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Argumentos sobre o aborto

Pedro Madeira
Em cada uma das quatro primeiras secções menciono um mau argumento usado pelos
defensores da legalização do aborto e um mau argumento usado pelos opositores da
legalização do aborto. Tento fornecer uma análise tanto quanto possível imparcial de
todos os argumentos, de modo a que não seja possível perceber-se qual é a minha
posição acerca do assunto. Nas três secções seguintes digo onde me situo no debate
acerca da legalização do aborto e argumento a favor da minha posição.

1. Os argumentos da inevitabilidade e da dignidade

Comecemos então por analisar dois maus argumentos frequentemente apresentados


em Portugal. O primeiro é a favor da legalização do aborto; o segundo é contra.
Primeiro, temos o argumento de que continuarão a ser realizados abortos, quer o
aborto seja descriminalizado ou não, pelo que mais vale descriminalizar e, deste modo,
fornecer melhores condições às mulheres que desejem abortar. A resposta óbvia ao
argumento é: roubar é crime, mas há roubos na mesma. Por isso, o melhor é
descriminalizar o roubo e, deste modo, fornecer melhores condições aos pobres
ladrões, para que não rasguem as calças no arame farpado nem incorram no risco de
tropeçar e partir uma perna quando fogem da polícia. A resposta será, obviamente:
“estás a ser tremendamente injusto — o aborto e o roubo são coisas completamente
diferentes”. Mas é claro que são; ninguém está a dizer o contrário. O ponto é
simplesmente o de que, se achamos que o argumento de que “as pessoas fá-lo-iam na
mesma” não é, por si só, justificação suficiente para descriminalizar o roubo, então
também não poderá ser, por si só, justificação suficiente para descriminalizar o que
quer que seja, aborto incluído. Aquilo que se passa é que, ao usar este argumento de
que “as pessoas fá-lo-iam na mesma”, os defensores da legalização do aborto estão
implicitamente a partir do princípio de que o roubo é eticamente incorrecto, ao passo
que o aborto, se não eticamente correcto, será, pelo menos, eticamente permissível.
Assim que nos apercebemos disto, vê-se claramente que, ao usar o argumento de que
“as pessoas fá-lo-iam na mesma” para tentar justificar a legalização do aborto, os
defensores da legalização estão, pura e simplesmente, a fugir à questão.
É frequentemente dito que o aborto é errado “porque vai contra a dignidade da
pessoa humana”, ou “por causa da santidade da vida humana”. Este é um daqueles
argumentos que me deixam a coçar a cabeça, tentando descobrir o que é que alguém
poderá estar a querer dizer com isto. A interpretação mais caridosa é, talvez, a
interpretação religiosa, segundo a qual a única coisa que este “argumento” diz é que é
atribuída uma alma ao feto no momento da concepção, pelo que é imoral matá-lo em
qualquer momento da gravidez. Este argumento talvez seja suficiente para convencer
uma pessoa religiosa de que o aborto é imoral. No entanto, dado o seu carácter
religioso, não é um argumento que possamos usar contra a legalização do aborto. (É
de notar, de passagem, que a própria ideia de uma alma a ser “atribuída” (por assim
dizer) no momento da concepção é problemática. Não estou a falar no problema de
saber o que é, supostamente, uma alma, a sua composição — já nem vou tão longe. O
problema é o de que não há um momento preciso em que se dá a concepção. Essa é
apenas uma ilusão. A fertilização é um processo gradual que leva cerca de vinte e duas
horas. É difícil perceber em que altura é que a alma supostamente será “atribuída”.)
Uma interpretação menos caridosa deste argumento dirá que, das duas, uma: ou o
argumento é simplesmente vácuo — o opositor da legalização consegue pouco mais ao
avançá-lo do que aclarar a garganta; ou então o argumento está, pura e simplesmente,
a fugir à questão e não há mais nada a dizer. Dizer que o aborto é imoral porque o feto
tem dignidade intrínseca, ou coisa que o valha, é um “conversation-stopper”. Vi uma
vez um episódio curioso num debate televisivo em que um dos convidados avançou
este argumento, mas vou deixar essa interessante história para depois — contá-la-ei
na última secção (a oitava).

