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20/02/24, 19:33 O Sítio das Drogas - Capítulo 2: Da teoria - Etnográfica Press

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Etnográfica
Press
O Sítio das Drogas | Luís Fernandes

Capítulo 2: Da teoria
p. 49-65

Texte intégral
1 Insistamos ainda no método: toda a discussão sobre ele convoca o discurso
epistemológico. Discutir conceções metodológicas, sejam elas antagónicas,
concorrentes ou complementares, conduz à discussão sobre as racionalidades
científicas de fundo que as sustentam. Tornada clara a opção por uma racionalidade,
tratou-se, nas páginas anteriores, de descrever um método coerente com ela, de
especificar as técnicas que o operacionalizam. Estávamos já num nível menos abstrato,
pois pensávamos na necessidade de aceder a um objeto – algo que justificasse, afinal, o
“para quê” do método. Demo-nos conta também, neste trajeto, de que as sucessivas
opções implicavam escolhas teóricas. Ou ao contrário: de que as escolhas teóricas
implicam opções no método. Ou seja, de que avançar num implica ir aprofundando o
outro. Teremos, pois, de dizer algo sobre as aproximações sucessivas a áreas e a temas
teóricos. “Escolher um método é escolher uma teoria. Nenhuma metodologia se
justifica por ela mesma, é necessário, para lhe compreender a escolha e o uso,
aproximá-la da teoria com a qual é compatível […]” (Coulon 1992).

Primeira aproximação: escola de Chicago e sociologia da


desviância
2 A primeira aproximação faz-se ao legado da Escola de Chicago e à sociologia da
desviância. É clássico identificar-se esta escola como a iniciadora, a partir dos anos 20,
das investigações naturalistas aplicadas aos comportamentos desviantes, bem como à
conceção da cidade como lugar com uma ecologia própria. Dissolve-se enquanto escola
homogénea durante os anos 30, mas deixa uma tradição na investigação social que se
prolonga até aos nossos dias. Filiam-se nesta tradição a etnografia urbana, o uso de
informantes e da observação participante e a utilização de documentos muito variados
(incluindo, o que é pouco referido, os de carácter quantitativo). Todas as investigações
de perfil naturalista levadas a cabo sobre áreas problemáticas e comportamentos
desviantes em contexto urbano se lhe referem; e alguns dos ensaios metodológicos que,
recentemente, procuraram fundamentar e sistematizar os métodos qualitativos de
terreno, também (cf. por exemplo Glaser e Strauss 1967; Blumer 1982; Weppner 1977;

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Hammersley e Atkinson 1983; Platt 1983; Hammersley 1989; Denzin 1989; Adler 1990;
Atkinson 1990; Dan Rose 1990).
3 Este alargamento das técnicas de recolha empírica é enquadrado, simultaneamente,
por uma renovação conceptual, que propõe alguns dos conceitos que vão reaparecer
periodicamente, como temas persistentes, na sociologia da desviância, na criminologia
e nos estudos de ecologia social. Sairia fora dos nossos objetivos expor aqui os pontos
de vista e as genealogias teóricas, empíricas e mesmo disciplinares que potenciou ou
originou. Trata-se de um tema vasto, que tem sido objeto de estudos aprofundados.1
Sintetizaremos no quadro I aquilo que identificámos como contribuições importantes
da Escola de Chicago.2
4 O peso de uma tradição é, como sabemos, fonte de legitimação; o que nos legitimou
esta aproximação à Escola de Chicago?

a. a vocação interdisciplinar;
b. a vocação naturalista;
c. a pertinência do dado qualitativo;
d. o enquadramento eco-social dos comportamentos desviantes.

