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TEXTOS

A escuta
psicanalítica
Silvia Leonor Alonso

No alicerce de toda palavra, é a pulsão que insiste.


Seguindo de perto as repetições, pode-se rastrear as
pegadas das identificações.

A
escuta adquire um lugar central na psicanálise O espaço e a figura; a figura olhada sobre um
por ser esta uma coisa de palavras, ditas ou espaço
silenciadas. Palavras que enganam, mas que
abrem um acesso à significação. No entanto, O império da objetividade positivista que recolhe e
a psicanálise, ao inaugurar o campo da escuta, produz anota todos os dados que aparecem perante o olhar. E
uma verdadeira ruptura epistemológica concernente ao o que melhor que a histeria para ser olhada, já que esta
pensamento psiquiátrico do momento. Citando Saurí em se mostra com toda espetacularidade?
seu texto compilatório sobre histeria: “A trama das cren- Mas, próximo à década de noventa, chegando ao
ças no naturalismo, contexto no qual a histeria começa a fim do século, no interior da Escola de Nacy, o relato
ser estudada cientificamente, privilegia o modo visual de começa a ocupar um lugar. A narrativa de um sujeito,
conhecer. A metáfora da luz domina sua área expressiva após ser hipnotizado, começa a interessar. Com isso, a
e inquisitiva, enquanto a necessidade de ver e iluminar categoria da recordação se torna presente.
guia o esforço dos cientistas. O visto, e com maior razão Citando mais uma vez Saurí: “escutar refere imedia-
o olhado, goza de uma prerrogativa relevante. Não é pois tamente a fala e sua raiz latina vincula ‘o escutado’ ao ato
temerário afirmar que durante a vigência do naturalis- de ouvir e de ‘montar guarda’; situação em que o escuta,
mo predomina epistemologicamente o campo visual e
que a intenção explícita ou tácita de seus seguidores é Silvia Leonor Alonso é psicanalista, membro do Departamento de Psica-
nálise do Instituto Sedes Sapientiae.
conhecer olhando. Neste contexto, o privilegiado são as
características visíveis daquilo a conhecer, pelo quê os Comunicação apresentada no painel sobre “A escuta psicanalítica”,
traços ostensivos passam a primeiro plano”1. promovido pela Livraria Pulsional, em abril de 1988.

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olhar – reduzido ao dado, mas, ao desfraldar da palavra. No seio da as-
contrário, é no mais lacunar do sociação livre vai-se produzindo um