2. O argumento feminista e o apelo ilegítimo às emoções

Um mau argumento usado pelos defensores da legalização do aborto é o argumento


feminista de que o corpo é das mulheres, pelo que as mulheres é que sabem o que
hão-de fazer com ele. Este argumento limita-se a fugir à questão porque as feministas
nunca chegam a dizer nada acerca do estatuto moral do feto — nunca dizem se o feto
tem, ou não, o direito à vida. Esta é uma falha grave pela seguinte razão: Se o
argumento das feministas fosse, simplesmente, o de que “o corpo é da mulher, a
mulher é que sabe o que há-de fazer com ele”, então isso implicaria que seria
moralmente permissível abortar até no nono mês. Afinal, no nono mês a criança ainda
está no ventre da mãe. As feministas podem agora aceitar esta conclusão, ou rejeitá-
la. Imaginemos que a aceitam. Nesse caso, ficam com a dificuldade de explicar porque
é que não podemos matar uma criança recém-nascida. Afinal, podíamos matá-la dois
minutos antes, mas agora já não? Isso parece extremamente arbitrário. Imaginemos
agora que as feministas rejeitam a conclusão de que é moralmente permissível abortar
no nono mês. Nesse caso, terão de nos dizer a partir de que altura é que o feto, ainda
na barriga da mãe, começa a ter o direito à vida. Independentemente de como
escolham responder a este problema, uma coisa é certa: ao admitir que não é
moralmente permissível abortar no nono mês, uma feminista terá acabado de
abandonar o argumento de que “o corpo é da mulher, a mulher é que sabe o que há-
de fazer com ele”. O máximo que uma feminista poderá dizer é que, até determinado
estádio da gravidez, é moralmente permissível abortar. A partir dessa altura, o feto
adquire o direito à vida. De qualquer maneira, se o argumento feminista de que “o
corpo é da mulher, a mulher é que sabe o que há-de fazer com ele” fosse mesmo
levado a sério, então isso teria a implicação de que a prostituição devia ser legalizada.
Afinal, o corpo é da mulher. Todavia, é quase certo que qualquer feminista que se
preze se oporá à legalização da prostituição, com o argumento habitual de que a
prostituição degrada a mulher à condição de mero objecto sexual.
Há um mau argumento usado pelos opositores da legalização do aborto que não é,
em bom rigor, um argumento: é apenas o chamado apelo às emoções. Aquando do
período imediamente precedente ao referendo, assisti, com algum desconforto, a uma
campanha chamada “Não matem o Zézinho”, a qual, se não estou em erro, distribuiu
vídeos em que eram mostrados abortos verídicos. Também constatei que houve pelo
menos um partido que pôs fotografias de bébés sorridentes em outdoors. E, de um
modo geral, em vez de se falar em zigoto, embrião, ou feto, falava-se na “criança ainda
por nascer”. É certo que os defensores da legalização também recorriam, aqui ou ali, a
linguagem envenenada, como por exemplo quando se referiam ao feto como “um
amontoado de células”. Mas o apelo às emoções por parte dos defensores da
legalização não foi, ainda assim, tão descarado como o apelo às emoções por parte dos
opositores da legalização. Suspeito que um número considerável de votantes tenham
sido influenciados por essas imagens e mudado, consequentemente, as suas intenções
de voto. Esta é uma maneira deplorável de conduzir uma campanha. Os outros maus
argumentos a favor e contra a legalização do aborto que tive a oportunidade de
analisar na secção anterior e nesta (e que continuarei a analisar na próxima secção)
são apenas isso: maus. Mas o apelo às emoções não é apenas um mau argumento: é
um argumento perigoso. É a própria história do século XX que no-lo ensina.

