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Introdução à semântica

BRINCANDO COM A GRAMÁTICA


Rodolfo Ilari

Introdução à semântica
BRINCANDO COM A GRAMÁTICA
Copyright  2001 Rodolfo Ilari

Preparação de originais
Camila Kintzel
Diagramação
Estúdio Graal
Revisão
Sandra Regina de Souza
Projeto de capa
Antonio Kehl

Ilari, Rodolfo.
Introdução à semântica – brincando com a gramática / Rodolfo Ilari. – São Paulo:
Contexto, 2001.

Bibliografia.
ISBN 85-7244-164-6

1. Lingüística. 2. Português – Estudo e ensino. 3. Português – Gramática


4. Português – Semântica. I. Título.

01-0818 CDD-469.2

Índices para catálogo sistemático:


1. Semântica: Português: Lingüística 469.2

Proibida a reprodução total ou parcial.


Os infratores serão processados na forma da lei.

2001

Todos os direitos desta edição reservados à


EDITORA CONTEXTO (Editora Pinsky Ltda.).
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34 Introdução à semântica – brincando com a gramática

Comentários sobre um conteúdo


(Dictum ✕ modus)

Objetivo

Reconhecer e aplicar alguns dos recursos que a língua coloca à disposição


dos falantes, para tomar posição em relação a algum conteúdo proposicional.

Caracterização geral

A linguagem corrente coloca à disposição do falante uma série de recursos


destinados a precisar os limites dentro dos quais se compromete com uma deter-
minada afirmação. O uso desses recursos representa sempre uma intervenção do
falante a propósito do conteúdo de sua mensagem. Os lingüistas reúnem às vezes
esses recursos de intervenção sob a denominação genérica de modus, e falam de
“modalizações de uma afirmação”.

Material lingüístico

As maneiras de modalizar uma afirmação são numerosas:


✓ uso de advérbios que indicam graus diferentes de certeza: indubitavelmente,
possivelmente, talvez...;
✓ uso de verbos regentes como parece, consta, que transferem a responsabi-
lidade pela afirmação à sabedoria geral, descarregando a responsabilidade do fa-
lante;
✓ uso de verbos regentes como acho que..., acredito que..., tenho certeza de
que..., estou convencido de que... expressando uma opinião ou um conhecimento
seguro, uma certeza;
✓ uso de advérbios e outras expressões que circunscrevem a validade da
afirmação a um determinado domínio: tecnicamente, do ponto da astronomia mo-
derna, popularmente...
✓ uso de fórmulas que advertem para a inexatidão da maneira como o con-
teúdo será formulado: de certo modo, por assim dizer, grosso modo.
Comentários sobre um conteúdo 35

✓ uso dos tempos e modos verbais que graduam o compromisso assumido


pelo falante: quando um jornalista diz que determinada personalidade estaria en-
volvida com o crime organizado, ele fala como quem ouviu falar do envolvimento
dessa personalidade, mas não tem provas seguras desse envolvimento etc.
✓ uso de advérbios que qualificam a fala (não o conteúdo da fala): franca-
mente, para falar a verdade, se você quer mesmo saber...
✓ outros (aspas, ...)

Atividade

Um meio de dar credibilidade a uma afirmação consiste em apoiá-la num “argu-


mento de autoridade”, isto é, em apresentá-la como uma conclusão alcançada
por indivíduos ou grupos de pessoas de reconhecida competência no assunto
(cientistas, técnicos, usuários experimentados e exigentes etc.). Localize cin-
co propagandas que recorram a argumentos de autoridade. A partir dessas
propagandas, procure determinar quem são as “autoridades” em que nossa so-
ciedade confia.

Exercícios

1. Explique o que aconteceria com o sentido dessas sentenças, se retirássemos


delas as palavras grifadas:

a) Dizem que solucionar o problemas das enchentes é fácil: é fácil em termos.


b) Profissionalmente, minha mudança para a capital foi muito vantajosa; do
ponto de vista da saúde, foi um fracasso.
c) Perante a opinião pública, a capoeira é fundamentalmente uma luta.
d) As fazendas da Província de São Paulo eram essencialmente plantações de
café.
e) Eu até gosto da Luana Piovani.
f) Ele fez uma coisa que foi, de certa forma, uma maldade.
g) No entendimento do povo, roubo e furto são a mesma coisa; para os advoga-
dos trata-se de dois crimes de gravidade diferente
h) O carioca é tipicamente um festeiro.
i) Moralmente falando, ele está coberto de razão, mas pensando em termos
políticos, jamais poderia ter feito o que fez.
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2. Diga qual das duas afirmações é verdadeira:


