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Ciência
Da panela viemos
O que nos tornou humanos? Uma nova teoria defende que somos o que somos graças a um hábito muito simples: o cozimento dos alimentos.
Entenda aqui por que fritar, assar, ferver e cozinhar pode ter criado todos nós

por Ana Carolina Prado

Numa tarde de inverno de 1998, enquanto olhava para a lareira


da sua sala de estar em Massachusetts, EUA, e pensava em como
elaborar uma palestra sobre a evolução humana para o dia
seguinte, Richard Wrangham, um antropólogo de Harvard, teve
uma epifania. "Somos humanos porque cozinhamos nossos
alimentos!", ele teve certeza naquele momento. Décadas antes,
entre 1971 e 1973, Wrangham havia estudado o comportamento
alimentar dos chimpanzés no Parque Nacional de Gombe, na
Tanzânia, e pôde acompanhar de perto o cotidiano desses
animais. De perto mesmo: ficava na companhia dos bichos o dia
todo na floresta, comendo o que eles comiam. O cardápio
contava principalmente com frutas silvestres, excessivamente
amargas, duras e fibrosas. Não importa o quanto ele comesse:
não havia nada no mato que pudesse encher o estômago do
pesquisador. "Eu estava sempre faminto", lembra. A experiência
lhe deu na época a certeza de que não seríamos capazes de viver
com uma dieta de alimentos crus. E foi essa vivência que, anos
depois, inspiraria sua epifania - e sua nova teoria: e se o segredo
para nossa evolução estiver na maneira como preparamos nossos alimentos? Richard Wrangham, então, passou os 10
anos seguintes pesquisando o assunto para, finalmente, colocar sua teoria no papel. No ano passado, deu à luz seu livro
Pegando Fogo - Por Que Cozinhar Nos Tornou Humanos, lançado agora no Brasil, no qual defende que nós não apenas
começamos a cozinhar bem antes de nos tornarmos humanos como nos tornamos humanos justamente por causa disso. E
ele já encontrou muitos motivos para acreditar que sua teoria faz sentido.

Ninguém sabe como os primeiros humanos descobriram o fogo, nem quando isso aconteceu. Talvez tenha vindo de
faíscas produzidas sem querer pelo atrito entre duas pedras, talvez algum raio tenha atingido uma árvore. Wrangham
acredita que tenha acontecido entre 1,6 milhão e 1,9 milhão de anos atrás, com base em vestígios encontrados em
escavações. Mas o que importa é que, em algum momento, algum hominídeo teve a brilhante ideia de usar o fogo para
cozinhar seus alimentos. O resultado é imediato: a comida fica mais fácil de cortar e mastigar, e livre de micro-
organismos perigosos para a saúde. Mas a grande vantagem de esquentar os alimentos foi a quantidade extra de energia
que passou a ser possível obter deles. Foi o grupo que rapidamente evoluiu para o primeiro Homo erectus e, mais tarde,
deu origem à humanidade.

O cru e o cozido
Um dos primeiro passos de Wrangham foi tentar descobrir mais sobre a alimentação dos grupos de caçadores-coletores
atuais para entender seus hábitos alimentares. Para isso, ele analisou os cardápios dos inuítes, do norte do Canadá (os
esquimós), do povo !kung, do Kalahari (deserto do sul da África) e dos aborígenes australianos. Depois de anos de
estudo, ele concluiu que não há registro de povos que tenham uma dieta inteiramente crua. Em todas as partes do mundo,
seres humanos esperam uma refeição cozida no fim do dia, geralmente provida pelas mulheres. Até mesmo nos lugares
em que se imaginava que a dieta era dominada por alimentos crus, como nos esquimós, descobriu-se que o cozimento era
a regra da noite. Era até mais do que regra: segundo um estudo feito na Universidade de Oxford, o homem esquimó que
não encontrasse sua refeição pronta - e cozida - quando chegasse da caça provavelmente daria uma surra na esposa ou a
pisotearia (!) na neve, podendo expulsá-la de casa. "Não passamos bem com dietas cruas, nenhuma cultura se baseia
nelas, e adaptações em nosso corpo explicam por que não consumimos só crus", diz o antropólogo.

