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Filosofia e Ocultismo

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A queda do paraíso no Hermetismo

 viniciuspimentelferreira  Sem categoria  26 de maio de 2022 14 minutos


Uma perspectiva sobre o mito da queda do homem no Hermetismo através do Poimandres e
do Kore kosmos.

Por Vinicius Pimentel Ferreira.


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The fall of Phaeton, Michelangelo. 1533

Nesse texto deve-se compreender o hermetismo como o conjunto de textos atribuídos a


Hermes Trimegisto até o terceiro século da era comum, em especial o Corpus Hermeticum, o
Logos Teleios (LT) e o Kore kosmos (KK). Esses textos que, originalmente foram encontrados
em grego e em copta trazem em forma de diálogo diversas narrativas de cunho religioso, ético
e a revelia de algumas críticas traz também uma filosofia que ao mesmo tempo que perpassa,
busca se afastar do modo filosófico dos gregos. O estudante de hermetismo deve ficar atento
de não cometer o mesmo erro que alguns dos religiosos cristãos cometeram, que consiste em
tomar o texto hierático como um uma documentação que narra um evento histórico, pois se
seguir por essa via não poderá extrair os signos, a gnose e as lições que estão tão bem
arranjadas entre as alegorias da narrativa hermética. Portanto proponho que aquele que
desejar se aventurar no estudo do hermetismo e em especial buscar compreender a narrativa
da queda do homem, que não busque nessas narrativas personagens ou eventos históricos,
muito menos que exija da obra uma coerência da linearidade, pois como bem veremos nos
próximos parágrafos o Hermetismo apresenta dois mitos distintos da queda do homem, mas
que quando analisados para além da roupagem do símbolo, trazem para nós se não a mesma,
sem dúvida uma perspectiva muito similar entre si e até mesmo atemporal.

O primeiro tomo do Corpus Hermeticum (CH) é uma narrativa da iniciação de Hermes


Trimegisto nos mistérios divinos pelo Agathodaimon Poimandres que é apresentado como
uma entidade superior a todas, por ser a primeira manifestação, ao mesmo tempo que é o
Nous de Deus, ou seja, uma manifestação da mente divina dotada de Logos (linguagem e
razão). Neste livro Poimandres submete Hermes a experiência religiosa (portanto simbólica)
sobre a cosmogonia e a antropogonia, partindo desses para sugerir um ethos para o
Hermetismo, ou seja, parte da história mítica revelada para propor o modo correto de viver
para todos aqueles que buscam purificar-se do que não são e ascender ao estado divino
(apoteosis) que é a proposta central do CH. O Kore Kosmos, assim como o Poimandres é
também um livro de caráter iniciático, se passando dentro da mitologia hermética como um
acontecimento anterior a iniciação de Hermes por Poimandres, trazendo a narrativa da deusa
Ísis que inicia seu filho Horus nos mistérios da imortalidade e da criação do Homem e do
Cosmos para, a partir dessa narrativa traçar qual a finalidade existencial humana e divina (o
destino). Ambos os textos apresentam mitos que justificam a queda do homem, mitos
diferentes é bem verdade, mas que possuem para além da vestimenta simbólica a perspectiva
de que a causa da queda do homem se dá por seu não comprimento do dever existencial ou de
seu destino (Heimarmene), dever esse que apesar de diferentes em finalidades é divido por
todos os entes (incluindo daemons e deuses) e que seu não cumprimento implica num
afastamento do divino, numa corrupção e por tanto em uma queda. No Kore Kosmos a queda
se dá pela desobediência das leis divinas (que segundo o Poimandres e o Logos Teleios são
impostas por Heimarmene) que apontavam qual a função e posição existencial do Homem(KK
I-17,24 e 25). Vale salientar a incrível semelhança dessa perspectiva com a encontrada no livro
A República de Platão que também parte do princípio que a corrupção é consequência do
afastamento entre o sujeito e sua função cósmica, mostrando que a que a queda como um não
cumprimento do dever celestialmente imposto (por Deus, por Heimarmene ou pelas Ideias)
precede a literatura hermética. Para o Hermetismo todas as coisas possuem um destino, uma
função que lhe é própria, a exemplo da função dos seres demiurgicos é criar, das árvores é
gerar frutos e do Homem é ser piedoso buscando o conhecimento e o cuidado das coisas
divinas e naturais por meio da purificação da gnose, da magia, da ciência e da arte (KK I-68).

