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ESCOLA E DEMOCRACIA:

PARA ALÉM DA "TEORIA DA


CURVATURA DA VARA"

Dermeval Saviani*
Ilustrações de Mari

Em artigo anterior (Saviani, 1981), partindo da suposição de que o ideário escolanovista


logrou converter-se em senso comum para os educadores, isto é, se tornou a forma dominante de
se conceber a educação, enunciei teses polêmicas visando a contestar as crenças que acabaram por
tomar conta das cabeças dos educadores. Meu objetivo era reverter a tendência dominante. Uma vez
que a concepção corrente, na qual o reformismo acabou por prevalecer sobre o tradicionalismo, ten­
de a considerar a pedagogia nova como portadora de todas as virtudes e de nenhum vício atribuindo,
inversamente, à pedagogia tradicional todos os vícios e nenhuma virtude, empenhei-me, no artigo ci­
tado, em demonstrar exatamente o inverso. E o fiz através de 3 teses que enunciei e explicitei de
modo sucinto, as quais constituíram o arcabouço daquilo que denominei, utilizando uma expressão
tomada de empréstimo a Lênin, de "teoria da curvatura da vara" (Althusser, 1977).
Para comodidade dos leitores penso ser útil reproduzir aqui as teses referidas:
1ª tese (filosófico-histórica)
Do caráter revolucionário da pedagogia da essência (pedagogia tradicional) e do caráter reacio­
nário da pedagogia da existência (pedagogia nova).
2ª tese (pedagógico-metodológica)
Do caráter científico do método tradicional e do caráter pseudo-científico dos métodos novos.
3ª tese (especificamente política)
De como, quando menos se falou em democracia no interior da escola mais ela esteve articula­
da com a construção de uma ordem democrática; e quando mais se falou em democracia no interior
da escola menos ela foi democrática:

*Da PUC/SP e da UNICAMP.

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Como se percebe de imediato, o próprio Por isso a estrutura deste texto parte do ar­ ção, entendidas, porém, em dois sentidos: "num
enunciado dessas proposições evidencia que, cabouço do anterior. Assim, após esclarecer a primeiro sentido (mais amplo) na medida em
mais do que teses, elas funcionam como antíte­ razão do emprego indiferenciado das expres­ que, em vez de se considerar a educação como
ses por referência às idéias dominantes nos sões "pedagogia da existência" e "pedagogia um processo continuado, obedecendo a esque­
meios educacionais. É este sentido de negação nova" serão retomadas consecutivamente, com mas pré-definidos, seguindo uma ordem lógica,
frontal das teses correntes que se traduz meta­ intento de superação, cada uma das três teses considera-se que a educação segue o ritmo vital
foricamente na expressão "teoria da curvatura anteriormente enunciadas com intento negador. que é variado, determinado pelas diferenças
da vara". Com efeito, assim como para se endi­ existenciais ao nível dos indivíduos; admite idas
reitar uma vara que se encontra torta não bas­ Pedagogia nova e pedagogia da existência e vindas com predominância do psicológico
ta colocá-la na posição correta mas, é necessá­ sobre o lógico; num segundo sentido (mais res­
rio curvá-la do lado oposto, assim também, no Entendidas em sentido amplo, as expres­ trito e especificamente existencialista), na me­
embate ideológico não basta enunciar a concep­ sões "pedagogia nova" e "pedagogia da existên­ dida em que os momentos verdadeiramente
ção correta para que os desvios sejam corrigi­ cia" se equivalem. Isto porque ambas são tribu­ educativos são considerados raros, passageiros,
dos; é necessário abalar as certezas, desautori­ tárias daquilo que poderíamos chamar de "con­
instantâneos. São momentos de plenitude, po­
zar o senso comum. E para isso nada melhor cepção humanista moderna de Filosofia da Edu­
rém fugazes e gratuitos. Acontecem indepen­
do que demonstrar a falsidade daquilo que é ti­ cação". Tal concepção centra-se na vida, na
dentemente da vontade ou de preparação. Tu­
do como obviamente verdadeiro demonstrando existência, na atividade, por oposição à concep­
do o que se pode fazer é, estar predisposto e
ao mesmo tempo a verdade daquilo que é tido ção tradicional que se centrava no intelecto, na
atento a esta possibilidade" (Saviani, 1980).
como obviamente falso (1). Meu objetivo, pois, essência, no conhecimento. Nesta acepção, es­
tamos nos referindo a um amplo movimento fi­ É nesse segundo sentido que se desenvolve o
ao introduzir no debate educacional a "teoria
losófico que abrange correntes tais como o trabalho de O.F. BOLLNOW (1971). Já SU­
da curvatura da vara" foi o de polemizar, aba­
Pragmatismo, o Vitalismo, Historicismo, Exis­ CHODOLSKI (1978) entende a pedagogia da
lar, desinstalar, inquietar, fazer pensar. E creio
tencialismo e Fenomenologia, com importan­ existência no primeiro sentido. Cabe observar,
ter conseguido, ao menos em parte, uma vez
tes repercussões no campo educacional. Obvia­ por fim, que o primeiro sentido abrange o se­
que as reações não tardaram, tendo alguns, ain­
mente, assim como não se ignora a diversidade gundo e que, a rigor, não se pode falar numa
da que com certa ponta de ironia, insinuado
de correntes filosóficas, também não se perde "pedagogia existencialista" uma vez que esta
que eu seria conservador em matéria de educa­
de vista a existência de diferentes nuances pe­ não chegou a se configurar, havendo mesmo
ção.
