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ANTROPOlógicas

2015, nº 13, xx-yy

A Etnografia da Comunicação

Samuel Mateus
Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens
Fundação para a Ciência e Tecnologia
Portugal

RESUMO:
Todo aquele que se dedica a fazer investigação em Ciências Sociais depara-se com a necessidade de uma escolha
metodológica favorecendo uma abordagem quantitativa ou uma abordagem qualitativa. A etnografia constitui
uma das metodologias de pesquisa empírica que podem ser aplicadas à pesquisa em Ciências da Comunicação.
Este artigo apresenta o modo como esta ferramenta metodológica se consolidou no estudo da comunicação,
sublinhando as condições contextuais que permitiram o deslocamento desde ao campo da antropologia até ao
campo das Ciências da Comunicação. Caracteriza a etnografia da comunicação, desde a sua primeira formulação
por Dell Hymes, e descreve, a concluir, como a abordagem etnográfica tem sido aplicada aos estudos jornalísticos,
mais especificamente, à investigação empírica em torno da produção noticiosa.

PALAVRAS-CHAVE: Antropologia da Comunicação; Etnografia; Dell Hymes; Etnografia do Jornalismo

ABSTRACT:
The one who researches in Social Sciences faces the need for a methodological choice favoring either a quanti-
tative or a qualitative approach. Ethnography is one of empirical research methodologies that can be applied to
research in communication sciences.
This paper introduces how this methodological instrument has developed itself in the study of communication,
emphasizing the contextual conditions that allowed its adaptation from the field of anthropology to the field of
communication sciences. We depict the Ethnography of communication since its first formulation by Dell Hymes,
and describe, in conclusion, as the ethnographic approach has been applied to journalism studies, more specifi-
cally to empirical research around news production.

KEYWORDS: Anthropology of Communication; Ethnography; Dell Hymes; News Ethnography

Agradecimento à Fundação para a Ciência e Tecnologia e ao Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens.

Introdução
Uma das características fundamentais da etnografia Se a antropologia da comunicação introduz uma
é a versatilidade da sua metodologia, o que a torna abordagem cultural do fenómeno comunicacional, à
especialmente relevante para estudar os fenómenos etnografia da comunicação corresponde o trabalho de
sociais, não apenas no campo da antropologia, como análise empírica da prática comunicativa. Ele pretende
também no de outras ciências sociais e humanas, como, descrever o processo de comunicação enquanto pro-
por exemplo, as Ciências da Comunicação. É devido à cesso simbólico fundador das sociedades humanas.
dimensão pragmática da comunicação humana que a Os comportamentos comunicativos dos indivíduos
antropologia se revela especialmente relevante ao for- constituem os dados da sua análise mas o objectivo
necer-nos um modelo de análise perfeitamente adap- da etnografia da comunicação é, como explica Winkin
tado à pesquisa empírica das interacções quotidianas: (2001), definir os padrões que sustentam a interacção.
a etnografia. O método etnográfico permite observar É justamente porque é possível detectar um grau de
os modos como a comunicação - entendida num am- previsibilidade, estabilidade e regularidade na co-
plo sentido semiótico incluindo as chamadas para-lin- municação que esses padrões podem ser analisados.
guagens como a quinésica e a proxémica – ocorre e se A pesquisa em antropologia da comunicação, e parti-
desenvolve nas mais diversas actividades sociais, des- cularmente a abordagem etnográfica da comunicação,
de a mais institucionalizada (cerimónia institucional) centra-se, não tanto no conteúdo, quanto no contexto,
até à mais prosaica (um turista a pedir informações a não tanto na informação quanto nos processos de for-
um indivíduo local). mação da significação.