Por que cozinhar a comida é algo tão importante que todas as sociedades humanas resolveram incluir esse hábito em sua
cultura? Provavelmente porque alimentos cozidos são digeridos mais facilmente do que os crus, já que o organismo gasta
menos energia para quebrar suas moléculas. Estudos sobre o amido cozido presente na aveia, no trigo, nas batatas e no
pão branco, por exemplo, revelaram que 95% dele é digerido pelo corpo humano. Já para o cru a taxa cai quase pela
metade. No caso das proteínas da carne, o cozimento pode aumentar a digestibilidade em até 40%. O calor promove a
quebra dessas moléculas, fazendo com que suas ligações internas se enfraqueçam e fiquem mais expostas à ação das
enzimas digestivas. Aí é só se esbaldar nas calorias.
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Para comprovar esse ganho no valor energético dos alimentos cozidos, Richard Wrangham foi atrás dos crudívoros -
pessoas que voluntariamente optam por uma dieta crua por acreditar que terão uma saúde melhor. Pesquisas com esses
grupos mostram que, à medida que a proporção de alimentos crus aumenta na dieta, o índice de massa corporal (a relação
entre o peso e a altura de uma pessoa) diminui. Está aí um sinal de que talvez os alimentos crus não forneçam quantidade
suficiente de calorias para manter um corpo saudável. O mais extenso estudo da área, feito com 513 pessoas na
Alemanha, comprovou que, além de perderem em média 10 quilos quando passavam de uma dieta cozida para uma dieta
crua, quase um terço das pessoas apresentava deficiência crônica de energia.

Mas as desvantagens são ainda mais graves: a função reprodutiva também fica comprometida. Segundo o estudo, cerca
de 50% das mulheres com dietas cruas param de menstruar. Isso também costuma ocorrer com as que sofrem de
esgotamento extremo, como maratonistas e anoréxicas. Os homens que experimentaram a dieta também parecem sofrer
alterações em suas funções sexuais. O autor americano de livros de auto-ajuda e defensor do crudivorismo Christopher
Westra contou em seu livro How to Live the Raw Food Diet with Joy ("Como Viver Feliz com uma Dieta Crua") que sua
libido havia diminuído significativamente. Isso é perigoso para a manutenção de qualquer espécie. Uma taxa de
infertilidade maior que 50% teria sido devastadora em uma população de caçadores-coletores (na nossa também, aliás),
já que quem tem dificuldade em procriar tende a desaparecer rapidinho do rol genético. Sem contar que nossos ancestrais
não viviam em cidades confortáveis, com acesso a alimentos enriquecidos industrialmente. Eles tinham que
(literalmente) correr atrás da comida para sobreviver.

A consequência desse alto fluxo de calorias foi sentida diretamente no nosso corpo. Como a digestão dos alimentos ficou
mais fácil, desapareceu a necessidade de ter bocas, maxilares, estômagos e intestinos muito grandes - e esses órgãos
acabaram diminuindo. Toda a energia anteriormente dispensada na digestão pôde ser usada para desenvolver uma joia
evolutiva: nosso cérebro. As evidências estão em todas as partes do corpo. Todas as áreas que envolvem a comida são
proporcionalmente pequeninas. Tente beijar um macaco, por exemplo: eles abrem a boca duas vezes mais que humanos
(o maior bocejo de Mick Jagger não é nada comparado ao de um chimpanzé). De um modo geral, o volume total do
nosso tubo digestivo é cerca de 60% do esperado para um primata do nosso tamanho.

A consequência na nossa cabeça é ainda mais impressionante. Uma pesquisa feita em 1995 na Inglaterra sugere que em
primatas um tubo digestivo menor está relacionado a um cérebro maior. Para Richard Wrangham, a comida cozida fez a
caixa craniana dos habilinos (símios de baixa estatura, braços longos e face protuberante) crescer, o que teria levado ao
aparecimento do Homo erectus há cerca de 1,8 milhão de anos. Naquela época, o tamanho do cérebro teria aumentado
cerca de 40%, até 870 cm3. (Depois ele continuou crescendo, até chegar aos 1 400 cm3 de caixa craniana que temos
hoje.) E é graças ao que está dentro dessa caixa que somos o que somos. "A arte provavelmente se desenvolveu muito
tempo depois do cozimento, como resultado da cognição avançada. Que, por sua vez, só foi possível graças a um grande
cérebro - que vem da dieta cozida", diz Wrangham. O mesmo pode ter acontecido com outras criações humanas, como
ferramentas complexas e a linguagem.

