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O Sítio das Drogas | Luís Fernandes
Capítulo 2: Da teoria
p. 49-65
Texte intégral
1 Insistamos ainda no método: toda a discussão sobre ele convoca o discurso
epistemológico. Discutir conceções metodológicas, sejam elas antagónicas,
concorrentes ou complementares, conduz à discussão sobre as racionalidades
científicas de fundo que as sustentam. Tornada clara a opção por uma racionalidade,
tratou-se, nas páginas anteriores, de descrever um método coerente com ela, de
especificar as técnicas que o operacionalizam. Estávamos já num nível menos abstrato,
pois pensávamos na necessidade de aceder a um objeto – algo que justificasse, afinal, o
“para quê” do método. Demo-nos conta também, neste trajeto, de que as sucessivas
opções implicavam escolhas teóricas. Ou ao contrário: de que as escolhas teóricas
implicam opções no método. Ou seja, de que avançar num implica ir aprofundando o
outro. Teremos, pois, de dizer algo sobre as aproximações sucessivas a áreas e a temas
teóricos. “Escolher um método é escolher uma teoria. Nenhuma metodologia se
justifica por ela mesma, é necessário, para lhe compreender a escolha e o uso,
aproximá-la da teoria com a qual é compatível […]” (Coulon 1992).
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Hammersley e Atkinson 1983; Platt 1983; Hammersley 1989; Denzin 1989; Adler 1990;
Atkinson 1990; Dan Rose 1990).
3 Este alargamento das técnicas de recolha empírica é enquadrado, simultaneamente,
por uma renovação conceptual, que propõe alguns dos conceitos que vão reaparecer
periodicamente, como temas persistentes, na sociologia da desviância, na criminologia
e nos estudos de ecologia social. Sairia fora dos nossos objetivos expor aqui os pontos
de vista e as genealogias teóricas, empíricas e mesmo disciplinares que potenciou ou
originou. Trata-se de um tema vasto, que tem sido objeto de estudos aprofundados.1
Sintetizaremos no quadro I aquilo que identificámos como contribuições importantes
da Escola de Chicago.2
4 O peso de uma tradição é, como sabemos, fonte de legitimação; o que nos legitimou
esta aproximação à Escola de Chicago?
a. a vocação interdisciplinar;
b. a vocação naturalista;
c. a pertinência do dado qualitativo;
d. o enquadramento eco-social dos comportamentos desviantes.
TÉCNICAS PRINCIPAIS:
histórias de vida;
a cidade:
observação participante em desviância
interrogação espacial,
meio urbano; utilização de normativa
interativa, cultural
documentos pessoais e de variação cultural, ecologia urbana
(Park, Burgess, Wirth:
fontes documentais diversidade cultural sociologia da desviância
The city, 1925; Wirth:
(estatísticas, censos…) comunidade criminologia ambiental
Urbanism as a way of
ESTILOS DE PESQUISA: urbana, áreas abordagens processuais
life, 1938)
posições percetivas naturais microssociológicas e
os “mundos
proximais; estudos nicho ecológico etnográficas
desviantes”
naturalistas; atitude território; zona labelling theories (no
(Anderson: The
apreciativa (por oposição à intersticial cruzamento entre
Hobo, 1923)
correcional - Matza 1969); desorganização Escola de Chicago e
as “carreiras
dar conta do ponto de vista social interaccionismo)
desviantes”
dos atores envolvidos transmissão intervenção comunitária
(Sutherland:
inspiração nos métodos da microcultural dos (noções de participação
Professional Thief,
antropologia, aplicando-os comportamentos cidadã, autoajuda,
1938)
à exploração direta de tipos desviantes cultura da pobreza)
as subculturas
e de settings urbanos controlo social
(Whyte: Street Corner
multiplica os métodos de informal
Society, 1942)
observação em ciências
sociais
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“Sob o termo ator social são vinculadas as ideias de que o sujeito não é um ser passivo no
qual o comportamento resultaria do jogo dos determinismos ou poderia explicar-se em
termos de estímulo-reação.” (Debuyst 1990)
24 Blumer (1982), na sua análise ao pensamento de Mead, refere: “No seu esquema, Mead
estima que a ação é uma conduta elaborada pelo ator e não uma resposta prefigurada
da sua organização pessoal”. Em que difere esta conceção da ação humana das
tradicionais que têm dominado na psicologia e na sociologia? Vejamos aquilo de que se
afasta e aquilo que anuncia:
25 a) Aquilo de que se afasta: da ação humana explicada através da causalidade
elementar; do indivíduo como entidade agida por conjuntos de fatores. Utilizemos as
formulações de Christian Debuyst e de Herbert Blumer, respetivamente: “(a noção de
ator social) constitui uma distanciação em relação às posições dos positivistas.
Sublinhar esta afirmação não é outra coisa senão ter em conta o grau de
complexificação que apareceu nas análises comportamentais feitas em psicologia e que
dificilmente permaneceu numa explicação causal elementar” (Debuyst 1990). “Este
modo de considerar a ação humana é totalmente oposto ao que prevalece nas ciências
social e psicológica. Ambas consideram tal ação como um produto de fatores que
influem no, e através, do agente humano. Segundo as preferências do especialista, tais
fatores determinantes podem consistir em estímulos fisiológicos, impulsos orgânicos,
necessidades, sentimentos, motivos conscientes ou inconscientes, sensações, atitudes,
ideias, valores, normas, exigências do papel social, requisitos do status, preceitos
culturais, pressões institucionais ou do sistema social” (Blumer 1982).
26 A ação seria, assim, um produto dos fatores em função dos quais a investigação é
planeada. “À luz desta fórmula, o indivíduo converte-se num simples meio para o
funcionamento dos fatores que produzem o comportamento” (Blumer 1982).
