Você está na página 1de 17

FILOSOFIA

AULA 4

Prof. Paulo Niccoli Ramirez


CONVERSA INICIAL

Direitos humanos e a construção da humanidade

Nesta aula, estudaremos o processo de construção dos direitos humanos.


Observaremos que, antes mesmo da adoção, em 1948, da Declaração Universal
dos Direitos Humanos pela Organização das Nações Unidas (ONU), houve uma
série de construções filosóficas e eventos históricos políticos inaugurados no
século XVII que passaram a formular os chamados direitos naturais e individuais.
Esses elementos envolveram reflexões e lutas em nome de liberdades, direitos
políticos e o que hoje é conhecido como Estado democrático de direito.
Para isso, primeiro veremos as influências e heranças dos autores
contratualistas dos séculos XVII e XVIII, elaboradores do direito natural e base
para a compreensão dos direitos humanos. No Tema 2, discutiremos o
Iluminismo do século XVIII e as Revoluções Burguesas; no Tema 3,
abordaremos aspectos políticos do idealismo alemão de Kant e seu conceito de
dignidade humana, sendo que todas estas correntes contribuíram em maior ou
menor grau para a construção do direito moderno e para a elaboração da
Declaração dos direitos humanos no século XX, que será debatida no Tema 4.
Por fim, no Tema 5, analisaremos a crítica marxista aos pensamentos iluminista,
contratualista e idealista alemão, e suas concepções de humanidade e liberdade.

TEMA 1 – TEORIA CONTRATUALISTA

A construção moderna do que vem a ser a humanidade e os direitos


remete primeiro à herança deixada pelo pensamento de Maquiavel (1469-1527)
no século XVI. Na obra O príncipe, escrita em 1513, porém apenas publicada
em 1532, após a morte do pensador, Maquiavel deu um contorno mais realista
à política e à observação do ser humano, tomado como naturalmente avarento,
individualista e sem interesse pelo bem comum. A novidade do pensamento de
Maquiavel foi estabelecer a noção de que a política é uma arte humana, que
independe de qualquer explicação divina ou de determinação da natureza, o que
veio a influenciar os demais pensadores políticos seguintes, entre eles os
contratualistas. Maquiavel demonstra que devemos entender a autonomia da
política, pois ela é resultado do jogo de forças entre os indivíduos, bem como os
modelos políticos devem ser tomados sempre como construções humanas.

2
Neste Tema 1 estudaremos a formação do pensamento contratualista
para, mais adiante, compreendermos de que forma ele foi determinante ao lado
do Iluminismo francês do século XVIII e do idealismo alemão do século XIX para
a construção do que hoje entendemos como direitos humanos. Mas o que
caracteriza o contratualismo? Vamos estudar o assunto com maior
profundidade..

1.1 Características do contratualismo

O contratualismo é também conhecido como jusnaturalismo – ou direito


natural –, e está relacionado a autores como Thomas Hobbes (1588-1679), John
Locke (1632-1704) e Rousseau (1712-1778). Estes pensadores apresentam
interpretações bem diferentes do que vêm a ser os direitos naturais ou mesmo
os modelos políticos defendidos, conforme veremos mais adiante. O que há de
comum entre suas ideias é a distinção entre direito e lei. Os direitos têm origem
e remetem à natureza. Estão presentes universalmente nos indivíduos desde o
seu nascimento. Por serem naturais, consideram que alguns desses direitos não
podem ser usurpados ou infringidos. São exemplos desses direitos a liberdade,
a igualdade e o direito à vida e à segurança. Os direitos correspondem ao que
se define como estado de natureza, de modo que eles não surgiram da
sociedade e muito menos das convenções humanas. Já as leis são criadas pelos
indivíduos, resultado de convenções, acordos ou contratos, e têm como objetivo
promover a sociabilidade, a segurança e a paz. As leis existem no estado civil,
caracterizado pela existência de um Estado que organiza a vida social. Portanto,
o direito é natural; a lei é humana. Os pensadores contratualistas apresentam
divergências sobre como foi a passagem do estado de natureza (sem leis, reis,
Estados, governos ou sociedade) para o estado civil, ou seja, sob quais
condições o contrato que deu origem à sociedade e ao Estado teria sido
elaborado.