dagógicas no bojo do que denominamos "Con­ controvérsias no que diz respeito à compatibi­
Entretanto, no final daquele artigo, afir­ lidade entre pedagogia e existencialismo (Bol-
mei textualmente: "Creio ter conseguido fazer cepção 'humanista' moderna da filosofia da
educação". Em outros termos: as expressões Inow, 1971, pp. 11-35).
curvar a vara para o outro lado. A minha expec­
"pedagogia nova" e "pedagogia da existência"
tativa é justamente que com essa inflexão a vara
atinja o seu ponto correto, vejam bem, ponto se equivalem sob a condição de não reduzir a
primeira à pedagogia escolanovista e a segunda, Para além das pedagogias da essência
correto esse que não está também na pedago­ e da existência
à pedagogia existencialista. Esse esclarecimento
gia tradicional, mas está justamente na valori­
se faz necessário uma vez que a concepção "hu­
zação dos conteúdos que apontam para uma pe­ Na primeira tese do artigo anterior empe-
dagogia revolucionária" (Saviani, 1981, p. 33). manista" moderna se manifesta na educação
predominantemente sob a forma do movimen­ nhei-me em demonstrar ao mesmo tempo o ca­
Neste artigo pretendo prosseguir o deba­ ráter revolucionário da pedagogia tradicional e
te tentando ultrapassar o momento da antíte­ to escolanovista cuja inspiração filosófica prin­
cipal situa-se na corrente do pragmatismo. o caráter reacionário da pedagogia nova. Isto foi
se que predominou no artigo anterior, na dire­ feito através da historicização de ambas as pe­
ção do momento da síntese. Atualmente alguns educadores buscam rever
suas posições pedagógicas à luz da fenomeno­ dagogias. Em outros termos, evidenciou-se co­
logia e do existencialismo (Husserl, Merleau- mo se deu historicamente a passagem de uma
Ponty, Heidegger). A esses educadores soou es­ concepção pedagógica igualitarista para uma pe­
(1) É interessante assinalar que o procedimento aci­ dagogia das diferenças, com sua conseqüência
ma indicado pode, até certo ponto, ser considera­
tranho o fato de eu ter utilizado a expressão
do uma característica de filosofia. Com efeito, ele "pedagogia da existência" como equivalente à política: a justificação de privilégios. Ora, ao
é encontrado nos diálogos platônicos; na expres­ "pedagogia nova". Entretanto, quando em ou­ proceder desta maneira eu já estava, naquele
são maior da filosofia medieval, a "Summa Theo- tro texto, caracterizei a concepção "humanis­ mesmo artigo, me situando para além das pe­
logica" de Tomás de Aquino, através da expres­ dagogias da essência e da existência. Com efeito,
ta" moderna de filosofia da educação, registrei
são "videtur quod non"; em Descartes, com a dú­
vida metódica e assim por diante. Com a filosofia de modo explícito essa diferença de matiz ao nessas pedagogias está ausente a perspectiva his­
dialética tal procedimento adquire sua máxima afirmar que a referida concepção admite a toricizadora. Falta-lhes a consciência dos condi­
expressão teórica. existência de formas descontínuas na educa­ cionantes histórico-sociais da educação. São,
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pois, ingênuas e não críticas já que é próprio da caráter mecânico, artificial, desatualizado dos terminada unidirecionalmente pela estrutura so­
consciência crítica saber-se condicionada, deter­ conteúdos próprios da escola tradicional. Obvia­ cial dissolvendo-se a sua especificidade, entende
minada objetivamente, materialmente, ao passo mente, tal denúncia é procedente e pode ser que a educação se relaciona dialeticamente com
que a consciência ingênua é aquela que não se contabilizada como um dos méritos da Escola a sociedade. Nesse sentido, ainda que elemento
sabe condicionada, mas, ao contrário, acredi­ Nova. Entretanto, ao reconhecer e absorver as determinado, não deixa de influenciar o ele­
ta-se superior aos fatos, imaginando-se mesmo pressões contra o caráter formalista e estático mento determinante. Ainda que secundário,
capaz de determiná-los e alterá-los por si mes­ dos conhecimentos transmitidos pela escola, o nem por isso deixa de ser instrumento impor­
ma. Eis porque, tanto a pedagogia tradicional Movimento da Escola Nova funcionou como tante e por vezes decisivo no processo de trans­
como a pedagogia nova entendiam a escola co­ mecanismo de recomposição da hegemonia bur­ formação da sociedade.
mo "redentora da humanidade". Acreditavam guesa. Isto porque subordinou as aspirações po­ A pedagogia revolucionária situa-se, pois,
que era possível modificar a sociedade através pulares aos interesses burgueses tornando pos­ além das pedagogias da essência e da existência.
da educação. Nesse sentido, podemos afirmar sível à classe dominante apresentar-se como a Supera-as, incorporando suas críticas recíprocas
que ambas são ingênuas e idealistas. Caem na ar­ principal interessada na reforma da escola, re­ numa proposta radicalmente nova. O cerne des­
madilha da "inversão idealista" já que, de ele­ forma esta que viria finalmente atender aos in­ sa novidade radical consiste na superação da
mento determinado pela estrutura social, a edu­ teresses de toda a sociedade contemplando ao crença seja na autonomia, seja na dependência
cação é convertida em elemento determinante, mesmo tempo suas diferentes aspirações, capa­ absolutas da educação em face das condições
reduzindo-se o elemento determinante à condi­ cidades e possibilidades. Com isso a importância sociais vigentes.
