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MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA

EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ DE DIREITO DA COMARCA DE


SEARA

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA


CATARINA, por seu Promotor de Justiça ao final assinado, com
fundamento nos arts. 127 da Constituição da República, nos arts. 43, 74,
III, e 81, §1º, do Estatuto do Idoso, bem como nos arts. 6º e 52 do Código
de Defesa do Consumidor, em substituição à idosa Ernilda Colombo
Wazlawick, brasileira, viúva, filha de Avelino Colombo Wazlawick e de
Rosa Keller, nascida em Taquara, Rio Grande do Sul, em 2 de fevereiro
de 1934, com atuais 76 anos de idade, CPF nº 933.031.499-68, RG nº
2321342, SSP, SC, residente em Linha Nova, interior de Seara, propõe
AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE NEGÓCIO JURÍDICO
CUMULADA COM REPETIÇÃO DE INDÉBITO E INDENIZAÇÃO POR
DANOS MORAIS, em face de:

BANCO BMG S.A., pessoa jurídica de direito privado, CNPJ


nº 61.186.680/0001-74, com domicílio na avenida Álvares Cabral, 1707,
Bairro Santo Agostinho, Belo Horizonte, Minas Gerais, CEP 30.170-001.

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1. Objetivo da ação

Esta ação tem por objetivo obter provimento jurisdicional que


declare a inexistência dos contratos nº 172326562 e 172326832, que
indevidamente vincularam a idosa Ernilda Colombo Wazlawick e
debitaram de seu benefício previdenciário o valor total de R$ 1.924,92
(R$ 1.017,36 + R$ 907,56), determinando-se a devolução em dobro dos
valores cobrados indevidamente e a condenação da requerida ao
pagamento de indenização por danos morais.

2. Legitimidade ativa

O Ministério Público tem reconhecida, no art. 74, III, do


Estatuto do Idoso, sua legitimidade para, em substituição a idoso em
situação de risco, propor todas as espécies de ações pertinentes à sua
defesa, o que inclui, evidentemente, direitos individuais disponíveis e a
ação que ora se intenta.

Em se tratando de idoso em situação de risco, considera a


Lei nº 10.741/2003 a atuação ministerial justificada em razão do
interesse social, o que se amolda ao disposto no art. 127 da Constituição
da República (defesa de interesses sociais).

No caso dos autos, como se verá adiante, a idosa Ernilda


Colombo Wazlawick está em situação de risco por ação da sociedade
(Banco BMG) e por sua condição pessoal de idosa e de parca instrução
(art. 43, I e III, do Estatuto).

3. Síntese fática

Ernilda Colombo Wazlawick contratou com o Banco BMG S.A.


“empréstimo pessoal” com autorização para que o débito das prestações
fosse consignado na folha de pagamento de seu benefício previdenciário
perante o INSS.

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Tal contrato, assinado pela idosa, tomou o número


163647344 e consta à fl. 80 do Inquérito Civil Público nº
06.2010.003468-5, que segue anexo.

Todavia, sem qualquer assinatura ou autorização expressa


da idosa, em seu próprio benefício, a instituição financeira requerida
resolveu criar dois novos contratos de refinanciamento daquele
inicialmente celebrado com a idosa.

Assim, foram criados os contratos nº 172326562 e


172326832. Diz-se “criados” porque tais contratos não foram
contratados pela idosa, como deveriam ser, de modo que são, no
plano jurídico, inexistentes.

A informação chegou ao conhecimento da Promotoria de


Justiça de Seara por representação do diligente Coordenador do Procon
de Seara, que, em processo administrativo, notificou por mais de uma
vez o requerido a apresentar os contratos nº 172326562 e 172326832.

O Banco BMG S.A., todavia, limitou-se a apresentar


“comprovante de operação”, documento que não contém a assinatura da
idosa ou qualquer elemento que permita concluir ter ela aderido ao
contrato mediante declaração válida de vontade.

Nem mesmo diante de requisição do Ministério Público, no


curso do inquérito civil, o requerido se dignou a apresentar as cópias dos
contratos, apresentando resposta extremamente evasiva, ficando
evidente não terem sido efetivamente celebrados com a idosa.

Registre-se que Ernilda Colombo Wazlawick vive no interior


do Município de Seara, na zona rural, tem 76 anos de idade e recebe
atualmente um salário mínimo de aposentadoria por idade.

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4. Direito

4.1. Linhas gerais – Estatuto do Idoso

Antes mesmo de falar em requisitos de validade ou de


eficácia dos negócios jurídicos, a doutrina civilista trata dos requisitos de
existência. São os seguintes: “a declaração de vontade, a finalidade
negocial e a idoneidade do objeto”1.