3
1.2 Thomas Hobbes: “O homem é lobo do próprio homem”

Figura 1 – Hobbes (1588-1679), em sua obra O Leviatã, afirma ser o homem


lobo do próprio homem

Crédito: Georgios Kollidas/Adobe Stock.

De acordo com o pensamento político de Hobbes, em sua obra O Leviatã


(2003), publicada em 1651, o estado de natureza é visto de forma negativa.
Trata-se de uma condição caótica devido à ausência de Estado, autoridade, leis
e governo, sendo caracterizada pela guerra de todos contra todos. A natureza
forneceu aos indivíduos dois direitos: a liberdade (que inclui a possibilidade de
tudo poder fazer, inclusive empregar violência deliberada contra semelhantes) e
o direito à autoconservação ou vida, sendo possível agir de todas as formas para
que os indivíduos se mantenham vivos. Por isso, o filósofo considera que os
indivíduos se caracterizariam pela expressão “o homem é lobo do próprio
homem”. Na visão de Hobbes, a liberdade deve ser limitada com a elaboração
de um contrato social que permita a passagem do estado de natureza em direção
à sociedade civil, enquanto o direito à vida ou autoconservação deve ser
protegido quando da constituição do Estado e da sociedade.
Para Hobbes, no estado civil e com a constituição do Estado, deve-se
proteger o direito à vida ou à segurança. Esta perspectiva exclui a manutenção

4
da liberdade no estado civil, pois, embora seja um direito natural, pode
representar um ato deliberado contra o outro, como matar ou usurpar objetos.
Hobbes considera, desse modo, que o direito natural à liberdade deve ser
limitado. Defende o absolutismo monárquico como forma de garantir o monopólio
do soberano (ou do rei) nas decisões políticas, a fim de controlar e usurpar a
liberdade dos súditos com a intenção de evitar ao máximo o eventual retorno ao
estado de natureza, ou seja, a guerra de todos contra todos.

1.3 John Locke: liberdade e propriedade privada

Figura 2 – John Locke (1632-1704) é o pai do liberalismo político por considerar


a propriedade privada um direito natural. Além disso, foi pioneiro na reflexão
sobre a imposição de limites ao Estado, de modo a preservar os direitos naturais,
como a igualdade, liberdade e propriedade

Crédito: Georgios Kollidas/Adobe Stock.

Locke considera a propriedade privada um direito natural, ao lado da


igualdade e da liberdade. Na obra Dois tratados sobre os governos civis,
publicada no ano de 1689, Locke se opôs à visão de Hobbes sobre o estado de
natureza, pois, ao invés de observar a guerra de todos contra todos, afirma que
haveria uma relativa paz. Além disso, enquanto Hobbes avalia a liberdade
natural como negativa, Locke a tomava como um elemento positivo e relacionado

5
ao direito de ir e vir, à liberdade de pensamento e à posse sobre o próprio corpo,
não podendo nenhum indivíduo ser escravizado ou usurpado de sua liberdade
ou integridade física. O filósofo considera ainda que o pacto social que deu
origem ao Estado e aos governos foi criado pelos indivíduos com o objetivo de
preservar ainda mais, sob a forma de leis, os direitos fornecidos pela natureza
(propriedade privada, igualdade e liberdade).
Por estes motivos, John Locke é considerado pai do liberalismo político,
corrente que se opõe ao absolutismo monárquico defendido por Hobbes. O
liberalismo político compreende que o direito natural à liberdade está presente
na liberdade de expressão (política e religiosa), na autoridade que cada indivíduo
tem sobre seu corpo (propriedade privada) e ao que permite a manutenção
desse mesmo corpo, como no caso da propriedade da terra. O liberalismo
promove limites ao Estado em nome da defesa das liberdades e dos direitos
individuais. Dessa forma, liberdade, igualdade e propriedade privada constituem
direitos invioláveis, cuja origem é o estado de natureza. Assim, tais direitos
devem ser protegidos e mantidos pelo Estado, ou na condição civil.