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O Método Etnográfico em Comunicação consiste, la que fez da etnografia um campo muito promissor
antes de mais, num estudo monográfico escrito por em Ciências da Comunicação – ocorre nos anos 1930,
alguém que dedicou uma parte considerável do seu entre as duas guerras mundiais, quando os antropólo-
tempo a observar (de forma participante), descrever, gos americanos como Lloyd Warner, deixaram de tra-
anotar e examinar um objecto de estudo empírico ou balhar em sociedades e culturas distantes e passaram
comunidade comunicativa (seja a redacção de um a analisar a sua própria cultura transformando a ex-
jornal, seja a comunicação efémera que se estabelece cursão exótica em incursão endótica. A própria socio-
entre dois transeuntes, seja uma interacção discursiva logia, nomeadamente a da Escola de Chicago, sobretu-
entre um vendedor e um comprador). Foca-se nos atri- do a partir de Robert Park, adopta esta postura de uma
butos diferenciadores dessa comunidade comunicati- etnografia doméstica direccionando as suas pesquisas
va enfatizando a sua especificidade cultural ao mesmo multidisciplinares para os grandes centros urbanos.
tempo que sublinha os processos de construção e de Começam aí a desenvolver-se os trabalhos sobre a ci-
partilha social do sentido (as suas premissas, as suas dade, os bairros e os seus habitantes. A experiência de
“formas de vida”, as suas “regras imperceptíveis”, trabalho de campo (de antropólogos e sociólogos) des-
os seus códigos). O etnógrafo da comunicação busca, loca-se para a sua própria sociedade. A ciência social
deste modo, um padrão comunicativo culturalmente desloca-se de ilhas ou locais remotos para a própria
distintivo. Fá-lo empregando uma abordagem compa- rua, para o próprio ambiente onde vive o observador.
rativa que tem em conta outras comunidades comu- Regista-se, assim, o deslocamento da pesquisa exó-
nicativas, outros modos de falar e de significar, outras tica (em povos e culturas distantes, não-ocidentais,
formas culturais de prática simbólica. Daí que ao et- sem escrita, sem Estado) para a pesquisa endótica dos
nógrafo seja aconselhável possuir conhecimentos sóli- ambientes sociais mais prosaicos e quotidianos e da
dos da literatura científica para que esta lhe faculte os apropriação técnica que os indivíduos fazem todos os
conhecimentos de fundo necessários para interpretar dias para executar as mais simples tarefas.
a singularidade do seu objecto de investigação. O mé- No texto Approches de Quoi, de 1973, o romancista e
todo etnográfico revela-se, assim, segundo uma orien- ensaísta francês Georges Perec salientava dois modos
tação descritiva apoiada num sistema de categorias e de apreensão da realidade: o primeiro insiste sobre
conceitos que são desenvolvidos, aplicados e re-inter- a carga evenemencial, do insólito, do acontecimento
pretados à medida que a análise empírica se realiza. espectacular; o segundo interessa-se, pelo contrário,
O ponto central do método etnográfico nos estudos com a banalidade, o quotidiano, o “evidente”, o co-
em Comunicação não passa tanto pela apropriação mum, pelo ordinário, no fundo, pela vida de todos
da variedade comunicativa mas sobretudo explicá-la os dias. Este segundo modo de apreensão do real é
e compreendê-la à luz das culturas onde a actividade aquele que caracteriza a antropologia, nomeadamente
comunicacional se insere. Visa o desenvolvimento de o trabalho etnográfico no terreno: a compreensão das
um modelo heurístico de investigação geral (interpre- actividades humanas nos diferentes contextos cultu-
tativa e descritiva) que seja empiricamente sensível rais tendo por objectivo identificar as regularidades,
aos detalhes que tecem as particularidades de uma co- os ciclos e os ritos que preenchem o quotidiano. Perec
munidade comunicativa. utiliza a expressão “infra-ordinário” (1989) para desig-
nar esses aspectos mínimos e “invisíveis” da realida-
de chamando a atenção para a necessidade de narrar
1. Etnografia: Do Exótico ao Endótico os pormenores, os ruídos de fundo (bruit de fond), as
minudências dos hábitos. Como é fácil concluir pelos
Embora nunca tenha utilizado o termo, Malinowski próprios valores-notícia do jornalismo, a nossa análise
(1978) lançou as bases para a primeira revolução da do ambiente que nos rodeia está condicionada áquilo
etnografia ao fazer da observação participante um dos que constitui a excepção, o raro, o escândalo. Está pre-
seus mais importantes pilares. Na parte inicial de Ar- parado para detectar as diferenças, as transgressões
gonauts of the Western Pacific, de 1922, ele desenvolve às regras mas não para coligir as regularidades, para
uma teoria sobre o trabalho de campo enfatizando o avaliar o trivial, para perceber a “utilidade do fútil” e
quanto a convivência íntima, e em primeira mão (e do excesso.
