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O NONO

EN C O N T R O
F ER N A N D O
COM
PESSOA

Capítulo XVI

Leonor Coelho
Tiago Fialho
Ana Paula Arnaut

“Recordemos como bem assinala Teresa Cristina


Serdeira da Silva que alguns dos diálogos mantidos entre
Ricardo Reis e Fernando Pessoa criam a oportunidade
para comentários sarcásticos e dessacralizadores: sobre
regimes totalitários, religioso, diversas e múltiplas
injustiças e atrocidades que sob muitas máscaras sempre
se exercem sobre os mais fracos.”
Localização na estrutura da obra e
contexto no qual decorre
O excerto objeto desta análise tem lugar, mediante a estrutura externa da obra, no capítulo XVI.

Previamente no capítulo, assistimos:

 A uma progressiva degradação de Ricardo Reis: O poeta dorme agora a manhã inteira, levanta-se
tarde, não toma pequeno-almoço e entregou-se ao ócio e à escrita dos seus versos.
 Às comemorações do dia da Raça: Enquanto Fernando Pessoa passa as comemorações da noite na
praça Luís de Camões recitando-lhe um poema que teria colocado em Mensagem, Ricardo Reis fica
em casa e escreve um poema saudoso a Marcenda.
 Lídia informa a Reis que esta grávida e que pretende ter a criança. O poeta fica inicialmente perplexo,
depois indiferente. Acaba por se comover quando Lídia lhe diz que caso não queria assumir a
paternidade o menino será filho de pai incógnito, como ela.
 Os dias seguintes são passados com Lídia, que está de férias do hotel, até que estas acabam. Reis
regressa a um estado descuidado e às suas noites solitárias. Numa dessas noites, visita-o Fernando
Pessoa.
Temas abordados
1) O Ricardo Reis comenta com Fernando Pessoa que o governo de
Salazar pretende e está a retirar várias estátuas das ruas de Lisboa por as
considerar, por diversos motivos, inadequadas.
Saí sobressaída a perspetiva do regime em relação a várias
personalidades e, por conseguinte, o seu obscurantismo e ignorância.

2) Reis informa a Fernando Pessoa que vai ser pai, revela que está
abalado com a notícia e que ainda não decidiu se assumirá ou não a
paternidade.

3) O par conversa sobre Marcenda e a ode que Reis lhe dedicara


Manifestações de
intertextualidade
Poeta satírico António Ribeiro Chiado (“até há
01 Alusões através das estátuas quem exija a retirada do Chiado, Também o
Chiado, que mal lhes fez o Chiado, Que foi
Luís de Camões (“Vejam o Camões, onde estão chocarreiro, desbocado, nada próprio do lugar
as palavras dele, Por isso fizeram dele um peralta elegante onde o puseram”).
de corte, Um D’Artagnan, De espada ao lado
qualquer boneco fica bem”),
Alusão por referencia
Ao escritor (e político) Pinheiro Chagas 02 direta
(“Tiraram, ou estão para tirar, a estátua do
Pinheiro Chagas, e a de um José Luís Monteiro “Meu querido Reis, se me permite uma opinião,
que não sei quem tenha sido”), isso é uma safadice […] o Álvaro de Campos
também pedia emprestado e não pagava, O Álvaro
de Campos era, rigorosamente, e para não sair da
palavra, um safado”.
Manifestações de
intertextualidade
03 Imitação criativa 04 Paráfrase

“Poema em linha reta” de Álvaro de campos, Paráfrase com a reprodução de alguns versos do
nomeadamente do verso “Eu que tenho sido poema “Saudoso já deste Verão que vejo” no
cómico às criadas de hotel” diálogo entre Reis e Pessoa

Quando Fernando Pessoa o recria na passagem Quando este primeiro insiste em ler uma ode que
“Diz você muito bem, basta lembrar-nos do que dedicara a Marcenda em “diga lá o primeiro verso,
dizia o Álvaro de Campos, que muitas vezes foi Saudoso já deste verão que vejo, Lágrimas para as
cómico às criadas de hotel”, de forma a flores dele emprego, pode ser o segundo, Acertou”.
estabelecer um paralelismo com a situação de
Ricardo Reis e o seu envolvimento amoroso com
Lídia.
Deambulação e
viagem literária
No Ano da Morte de Ricardo Reis, o protagonista revisita espaços físicos reais numa errância
pela capital.