3. O argumento social e o argumento do direito à vida

Um dos argumentos mais frequentemente avançados pelos defensores da legalização


é o de que, enquanto o aborto continuar a ser ilegal, as mulheres pobres fá-lo-ão na
mesma, sempre em condições precárias, e às “madames” bastará apenas ir a Espanha
ou apanhar um avião para Londres para se desembaraçarem. Moral da história: os
pobres é que se lixam. Na melhor das hipóteses, os opositores da legalização são
ingénuos; na pior das hipóteses, são hipócritas. Não é difícil ver porque é que este é
um mau argumento. Pense no seguinte: devido à recente mediatização do fenómeno
da pedofilia em Portugal, é de crer que as redes pedófilas em Portugal venham a
reduzir substancialmente as suas actividades, pelo menos nos próximos tempos.
Contudo, quem tenha dinheiro pode facilmente apanhar um avião para países onde a
pedofilia seja quase impune ou pode, até, importar crianças desses países. Moral da
história: quem não tiver dinheiro para ir fazer turismo sexual ao estrangeiro ou para
mandar vir crianças de fora é que fica privado de poder manter relações pedófilas; os
pedófilos pobres é que se lixam. Será este um bom argumento a favor da legalização
da pedofilia? É óbvio que não. O mesmo argumento, quando empregue a favor da
legalização do aborto, só parece mais convincente porque se limita a fugir à questão.
Acho que a maior parte dos opositores da legalização defende apenas a tese
moderada de que o aborto deve apenas ser permitido em caso de violação. Mas há
que olhar com atenção para a argumentação geralmente aduzida. Os opositores da
legalização dizem que o aborto é errado porque o feto tem o direito à vida. Mas o
problema é o de que, se isso é assim, então um feto gerado por violação tem tanto
direito à vida como um feto gerado voluntariamente. O estatuto moral do feto não
varia de acordo com o modo como foi gerado. De modo a completarmos a explicação,
devemos acrescentar qualquer coisa como: é imoral abortar apenas nos casos em que
feto foi gerado voluntariamente, porque só nessa situação é que a mulher terá tido
responsabilidade directa pela gravidez. Mas isso seria como se eu dissesse a uma
pessoa metida em apuros: eu não tenho qualquer responsabilidade pelo facto de teres
acabado nessa situação; logo, não tenho qualquer dever de te ajudar. Isto é
claramente falso. Se nós vamos a passar na estrada e vemos uma pessoa atropelada no
chão, temos o dever de a ir ajudar. Logo, o simples facto de a mulher não ter gerado o
feto voluntariamente em caso de violação não chega para justificar a permissibilidade
moral do aborto em caso de violação. Temos de fornecer mais algum argumento para
explicar porque é que, no caso da mulher ter sido violada, continuar a gravidez é
apenas um dever supererrogatório, um dever cujo cumprimento não nos é
estritamente exigido. A conclusão de tudo isto é a seguinte: Se o feto tem o direito à
vida, então tem-no independentemente de a gravidez ter tido origem num acto
voluntário da mulher ou em violação. Sobre quem acredita que o feto tem o direito à
vida recai o fardo de explicar porque é que é permissível recorrer ao aborto em caso
de violação. As pessoas nem sempre se apercebem disto.

4. O argumento da potencialidade e da cultura de morte

Quando os defensores da legalização pretendem ridicularizar os opositores, aquilo que


fazem é geralmente dizer que, se os opositores da legalização estivessem certos, então
os espermatozoides e os óvulos também teriam o direito à vida, pelo que os homens
não deviam masturbar-se, de modo a não desperdiçar esperma. E nem os homens
nem as mulheres deveriam poder usar métodos contraceptivos, porque isso também
implicaria um desperdício de esperma. Isto não passa de retórica. Esta objecção não
atende ao facto de que, embora tanto o feto como o espermatozoide e o óvulo sejam
potencialmente seres humanos adultos, são-no em sentidos diferentes.
(Aristóteles foi, tanto quanto eu saiba, o primeiro a notar que há várias acepções do
termo “potencialidade”. Embora o argumento que vou apresentar seja inspirado pela
distinção estabelecida por Aristóteles, não a segue à letra. Para os curiosos, a posição
de Aristóteles em relação aos diferentes tipos de potencialidade está em De
anima, 417a-20.)
Podemos dizer que há, basicamente, dois tipos de potencialidade: “potencialidade
no sentido forte” e “potencialidade no sentido fraco”. Tomemos o caso de uma criança
de dez anos que está a aprender a tocar violino. Há um sentido claro em que essa
criança é, potencialmente, um violinista. Tomemos agora o caso de uma criança de dez
anos que tem grande talento musical, embora não esteja a receber aulas de música
nem nunca tenha tocado num violino. Há também um sentido em que podemos dizer
que esta criança é, potencialmente, um violinista. No entanto, a primeira criança não é
potencialmente um violinista no mesmo sentido em que a segunda é potencialmente
um violinista. A primeira criança é potencialmente um violinista no sentido forte; a
segunda criança é potencialmente um violinista no sentido fraco. A mesma coisa se
passa no caso do feto, por um lado, e do espermatozoide e do óvulo, por outro. O feto
é potencialmente um ser humano adulto no sentido forte. Se deixarmos as coisas
decorrer normalmente, daqui a uns meses vamos ter um bebé humano. O
espermatozoide e o óvulo são potencialmente seres humanos adultos no sentido
fraco. Se a segunda criança começar a receber lições de violino, as coisas alteram-se;
do mesmo modo, se um espermatozoide fecundar o óvulo, as coisas também se
alteram. A maior parte das pessoas que são contra o aborto referem-se
(presumivelmente) apenas à potencialidade forte, não à potencialidade fraca. Por isso,
a única coisa que os defensores da legalização poderão fazer é tentar mostrar que é
inconsistente proteger o feto, com base na sua potencialidade forte, e não proteger os
óvulos e os espermatozoides, com base na sua potencialidade fraca. Infelizmente, a
acusação de inconsistência não costuma vir acompanhada de argumentos, pelo que
não passa de retórica vazia. Além do mais, a única maneira de impedir que os
espermatozoides e os óvulos morressem seria congelá-los. Um homem produz
diariamente milhões de espermatozoides. Cada espermatozoide tem uma duração de
vida bastante limitada, mesmo não sendo ejaculado. E os óvulos são expelidos
naturalmente durante o período de menstruação, e não há muito que possamos fazer
para os salvar. É tudo uma questão de tempo.
Um argumento repetido com certa repúdia pelos opositores da legalização é o de
que, se legalizamos o aborto, então qualquer dia ainda andamos por aí a matar
deficientes mentais e idosos com Alzheimmer. Novamente, isto não passa de retórica.
Quem avança este tipo de objecção tem a incumbência de explicar porque é que isso
se segue — mas tal nunca acontece. Por vezes, fala-se vagamente na emergência de
uma “cultura da morte”, mas nunca ninguém explica o que isso seja. Estamos perante
um conjunto de considerações que são demasiado vagas para poderem ser
adequadamente analisadas. É importante frisar que o facto de sermos a favor do
aborto não implica, de modo algum, que sejamos a favor da eutanásia ou da pena de
morte. Imagine que o leitor é a favor do aborto. Poderá, ainda assim, ser contra a
eutanásia porque acredita que não é verdade que as pessoas estejam sempre em
condições de decidir o que é o melhor para elas. E poderá ser contra a pena de morte
porque não acredita em justiça retributiva — acha que o ponto da justiça não é
castigar as pessoas pelos seus crimes, mas sim reeducá-las (quando possível). Há outro
aspecto que vale a pena clarificar. Os defensores das touradas costumam acusar os
defensores dos direitos dos animais de serem inconsistentes, dado que parece que a
maior parte dos defensores dos direitos dos animais são a favor do aborto. Este é um
mau argumento porque pressupõe que matar um feto é a mesma coisa que matar
cruelmente um touro na arena para gáudio dos espectadores. É possível que haja
algum argumento que mostre que é inconsistente ser contra as touradas e ser a favor
da legalização — mas eu nunca ouvi nenhum. À partida, nada impede um defensor dos
direitos dos animais de ser a favor do aborto. Um defensor dos direitos dos animais
poderá até, em princípio, ser contra a realização de abortos em animais, dado que é
impossível perguntar ao animal se quer abortar ou não.