A
discurso que um fio de significação descolamento da imagem, do fato
vai se tecendo. Mas também porque como fixo, e este vai-se incluindo
o introduzir aparecerá a recordação e, com em múltiplas imagens caleidoscó-
isso, a história solicita ser levada picas cujas combinações possíveis
o conceito em conta. se multiplicam e onde o ritmo, a
de inconsciente, cadência, a intensidade maior de
alguns fonemas, a excitação explí-
Freud coloca a fala O que escuta o analista? cita no gaguejar de uma palavra, o
sentido duvidoso de uma frase mal
em outro lugar. Não pensamos a linguagem construída, tudo isso vai dando to-
como um instrumento de comu- nalidades diferentes a essas figuras
Alguém que fala nicação. Também o é. Alguém se que não passam desapercebidas à
diz mais do que propõe a comunicar algo e para escuta sutil da atenção flutuante.
isso se vale da linguagem. Porém, Ao mesmo tempo, ao ser escutado
aquilo a que se até aqui, a descoberta freudiana não pelo analista, o próprio sujeito que
está presente. fala se escuta.
propunha. Ao introduzir o conceito de in- Como vemos, a imagem retor-
consciente, Freud coloca a fala em na. Porém não é a imagem dada
Neste falar, outro lugar, alguém que fala e ao na figura do corpo histérico. É a
em certos momentos, fazê-lo diz mais do que aquilo que se imagem que surge da descons-
propunha. Neste falar, em certos mo- trução do discurso e que adquire
a lógica consciente mentos, a lógica consciente se rom- sua maior nitidez no momento da
pe, se desvanece, e algo diferente se interpretação.
se rompe. torna presente, manifestando uma No alicerce de toda palavra, é a
outra lógica. A lógica do processo pulsão que insiste. Aquela que não
primário, presente no lapso, no so- fala, mas que é evocada pela pala-
cumprindo ofício de sentinela, vigia nho, no chiste, no esquecimento, na vra e que, levada pela compulsão
os sons provenientes de um campo frase contraditória, no duplo sentido à repetição, procura satisfazer-se.
diferente do seu próprio”2. de uma frase que Freud manda Dora É seguindo de perto as repetições
“O escuta” escuta os ruídos que escutar quando lhe diz: “Memorize que acompanhamos as vicissitudes
vêm de fora e também o silêncio que você bem suas próprias palavras. da pulsão e rastreamos as pegadas
se incorpora ao campo da positivida- Talvez tenhamos que voltar a elas. das identificações.
de. Se o silêncio não diz diretamente Você falou, textualmente, que duran- Diria então que, do lugar do
nada, algo nele se insinua, e quem te a noite algo pode acontecer que analista, se escuta tudo, para poder
escuta atentamente recebe as pega- obrigue alguém a sair do quarto”3. escutar alguma coisa. Coisa essa
das, as marcas que adquirem forma Quando Freud estuda o sen- que é o inconsciente, que no seio da
no momento em que germinam as tido dos sonhos, a psicopatologia repetição insiste para ser escutado,
palavras, ainda que estas, também da vida cotidiana, inclui no espa- que na trama dos movimentos ima-
enganadoras, portem em si o silen- ço do sentido aquilo que até este ginários se disfarça, se fantasia e, no
ciado. É desde então que o exercício momento era considerado um sem entanto, vai tecendo o fantasma.
da suspeita se torna presente porque sentido, mostrando assim a positi-
há um a mais do que o dito para ser vidade do esquecimento, da falta,
escutado. do equívoco. De que lugar o analista escuta?
A hipnose vai sendo substituída Quando fala de Catarina, diz
pela livre associação. A figura vai que a linguagem é demasiadamente Quem se dispõe a escutar se
dando lugar à narrativa. Freud pede pobre para dar expressão às suas depara com o inesperado e é isto
às histéricas que se deitem, fechem sensações e aponta com isto a am- o que acontece quando, no seio
os olhos e, com isso, às vezes auxi- pliação do campo do discurso como do processo de “relatar”, o amor
liada pela pressão frontal, as recor- o caminho do analítico. irrompe e tal irrupção surpreende.
dações surgem. Na instauração da situação ana- Surpreende a Breuer, que assustado
Em todas as direções o campo lítica, ao propor a regra fundamental cai fora da cena. Também a Freud,
se estende. Isto não só porque não – a livre associação e o seu reverso, que decide enfrentar os demônios,
permanece – tal como o campo do a atenção flutuante – se produz um além de surpreender a cada analista