a) Cientificamente, a baleia é um mamífero; popularmente, é um peixe;
b) Popularmente a baleia é um mamífero; cientificamente é um peixe;
c) Juridicamente, uma gravação não autorizada não vale como prova; moral-
mente sim;
d) Moralmente, uma gravação não autorizada não vale como prova; juridica-
mente, vale;
e) Teologicamente, os diabos são anjos; na devoção popular, não;
f) Na devoção popular, os diabos são anjos; teologicamente, não são;
g) Lingüisticamente, a Romênia pertence ao mundo romano; etnicamente, não;
h) Etnicamente, a Romênia pertence ao mundo romano; lingüisticamente, a
Romênia não pertence ao mundo romano;
i) Legalmente, a tortura foi banida pela última constituição; na prática, a tortu-
ra não desapareceu com a última constituição;
j) Na prática, a tortura desapareceu com a última constituição; legalmente, a
tortura não foi banida pela última constituição.
l) Oficialmente, a capital da Holanda é Haia; culturalmente é Amsterdam.
m)Culturalmente, a capital da Holanda e Haia; oficialmente, é Amsterdam.

3. Suponha que alguém foi arrolado como testemunha do atropelamento de uma


criança e está informando a polícia a respeito do ocorrido. Qual ou quais dessas
afirmativas comprometem mais a personagem identificada como “este moço”?
(Ou, se você prefere, quais constituem verdadeiramente uma acusação?)

a) Este moço estava dirigindo o carro que atropelou a criança.


b) Acho que este moço estava dirigindo o carro que atropelou a criança.
c) Pode ser que este moço estivesse dirigindo o carro que atropelou a criança.
d) E se esse moço, por acaso, estava dirigindo o carro que atropelou a criança?
e) Vamos que este moço estivesse dirigindo o carro que atropelou a criança...
f) Positivamente, este moço estava dirigindo o carro que atropelou a criança.
g) Ouvi dizer que este moço estava dirigindo o carro que atropelou a criança.
h) Parece que este moço estava dirigindo o carro que atropelou a criança.
i) Não tem erro: quem estava na direção do carro era este moço.

4. Há um velho ditado segundo o qual o diplomata que diz talvez quer dizer não,
e a mulher diz talvez quando quer dizer sim. Tente construir dois diálogos em que
seja possível exemplificar os dois usos diferentes de talvez.
Comentários sobre um conteúdo 37

5. As formas que as pessoas do povo usam para indicar que uma afirmação merece
sua adesão são numerosas e às vezes bastante engraçadas:
a) É batata.
b) É isso (d)aí.
c) Falou e disse!
d) Matou (a charada)!
e) Pode escrever.
f) Estou contigo e não abro.
g) Assino embaixo.
h) Você tirou as palavras da minha boca.
i) Só contaram para você!
j) Não dá outra!

Provavelmente, você já ouviu uma dessas fórmulas, ao final de uma tentativa de


descrever uma situação mais ou menos complicada. Conte o episódio que se
encerrou com a fórmula em questão.

6. No caderno “Mais!” do jornal Folha de S. Paulo de 14 de maio de 2000, o


cirurgião plástico Oswaldo Pigossi Jr. respondeu como segue à pergunta:
“Quem dita hoje o padrão de beleza?”

Infelizmente, hoje o padrão de beleza é estabelecido pelas artistas


da televisão, mas sem nenhum bom-senso. Assim, apesar de o resulta-
do estético da “Feiticeira”, pelos padrões médicos, não ser o ideal, é
exatamente esse que a maioria das mulheres cita como exemplo e tam-
bém busca como seu próprio padrão, sem lembrar que cada um tem
sua própria característica de distribuição de tecidos e volumes pelo
corpo. Desse modo, uma prótese mamária de cerca de 250 ml em uma
pessoa com 1,50 m nem sempre pode dar um resultado bonito; mas a
fulana da televisão, que foi ao programa do Gugu, tem, e então é essa
que ela vai querer. Ainda por cima, temos uma crescente
comercialização da atividade médica ligada à área de estética, que fa-
cilita muito a ocorrência desses problemas.

A resposta começa o advérbio “infelizmente”, e prossegue com uma série de


comentários sobre o padrão de beleza vigente. Mostre que os comentários são
coerentes com a avaliação dos fatos expressa pelo advérbio “infelizmente”.

7. A seção “São Paulo Reclama” do jornal O Estado de S. Paulo trazia, numa de


suas edições de março de 2000, estas duas cartas:
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Sabesp responde O leitor comenta