Saciedade faz sociedade


Não foram só nossos intestinos diminutos e grande cérebro que surgiram graças aos cozidos. A vida em sociedade foi
desenvolvida por causa (e ao redor) da mesa. A primeira mudança social que a comida cozida trouxe foi a economia de
tempo. Sim, mastigar é um negócio demorado. Basta ver como é a rotina dos macacos. Os chimpanzés do Parque
Nacional de Gombe, na Tanzânia, com seus meros 30 quilos e uma dieta de frutas silvestres e folhas, passam mais de 6
horas por dia mastigando alimentos para extrair nutrientes. Depois, ficam outras tantas horas fazendo digestão. Como
entre primatas o tempo gasto na mastigação está relacionado ao tamanho do corpo, pode-se estimar que, se os humanos
comessem esse mesmo tipo de comida crua, passariam pelo menos 42% do dia mastigando - cerca de 5 horas por dia.
Haja maxilar. Hoje, os adultos passam em média apenas 5% do dia fazendo isso, ou seja, 36 minutos.

A maior rapidez na mastigação e digestão deu a nossos antepassados mais tempo e oportunidade de ficar juntos. O
cozimento uniu as pessoas ao redor do fogo (que também protegia contra o frio e predadores) e estimulou a socialização,
permitindo que se sentissem mais confortáveis umas com as outras. Isso reduziu a agressividade. Richard Wrangham já
havia observado que a alimentação desempenha um papel importantíssimo nos relacionamentos afetivos entre primatas.
Segundo ele, os humanos cultivam relações incrivelmente pacíficas em torno de seus alimentos. Sim, por mais que sua
família possa brigar à mesa, saiba que nenhum animal costuma fazer as refeições tão amigavelmente e partilhando a
comida como nós.

Além disso, o cozimento pode ter sido responsável por fortalecer a união entre homem e mulher, que mais tarde daria
origem ao casamento. Cozinhar demanda tempo e trabalho e expõe a cozinheira solitária a ladrões famintos. Laços
conjugais resolviam o problema e resultavam em vantagem para os dois lados. A mulher não teria os alimentos roubados,
e o marido garantia uma refeição vespertina quando voltasse para casa - e ambos teriam a certeza de um parceiro sexual.
Ainda assim, a teoria do cozimento não explica tudo. O próprio Richard Wrangham admite que ainda há muito a ser
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pesquisado. Não há consenso, por exemplo, sobre a data em que os humanos começaram a controlar o fogo. Ainda há um
longo caminho a percorrer, mas talvez agora ele tenha mais placas indicando a direção a tomar. Por enquanto, elas
apontam para nossa mesa.

Nossos miúdos ficaram miúdos...

• O volume total do tubo digestivo é 60% do esperado para um primata do nosso tamanho.

• A área estomacal humana é menor que a de 97% dos outros primatas.

• Os chimpanzés comem 2 vezes mais em peso do que nós, apesar de pesarmos até 57% a mais que eles.

• ...Mas as células cinzentas cresceram: Nossa caixa craniana tem 1 400 cm3. A dos chimpanzés tem entre 350 e 400 cm3.
Depois do fogo, o auge humano

• 1,6 a 1,9 milhão de anos atrás descoberta do fogo, com o Homo erectus

• 1,8 milhão de anos surgimento da família nuclear, ou seja, os casamentos

• 200 mil anos surgimento do Homo sapiens

• 80 mil anos desenvolvimento da arte e da religião (primeiras evidências de sepultamento dos mortos)

• 35 mil anos primeiros instrumentos musicais

• 7 mil anos primeiras grandes cidades na Mesopotâmia

Para saber mais


Pegando Fogo - Por Que Cozinhar Nos Tornou Humanos
Richard Wrangham, Editora Zahar, 2010

Disponível em: http://super.abril.com.br/ciencia/panela-viemos-614296.shtml


Acesso em: 13.01.2013

Questões:

1. Objetivamente, qual o resultado do alimento cozinhado ou cozido? Por que cozinhar a comida é tão
importante?
2. Após analisar hábitos alimentares de grupos de caçadores-coletores, a que conclusão chegou
Richard Wranghan?
3. Quais relações podemos estabelecer entre a dieta de alimentos cozidos e o desenvolvimento do
cérebro?
4. Explique a frase: “a saciedade faz sociedade”. O que os autores querem dizer com isso?
5. Destaque uma ideia no texto que te pareceu mais interessante e comente-a.

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