27 b) Aquilo que anuncia: anuncia o papel fundador da interação e da interpretação, que
dão a toda a troca social um carácter emergente. Utilizamos de novo as formulações de
Ch. Debuyst e de H. Blumer: “Trata-se (com a noção de ator social) de definir o sujeito
como polo interpretador e atuante a partir de um ponto de vista que tem a sua
particularidade e que importa tomar em conta. […] É no quadro social e no das inter-
relações que o homem é chamado a ser ator […]” (Debuyst 1990). “Ao afirmar que se
possui um self, Mead quis dizer simplesmente que a pessoa é um objeto para si mesma.
Pode perceber-se, ter conceitos, atuar e comunicar consigo mesma. Destes tipos de
comportamentos resulta que o indivíduo pode converter-se no objeto da sua própria
ação, o que lhe proporciona os meios para entabular uma interação consigo mesmo,
interpelando-se, respondendo à interpelação e interpelando-se de novo” (Blumer
1982).
28 Esta autointeração, utiliza-a para conformar e orientar a sua própria conduta. O que
confere um carácter “radicalmente distinto” (Blumer 1982) à ação humana é
precisamente o carácter generativo da autointeração. É talvez importante salientar que,
para Mead, o self era processo e não estrutura. Demarca-se assim da linha teórica que
procura dotar as pessoas de um self, identificando-as com algum tipo de organização
ou estrutura. O self constitui-se em permanência a partir do processo reflexivo – por
outras palavras, tem a sua base na autointeração.
29 Atentemos, para finalizar, no papel do significado e da interpretação. Toma-se
necessário problematizar o conceito de significado: ele “não emana da estrutura
intrínseca da coisa que o possui nem surge como consequência de uma fusão de
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Notes
1. Remetemos para U. Hannerz (1980) e para A. Coulon (1992) para a descrição minuciosa das
investigações de campo e dos conceitos propostos pelos sociólogos de Chicago; para D. Matza (1969) e
M. Hammersley (1989), que realizam estudos críticos e falam das ligações desta escola ao interacionismo
simbólico e aos modernos estudos sobre o comportamento desviante; para Cosnier (1987), para a sua
influência nos estudos sobre interação na vida quotidiana; para H. Farberman (1979), que a situa em
relação à sociologia urbana; e para Brantingham e Brantingham (1981), que a situam em relação à
criminologia. Remetemos ainda para Nels Anderson (1983), que num relato autobiográfico descreve o
ambiente intelectual do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade de Chicago ao
tempo de Thomas, Burgess e Park (seu orientador no hoje clássico The Hobo).
2. Os autores que citamos no quadro não figuram na bibliografia final; indicamos os títulos e as datas
das obras para dar ideia dos temas e da sua cronologia.
3. Para a corrente interacionista, remetemos para H. Blumer (1982), criador do termo “interacionismo
simbólico” para os fundamentos desta corrente; para Becker e McCall (1990), para a sua aplicação a
várias áreas disciplinares; para Denzin (1989) para a descrição dos principais aspetos metodológicos; e
para E. Goffman (1986), H. Becker (1963), S. Cohen (1972) e P. Willis (1983), que são estudos empíricos
clássicos conduzidos de acordo com os princípios interacionistas. Acrescentamos que H. Blumer (1982)
refere que “entre os numerosos especialistas que utilizaram esta abordagem ou contribuíram para a sua
consolidação intelectual figuram autores norte-americanos tão notáveis como George Herbert Mead,
John Dewey, W. I. Thomas, Robert E. Park, William James, Ch. Cooley, Florian Znaniecki, J. Baldwin,
Robert Redfield e Louis Wirth”.
4. Para a descrição desta corrente remetemos para a sua obra fundadora (Garfinkel 1967) e para um
conciso texto de divulgação (Coulon 1987). Recentemente, a Social Psychology Quarterly (59: 1, 1996)
dedica uma parte da sua edição a Garfinkel. Chamamos a atenção, especialmente, para o artigo de D.
Maynard e para um do próprio Garfinkel.
5. Por sua vez, situa esta tradição experience based no funcionalismo estrutural de T. Parsons, na
fenomenologia de Husserl e na filosofia da linguagem comum de Wittgenstein.
6. Não partilhamos da conceção ingenuísta que aconselha a ir para o terreno desarmado, como se
existisse o estado de pura absorção empírica, ao estilo do marciano que chega e vê tudo a partir do zero.
Ir para o terreno prepara-se longamente, prepara-se dentro de uma tradição académica específica, e não
corta radicalmente com a vida anterior do investigador.
7. Esta dicotomia encontra-se já longamente problematizada pela própria física, paradigma das ciências
da natureza, tornando ainda mais estranha a insistência de certos círculos das ciências humanas nas
“condições de objetividade”. O método das histórias da vida é um excelente analisador das relações entre
a vida social “objetiva” e a forma como é contada por um sujeito – são uma “introspeção do social”
(Poirier, Clapier-Valladon e Raybuat 1983); ou, nos temos de Ferrarotti (1981), representam “uma
contração do social no individual, do namotético no ideográfico”. São dados que contêm “um tipo de
informação que, além disso, costuma ser difícil de obter de outra maneira: carregado de vivências,
perceções, sentimentos, valorizações” (Romani 1983). Os sujeitos “não podem trazer o que têm de mais
pessoal sem desenvolver no mesmo ato a verdade mais profunda de uma posição social, que age neles e
sobre eles (e que dá com frequência aos objetivos mais singulares na aparência um valor geral, enquanto
enunciados de invariantes, verdades de toda uma categoria)” (Bourdieu 1991a).
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