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HISTÓRIA DA IGREJA

As Cruzadas foram um ato de amor


Admiremos ou não os cruzados, o mundo que conhecemos hoje não existiria sem o empenho deles. Não
fossem estas guerras de defesa chamadas Cruzadas, a fé cristã que moldou o Ocidente teria
sucumbido ao islã e seguido o caminho da extinção.

Thomas F. Madden
Tradução: Equipe Christo Nihil Praeponere
27.Jan.2020

São muito comuns os equívocos sobre as Cruzadas. Geralmente, elas são retratadas como uma
série de guerras santas contra o islã, conduzidas por Papas ávidos de poder e travadas por fanáticos
religiosos. Supõe-se que elas foram o epítome da presunção e da intolerância, uma mancha negra na história
da Igreja Católica em particular e da civilização ocidental em geral. Uma espécie de protoimperialistas, os
cruzados levaram a agressividade ocidental ao pacífico Oriente Médio e então deformaram a esclarecida
cultura islâmica, deixando-a em ruínas. Não precisamos ir muito longe para encontrar variações desse tema.
Qual é então a verdade sobre as Cruzadas? Especialistas ainda estão tentando chegar a um acordo
sobre isso, ao menos em parte. Porém, já é possível ter certeza sobre muitas coisas. Para começar, as
Cruzadas em direção ao Oriente foram, sob todos os aspectos, guerras de defesa. Foram uma resposta
direta às agressões de muçulmanos — uma tentativa de reversão ou de defesa contra as conquistas
islâmicas nos territórios cristãos.
As Cruzadas em direção ao Oriente foram, sob todos os aspectos, guerras de defesa.
Os cristãos do século XI não eram fanáticos paranoicos. Os muçulmanos realmente os
perseguiam. Embora eles possam ser pacíficos, o islã nasceu e cresceu por meio da guerra. Desde a
época de Maomé, a expansão islâmica sempre se deu por meio da espada. O pensamento islâmico
divide o mundo em dois campos: o território do islã e o da guerra. Não há nenhum território para o
cristianismo ou para qualquer outra religião. Num Estado muçulmano, cristãos e judeus podem ser
tolerados sob a lei islâmica. Porém, no islã tradicional, Estados cristãos e judaicos devem ser
destruídos e suas terras, conquistadas.
Quando Maomé guerreou contra Meca no século VII, o cristianismo era a religião
predominante em relação ao poder e à riqueza. Como era a fé do Império Romano, abarcava o
Mediterrâneo inteiro, incluindo o Oriente Médio, onde havia nascido. Portanto, o mundo cristão foi o
principal alvo dos primeiros califas e assim permaneceu, para os líderes muçulmanos, ao longo do
milênio seguinte.
Os guerreiros islâmicos atacaram os cristãos com imenso vigor logo após a morte de Maomé.
Foram muito bem-sucedidos. Palestina, Síria e Egito — outrora as regiões mais cristãs do planeta —
sucumbiram rapidamente. No século VIII, exércitos muçulmanos conquistaram todo o norte da África e
Espanha, regiões cristãs. No século XI, o Império Seljúcida conquistou a Ásia Menor (Turquia
moderna), que era cristã desde a época de São Paulo. O antigo Império Romano, conhecido pelos
historiadores modernos como Império Bizantino, ficou reduzido a pouco mais que a Grécia.
Desesperado, o imperador em Constantinopla enviou uma mensagem aos cristãos da Europa
Ocidental para pedir ajuda aos seus irmãos e irmãs do Oriente.
Os guerreiros islâmicos atacaram os cristãos com imenso vigor logo após a morte de Maomé.
Foi isso o que deu origem às Cruzadas. Elas não foram a criação de um Papa ambicioso nem de
cavaleiros gananciosos, mas uma resposta a mais de quatro séculos de conquistas por meio das quais
os muçulmanos já haviam tomado dois terços do antigo mundo cristão. A um dado momento, o
cristianismo teve de se defender, como fé e cultura, para não ser absorvido pelo islã. As Cruzadas
foram essa defesa.
No Concílio de Clermont, em 1095, o Papa Urbano II pediu aos cavaleiros da cristandade para
que repelissem as conquistas do islã. A resposta foi tremenda. Milhares de guerreiros fizeram o
juramento da cruz e se prepararam para a guerra. Por que o fizeram? A resposta a essa pergunta foi
muito incompreendida. Após o surgimento do Iluminismo, tornou-se usual afirmar que os cruzados eram
simplesmente sem-terra e inúteis que se aproveitaram de uma oportunidade para roubar e pilhar num
território distante. Obviamente, os sentimentos de piedade, abnegação e amor a Deus manifestados por eles