Para compreender melhor a queda do homem se faz necessário narrar aqui um pouco de sua
origem, ou seja, da antropogonia hermética que justificará não apenas o processo de queda
como a possibilidade de ascensão. No primeiro tomo do Corpus Hermeticrum é afirmado pelo
daemon Poimandres que o Homem foi feito a imagem se semelhança de Deus, essa afirmação
carrega consigo uma pista da natureza do Homem quando bem analisamos a passagem que
diz:

“No entanto, o Nous, Pai de todas as coisas , sendo vida e luz, engendrou um ser humano
semelhante a ele mesmo e o amou como seu próprio filho, uma vez que o Ser Humano era muito
belo: ele reproduzia a imagem do seu Pai, de modo que, na verdade, Deus amou sua própria
forma e entregou-lhe todas as suas criaturas.”
CH 1-12
“ὁ δὲ πάντων πατὴρ ὁ Νοῦς, ὢν ζωὴ καὶ φῶς,
ἀπεκύησεν Ἄνθρωπον αὐτῷ ἴσον, οὗ ἠράσθη ὡς ἰδίου τόκου·
περικαλλὴς γάρ, τὴν τοῦ πατρὸς εἰκόνα ἔχων· ὄντως γὰρ
καὶ ὁ θεὸς ἠράσθη τῆς ἰδίας μορφῆς, παρέδωκε τὰ ἑαυτοῦ πάντα δημιουργήματα.”
CH 1-12

Nesta passagem é afirmado que o homem foi criado a imagem e semelhança do Nous de Deus,
propondo por tanto que somos em realidade um Nous, esta observação se faz importante na
medida em que muitas vezes há no meio tradicional hermetista a discussão sobre o que é o
homem, discussão que gira em torno de saber se somos uma alma (psykhé) ou uma
inteligência (nous). Seguindo esta passagem podemos pensar que não somos nosso corpo, nem
nossa mente racional (Logos), nem nosso espírito vivificador (pneuma) e muito menos a coisa
que veste o corpo (soma) e carrega nosso Nous e nossos afetos, ou seja, nossa alma, uma vez
que somos a imagem e semelhança do Nous. Para que isso fique claro se faz necessário
explicar o que são cada uma dessas partes que compõe o que chamamos de ser humano.

Camadas do
Homem no
Hermetismo,
por Vinicius
Pimentel
Ferreira

No Hermetismo o corpo material é o veículo no qual a alma se torna manifesta no mundo


material e é também ele quem permite nosso contato e apreensão das coisas pertencentes ao
cosmos, sem os sentidos agindo sobre o mundo não seria possível o pensamento (CH IX-2 e LT-
8), de modo que a existência humana material no Hermetismo é condição necessária ao
conhecimento das coisas também de natureza material, o corpo é o envólucro de quem somos,
mas não é quem nós somos. O corpo por sua vez envolve a pneuma colocada em algumas
traduções como espírito, a pneuma tem o papel de vivificar nosso corpo, de modo que morrer
implica que esta substância não está mais agindo na animação corpórea. A pneuma por sua
vez está entre o corpo e a alma (e aparentemente é proveniente da alma, pois para lá se retira
no momento da morte, como é afirmado no CH X-13) que é envolvida pelo corpo e pela
pneuma, a alma é o receptáculo que mantém nossa individualidade, nossa identidade, nossa
faculdade racional e nossa faculdade noética, servindo também como barreira para que nossa
natureza divina não danifique nosso corpo material que, segundo o hermetismo se romperia
em contado direto com a divindade (CH X-17). Dentro da alma está o logos que nos dá a
faculdade do pensamento dedutivo, da razão, da linguagem e da imaginação, da produção de
símbolos que servem como envoltórios do que é noético e também em nossa alma está o nosso
nous que é superior a linguagem e que nos dá faculdade da gnose, da experiência religiosa
que nos dá sabedoria supra simbólica, da reminiscência e que é o nosso Eu Verdadeiro acima
da identidade individual e nos eleva ao que é universal.

