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Por uma outra globalização – Milton Santos

Resumo: SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento


único à consciência universal. 5. ed. Rio de Janeiro : Record, 2001.

Eduardo Sens dos Santos


eduardo_sens@yahoo.com

Introdução geral

É preciso perceber três espécies de globalização se queremos escapar


à crença de que este mundo, assim como nos é apresentado, é a única opção
verdadeira: há o mundo tal como nos fazem vê-lo, com a globalização como
fábula; o segundo é o mundo como ele é, com a globalização como
perversidade; e o terceiro, o do mundo como ele pode ser, o da outra
globalização.
A globalização tem três faces, portanto: é uma fábula, na medida em que
fantasia-se acerca de mitos como a comunicação universal, o fim do Estado e a
aldeia global.
O outro lado é a globalização perversa, que ataca a maioria dos países
pobres, trazendo miséria, fome e doenças. Mas as mesmas técnicas que permitem
em países ricos a proliferação da ideologia perversa permitirão aos países pobres
um movimento de baixo para cima, que imporá uma nova ideologia mais
humana.

A produção da globalização
Como só se pensa na crise financeira, a crise política, a crise social e a
crise moral ficam em segundo plano e se aprofundam mais.
A globalização é produzida com uma série de ferramentas, como a
unicidade da técnica, que faz com que todo o mundo tenha acesso às últimas
novidades técnicas. A informação é outro expediente que permite a técnica única
e que leva à convergência de momentos, ou seja, à ocorrência em todos os
grandes centros dos efeitos das mudanças no resto do mundo. Mas essa
informação é deturpada e também gera efeitos.
A unicidade da técnica e a convergência de momentos fazem com que
a o único motor do mundo seja a mais-valia. Tudo se faz para aumentá-la e,
em conseqüência, a competitividade aumenta.
O motor único também é possível graças ao conhecimento do planeta, à
medida que é possível escolher lugares e materiais mais lucrativos.
Tudo isso leva a crer que o período por que passamos é uma crise, que
requer uma mudança estrutural.

Uma globalização perversa


A globalização perversa é baseada em fábulas como a da comunicação
global, do espaço e tempo contraídos, da desterritorialização e da morte do
Estado. São fábulas porque a informação é centralizada e manipulada no
interesse das grandes empresas. A diminuição de espaço e tempo pregada só
acontece para poucos. A globalização perversa precisa dos territórios e dos
governos internos para se manter e a morte do Estado, por sua vez, só aproveita
às poucas empresas hegemônicas.
Todas essas fábulas são inculcadas nos cidadãos antes mesmo de qualquer
ação.
A busca incessante pelo dinheiro leva à competitividade que gera
individualismos e violência. O discurso hegemônico, por sua vez, faz isso
parecer inevitável. Sai de cena então a solidariedade e cresce o desemprego e
a miséria.
Os homens não são mais cidadãos, mas meros consumidores,
comandados pelas técnicas de marketing e design, impostas pela suposta
“informação”.
A ciência (e aí se incluem as pesquisas eleitorais) é ideologizada e
também cai num círculo vicioso para legitimar a própria ideologia de que é
vítima.
Nascem daí a violências estrutural e a perversidade sistêmica, onde a
competitividade e a potência (falta de solidariedade ou prevalência sobre os
outros) puras, unidas à ideologia neoliberal, fazem parecer normais as
exclusões sociais. Fala-se muito em violência da sociedade de nosso tempo,
mas esquece-se que as violências que mais percebemos são apenas derivadas.
A violência estrutural resulta da presença, em estado puro, da
competitividade, da potência e do dinheiro. A essência da perversidade é a
competitividade, uma guerra em que tudo vale para conquistar melhores
espaços no mercado.
Na evolução das sociedades o progresso da ciência caminhava em direção
ao da humanidade. A revolução industrial quebrou esse ritmo, mas as idéias
filosóficas e morais da época conseguiram manter um contrapeso. O resultado foi
o alcance do Estado Social. A globalização perversa ainda consegue quebrar esse
processo e faz o homem retornar ao estado primitivo do cada um por si. Milton
Santos entende, portanto, que o homem caminha para o progresso, mas há
algumas falhas nessa caminhada.
Além disso, os avanços tecnológicos apenas servem aos interesses do
mercado, sem consideração com os da humanidade.
Por outro lado, as grandes empresas passam a dominar o cenário político e
chantageam governos para que concedam incentivos fiscais na instalação.
De todo esse processo advém a pobreza estrutural, excludente, que a
ideologia neoliberal (Hayek) insiste ser necessária, inevitável e natural e que,
por isso, deve-se em alguma medida estimulá-la. Se a crise é estrutural, não
são possíveis soluções não-estruturais. A ruptura como o sistema da
globalização perversa há de ser total.
Nesse quadro, o papel dos intelectuais é quebrar o pensamento único,
fazendo a dialética, porque o globalitarismo só é forte se encontra
contrapartida interna. Quer dizer, depende de cada país o modo com vai se
inserir na globalização.