5 Descobrimos também afinidade de interesses, que vimos hem traduzida em P.


Atkinson (1990) ao descrever os sociólogos desta escola como pessoas ocupadas com “o
demi-monde da vida de Chicago […], a underlife na cidade, o underdog e o desviante”.
Trata-se de conceber a cidade como interrogação autónoma. Caracterizar este mosaico
de espaços interdependentes corresponde a fazer a cartografia de novas formas de
sociabilidade, pois a cidade gera modos interacionais específicos.
6 A “antissociabilidade”, o indivíduo transgressor, os lugares de “má fama” são formas
existenciais e sistemas de normas em tensão com os sistemas dominantes. São talvez
“mundos desviantes”, como lhes chamava Nels Anderson (1983), São talvez zonas
intersticiais, como lhes chamava Thrasher. Mas são, sobretudo, indivíduos e contextos
“que têm de ser situados na sua luz própria, que é uma luz humana” (Matza 1969),
descrevendo com precisão “a anatomia social antes que possamos exatamente saber
que fenómenos são os que vemos” (Becker 1963). São, enfim, formas de sociabilidade
com regras acessíveis à descrição empírica, com a sua lógica e o seu ponto de vista
próprio, que podem ser captadas dentro da fidelidade ao princípio interacionista. Eis-
nos, já, na segunda aproximação.
QUADRO I – Descrição sinóptica da Escola de Chicago
Áreas disciplinares (originadas
Objeto Método Conceitos ou
desenvolvidas)

TÉCNICAS PRINCIPAIS:
histórias de vida;
a cidade:
observação participante em desviância
interrogação espacial,
meio urbano; utilização de normativa
interativa, cultural
documentos pessoais e de variação cultural, ecologia urbana
(Park, Burgess, Wirth:
fontes documentais diversidade cultural sociologia da desviância
The city, 1925; Wirth:
(estatísticas, censos…) comunidade criminologia ambiental
Urbanism as a way of
ESTILOS DE PESQUISA: urbana, áreas abordagens processuais
life, 1938)
posições percetivas naturais microssociológicas e
os “mundos
proximais; estudos nicho ecológico etnográficas
desviantes”
naturalistas; atitude território; zona labelling theories (no
(Anderson: The
apreciativa (por oposição à intersticial cruzamento entre
Hobo, 1923)
correcional - Matza 1969); desorganização Escola de Chicago e
as “carreiras
dar conta do ponto de vista social interaccionismo)
desviantes”
dos atores envolvidos transmissão intervenção comunitária
(Sutherland:
inspiração nos métodos da microcultural dos (noções de participação
Professional Thief,
antropologia, aplicando-os comportamentos cidadã, autoajuda,
1938)
à exploração direta de tipos desviantes cultura da pobreza)
as subculturas
e de settings urbanos controlo social
(Whyte: Street Corner
multiplica os métodos de informal
Society, 1942)
observação em ciências
sociais

Segunda aproximação: interacionismo simbólico e


etnometodologia
7 A segunda aproximação foi ao interacionismo simbólico e à etnometodologia. Tal como
na alínea anterior, também não é nosso objetivo desenvolver os pontos de vista e as
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direções investigativas destas correntes.3 De qualquer modo, daremos uma definição


