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E OS DEUSES OLÍMPICOS
EDUARDO SUGIZAKI*
Revista Fragmentos de Cultura, 8 (5)
Goiânia, set/out 1998.
Resumo: com base na leitura do último dos Cinco prefácios a cinco livros não escritos,
apresenta-se como Nietzsche apreendeu da mitologia homérica e hesiódica o princípio
agônico de sua filosofia, pelo qual interpreta a vida grega e critica a moderna. **
Palavras-chave: Nietzsche, agônico, mito, Éris, moral.
Abstract: based on the reading of the fifth of the Five prefaces of five unwritten books, the
article presents how Nietzsche learnted from Homers mythology his philosophy by which he
interpreted Greek life and criticised modern life.
Key words: Nietzsche, myth, Eris, moral, agonising.
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redação acabada; como os fragmentos póstumos, não foram publicados pelo autor. No caso de
Nietzsche, deter a interpretação no âmbito das obras publicadas por ele, seria estreitar seu
alcance. Análise de superfície que ignora o subterrâneo. Se uma publicação para o filósofo
alemão é um ato de guerra, a busca de elucidação do seu pensamento deve lançar mão de todo
o material póstumo, onde ele esconde a estratégia.8 O quinto prefácio, A justa de Homero, é
um texto muito elucidativo do pensamento nietzschiano, daí a atenção que deve merecer.
Enquanto os princípios apolíneo e dionisíaco, conceitos articuladores da obra
publicada no início de 1972, O nascimento da tragédia, tornaram-se muito conhecidos pela
crítica e sua presença no último Nietzsche bastante evidenciada pelos intérpretes, o princípio
agônico manteve-se de mais difícil acesso aos comentadores. Daí o interesse no texto de que
oferecemos, a seguir, o esquema.
Nietzsche introduz o texto com a seguinte tese: não há uma natureza humana distinta
da natureza e, por isso, as aptidões terríveis do homem são o solo de que nascem as
faculdades nobres e elevadas, embora apenas as últimas sejam reconhecidas, comumente,
como humanas.
A seguir, apresenta o caráter cruel dos gregos, seu desejo selvagem de destruição,
que se revela no direito do vencedor de guerra, matar os homens, destruir a cidade, escravizar
mulheres e crianças, pelo qual o grego satisfaz, como na guerra do Peloponeso, sua
necessidade de dar livre curso ao ódio e outros sentimentos reprimidos. Afirma que os
modernos não podem compreender a exultação delirante dos gregos diante das cenas da
guerra de Tróia, na Ilíada, ou a multiplicação das esculturas cênicas de guerra, porque não o
fazemos do modo grego. Assume a tarefa de no-lo ajudar.
O mundo homérico é ilusão artística que encobre o pré-homérico, o mundo
assustador e repelente dos filhos da Noite (Nix): a Discórdia (Éris), o Amor Sexual, o
Sarcasmo (Momo), a Velhice (Gueras) e a Morte (Tânatos).9 É o mundo irrespirável de
Hesíodo, ante o qual os gregos criaram, graças à bruma purificadora que, de Delfos, se
expande sobre a Hélade, o outro mundo mítico, o de Úrano, Crono, Zeus e os combates dos
Titãs, onde a crueldade da guerra e da vitória é seu alívio, jubilação e libertação. O orfismo,
tal como Nietzsche o representa, sucumbe perante esse mundo de combate e crueldade, com a
atitude de desgosto pela existência e a compreensão de que ela é culpa e pena a expiar.
Considerando a resposta órfica impropriamente grega, apresenta o sentido que os helenos
teriam dado à vida de combates e vitórias: a legitimidade moral do instinto de combater e da
alegria de vencer, expressa na deusa Éris.
Nietzsche cita o texto de Os trabalhos e os dias sobre as duas deusas Éris: a que
fomenta a má Guerra e a dissensão e a que conduz ao trabalho, por meio do ciúme e da inveja.
A primeira e mais antiga Éris é a filha da Noite. A outra foi posta nas raízes da Terra e entre
os homens por Zeus.