ção de determinado. A relação entre educação da transmissão de conhecimentos foi secundari­
e estrutura social é, portanto, representada de zada e subordinada a uma pedagogia das dife­
modo invertido. renças, centrada nos métodos e processos: a Para além dos métodos novos e tradicionais
Foi destacado que o caráter revolucioná­ pedagogia da existência ou pedagogia nova.
rio da pedagogia da essência centra-se na defesa Uma pedagogia revolucionária centra-se, Na segunda tese do artigo anterior afirmei
intransigente de igualdade essencial entre os ho­ pois, na igualdade essencial entre os homens. o caráter científico do método tradicional e o
mens. É preciso insistir em que tal posição tinha Entende, porém, a igualdade em termos reais e caráter pseudo-científico dos métodos novos.
um caráter revolucionário na fase de constitui­ não apenas formais. Busca, pois, converter-se, Questionei com isso o principal argumento da
ção do poder burguês e não o deixa de ter ago­ articulando-se com as forças emergentes da so­ crítica escolanovista ao método tradicional de
ra. No entanto é preciso acrescentar que seu ciedade, em instrumento a serviço da instaura­ ensino. Isto significa que a referida crítica é in­
conteúdo revolucionário é histórico, isto é, se ção de uma sociedade igualitária. Para isso a teiramente infundada? Eu diria que não se tra­
modifica historicamente. Assim, o acesso das pedagogia revolucionária, longe de secundarizar ta disso. A crítica escolanovista atingiu não tan­
camadas trabalhadoras à escola implica a pres­ os conhecimentos descuidando de sua transmis­ to o método tradicional mas a forma como esse
são no sentido de que a igualdade formal ("to­ são, considera a difusão de conteúdos, vivos e método se cristalizou na prática pedagógica,
dos são iguais perante a lei") própria da socieda­ atualizados, uma das tarefas primordiais do pro­ tornando-se mecânico, repetitivo, desvinculado
de contratual instaurada com a revolução bur­ cesso educativo em geral e da escola em parti­ das razões e finalidades que o justificavam. Essa
guesa se transforme em igualdade real. Nesse cular. defasagem entre a proposta original e suas apli­
sentido, a importância da transmissão de conhe­ Em suma: a pedagogia revolucionária não
cimentos, de conteúdos culturais, marca distin­ vê necessidade de negar a essência para admitir
tiva da pedagogia da essência, não perde seu o caráter dinâmico da realidade como o faz a
caráter revolucionário. A pressão em direção à pedagogia da existência, inspirada na concepção (2) Chamo de concepção crítico-reprodutivista a
igualdade real implica a igualdade de acesso ao "humanista" moderna de filosofia da educação. tendência que, a partir das análises dos determi­
nantes sociais da educação, considera que a fun­
saber, portanto, a distribuição igualitária dos Também não vê necessidade de negar o movi­
ção primordial da educação é dupla: reprodução
conhecimentos disponíveis. Mas aqui também é mento para captar a essência do processo histó­ das relações sociais de produção e inculcação da
preciso levar em conta que os conteúdos cultu­ rico como o faz a pedagogia da essência inspira­ ideologia dominante. É, pois, crítica já que pos­
rais são históricos e o seu caráter revolucionário da na concepção "humanista" tradicional de fi­ tula que a educação só pode ser compreendida a
está intimamente associado à sua historicidade. partir dos seus condicionantes; e reprodutivista,
losofia da educação.
uma vez que o papel da educação se reduz à
Assim, a transformação da igualdade formal em A pedagogia revolucionária é crítica. E reprodução das relações sociais, escapando-lhe
igualdade real está associada à transformação por ser crítica, sabe-se condicionada. Longe de qualquer possibilidade de exercer um influxo
dos conteúdos formais, fixos e abstratos, em entender a educação como determinante princi­ transformador. As principais teorias que expres­
conteúdos reais, dinâmicos e concretos. Ao con­ pal das transformações sociais, reconhece ser ela sam essa tendência são: a) Teoria do sistema de
ensino enquanto violência simbólica (Bourdieu-­
junto de pressões decorrentes do acesso das ca­ elemento secundário e determinado. Entretan­ Passeron); b) Teoria de escola enquanto apare­
madas trabalhadoras à escola, a burguesia res­ to, longe de pensar, como o faz a concepção lho ideológico de Estado (Althusser); c) Teoria
ponde denunciando através da Escola Nova o crítico-reprodutivista(2), que a educação é de­ da escola dualista (Baudelot-Establet).

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cações subseqüentes me faz lembrar da afirma­ to, de modo especial no caso de Paulo Freire, é popular, exatamente nesse momento, novos me­
ção de Goldmann (1976 pp 37) segundo a qual nítida a inspiração da "concepção 'humanista' canismos de recomposição de hegemonia são
Durkheim foi suficientemente inteligente para moderna de filosofia da educação", através da acionados: os meios de comunicação de massa e
não tomar ao pé da letra o seu lema "tratar os corrente personalista (existencialismo cristão). as tecnologias de ensino. Passa-se, então, a mini­
fatos sociais como coisas". Com isto, trouxe Na fase de constituição e implantação de sua mizar a importância da escola e a se falar em
contribuições decisivas à constituição da ciência pedagogia no Brasil (1959-1964), suas fontes de educação permanente, educação informal, etc.
sociológica. Já os sociólogos quantitativistas, de referência são principalmente Mounier, G. Mar­ No limite, chega-se mesmo a defender a destrui­
modo especial os americanos, tomando ao pé da cel, Jaspers (Freire, 1967). Parte-se da crítica à ção da escola. Ora, nós sabemos que o povo não
letra o lema de Durkheim, acabaram por desen­ pedagogia tradicional (pedagogia bancária) ca­ está interessado na desescolarização. Ao contrá­
volver uma tendência esterilizadora da ciência racterizada pela passividade, transmissão de rio; ele reivindica o acesso às escolas. Quem de­
sociológica. conteúdos, memorização, verbalismo, etc. e ad­ fende a desescolarização são os já escolarizados,
Aplicando o mesmo raciocínio à situação voga-se uma pedagogia ativa, centrada na inicia­ portanto, também já desescolarizados. Conse­
educacional, cabe observar que as críticas da tiva dos alunos, no diálogo (relação dialógica), qüentemente, para eles a escola não tem mais
Escola Nova atingiram o método tradicional na troca de conhecimentos. A diferença, entre­ importância uma vez que eles já se beneficiaram
não em si mesmo mas a sua aplicação mecânica tanto, em relação à Escola Nova propriamente dela. Os ainda não escolarizados, estes estão in­
cristalizada na rotina burocrática do funciona­ dita, consiste no fato de que Paulo Freire se teressados na escolarização e não na desescolari­
mento das escolas. A procedência das críticas empenhou em colocar essa concepção pedagó­ zação.
