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Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP

Mariologia – Pe. Pedro I. Leite


Maria nos relatos joaninos – Mariologia aprofundada

Fontes:
KONINGS, Johan. Evangelho segundo João. Amor e fidelidade. Ed. Loyola: São
Paulo-SP, 2005.
MURAD, Afonso. Quem é esta mulher? Maria na Bíblia. Ed. Paulinas: São Paulo-SP,
1996.

1. Introdução

Analisar a questão mariológica no Evangelho de João exige de nós uma leitura


completa ou ao menos básica da teologia joanina. Isso porque o fato mariano não se dá
isoladamente, mas é parte de um conjunto muito bem articulado. Em primeiro lugar, é
importante destacar que o evangelho em questão, especificamente, apresenta uma
grande independência em relação aos sinóticos: tanto no aspecto literário (estrutura
geral e características particulares, como discussões, exorcismos e parábolas), quanto
nos temas e enfoques. Assim, pode-se dividir o Evangelho em três grandes partes (cf.
MURAD, 1996, p. 154): o Prólogo (1,1-18), Livro dos Sinais (1,19 – 12,50) e Livro da
Exaltação (13 – 20). Fala-se de Maria no início do Livro dos Sinais e no cume do Livro
da Exaltação. Em segundo lugar, é mister pontuar que o escrito do presente Evangelho
se centra mais num estilo simbólico do que analítico. Sem desmerecer este outro modo
de escrita, a linguagem simbólica consegue expressar com mais riqueza e profundidade
o mistério transcendente, permitindo que o oculto seja desvelado. O relato de Caná, por
exemplo, ultrapassa a narração de um simples milagre – são verdadeiros sinais (João
fala em 7, simbolizando o número perfeito de iniciativas).

2. A questão mariológica

Algumas questões propedêuticas merecem destaque:

a) no quarto evangelho nunca se chama Maria pelo nome: isso é um contraste com
os sinóticos e Atos (1,14). Há, todavia, uma coerência da parte de João: isso
porque, embora ele se utilize sempre de nomes próprios (veja-se o relato de
outras figuras como Pedro, Filipe...), o discípulo amado e a mãe de Jesus são
apresentados por ele como tipos, modelos, figuras ou símbolos para a
comunidade, diante de Jesus e sua mensagem. O nome concreto, aqui, acaba por
ser relativo. Importa, de maneira absoluta, a atitude frente à mensagem de Jesus.
Murad lembra que por seis vezes Maria é denominada mãe de Jesus (2, 1.3.5.12;
6.41; 18,25) (cf. MURAD, 1996, p. 155). Com isso ela assume uma identidade
(rosto) e uma missão: é a mulher, a mãe de Jesus e do discípulo amado. (Sobre o
tema mulher aprofundaremos adiante!);
b) os protagonistas de Jo 2, 1-11 não são os noivos (quase não se fala deles), mas
Jesus e Maria. Isso não significa que o evento não é histórico, mas o mais
importante aqui é o sinal de Caná. O relato começa dizendo: “no terceiro dia,
houve um casamento em Caná da Galileia” (2,1). Há como que uma semana
inaugural de atividades de Jesus. Konings aponta uma correspondência estrutural
entre a semana inaugural (Jo 1, 19-2,11) e a semana final (cf. 12,1s):

Dias Fatos da semana inaugural


1º dia O testemunho de João Batista (1, 19-28)
2º dia Jesus é proclamado cordeiro de Deus (1, 29-34)
3º dia As testemunhas reconhecem o Messias (1,35-42)
4º dia O encontro com Filipe e Natanael (1, 43-51)
O casamento em Caná (2, 1-12)

Esse relato deve (parece ser assim!) ser lido à luz


6º ou 7º dia (em pt a expressão de Jo 1,51: “vereis o céu aberto e os anjos de Deus
no terceiro dia apresenta certa subindo e descendo sobre o Filho do homem”. João
ambiguidade: pode ser três ou estaria mostrando, aqui, que Jesus é esta escada
dois dias depois. Em gr. bíblico aberta; a nova escada de Jacó... sinais em aberto
quer dizer depis de amanhã que encontram complementação no que se segue, a
saber: I. Caná; II. A purificação do templo (2,12s) =
estes relatos seriam, portanto, uma antecipação do
mistério pascal.

c. o quarto evangelho é lido, outrossim, à luz da experiência da ressurreição: “Não


podemos excluir uma correspondência com o ‘terceiro dia da ressurreição’, ainda mais
por ser o sinal de Caná a manifestação inicial da glória de Jesus (2,11), seguido por um
gsto profético de Jesus anunciando a ressurreição (2,13-21)” (KONINGS, 2005, p. 101).