Carlos Roberto Gonçalves esclarece que “a vontade é


pressuposto básico do negócio jurídico e é imprescindível que se
exteriorize. Do ponto de vista do direito, somente a vontade que se
exterioriza é considerada suficiente para compor suporte fático de
negócio jurídico”2.

No caso dos autos, como se vê, não há nem mesmo vontade.


A idosa procurou o Procon de Seara justamente porque não havia
contratado qualquer tipo de refinanciamento e porque percebeu o
desconto de prestações estranhas em seu benefício previdenciário.

O contrato, assim, é inexistente, razão pela qual deve tal fato


ser declarado por sentença judicial.

Para o Estatuto do Idoso, é obrigação do Estado e da


sociedade assegurar à pessoa idosa a liberdade, o respeito e a
dignidade, como pessoa humana e sujeito de direitos civis, políticos,
individuais e sociais, garantidos na Constituição e nas leis (art. 10,
caput).

De fato, não se pode entender que no Estado Democrático de


Direito em que pretende se tornar o Brasil perpetue-se ainda hoje a
histórica conivência desrespeitosa a direitos fundamentais da pessoa
idosa. Se é objetivo da República construir uma “sociedade solidária”

1
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Vol. I. São Paulo : Saraiva, 2003.
p. 306.
2
Idem, p. 306.
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(art. 3º da CR/88), todas as políticas públicas – e até mesmo a


hermenêutica jurídica que queira levar a sério os direitos fundamentais 3
– deverão pôr-se de acordo com dois mínimos éticos: o respeito à
dignidade da pessoa e o dever de solidariedade.

No caso que se põe sobre Vossa mesa, como se pode


observar pela larga prova já produzida no inquérito civil, a idosa Ernilda
Colombo Wazlawick vem sendo desrespeitada por uma gigante do ramo
financeiro, que desconta de seu benefício previdenciário valores que
jamais foram contratados.

4.2. Vulnerabilidade do consumidor – devolução em dobro

Com a edição da Lei nº 8.078/90 adotou o direito brasileiro o


princípio da vulnerabilidade do consumidor (art. 4º, I), verdadeira
“espinha dorsal”4 do sistema protetivo e princípio sobre o qual se
assenta toda a linha filosófica do movimento que culminou com a edição
do Código de Defesa do Consumidor.

De fato, não há outra forma de encarar atualmente as


relações entre consumidor e fornecedor sem se atentar para o fato de
que o consumidor é a parte mais fraca das relações de consumo. É, dito
de outro modo, a parte que se apresenta frágil e impotente diante do
poder econômico, técnico e até mesmo político do fornecedor.

Pautado por este princípio é que o Código de Defesa do


Consumidor definiu como direitos básicos do consumidor o direito “à
efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais,
individuais, coletivos e difusos” (art. 6º, VI).

E, além da disposição genérica, para casos especiais, sempre


atento à singular vulnerabilidade do consumidor, previu a Lei nº 8.078/90
a obrigação de devolução em dobro do valor cobrado em
3
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo : Martins Fontes, 2002.
4
ALMEIDA, João Batista de. Manual de direito do consumidor. São Paulo : Saraiva, 2003.
p. 15.
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excesso, acrescido de correção e juros legais. A regra consta


literalmente no parágrafo único do art. 42 do Código: “O consumidor
cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito,
por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de
correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano
justificável”.

Na verdade, o art. 42 do Código de Defesa do Consumidor,


além de equilibrar as forças do jogo econômico, tem função dissuasora
evidente. Ou o fornecedor acerca-se de todas as garantias ao determinar
a cobrança de consumidor ou, como é corrente no mundo todo, será
apenado pela devolução do dobro do que recebeu.

Diante da inexistência do contrato, por óbvio não poderiam


ter sido descontados do benefício previdenciário da idosa os valores
registrados nos documentos de fls. 128 e 129.

Tais valores, assim, foram efetivamente cobrados pelo


requerido, e o foram indevidamente porque não há nenhum contrato que
autorizasse a cobrança.

4.3. Indenização por danos extrapatrimoniais

Não basta, como é óbvio, a mera devolução em dobro dos


valores cobrados, obrigação que na verdade é pena imposta pelo
ordenamento civil ao fornecedor que extrapola os limites da cobrança.

Na situação configurada nos autos, é preciso reparar


integralmente os danos causados aos consumidores e, sob este aspecto,
vale lembrar que o art. 6º, VI, do Código de Defesa do Consumidor,
garante o direito básico do consumidor de obter “efetiva prevenção e
reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e
difusos”.