A respeito de reclamação do sr. Roberto Continuo aguardando a visita de um


de Barros Brisolla (carta nº 11.374, Nos- enge-nheiro hidráulico da Sabesp para
sa incrível Sabesp de 7/2), sobre pedi- solução definitiva. Cinicamente, a
do de desobstrução da rede de esgotos Sabesp diz que o “encarregado conver-
localizada na Rua Dr. Jesuíno Maciel, sou com o cliente, que considerou a
1677, esclarecemos que estivemos no questão resolvida”. Não é verdade, o
local no dia 8/2 e fizemos a limpeza da encarregado disse (o que eu já sabia)
rede coletora. O encarregado dos servi- que sempre que chover forte terei esse
ços conversou com o cliente, que con- problema, pois a rede não comporta o
siderou a questão resolvida. Esclarece- esgoto da rua e não tem caída (e a cul-
mos que a má utilização da rede de es- pa é minha?). Aliás, com as recentes
gotos é a principal causa de obstruções chuvas, o esgoto jorrou da minha cai-
e danos à tubulação. Por isso, não de- xa de inspeção feito chafariz. Que a
vem ser jogados no vaso sanitário e na Sabesp saiba que os ralos de fora da
pia da cozinha absorventes higiênicos, minha casa não estão ligados à rede de
fraldas, pontas de cigarro, pó de café, esgoto, mas à rede de águas pluviais.
restos de comida, cascas de fruta, óleo A Sabesp ignorou minhas perguntas e,
ou outros detritos. É importante escla- ao que parece, mandou resposta-pa-
recer que os ralos do lado de fora da casa drão, alterando apenas nome, endere-
não podem ser ligados à rede de esgoto. ço e data. Roberto Barros Brisolla –
Se isso acontecer, corre-se o risco de que Campo Belo.
o esgoto volte, pelos ralos e pias, para
dentro das casas. Pedro Luís Ibrahin
Hallack, superintendente da Unida-
de de Negócios do Sul.

Cada uma das expressões grifadas introduz um elemento de modalização a res-


peito de um certo conteúdo. Verifique, para cada caso, que conteúdo foi
modalizado, e mostre que as modalizaçõs usadas pelo usuário foram utilizadas
para dar a entender que a carta da Sabesp não foi ... esclarecedora.

8. Vários estudos têm mostrado que a primeira parte de um enunciado costuma ser
dedicada a expressões que não formulam um conteúdo, mas tem um importante
papel de orientação sobre o “modo de processar” o que segue. Entre as expressões
que podemos encontrar no início de um enunciado estão as seguintes:

Mudando de pato para ganso,...


E por falar em...,
Comentários sobre um conteúdo 39

Cá entre nós,...
Francamente,...
Com perdão da palavra,...
Não querendo interromper...
Se me permite(m)...
Mudando de assunto...
Sem querer ofender...

Essas expressões desempenham nos textos uma de três funções:


✓ controlar a continuidade do assunto;
✓ antecipar reações indesejáveis por parte do interlocutor;
✓ dar à comunicação em curso um caráter mais ou menos reservado ou confi-
dencial.

Classifique as expressões acima numa dessas três classes; se possível descubra


outras expressões que desempenham as mesmas funções.

9. Não é raro encontrar nos jornais “artigos” que procuram dar conta de um deter-
minado assunto alinhavando depoimentos de “personalidades” mais ou menos co-
nhecidas. Em sua opinião, essa é uma boa forma de construir textos que defendem
um ponto de vista? Responda depois de examinar a “artigos” que segue, que é
desse tipo.

RECRUTAMENTO
Forma tradicional ainda tem espaço
DA REPORTAGEM LOCAL

O candidato “não informatizado”, “Outro expediente, também muito


que ainda bate perna todo dia em bus- eficiente, é o boca-a-boca, utilizado so-
ca de emprego, sai em desvantagem, bretudo para recrutar prestadores de
mas o grau das barreiras depende da serviços como empregadas domésticas,
vaga e do lugar. professores particulares de idiomas, en-
Segundo José Pastore, professor de fermeiros para atendimento particular
relações do trabalho da Faculdade de a idosos, antenistas, eletricistas e en-
Economia, Administração e Contabi- canadores”, diz Pastore.
lidade da USP, nas cidades menores, as Para o consultor Jorge Gounares, da
formas tradicionais de recrutamento, Bright Link, a impossibilidade de usar
com tabuletas na porta e anúncios em a Internet não pode ser uma desmoti-
jornais locais, devem permanecer. vação. “O e-mail agiliza mas ainda não
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substitui o fax, o correio e a entrega tam em todos os níveis de pessoal”,


pessoal”. avalia.
Ir às empresas com o currículo em- Na opinião do consultor, a realida-
baixo do braço pode até ser um ponto de das empresas brasileiras no que se
positivo, segundo o consultor Marcos refere à Internet não está tão avançada
Possari, da Prime Perfil Profissional. assim, sobretudo entre as que mais con-
“A Internet virou uma importante tratam no Brasil, como as de pequeno
fer-ramenta para a seleção, mas quem e médio porte. “Se houver pressa em
vai pessoalmente valoriza-se pela ini- contratar, muitas ainda recorrem ao
ciativa, e as empresas sempre necessi- velho e bom arquivo”.
(Folha de S. Paulo, 14/5/2000)

10. Discussão: Para qualificar uma fala como mentira, não basta que seu conteúdo
seja infiel aos fatos. Se assim fosse, todos os grandes ficcionistas e todos os gran-
des teatrólogos seriam, antes de tudo, grandes mentirosos. O que é preciso, para
mentir, além de contar coisas que não coincidem com os fatos?

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