Nietzsche ataca aos filólogos que não reconhecem a autenticidade dos versos de
Hesíodo sobre o ciúme e a inveja entre os artesãos, que caracterizam a boa Éris. Do lado da
autenticidade dos versos, Nietzsche evoca Aristóteles,10 que não tem dificuldades em ver os
ciúmes e a inveja como características da boa Éris. Evoca também a vida do grego. Invejoso,
não o sente como um defeito seu, mas como uma influência de uma divindade benfeitora.
Também os deuses são invejosos. Daí que o grego ofereça a melhor parte de seu excesso de
glória, de riqueza, de felicidade aos deuses, inclinando-se perante eles para não suscitar-lhes a
inveja.
Nietzsche destaca que a inveja e a disputa reinantes legitimamente entre os homens
têm um limite expresso pelo mito. Não deve nunca voltar-se contra os deuses. O combate
entre o humano e o divino sempre redundaria em desastre para o primeiro, como para Tâmires
3
mítica, primitiva e obtusa, seu pensamento é inteiramente tomado pelo princípio ético nascido
no mito. A filosofia nietzschiana instaura-se como filosofia agônica. O texto sobre o agon
grego é agônico quanto à forma, ao conteúdo e ao destinatário. Ele é uma guerra à moral
moderna, a que os Wagner estão a ceder. Guerra à burguesia liberal, ao seu otimismo, à sua
antipatia pelo agônico, pelo cruel, pelo sacrifício, pelo trágico, pelo heróico, pelo sangue
derramado. Guerra à tradição filosófica que privilegiou a leitura dos clássicos do século IV.
Nietzsche pensa poder melhor filosofar com a leitura do mito grego e dos que lhe são mais
próximos, os pré-socráticos. Em Platão e Aristóteles encontra subsídio histórico para
demonstrar o caráter agônico dos gregos.
Se valoriza de forma tão alta o mito, não pretende dar a ele a autoridade do seu
discurso. Sem fundamentar-se em verdade absoluta, sem requisitar a proteção olímpica,
realiza um exercício puro de pensamento intenso, mas hipotético. A abrangência da
interpretação é vasta, cobre o Ocidente, mas humana. Falível, pode ser contestada por uma
outra, mais explicativa, mais abrangente, mais profunda. Filosófico é seu registro.
NOTAS
1 Para além de bem e mal § 259. Cf. tb. § 44. Nietzsche, F. Werke, Kritische
Studienausgabe. Berlim: Walter de Gruyter & Co., 1988. Traduções utilizadas: Œuvres
philosophiques complètes. Paris: Gallimard, 1971-1997; Opere. Piccola Biblioteca. Milano:
Adelphi, 1973-1991. A citação dos fragmentos póstumos será feita pela indicação do volume
da edição alemã, em algarismos romanos, seguido do número do fragmento, em algarismos
arábicos.
Quanto à incorporação da agon grego no último Nietzsche, cf. LEBRUN, G. A dialética
pacificadora. In: Almanaque, n. 3, 1977, p. 33; MARTON, S. Nietzsche, das forças cósmicas
aos valores humanos. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 60.
2 Para além de bem e mal § 259.
3 Sobre o significado da vida como critério de avaliação dos valores, Cf. Machado, R. In:
Nietzsche e a verdade. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1985, p. 78. Segundo S. Marton, “O
único critério que se impõe por si mesmo (como critério de avaliação na crítica dos valores),
no entender de Nietzsche, é a vida” (op. cit., p. 87). Para uma recuperação filosófica do
conceito nietzschiano de vida enquanto parâmetro de crítica à razão ocidental, cf. CAPPI, A.
A vida não é um argumento. In: Ciências Humanas em Revista, 1(2), 1990, p. 139-157.
4 Nietzsche diferencia o combate mortal (Vernichtungskämpfe) da luta (Wettkampf). Esta
última tem o sentido do agon grego.
Entre os pré-socráticos, Nietzsche destaca o caráter agônico do pensamento de Heráclito, Cf.
A filosofia na época trágica dos gregos, § 5 a 8. Trata-se de um texto de 1873, de publicação
póstuma. (Texto parcialmente traduzido do alemão por Rubens R. T. Filho em Os pré-
socráticos. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1978, p. 102-110).
5 O escrito póstumo Fünf Vorreden zu fünf ungeschriebenen Büchern foi traduzido no Brasil
6
por Pedro Süssekind, sob o título Cinco prefácios para cinco livros não escritos (Rio de
Janeiro: Sette Letras, 1996), com notas explicativas úteis à leitura introdutória.