5. Em defesa da permissibilidade do aborto

Como prometido, digo agora qual é a minha posição em relação à legalização do


aborto. Por razões que passarei a explicar, sou a favor.
De um modo geral, podemos dizer que há basicamente dois tipos de argumentos na
bibliografia de bioética que procuram mostrar que o feto tem o direito à vida, pelo que
o aborto é imoral: o argumento da potencialidade, e aquilo a que podemos chamar “o
argumento dos dois minutos”. A parte negativa da minha argumentação será a de
tentar mostrar que ambos os argumentos são maus — é o que farei nesta secção. Na
próxima, direi qual é a altura a partir da qual penso que devemos considerar que o feto
tem o direito à vida e explicarei porque é que acho que todos os outros critérios estão
errados. Essa será a parte positiva da minha argumentação.
Os argumentos que fazem uso da potencialidade geralmente têm a seguinte
estrutura: o feto é, em potência, um ser humano; todos os seres humanos, quer sejam
apenas seres humanos em potência ou não, têm o direito à vida; logo, o feto tem o
direito à vida. Este é um mau argumento porque foge à questão. Aquilo que está em
disputa é a segunda premissa: não é, por isso, permissível incluí-la num argumento. E
é, de qualquer modo, falso que, se um ser tem potencialmente um direito, então tem,
efectivamente, esse direito. Enquanto cidadão português, sou potencialmente
presidente da República; o presidente da República é o Comandante Supremo das
Forças Armadas; no entanto, daí não se segue que eu seja agora o Comandante
Supremo das Forças Armadas. Poderá ser objectado que estou simplesmente a fugir à
questão: a analogia não funciona — o feto tem o direito à vida desde a concepção,
mas eu só adquirirei o estatuto de Comandante Supremo das Forças Armadas caso
venha a ser eleito Presidente da República. O problema com esta objecção é que foge,
ela própria, à questão! Se estivéssemos desde logo a partir do princípio de que o feto
tem o direito à vida desde a concepção, então para que é que precisaríamos de invocar
o estatuto de potencialidade do feto?
Aquele a que podemos chamar “o argumento dos dois minutos” faz o percurso
inverso. Primeiro, nota-se que a criança, quando nasce, tem o direito à vida. Depois,
acrescenta-se que não há grande diferença entre a criança dois minutos antes de
nascer e agora, que acabou de nascer. Isso significa, certamente, que tinha o mesmo
direito à vida dois minutos antes de nascer. E, se a coisa é assim, então certamente
também teria o direito à vida quatro minutos antes de nascer. E por aí fora até ao
momento da concepção. (A concepção não é um processo instantâneo, como alguns
parecem pensar; já expliquei isto na segunda secção, e aprofundarei na próxima
secção.) Este argumento é falacioso. Para ver que é, basta pensar no seguinte
argumento análogo, que é claramente falacioso:
O Jorge não é careca; o Zé tem menos um cabelo na cabeça do que o Jorge; logo, o
Zé também não é careca. O Eduardo tem menos um cabelo na cabeça do que o Zé;
logo, o Eduardo também não é careca. E, como a diferença de um cabelo não parece
ser suficente para delimitar a fronteira entre os carecas e os não carecas, chegamos ao
caso do Manuel, que não tem qualquer cabelo na cabeça. Para sermos consistentes,
devemos dizer que o Manuel também não é careca, o que é claramente falso.
Em ambos os casos, a falácia é a mesma. O facto de haver casos de fronteira não
significa que não haja casos em que seja fácil dar uma solução. O facto de haver
pessoas acerca das quais não saberíamos bem dizer se são ou não carecas não significa
que não haja pessoas que são decididamente carecas ou decididamente não carecas.
Do mesmo modo, do facto de que um recém-nascido tem o direito à vida não se segue
que um feto de dois meses tem o direito à vida.
Na próxima secção passarei em revista os principais critérios propostos na
bibliografia para explicar a partir de que altura é que o feto tem o direito à vida e direi
qual me parece o mais adequado.