decorre do fato de que uma teoria, um método, gica a serviço dos interesses populares. Seu alvo Uma pedagogia articulada com os interes­
uma proposta devem ser avaliados não em si inicial foi, com efeito, os adultos analfabetos. ses populares valorizará, pois, a escola; não será
mesmos, mas nas conseqüências que produzi­ Esse fenômeno histórico do surgimento indiferente ao que ocorre em seu interior; estará
ram historicamente. Essa regra, porém, deve ser daquilo que chamei de "Escola Nova Popular" empenhada em que a escola funcione bem; por­
aplicada também à própria Escola Nova. Nesse põe em evidência que a questão escolar na so­ tanto, estará interessada em métodos de ensino
sentido cumpre constatar que as críticas, ainda ciedade capitalista, dada a sua divisão em classes eficazes. Tais métodos se situarão para além dos
que procedentes, tiveram, como assinalamos no com interesses opostos, é objeto de disputa. As­ métodos tradicionais e novos, superando por in­
artigo anterior, o efeito de aprimorar a educa­ sim como a escola tradicional, proposta pela corporação as contribuições de uns e de outros.
ção das elites e esvaziar ainda mais a educação burguesia, volta-se contra seus interesses obri­ Portanto, serão métodos que estimularão a ati­
das massas. Isto porque, realizando-se em al­ gando a uma recomposição de hegemonia atra­ vidade e iniciativa dos alunos sem abrir mão,
gumas poucas escolas, exatamente aquelas fre­ vés da Escola Nova, assim também a Escola porém, da iniciativa do professor; favorecerão o
qüentadas pelas elites, contribuiram para o seu Nova não fica imune à luta que se trava no seio diálogo dos alunos entre si e com o professor
aprimoramento. Entretanto, ao estender sua in­ da sociedade. Se o credo escolanovista se torna mas sem deixar de valorizar o diálogo com a
fluência em termos de ideário pedagógico às es­ predominante e toma conta das cabeças dos cultura acumulada historicamente; levarão em
colas da rede oficial, que continuaram funcio­ professores, é inevitável o surgimento de pres­ conta os interesses dos alunos, os ritmos de
nando de acordo com as condições tradicionais, sões no sentido de que a Escola Nova se genera­ aprendizagem e o desenvolvimento psicológico
a Escola Nova contribuiu, pelo afrouxamento lize. Se o escolanovismo pressupõe métodos so­ mas sem perder de vista a sistematização lógica
da disciplina e pela secundarização da transmis­ fisticados, escolas mais bem equipadas, menor dos conhecimentos, sua ordenação e gradação
são de conhecimentos, para desorganizar o ensi­ número de alunos em classe, maior duração da para efeitos do processo de transmissão-assimi­
no nas referidas escolas. Daí, entre outros fato­ jornada escolar; se se trata de uma escola mais lação dos conteúdos cognitivos.
res, o rebaixamento do nível da educação desti­ agradável, capaz de despertar o interesse dos Não se deve pensar, porém, que os méto­
nada às camadas populares. alunos, de estimulá-los à iniciativa, de permitir- dos acima indicados terão um caráter eclético,
Ora, se o principal problema da pedagogia lhes assumir ativamente o trabalho escolar, por isto é, constituirão uma somatória dos métodos
nova está no seu efeito discriminatório, surge, que não implantar esse tipo de escola exatamen­ tradicionais e novos. Não. Os métodos tradicio­
então, a questão: os métodos novos não seriam te para as camadas populares onde supostamen­ nais assim como os novos implicam uma auto­
generalizáveis? Assim como esses métodos fo­ te a passividade, o desinteresse, as dificuldades nomização da pedagogia em relação à socieda­
ram capazes de aprimorar a educação das elites, de aprendizagem são maiores? de. Os métodos que preconizo mantém conti­
não seriam eles úteis também para aprimorar a Não é, pois, por acaso que justamente nuamente presente a vinculação entre educação
educação das massas? quando esse tipo de questionamento vai se tor­ e sociedade. Enquanto no primeiro caso profes­
É nessa direção que surgem tentativas de nando mais agudo; quando surgem propostas de sor e alunos são sempre considerados em termos
constituição de uma espécie de "Escola Nova renovação pedagógica articuladas com os inte­ individuais, no segundo caso, professor e alunos
Popular". Exemplos dessas tentativas são a "Pe­ resses populares; quando aparecem críticas à Es­ são tomados como agentes sociais. Assim, se
dagogia Freinet" na França e o "Movimento cola Nova que visam incorporar suas contribui­ fosse possível traduzir os métodos de ensino
Paulo Freire de Educação" no Brasil. Com efei- ções no esforço de formulação duma pedagogia que estou propondo na forma de passos à seme­
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Ihança dos esquemas de Herbart e de Dewey, eu nal) nem com a coleta de dados (pedagogia no­ levada a cabo no processo de ensino, a passagem
diria que o ponto de partida do ensino não é a va) ainda que por certo envolva transmissão e da síncrese à síntese; em conseqüência, manifes­
preparação dos alunos cuja iniciativa é do pro­ assimilação de conhecimentos podendo, even­ ta-se nos alunos a capacidade de expressarem
fessor (pedagogia tradicional) nem a atividade tualmente, envolver levantamento de dados. uma compreensão da prática em termos tão ela­
que é de iniciativa dos alunos (pedagogia nova). Trata-se de se apropriar dos instrumentos teóri­ borados quanto era possível ao professor. É a
O ponto de partida seria a prática social, (1º cos e práticos necessários ao equacionamento esse fenômeno que eu me referia quando dizia
passo), que é comum a professor e alunos. En­ dos problemas detectados na prática social. Co­ em outro trabalho que a educação é uma ativi­
tretanto, em relação a essa prática comum, o mo tais instrumentos são produzidos socialmen­ dade que supõe uma heterogeneidade real e
professor assim como os alunos podem se posi­ te e preservados historicamente, a sua apropria­ uma homogeneidade possível; uma desigualdade
cionar diferentemente enquanto agentes sociais ção pelos alunos está na dependência de sua no ponto de partida e uma igualdade no ponto
diferenciados. E do ponto de vista pedagógico transmissão direta ou indireta por parte do pro­ de chegada (Saviani, 1980a).