“eis como é constituída a alma do homem: o nous está no logos; o logos na psykhé; a psykhé na
pneuma, a pneuma na soma. A pneuma penetra pelas veias , as artérias e o sangue, faz com que
o ente vivo se mova e assim o conduz. Há quem diga que a alma está no sangue, mas isso é
conhecer mal sua natureza. Essas pessoas não se dão conta que quando a penuma se retira para
o interior da alma, o sangue se congela, as veias e as artérias se esvaziam e o ente vivo perece.
Assim é a morte do corpo”
CH X-13

ψυχὴ δὲ ἀνθρώπου ὀχεῖται τὸν τρόπον τοῦτον, ὁ νοῦς ἐν τῷ λόγῳ, ὁ λόγος ἐν τῇ ψυχῇ, ἡ δὲ
ψυχὴ ἐν τῷ πνεύματι· τὸ δὲ πνεῦμα, διῆκον διὰ τῶν φλεβῶν καὶ ἀρτηριῶν καὶ μετὰ τοῦ
αἵματος, κινεῖ τὸ ζῷον ως καὶ ὥσπερ φόρτον τινὰ βαστάζει. διὸ καί τινες τὴν ψυχὴν αἷμα
ἐνόμισαν εἶναι, σφαλλόμενοι τῆς φύσεως, οὐκ εἰδότες ὅτι πρῶτον δεῖ (ἐξελθεῖν)τοῦ πνεύματος
ἀναχωρήσαντος εἰς τὴν ψυχήν, καὶ τότε, τοῦ πνεύματος ἀναχωρήσαντος εἰς; τὸ περιέχον, τὸ
αἷμα παγῆναι κατὰ τὰς φλέβας, καὶ τὰς ἀρτηρίας κενωθείσας τὸ ζῷον καταλ επεῖν. καὶ τοῦτο
ἔστιν ὁ θάνατος τοῦ σώματος.
CH X-13

Mais uma vez, no X-16, o corpus fala que ao final do processo de purificação o Nous se
desvencilha da alma adquirindo uma vestimenta divina (σώματος πυρίνου) e ascende
deixando para trás a alma que já não lhe serve mais, dando a entender que não somos a alma
tal como não somos o corpo:

“A mesma coisa acontece com aqueles que saem do corpo. A alma entra de novo em si mesma , a
pneuma se retira no sangue, a psykhé na pneuma, o nous tendo se purificado e libertado dos seus
envoltórios , sendo divina por natureza, recebe um corpo de fogo e percorre todo o espaço,
abandonando a alma ao julgamento e a punição que merece. “
CH X – 16

τὸ δὲ αὐτὸ συμβαίνει καὶ τοῖς τοῦ σώματος ἐξιοῦσιν. ἀναδραμοῦσα γὰρ ἡ ψυχὴ εἰς τὰ ἑαυτῆς
τοῦ πνεύματος χωρίζεται, καὶ ὁ νοῦς τῆς ψυχῆς · συστέλλεται κα τὸ πνεῦμα εἰς τὸ αἷμα, ἡ δὲ
ψυχὴ εἰς τὸ πνεῦμα ὁ δὲ νοῦς καθαρὸς γενόμενος τῶν ἐνδυμάτων, θεῖος ὢν φύσει, σώματος
πυρίνου ἐπι λαβόμενος περιπολεῖ πάντα τόπον, καταλιπὼν τὴν ψυχὴν κρίσει καὶ τῇ κατ᾽ ἀξίαν
δίκῃ.
CH X – 16