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quando este se deixa surpreender e No entanto, isso só é possível te e que toca os pontos cegos do
não faz da constante tradução (in- através de uma renúncia narcísica analista, expressando-se neste como
terpretação analógica) uma tentativa do analista, que lhe permite: não transferência recíproca. É devido a
de enjaular a fera. O próprio Freud ocupar o lugar de amo do desejo isto que se deduz a necessidade da
diz que é na forma surpreendente convertendo a análise em suges- análise pessoal do analista.
com a qual irrompe que está a tão; não se oferecer como ideal a Ainda que a análise pessoal seja
força probatória do fenômeno da ser imitado convertendo a análise condição primordial para tornar-se
transferência. em pedagogia; ou acreditar em analista, tal fato não garante uma es-
O conceito de inconsciente uma neutralidade absoluta, desco- cuta. Cada novo processo de cura o
não necessariamente quebra a idéia nhecendo os obstáculos da escuta confronta com a necessidade de per-
de exterioridade presente no olhar que, rapidamente, se encarrega de correr as cadeias associativas apro-
psiquiátrico. Se o inconsciente é ximando-se de seu próprio desejo.
entendido como algo que está no Reencontra assim a possibilidade de
sujeito, a nível de depósito ou de ocupar o lugar daquele que põe em
panela de instintos, alguém de fora andamento o processo de desvela-
poderia observar isso que se encon-
tra no sujeito, e a sessão analítica
poderia converter-se em um espaço
E ntendo
mento do desejo do analisando. Este
considera o analista como aquele
a quem dirige o sintoma (neurose
experimental onde alguém observa que o sentido de transferência), mas que, perante
o que acontece com o outro e lhe a não resposta, resignifica, a cada
comunica. É a noção de transfe- não é algo já dado e momento, sua demanda, até a fina-
rência que vem romper com esta lização da análise.
possibilidade de objetivação. que precisa Algum tempo atrás, um ana-
Sendo o campo da transferência ser descoberto, lisando, no seu fim de análise,
algo que inclui ao mesmo tempo refletia: “Há alguns anos, quando
analisando e analista, tal montagem mas sim cheguei aqui, sabia que sofria, po-
não permite mais objetividade. rém, só agora sei por que vim. Deve
É evidente que, ainda que os algo que se tece ser o único investimento em que
dois estejam incluídos no mesmo só se sabe por que se veio quando
campo, isso não implica em uma na rede se vai”.
simetria ou em uma igualdade de de significantes Bela reflexão sobre a questão
funções. do tempo em análise, que é o tempo
O analisando se dirige ao ana- e no tempo da resignificação. Como acreditar
lista como sendo o único destinatá- que, na primeira frase de uma ses-
rio de sua palavra, o que não é mais da ressignificação. são, está dito tudo que será poste-
que a tentativa que o analisando faz riormente explicitado? Entendo que
de articular seu desejo a uma pre- o sentido não é algo já dado e que
sença concreta. De atribuir ao desejo precisa ser descoberto, mas sim algo
um objeto para não reconhecer que que se tece na rede de significantes
o desejo, em sua impossibilidade de e no tempo da ressignificação.
satisfazer-se, implica em uma falta, atribuir ao analisando como se fos- Penso que reconhecer que
em uma ausência. sem resistências suas convertendo a possibilidade de escuta está no
O analista mantém a transferên- a análise em uma grande batalha próprio desejo do analista, recupe-
cia, mas não se confunde com ela, contra estas. rado a cada momento pelo trânsito
e, mediante a não resposta, remete Conrad Stein em “L’enfant ima- das associações que lhe permitem
o sujeito aos fundamentos infantis ginaire” diz: “As sessões do paciente reconhecer seu desejo pessoal em
do amor. têm mais possibilidades de conver- jogo para poder a ele renunciar,
A abstinência do analista per- terem-se na sua psicanálise, se são levando-o a não ter a necessidade
mite, no dizer de Freud, subsistir no para o seu analista, o lugar privile- de querer assegurar seu lugar – nem
analisando a necessidade e o desejo giado de continuação da sua5. pela rigidez do setting, nem pela
como forças que impulsionam o tra- Quando Freud trata da trans- rigidez do gesto.
balho analítico e que, ao evitar querer ferência recíproca em “O futuro da Freud dizia em uma carta a
apaziguar as exigências de tais forças terapia psicanalítica”, a coloca como Biswanger: “O que se dá ao paciente
com substitutos, remete o sujeito a um sintoma do analista, algo que é não deve ser jamais afeto imediato,
suas origens inconscientes4. despertado pelo discurso do pacien- mas afeto conscientemente outor-