há uma diferença essencial que não pode ser fessor. Digo transmissão direta ou indireta por­ Ora, através do processo acima indicado,
perdida de vista: o professor, de um lado, e os que o professor tanto pode transmití-los direta­ a compreensão da prática social passa por uma
alunos, de outro, encontram-se em níveis dife­ mente como pode indicar os meios através dos alteração qualitativa. Conseqüentemente, a prá­
rentes de compreensão (conhecimento e expe­ quais a transmissão venha a se efetivar. Chame­ tica social referida no ponto de partida (primei­
riência) da prática social. Enquanto o professor mos, pois, este terceiro passo de instrumentali­ ro passo) e no ponto de chegada (quinto passo)
tem uma compreensão que poderíamos denomi­ zação. Obviamente, não cabe entender a referi­ é e não é a mesma. É a mesma, uma vez que é
nar de "síntese precária", a compreensão dos da instrumentalização em sentido tecnicista. ela própria que constitui ao mesmo tempo o
alunos é de caráter sincrético. A compreensão Trata-se da apropriação pelas camadas popula­ suporte e o contexto, o pressuposto e o alvo, o
do professor é sintética porque implica uma cer­ res das ferramentas culturais necessárias à luta fundamento e a finalidade da prática pedagógi­
ta articulação dos conhecimentos e experiências social que travam diuturnamente para se liber ca. E não é a mesma, se considerarmos que o
que detém relativamente à prática social. Tal tar das condições de exploração em que vivem. modo de nos situarmos em seu interior se alte­
síntese, porém, é precária uma vez que, por O quarto passo não será a generalização rou qualitativamente pela mediação da ação pe­
mais articulados que sejam os conhecimentos e (pedagogia tradicional) nem a hipótese (pedago­ dagógica; e já que somos, enquanto agentes so­
experiências, a inserção de sua própria prática gia nova). Adquiridos os instrumentos básicos, ciais, elementos objetivamente constitutivos da
pedagógica como uma dimensão da prática so­ ainda que parcialmente, é chegado o momento prática social, é lícito concluir que a própria
cial envolve uma antecipação do que lhe será da expressão elaborada da nova forma de enten­ prática se alterou qualitativamente. É preciso,
possível fazer com alunos cujos níveis de com­ dimento da prática social a que se ascendeu. no entanto, ressalvar que a alteração objetiva da
preensão ele não pode conhecer, no ponto de Chamemos este quarto passo de catarse, enten­ prática só pode se dar a partir da nossa condi­
partida, senão de forma precária. Por seu lado, a dida na acepção gramsciana de "elaboração su­ ção de agentes sociais ativos, reais. A educação,
compreensão dos alunos é sincrética uma vez perior da estrutura em superestrutura na cons­ portanto, não transforma de modo direto e ime­
que, por mais conhecimentos e experiências que ciência dos homens" (Gramsci, 1978, p. 53. Tra­ diato e sim de modo indireto e mediato, isto é,
detenham, sua própria condição de alunos im­ ta-se da efetiva incorporação dos instrumentos agindo sobre os sujeitos da prática. Como diz
plica uma impossibilidade, no ponto de partida, culturais, transformados agora em elementos Vázquez:
de articulação da experiência pedagógica na prá­ ativos de transformação social. "A teoria em si (...) não transforma o
tica social de que participam. O quinto passo, finalmente, também não mundo. Pode contribuir para a sua transforma­
O segundo passo não seria a apresentação será a aplicação (pedagogia tradicional) nem a ção, mas para isso tem que sair de si mesma, e,
de novos conhecimentos por parte do professor experimentação (pedagogia nova). O ponto de em primeiro lugar, tem que ser assimilada pelos
(pedagogia tradicional) nem o problema como chegada é a própria prática social, compreendida que vão ocasionar, com seus atos reais, efetivos,
um obstáculo que interrompe a atividade dos agora não mais em termos sincréticos pelos alu­ tal transformação. Entre a teoria e a atividade
alunos (pedagogia nova). Caberia, neste momen­ nos. Neste ponto, ao mesmo tempo que os alu­ prática transformadora se insere um trabalho de
to, a identificação dos principais problemas pos­ nos ascendem ao nível sintético em que, por educação das consciências, de organização dos
tos pela prática social. Chamemos a este segun­ suposto, já se encontrava o professor no ponto meios materiais e planos concretos de ação; tu­
do passo de Problematização. Trata-se de detec­ de partida, reduz-se a precariedade da síntese do isso como passagem indispensável para de­
tar que questões precisam ser resolvidas no âm­ do professor, cuja compreensão se torna mais e senvolver ações reais, efetivas. Nesse sentido,
bito da prática social e, em conseqüência, que mais orgânica. Essa elevação dos alunos ao nível uma teoria é prática na medida em que materia­
conhecimentos é necessário dominar. do professor é essencial para se compreender a liza, através de uma série de mediações, o que
Segue-se, pois, o terceiro passo que não especificidade da relação pedagógica. Daí por­ antes só existia idealmente, como conhecimen­
coincide com a assimilação de conteúdos trans­ que o momento catártico pode ser considerado to da realidade ou antecipação ideal de sua
mitidos pelo professor por comparação com o ponto culminante do processo educativo, já transformação" (1968, pp 206-207, grifos
conhecimentos anteriores (pedagogia tradicio­ que é aí que se realiza pela mediação da análise meus).
