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Argumentos Sobre o Aborto
Argumentos Sobre o Aborto
Pedro Madeira
Em cada uma das quatro primeiras secções menciono um mau argumento usado pelos
defensores da legalização do aborto e um mau argumento usado pelos opositores da
legalização do aborto. Tento fornecer uma análise tanto quanto possível imparcial de
todos os argumentos, de modo a que não seja possível perceber-se qual é a minha
posição acerca do assunto. Nas três secções seguintes digo onde me situo no debate
acerca da legalização do aborto e argumento a favor da minha posição.
Concepção
Implantação
A implantação é a altura em que aquilo que virá a ser o feto se “agarra” à parede do
útero. Isto geralmente acontece seis a oito dias após a fertilização. É fácil ver que a
implantação não pode ser o critério correcto. O que é que não existe, no quinto dia,
que passa a existir no sexto? Aparentemente, nada. Ocorrem alterações hormonais no
corpo da mulher, mas não é claro que relevância moral isto possa ter.
Forma humana
O feto começa adquirir forma humana por volta das seis a oito semanas. Até essa
altura, podia parecer apenas “um amontoado de células”, como os defensores da
legalização costumam dizer, agressivamente. Poderá ser o facto de que o feto adquire
forma humana que lhe garante o direito à vida? Não. Se uma avestruz passasse pelas
mãos de um cirurgião talentoso e adquirisse forma humana, acha mesmo que
adquiriria, só por isso, o direito à vida? Não — se já não o tinha antes, não era agora
que ia passar a tê-lo.
Aceleração (“quickening”)
Normalmente, a mãe começa a aperceber-se dos movimentos do feto por volta das
16/17 semanas após a fertilização. Há pessoas que defendem que é aqui que o feto
começa a ter o direito à vida porque é precisamente na altura em que a mãe sente o
feto “a dar pontapés” que se cria uma empatia especial entre ela e o feto. Este
também é um mau argumento. O facto de um ser ter ou não o direito à vida não pode
estar dependente de termos ou não empatia para com ele (ou ela). Se não podemos
dizer que o feto começa a ter o direito à vida quando começa a mexer-se, então
também não podemos dizer que começa a ter o direito à vida quando a mãe se
apercebe, pela primeira vez, desse movimento.
Na maior parte dos casos, o feto começa a revelar indícios de actividade cerebral entre
as 6 e as 10 semanas. É importante especificar o que queremos dizer quando falamos
em actividade cerebral. Entre as 6 e as 10 semanas, o que começa a haver é actividade
eléctrica naquilo que virá a ser o cérebro. Mas isto, por si só, é um dado
desinteressante. Há actividade eléctrica em todas as células do corpo humano. O facto
de haver actividade eléctrica naquilo que virá a ser o cérebro não significa que ali se
esteja a passar algo de moralmente relevante. Não tenho dúvida de que o
desenvolvimento do cérebro está relacionado com a aquisição do direito à vida por
parte do feto — mas o tipo de actividade cerebral registada a partir das 6/10 semanas
não é suficiente para que tal suceda. Nessa altura, a única parte do cérebro que está
mais ou menos desenvolvida é a que se ocupa de funções básicas, como o ritmo
cardíaco e a respiração.
Viabilidade
Diz-se que um feto se torna viável quando pode sobreviver fora da barriga da mãe
(ainda que com recurso a cuidados médicos), o que acontecerá algures entre as 20 e as
23 semanas. Argumenta-se por vezes que a viabilidade do feto marca a altura em que
o feto adquire o direito à vida, dado que a partir desta altura o feto já não necessita da
mãe. Este critério sofre de um problema óbvio: a altura da viabilidade do feto é
determinada pelo estado da tecnologia existente. Isso torna arbitrária a adopção do
critério da viabilidade. No futuro, a viabilidade pode passar a ser mais cedo — mas isso
não significa que o feto adquira o direito à vida mais cedo.
Há ainda uma última posição que, tanto quanto me pude aperceber, não é muito
discutida na bibliografia de bioética, mas que aparece, de vez em quando, em debates
públicos: o gradualismo. O gradualismo é a posição de que o direito à vida é uma
questão de grau, e que o feto vai progressivamente adquirindo maior direito à vida à
medida que a gravidez avança no tempo. Há um sentido trivial em que concordo com o
gradualismo: a partir da vigésima quinta semana, o feto vai adquirindo
progressivamente maior direito à vida, e, em termos morais, matar um feto com 30
semanas não é, certamente, a mesma coisa que matar um feto com 40 semanas. No
entanto, não é possível usar o gradualismo para argumentar a favor da posição de que
o zigoto tem o direito à vida. Ao usar esta linha de argumentação, uma pessoa estaria
a cair, subtilmente, no erro de usar o chamado “argumento dos dois minutos”, que,
como já vimos, é falacioso.