6. Direito à vida a partir de quando?

Sobre o defensor da legalização do aborto recai o fardo de explicar em que altura o


feto passa a ter o direito à vida, dado que temos de aceitar que tanto um ser humano
adulto como uma criança recém-nascida têm o direito à vida. Há vários critérios
propostos na bibliografia, sendo que os seguintes são os mais comuns: concepção;
implantação; forma humana; aceleração; actividade cerebral inicial; actividade
organizada do córtex cerebral; viabilidade. Sou a favor do critério da actividade
organizada do córtex cerebral. Vou rapidamente passar em revista todas as posições e
explicar porque é que esta posição parece a correcta. Há ainda outra posição: o
gradualismo. De acordo com o gradualismo, o feto vai progressivamente adquirindo
direitos ao longo do tempo. Tanto quanto pude perceber, o gradualismo não recebe
grande atenção na bibliografia de bioética. Direi por que penso que isto sucede mais
abaixo. Olhemos, então, para os vários critérios que têm sido propostos na bibliografia
de bioética para decidir a partir de que altura é que o feto começa a ter o direito à
vida.

Concepção

Como já tive oportunidade de mencionar, muitas pessoas parecem pensar que há um


momento concreto em que se dá a concepção; mas isto é falso. A fertilização é um
processo gradual que demora cerca de 22 horas. Primeiro, o espermatozoide penetra
no óvulo, deixando a cauda do lado de fora. Nas horas seguintes, o espermatozoide e o
óvulo são, ainda, duas coisas distintas, embora o espermatozoide já esteja dentro do
óvulo. Só ao fim das ditas 22 horas é que já temos um único objecto: o zigoto. Mas
vamos fingir que não há esta dificuldade: vamos fingir que há um momento concreto
em que se dá a concepção. Ainda assim, a concepção não poderia marcar o momento
em que o feto adquire o direito à vida. Presumivelmente, um bebé recém-nascido e
um ser humano adulto têm algo em comum que lhes garante a ambos o direito à vida.
O que é que o zigoto teria em comum com um bebé recém-nascido e com um ser
humano adulto que bastaria para lhe atribuirmos, igualmente, o direito à vida? Não
conheço qualquer resposta convincente. O opositor do aborto que favorece o critério
da concepção geralmente tenta usar o argumento da potencialidade para mostrar que
o zigoto tem o direito à vida. E esse argumento, como já vimos, é muito fraco.

Implantação

A implantação é a altura em que aquilo que virá a ser o feto se “agarra” à parede do
útero. Isto geralmente acontece seis a oito dias após a fertilização. É fácil ver que a
implantação não pode ser o critério correcto. O que é que não existe, no quinto dia,
que passa a existir no sexto? Aparentemente, nada. Ocorrem alterações hormonais no
corpo da mulher, mas não é claro que relevância moral isto possa ter.

Forma humana

O feto começa adquirir forma humana por volta das seis a oito semanas. Até essa
altura, podia parecer apenas “um amontoado de células”, como os defensores da
legalização costumam dizer, agressivamente. Poderá ser o facto de que o feto adquire
forma humana que lhe garante o direito à vida? Não. Se uma avestruz passasse pelas
mãos de um cirurgião talentoso e adquirisse forma humana, acha mesmo que
adquiriria, só por isso, o direito à vida? Não — se já não o tinha antes, não era agora
que ia passar a tê-lo.