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As considerações acima desenvolvidas po­ mesma falha que denunciara na Escola Nova: momentos articulados num mesmo movimento,
dem ser consideradas como uma tentativa de confundir o ensino com a pesquisa cientí­ único e orgânico. O peso e a duração de cada
aduzir elementos para a explicitação de uma de­ fica. Simplesmente estou querendo dizer momento obviamente irá variar de acordo com
finição de educação na qual venho insistindo há que o movimento que vai da síncrese ("a visão as situações específicas em que se desenvolve
alguns anos. Trata-se da conceituação de educa­ caótica do todo") à síntese ("uma rica totalida­ a prática pedagógica. Assim, nos inícios da es­
ção como "uma atividade mediadora no seio da de de determinações e de relações numerosas") colarização a Problematização é diretamente de­
prática social global" (Saviani, 1980a. p. pela mediação da análise ("as abstrações e de­ pendente da instrumentalização, uma vez que a
120) (3). Daí porque a prática social foi tomada terminações mais simples") constitui uma orien­ própria capacidade de problematizar depende
como ponto de partida e ponto de chegada na tação segura tanto para o processo de descober­ da posse de certos instrumentos. A necessidade
caracterização dos momentos do método de en­ ta de novos conhecimentos (o método científi­ da alfabetização, por exemplo, é um problema
sino por mim preconizado. É fácil identificar aí co) como para o processo de transmissão-assimi­ posto diretamente pela prática social não sendo
o entendimento da educação como mediação lação de conhecimentos (o método de ensino). necessária a mediação da escola para detectá-lo.
no seio da prática social. Também é fácil perce­ Cabe, por fim, levar em conta que o em­ No entanto, é fácil de se perceber que as crian­
ber de onde eu retiro o critério de cientificidade penho em apresentar simetricamente aos cinco ças captam de modo sincrético, isto é, de modo
do método proposto. Não é do esquema induti­ passos de Herbart e de Dewey as características confuso, caótico, a relação entre a alfabetização
vo tal como o formulara Bacon; nem é do mo­ do método pedagógico que, no meu entendi­ e a prática social; já o professor capta essa rela­
delo experimentalista ao qual se filiava Dewey. mento, se situa para além dos métodos novos e ção de modo sintético, ainda que em termos de
É, sim, da concepção dialética de ciência tal tradicionais, correspondeu a um esforço heurís­ uma "síntese precária". A instrumentalização no
como o explicitou Marx no "método da econo­ tico e didático cuja função era facilitar ao’s lei­ sentido de se passar da condição de analfabeto
mia política" (1973, pp. 228-240). Isto não tores a compreensão do meu posicionamento. para alfabetizado se impõe. E aqui o momento
quer dizer, porém, que eu esteja incidindo na Em lugar de passos que se ordena, numa seqüên­
cia cronológica, é mais apropriado falar aí de
(3) Ainda não tive tempo de elaborar por escrito a
referida definição. Entretanto, minha insistên­
cia em diferentes oportunidades já produziu
seus frutos. Assim, Carlos Roberto Jamil Cury
tomou a si a tarefa de desenvolver o conceito
de mediação como uma das categorias chaves
de compreensão do fenômeno Educativo
(CURY, 1979). Algo semelhante ocorreu com
Guiomar N. Mello que construiu uma visão da
escola a partir do conceito de mediação (MEL­
LO, 1982).
catártico é fixado com nitidez. E, embora meta­ mocrático. ções de igualdade estão dadas desde o início,
foricamente por referência ao sentido contido Ora, assim como aquela terceira tese de­ então já não se põe a questão de sua realização
na frase de Gramsci, dá-se, de fato, uma "elabo­ rivava diretamente das duas anteriores de tal no ponto de chegada. Com isto o processo edu­
ração superior da estrutura em superestrutura modo que, uma vez demonstradas as duas pri­ cativo fica sem sentido. Veja-se o paradoxo em
na consciência dos homens", isto é, a assimila­ meiras a terceira ficava evidente, penso também que desemboca a Escola Nova; a contradição
ção subjetiva da estrutura objetiva da língua. E que neste artigo, após a superação das antino­ interna que atravessa de ponta a ponta a sua
o alfabetizado adquire condições de se expres­ mias contidas nas duas teses iniciais, fica tam­ proposta pedagógica: de tanto endeusar o pro­
sar em nível tão elaborado quanto o era capaz o bém superada a antinomia própria da terceira cesso, de tanto valorizá-lo em si e por si, acabou
professor no ponto de partida, isto é, ele se tese. Assim, após as considerações anteriores re­ por transformá-lo em algo místico, uma entida­
expressa agora não apenas oralmente mas tam­ sulta óbvio que, ao denunciar os efeitos social­ de metafísica, uma abstração esvaziada de con­
bém por escrito. mente antidemocráticos da Escola Nova, nem teúdo e sentido. Ora, com isso perdeu-se de vis­
De outro lado, se as pedagogias tradicio­ por isso estava eu defendendo que a relação pe­ ta que o processo jamais pode ser justificado
nal e nova podiam alimentar a expectativa de dagógica no interior da sala se aula devesse assu­ por si mesmo. Ele é sempre algum tipo de passa­
que os métodos por elas propostos poderiam ter mir um caráter autoritário. Simplesmente im­ gem (de um ponto a outro); uma certa transfor­
aceitação universal, isto se devia ao fato de que porta reter que o critério para se aferir o grau mação (de algo em outra coisa). É, enfim, a pró­
dissociavam a educação da sociedade, conceben­ em que a prática pedagógica contribui para a pria catarse (elaboração-transformação da estru­
do esta como harmoniosa, não-contraditória. Já instauração de relações democráticas não é in­ tura em super-estrutura na consciência dos ho­
o método que preconizo deriva de uma concep­ terno mas tem suas raízes para além da prática mens).
