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Felismina Mendes

2023
¨ e sistematicamente
¨ Nada na presente crítica deve ser interpretado como
negação do valor da saúde para aqueles que a abraçam e
tentam viver vidas mais saudáveis.

¨ No entanto, o nosso investimento emocional na saúde


impossibilita muitas vezes o discernimento sobre as suas
implicações práticas, na vida individual e coletiva.
Cada vez vivemos mais tempo e com mais
saúde

Cada vez se fala mais de saúde

Cada vez se têm mais medos associados à


saúde

Medos alimentados pelas campanhas governamentais


de Promoção da saúde
Os medos geram:

Mais ansiedade

Maior adesão a novas regras

Aumento da supervisão individual


As iniciativas Governamentais são
pensadas a nível central e trabalhadas a
nível local:

Escolas Sáudáveis
Cidades Saudáveis
Indivíduos saudáveis

Regulação dos comportamentos individuais


Quem consome regularmente Saúde

Classes mais altas

Quem não consome regularmente Saúde

Classes mais baixas (só quando estão doentes)


Objectivo central da Saudificação:

Viver mais e com mais saúde


Prevenir a morte

(A morte não se previne, apenas se adia)


A Saudificação revela:

¨ O falhanço das campanhas de Saúde Públicas actuais;

¨ As actuais doenças que dominam a sociedade não são


preveníveis com as medidas propostas;

¨ Não há uma clara contribuição das medidas preventivas


para melhorar a qualidade de vida

¨ As antigas campanhas foram eficazes contra as


doenças agudas.
Governos propõem:

Diminuir as diferenças entre ricos e pobres


no acesso à saúde.

Vivemos tempos em que essas distâncias


são menores que nunca (nos países
ocidentais).
Crise no Estado Providência e fortes críticas à
ineficácia das suas políticas;

Domínio das doenças agudas e crescimento das


doenças crónicas;

Maior responsabilização do
indivíduo pela sua própria saúde

Intervenções assentam na educação para a saúde


e mudanças de atitudes, comportamentos e estilos
de vida
¨ A procura pela saúde tornou-se uma atividade altamente
valorizada na vida moderna e contemporânea, exigindo
enormes recursos e gerando uma profissionalização e
comercialização expansiva de bens, serviços e
conhecimentos.
O que deve ser feito para garantir a saúde é agora entendido
como um projeto complexo e exigente e, hoje, a suposição
comum é que a saúde deve ser alcançada.

¨ Os governos incluem a proteção da saúde pública entre


suas tarefas mais importantes.

¨ e sistematicamente
¨ A responsabilidade pessoal pela saúde é amplamente
considerada a condição sine qua non da autonomia
individual e da boa cidadania.

¨ Espera-se que os indivíduos adquiram conhecimento


médico e o usem adequadamente.
¨ Um grande número de pessoas procura avidamente
informações sobre saúde, e os media dedicam uma ampla
cobertura a assuntos de saúde e oferecem conselhos
sobre uma variedade de problemas de saúde.
Numa cultura de extrema valorização da saúde, as pessoas
passam a definir-se, em parte, pela forma como conseguem
(ou falham) na adoção de práticas saudáveis e pelas
qualidades de caráter ou personalidade que se acredita
suportarem os comportamentos saudáveis. E avaliam os
outros pelos mesmos critérios.

A saúde e os seus significados fornecem um “capital


simbólico” para estratégias de distinção e estigmatização.

Para os nazis, a saúde sancionava o extermínio/eugenia.


A saúde e boa forma tornaram-se os símbolos principais da
era eugénica – fornecendo um repertório de valores, ideais e
responsabilidades e um conjunto igualmente poderoso de
imagens de um corpo social vulnerável e ameaçado.

Utilidade ideológica da saúde:


• A saúde racial autorizou políticas estatais coercivas para remoção ou
eliminação da comunidade de 'inaptos', que se tornariam um fardo
financeiro para o estado.
• A saúde eugénica também justificava restrições à imigração, leis de
"miscigenação" e segregação e o policiamento das relações sexuais
entre "raças" e classes.
• A cultura eugénica absorveu e aumentou a aposta para manter as
divisões sociais mediadas pela saúde.
¨
Utilidades ideológicas da saúde:
• No quadro eugénico, o álcool – tanto causa como uma manifestação da
degeneração – simbolizava a ameaça vinda de baixo e visava disciplinar a
classe média das consequências “debilitantes da raça”.

• Campanhas de pureza sexual, assentes no imaginário da promiscuidade


feminina, sancionaram controles familiares e institucionais sobre a
liberdade das mulheres.

• A atividade física fortaleceria o corpo para a luta competitiva e para a luta


eugénica.

• Aqueles que se recusassem a agir de acordo com os princípios da saúde


demonstrariam a sua recusa na responsabilidade pelo
autoaperfeiçoamento e não compreenderiam que, na luta pela existência,
as leis da vida também eram leis sociais.
Anos 70 - A responsabilidade pessoal pela saúde torna-se
hegemónica
Os acontecimentos geradores que motivam a nova tomada de
consciência da saúde:
§Relatório de estudos epidemiológicos centrados nas doenças crónicas;

§Relatório de 1964 do Surgeon General sobre tabagismo;

§Um crescente movimento ambiental, estimulado por evidências


crescentes de degradação ambiental;
§Um dilúvio de novas descobertas sobre substâncias cancerígenas em
alimentos e outros produtos;
§A sucessão de crises de saúde ambiental.