inter-subjectiva) entre etnólogo e cultura estudada, Ora, a antropologia traduz-se nesta dedicação ao
durante períodos extensos de estudo, pode ajudar a infra-ordinário sublinhando a necessário descontinui-
conhecer uma sociedade específica e perceber o sig- dade entre signos e hábitos de observação, desfami-
nificado particular da sua lógica cultural. E Mauss liarizando as noções habituais. A etnografia traduz-se
(1967), no seu Manuel d’Ethnographie considera fun- por uma antropologia do endótico, por um resgate das
damental que o antropólogo aprenda a observar de- coisas simples e vulgares como objectos de legítima
talhadamente com vista à classificação dos fenómenos análise. É ao gerar uma distância entre as coisas e o
sociais. “Para ser rigorosa, uma observação deve ser seu ambiente de fundo, é ao introduzir a surpresa e
completa: onde, por quem, quando, como, porque se o estranhamento que essa antropologia do endótico,
faz ou fez certa coisa. Trata-se de reproduzir a vida in- dedicada à análise da banalidade quotidiana, pode
dígena, não de proceder por impressões; de fazer sé- tornar significantes as práticas habituais.
ries, e não panóplias” (Mauss, 1967, p. 15). Uma das condições de emergência da etnografia
A segunda revolução do método etnográfico, aque- da comunicação foi justamente esse desvio do olhar
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antropológico do exótico para o endótico, do monu- Dell Hymes, em “Toward Ethnographies of Commu-
mental para o banal, do grande acontecimento para nication” (1964), sugere um método geral de pesquisa
o quotidiano humilde. Foi, assim, possível, incluir no etnográfica em comunicação baseada no trabalho de
espectro das Ciências da Comunicação o movimento campo descritivo e comparativo, como a única manei-
comunicativo tal como se expressa nas mais modes- ra de explorar coerentemente a linguagem. Ele propôs
tas exteriorizações, ao próprio nível da manifestação (Hymes, 1964) um conjunto de princípios estruturan-
da vida social sempre que, por exemplo, alguém, num tes de um estudo etnográfico da comunicação que po-
determinado ambiente social, se desloca no espaço e dem ser sintetizados do seguinte modo:
interage com os outros através dessa espacialidade.
A etnografia da comunicação preocupa-se, então, em 1. a primazia do discurso (parole) sobre a língua (langue)
devolver alguma opacidade à transparência da vida 2. a primazia do contexto sobre a mensagem
de todos os dias. Pôr em relevo os consensos, as con- 3. generalização das particularidades e particulariza-
venções, as regras tácitas, no fundo, interrogar as pre- ção das generalidades
sunções e os gestos mais prosaicos do ponto de vista
da sua carga comunicativa. Tal como a antropologia As comunidades diferem significativamente nos
do endótico, o etnógrafo da comunicação preocupar- seus modos de falar (ways of speaking), nos padrões de
se-á não apenas com os aspectos interessantes e esti- repertório linguístico e nos papéis e sentidos do dis-
mulantes mas igualmente com os aspectos cultural- curso. Isso salienta diferenças importantes quanto aos
mente considerados triviais, do aqui e agora em que valores, normas grupais e crenças. As etnografias da
os indivíduos negoceiam as suas múltiplas interacções comunicação devem, de acordo com Hymes (1972),
diárias. Como escreve Perec: “(Trata-se de) questionar descobrir e explicar a competência que permite aos
aquilo que cessou de nos surpreender. Vivemos, ver- membros de uma comunidade produzir e interpretar
dade; respiramos, verdade; caminhamos; descemos o discurso (o qual deve ser entendido num sentido
escadas, sentamo-nos à mesa para comer, deitamo-nos alargado como comunicação). Elas detectam o fun-