O território do dinheiro e da fragmentação


Antigamente as diferentes velocidades entre os Estados não separavam os
agentes, pois a política compensava a diversidade, assegurando a soberania de
grandes diferenças e conduzia ao enriquecimento dos direitos sociais.
A globalização traz a ideologia de que a fluidez é um bem comum,
quando na verdade apenas alguns agentes podem utilizá-la. Imponto o
ritmo, o mercado controlado pelas grandes empresas busca apenas expansão
e não união. O mundo é forçado a se amoldar às vontades e necessidades das
empresas.
Como conseqüência, fragmenta-se o território, com as empresas
hegemônicas criando ordem para si e desordem para o resto. Em reação a
esse fenômeno criam-se novas soberanias, como o país basco.
Na agricultura, por exemplo, há uma demanda externa de racionalidade,
que leva à militarização do trabalho: deve-se seguir as regras hegemônicas da
produção (soja, por exemplo). Isso leva à servidão e ao desemprego.
Por isso, diz-se que o campo é o lugar da vulnerabilidade e a cidade o
da resistência. Esta característica da cidade pode ser explicada porque nela
as racionalidades da globalização se difundem mais extensivamente, ainda
mais quando paralelamente há produção de pobreza. Mas ambos estão
subordinados às lógicas das empresas globais, que impedem as regulações
locais. O que vale é a norma global. Daí criarem-se regionalismos
exacerbados que ameaçam a integridade nacional. A vida acaba obedecendo
às lógicas exógenas.
Milton Santos percebe a necessidade de uma federação de lugares, a
partir de células locais, uma regionalização não fragmentada para que se
possa atuar na federação.
Outra dado que pode ser reunido é o das metamorfoses dos conceitos de
território e dinheiro. O território passa a ser a identidade de determinado lugar, ao
passo que o dinheiro não representa mais apenas elemento de troca, mas fator de
avaliação das características de dado território. Como exemplo dessa constatação
lembro os avaliadores de riscos dos países, que se especializaram em estudar o
valor que determinados lugares tem na mercado internacional.
O domínio do dinheiro acaba tendendo a homogeneizações, que são
contrariadas aos poucos pelas resistências locais. Na América Latina esse
processo se dá através do macrocrescimento de algumas empresas. Esse
crescimento satisfaz a busca dos governos neoliberais pelo aumento do PIB. Por
isso, é necessária a decisão das minorias de participar ativamente do processo,
decisão que fortalece todos os entes da federação.
O autor apresenta a teoria das verticalidades e horizontalidades. As
verticalidades seria forças de ordens externas e superiores que atendem a
interesses corporativos – pontos que formam “o espaço de fluxos”. O poder
assim exercido leva o processo organizacional a se dar no ritmo dos
macroagentes que não dão espaço aos pequenos. Esse modelo tem a característica
de ser construído para ser indiferente ao seu entorno. Suga-se até não dar mais,
depois, adiós!
Ao passo que se pode caracterizar as verticalidades como forças
centrífugas, as horizontalidades são centrípetas; são forças que não são criadas
por políticas estabelecidas, pois são fruto da adaptação a situações que exigem
dos atores permanente estado de alerta.
São a contra-racionalidade, que contraria as racionalidades hegemônicas
mesmo sem uma política uniforme. É o entendimento difuso de que as
verticalidades não são boas. Por apresentarem essa característica, são propícias a
formar solidariedades.
Essa luta de verticalidades e horizontalidades resulta num processo
dialético que impede que o espaço de todos – o espaço banal – seja sufocado.
Junto ao conceito de espaço Milton Santos dá o conceito de lugar: espaço em que
se exerce a cidadania e se pode existir (p. 114).
A geografia revela que as aglomerações e as situações de vizinhança
fazem com que as pessoas não se subordinem à racionalidade hegemônica, se
entregando com mais facilidade às manifestações contra-hegemônicas, num
movimento de baixo para cima. É a dialética da contra-racionalidade.