breve do interacionismo, para podermos tomar claro, afinal, aquilo de que nos
aproximamos. Ridruejo Alonso, no prólogo que escreve para a obra Symbolic
Interactionism: Perspective and Method, de Herbert Blumer, sintetiza-o em três
premissas básicas: o ser humano orienta os seus atos em relação às coisas em função
do que estas significam para ele; a fonte desse significado é um produto social, que
emana das atividades dos indivíduos ao interatuarem; a utilização – do significado pelo
agente produz-se através de um processo de interpretação própria, que supõe
autointeração e manipulação de significados.
8 O comportamento é, pois, sentido – o acesso que podemos ter ao sentido só pode fazer-
se através do discurso do ator sobre as suas ações, não está inscrito na ação em si
mesma. Assim, consumir drogas, sendo aparentemente um comportamento observável
e portanto descritível, é antes um ato: depende do sentido que faz para o sujeito (o
modo como o inscreve na sua história e na sua cosmovisão), depende da forma como
ele interaciona esse comportamento enquanto símbolo de alguma coisa em si e que a
relação dos outros lhe devolve também enquanto símbolo. O comportamento e, assim,
um devir, aberto a diferentes possibilidades emergenciais de acordo com a própria
reflexão que o ator produz enquanto se comporta – reflexão que depende da interação
de símbolos que ocorre incessantemente.
9 Coulon (1992) enuncia assim o princípio fundamental do interacionismo: “É necessário
compreender o que fazem os indivíduos acedendo, do interior, ao seu mundo
particular, e tratar-se-á, pois, de descrever os mundos particulares dos indivíduos dos
quais queremos compreender e analisar as práticas sociais.”
10 A etnometodologia defende, por seu lado, o princípio de que “somos todos sociólogos
no estado prático. O real está já descrito pelas pessoas. A linguagem ordinária diz a
realidade social, descreve-a e constitui-a ao mesmo tempo” (Coulon 1987). Este
princípio metodológico, embora algo radical, sublinha no entanto a importância que é
dada ao ator social, a importância da fidelidade que a investigação deve guardar em
relação à sua visão do, mundo, à forma de o dizer e de se dizer a si próprio.4
Contrariamente ao ponto de vista clássico nos estudos sociais, que utiliza a grelha
conceptual e metodológica para produzir ordem num mundo social “aleatório”, a
etnometodologia concebe a vida social ordinária como um produto ordenado, cuja
estrutura sai da ação dos atores concretos. “A organização da interação quotidiana é
devida às atividades e ações contingencialmente incorporadas dos participantes à
medida que estas se manifestam como a concreta plenitude da experiência vivida”
(Maynard 1996). Garfinkel (1996) produz, a este respeito, uma curiosa reflexão:
“Pensando melhor, ocorreu-me que deveria ter dito que a etnometodologia é,
reespecificando o imortal Durkheim, a sociedade comum, fazendo-o evidentemente
através do desenvolvimento de um esquema de pressupostos”.
11 Este ponto de vista parece não passar de uma aporia. Mas, se a tarefa do investigador é
a de se debruçar sobre mundos desviantes (sejam “esquinas da droga” em bairros
periféricos, para falarmos de nós), talvez a ideia mais comum a respeito deles não seja
a de que são mundos comuns, e muito menos ordenados… e, no entanto, é isso que o
nosso trabalho etnográfico encontrará (por exemplo ao descrever as práticas do drug
deal, as interações num território psicotrópico…), indo plenamente ao encontro de tal
princípio etnometodológico.
12 Interacionismo simbólico e etnometodologia têm conceções semelhantes sobre a
natureza do mundo social (Hammersley 1989): dão relevo ao carácter significante do
comportamento humano e ao seu indeterminismo; as ações sociais ganham o seu
significado a partir do contexto em que se situam, mas ao mesmo tempo definem esse
contexto – Hammersley designa esta propriedade como círculo hermenêutico e Denzin
(1989) define-a como o facto de todos os atores estarem “prisioneiros” do círculo de
interpretação: “É impossível estar livre de interpretações, ou conduzir estudos
puramente objetivos”. Os atores partilham os métodos pelos quais produzem
significados – é aqui que está o lado simbólico da interação simbólica.

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13 Acrescentaremos para terminar que o interacionismo simbólico é uma corrente forjada


através do trabalho de campo, cujas posições teóricas são fundamentadas na
investigação etnográfica: “a interação simbólica é uma tradição de pesquisa empírica a
par com uma posição teórica, e a sua força deriva em parte do enorme corpo de
investigação que enquadra e dá sentido às suas posições abstratas” (Becker e McCall
1990). Herbert Blumer (1982) define assim a sua orientação metodológica: “O
interacionismo simbólico é uma abordagem realista do estudo do comportamento e da
vida de grupos humanos. O seu mundo empírico é o mundo natural dessa vida e
comportamento. Remete para o próprio mundo os seus problemas, realiza os seus
estudos no seu seio e extrai as interpretações com base nesses estudos naturalistas”. Dá
vários exemplos desta postura de exame direto do mundo social. Um deles refere-se,
curiosamente, ao objeto que nos interessa: “Se o que se pretende estudar é o uso de
drogas entre os adolescentes, recorrer-se-á à vida real deles para observar e analisar o
uso que fazem delas […]”.
14 Maynard (1996), numa revisão do trabalho dos principais etnometodólogos (inscreve o
seu texto numa homenagem a Garfinkel), situa a etnometodologia na sociologia e na
psicologia social (chama-lhe experience-based social psychology) e cita Bourdieu,
Habermas ou Giddens como “algumas das figuras proeminentes que lidam com a
postura etnometodológica”,5 Situaríamos também nós na charneira ente a psicologia
social e a sociologia autores centrais para a nossa filiação teórica, como Herbert
Blumer, Howard Becker e Erving Goffman.