Aceleração (“quickening”)

Normalmente, a mãe começa a aperceber-se dos movimentos do feto por volta das
16/17 semanas após a fertilização. Há pessoas que defendem que é aqui que o feto
começa a ter o direito à vida porque é precisamente na altura em que a mãe sente o
feto “a dar pontapés” que se cria uma empatia especial entre ela e o feto. Este
também é um mau argumento. O facto de um ser ter ou não o direito à vida não pode
estar dependente de termos ou não empatia para com ele (ou ela). Se não podemos
dizer que o feto começa a ter o direito à vida quando começa a mexer-se, então
também não podemos dizer que começa a ter o direito à vida quando a mãe se
apercebe, pela primeira vez, desse movimento.

Actividade cerebral inicial

Na maior parte dos casos, o feto começa a revelar indícios de actividade cerebral entre
as 6 e as 10 semanas. É importante especificar o que queremos dizer quando falamos
em actividade cerebral. Entre as 6 e as 10 semanas, o que começa a haver é actividade
eléctrica naquilo que virá a ser o cérebro. Mas isto, por si só, é um dado
desinteressante. Há actividade eléctrica em todas as células do corpo humano. O facto
de haver actividade eléctrica naquilo que virá a ser o cérebro não significa que ali se
esteja a passar algo de moralmente relevante. Não tenho dúvida de que o
desenvolvimento do cérebro está relacionado com a aquisição do direito à vida por
parte do feto — mas o tipo de actividade cerebral registada a partir das 6/10 semanas
não é suficiente para que tal suceda. Nessa altura, a única parte do cérebro que está
mais ou menos desenvolvida é a que se ocupa de funções básicas, como o ritmo
cardíaco e a respiração.

Actividade organizada do córtex cerebral

De acordo com uma estimativa conservadora, o feto começa a ter actividade


organizada do córtex cerebral algures entre as 25 semanas e as 32 semanas. (Uma
estimativa menos conservadora diria que só às 30 semanas essa actividade tem início.)
É a partir desta altura que as ligações sinápticas entre células cerebrais individuais
começam a estabelecer-se — até esta altura, essas células eram pequenas ilhas, por
assim dizer. Começa a ser possível captar as ondas cerebrais do feto através de
eletroencefalogramas. Argumentativamente, é sensivelmente a partir desta altura que
o feto começa a pensar e a ter consciência, algo que tanto um ser humano adulto
como um bebé recém-nascido têm (embora em graus diferentes, obviamente). É por
isso que penso ser nesta altura que o feto adquire o direito à vida. Uma objecção
perspicaz a este critério é a de que adoptá-lo parece implicar que as pessoas em coma
não têm o direito à vida. Uma resposta curta a esta objecção seria a seguinte: Quem
tiver lido a quarta secção lembrar-se-á de que estabeleci uma distinção útil entre
potencialidade no sentido forte, e potencialidade no sentido fraco. Essa mesma
distinção volta a ser pertinente agora. Tanto o feto antes das 25 semanas como o
comatoso são potencialmente seres conscientes. No entanto, são-no em sentidos
diferentes. O comatoso é potencialmente um ser consciente num sentido mais forte
do que aquele em que o feto é potencialmente um ser consciente. O comatoso é como
uma pessoa que sabe francês, embora não esteja a falar francês neste momento, e o
feto é como uma pessoa que ainda não aprendeu a falar francês. Como a situação do
feto antes das 25 semanas e a do comatoso diferem num aspecto relevante (são
ambos potencialmente conscientes, mas em sentidos diferentes), o argumento por
analogia não colhe.

Viabilidade
Diz-se que um feto se torna viável quando pode sobreviver fora da barriga da mãe
(ainda que com recurso a cuidados médicos), o que acontecerá algures entre as 20 e as
23 semanas. Argumenta-se por vezes que a viabilidade do feto marca a altura em que
o feto adquire o direito à vida, dado que a partir desta altura o feto já não necessita da
mãe. Este critério sofre de um problema óbvio: a altura da viabilidade do feto é
determinada pelo estado da tecnologia existente. Isso torna arbitrária a adopção do
critério da viabilidade. No futuro, a viabilidade pode passar a ser mais cedo — mas isso
não significa que o feto adquira o direito à vida mais cedo.