não deveriam ser levados a sério, pois eram somente uma fachada para encobrir planos obscuros.
Durante as duas últimas décadas, estudos de documentos, assistidos por computador,
demoliram tal narrativa. Especialistas descobriram que, em geral, os cavaleiros cruzados eram
homens ricos que possuíam muitas terras na Europa. Não obstante, eles abriram mão de tudo
voluntariamente para realizar a santa missão. Participar de uma Cruzada não era algo barato. Até
senhores ricos podiam facilmente ficar pobres junto com suas famílias por participarem de uma
Cruzada. Faziam-no não por almejarem riquezas materiais (algo que muitos deles já possuíam), mas
porque tinham a esperança de ajuntar tesouros onde nem as traças nem a ferrugem os poderiam
consumir.
O cristianismo teve de se defender, como fé e cultura, para não ser absorvido pelo islã. As
Cruzadas foram essa defesa.
Eles tinham profunda consciência do quanto eram pecadores, e estavam dispostos a suportar
as privações da Cruzada como um ato penitencial de amor e caridade. A Europa está repleta de
documentos medievais que confirmam esses sentimentos, documentos por meio dos quais aqueles
homens falam conosco até hoje. Basta que os escutemos. É claro que eles não se opunham a capturar
espólios quando isso era possível. Porém, a verdade é que as Cruzadas eram notoriamente ruins para a
pilhagem. Poucas pessoas enriqueciam, mas a grande maioria retornava sem nada.
Urbano II deu aos cruzados dois objetivos, e ambos continuaram sendo essenciais para as Cruzadas
orientais nos séculos seguintes. O primeiro era resgatar os cristãos do Oriente. Como disse o sucessor
dele, Inocêncio III:
“Como pode um homem amar o próximo como a si mesmo, segundo o preceito divino, quando,
sabendo que seus irmãos na fé são mantidos pelos pérfidos muçulmanos em estrito confinamento e
oprimidos pela mais pesada servidão, não se dedica à tarefa de libertá-los? É por acaso que ignorais que
milhares de cristãos são mantidos na escravidão e na prisão pelos muçulmanos, além de serem
torturados com inúmeros suplícios?”
O professor Jonathan Riley-Smith argumentou corretamente que “a participação numa
Cruzada era entendida como um ato de amor” — neste caso, o amor ao próximo. A Cruzada era vista
como um serviço de caridade para corrigir uma terrível injustiça. O Papa Inocêncio III escreveu o
seguinte aos cavaleiros templários: “Realizais com atos as palavras do Evangelho: ‘Ninguém tem
maior amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos.’”
As Cruzadas eram vistas como um serviço de caridade para corrigir uma terrível injustiça.
O segundo objetivo era libertar Jerusalém e outros locais santificados pela vida de Cristo. A
palavra cruzada é moderna. Os cruzados medievais consideravam-se peregrinos que realizavam atos de
justiça no trajeto em direção ao Santo Sepulcro. A indulgência que recebiam era ligada canonicamente
à indulgência da peregrinação. Esse objetivo era descrito com frequência em termos feudais. Quando
convocou a Quinta Cruzada em 1215, Inocêncio III escreveu:
Meus queridos filhos, considerai com cuidado o seguinte: se qualquer rei temporal fosse tirado de seu
domínio e, talvez, capturado, não olharia para seus vassalos como infiéis e traidores quando sua liberdade
ficasse novamente intocada e chegasse o momento de fazer justiça… a menos que eles tivessem
comprometido não apenas suas propriedades, mas também a si próprios na missão de libertá-lo? E, de modo
semelhante, Jesus Cristo, Rei dos reis e Senhor dos senhores, a quem não podeis negar a servidão, que
uniu vossas almas aos vossos corpos e que vos redimiu com o Sangue Precioso… não vos condenará
pelo vício de ingratidão e crime de infidelidade se descuidardes de ajudá-lo?
A reconquista de Jerusalém, portanto, foi um ato de restauração, não de colonialismo, e uma
declaração aberta de amor a Deus. Os medievais sabiam, é claro, que Deus tinha poder para
reconquistar Jerusalém para si — na verdade, Ele tinha poder para pôr o mundo inteiro sob seu
governo novamente. Porém, como pregou São Bernardo de Claraval, sua recusa em fazê-lo era uma
bênção para seu povo:
Digo novamente: levai em conta a bondade do Todo-poderoso e prestai atenção em seus planos de
misericórdia. Ele impõe a si uma obrigação para convosco (ou antes simula isso), de modo que possa
ajudar-vos a satisfazer vossas obrigações para com Ele… Considero abençoada a geração que pode