Terceira aproximação: psicologia ambiental


15 Bachelard recomendava, em A Filosofia do Não, um exercício de autovigilância
epistemológica a que chamou psicanálise do espírito científico. Pois bem: olhando
retrospetivamente os vários planos de pesquisa que fomos modificando, notamos em
todos uma vontade de aproximação à psicologia ambiental. Tratava-se de, no
nomadismo interdisciplinar, não perder a referência da nossa disciplina de origem. Ao
seguir o fio às abordagens ecológicas desde Chicago, demo-nos conta de que elas são
introduzidas na psicologia, ainda de um modo pouco marcado, nos anos 60,
começando a partir dos anos 70 a desenvolver-se e a reclamar identidade própria, sob a
etiqueta da psicologia ambiental. Por agora queríamos só salientar que a Escola de
Chicago e a psicologia ambiental foram os referenciais com que procurávamos
enquadrar teórica e metodologicamente a nossa vontade de abordar o ambiente de um
modo naturalista.6
16 Acontece que aquilo que encontrámos ao explorar a psicologia ambiental não foram
indicações metodológicas precisas, mas uma dispersão de procedimentos. O que é,
aliás, congruente com o seu “carácter pluriparadigmático, que conduz necessariamente
a uma plurimetodologia” (Burillo e Aragones 1986). Este carácter advém-lhe,
acrescentam os autores, do facto de as relações homem-ambiente, objeto da psicologia
ambiental, constituírem também os interesses de muitas disciplinas e mesmo de outras
áreas da psicologia. E, dado que este objeto se desenvolveu primeiro na sociologia, na
antropologia e na etologia, é natural que a psicologia ambiental reflita nos seus modos
de recolha empírica esta contingência histórica.
17 Em síntese, quando procurávamos fundar o método perto da região disciplinar da
nossa própria formação académica, vimo-nos confrontados com a autoridade da
afirmação seguinte de uma das figuras cimeiras da psicologia ambiental: “Encontramo-
nos com uma variedade de técnicas de medida e de procedimentos de investigação
suscetíveis de serem empregados, que já foram aplicados em outras áreas das ciências
do comportamento. À parte dos problemas específicos a investigar, existem escassas
diferenças no uso destas técnicas entre a psicologia geral e a psicologia ambiental”
(Proshansky, citado por Burillo e Aragones 1986). Heimstra e McFarling (citados por
Arias 1986) são mais pessimistas e afirmam mesmo que “a psicologia ambiental não
chegará num futuro próximo a um método específico”. Para rematar este quadro,
fiquemos com a constatação de Arias (1986): assinala uma única obra específica de

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método em psicologia ambiental, que “descreve unicamente planos de investigação