Uma perspectiva diferente: o gradualismo

Há ainda uma última posição que, tanto quanto me pude aperceber, não é muito
discutida na bibliografia de bioética, mas que aparece, de vez em quando, em debates
públicos: o gradualismo. O gradualismo é a posição de que o direito à vida é uma
questão de grau, e que o feto vai progressivamente adquirindo maior direito à vida à
medida que a gravidez avança no tempo. Há um sentido trivial em que concordo com o
gradualismo: a partir da vigésima quinta semana, o feto vai adquirindo
progressivamente maior direito à vida, e, em termos morais, matar um feto com 30
semanas não é, certamente, a mesma coisa que matar um feto com 40 semanas. No
entanto, não é possível usar o gradualismo para argumentar a favor da posição de que
o zigoto tem o direito à vida. Ao usar esta linha de argumentação, uma pessoa estaria
a cair, subtilmente, no erro de usar o chamado “argumento dos dois minutos”, que,
como já vimos, é falacioso.
A minha posição não é facilmente rotulável. Dado que acho que há uma altura a
partir da qual é imoral abortar, não me considero “pró-escolha”. E, dado que acho que
é moralmente permissível abortar até certa altura, também não me considero “pró-
vida”. Se pensarmos que temos de ser ou pró-vida ou pró-escolha, então ficamos
perante um grande dilema. Se somos pró-escolha, ficamos com a dificuldade de
explicar porque é que o infanticídio não é permissível, dado que seria permissível
abortar no nono mês. Se somos pró-vida, ficamos sem nenhuma história para contar
para explicar porque é que o zigoto tem o direito à vida — só podemos bater na mesa
e repetir que o aborto vai contra a dignidade da pessoa humana. Ao apoiar um critério
que me parece convincente, escapo ao dilema.
Dado que há inúmeros critérios possíveis para definir a partir de que altura o feto
tem o direito à vida, os opositores da legalização costumam reclamar que, se nem os
defensores da legalização estão de acordo acerca do critério a usar, segue-se que
devemos ser cautelosos e tratar o feto como se tivesse o direito à vida desde a
concepção. Esta objecção falha o alvo. É verdade, sim, que há desacordo entre os
defensores da legalização acerca de qual o critério a usar. Mas a única coisa que daqui
se segue é que não se pode recorrer a argumentos de autoridade para defender um
dado critério. É uma regra elementar da argumentação que não é permissível usar um
argumento de autoridade para tentar estabelecer uma dada conclusão quando as
autoridades não estão de acordo entre si. No entanto, daqui não se segue, de modo
algum, que um critério particular seja tão bom como qualquer outro. E, de facto,
acabei de falar dos critérios mais debatidos na bibliografia e, como se pôde ver, só um
deles parece defensável. Seja como for, na próxima secção olharei para este
argumento da cautela em maior pormenor e explicarei por que acho que não colhe.
7. Será melhor não legalizar por uma questão de cautela?