Limites à globalização perversa


A escassez de recursos e a incitação ao consumismo fazem com que os
mais pobres percebam sua posição e desvendem a mentira do discurso,
permitindo o surgimento de variáveis ascendentes (que se impõem) e
levando à desobediência. Assim, são postos limites à racionalidade
dominante.
Desvendada a mentira, percebe-se que a imperatividade e unicidade
da técnica não existem e não são possíveis porque as técnicas têm que
guardar relação com o lugar que serão aplicadas. A política, no entanto,
pode ser imperativa e até permitir a técnica única.
A vida cotidiana se opõe à técnica do just-in-time, porque respeita as
diferenças e cresce com elas. As múltiplas formas do cotidiano são uma
heterogeneidade criadora.
Com a produção hegemônica de necessidades e a incorporação de
modos de vida também hegemônicos são criadas duas situações distintas: a
escassez dos ricos, que quanto mais consomem, mais sentem necessidade de
consumir, ficando em permanente estado de escassez. Cria-se a rotina da
falta de satisfação – comprar um bom vídeo cassete não basta, então
compra-se um DVD, que também não basta, e compra-se um home theater,
que acaba sendo grande demais para a sala; então, faz-se uma sala maior e
aí por diante.
A escassez dos pobres é diferente, mas tem melhores frutos. Como não
conseguem e talvez nunca conseguirão consumir, por esse mesmo sentimento
de escassez passam a buscar bens imateriais e infinitos, como a
solidariedade, por exemplo. A escassez do pobre leva a novas descobertas e
ao entendimento do mundo.
Mas a pobreza não pode chegar à miséria, que aniquila. A pobreza é
ativadora de lutas e leva à tomada de consciência. Elabora-se assim a
política dos de baixo, alimentada pela necessidade de existir e pela desilusão
das demandas não satisfeitas. Parte-se para a rebeldia.
Os movimentos organizados, por sua vez, devem imitar o cotidiano dessas
pessoas para se tornarem perceptíveis. Os partidos devem ser o espelho de seus
eleitores.
A questão da classe média também é interessante. Ela teve seu apogeu
e agora sente de perto a crise: antes era a maior beneficiária do crescimento
econômico, mas agora não tem a força política de antigamente e sente a
escassez e a insegurança de perto. Num primeiro plano começa a lutar por
vantagens individuais que, com a tomada de consciência, tornam-se sociais e
se identificam com os clamores dos pobres. Passam a ter a função de
implantar a democracia forçando o ideário e as práticas políticas.