na cama para dormirmos. Como? Onde?, Porquê?” cionamento dessas “economias discursivas” (speech
(1989, p. 34) economy) (Hymes, 1974, p. 446) as quais nos permitem
Como o reconhecimento do endótico, com a pas- perceber o equilíbrio entre uma compreensão da lin-
sagem do acontecimento exótico à banalidade do en- guagem como algo colectivamente partilhado e algo
dótico foi possível, por exemplo, incluir no campo de dependente da variação e actualização individual dos
estudos da etnografia da comunicação a comunicação membros de uma sociedade (means of speech). É justa-
interpessoal, a interacção discursiva, ou as para- lin- mente nesta tensão entre economia discursiva e meios
guagens (corporal, gestual, proxémica, quinésica). discursivos que as etnografias da comunicação se ba-
Na próxima secção, aludiremos a proposta do pri- seiam. O seu objectivo é traçar com rigor as condições
meiro autor a falar em etnografia da comunicação, o que num determinado ambiente social tornam os com-
antropólogo e linguística americano Dell Hymes. portamentos, os gestos ou as locuções, actos comuni-
cativos perfeitamente entendidos e plausíveis.
As etnografias da comunicação caracterizam-se
2. Etnografia da Comunicação sobretudo pela sua consideração fundamental do
sistema comunicativo das comunidades estudadas
A “etnografia da comunicação” (Ethnography of estabelecendo a ligação entre comunicação e a sua
Communication), não obstante relativamente pouco fa- dimensão moral, social e política. Assim, procuram
lada na academia lusófona, não é uma expressão nova. inserir a linguagem no âmago da acção humana e das
Ela foi, pela primeira vez, utilizada, em 1964, por Dell sociedades. No que pode apenas parecer uma varia-
Hymes, na sequência do seu artigo, de 1962, intitulado ção de um único código linguístico pode, afinal, para
“Ethnography of Speaking”, o qual não contemplava a etnografia da comunicação ser a emergência de uma
ainda as modalidades não-verbais e não- vocais da co- estrutura e de um padrão peculiar de uma economia
municação que viriam a modelar a pesquisa etnográfi- comunicativa de um grupo social em cujos hábitos e
ca em comunicação. práticas sociais esse código existe (Hymes, 1964). Se se
A etnografia da comunicação condensa um vasto considerar o acto de fala como parte de um sistema co-
programa de pesquisas sobre a relação entre lingua- municativo característico de um dado grupo social, os
gem e sociedade. O seu objectivo é levar os antropó- elementos e relações do código linguístico assumirão
logos a considerar a relação entre linguagem e a co- novos contornos. A etnografia da comunicação aborda
municação como um fenómeno cultural essencial, tão a linguagem, não como uma forma abstracta e formal
importantes para o funcionamento das sociedades de uma comunidade mas como um produto cultural
como as estruturas de parentesco ou os modos de or- situado, um fluxo padronizado de eventos comunica-
ganização social (Winkin, 2001). Esta nova área de es- tivos em integral associação com as sociedades onde
tudos explora a linguagem como algo culturalmente ocorrem. Forma e função comunicativas encontram-se
modelado que ocorre em qualquer contexto da vida em estreita dependência (Hymes, 1964). Não pode-
social. Advoga uma antropologia que seja capaz de mos perceber a afirmação: “Doí-me o estômago” sem
perceber na comunicação um produto eminentemente envolver o contexto social em que é proferida. Se nos
social. concentrarmos apenas na sua dimensão linguística, e
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ignorarmos a pragmática comunicacional que o estu- mente contraditórios concorrem para uma a cons-
do etnográfico da comunicação releva, concluiremos trução de uma padrão interactivo perfeitamente
que o seu sentido é o mesmo independentemente de harmonioso.