usuais em psicologia”. Enfim, coexistem nela as diferentes tradições, caracteriza-se por
um pluralismo metodológico, o que pode, segundo os autores que temos estado a citar,
ser reflexo da carência de um paradigma único e compreensivo da psicologia
ambiental.
18 Do lado dos métodos não encontramos, portanto, nada de importante. Ensaiámos
ainda uma técnica que utilizava fotos de ambientes urbanos como mediadoras do
contacto interpessoal nas entrevistas, mas nunca a utilizámos como procedimento
nuclear. A revisão de uma das principais publicações desta área, o Journal of
Environmental Psychology (fundado em 1981), desde 1990 até agora, fundamentou-
nos a convicção de que grande parte da investigação e de características experimentais
ou recorre à utilização de escalas, inventários, etc. O método de observação direta é
pouco utilizado, a observação direta em situações naturais é remetida para a
antropologia cultural e para a etnografia urbana – os lugares de onde, afinal, já nós
vínhamos, quando decidimos investigar em contexto urbano: “a observação em
situações naturais permite muita liberdade ao investigador e frequentemente é
participante. É o método típico da antropologia social e da etnografia urbana. A sua
meta não é testar hipóteses, mas descrever a conduta do grupo da melhor forma
possível através de indicadores múltiplos: linguagem, costumes, valores, contactos
sociais, incidentes críticos, movimentos, etc. Utilizou-se como método em numerosas
áreas da psicologia ambiental, tais como espaço pessoal, análise de condutas
ecologicamente relevantes, etc., se bem que a sua área tradicional de aplicação por
excelência seja a denominada psicologia ecológica, cuja finalidade é a análise de
comportamentos que ocorrem em diferentes lugares e situações” (Arias 1986).
19 Esta autora, numa revisão ampla às investigações na psicologia ambiental, destaca-lhe
cinco características unificadoras: (1) ecletismo; (2) análise da conduta em diferentes
níveis; (3) interesse pelos processos subjacentes a um fenómeno; (4) utilização de
estratégias diferentes para a análise de um mesmo fenómeno; (5) quando explica, fá-lo
através de causalidade múltipla e circular, de acordo com a teoria geral dos sistemas. J.
Morval (1981), por seu lado, fala numa “perspetiva metodológica ampla: pragmática,
heterogénea, ecletismo metodológico, observação em meio natural” e num ponto de
vista conceptual também amplo, interdisciplinar, aplicado a um “objeto de pesquisa
constituído por grupos sociais reais no seu contexto habitual, […] compreensão das
unidades sociais tal como funcionam naturalmente”.
20 Se bem que alguns destes princípios metodológicos estejam também presentes no
nosso estilo de pesquisa, a aproximação à psicologia ambiental revelou-se sobretudo
frutífera no aspeto conceptual, ao permitir enquadrar teoricamente dados empíricos
(por exemplo, através de conceitos como territorialidade, espaço psicossocial,
identidade de lugar, clima social, significação ambiental…; ou através de teorias que
relacionam o tipo de espaço com a eficácia do controlo social informal e a emergência
de comportamentos desviantes).
21 Salientemos, no entanto, que tal como já acontecia com as técnicas de investigação em
contexto natural, também alguns dos conceitos que viemos encontrar na psicologia
ambiental têm a sua genealogia em Chicago. Seja por exemplo o de zona intersticial em
Thrasher e Clifford Shaw, seja o da ligação entre gang delinquente e território urbano
em Thrasher, seja o de controlo social informal (cf. Hannerz 1980; Coulon 1992).
Parece-nos necessário problematizar a aparente novidade do discurso da psicologia
ambiental, sem que isso sirva para negar aquilo que há de recente no estudo das
relações entre o homem e o ambiente.

Quarta aproximação: ator social


22 A quarta aproximação faz-se ao conceito de ator social. Temos vindo desde início a
utilizá-lo. Queremos com isso situar-nos numa conceção específica do sujeito, que
procuraremos elucidar brevemente. Consideramos necessário fazê-lo neste momento
porque tal conceção tem consequências metodológicas.

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“Sob o termo ator social são vinculadas as ideias de que o sujeito não é um ser passivo no
qual o comportamento resultaria do jogo dos determinismos ou poderia explicar-se em
termos de estímulo-reação.” (Debuyst 1990)

23 Podemos fazer remontar o conceito a H. G. Mead e a A. Touraine. Citemos Touraine


(1982):
“O estudo da sociedade encontra-se constantemente dividido em dois: de um lado, a
descrição das leis que regem a ordem metassocial, leis de evolução, princípios do direito,
lógica interna da filosofia religiosa; do outro, apreensão do projeto dos atores fechados no
mundo social, mas atraídos para o que o ultrapassa e lhe dá sentido. O estudo da
sociedade só pode ser o de uma ordem; o estudo dos atores só pode ser o das suas crenças
e dos seus projetos.”