Tendo deixado claro que o Homem Verdadeiro é o Nous puro (fica em aberto se possuidor ou
não de personalidade, pessoalmente eu defendo que não) podemos finalmente começar a
tratar sobre a queda e tudo que é advindo dela. No Poimandres é afirmado que após o Homem
ter sido criado a imagem e semelhança do Nous-Deus ele decide ir em direção ao circulo de
criação para também criar sobre a natureza(CH I-13), ao fazer isso ele ele recebe de cada um
dos 7 Governadores² uma parte da natureza que lhes é própria, fazendo com que este Homem
que antes era puro Nous seja agregado de 7 substâncias diferentes que lhe dão poder criativo
sobre a natureza e ao se inclinar pela periferia do círculo de criação ele vislumbra seu próprio
reflexo e sombra na natureza, diante do próprio reflexo se apaixona pela aparência divina de
sua semelhança com o Nous-Deus somada às substâncias dos governadores e se atira em
direção a materialidade. O Homem após cair, já estando mesclado a substâncias dos sete
governadores, é abraçado pela materialidade e recebe um corpo material (somático) com o
qual ele está unido até hoje e por intermédio dele recebe os sentidos e a mortalidade. Porém
cabe repetir mais uma vez que o homem não é o seu corpo físico, mas o Nous que está no
centro deste corpo físico, o corpo físico chamado de Soma ou somatos no grego original é
constituído no hermetismo como uma prisão para o eu verdadeiro que só pode se libertar
mediante um processo soteriológico. Nesse mito, narra-se que o homem é divino e superior a
materialidade e imortal, porém sua queda lhe impõe as vicissitudes de um corpo material,
queda esta causada pelo amor/afeto a imagem, ao reflexo e a sombra, pela busca daquilo que
não possui realidade em si mesma, ou seja, caímos por buscarmos e nos identificar-mos pela
não Realidade, pelo que não-é, que apenas reflete a coisa real. Afirmar que caímos, implica em
afirmar que deixamos nosso lugar de origem, que deixamos nosso posto na determinação
cósmica (neste caso supra-cósmica) a qual realmente pertencemos, o lugar original do
Homem, acima das esferas celestes, acima dos sete regentes, acima ou junto aos deuses.

Narciso de
Caravaggi
o

“não temamos dizer a verdade: o Ser humano Verdadeiro está acima dos deuses do céu ou, no
mínimo, é seu igual.”
CH X-24

“μᾶλλον δέ, εἰ χρὴ τολμήσαντας εἰπεῖν τὸ ἀληθές, καὶ ὑπὲρ ἐκείνους ἐστὶν ὁ ὄντως ἄνθρωπος,
ἢ πάντως γε ἰσοδυναμοῦσιν ἀλλήλοις.”
CH X -24

Na Hermética, a posição de origem que o Homem Verdadeiro ocupa está em um degrau


hierárquico acima dos daemons e de patamar superior ou igual dos Ousiarcas (os deuses do
céu), justificando assim a posição do homem de, por meio de um rito de recordação da
antropocosmogonia lidar ou tomar emprestado a força desses entes em benefício próprio
através da atitude de comando, comércio ou parental. Porém deve-se tomar cuidado para não
confundir qualquer homem com o Homem Verdadeiro, com efeito não somos o Homem
Verdadeiro, somos o homem que caiu, que foi destituído de sua posição, que não está mais ao
lado dos deuses do céu e portanto não goza mais da autoridade original de sua criação e que
precisa por meio de um processo longo de purificação(soteriologia) ir se livrando dos vícios e
dos afetos, pertencentes ao campo somático e psíquico, para ir assim ganhando cada vez mais
autoridade e/ou reconhecimento entres os entes e poder por fim abandonar a veste material e
habitar junto aos deuses. Nesse caminho, quando buscamos a antropogonia do Kore Kosmos
que narra a iniciação do deus Hórus pela deusa Ísis nos mistérios divinos, é afirmado que o
homem foi criado junto aos deuses para auxiliar o processo criativo do mundo sob o comando
do Demiurgo, que lhe dera o composto primordial da criação de todas as coisas materiais e
ordenou que o homem produzisse as criaturas que habitariam a natureza e que ao concluir
não abandonassem o próprio posto ou morada celeste que lhes havia sido estabelecido. Por
terem participado do processo criativo, as Almas Humanas orgulhosas do próprio feito,
decidiram que não deveriam limitar-se ao lugar que lhe fora estabelecido pelo Divino e
passaram a transgredir seu propósito e por essa transgressão, foram punidas sendo seladas
num corpo de carne no qual só poderiam se libertar mediante o cumprimento daquilo que lhe
foi existencialmente determinado ao longo das vidas (KK I-24). Existe um paralelo entre os
dois mitos da queda do Homem, nos dois casos o Homem vem ao mundo por ver-se pelo que
ele não é, por identificar-se como algo que não é ele mesmo, como algo projetado. No caso do
Poimandres o Homem vem ao mundo quando se identifica pelos reflexos e ao se identificar
pelo que não é, é tomado de afetos e vícios e deixa seu posto celeste, no Kore Kosmos ocorre
algo similar, o Homem passar compreender-se como algo distinto e independente da Vontade
divina, e ao identificar-se como para algo distinto daquilo que é estabelecido para a
manutenção da ordenação divina e cósmica, identifica-se por aquilo que ele não é, ilude-se e
ao iludir-se sofre o processo de queda e perda de potência. A Verdade tem um papel
fundamental no Hermetismo que compreende que na medida que nos direcionamos ao que é
verdadeiro e portanto divino, nos direcionamos a nossa imortalidade, ao passo que na medida
em que nos afastamos do divino, que é necessariamente o ser mais verdadeiro, nos
aproximamos da mortalidade, da ignorância e reavivamos o processo de queda, repetimos o
mito.