A par desta revisitação de Lisboa física e social surge, paralelamente, uma revisitação literária
partindo dos monumentos físicos e locais característico da cidade de Lisboa.

No excerto em análise o exemplo mais explícito desta conjugação entre viagem geográfica e
literária é patente na primeira parte do diálogo entre Fernando Pessoa e Ricardo Reis, a
propósito das estátuas da Avenida da Liberdade.

Verificamos, então, a presença de uma revisitação a espaços de Lisboa, nomeadamente as


estátuas mencionadas (Estátua de Camões, estátua do Chiado, estátua de Pinheiro Chagas) e os
locais onde se encontra, a avenida da Liberdade e o bairro do Chiado
Com a evocação destes espaços sugerem autores literários e a sua obra (“Tiraram, ou estão para
tirar, a estátua do Pinheiro Chagas, e a de um José Luís Monteiro que não sei quem tenha sido”;
“até há quem exija a retirada do Chiado, Também o Chiado, que mal lhes fez o Chiado, Que foi
chocarreiro, desbocado, nada próprio do lugar elegante onde o puseram”. “Vejam o Camões,
onde estão as palavras dele, Por isso fizeram dele um peralta de corte, Um D’Artagnan, De
espada ao lado qualquer boneco fica bem”).

Deste modo, os espaços físicos conduzem a um outro tipo de deambulações, estas de caracter
literário, mas que também se estendem ao domínio político-social.

Lisboa é palco de ação não só a nível físico, mas também humano. É a partir da referência às
estátuas que se desenrola este comentário à sociedade Salazarista, mas são igualmente
proferidos outros comentários de feição existencial. As estátuas e as ruas aludidas
desencadeiam em Ricardo Reis e Fernando Pessoa um processo de divagação.
Contributo para a caracterização de Ricardo
Reis
Verificamos a presença de um Ricardo Reis:

-Bastante rígido, “suscetível hoje” e pouco “amigável”-

-Caráter conservador - “Ah, quer dizer que da sua Marcenda só poderia ter um filho se casasse com ela, É fácil
concluir que sim, você sabe o que são as educações e as famílias”; “Portanto, se você estivesse vivo e o caso fosse
consigo, filho não desejado, mulher desigual, teria essas mesmas dúvidas”,

-Inicialmente mostra-se indeciso em relação ao seu filho, no entanto acaba por concluir que não irá fugir ás suas
responsabilidades- “ainda não sei se virei a perfilhar a criança”

- “espetador do Mundo” bastante indeciso e inconstante.