ção que articula educação e sociedade e parte pedagógica propriamente dita. Se a educação é Entendo, pois, que o processo educativo é
da consideração de que a sociedade em que vi­ mediação, isto significa que ela não se justifica passagem da desigualdade à igualdade. Portanto,
vemos é dividida em classes com interesses por si mesma mas tem sua razão de ser nos só é possível considerar o processo educativo
opostos. Conseqüentemente, a pedagogia pro­ efeitos que se prolongam para além dela e que em seu conjunto como democrático sob a con­
posta, uma vez que se pretende a serviço dos persistem mesmo após a cessação da ação peda­ dição de se distinguir a democracia como possi­
interesses populares, terá contra si os interesses gógica. Considerando-se, como já se explicitou, bilidade no ponto de partida e a democracia co­
até agora dominantes. Trata-se, portanto, de que, dado o caráter da educação como media­ mo realidade no ponto de chegada. Conseqüen­
lutar também no campo pedagógico para fa­ ção no seio da prática social global, a relação temente, aqui também vale o aforismo: demo­
zer prevalecer os interesses até agora não domi­ pedagógica tem na prática social o seu ponto de cracia é uma conquista; não um dado. Este pon­
nantes. E esta luta não parte do consenso mas partida e seu ponto de chegada, resulta inevitá­ to, porém, é de fundamental importância. Com
do dissenso. O consenso é vislumbrado no pon­ vel concluir que o critério para se aferir o grau efeito, assim como a afirmação das condições
to de chegada. Para se chegar lá, porém, é neces­ de democratização atingido no interior das es­ de igualdade como uma realidade no ponto de
sário, através da prática social, transformar as colas deve ser buscado na prática social. partida torna inútil o processo educativo, tam­
relações de produção que impedem a constru­ Se é razoável supor que não se ensina de­ bém a negação dessas condições como uma pos­
ção de uma sociedade igualitária. A pedagogia mocracia através de práticas pedagógicas anti­ sibilidade no ponto de partida, inviabiliza o tra­
por mim denominada ao longo deste texto, na democráticas, nem por isso se deve inferir que balho pedagógico. Isto porque, se eu não admi­
falta de uma expressão mais adequada, de "pe­ a democratização das relações internas à escola to que a desigualdade real é uma igualdade pos­
dagogia revolucionária", não é outra coisa se­ é condição suficiente de democratização da so­ sível, isto é, se não acredito que a desigualdade
não aquela pedagogia empenhada decididamen­ ciedade. Mais do que isso: se a democracia su­ pode ser convertida em igualdade pela mediação
te em colocar a educação a serviço da referida põe condições de igualdade entre os diferentes da educação (obviamente não em termos isola­
transformação das relações de produção. agentes sociais, como a prática pedagógica pode dos mas articulada com as demais modalidades
ser democrática já no ponto de partida? Com que configuram a prática social global), então,
Para além da relação autoritária ou efeito, se, como procurei esclarecer, a educação não vale a pena desencadear a ação pedagógica.
democrática na sala de aula supõe a desigualdade no ponto de partida e a E neste ponto vale lembrar que, se para os alu­
igualdade no ponto de chegada, agir como se as nos a percepção dessa possibilidade é sincrética,
Com o enunciado da terceira tese procu­ condições de igualdade estivessem instauradas o professor deve compreendê-la em termos sinté­
rei evidenciar como a Escola Nova, a despeito desde o início não significa, então, assumir uma ticos. Isto porque o professor deve antever com
de considerar a pedagogia tradicional como in­ atitude de fato pseudo-democrática? Não resul­ uma certa clareza a diferença entre o ponto de
trinsecamente autoritária, proclamando-se, por ta, em suma, num engodo? Acrescente-se, ain­ partida e o ponto de chegada sem o que não
seu lado, democrática e estimulando a livre ini­ da, que essa maneira de encarar o problema edu­ será possível organizar e implementar os proce­
ciativa dos alunos, reforçou as desigualdades cacional acaba por desnaturar o próprio sentido dimentos necessários para se transformar a pos­
tendo, portanto, um efeito socialmente anti-de­ do projeto pedagógico. Isto porque se as condi­ sibilidade em realidade. Diga-se de passagem
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que esta capacidade de antecipar mentalmente interesse em que os professores as submetam a
os resultados da ação é a nota distintiva da ativi­ uma crítica impiedosa à luz da prática que de­ REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
dade especificamente humana. Não sendo senvolvem. Com isso espero também contribuir
preenchida essa exigência cai-se no espontaneís­ para que os professores revejam sua própria ALTHUSSER, L., Posições. Lisboa, Livros Horizonte,
mo. E a especificidade da ação educativa se es­ ação pedagógica auxiliados e/ou provocados pe­ 1977.
boroa. las minhas posições.