Quando se fala em Verdade nesse contexto, fala-se num sentido ontológico, para além da
crença ou da opinião, fala-se daquilo que funda o mundo, fala-se do divino. Não há
possibilidade dentro de um tradicionalismo hermético de negar a Verdade como via
soteriológica em prol da pluralidade das opiniões e crenças, pois esta Verdade que aqui se
enuncia não tem caráter lógico ou plural, mas tem caráter noético e transcendental. Afirmo
ser transcendental na medida em que esse conhecimento não se da meramente por
encadeamento lógico dedutivo, tendo em vista que o Logos enquanto faculdade do
pensamento racional e da linguagem é apenas capaz de abarcar o mundo e comunicar por
meio signos do mundo, ao passo que a Verdade a qual se busca e da qual nos afastamos,
possui um caráter supramundano, não dizível, não abarcável pelo Logos e que só pode ser
aproximada por meio da gnose adquirida em processo de reminiscência que por sua vez só se
dá naqueles sujeitos tocado pelo Nous.

” Este tipo de conhecimento (gnose) não é ensinado, meu filho, mas é lembrado (reminiscência)
quando Deus quer”
CH XIII – 2

“Τοῦτο τὸ γένος, ὦ τέκνον, οὐ διδάσκεται, ἀλλ᾽ὅταν θέλῃ ὑπὸ τοῦ θεοῦ, ὅταν θέλῃ
ἀναμιμνήσκεται.”
CH XIII-2
O Nous, muitas vezes traduzido como inteligência ou mente, não deve ser interpretado num
sentido ordinário, pois não se refere a nada ligado a capacidade de imaginação ou
pensamento cotidiano, tampouco deve-se pensar que as traduções usuais para esta palavra
dão conta do seu real significado no hermetismo, tendo em vista que as palavras inteligência e
pensamento traduzem-se dentro de um olhar contemporâneo conceitos do psicologismo que
não são o que a Hermética deseja propor. O nous no Hermetismo é a faculdade supra-racional
do conhecimento, que nos informa a Verdade não na medida em que racionalizamos, mas na
medida em que intuitivamente temos recordações de saberes que não nos foram
anteriormente apresentados, seja por meio de insights, sonhos, sincronicidades e experiências
religiosas. Como vemos na imagem proposta nesse post intitulada “camadas do homem no
hermetismo” o nous é abarcado pelo logos, logos que se coloca entre o nous e a psykhé, e como
foi dito anteriormente o logos só se apresenta por meio de símbolos, fazendo com que a
faculdade do logos esteja entre o nous e a psykhé como um filtro, que traduz a reminiscência
por meio de figuras do mundo que possuam em alguma medida um caráter analógico dos
objetos da experiência religiosa. Com efeito, por conta deste intermediário (Mercúrio), não
temos acesso a coisa em si mesma, ao divino em si mesmo, temos acesso ao conhecimento
sagrado vestido pela roupagem do símbolo, ou seja, a gnose que se apresenta não em sua
literalidade, mas através do seu reflexo, cabendo então ao sujeito iniciado não cometer o erro
primordial de confundir a Verdade com a representação. A representação, quando tomada
como a coisa em si (to onton), gera a multiplicidade de opiniões, os enganos e a novas quedas.
Conforme o sujeito caminha no seu processo iniciático, que no Hermetismo não se dá pela
autoridade clubista de um mortal, mas pela graça do Nous-Poimandres¹, a Luz (seu nous)
passa a cada vez mais se infiltrar pelo véu do Logos, o sujeito passa a ter mais facilidade em
transcender o símbolo e a literalização mítica, conforme vai sendo tocado por essa luz vai
purificando-se até que por fim adquire a potência para romper com a mortalidade.