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O valor da indenização a ser pleiteada, também por esses


motivos, deve levar em conta o desvalor da conduta, a extensão do dano
e o poder aquisitivo da requerida. Deve-se, em suma, condenar também
a requerida ao pagamento de indenização pelos danos morais causados
pelo longo transtorno a que a idosa foi submetida.

A jurisprudência tem abonado a tese de que a indenização


por danos morais independe da devolução em dobro do valor cobrado
abusivamente, já que as causas são diferentes: na devolução em dobro
aplica-se pena e ocorre parcialmente o ressarcimento do dano material
causado; na indenização por danos morais, protege-se outra esfera de
direitos, os direitos extrapatrimoniais, que devem igualmente ser
tutelados.

Os precedentes abaixo colacionados amoldam-se por


analogia ao caso dos autos.

RELAÇÃO DE CONSUMO. CONTRATAÇÃO DO SERVIÇO DE


INTERNET DE ALTA VELOCIDADE - ADSL. FALHA NO SERVIÇO.
DANOS MORAIS E MATERIAIS. PRELIMINAR DE NULIDADE DA
SENTENÇA AFASTADA. 1. Tendo em vista a violação da
fornecedora do serviço ao dever de informação e a
configuração da falha na sua execução, impõe-se o dever de
indenizar, forte do artigo 14 DO CDC. 2. O pagamento por
serviço não prestado merece ser integralmente ressarcido,
sob pena de enriquecimento ilícito, o que é vedado no
ordenamento jurídico. Admite-se na hipótese, ainda, a
restituição do montante em dobro, nos termos do
artigo 42, parágrafo único, do Código de Defesa do
Consumidor. 3. Danos morais que se aplicam visando
ao caráter dúplice do instituto, qual seja,
compensatório, pela desconsideração à pessoa do
consumidor, cobrado por serviço não usufruído, e
dissuasória, evitando, assim, que conduta futura
semelhante seja novamente praticada. Verba
indenizatória que merece, todavia, ser minorada, devendo
ser proporcional à lesão sofrida sem representar

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enriquecimento indevido da parte. Recurso parcialmente


provido5.

DANO MORAL. APOSENTADO. DESCONTO INDEVIDO.


EMPRÉSTIMO CONSIGNADO. CONTRATO INEXISTENTE. O
DESCONTO CONSIGNADO EM PAGAMENTO DE APOSENTADO
JUNTO AO INSS LEVADO A EFEITO POR INSTITUIÇÃO
BANCÁRIA, SEM A AUTORIZAÇÃO DAQUELE E SEM CONTRATO
DE EMPRÉSTIMO QUE LHE DÊ SUPORTE, CAUSA GRANDE
ABALO EMOCIONAL, ANGÚSTIA E APREENSÃO AO LESADO,
VINDO A JUSTIFICAR A FIXAÇÃO DA REPARAÇÃO POR DANOS
MORAIS EM VALOR MAIS ELEVADO6.
5. Pedidos

Diante do que foi dito, o MINISTÉRIO PÚBLICO DO


ESTADO DE SANTA CATARINA requer:

a) o recebimento, registro e autuação da presente ação;

b) a citação da requerida para, querendo, apresentar a


defesa que entender pertinente;

c) a produção de todos os meios de prova admitidos,


notadamente a prova testemunhal e o depoimento pessoal da idosa;

d) a declaração da inexistência dos contratos nº 172326562


e 172326832 do Banco BMG S.A.;

e) a condenação do Banco BMG S.A.: e1) à devolução em


dobro dos valores cobrados indevidamente, no valor total de R$
3.849,84; e2) ao pagamento de indenização por danos morais, no valor
mínimo de R$ 20.000,00.

5
Recurso Cível Nº 71001122886, Primeira Turma Recursal Cível, Turmas Recursais,
Relator: Ricardo Torres Hermann, Julgado em 26/04/2007.
6
20060810055700ACJ, RELATOR CARLOS PIRES SOARES NETO, SEGUNDA TURMA
RECURSAL DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS E CRIMINAIS DO D.F., JULGADO EM
04/03/2008, DJ 26/03/2008 P. 180). (VALOR DA CONDENAÇÃO MANTIDO EM R$
5.000,00).
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f) a condenação da requerida em custas, despesas


processuais e honorários advocatícios (estes conforme art. 4º do Decreto
Estadual nº 2.666/04, em favor do Fundo de Recuperação de Bens
Lesados do Estado de Santa Catarina7).

Dá-se à causa o valor de R$ 23.849,84 (vinte e três mil,


oitocentos e quarenta e nove reais e oitenta e quatro centavos).

Seara, 15 de outubro de 2010

Eduardo Sens dos Santos


Promotor de Justiça

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CNPJ: 76.276.849/0001-54, Conta corrente: 63.000-4, Agência 3582-3, Banco do Brasil.
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