BOLLNOW, O. F., Pedagogia e filosofia da existência.
Em síntese, não se trata de optar entre Evidentemente, a proposta pedagógica Petrópolis, Vozes, 1971.
relações autoritárias ou democráticas no inte­ apresentada aponta na direção de uma sociedade
CURY, C.R.J., Educação e contradição: elementos
rior da sala de aula mas de articular o trabalho em que esteja superado o problema da divisão
metodológicos para uma teoria crítica do fenôme­
desenvolvido nas escolas com o processo de de­ do saber. Entretanto, ela foi pensada para ser no educativo. São Paulo, tese de doutoramento,
mocratização da sociedade. E a prática pedagó­ implementada nas condições da sociedade brasi­ PUC-SP, 1979.
gica contribui de modo específico, isto é, pro­ leira atual onde predomina a divisão do saber.
Entendo, pois, que um maior detalhamento des­ FREIRE, P., Educação como prática da Uberdade.
priamente pedagógico para a democratização da
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967.
sociedade na medida em que se compreende co­ sa proposta implicaria a verificação de como ela
mo se coloca a questão da democracia relativa­ se aplica (ou não se aplica) às diferentes modali­ GOLDMANN, L., Ciências humanas e filosofia. São
mente à natureza própria do trabalho pedagógi­ dades de trabalho pedagógico em que se reparte Paulo, DIFEL, 1976.
co. Foi isso o que tentei indicar ao insistir em a educação nas condições brasileiras atuais.
GRAMSCI, A., Concepção dialética de história. Rio
que a natureza da prática pedagógica implica Exemplificando: um professor de história ou de de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978 (2ª ed.).
uma desigualdade real e uma igualdade possível. matemática; de ciências ou estudos sociais; de
Conseqüentemente, uma relação pedagógica comunicação e expressão ou de literatura brasi­ MARX, K., Contribuição para a crítica da economia
leira, etc., têm cada um, uma contribuição espe­ política. Lisboa, Editorial Estampa, 1973.
identificada como supostamente autoritária
quando vista pelo ângulo do seu ponto de parti­ cífica a dar em vista da democratização da so­ MELLO, G. N., Magistério de 1º grau: da competência
da pode ser, ao contrário, democrática se anali­ ciedade brasileira, do atendimento aos interes­ técnica ao compromisso político. S. Paulo, Cortez
sada a partir do ponto de chegada, isto é, pelos ses das camadas populares, da transformação es­ Ed./Ed. Autores Associados, 1982.
efeitos que acarreta no âmbito da prática social trutural da sociedade. Tal contribuição se con­
SAVIANI, D., "A filosofia da educação e o problema
global. Inversamente, uma relação pedagógica substancia na instrumentalização, isto é, nas fer­
da inovação em educação”. In, W.E. GARCIA
vista como democrática pelo ângulo de seu pon­ ramentas de caráter histórico, matemático, cien­ (org.), Inovação educacional no Brasil. S. Paulo,
to de partida não só poderá como tenderá, dada tífico, literário, etc., que o professor seja capaz Cortez Ed./Ed. A. Associados, 1980.
a própria natureza do fenômeno educativo nas de colocar de posse dos alunos. Ora, em meu
modo de entender, tal contribuição será tanto SAVIANI, D., Educação: do senso comum à cons­
condições em que vigora o modo de produção
ciência filosófica. S. Paulo, Cortez Ed./Ed. Autores
capitalista, a produzir efeitos socialmente anti­ mais eficaz quanto mais o professor seja capaz Associados, 1980a.
democráticos. de compreender os vínculos da sua prática com
a prática social global. Assim, a instrumentaliza­ SAVIANI, D., "Escola e democracia ou a teoria da
ção se desenvolverá como decorrência da Pro­ curvatura da vara". In, ANDE, Ano 1, n? 1, 1981,
pp. 22-33.
Conclusão: a contribuição do professor blematização da prática social atingindo o mo­
mento catártico que concorrerá a nível da espe­ SUCHODOLSKI, B., A pedagogia e as grandes corren­
Como assinalei na introdução, o objetivo cificidade da matemática, da literatura, etc., pa­ tes filosóficas: pedagogia da essência e pedagogia da
deste texto era prosseguir o debate iniciado ra alterar qualitativamente a prática de seus alu­ existência. Lisboa, Livros Horizonte, 1978.
com a publicação do artigo "Escola e democra­ nos enquanto agentes sociais. Insisto neste pon­
VÁZQUEZ, A.S., Filosofia da Práxis. Rio de Janeiro,
cia ou a teoria da curvatura da vara". Para isso to porque via de regra tem-se a tendência a se Paz e Terra, 1968.
lancei uma série de idéias que, obviamente, ne­ desvincular os conteúdos específicos de cada
cessitam ser mais desenvolvidas e detalhadas. disciplina das finalidades sociais mais amplas.
Eventualmente, poderá ser o caso de que elas Então, ou se pensa que os conteúdos valem por
necessitem ser retificadas. Daí a importância de si mesmos sem necessidade de referí-los à práti­
que se dê prosseguimento ao debate. ca social em que se inserem, ou se acredita que
Entretanto, penso não ser demais lembrar os conteúdos específicos não têm importância,
que o desenvolvimento, o detalhamento e a colocando-se todo o peso na luta política mais
eventual retificação das idéias expostas passa ampla. Com isso se dissolve a especificidade da
pela sua confrontação com a prática pedagógica contribuição pedagógica anulando-se, em conse­
em curso na sociedade brasileira atual. Daí o qüência, a sua importância política.
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