A politização da saúde levou a um reposicionamento histórico das


forças políticas relativamente à política de saúde pública, em particular
a regulação governamental da indústria.
¨
Anos 70 - A responsabilidade pessoal pela saúde torna-se
hegemónica
O sentimento público em relação às questões de saúde era
decididamente anticorporativo e a promoção da saúde individual era
uma questão de bom senso.

As corporações ficaram encantadas com o surgimento de um discurso


público enfatizando a responsabilidade pessoal pela saúde.

A responsabilidade pessoal tornou-se a peça central da publicidade


patrocinada por empresas, que antes se concentrava em desafiar os
fundamentos científicos da regulamentação da saúde.

O que ficou claro em retrospetiva é que a responsabilidade individual


pela saúde provou ser particularmente eficaz em estabelecer os
princípios essenciais do neoliberalismo.
Anos 70 - A responsabilidade pessoal pela saúde torna-se
hegemónica
A contrastar com uma visão de indivíduos autónomos, prudentes e
autorresponsáveis, surgem as imagens de indivíduos descuidados e
imprudentes.

A ligação foi facilmente feita com o ónus da despesa social: os virtuosos


teriam de pagar impostos para fornecer assistência médica aos não
saudáveis.

As conversas sobre saúde tornaram-se conversas sobre responsabilidade.

A verdade sobre o corpo tornou-se um axioma do corpo político.

O corpo em questão, pertencia motoriamente a americanos brancos de classe


média, privilegiados por poderem adotar estilos de vida saudáveis, e
confirmados nos seus privilégios com um corpo que sobreviveu aqueles que
não são ou eram menos responsáveis.
Anos 70 - A responsabilidade pessoal pela saúde torna-se
hegemónica
¨

A ideologia da responsabilidade individual triunfou em


grande parte pela força de suas articulações – os valores
e significados que foi capaz de absorver e explorar.

Vejamos 3 articulações cruciais:


§A saúde como um Supervalor
§A Saúde como Metáfora

§Saúde como Prática Divisora


Anos 70 - A responsabilidade pessoal pela saúde torna-se
hegemónica
A Saúde como um Supervalor
Para os entusiastas da saúde holística, a saúde tornou-se um supervalor; ou
seja, um conceito que engloba tudo o que há de bom na busca pessoal de
bem-estar. A busca pelo bem viver foi reinventada como procura de saúde.

O holismo avançou para uma moralização expansiva: o fracasso em


alcançar a saúde era equiparado ao fracasso em abraçar a vida.

A pena pela a doença é ampliada: não apenas pegamos as doenças que


merecemos; temos as doenças que queremos (Ignatieff , 1988: 29).

Sob a influência do holismo, a conquista da saúde tornou-se uma questão de


crença. Não demoraria muito para o advento de personal trainers, life
coachs, resorts e spas que ofereceriam a santíssima trindade da saúde –
corpo, mente e espírito.
Anos 70 - A responsabilidade pessoal pela saúde torna-se
hegemónica
Metáfora
Quando as pessoas falam sobre o que é necessário para alcançar a
saúde, frequentemente usam as palavras autocontrole,
autodisciplina, abnegação, força de vontade, ou autocontrolo.
Os mesmos temas eram proeminentes na publicidade e nasnotícias de
saúde nos media.
O contraste também é destacado negativamente: falta de
autocontrole, deixar andar, prazer, não se preocupar (podem ser
associados a saúde).
A disciplina não poderia durar. Estruturalmente, o autocontrolo é
prejudicial para a economia de consumo.
Crawford ((2000), enfatiza a centralidade do conflito contínuo entre
disciplina e prazer da classe média, na sua luta pela saúde.
Anos 70 - A responsabilidade pessoal pela saúde torna-se
hegemónica

Saúde como prática divisora


O Self saudável é definido pelo autocontrolo, mas em relação tensa e
instável com o desejo e o prazer.

Imagina o outro "doente" como portador de qualidades que devem


ser contidas ou às vezes negadas no Self.

Responsabilidade versus irresponsabilidade.

Ex: No que diz respeito à SIDA, o Self saudável, supostamente


protegido pela sua heterossexualidade e os seus hábitos 'limpos' de
drogas ou estilo de vida saudável encontra um escudo simbólico num
repertório de valores héteros ou respeitáveis.
A Saúde no século XXI
A consciência da saúde tornou-se cada vez mais inevitável. Poucas pessoas
podem ignorar a enxurrada de notícias médicas e de saúde ou informações de
saúde que aparecem nos media e na publicidade.

