmos, na própria comunidade. A razão da conservação dos padrões antigos na
produção.

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