aproveitar a oportunidade de uma indulgência tão rica como essa.
Pressupõe-se com frequência que o objetivo central das Cruzadas era a conversão forçada do
mundo islâmico. Nada poderia estar mais distante da verdade. Do ponto de vista dos cristãos
medievais, os muçulmanos eram os inimigos de Cristo e de sua Igreja. O objetivo dos cruzados era
derrotá-los e defenderem-se deles. Nada mais. Os muçulmanos que viviam em territórios conquistados
por cruzados geralmente recebiam a permissão para conservar sua propriedade, seu meio de vida e —
sempre — sua religião. Na verdade, ao longo da história do Reino Cruzado de Jerusalém, o número de
habitantes muçulmanos superou bastante o de católicos. Foi só no século XIII que os franciscanos
começaram a tentar converter os muçulmanos. Porém, tais tentativas foram em grande medida
infrutíferas e ao fim e ao cabo foram abandonadas. Seja como for, não se recorria à ameaça de agressão,
mas à persuasão pacífica.
Cinquenta anos depois, quando a Segunda Cruzada estava sendo preparada, São Bernardo pregou
muitas vezes que os judeus não deviam ser perseguidos:
Perguntemos a qualquer um que conhece as Sagradas Escrituras o que o Salmo vaticina sobre os
judeus. “Não rezo pela destruição deles”, ele diz. Os judeus são para nós as palavras vivas da Escritura,
pois sempre nos recordam o que Nosso Senhor sofreu… Sob o governo dos príncipes cristãos, eles
suportam uma difícil servidão, mas “apenas esperam o momento de sua libertação”.
Contudo, um monge cisterciense contemporâneo de São Bernardo chamado Rodolfo incitou as
pessoas contra os judeus da Renânia, apesar de Bernardo ter escrito várias cartas para exigir que ele
parasse com aquilo. No final das contas, ele se viu obrigado a ir pessoalmente até a Alemanha, onde
alcançou Rodolfo, enviou-o de volta ao seu convento e interrompeu os massacres.
Afirma-se com frequência que é possível ver nessas perseguições as raízes do Holocausto. Pode ser
verdade, mas se for o caso, essas raízes são muito mais profundas e abrangentes do que as Cruzadas. Judeus
morreram durante as Cruzadas, mas o objetivo delas não era matar judeus. Foi exatamente o
contrário: Papas, bispos e pregadores deixaram claro que os judeus da Europa deviam ser deixados
em paz. Numa guerra moderna, chamamos mortes trágicas como essas de “dano colateral”. Mesmo com
tecnologias inteligentes, os Estados Unidos mataram um número muito maior de inocentes em guerras
do que os cruzados jamais poderiam imaginar. Porém, ninguém argumentaria com seriedade que o
propósito das guerras americanas é matar mulheres e crianças.
Nossos ancestrais medievais sentiriam a mesma repugnância de nossas guerras infinitamente
mais destrutivas, porque travadas em nome de ideologias políticas.
Da confortável distância de tantos séculos, fica muito fácil olhar com desprezo para as
Cruzadas. Afinal, a religião não deve ser motivo para guerrearmos. Porém, devemos ter em mente
que nossos ancestrais medievais sentiriam a mesma repugnância de nossas guerras infinitamente mais
destrutivas, porque travadas em nome de ideologias políticas. Mesmo assim, tanto o soldado medieval
como o moderno lutam, em última instância, por seu próprio mundo e por tudo o que faz parte dele.
Ambos estão dispostos a realizar um enorme sacrifício, desde que seja em prol de algo que amam, algo
maior que eles. Admiremos ou não os cruzados, o fato é que o mundo que conhecemos hoje não
existiria sem o empenho deles. A antiga fé do cristianismo, com seu respeito pelas mulheres e sua
aversão à escravidão, não apenas sobreviveu, mas prosperou. Sem as Cruzadas, ela poderia muito
bem ter seguido o caminho do zoroastrismo, outro rival do islã, rumo à extinção.

Thomas F. Madden (nascido em 1960) é um historiador americano, ex-presidente do


Departamento de História da Universidade de Saint Louis, em St. Louis, Missouri, e diretor do Centro de
Estudos Medievais e Renascentistas da Universidade de Saint Louis. Especialista nas Cruzadas, ele
costuma comentar na mídia popular após os eventos de 11 de setembro para discutir tópicos como o modo
como os muçulmanos encaram as Cruzadas medievais e seus paralelos às intervenções de hoje no Oriente
Médio. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_F._Madden

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