1.4 Rousseau e o bom selvagem

No século XVIII, o pensador iluminista e contratualista francês Jean-


Jacques Rousseau, em suas obras Discurso sobre a origem e os fundamentos
da desigualdade entre os homens, e O contrato social, respectivamente
publicados nos anos de 1755 e 1762, defende como direitos naturais a liberdade
e a igualdade. São elementos positivos e considera que esses direitos devem
ser preservados no estado civil. Rousseau questiona os pensamentos de
Hobbes e Locke por meio do argumento que gira em torno da noção de que o
homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe.
Para Hobbes, conforme vimos, no estado de natureza predomina a guerra
de todos contra todos e a ideia de que o homem é lobo do próprio homem. Para
Rousseau, ao contrário, o estado de natureza é considerado um estágio positivo
da história da humanidade, devido ao fato de que o filósofo francês concebe o
“bom selvagem”. Nessa perspectiva de Rousseau, os indivíduos nascem livres,
iguais e vivem felizes no estado de natureza. O que retirou os seres humanos do
estado de natureza e os conduziu à corrupção em direção ao estado civil foi a
invenção da propriedade privada. Aqui encontramos a crítica de Rousseau a
Locke, pois este último considera a propriedade privada um direito natural,
6
enquanto, para Rousseau, a propriedade não é um direito, mas uma elaboração
humana que perpetuou a desigualdade entre os indivíduos.

o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo


cercado o terreno, lembrou-se de dizer “isto é meu”, e encontrou
pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes,
guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero
humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso,
tivesse gritado a seus semelhantes: ‘evitai ouvir esse impostor; estareis
perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não
pertence a ninguém. (Rousseau, 1997, p. 87)

Em O contrato social, Rousseau procura realizar um novo contrato que


seja capaz de afirmar os direitos naturais, a liberdade e a igualdade. Eles seriam
possíveis no estado civil com o que o filósofo designou como vontade geral.
Trata-se de uma espécie de democracia direta, da qual todos participam,
incluindo mulheres, e na qual há a abolição da escravidão. O povo deve estar
reunido em assembleia, de forma a constituir o poder soberano por meio de seu
corpo político. Trata-se da ideia de que o governo apenas é legítimo quando o
povo exerce sua vontade geral.
No Tema 4 veremos como estas concepções contratualistas colaboraram
para a elaboração da Declaração Universal do Direito Humanos da ONU, no ano
de 1948.

TEMA 2 – A FILOSOFIA ILUMINISTA E AS REVOLUÇÕES BURGUESAS

Investigaremos, nesse tema, o papel do pensamento burguês e iluminista


para a consolidação de direitos civis, políticos e econômicos. Sobretudo, durante
o século XVIII, conhecido como o Século das Luzes, devido ao Iluminismo e à
Revolução Francesa, foi possível levar ao fim os privilégios do clero e da nobreza
feudais. Antes disso, com a Revolução Gloriosa (1688), na Inglaterra, ocorreu a
ascensão da burguesia ao poder por meio da consolidação de sua hegemonia
no parlamento e limitação dos poderes monárquicos. Em 1776, a Revolução
Americana e, em 1789, a Revolução Francesa, foram determinantes para o
processo de constituição de direitos fundamentais baseados no contratualismo
e em princípios liberais.
O Iluminismo desenvolveu concepções relevantes e que influenciam a
cultura ocidental até hoje. Entre os elementos defendidos por essa corrente
estão a confiança no progresso mediante o desenvolvimento técnico, científico
e industrial, a separação entre religião e Estado, a defesa de direitos naturais –