6 Nietzsche chegou a planejar 17 conferências para o período que vai do inverno de 70-71 até
o verão de 72 (cf. VII, 2 (8)). De fato, além das duas conferências sobre o problema do trágico
(em janeiro de 1870, O drama musical grego e, em fevereiro, Sócrates e a tragédia),
apresentou o ciclo de cinco conferências Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino,
entre janeiro e março de 72.
O “agon em Hesíodo e Homero” é o tema previsto para maio de 1870, numa lista de quatro
outras conferências para o início de 70. Uma conferência sobre o agon grego, entretanto,
jamais foi proferida. Antes disto, o agon aparece como um dos temas num plano de quatro
cadernos, planejados em 1869 (Cf. VII, 1 (23)). É o único dos temas dos Cinco prefácios
para cinco livros não escritos, que aparece nas listas de temas para as 17 conferências
planejadas no caderno do inverno de 1869-70 à primavera de 70 (cf. VII, 2(7) e VII, 2(8)).
7 No fragmento VII, 8 (117) (do inverno de 1870-1871 ao outono de 1872), aparece o
seguinte esquema: “Cinco prefácios inutilizáveis (unbrauchbare) para cinco livros não
escritos”. A lista é a seguinte: Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino. / Sobre a
glória./ Sobre a justa./ Sobre a relação da filosofia shcopenhauriana e uma civilização alemã./
Sobre o Estado grego. Junto a este esquema, já aparece a idéia de dedicá-lo à Cosima Wagner
(VII, 8(120)). Quando o esquema reaparece em VII, 19 (327) (caderno do verão de 1872 ao
início de 1873), o título é o seguinte: “Cinco prefácios a cinco livros que não foram e não
deverão ser escritos” (Fünf Vorreden zu fünf ungeschriebenen und nicht zu schreibenden
Büchern). A lista dos prefácios, então, é a seguinte: Sobre o futuro de nossos estabelecimentos
de ensino./ A relação da filosofia de Schopenhauer com a cultura alemã./ Sobre a paixão da
verdade./ O Estado dos Gregos. / A justa de Homero e de Hesíodo. A versão definitiva apenas
altera a ordem da última lista e retira do título do último prefácio o nome de Hesíodo.
Quanto ao tema do agon grego, Nietzsche reuniu em um único caderno, datado do verão de
1871 à primavera de 1872, materiais de pesquisa e reflexão, esquemas, listas temáticas e
idéias dispersas, que não constituem um texto orgânico. Chega, entretanto, a estruturar o
esquema de um livro, com oito capítulos, sobre o agon. (Cf. VII, 16 (21)). Embora o livro não
tenha saído do esquema, os materiais do caderno são, sem dúvida, utilizados para a confecção
do quinto prefácio, cujo título definitivo, A justa de Homero, acompanhada da primeira
redação, data de 21 de julho de 1872 (cf. VII, 20 (1)).
8 Sobre o problema do estatuto dos textos póstumos de Nietzsche, cf. MARTON, S. A
terceira margem da interpretação. In: MÜLLER-LAUTER, W. A doutrina da vontade de
poder em Nietzsche. São Paulo: Annablume, 1997, p. 12-15.
9 Para a tradução de nomes da mitologia grega como para a grafia em caracteres latinos de
palavras gregas, sigo BRANDÃO, J. de S. Mitologia Grega. 4 ed. 3 vol. Petrópolis: Vozes,
1992.
10Retórica, 1388 a 16, 1381 b 16-17; Ética à Nicômaco, 1155 a, 35-b 1.
11Tâmaris foi castigado pelos deuses por pretender rivalizar com as musas na arte de tocar a
lira.
Márcias é o sátiro que desafiou Apolo para uma competição musical, utilizando-se de uma
flauta mágica, abandonada por Atená, que encontrara. O deus, depois de sair-se vencedor,
esfolou o desafiante.
Níobe é a heroína de Tebas que achou-se melhor que a deusa Leto por ter tido sete filhos e
sete filhas, enquanto a deusa tivera somente dois (Apolo e Ártemis). A deusa incumbiu seus
dois filhos de matar todos os de Níobe.