2.1 – Maria no primeiro sinal

Entre os convidados, por primeiro, menciona-se a mãe de Jesus e, depois, ele


mesmo e seus discípulos. Na lógica do simbolismo de João isso pode indicar a presença
da mãe no início da obra de seu Filho. A festa de casamento representa a festa humana
por excelência. É uma representação do amor e da aliança de Deus para com seu povo.
a) eles não têm mais vinho. Quem? Os judeus? Pode ser um estilo joanino: as
pessoas apresentam suas necessidades, Jesus as compreende e as acolhe (como
no caso do paralítico em Jo 5,7).
b) primeira reação de Jesus: “(Τί ἐμοὶ καὶ σοί γύναι - Tí emoì kaì soí gynaí)
Mulher, que desejas de mim? Que há entre ti e mim?... a minha hora ainda não
chegou”. Murad e Konings aqui entram em desacordo (cf. MURAD, p. 166;
KONINGS, p. 101): para aquele se trata do estilo joanino. É preciso um
distanciamento entre Jesus e o interlocutor, assim como houve com Nicodemos
(Jo 3, 1-6) e noutros relatos, para haver um progresso na narração. Konings, ao
contrário, diz que não há um rechaço em si, mas uma sugestão da parte de Jesus
de que, o que vai acontecer naquela hora, não é sua obra propriamente, mas tão
somente um sinal, afinal não é chegada sua hora.
c) Sobre o termo mulher (γύναι): três questões fundamentais – 1. Pode haver um
resgate simbólico da figura de Eva em Gn 3, provocando um desenlace melhor
(Eva-Maria); 2. João considera Maria como uma representante da comunidade
de Israel e aí se desenvolve a teologia da Filha de Sião, a Virgem de Israel (veja-
se, sobretudo, Zc 9,9); 3. O vocativo mulher traduz o reconhecimento do valor
evangelizador das mulheres na comunidade do discípulo amado. Há uma
constante muito significativa: as mulheres anunciam quem é Jesus!

Maria (2,4) Prepara a primeira manifestação de Jesus aos seus


discípulos (2,4)
Maria - Mulher Exaltação da de Jesus e consumação de sua obra
(19,26)
A samaritana em Jo 4,21 Anuncia o Senhor aos samaritanos (Jo 4, 28.41s)
Maria, irmã de Lázaro Confissão de fé, comparável às de Pedro: tu és o
Cristo, o Filho de Deus (Jo 11,27)
Maria Madalena – Mulher (Jo A primeira a testemunhar e proclamar a
20,15) ressurreição (Jo 20,17s)
d) Maria intervém (v.5): o famoso pedido de Maria pode ser lido à luz de três
interpretações: 1. Maria se destaca como a fiel intercessora; 2. Como a discípula
exeplar; e 3. Tais palavras evocam uma mediação similar à fórmula da Aliança
no Sinai. Veja-se, de maneira objetiva, a relação entre Moisés e Maria: “Da
mesma forma como Moisés estava entre o Senhor e a assembleias de seus
irmãos (Dt 5,5), em Caná, maria se coloca entre Jesus e os servos,
desempenhando papel de mediadora” (MURAD, 1996, p. 170).
 Da água para o vinho (6-10): significado numérico para seis (6) =
imperfeição. Simbologia de que em Cristo está raiando o tempo messiânico.
Chamamos atenção para o significado do vinho na Sagrada Escritura,
sobretudo no Antigo Testamento. Outro detalhe importante: o vinho em
questão é qualificado como bom (kalós). Aqui pode haver uma indicação de
excelência, tal qual ao se referir ao Bom (kalós) Pastor (cf. Jo 10,10.14.32s);
e) Resultado final do presente sinal (v.11): Caná constitui um sinal de qualidade
diferente dos outros seis sinais. Com ele há a irrupção do novo tempo que é
iniciado exatamente por Jesus que, de maneira gradativa, descortina o véu da
transcendência aos seus discípulos. Por fim, como o próprio relato destaca:
manifestou a sua glória e os discípulos creram nele (v.11).