A minha posição não é facilmente rotulável. Dado que acho que há uma altura a
partir da qual é imoral abortar, não me considero “pró-escolha”. E, dado que acho que
é moralmente permissível abortar até certa altura, também não me considero “pró-
vida”. Se pensarmos que temos de ser ou pró-vida ou pró-escolha, então ficamos
perante um grande dilema. Se somos pró-escolha, ficamos com a dificuldade de
explicar porque é que o infanticídio não é permissível, dado que seria permissível
abortar no nono mês. Se somos pró-vida, ficamos sem nenhuma história para contar
para explicar porque é que o zigoto tem o direito à vida — só podemos bater na mesa
e repetir que o aborto vai contra a dignidade da pessoa humana. Ao apoiar um critério
que me parece convincente, escapo ao dilema.
Dado que há inúmeros critérios possíveis para definir a partir de que altura o feto
tem o direito à vida, os opositores da legalização costumam reclamar que, se nem os
defensores da legalização estão de acordo acerca do critério a usar, segue-se que
devemos ser cautelosos e tratar o feto como se tivesse o direito à vida desde a
concepção. Esta objecção falha o alvo. É verdade, sim, que há desacordo entre os
defensores da legalização acerca de qual o critério a usar. Mas a única coisa que daqui
se segue é que não se pode recorrer a argumentos de autoridade para defender um
dado critério. É uma regra elementar da argumentação que não é permissível usar um
argumento de autoridade para tentar estabelecer uma dada conclusão quando as
autoridades não estão de acordo entre si. No entanto, daqui não se segue, de modo
algum, que um critério particular seja tão bom como qualquer outro. E, de facto,
acabei de falar dos critérios mais debatidos na bibliografia e, como se pôde ver, só um
deles parece defensável. Seja como for, na próxima secção olharei para este
argumento da cautela em maior pormenor e explicarei por que acho que não colhe.
7. Será melhor não legalizar por uma questão de cautela?
Tenho vindo a discutir vários argumentos a favor e contra o aborto. Agora, porém, vou
analisar um argumento especial que os opositores da legalização costumam usar em
desespero de causa. Este argumento não procura estabelecer que o aborto é imoral,
mas apenas que o aborto não deve ser legalizado porque o debate acerca da
moralidade ou imoralidade do aborto é inconclusivo.
A estratégia argumentativa é a seguinte: Se o aborto é moralmente permissível,
então ao tomar a atitude de não legalizar o aborto estaremos apenas a dificultar
desnecessariamente a vida às mulheres que pretendiam abortar (“dificultar a vida” é
um eufemismo, obviamente). Por outro lado, caso o aborto seja imoral, estaremos a
autorizar um assassínio em larga escala. O problema com este argumento é o de que
toma a seguinte forma: “podemos achar que os argumentos contra a permissibilidade
moral da prática X não são convincentes; no entanto, como as consequências morais
de X ser imoral seriam terríveis, mais vale abstermo-nos de realizar X”. Este é um
princípio de decisão a que é comum chamar “princípio de eliminação do risco”. A ideia
é simples: imagine que o leitor tem várias opções disponíveis. Uma delas tem a
possibilidade ínfima de causar um desastre. Por isso, o leitor deve abster-se de
escolher esta opção. Não é difícil perceber porque é que não devemos empregar este
princípio. Imagine que o leitor é presidente de uma empresa que vende champôs ao
domicílio. Um dos seus vendedores vem ter consigo, com ar solene, mas cauteloso, e
diz-lhe que acha que a empresa devia deixar de vender o champô “Charmoso”.
Perplexo com este comentário, dado que o champô Charmoso é, precisamente, o
champô mais popular junto dos consumidores, pergunta-lhe, inquieto, quais as suas
razões. O vendedor diz-lhe que duas pessoas foram atropeladas, no mesmo dia, logo
após usar o dito champô, pelo que a empresa corre o risco de ser processada por
vender um champô que dá azar aos utilizadores.
Como é óbvio, este é um argumento nada convincente. A coisa certa a fazer é, sem
dúvida, continuar a vender o champô Charmoso. É extremamente escassa a
probabilidade de que seja um dia aprovada uma lei (com efeitos retroactivos, ainda
por cima) que permita processar uma empresa por vender produtos azarentos. E a
probabilidade de que o champô Charmoso seja mesmo azarento é mais escassa ainda.