24 Blumer (1982), na sua análise ao pensamento de Mead, refere: “No seu esquema, Mead
estima que a ação é uma conduta elaborada pelo ator e não uma resposta prefigurada
da sua organização pessoal”. Em que difere esta conceção da ação humana das
tradicionais que têm dominado na psicologia e na sociologia? Vejamos aquilo de que se
afasta e aquilo que anuncia:
25 a) Aquilo de que se afasta: da ação humana explicada através da causalidade
elementar; do indivíduo como entidade agida por conjuntos de fatores. Utilizemos as
formulações de Christian Debuyst e de Herbert Blumer, respetivamente: “(a noção de
ator social) constitui uma distanciação em relação às posições dos positivistas.
Sublinhar esta afirmação não é outra coisa senão ter em conta o grau de
complexificação que apareceu nas análises comportamentais feitas em psicologia e que
dificilmente permaneceu numa explicação causal elementar” (Debuyst 1990). “Este
modo de considerar a ação humana é totalmente oposto ao que prevalece nas ciências
social e psicológica. Ambas consideram tal ação como um produto de fatores que
influem no, e através, do agente humano. Segundo as preferências do especialista, tais
fatores determinantes podem consistir em estímulos fisiológicos, impulsos orgânicos,
necessidades, sentimentos, motivos conscientes ou inconscientes, sensações, atitudes,
ideias, valores, normas, exigências do papel social, requisitos do status, preceitos
culturais, pressões institucionais ou do sistema social” (Blumer 1982).
26 A ação seria, assim, um produto dos fatores em função dos quais a investigação é
planeada. “À luz desta fórmula, o indivíduo converte-se num simples meio para o
funcionamento dos fatores que produzem o comportamento” (Blumer 1982).
27 b) Aquilo que anuncia: anuncia o papel fundador da interação e da interpretação, que
dão a toda a troca social um carácter emergente. Utilizamos de novo as formulações de
Ch. Debuyst e de H. Blumer: “Trata-se (com a noção de ator social) de definir o sujeito
como polo interpretador e atuante a partir de um ponto de vista que tem a sua
particularidade e que importa tomar em conta. […] É no quadro social e no das inter-
relações que o homem é chamado a ser ator […]” (Debuyst 1990). “Ao afirmar que se
possui um self, Mead quis dizer simplesmente que a pessoa é um objeto para si mesma.
Pode perceber-se, ter conceitos, atuar e comunicar consigo mesma. Destes tipos de
comportamentos resulta que o indivíduo pode converter-se no objeto da sua própria
ação, o que lhe proporciona os meios para entabular uma interação consigo mesmo,
interpelando-se, respondendo à interpelação e interpelando-se de novo” (Blumer
1982).
28 Esta autointeração, utiliza-a para conformar e orientar a sua própria conduta. O que
confere um carácter “radicalmente distinto” (Blumer 1982) à ação humana é
precisamente o carácter generativo da autointeração. É talvez importante salientar que,
para Mead, o self era processo e não estrutura. Demarca-se assim da linha teórica que
procura dotar as pessoas de um self, identificando-as com algum tipo de organização
ou estrutura. O self constitui-se em permanência a partir do processo reflexivo – por
outras palavras, tem a sua base na autointeração.
29 Atentemos, para finalizar, no papel do significado e da interpretação. Toma-se
necessário problematizar o conceito de significado: ele “não emana da estrutura
intrínseca da coisa que o possui nem surge como consequência de uma fusão de

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elementos psicológicos na pessoa, mas é fruto do processo de interação entre os