ser proferida por um mendigo ou por uma criança. • cada comunidade de comunicação baseia-se num
Com efeito, há que ter em atenção que o valor perlocu- conjunto de inferências e pressupostos tácitos par-
tório dessa afirmação pode variar: no primeiro caso, a ticulares. Os significados aí criados e os padrões
frase denunciará a fome do indivíduo e sugerirá uma ímpares de conduta postos em prática variam de
esmola; no segundo caso, pode denunciar a intenção comunidade para comunidade. Assim, participar
de fazer gazeta e não ir à escola nesse dia. enquanto interlocutor na linguagem dos pescadores
A etnografia da comunicação salienta, assim, as enquanto andam na faina é muito diferente de falar
múltiplas relações possíveis entre as mensagens e os com uma comunidade de engenheiros informáticos.
seus contextos, entre a forma e a função, entre o con- Os sentidos da interacção e as rotinas discursivas
teúdo e a relação. No fundo, enfatiza um estudo empí- são específicos a determinada comunidade.
rico da complexidade e padrões comunicativos. Como • as comunidades comunicativas integram, elas pró-
diz Hymes (1989), a comunicação não ocorre num va- prias, uma determinada cultura que lhes aumenta
zio social e interactivo. Pelo contrário, a comunicação o grau de especificidade. Os três anteriores pressu-
acontece em contextos culturais específicos e envolve postos apontem para uma variabilidade da comu-
não apenas o uso de signos verbais como também nicação; o quarto pressuposto indicia a estrutura
signos não-verbais e formas de mediação tecnológica cultural que preside à criação e partilha do sentido
(mensagens online, por exemplo) que relevam, ao et- das interacções.
nógrafo da comunicação, as relações sociais, as emo-
ções e as identidades social em jogo. O último pressuposto é fundamental, pois se se
No fundo, o quadro de referência do estudo et- aceita que os significados existentes comunicação
nográfico da comunicação passa por questionar: que entre dois ou mais indivíduos podem ser constantes,
eventos comunicativos ocorrem? Quais os seus componen- então, o estudo sistemático desses padrões comuni-
tes? Que relações existem entre si? Como funcionam? (Hy- cativos pode ter inicio. Esse estudo terá por objectivo
mes, 1964). identificar as variações culturais da actividade comu-
A Etnografia da Comunicação é, então, uma abor- nicativa analisando casos particulares para construir
dagem teórica e metodológica que estuda os meios modelos de análise que encerrem os princípios gerais
e os significados culturalmente distintos da comuni- da comunicação humanas. O movimento de análise
cação (Hymes, 1964). Interroga-se acerca das formas vai, assim, desde o universalismo (da análise do mé-
que as pessoas usam para comunicar na sua vida de todo etnográfico) para o particularismo (que caracte-
todos os dias e os significados que a comunicação tem riza uma determinada comunidade de comunicação)
para elas. Enquanto abordagem teórica ela oferece um regressando a um universalismo (de princípios gerais
conjunto de conceitos que nos permitem aferir e com- que orientam a conduta comunicativa dos homens).
preender qualquer processo comunicativo. Enquanto
metodologia envolve vários procedimentos de análise
empírica em contextos da vida social quotidiana. Esta Conclusão – as etnografias do jornalismo
abordagem tem sido utilizada para produzir uma vas-
ta literatura acerca dos padrões comunicacionais es- Após termos exposto, de forma abreviada, a abor-
pecíficos e dos usos contextuais e locais da linguagem dagem etnográfica da comunicação, queremos, a con-
tendo sido aplicada não apenas à escrita ou à oralida- cluir, apresentar uma área das Ciências da Comunica-
de, como ao próprio uso dos media. A comunicação é ção onde os trabalhos de inspiração etnográfica têm
percepcionada pelos etnógrafos da comunicação como sido especialmente abundantes: os estudos em jorna-
um processo social que envolve padrões simbólicos e lismo. Não que isto signifique que não haja trabalhos
que é formador de comunidades culturais. Ela é ana- noutras áreas. Pelo contrário, muito se tem investi-
lisada não apenas nas suas características culturais gado a comunicação de forma etnográfica, como por
particulares como nas propriedades que podem ser exemplo no campo de estudos de antropologia dos
detectadas noutras culturas. Media ou nos géneros televisivos, nomeadamente a te-
Ao nível da interacção social entre dois ou mais in- lenovela (Travancas, 2006). Porém, o jornalismo é uma
divíduos, os seguintes pressupostos balizam a investi- das áreas mais investigadas pelas Ciências da Comu-
gação etnográfica em comunicação (Philipsen, 1989): nicação. Talvez por isso os estudos jornalísticos foram
dos primeiros a adoptar o método etnográfico como
método de pesquisa em Comunicação, relevando as
fragilidades de paradigmas teóricos mais antigos que
• os “actores sociais” (são mais do interlocutores) evi- se baseavam exclusivamente na sua dimensão politi-
denciam, através das suas acções e interpretações, ca, sociológica ou económica.