7
sobretudo a liberdade (principalmente a de expressão e econômica) –, a
igualdade e a propriedade privada (com exceção de Rousseau, conforme vimos).
Dessa forma, foram desenvolvidos os direitos naturais nas legislações
desses países. A Independência (ou Revolução) estadunidense, em 1776,
consolidou a Constituição e a Declaração de Direitos, de 1787, a qual entrou em
vigor em 1791. A Declaração de Direitos passou a limitar o poder do governo
federal, de modo que sua principal função passou a ser garantir e proteger
direitos como igualdade jurídica, as liberdades econômicas e políticas, a
propriedade privada, assim como a privacidade dos cidadãos. Na França, a
revolução de 1789 deu origem à Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, que estabeleceu como universais e invioláveis os direitos individuais,
que tiveram como base os debates dos pensadores contratualistas, conforme
abordamos no tema anterior.

TEMA 3 – KANT, O IDEALISMO ALEMÃO E A DIGNIDADE HUMANA

Investigaremos, nesse momento, a contribuição de Kant (1724-1804) para


a futura construção dos direitos humanos. Kant foi um pensador alemão
contemporâneo à Revolução Francesa, que herdou, desse movimento filosófico
francês do século XVIII, o otimismo em relação ao progresso da razão e da
consolidação dos direitos civis e políticos.
Kant pertence à corrente denominada como idealismo alemão.
Influenciado pelo Iluminismo, o idealismo alemão se refere à tentativa de
promover a razão na história e na moralidade, buscando o aperfeiçoamento da
humanidade. Será diante dessa perspectiva que Kant desenvolverá o conceito
de dignidade humana, conforme veremos adiante. Entre os séculos XVI e XVIII,
a ciência e a filosofia modernas procuraram dominar a natureza e livrar os
indivíduos do obscurantismo e ignorância; o pensamento filosófico político,
sobretudo com os contratualistas e a filosofia iluminista, procuraram constituir
racionalmente o Estado e a sociedade. Restava um aspecto: dominar
racionalmente a moralidade, tarefa que seria realizada principalmente por Kant.
Trata-se de promover a razão na história e na moralidade; Kant foi um dos
primeiros pensadores alemães a se declarar iluminista.
Em sua obra Fundamentação metafísica dos costumes, publicada em
1785, Kant apresenta a valorização da razão moderna aplicada ao direito, à
indústria e à ciência. Seu raciocínio objetiva estabelecer como dever moral a
8
adoção de princípios racionais que devem ser difundidos de forma universal à
humanidade. Esses princípios são sintetizados na seguinte máxima kantiana:
“Age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, através da tua vontade,
uma lei universal” (Kant, 2009, p. 245).
Assim como os iluministas, Kant possui convicção dos benefícios da razão
humana. Compreendeu que não é preciso medir as consequências do uso da
razão no campo moral e jurídico, tendo em vista que a própria racionalidade por
si só promoveria o bem-comum, ou seja, ele se refere à noção de que tudo o que
emana da razão é, necessariamente, benéfico aos seres humanos.
A formulação do conceito de dignidade humana por Kant, presente em
sua obra Fundamentação da metafísica dos costumes, representa a síntese de
construções anteriores e herdadas dos pensadores liberais e contratualistas
inglese – principalmente Locke –, e dos iluministas na França, sobretudo
Rousseau. Vimos que esses pensadores desenvolveram as noções de liberdade
e igualdade naturais. Para Kant, a dignidade humana está atrelada ao problema
do que é um valor, de modo que ela pode ser negociada ou mesmo substituída
por qualquer outra coisa.
A dignidade humana expressa o direito de viver e pensar livremente,
assim como o respeito pela liberdade alheia. Kant toma a dignidade como um
fim em si mesmo, pois fornece a autonomia e fortalece a vida em sociedade.
Kant anseia uma forma de comportamento universal e fraterna, que encontra na
dignidade humana o exercício do bom uso da razão em público e politicamente.