A transição em marcha
Milton Santos observa duas conseqüências da evolução causada pela
escassez: a primeira é a nova significação da cultura popular e a outra é a
produção de condições empíricas para a emergência das massas populares.
Nota-se uma contraposição entre a cultura de massas e a cultura popular.
A primeira tenta se impor mas é obstada pela cultura popular, que se difunde à
medida que a escassez faz nascer os regionalismos. Como o povo não dispõe dos
meios para participar da cultura de massas (turismo, por exemplo), cria no
trabalho e no cotidiano sua cultura popular, numa aliança da espontaneidade à
ingenuidade.
Como condições empíricas, ressalta-se a mudança da divisão do trabalho
por cima e por baixo. A primeira é a da globalização perversa e obedece a
técnicas de racionalidade hegemônica. A divisão por baixo produz solidariedade
dependente unicamente dos vetores horizontais do território e da cultura local.
Na transição para a globalização includente, o homem passa a ser o
centro; relega-se a um segundo plano a importância do mercado e do
dinheiro em estado puro. Busca-se garantir o mínimo para a satisfação das
necessidades de uma vida digna, abolindo a regra de competitividade e
adotando a da solidariedade.
O povo perceberá também que os mercados comuns são representativos
apenas dos interesses das grandes potências. A “cooperação” (Alca e Mercosul) é
interesseira. Tomará consciência de que é terceiro mundo e vai rever os pactos
globalitários.
Outro dado é a crescente desordem da vida social, que permite
antever a queda do modelo econômico globalitário. Apesar de as potências
perceberem esta desordem e buscarem contorná-la, a sociedade ainda assim
se mantém desordenada, porque o modelo é insustentável. A solução acaba
sendo simples: as populações que não podem consumir o ocidente
globalizado recusam a globalização.
Milton Santos dá um conceito de nação ativa e passiva: a primeira seria,
na visão globalizante, a nação que obedece aos desígnios externos produzindo
ideologia. A passiva é residual, é o que não é ativa. Trabalha com o intelectual
público que vive uma contradição: é obrigado a se conformar em suas atividades
com a racionalidade hegemônica, mesmo estando insatisfeitos e inconformados.
A vantagem é que a nação passiva é fortemente ligada ao cotidiano, tendo
base mais sólida, de modo que, com a maioria a seu lado, é possível pôr em
prática seus projetos de nação.
O papel dos intelectuais nesse processo é mostrar analiticamente as
manifestações de luta e de resistência à hegemonia dominante, permitindo
que essa visão seja utilizada pela sociedade como elemento de postulação de
uma outra política social (p. 158). O choque das realidades tem papel
importante na mudança.
A globalização atual não é irreversível e, aliás, já se mostra presente
uma dissolução das ideologias, levada a cabo pelo choque das realidades com
as ideologias. (p. 159)
O futuro se dará de acordo com as escolhas feitas sobre dois valores: os
essenciais ao homem, como a liberdade e a dignidade; e os valores contingentes
(incertos), ou seja, eventuais da história de determinado momento. Da
conjugação entre essas duas classes de valores é que nascerá a sociedade futura.
A mudança já é visível porque a ideologia perde a sustentação, já que
ninguém consegue consumir o que existe em oferta. É preciso uma nova
ideologia, que dê valor ao trabalho de baixo, verdadeiro motor para o
alcance do futuro.
O computador acaba sendo uma boa ferramenta para a mudança, porque
não requer grande investimento e se dissemina rapidamente no corpo social.
A aglomerações humanas permitirão maior identificação das situações e
observarão o peso da cultura popular. A própria mídia atentará para o fato de que
a população não é homogênea e, portanto, será obrigada a deixar de representar o
senso comum imposto pelo pensamento único.
Para formar um novo mundo, é preciso também consciência
individual, que inicia com a descoberta, passa pela visão sistêmica e culmina
com a discussão interior e o debate público, que permite enxergar os
porquês. Essa consciência do “ser mundo” permite superar o endeusamento
do dinheiro e enfrentar uma nova trajetória.
A política terá também grande papel, mas deve aproveitar as atuais
técnicas hegemônicas e dar a elas novo uso e nova significação.

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