O problema com o princípio de eliminação do risco está agora à vista: o princípio pede-
nos que negligenciemos a qualidade dos argumentos apresentados. Se houver um
argumento qualquer a defender que X é uma consequência possível de fazer Y e que X
é uma coisa terrível, então, por pior que esse argumento seja, o melhor é mesmo não
fazer Y. Este é um princípio que não parece lá grande ideia adoptar. O princípio só
entra em cena se houver um empate entre os argumentos a favor da posição de que X
é uma coisa terrível e os argumentos a favor da posição de que X não é uma coisa
terrível. Quando não se mostrou que há esse empate, é falacioso invocar o princípio de
eliminação do risco.
O leitor poderá achar, contudo, que usei o exemplo de uma decisão comercial, ao
passo que o princípio se aplica, fundamentalmente, a questões éticas. Esta não é uma
crítica justa, dado que a objecção que apresentei contra o argumento é igualmente
pertinente quer tentemos aplicá-lo na vida de uma empresa, quer na nossa vida ética
quotidiana. Um princípio de decisão aplica-se, supostamente, a todas as decisões que
temos de tomar no dia-a-dia, quer estejam relacionadas com a nossa vida moral ou
não. Mas vou, ainda assim, tomar esta preocupação em linha de conta e apresentar
um exemplo de uma questão ética em que o princípio poderia ser empregue.
Imagine, então, que aparecia alguém a dizer que as árvores têm direitos. Nesse
caso, ele poderia apelar ao princípio de eliminação do risco e dizer: “vocês podem
achar que os meus argumentos não são muito convincentes; no entanto, pensem nas
terríveis consequências morais de eu estar certo. Estaríamos a autorizar anualmente o
assassínio de milhões de árvores inocentes pelo mundo inteiro”. Se aceitássemos o
princípio de eliminação do risco, então seríamos forçados a deixar de deitar abaixo
árvores. Mas não há qualquer razão para fazermos isso, dado que os argumentos a
favor da posição de que as árvores tem direitos não são convincentes. As pessoas
podem reclamar que o caso das árvores não é semelhante ao do feto, pelo que a
analogia não funciona. Não é semelhante? Se o leitor pensa isso, é porque está
implicitamente a partir do princípio de que o aborto é imoral. No entanto, como já tive
oportunidade de mostrar, não há um empate entre os argumentos a favor da posição
de que o aborto é uma tragédia moral e os argumentos a favor da posição de que o
aborto não é uma tragédia moral. Pelo contrário — tanto os argumentos
frequentemente usados em debates públicos como os principais argumentos usados
na bibliografia de bioética parecem maus. E, embora alguns argumentos apresentados
a favor da legalização do aborto sejam maus, há outros que parecem decisivos. Os
argumentos não são como maçãs num cabaz: a “podridão” — passe a expressão — de
uns não afecta a qualidade (boa ou má) dos outros. (O facto de muitos dos argumentos
a favor de uma dada posição serem nitidamente maus pode provocar um preconceito
espontâneo contra uma posição, mas essa é outra história.) Concluindo: é falacioso
estar a usar o princípio da eliminação do risco para argumentar que, por uma questão
de precaução, o aborto não deve ser legalizado, dado que não há um empate entre os
argumentos contra e a favor.
A quem queira ter uma posição informada acerca do assunto, aconselho dois livros.
Em primeiro lugar, Ethics in practice: an anthology, organizado por Hugh LaFollette,
tem uma secção acerca do aborto que contém quatro artigos, sendo que dois deles são
já clássicos: “A Defense of Abortion”, de J. J. Thomson, e “An Argument that Abortion
is Wrong”, de Don Marquis. É um escândalo que um livro destes ainda não esteja
publicado em Portugal. (Ambos os artigos, e outros, foram entretanto publicados no
livro A Ética do Aborto, org. de Pedro Galvão (Dinalivro, 2005).) Em segundo lugar, A
Defense of Abortion, de David Boonin, é a defesa mais convincente (e exaustiva) do
aborto que já alguma vez li, e a minha discussão do aborto foi muito influenciada pelo
livro. Como foi publicado recentemente (2003), achei por bem retirar daqui todos os
dados científicos de que necessitei. Alguns dos argumentos que discuti aqui não
aparecem no livro porque são demasiados maus. Achei por bem discuti-los, ainda
assim, porque vêm muito à baila em debates públicos.
Pedro Madeira