indivíduos. O significado que uma coisa encerra para uma pessoa é o resultado das
distintas formas pelas quais as outras pessoas atuam relativamente a ela com respeito a
essa coisa. Os atos dos outros produzem o efeito de definir a coisa para essa pessoa”
(Blumer 1982). Ou seja, falar do significado de alguma coisa só tem sentido por
referência a um contexto. Parecendo isto elementar, encerra uma obrigatoriedade para
o investigador: só pode compreender o significado das interações sociais se tiver
maneira de as situar no contexto em que se coproduzem. Uma das maneiras de se
situar é figurando como ator no mesmo contexto. O significado é um produto social e
não uma imanência das coisas; o ator social é um produto e um produtor de significado
– é ator justamente porque é personagem ativo. A ação é uma conduta que requer ser
elaborada pelo ator, e não resposta prefigurada; a interpretação é um “processo
formativo no qual os significados são utilizados e revistos como instrumentos para a
orientação e formação do ato, e não uma mera aplicação automática de significados
estabelecidos” (Blumer 1982).
30 As quatro aproximações que realizámos não foram simultâneas. São resultado de um
processo de desenvolvimento pessoal ao longo da tarefa de recortar um objeto e de
aceder a posições percetivas que permitam descrevê-lo no seu próprio sistema natural.
Não é difícil agora dar conta de que têm em comum a partilha de uma racionalidade
fenomenológica das ciências sociais (na psicologia ambiental coexiste, no entanto, com
outras racionalidades e aliás em posição minoritária, parece-nos). Se, na quarta
aproximação, insistimos nos conceitos de ator social, de significado e de interpretação,
foi precisamente para chamar conceitos coerentes com esta racionalidade e para
colocar o objeto das ciências sociais – o homem – numa relação particular com o
investigador. Guy Berger (1992) define-a assim: “A tarefa do investigador, a tarefa de
construção do saber, é precisamente ir buscar junto daqueles que sabem o discurso de
que são portadores. […] O papel das ciências sociais […] seria, em última análise, o
trabalhar o saber de que as pessoas são portadoras e não o de produzir saberes sobre as
pessoas coisificadas que elas não seriam capazes de saber”. Esta relação particular do
objeto com o investigador é a oposta daquela em que este “é alguém capaz de saber o
que os outros não sabem sobre a sua própria prática, produzindo um olhar exterior
sobre comportamentos considerados como cegos e desprovidos de saber sobre eles
próprios” (Berger 1992).
31 Parece-nos escusado determo-nos sobre as diferenças entre realizar entrevistas,
recolher depoimentos, etc., colocando-nos numa ou noutra das duas posições que
acabámos de descrever. Mesmo assim, gostaríamos de terminar toda esta primeira
parte dedicada ao método com algumas reflexões a propósito de um suposto obstáculo
epistemológico que costuma ser apontado aos dados empíricos obtidos tendo como
base esta filosofia de pesquisa: a subjetividade. Habitualmente, o debate gira em torno
das condições de evitamento da subjetividade ou, pelo contrário, da sua
inevitabilidade. A subjetividade seria um ente inexpurgável e a sua permanente
presença um dos critérios distintivos ciências da natureza/ciências humanas.7 Em
Cândido da Agra, a questão deixa de ser a de poder haver ciência a partir da
subjetividade ou apesar dela, mas a de se deve haver, e em que condições, uma ciência
da subjetividade. Cândido da Agra toma a singularidade do indivíduo não como o
obstáculo a contornar em direção a um conhecimento geral do homem (ou a um
conhecimento do homem geral), mas como objeto a reabilitar: a psicologia investigaria
as formas de produção da individualidade e da subjetividade. Os indivíduos são fruto
do jogo da determinação e da indeterminação, são fruto de causas externas que não
controlam, mas também da sua própria causalidade interna, sobre a qual podem tomar
decisões. São à uma autor e produto da sua história – singulares, irredutíveis à lógica
causalista clássica e ao prognóstico fechado. Têm uma grande margem de
indeterminação, a novidade está inscrita no seu devir não como acidente, mas como
estrutura.

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32 Objetivar a subjetividade, conferindo-lhe estatuto no documento em vez de a expulsar


como resíduo, corresponde a restituir ao campo do conhecimento os sentidos que os
atores atribuem à vida social e a reconhecer aos sujeitos aquilo que precisamente os
institui como sujeitos psicológicos: a sua individualidade e a sua subjetividade.

