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Prefácio

A religião pode ser estudada de diferentes pontos de vista. Podemos estudar os seus aspectos
psicológicos, históricos, sociológicos ou políticos. Mas também podemos estudar os problemas
filosóficos que suscita. Esta pequena antologia oferece uma amostra de uma área da filosofia da religião
conhecida por «epistemologia da fé». Nela, estuda-se aspectos epistemológicos da crença religiosa, ou
fé. Difere, por isso, de outras áreas da filosofia da religião, nomeadamente a área metafísica central, que
trata da discussão dos argumentos a favor e contra a existência de Deus.
Muitos crentes sentem que esta última discussão é algo irrelevante — pois não é em função de
argumentos ou provas que têm fé. Apesar de poder haver algo de errado nesta posição (confundir o que
faz alguém ter fé com a sua justificação), há também algo que aponta para um aspecto que não é estudado
nessa área mais tradicional da filosofia da religião, mas sim na epistemologia da fé. Trata-se de saber se
haverá justificação para ter fé sem provas, argumentos ou indícios. Sem muita reflexão, muitos descrentes
responderão que não; muitos crentes responderão, talvez também sem muita reflexão, que sim. Que razões
haverá para cada uma destas posições? É este o nosso tema.
W. K. Clifford defende a primeira posição, a que se chama indiciarista: é epistémica ou
racionalmente ilegítimo acreditar em algo se não tivermos provas ou indícios a favor disso. William
James e Alvin Plantinga defendem versões diferentes da segunda posição: é legítimo acreditar sem
provas. No meu texto, apresento várias distinções e ideias que dão ao leitor instrumentos que lhe
permitem entrar na discussão. No final do volume, apresento também um conjunto de leituras
recomendadas.
Este livro nasceu em parte da disciplina de Filosofia da Religião que leccionei na Universidade
Federal de Ouro Preto em 2009. Tive a felicidade de contar com alunos interessados, inteligentes e
imaginativos, que tornaram as aulas vivas e estimulantes. Agradeço a todos o que me ensinaram; a minha
compreensão deste tema seria bastante diferente sem as suas objecções e contra-exemplos.
O meu ensaio foi meticulosamente lido e corrigido por vários amigos e colegas, a quem agradeço
calorosamente: Artur Polónio, Aires Almeida, Sagid Salles Ferreira, Faustino Vaz, Pedro Merlussi e Luiz
Helvécio Marques Segundo. As objecções que me levantaram permitiram melhorar bastante o texto
original, para benefício do leitor.
Finalmente, agradeço a Vítor Guerreiro, pela tradução atempada e esmerada dos textos, assim como a
Alvin Plantinga, que prontamente acedeu à publicação do seu texto.

Desidério Murcho
Ouro Preto, 28 de Junho de 2010
Sobre os autores

William Kingdon Clifford nasceu no dia 4 de Maio de 1845, na Inglaterra, e morreu na Ilha da
Madeira no dia 3 de Março de 1879, com apenas 34 anos. Apesar disso, deixou uma obra
matemática considerável, assim como palestras influentes de divulgação científica, ensino e
filosofia. Antecipou Albert Einstein (1879-1955), explorando as geometrias não-euclidianas. Das
suas ideias filosóficas, as mais influentes hoje são as que estão presentes no ensaio aqui publicado,
apresentando com grande clareza a posição de que só é legítimo acreditar em algo se tivermos
indícios a seu favor. Mas defendeu também teorias filosóficas na área da filosofia da mente e da
ética. Das suas obras, quase todas publicadas postumamente, destaca-se Elements of Dynamic, 2
vols. (1878, 1887), Seeing and Thinking (1879), Lectures and Essays (1879), Mathematical
Papers (1882) e The Common Sense of the Exact Sciences (1885).
William James, irmão do famoso romancista norte-americano Henry James (1843-1916), nasceu no
dia 11 de Janeiro de 1842, na cidade de Nova Iorque, e morreu no dia 26 de Agosto de 1910, em
Chocorua. Ajudou a fundar e desenvolver a psicologia científica, e foi um dos proponentes do
movimento filosófico norte-americano conhecido como pragmatismo. Os seus interesses eram
simultaneamente científicos e filosóficos; ao mesmo tempo, era muito sensível às manifestações
religiosas, sendo autor do que é ainda hoje uma importante fonte de informação antropológica sobre
a diversidade religiosa, The Varieties of Religious Experience (1902). Na esteira de C. S. Peirce
(1839-1914), e juntamente com John Dewey (1859-1952), defendeu o pragmatismo. Deste ponto de
vista, a verdade é seja o que for que funcione na prática. Da sua vasta obra destaca-se The
Principles of Psychology (1890), The Will to Believe and Other Essays in Popular Philosophy
(1897), Pragmatismo: Um Nome Novo para Algumas Formas Antigas de Pensar (1907; trad. F.
Martinho, INCM, 1997), The Meaning of Truth (1909), Some Problems of Philosophy (1911) e
Essays in Radical Empiricism (1912).
Alvin Plantinga (n. 1932) é um dos mais influentes filósofos actuais, com trabalhos muitíssimo
discutidos nas áreas da metafísica, filosofia da religião e teoria do conhecimento. Cristão
protestante, destacou-se por sustentar as suas ideias religiosas de um modo não só integrado nas
outras perspectivas metafísicas e epistemológicas que defende, mas também com a mesma precisão
analítica. Das suas obras, destaca-se God and Other Minds (1967; ed. rev. 1990), The Nature of
Necessity (1974), Deus, a Liberdade e o Mal (1974; trad. D. Murcho, Vida Nova, 2012), Does God
Have A Nature? (1980), Warrant: the Current Debate (1993), Warrant and Proper Function
(1993), Warranted Christian Belief (2000) e Essays in the Metaphysics of Modality (2003).
1. Fé, epistemologia e virtude