um sentido partilhado que lhe permite orientar-se e Uma das principais vantagens da abordagem et-
coordenar o seu comportamento de forma eficaz. nográfica do jornalismo tem a ver com o descobrir e
• é baseado nessa partilha do sentido que nasce uma
relevar dos contextos culturais como factores deter-
lógica homogénea onde comportamentos aparente- minantes da prática jornalística e do funcionamento
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das redacções, tornando apreensíveis aspectos ante- po de escrita, da reflexão e da análise a que estavam
riormente “invisíveis”. A descrição e observação etno- habituados e caracterizam os seus artigos. A pesquisa
gráficas ajudam o investigador a analisar as práticas etnográfica em jornalismo encontra no mundo anglo-
quotidianas do jornalismo e como como essas acções, -americano a seu principal referência; contudo, outros
rotinas, atitudes e crenças que regem o dia-a-dia do estudos, noutros países, foram efectuados. No Brasil,
jornalista são condicionadas (por vezes, mesmo, refor- por exemplo, têm sido realizadas pesquisas de cariz
çadas) por forças sociais e culturais pré-existentes. etnográfico em meios de comunicação social, como o
A pesquisa etnográfica sobre a produção noticiosa jornal O Globo ou o telejornal Jornal Nacional (Travan-
do jornalismo (news ethnography) teve o seu início nos cas, 2010).
anos 1950 quando surgiram os primeiros estudos acer- Os estudos etnográficos do jornalismo ajudam-nos,
ca da relação entre as rotinas profissionais, a organiza- pois, a entender o jornalismo como um campo de pro-
ção espacial e factores organizacionais (como as rela- dução cultural influenciado por factores profissionais,
ções hierárquicas). O estudo de Manning White (1950) sociais e tecnológicos que afastam a ideia das notícias
acerca do Gatekeeping tornou-se clássico tendo sido a serem meros produtos do jornalista. A própria prática
base de muitos outros estudos acerca do processo de jornalística e produção noticiosa contemporâneas são
identificação e aplicação dos critérios de selecção no- também modeladas por factores estruturais que a ul-
ticiosa. No célebre artigo The “gatekeeper”: A case study trapassam e que a etnografia veio salientar com parti-
in the selection of news, White descreve, por intermé- cular acuidade.
dio de diversos períodos de observação participante, As etnografias do jornalismo não são senão uma
o modo como o editor de um jornal – pertinentemente das aplicações possíveis onde a abordagem etnográ-
baptizado de Mr.Gates – escolhe e rejeita os conteúdos fica pode ser proficuamente associada à pesquisa em
jornalísticos da sua publicação. Como saberão, White Ciências da Comunicação. Neste artigo circunscreve-
conclui que Mr. Gates confia num critério subjectivo de mos o método etnográfico aos estudos em comuni-
selecção de notícias geralmente muito dependente das cação e apresentámos o seu programa de trabalhos a
opiniões pessoais e inclinações políticas daqueles que partir da formulação pioneira de Hymes e do trabalho
fazem parte da sua hierarquia superior. de Winkin no campo da antropologia da comunicação.