Notes
1. Remetemos para U. Hannerz (1980) e para A. Coulon (1992) para a descrição minuciosa das
investigações de campo e dos conceitos propostos pelos sociólogos de Chicago; para D. Matza (1969) e
M. Hammersley (1989), que realizam estudos críticos e falam das ligações desta escola ao interacionismo
simbólico e aos modernos estudos sobre o comportamento desviante; para Cosnier (1987), para a sua
influência nos estudos sobre interação na vida quotidiana; para H. Farberman (1979), que a situa em
relação à sociologia urbana; e para Brantingham e Brantingham (1981), que a situam em relação à
criminologia. Remetemos ainda para Nels Anderson (1983), que num relato autobiográfico descreve o
ambiente intelectual do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade de Chicago ao
tempo de Thomas, Burgess e Park (seu orientador no hoje clássico The Hobo).
2. Os autores que citamos no quadro não figuram na bibliografia final; indicamos os títulos e as datas
das obras para dar ideia dos temas e da sua cronologia.
3. Para a corrente interacionista, remetemos para H. Blumer (1982), criador do termo “interacionismo
simbólico” para os fundamentos desta corrente; para Becker e McCall (1990), para a sua aplicação a
várias áreas disciplinares; para Denzin (1989) para a descrição dos principais aspetos metodológicos; e
para E. Goffman (1986), H. Becker (1963), S. Cohen (1972) e P. Willis (1983), que são estudos empíricos
clássicos conduzidos de acordo com os princípios interacionistas. Acrescentamos que H. Blumer (1982)
refere que “entre os numerosos especialistas que utilizaram esta abordagem ou contribuíram para a sua
consolidação intelectual figuram autores norte-americanos tão notáveis como George Herbert Mead,
John Dewey, W. I. Thomas, Robert E. Park, William James, Ch. Cooley, Florian Znaniecki, J. Baldwin,
Robert Redfield e Louis Wirth”.
4. Para a descrição desta corrente remetemos para a sua obra fundadora (Garfinkel 1967) e para um
conciso texto de divulgação (Coulon 1987). Recentemente, a Social Psychology Quarterly (59: 1, 1996)
dedica uma parte da sua edição a Garfinkel. Chamamos a atenção, especialmente, para o artigo de D.
Maynard e para um do próprio Garfinkel.
5. Por sua vez, situa esta tradição experience based no funcionalismo estrutural de T. Parsons, na
fenomenologia de Husserl e na filosofia da linguagem comum de Wittgenstein.
6. Não partilhamos da conceção ingenuísta que aconselha a ir para o terreno desarmado, como se
existisse o estado de pura absorção empírica, ao estilo do marciano que chega e vê tudo a partir do zero.
Ir para o terreno prepara-se longamente, prepara-se dentro de uma tradição académica específica, e não
corta radicalmente com a vida anterior do investigador.
7. Esta dicotomia encontra-se já longamente problematizada pela própria física, paradigma das ciências
da natureza, tornando ainda mais estranha a insistência de certos círculos das ciências humanas nas
“condições de objetividade”. O método das histórias da vida é um excelente analisador das relações entre
a vida social “objetiva” e a forma como é contada por um sujeito – são uma “introspeção do social”
(Poirier, Clapier-Valladon e Raybuat 1983); ou, nos temos de Ferrarotti (1981), representam “uma
contração do social no individual, do namotético no ideográfico”. São dados que contêm “um tipo de
informação que, além disso, costuma ser difícil de obter de outra maneira: carregado de vivências,
perceções, sentimentos, valorizações” (Romani 1983). Os sujeitos “não podem trazer o que têm de mais
pessoal sem desenvolver no mesmo ato a verdade mais profunda de uma posição social, que age neles e
sobre eles (e que dá com frequência aos objetivos mais singulares na aparência um valor geral, enquanto
enunciados de invariantes, verdades de toda uma categoria)” (Bourdieu 1991a).

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FERNANDES, Luís. Capítulo 2: Da teoria In : O Sítio das Drogas : Etnografia das Drogas numa
Periferia Urbana [en ligne]. Lisboa : Etnográfica Press, 2021 (généré le 20 février 2024). Disponible sur
Internet : <http://books.openedition.org/etnograficapress/7282>. ISBN : 979-10-365-6006-4. DOI :
https://doi.org/10.4000/books.etnograficapress.7282.

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FERNANDES, Luís. O Sítio das Drogas : Etnografia das Drogas numa Periferia Urbana. Nouvelle
édition [en ligne]. Lisboa : Etnográfica Press, 2021 (généré le 20 février 2024). Disponible sur Internet :
<http://books.openedition.org/etnograficapress/7245>. ISBN : 979-10-365-6006-4. DOI :
https://doi.org/10.4000/books.etnograficapress.7245.

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Etnografia das Drogas numa Periferia Urbana
Luís Fernandes

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