“Só tenho a te dizer o seguinte: uma visão inefável produziu-se em mim. Pela misericórdia de
Deus, eu saí de mim mesmo e fui revestido por um corpo imortal. Não sou mais o mesmo que eu
era, pois naquele momento fui gerado no Nous. Isso não pode ser ensinado e não pode ser visto
pelo corpo, mediante este elemento constituído de matéria com a ajuda da qual vemos as coisas
daqui de baixo. Por essa razão já não me inquieto com minha primeira forma física e composta
que tive. Já não tenho cor, nem tato, nem medidas no espaço: sou estranho a tudo isso. Agora tu
me vês com os olhos como algo que tem corpo e uma forma visível, mas não é com esses olhos
que agora sou visto, meu filho.”
CH XIII-3

Τί εἴπω, ὦ τέκνον; τὸ πρᾶγμα τοῦτο οὐ διδά σκεται, οὐδὲ τῷ πλαστῷ τούτῳ στοιχείᾳ, δι’ οὗ σὺ
ὁρᾷς, ἐστιν ἰδεῖν.᾿ οὐκ ἔχω λέγειν πλὴν τοῦτο· ὁρῶν τιν ἐν ἐμοὶ ἅπλαστον ἰδέαν γεγενημένην
ἐξ ἐλέον θεοῦ, καὶ ἐμαυτὸν ἐξ διεξελήλυθα εἰς ἀθάνατον σῶμα· καί εἰμι νῦν οὐχ ὁ πρίν, ἀλλ᾽
ἀνεγεννήθην ἐν νῷ, τὸ πρᾶγμα τοῦτο οὐ διδάσκεται οὐδὲ τῷ πλαστῷ τούτῳ στοιχείῳ δι᾽ οὗ
ἐστιν ἰδεῖν καὶ διαλέλγταί μοι τὸ πρῶτον σύνθετον εἶδος. οὐκέτι κεχρω μάτισμαι καὶ ἀφὴν ἔχω
καὶ μέτρον, ἀλλότριος δὲ τούτων εἰμὶ νῦν, ὁρᾶς με ὦ τέκνον ὀφθαλμοῖς καὶ πάντων δεδ δὲ
κατανοεῖς ἀτενίζων σωματικῇ δράσει. οὐκ ὀφθαλμοῖς 4 τζοιούτοις θεωροῦμαι νῦν, ὦ τέκνο
CH XIII-3

Dentro da doutrina hermética, o processo soteriológico ou de purificação, não é conquistado


meramente por repetições mecânicas de cerimonias religiosas, muito menos é adquirida
mediante favorecimento de algum daemon, mas deve ser construída pelo processo espiritual
da piedade (eusebéia). A piedade no hermetismo compreende a busca de tornar-se quem se é,
tornar-se o que fomos criados pra ser, em não nos identificar-mos pelas coisas do mundo
material que são apenas reflexos numa poça escura. Somos um ente imortal, divino,
demiurgico, filhos do Nous-Deus, responsáveis pela criação e manutenção de bela obra divina
que é a natureza e apenas na busca desta Verdade poderemos finalmente parar de cair e
voltar aos céus.

Notas:
1- Ler o texto “O Poimandres e o Hermes Pimandro”
(https://filosofiaocultismo.wordpress.com/2022/05/10/poimandres-e-o-hermes-pimandro/)2- Os
7 governadores ou 7 Ousiarcas são os entes derivados pelo Demiurgo, respectivamente o
Helyo (sol), Selene (lua), Ares (Marte), Hermes (Mercúrio), Zeus (Júpiter), Afrodite (Vênus) e
Kronos(Saturno).

Bibliografia:

Hermes Trimegisto. Corpus Hermeticum. Editora Hemus. 1973.


Hermes Trimegisto. Corpus Hermeticum. Editora Polar. 2019.
Hermes Trimegisto. Pupila do Mundo (Kore kosmos). Editora Polar. 2019.
Hermes Trimegisto. Hermetica I. Oxford University. 1924.

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