No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando


uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como
equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e,
portanto, não permite equivalente, então ela tem dignidade. (Kant,
2009, p. 82)

A concepção moral kantiana de dignidade diz respeito à autonomia do


sujeito, pois ele é visto como dotado de consciência e liberdade; zela pela
igualdade jurídica e o aprimoramento da humanidade. Porém, a análise dessa
premissa de Kant poderia conduzir a vários questionamentos, como: O que se
entende de fato como sendo a dignidade humana? Ela seria igualmente válida
em todas as épocas e sociedades? Não seria apenas um ponto de vista europeu,
idealista e iluminista? Seria realmente um valor universal, ou meramente
burguês? Essas perguntas também aparecerão no pensamento de Karl Marx, e
serão estudados no Tema 5.

9
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) é outro pensador idealista
alemão a avaliar com otimismo o estabelecimento dos direitos à liberdade,
igualdade e propriedade privada, além do Estado burguês. Na obra
Fenomenologia do espírito (1807), ele concebe que a Revolução Francesa e as
expansões napoleônicas teriam conduzido a humanidade ao que definiu como
sendo o “fim da história”. Hegel, ao ver Napoleão Bonaparte invadir sua cidade
na Alemanha, teria percebido “o espírito absoluto montado num cavalo".
Para este pensador, o fim da história se dá com a realização do espírito
absoluto no mundo. Trata-se do fim dos conflitos entre os seres humanos (Hegel
dirá que é o fim da dialética entre o senhor e o escravo), pois, a partir de então,
com a Revolução Francesa e as expansões napoleônicas pela Europa, todos os
seres humanos passariam a gozar de liberdades individuais e igualdade jurídica,
não havendo mais margem para a tirania dos reis ou a superstição das religiões.
O raciocínio de Hegel revela não somente o otimismo diante de sua época e dos
progressos racionais; remete também a uma concepção na qual o mundo
ocidental teria alcançado seu apogeu. Esta concepção será igualmente
questionada por Karl Marx (estudaremos esta crítica no Tema 5).

TEMA 4 – A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS

Figura 3 – No ano de 1948, a Organização das Nações Unidas (ONU) publicou


a Declaração Universal do Direitos Humanos, cujo objetivo principal é defender
a dignidade humana e os chamados direitos individuais

Crédito: nmann77/Adobe Stock.


10
Estudaremos agora a Declaração Universal do Direitos Humanos,
formulada pela ONU em 1948, após a Segunda Guerra Mundial. Identificaremos
também as influências de princípios contratualistas, iluministas e kantianos por
meio de uma análise detalhada de alguns dos artigos da declaração.
Logo no art. 1º da Declaração..., é possível avaliar a influência do conceito
de dignidade humana de Kant. O primeiro artigo refere-se à percepção de que,
por meio da razão, deve-se estabelecer o bem-estar e coletivo, com a intenção
de produzir universalmente princípios fraternos entre os seres humanos,
independentemente de sua cultura, país ou etnia:

Artigo 1º - Todos os seres humanos nascem livres e iguais em


dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem
agir uns para com os outros em espírito de fraternidade. (ONU, 1948)

O art. 3º da Declaração... foi inspirado no contratualismo de Hobbes,


especificamente o direito natural à vida ou autoconservação (estudado no Tema
1 dessa aula). O mesmo artigo inclui as concepções do direito natural à liberdade
estabelecidos por Locke e Rousseau: “Artigo 3º - Todo indivíduo tem direito à
vida, à liberdade e à segurança pessoal” (ONU, 1948).
O caráter universal da Declaração... está também relacionado às visões
iluministas e do idealismo alemão. Podemos perceber este caráter no art. 2º do
documento, quando revela a adoção dos direitos humanos a todos os indivíduos,
seja qual for o gênero, credo, posição ideológica, condição econômica ou origem
cultural.