A difusão do conhecimento da saúde, com a sua lista cada vez maior de


perigos, tem muitas fontes:
§ a aceleração da pesquisa médica e epidemiológica, cuja revisão contínua
exige atenção redobrada sobre informações de saúde;
§ a contínua identificação e politização dos riscos ambientais e ocupacionais;

§ o crescimento contínuo da promoção e educação em saúde com foco na


mudança de estilo de vida e comportamento;
§ expansão de tecnologias para deteção e monitorização de fatores de risco e
estádios iniciais de doenças, revelando um vasto terreno de patologias
assintomáticas e predisposições genéticas;
§ uma cultura comercial em constante expansão de produtos e serviços de
saúde (Crawford, 2004).
§
A Saúde no século XXI

Na sociedade atual, os indivíduos podem achar falsa a retórica da


responsabilidade pessoal e mostrar-se céticos em relação à
promoção de saúde.

No entanto, para amplos setores da classe média –


economicamente em risco, ansiosos, lutando para manter um
padrão de vida dessa classe – a promoção da saúde tem um peso
simbólico.

O otimismo e as identidades da classe média são investidos no


ideal do controlo pessoal.
A Saúde no século XXI

A promoção da saúde e a saúde fornecem a linguagem de uma


classe que, mesmo desintegrando-se, continua a acreditar na
sua própria salvação.

A prática da saúde representa uma lógica de sobrevivência: o


indivíduo deve fazer o possível para se proteger de danos.

Como afirma Crawford (2006:20): “Sim, o medo tem uma maneira


de escapar dos limites prescritos; mas o controle individual, o
cerne ideológico da prática de saúde contemporânea, constrói
um muro que não será facilmente rompido”.
¨
Hoje, ser/estar consciente da saúde hoje é chegar à
conclusão de que a saúde de alguém está em perigo
contínuo.

A cultura da saúde contemporânea destrói o desejo


profundamente arraigado de se sentir seguro, de negar a
vulnerabilidade e de evitar pensar na morte.

Qualquer consideração cuidadosa sobre o significado social


da saúde deve refletir sobre a ironia de que quanto mais
importante a saúde se torna para nós, mais inseguros nos
sentimos (Crawford, 2006).
ü Higiomania

Os avanços tecnológicos da
medicina moderna são pouco
eficazes na melhoria da Saúde
da população em geral.

O desenvolvimento sócio
económico é o responsável pela
melhoria da saúde e
longevidade.
Ivan Illich
Ideologia da Saúde

Redefinição do “direito à saúde”


Redução das desigualdades de acesso aos serviços
médicos.
Definição de saúde como estado de bem estar.

“Dever de saúde”
Participação da comunidade na melhoria da sua saúde,
refletindo sobre os seus problemas e necessidades;

Alteração do papel do doente na sociedade – “ doente


passivo” para “doente responsável” ;

Adoção de comportamentos racionais individuais e dos


grupos sociais (Herzlich, 1984);

Evitar comportamentos de risco, diminuindo efeitos


patogénicos.
Ideologia da culpabilização
(Crawford, 2004)

Culpabilização dos indivíduos devido ao não


cumprimento das normas de saúde

Faz esquecer que nem todos têm os mesmos


recursos e as mesmas oportunidades para dominar
os seus comportamentos, nem todos têm igualdade
de acesso aos cuidados de saúde.

Ocultação de outros agentes implicados no


aumento dos custos da saúde - monopólios
farmacêuticos
Questiona-se se a Educação para a
Saúde/Promoção da Saúde é uma determinação
individual ou social.

Originam campanhas de moralização e de


culpabilização.

Ocultando a funcionalidade que os


comportamentos e os fatores de riscos tem em
relação aos papéis sociais que o corpo
desempenha.

A prática da prevenção remete para o sistema de


Saúde uma missão de vigiar, mais do que de fazer
exprimir ou procurar e agir em conjunto.
As Campanhas de Promoção/Educação para a
Saúde

Ø Há nestas campanhas uma moralidade associada à saúde:


Mortificação da carne e purificação da alma
Ø Assumem ser possível modificar o comportamento
individual pela comunicação de mensagens

Ø Promovem a auto-disciplina e a abstinência:


Mente sã e corpo saudável

Ø Utilizam diferentes estratégias de argumentação de que


se salienta a homilia da Saúde: virtude, moderação,
disciplina

Ø
Responsabilização individual e colectiva
pela saúde - moral subjacente e práticas atingíveis?

Ø Só se atinge se todos se comprometerem consigo


próprios e com os outros.
Ø Cada um deve responsabilizar-se pela sua saúde e
pela dos outros.
Ø A saúde só se atinge se todos trabalharem em
conjunto.
Ø Aumento do controlo social.
Ø Culpabilização dos que se deixam adoecer.
Ø Não são apenas um risco para si próprios são um
risco para a sociedade.
Crawford, R. (2006). Health as a meaningful social practice. An
Interdisciplinary Journal for the Social Study of Health, Illness and
Medicine , pp. 401-420.

Fitzpatrick, M. (2001). The Tyranny of Health. Doctors and the


Regulation of Lifestyle, Routledge.

Illich, I. (1990). Health as one’s own responsability – No, Thank you!.


Hannover.

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