2.2 – Maria ao pé da Cruz (Jo 19, 25-27)

Algumas questões introdutórias são indispensáveis. Por primeiro convém


destacar que há uma profunda diferença da cena do calvário entre os Evangelhos
sinóticos e o da tradição joanina. Enquanto aqueles apresentam uma distância
geográfica dos discípulos em relação à cruz (símbolo de abandono?), João mostra
algumas mulheres e o discípulo amado aos pés da cruz. O discípulo amado aqui é, vale
ressaltar, um protótipo/arquétipo para comunidade dos seguidores de Jesus.
Outro fator é a ligação estreita entre Caná e a cruz. Maria está, digamo-lo
novamente, no início da vida pública de Jesus (Caná) e na plenificação de sua missão
(cruz). Isso não se trata de uma inclusão acidental, mas uma inclusão bastante objetiva
do ponto de vista simbólico (cf. MURAD, 1996, p. 180). Olhemos para o relato em si:
a) Dois grupos em oposição: João opõe aos soldados um outro grupo que se
encontra ao pé da cruz, o grupo das mulheres. Konings diz que Jesus, naquela
hora radical, enxerga as duas pessoas que na vida lhe foram mais próximas. E
acrescenta: “o sentido do gesto depende do sentido que se dá a ‘eis’ (ἴδε / ide):
simplesmente indicativo (‘este/esta é...’) ou indutivo (‘recebe’)” (KONINGS, p.
340).
b) Maria-Discípulo amado = relação eclesiológica: o lugar de Jesus agora é
ocupado pelo discípulo amado e pela comunidade por ele representada. “O
discípulo está junto à mãe; e esta encontra seu filho na comunidade”
(KONINGS, p. 340); Murad vai mais além e encontra uma relação entre Jo
19,26 e Jo 1, 29.26. Vejamos:

Passagem bíblica Acontecimento


Jo 1, 29 No dia seguinte, ele [João Batista] vê Jesus aproximar-se e diz:
“Eis o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”
Jo 1,36 Ao ver Jesus que passava, disse: “Eis o cordeiro de Deus”

Jo 19,26 Jesus, então, vendo sua mãe e, perto dela, o discípulo a quem
amava, disse à sua mãe: “Mulher, eis o teu filho! ”. Depois disse
ao discípulo: “Eis a tua mãe!”.

 Nos primeiros casos, João Batista é quem toma a iniciativa de apresentar


Jesus; adiante, no caso em estudo, é Jesus quem apresenta, na dupla figura da
mãe e do discípulo amado, a comunidade cristã. Entrementes, Murad chega à
mesma conclusão: “O ‘discípulo amado’ personifica o cristão por excelência.
Ora, tanto a mãe como o discípulo são representantes da Igreja” (MURAD,
1996, p. 186).
c) O discípulo acolhe (ἔλαβεν - elaben) Maria. O verbo utilizado nesse versículo
final é lambanô que não é tomar ou receber, mas, de fato, acolher no sentido
mais afetivo possível: “A partir daquela hora o discípulo a acolheu em sua
familiaridade - εἰς τὰ ἴδια (eis tá ídia)”. εἰς τὰ ἴδια é mais do que acolher em
casa, é acolher na intimidade.

Em síntese podemos dizer que Maria, no quarto Evangelho, é vista como a


mulher, a membro constitutivo da Igreja e a mãe da comunidade. Ela está no início da
comunidade que é formada à luz dos sinais para a contemplação da hora máxima de
Jesus que é, ao mesmo tempo, plenificação e inauguração de um novo tempo: o tempo
da ressurreição, o tempo da adesão livre ao ressuscitado. Tudo o que é feito, é-o para
que a comunidade acredite mais perfeitamente em Jesus, o vinho novo da vida.
Se ele nos dá o vinho das núpcias eternas (Jo 2), não insistamos em lhe dar o
vinagre da iniquidade (Jo 19).

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