Artigo 2º - Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as


liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção
alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião,
de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna,
de nascimento ou de qualquer outra situação (ONU, 1948)

Os princípios do direito natural à igualdade proferidos pelas filosofias


contratualistas de Locke e Rousseau são o fundamento dos arts. 7º e 10º da
Declaração... Tais artigos revelam que, perante a lei, todos devem ser tratados
da mesma forma, assim como obter proteção legal que garanta a todos os
indivíduos os mesmos direitos:

Artigo 7º - Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito
a igual proteção da lei. Todos têm direito a proteção igual contra
qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra
qualquer incitamento a tal discriminação.
[...]
Artigo 10º - Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a
sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal
11
independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou
das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja
deduzida. (ONU, 1948)

O direito natural à liberdade presente nas reflexões de Locke e Rousseau


estão presentes no 18º art.. Lembremos que, segundo Locke, as leis e o Estado
devem zelar pela proteção à liberdade de pensamento. A Declaração... da ONU
compreende que essa liberdade está inserida no direito individual de escolher
posicionamentos políticos e religiosos.

Artigo 18º - Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de


consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de
religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a
religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como
em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos. (ONU,
1948)

Outro conceito de Locke relacionado ao direito natural e que influenciou a


elaboração da Declaração Universal do Direitos Humanos diz respeito à
propriedade privada. A filosofia de Locke parte do princípio de que o direito ao
próprio corpo representa a primeira propriedade natural de cada indivíduo. Tudo
aquilo que é empregado com a intenção de garantir a existência desse corpo,
como a terra em que se trabalha ou a casa onde se vive, passam a ser
considerados extensões da propriedade privada. O art. 17º do documento da
ONU explicitamente demonstra a influência do pensamento de Locke:

Artigo 17º - Toda a pessoa, individual ou coletiva, tem direito à


propriedade [...] Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua
propriedade. (ONU, 1948)

No 21º art. do documento, é possível perceber a influência do conceito de


vontade geral elaborado por Rousseau. A ONU e parte considerável de cientistas
políticos reconhecem, hoje, a impossibilidade da prática de uma democracia
direta, ou seja, observa a inviabilidade de necessariamente todos os cidadãos e
habitantes de um país participarem efetivamente de todas as decisões políticas
e elaborações de leis.
Por isso, reconhecendo a necessidade de democracias indiretas,
caracterizadas por eleições de representantes, como presidente e
parlamentares, a Declaração Universal dos Direitos Humanos promove uma
adaptação do conceito de vontade geral de Rousseau em direção à noção de
vontade do povo. Preserva-se, dessa forma, um princípio iluminista e
contratualista de Rousseau em torno da universalidade do direito de participar
das decisões políticas, porém por meio da eleição de representantes. Assim,
12
governos apenas são reconhecidos como legítimos pela ONU se referendados
democraticamente por sua população. Caso contrário, veremos governos
tirânicos ou ditatoriais que agem contra os chamados direitos humanos, pondo
em risco a liberdade política e a igualdade jurídica:

Artigo 21º - A vontade do povo é o fundamento da autoridade dos


poderes públicos: e deve exprimir-se através de eleições honestas a
realizar periodicamente por sufrágio universal e igual, com voto secreto
ou segundo processo equivalente que salvaguarde a liberdade de voto.
(ONU, 1948)

Foi possível observar, com esta breve explanação, a relevância de se


estudar o contratualismo, os princípios universais iluministas e o pensamento
kantiano, para o entendimento da construção dos direitos humanos elaborados
pela ONU por meio dessa Declaração de 1948.

