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Muito mais vitorioso, contudo, foi o esforço da Igreja por encontrar um novo canal que

atraísse as energias guerreiras e as deslocasse para fora da sociedade feudal, canalizando-as


contra os inimigos externos da cristandade. A proclamação das Cruzadas para a reconquista de
Jerusalém por Urbano II, durante o concílio de Clermont em 1093, produziu uma onda de
entusiasmo religioso que foi muito real, aliando a religiosidade aos instintos naturais do
incorrigível guerreiro feudal. Segundo Foucher de Chartres, o papa associou seu apelo às ideias
do movimento de paz e da Trégua de Deus, conclamando os violadores da paz e os homens
que viviam pela espada para que ganhassem o perdão tornando-se soldados de Cristo,
derramando seu sangue a serviço da cristandade. Pela primeira vez, a sociedade feudal
encontrava um propósito que transcendia seus particularismos internos, unificando-a em
busca de um objetivo singular sob a liderança da Igreja. De muitas formas, foi um movimento
único, devido à combinação singular entre espontaneidade popular e organizadas expedições
militares, focadas em obter vantagens políticas. Para um observador de fora, como no caso da
princesa Ana Comnena, a qual descreveu a cruzada de forma muito vívida, mas do ponto de
vista de uma civilizada princesa bizantina, esse movimento se assemelhava a uma nova onda
de invasões bárbaras. Ela escreve:

Todo o Ocidente e todas as tribos bárbaras que habitam o lado mais extremo da costa do
Atlântico, desde os pilares de Hércules, migraram para a Ásia atravessando as partes
intermediárias da Europa, acompanhados de todo o seu clã ( . . . ) Esses guerreiros francos vêm
acompanhados de uma horda desarmada mais numerosa que as estrelas ou que grãos de
areia, carregando cruzes e sacos em seus ombros – são numerosas as mulheres e as crianças. A
visão que tive deles era como a de muitos rios a avançar por todos os lados, precipitando-se
sobre nós ao cruzar a Dácia com toda a horda que os seguia.4

No entanto, uma onda desordenada de excitação popular não consegue explicar o sucesso da
primeira cruzada. Em qualquer época, isso seria uma realização de primeira magnitude. Pôr em
marcha exércitos, atravessar o continente da França até a Ásia Menor, alcançar a Antioquia e
Jerusalém, derrotar poderosas forças turcas e egípcias, estabelecer uma cadeia de Estados
cristãos ao longo da costa Síria e do interior e chegar a Edessa, no Eufrates, é uma façanha

e tanto em qualquer época. Na verdade, esse movimento marca um

importante ponto de virada na história do Ocidente, encerrando longos

séculos de fraqueza, isolamento e inferioridade cultural; levando

os novos povos da cristandade ocidental de volta aos antigos centros

da cultura mediterrânea oriental. Tamanha realização só foi possível

por meio do poder unificador e altamente arrebatador da paixão religiosa.

Contudo, tratava-se mais da religião das canções de gesta que

da religião da reforma monástica, embora o movimento das cruzadas

tenha ajudado a estabelecer um laço de afinidade e interesse comum

entre elas. Foi o grande papa cluniacense Urbano II que lançou a primeira

cruzada, em um momento crítico na história da luta entre o papado

e o império, quando tanto o imperador quanto os reis da França


e da Inglaterra estavam todos sob o risco de excomunhão; quando a

cristandade não podia deles se valer para sua liderança. Durante a

segunda geração das cruzadas, foi São Bernardo, o maior de todos

os reformadores monásticos, que assumiu a liderança do movimento,

fornecendo seu poderoso conselho e apoio à nova ordem militar

dos templários, na qual os ideais religiosos de uma cavalaria cristã

encontraram sua expressão mais completa. Dessa forma, as grandes

ordens militares, como os próprios cruzados, passaram a constituir

uma ponte entre a sociedade leiga e eclesiástica. Enquanto o feudalismo

tendera a secularizar a Igreja ao assimilar o benefício do bispo

ou do abade ao feudo do barão; os cruzados e suas ordens militares

introduziram os princípios religiosos de voto sagrado e obediência

voluntária na instituição de cavalaria. Devido a seu voto de obediência,

o cruzado se encontrava separado de todas as suas obrigações

feudais e territoriais e se tornara o soldado da Igreja e da cristandade.

A fim de prevenir o perigo de anarquia, resultante dessa emancipação

das obrigações feudais, a instituição das ordens militares concebeu

um princípio de autoridade e organização baseado em concepções

estritamente religiosas, similares àquelas das ordens monásticas. O novo status social criado
por essas instituições tinha uma configuração

estritamente internacional, pois pertencia à cristandade como

um todo e não a qualquer império ou reino. Da mesma forma, o aparecimento

e a queda das ·grandes ordens militares, particularmente a

dos templários, representou um fiel índice de progresso e declínio das

tendências unitárias da cristandade medieval. Enquanto as Cruzadas

prosseguiram, a unidade da cristandade encontrou expressão em uma

dinâmica atividade militante, a qual satisfazia os instintos agressivos

do guerreiro ocidental, ao passo que, ao mesmo tempo, os sublimava

por causa de seu idealismo religioso. Dessa forma, as Cruzadas expressaram

tudo o que existia de mais alto e mais baixo na sociedade

medieval - a ganância sem limites de um Boemundo ou de um Carlos


de Anjou e a autoabnegação heroica de um Godofredo de Bouillon e

de um São Luís.

Essa ambivalência foi igualmente característica da própria instituição

da cavalaria, a qual ultrapassou em muito a duração do movimento

das cruzadas e deixou uma impressão permanente sobre a

sociedade e a cultura europeias. Cada uma das grandes civilizações do

mundo sofreu o desafio de reco􀙑ciliar o ethos agressivo do guerreiro

com os ideais morais de uma religião universal. Porém, em nenhuma

delas essa tensão foi tão vital e intensa como na cristandade medieval

e em nenhum outro lugar os resultados foram mais significativos para

a história da cultura. Não mais se tratava, como na época das invasões

bárbaras, de uma tensão entre duas sociedades e dois elementos

sociais, ou seja, entre o ethos guerreiro dos conquistadores pagãos e

a cultura cristã de uma população conquistada e altamente civilizada.

Pelo contrário, na sociedade feudal, a tensão passou a ocorrer dentro

da mesma sociedade e até na mesma classe. Vemos, por exemplo, na

História Eclesiástica de Orderico Vitalis como o mesmo estrato da

população, e até as mesmas famílias, produzia ascetas e guerreiros,

líderes da reforma monástica e barões criminosos, de modo que o

ca rá ter i n d i v i d u a l , em vez de uma tradição social, tornara-se o fatordecisivo. Dessa


forma, a tensão entre os dois ideais e os dois modos

de vida se tornara uma questão interna e psicológica, a qual, por

vezes, se manifestava por meio da conversão individual do cavaleiro

em monge, mas que, com mais frequência, tomava a forma de um

compromisso entre os dois ideais, tais como o voto do cruzado, a

associação das ordens militares ou a tentativa de transformar a cavalaria

no braço secular da Igreja e do poder espiritual. O nivelamento

gradual do ethos heroico pela influência da Igreja encontra sua expressão

literária nas canções de gesta, que representam o autêntico

espírito da sociedade feudal, em contraste com a poesia romântica

dos trovadores e com o épico cortês que parecem pertencer a um universo


completamente diferente.

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