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gado segundo as necessidades do Acontece que tudo isso se com- de conceitos para esclarecer cada
momento... Dar pouco a alguém plica porque o analista também tem vez mais suas proximidades, suas
porque o amamos muito é uma seu fantasma, sua teoria, sua história, diferenças, suas semelhanças e
injustiça contra o paciente e uma assim como a história e o presente oposições.
falta técnica”6. do movimento psicanalítico. Tudo Isso não é o que acontece
isto pode oferecer possibilidades quando as adesões dogmáticas
ao analista com relação à sua escuta convertem os discursos teóricos em
Os limites da escuta mas também pode limitá-la. espécie de senha com a qual cada
Seu fantasma se torna limite analista garante seu reconhecimento
Afirmei no começo que a aber- para a escuta nos pontos cegos. pelo grupo, em troca de esvaziar sua
tura do campo da escuta traz à cena A teoria passa a ser limitadora da palavra e alienar-se nos processos
a história. De que história se trata? escuta quando entra na sessão para especulares de reconhecimento
Óbvio que não a história factual, ser aplicada ou confirmada, obsta- mútuo.
Há um limite insuperável para a
análise: o limite da morte. Aqui cito
Godino num artigo sobre a prática:

A teoria,
“A morte é o momento em que cessa
a eficácia do presente enquanto cau-
sal, onde tudo é puro passado, puro
trauma e puro acontecimento factual,
o fantasma,
brutal, catastrófico e insolúvel. Para
a história do analista, os vivos, pelo contrário, o fato se re-
solve em uma estrutura cuja história
assim como a história é a própria realidade dos vivos em
sua inscrição presente”8.
e o presente do movimento Pergunto-me: como historici-
psicanalítico, podem oferecer zar as teorias e os acontecimentos
(pertinências institucionais) para
possibilidades que nos sirvam no processo cons-
tante de ressignificação da clínica
em relação à escuta, sem deixar que nos convertamos
em mortos-vivos dos estereótipos e
mas também podem dogmatismo?
limitá-la.

mas a história da constituição do culizando com isso as possibilidades


fantasma. Fantasma este que vai do analisando de construir a única
surgindo na análise como efeito de teoria válida para si próprio, que
deciframento a partir do sintoma. é a teoria que constrói sobre sua
No entanto, não se pode dizer que história. Notas
a causa do sintoma esteja no pas- A presença de vários corpos
1. Jorge Saurí (compilador), Las histerias, Edicio-
sado. “A causa do sintoma está no teóricos-clínicos, no movimento nes Nueva Visión, p. 67.
presente, na inscrição presente do psicanalítico atual, também pode 2. Jorge Saurí, op. cit., p. 197
3. S. Freud, “Análisis fragmentário de una histeria”,
vivido e que na análise atua como produzir uma ampliação no campo in Obras completas, Biblioteca Nueva, Tomo I,
transferência”7. da escuta, não pelo ecletismo que p. 958.
4. S. Freud, “Observaciones sobre el amor de
Mas, a construção do fantasma é confusionante, mas através de um transferência”, in Obras completas, Biblioteca
não é senão uma teoria que, tal trabalho sério de situar as teorias no Nueva, Tomo II, 1914, p. 1692.
5. C. Stein, “L’enfant imaginaire”, Denoel, 1971, p.
como um mito, tende a responder momento histórico em que surgem 364.
aos enigmas que o sujeito se colo- e as questões que se propõem res- 6. L. Biswanger, Discours, Parscours, de Freud,
p. 317. Carta de Freud de 20 de fevereiro de
ca. É isto, pelo menos, que Freud ponder (nenhum corpo teórico res- 1913.
mostra no caso do Pequeno Hans ponde a todas as questões colocadas 7. Antonio Godino Cabas, “Sobre la prática”, artigo
publicado na Revista de Psicología Argentina
ou no artigo sobre as teorias sexuais pela complexidade da clínica), bem nº`24, ano IX , p. 29.
infantis. como pelo trabalho de cruzamento 8. Antonio Godino Cabas, op. cit., p. 29.

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