Tenho vindo a discutir vários argumentos a favor e contra o aborto. Agora, porém, vou
analisar um argumento especial que os opositores da legalização costumam usar em
desespero de causa. Este argumento não procura estabelecer que o aborto é imoral,
mas apenas que o aborto não deve ser legalizado porque o debate acerca da
moralidade ou imoralidade do aborto é inconclusivo.
A estratégia argumentativa é a seguinte: Se o aborto é moralmente permissível,
então ao tomar a atitude de não legalizar o aborto estaremos apenas a dificultar
desnecessariamente a vida às mulheres que pretendiam abortar (“dificultar a vida” é
um eufemismo, obviamente). Por outro lado, caso o aborto seja imoral, estaremos a
autorizar um assassínio em larga escala. O problema com este argumento é o de que
toma a seguinte forma: “podemos achar que os argumentos contra a permissibilidade
moral da prática X não são convincentes; no entanto, como as consequências morais
de X ser imoral seriam terríveis, mais vale abstermo-nos de realizar X”. Este é um
princípio de decisão a que é comum chamar “princípio de eliminação do risco”. A ideia
é simples: imagine que o leitor tem várias opções disponíveis. Uma delas tem a
possibilidade ínfima de causar um desastre. Por isso, o leitor deve abster-se de
escolher esta opção. Não é difícil perceber porque é que não devemos empregar este
princípio. Imagine que o leitor é presidente de uma empresa que vende champôs ao
domicílio. Um dos seus vendedores vem ter consigo, com ar solene, mas cauteloso, e
diz-lhe que acha que a empresa devia deixar de vender o champô “Charmoso”.
Perplexo com este comentário, dado que o champô Charmoso é, precisamente, o
champô mais popular junto dos consumidores, pergunta-lhe, inquieto, quais as suas
razões. O vendedor diz-lhe que duas pessoas foram atropeladas, no mesmo dia, logo
após usar o dito champô, pelo que a empresa corre o risco de ser processada por
vender um champô que dá azar aos utilizadores.
Como é óbvio, este é um argumento nada convincente. A coisa certa a fazer é, sem
dúvida, continuar a vender o champô Charmoso. É extremamente escassa a
probabilidade de que seja um dia aprovada uma lei (com efeitos retroactivos, ainda
por cima) que permita processar uma empresa por vender produtos azarentos. E a
probabilidade de que o champô Charmoso seja mesmo azarento é mais escassa ainda.
O problema com o princípio de eliminação do risco está agora à vista: o princípio pede-
nos que negligenciemos a qualidade dos argumentos apresentados. Se houver um
argumento qualquer a defender que X é uma consequência possível de fazer Y e que X
é uma coisa terrível, então, por pior que esse argumento seja, o melhor é mesmo não
fazer Y. Este é um princípio que não parece lá grande ideia adoptar. O princípio só
entra em cena se houver um empate entre os argumentos a favor da posição de que X
é uma coisa terrível e os argumentos a favor da posição de que X não é uma coisa
terrível. Quando não se mostrou que há esse empate, é falacioso invocar o princípio de
eliminação do risco.
O leitor poderá achar, contudo, que usei o exemplo de uma decisão comercial, ao
passo que o princípio se aplica, fundamentalmente, a questões éticas. Esta não é uma
crítica justa, dado que a objecção que apresentei contra o argumento é igualmente
pertinente quer tentemos aplicá-lo na vida de uma empresa, quer na nossa vida ética
quotidiana. Um princípio de decisão aplica-se, supostamente, a todas as decisões que
temos de tomar no dia-a-dia, quer estejam relacionadas com a nossa vida moral ou
não. Mas vou, ainda assim, tomar esta preocupação em linha de conta e apresentar
um exemplo de uma questão ética em que o princípio poderia ser empregue.
Imagine, então, que aparecia alguém a dizer que as árvores têm direitos. Nesse
caso, ele poderia apelar ao princípio de eliminação do risco e dizer: “vocês podem
achar que os meus argumentos não são muito convincentes; no entanto, pensem nas
terríveis consequências morais de eu estar certo. Estaríamos a autorizar anualmente o
assassínio de milhões de árvores inocentes pelo mundo inteiro”. Se aceitássemos o
princípio de eliminação do risco, então seríamos forçados a deixar de deitar abaixo
árvores. Mas não há qualquer razão para fazermos isso, dado que os argumentos a
favor da posição de que as árvores tem direitos não são convincentes. As pessoas
podem reclamar que o caso das árvores não é semelhante ao do feto, pelo que a
analogia não funciona. Não é semelhante? Se o leitor pensa isso, é porque está
implicitamente a partir do princípio de que o aborto é imoral. No entanto, como já tive
oportunidade de mostrar, não há um empate entre os argumentos a favor da posição
de que o aborto é uma tragédia moral e os argumentos a favor da posição de que o
aborto não é uma tragédia moral. Pelo contrário — tanto os argumentos
frequentemente usados em debates públicos como os principais argumentos usados
na bibliografia de bioética parecem maus. E, embora alguns argumentos apresentados
a favor da legalização do aborto sejam maus, há outros que parecem decisivos. Os
argumentos não são como maçãs num cabaz: a “podridão” — passe a expressão — de
uns não afecta a qualidade (boa ou má) dos outros. (O facto de muitos dos argumentos
a favor de uma dada posição serem nitidamente maus pode provocar um preconceito
espontâneo contra uma posição, mas essa é outra história.) Concluindo: é falacioso
estar a usar o princípio da eliminação do risco para argumentar que, por uma questão
de precaução, o aborto não deve ser legalizado, dado que não há um empate entre os
argumentos contra e a favor.
A quem queira ter uma posição informada acerca do assunto, aconselho dois livros.
Em primeiro lugar, Ethics in practice: an anthology, organizado por Hugh LaFollette,
tem uma secção acerca do aborto que contém quatro artigos, sendo que dois deles são
já clássicos: “A Defense of Abortion”, de J. J. Thomson, e “An Argument that Abortion
is Wrong”, de Don Marquis. É um escândalo que um livro destes ainda não esteja
publicado em Portugal. (Ambos os artigos, e outros, foram entretanto publicados no
livro A Ética do Aborto, org. de Pedro Galvão (Dinalivro, 2005).) Em segundo lugar, A
Defense of Abortion, de David Boonin, é a defesa mais convincente (e exaustiva) do
aborto que já alguma vez li, e a minha discussão do aborto foi muito influenciada pelo
livro. Como foi publicado recentemente (2003), achei por bem retirar daqui todos os
dados científicos de que necessitei. Alguns dos argumentos que discuti aqui não
aparecem no livro porque são demasiados maus. Achei por bem discuti-los, ainda
assim, porque vêm muito à baila em debates públicos.
Pedro Madeira

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