Outro estudo fundamental dentro das etnografias O método etnográfico em Ciências da Comunicação
do jornalismo é o Making News: a study in the construc- representa o desenvolvimento de um modelo heurís-
tion of reality de Gaye Tuchman (1978). Procurando ul- tico de investigação (interpretativa e descritiva) que é
trapassar as dificuldades que a teoria (individualista, simultaneamente empírico e teórico. Empírico na me-
subjectiva e reducionista) do Gatekeeping patenteia, a dida em que tenta apreender a especificidade social e
autora empreende uma pesquisa etnográfica desti- cultural do fenómeno comunicacional a partir da ob-
nada a perceber como é que o trabalho jornalístico é servação minuciosa. Teórica não apenas porque tra-
definido, também, por necessidades ocupacionais e duz-se num testemunho teórico do objecto comunicati-
organizacionais. A ideia da objectividade como ritual vo examinado, como também porque se assume como
estratégico do jornalismo, por exemplo, permitiu dar uma teoria cultural e social da comunicação, a partir da
notoriedade aos constrangimentos organizacionais às qual se poderão extrair generalizações que permitam
dificuldades práticas experimentadas pelos jornalistas compreender outros objectos de estudo particulares.
durante a sua rotina profissional diária.
A partir dos anos 1990, as transformações sociais,
económicas e tecnológicas vieram transformar radical- Bibliografia
mente a produção jornalística. As pesquisas etnográfi-
cas tiveram de se adaptar à nova realidade com que o Cottle, S. (2003). Media Production and Organization. London:
jornalismo todos os dias se deparava: digitalização de Sage.
conteúdos, internet, mensagens electrónicas, trabalho Hymes, D. (1972), “On communicative competence” In J.
em rede. Há, assim, novos factores envolvidos, quer Pride, J. Holmes (Eds.), Sociolinguistics: selected readings,
na produção noticiosa, quer nos próprios comporta- Harmondsworth, Middlesex, Penguin pp. 269-293,
mentos dos jornalistas. Com a emergência do ciberjor- Foundations in Sociolinguistics: an ethnographic approach,
nalismo, não só os jornalistas tendem a tornar-se mais Philadelphia, University of Pennsylvania Press
sedentários fazendo menos reportagem e mais edição Hymes, D. (1964), Introduction: Toward Ethnographies of
de texto (Bastos, 2007), como as suas rotinas sofrem Communication. American Anthropologist 66 (6): 1–34.
importantes alterações coma saturação multimédia Malinowski, B. (1978). Argonauts of the Western Pacific:
que caracterizam os seus contextos de produção. An Account of Native Enterprise and Adventure in the
Simon Cottle, autor de vários estudos em etno- Archipelagoes of Melanesian New Guinea. London:
grafia do jornalismo, explica em Media Production Routledge.
and Organization (2003) o quanto a rapidez da infor- Mauss, M. (1967). Manuel d’Ethnographie. Paris : Éditions
mação modificou a própria natureza do jornalismo e Sociales.
como a introdução na redacção de tecnologia multi- Perec, G. (1989). L’Infra-Ordinaire. Paris: Seuil.
tarefas (multi-skilling technology) (e as suas vantagens Philipsen, G. (1989), “An Ethnographic Approach to
económicas e institucionais) influenciou o papel dos Communication Studies”. In B. Dervin, L. Grossberg, B.
jornalistas enquanto story-tellers privando-os do tem- O’Keefe, E. Wartella, (eds.), Rethinking Communication:
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Paradigm Exemplars, Newbury Park, Sage, pp. 258-269.


Travancas, I. (2006), “Fazendo Etnografia no Mundo da
Comunicação” In A. Barros, J. Duarte (org.), Métodos e
Técnicas de Pesquisa em Comunicação, São Paulo, Atlas,
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Travancas, I. (2010), An Ethnography of Journalistic
Production – case studies of the Brazilian Press, Brazilian
Journalism Research, vol.6, nº2, pp.82-102.
Tuchman, G. (1978). Making News: a study in the construction
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study in the selection of news, Journalism Quarterly, 27:
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