TEMA 5 – CRÍTICA MARXISTA À SOCIEDADE BURGUESA

Neste Tema vamos nos dedicar à análise da crítica que Marx (1818-1883)
faz aos princípios universais do contratualismo, Iluminismo e idealismo alemão.
Marx é um pensador anterior à elaboração da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, de modo que não se trata de realizar a oposição entre marxismo e
direitos humanos, senão a certos princípios defendidos no interior das correntes
filosóficas desenvolvidas entre os séculos XVII e XVIII. Vale dizer que muitos
marxistas hoje defendem os direitos humanos, porém com ressalvas,
essencialmente, ao princípio de Locke em torno do direito à propriedade privada.
Vamos aprofundar estas questões a partir de agora.
As obras Crítica da filosofia do direito de Hegel (1843); Manifesto do
Partido Comunista (1848), escrita em parceria com seu amigo Engels; e O
Capital (1867), demonstram contradições do discurso universalista das correntes
filosóficas contratualistas, iluminista e do idealismo alemão, além do
questionamento do também caráter universal da revoluções burguesas. A
contradição diz respeito ao fato de Marx não considerar que estas revoluções
tenham sido de fato universais, senão meramente burguesas e em favor
unicamente dessa classe.
A constatação de Marx se deve ao fato de que com as revoluções
burguesas, a ascensão do capitalismo e a implementação dos direitos individuais
não significaram o fim dos conflitos e dos problemas sociais. Durante o século
XIX, Marx verificou que trabalhadores viviam em condições de pauperismo. Seus

13
salários eram suficientes para garantir condições adequadas de existência. Além
disso, havia um exército de desempregados e condições indignas de trabalho
nas fábricas. A igualdade jurídica (que privilegiava apenas a classe
economicamente dominante, a burguesia) jamais havia promovido igualdade
social.
A pobreza generalizada da classe trabalhadora fez com que Marx
desmitificasse os discursos otimistas frente aos logros das revoluções burguesas
e do Iluminismo. Exemplos disso são as críticas a afirmações como as de Kant,
que julgava que havíamos alcançado a “paz perpétua” e “a dignidade humana”,
ou a Hegel, fiel à ideia de que havia sido promovido o “fim da história” com o fim
dos conflitos humanos, sobretudo entre senhores e escravos. Essas visões
acabavam por deturpar a realidade. Marx designa com o conceito de ideologia
essas formas de interpretação da realidade.
A ideologia se caracteriza em Marx como o mascaramento da realidade,
com falsas ideias que sistematicamente apresentam visões distorcidas do
mundo. A ideologia ocorre também quando os oprimidos ou explorados passam
a incorporar, como se fossem seus, os preconceitos, os pontos de vista, visões
de mundo ou a moral dos dominadores, incorporando-os em suas subjetividades
como se fossem naturais ou normais.
Segundo Marx, o Iluminismo e as revolução burguesas não puseram fim
aos conflitos no interior das relações humanas. Na visão marxista, a sociedade
liberal e capitalista deu origem às lutas de classes entre burgueses e
proletariado. A burguesia é definida com base na propriedade privada dos meios
de produção (terras, máquinas, fábrica, ferramentas, ou seja, tudo o que é
necessário para garantir o processo de produção); o proletariado, por sua vez, é
caracterizado pela venda da força de trabalho (que pode ser braçal ou
intelectual), correspondendo, portanto, à classe trabalhadora.
A crítica de Marx à concepção de propriedade privada de John Locke (que
acreditava ser ela um direito natural) está fundada na avaliação de que a referida
propriedade está concentrada e sob o domínio hegemônico da classe burguesa.
Contraditoriamente, leia-se dialeticamente, os trabalhadores são explorados
com salários baixos, fortalecendo o acúmulo de propriedades e riquezas nas
mãos da própria burguesia. Esses elementos revelam o caráter conflituoso
presente na sociedade burguesa. Por isso, Marx, ao defender o socialismo,
propõe o fim da propriedade privada, de modo a torná-la coletiva ou de posse

14
estatal. O objetivo desse procedimento seria compartilhar entre todos os
trabalhadores as riquezas oriundas dos processos produtivos, agrícolas e
industriais, no interior das propriedades, agora socializadas.
Segundo Marx, enquanto houver a exploração de um indivíduo sobre o
outro jamais abandonaremos a pré-história da humanidade. Para este filósofo, o
motor da história são as lutas de classes. Ao lado de Engels, Marx afirma, em
seu Manifesto do Partido Comunista “A história de toda sociedade existente até
hoje tem sido a história das lutas de classes” (Marx; Engels, 1977, p. 25). A
verdadeira história da humanidade (ou o fim da história da exploração) será
originada a partir da promoção da emancipação do gênero humano por meio de
uma revolução promovida pela classe trabalhadora. Seria, na visão de Marx, o
fim dos dominadores e dos dominados e a realização da liberdade humana.