-Abulia, desinteresse, apatia, ataraxia, tranquilidade, indiferença, pensamento epicurista, e inevitabilidade da morte.
“Não tenho trabalho nem me apetece procurá-lo, a minha vida passa-se entre a casa, o restaurante e um banco de
jardim”; “é como se não tivesse mais nada que fazer que esperar a morte”
-Desapego e egoísmo epicurista – “sinto que essa criança não me pertence”.
Articulação com o
tempo histórico e os
acontecimentos
políticos
-Regime autoritário que preza o
tradicionalismo e o conservadorismo, este
regime caracteriza-se pelo seu caráter
púdico, pela falta de cultura e por ser
retrogrado.
Regime que impõe a ordem, através da
Uma sociedade rígida nas estruturas sociais e
repressão de tudo o que apresente uma
nos seus preconceitos, já que se verifica que
vertente dissidente ou que não vá de
Ricardo Reis é consciente de que é mal visto
encontro aos ideais do Estado Novo.
o seu envolvimento com uma criada,
-Retirada de algumas estátuas por serem
contribuindo esta diferença social para a sua
consideradas impróprias, estátua de Pinheiro
consternação com a gravidez e indecisão em
Chagas, estátua do Discóbolo, estátua de
perfilhar a criança (“Portanto, se você
António Ribeiro Chiado e estátua de José
estivesse vivo e o caso fosse consigo, filho
Luís Monteiro.
não desejado, mulher desigual, teria essas
mesmas dúvidas, Tal e qual”)
-Regime de ignorantes desprovidos de gosto
artístico Sai evidenciado o caracter censório
-Realidade dos filhos de pai incógnito, ou
do regime e o seu obscurantismo pois não
seja, a possibilidade de um pai não assumir a
sabe ver a real dimensão e importância
paternidade de um filho fugindo às suas
destas personalidades.
responsabilidades
Tal como refere Ana Paula Arnaut, os diálogos entre
Fernando Pessoa e Ricardo Reis possuem diversos
“comentários cáusticos”, sobre “regimes totalitários”,
Exemplificação da “religião” e “injustiças e atrocidades” que dão espaço
a uma análise sociopolítica do tempo histórico do
estratégia de livro.

escrita no excerto
informativo de No encontro em questão entre Reis e Pessoa, temos
muito presente a crítica ao Estado Novo, às suas
Ana Paula Arnaut “injustiças e atrocidades” cometidas “sob muitas
máscaras”, uma delas a retirada de estátuas, apenas
por, segundo o regime, não representarem os seus
ideais.
Sob a máscara de vigilância pelo bom gosto e
adequação, o regime Salazarista age de
acordo com o seu caracter repressivo e
censório, conservador e púdico.
Uma outra “máscara” presente no excerto em
Como fica em evidência na conversa das duas análise é a existência dos pais incógnitos,
personagens e é reforçado pela postura esta prática que afetava sobre tudo, “os
sarcástica de Fernando Pessoa, que mais fracos”.
questiona a validade da retirada da estátua
de Discóbolo, já que se lhe chamam A hipocrisia do conservadorismo, a sociedade
“impúbere”, a figura nua não deveria ferir de convenções e hierarquia rígida são
suscetibilidades. verdadeiras máscaras que submetem os
mais fracos, de condição social inferior
Ambos concluem o assunto admitindo que os como Lídia.
Portugueses começam a enlouquecer
lentamente...
Podemos observar no excerto em análise que,
através deste diálogo entre Ricardo Reis
e Fernando Pessoa são estabelecidos
comentários que abalam as estruturas Em suma, é durante os encontros entre Ricardo Reis e
sociais e políticas, descortinando o Fernando Pessoa que são feitas e expostas as maiores
contexto histórico. críticas aos regimes totalitários, provavelmente o facto
de Pessoa ser um fantasma visível apenas para Reis
A postura confessional de Ricardo Reis e a facilita esta liberdade de opinião.
atitude jocosa de Fernando dão lugar a
comentários mais à revelia do que É nestes momentos que os regimes autoritários são
“parece bem” ou que seria aceite em desvendados, os momentos em que lhes são retiradas
tempos de atropelos à liberdade de todas as “máscaras” utilizadas para controlar a
expressão, e antes mais honestos e população.
denunciatórios do Estado Novo e da
re(pressão) sobre os mais fracos.
CONCLUSÕES

Ação d’ O ano da morte de Ricardo Reis traz para narrativa o “espetáculo do mundo” a que
Ricardo Reis e o fantasma de Pessoa assistem e comentam, quando se encontram e dialogam
sobre a situação política e social de Portugal e da Europa e sobre a vida do interlocutor, à qual
Fernando Pessoa reage de modo irónico e cínico. O discurso ficcional cruza-se com o discurso
oficial da História, numa rescrita subjetiva dos acontecimentos. Os encontros de Reis e Pessoa
são, deste modo, os momentos do livro onde se propiciam discussões de índole filosófica,
literária, existencialista, política e social.

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