NA PRÁTICA

Pesquise em jornais, revistas e sites de defesa de direitos individuais


textos, matérias ou artigos que permitam identificar casos de violações contra os
direitos humanos, sobretudo de segmentos sociais minoritários. Nos últimos
anos, temos visto problemas de discriminação e violência em relação aos direitos
da população LGBTQIA+, da população negra, dos indígenas, pessoas com
deficiências (PcDs), mulheres, entre outros.
Depois de realizar a pesquisa, procure debater em grupo quais são as
situações mais comuns e arbitrárias. Elabore um relatório, observando quais
direitos presentes na Declaração Universal do Direitos Humanos da ONU foram
infringidos. Em seguida, reflita sobre quais medidas ou políticas poderiam ser
adotadas para que os direitos humanos dos grupos sociais investigados sejam
respeitados.

FINALIZANDO

No Tema 1 estudamos a corrente filosófica desenvolvida entre os séculos


XVII e XVIII, conhecida como contratualista ou jusnaturalista. Observamos a
defesa dos chamados direitos naturais e a forma com que autores como Hobbes,
Locke e Rousseau analisam quais direitos naturais devem ser preservados e
protegidos pelo Estado na condição civil.

15
Em seguida, no Tema 2, estudamos as intenções universalistas presentes
no Iluminismo e revoluções burguesas no que diz respeito ao emprego da razão
e aplicação dos direitos individuais. Foi possível observar como esses
movimentos históricos contribuíram também na constituição do idealismo
alemão, estudado no Tema 3, sobretudo com as filosofias de Kant e Hegel.
Evidenciou-se a herança iluminista na construção, por exemplo, do conceito de
dignidade humana de Kant.
O Tema 4 foi dedicado à análise da presença e influência de princípios
contratualistas, iluministas e kantianos no interior da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, elaborada pela ONU no ano de 1948. Constatamos as raízes
filosóficas do que hoje é conhecido como um dos principais documentos
produzidos no decorrer da história da humanidade, à medida que a Declaração...
estabelece direitos como liberdade, igualdade, propriedade privada, segurança,
entre outros.
O Tema 5 permitiu a compreensão da crítica marxista ao pensamento
iluminista e burguês, e conhecemos o entendimento de Marx sobre o que
significa a emancipação humana por meio da superação da luta de classes.

16
REFERÊNCIAS

HEGEL, G. W. F. A fenomenologia do espírito. In: Os pensadores: vol. XXX.


São Paulo: Abril, Cultural, 1974.

HOBBES, T. O Leviatã. São Paulo Martins Fontes, 2003.

KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70,


2009.

LOCKE, J. Dois tratados sobre o governo civil. São Paulo: Martins Fontes,
2001.

MAQUIAVEL, N. O príncipe. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Coleção Os


Pensadores).

MARX, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005.

MARX, K. El capital: Livro 1. México: Fondo de Cultura Económica, 1995.

MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Grijalbo,


1977.

ONU – Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos


Humanos, 1948. Disponível em:
<https://www.ohchr.org/en/udhr/documents/udhr_translations/por.pdf>. Acesso
em: 3 jan. 2022.

ROUSSEAU, J.-J. Discurso sobre a origem e os fundamentos


da desigualdade entre os homens. São Paulo: Nova Cultural, 1997.

ROUSSEAU, J.-J. O contrato social. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção
Os Pensadores, v. 1).

17

Você também pode gostar