Desidério Murcho

Neste capítulo, começa-se por esclarecer a natureza da filosofia da religião. De seguida, esclarece-se
várias noções centrais de epistemologia, para então se proceder a uma análise preliminar do conceito de
fé. Finalmente, discute-se o tema central do livro: será legítimo acreditar sem provas?
O objectivo é triplo. Sem maçar o leitor com referências bibliográficas, que se encontram no final do
volume, oferece-se um conjunto de noções instrumentais, cujo domínio é importante para poder discutir
proficientemente o tema. Mas o objectivo é também incitar o leitor a raciocinar e teorizar intensamente;
daí que o texto seja, sobretudo, argumentativo e teorizador, e não descritivo ou histórico. Estes dois
objectivos ajudam a concretizar o terceiro: ajudar o leitor não só a compreender os textos de Clifford,
James e Plantinga, mas também a discuti-los activamente. Contudo, os textos destes autores têm muito
mais a dizer do que o que é discutido aqui; não se pretende esgotá-los, caso em que a sua publicação
seria redundante, mas antes explorar alguns dos seus temas.
A possibilidade da filosofia da religião
Alguns problemas centrais da filosofia da religião têm a vantagem, relativamente a problemas de outras
áreas da filosofia, de ser imediatamente compreensíveis para qualquer pessoa. É fácil compreender em
que consiste o problema da existência de Deus, por exemplo: será que Deus existe? Mas pensa-se por
vezes que nunca iremos saber se Deus existe ou não, invocando-se até Immanuel Kant (1724–1804) —
como se este importante filósofo tivesse descoberto que não se pode saber se Deus existe ou não, mais ou
menos como um cientista descobre o ADN ou a composição química da água.
Ao longo da nossa escolaridade e estudo individual habituámo-nos a compreender resultados
científicos, cuja paternidade ou maternidade é atribuída a este ou àquele cientista ou intelectual.
Transferindo esta atitude para a filosofia, encara-se Kant, ou outro filósofo, não como alguém que
apresentou teorias e argumentos que devemos analisar e discutir de maneira cuidadosa, mas antes como
uma espécie de cientista, que provou qualquer coisa mais ou menos definitivamente. Assim, se Kant
declarou que o problema da existência de Deus é insusceptível de ser resolvido (pela razão teórica), isso
é imprudentemente considerado um resultado definitivo da filosofia, um pouco como a descoberta que um
cientista pode fazer de quantas luas tem Júpiter. O resultado desta atitude é afastar a atenção dos
problemas centrais da filosofia da religião, como a existência de Deus. Fixa-se então a atenção sobre
problemas de sociologia da religião, história das religiões, psicologia e hermenêutica das religiões, etc.
— sobre tudo o que é susceptível de ser estudado empiricamente, recorrendo aos métodos aprovados
pela ciência.
Uma breve reflexão, contudo, mostra a instabilidade teórica desta posição. Se não se pode saber que
Deus existe nem que não existe, como sabemos que não se pode saber? Será a teoria do conhecimento de
Kant mais plausível do que as posições de outros filósofos, tanto antigos como contemporâneos, que
defendem que podemos saber que Deus existe, ou que não existe? Poderá parecer-nos que sim, sobretudo
se desconhecermos a bibliografia da área; mas tal como o desconhecimento da lei não iliba o
prevaricador, também o desconhecimento da bibliografia não fundamenta aquele que a ignora.
Imagine-se alguém que, nomeadamente por ser um cientista, está habituado a distinguir
cuidadosamente as opiniões descuidadas que as pessoas têm sobre biologia, por exemplo, de opiniões
fundamentadas no conhecimento da bibliografia relevante. Essa mesma pessoa pode considerar que, no
que respeita à filosofia, as coisas são diferentes, sendo desnecessário conhecer a bibliografia relevante.
Só aceitaria a ilegitimidade de ter opiniões descuidadas, que ignoram a bibliografia, sobre filosofia da
religião, epistemologia ou metafísica, se nessa bibliografia se encontrasse o género de resultados que se
encontra na bibliografia científica.
Contudo, esta posição assenta numa confusão. Mesmo que em filosofia não tenhamos o género de
resultados que temos na ciência, temos outro tipo de resultados: alternativas teóricas sofisticadas
cuidadosamente pensadas, argumentos rigorosamente explorados, distinções e análises clarificadoras. Se
ignorarmos a bibliografia relevante, estaremos a fazer filosofia outra vez como os primeiros filósofos
faziam, repetindo-lhes os passos — o que é desavisado porque podemos fazer melhor do que eles se
partirmos das suas investigações.
Não se deve confundir progresso com resultados. O progresso cognitivo numa área não depende
exclusivamente do género de resultados que há nas ciências. Podemos saber muito, e muito
sofisticadamente, sobre um problema, sem saber resolvê-lo, caso em que temos progresso sem
resultados. Recusar ler a bibliografia filosófica relevante porque esta não apresenta resultados
científicos é recusar o progresso filosófico entretanto alcançado. Ironicamente, se todos os cientistas se
tivessem recusado a estudar a bibliografia da sua área antes de esta apresentar resultados, nenhuns
resultados teriam sido alcançados.
Há duas maneiras comuns de argumentar a favor da ideia de que o problema filosófico da existência
ou inexistência de Deus é insolúvel, pelo que deve ser abandonado, e nenhuma é plausível. No primeiro
caso, argumenta-se que só podemos saber o que podemos saber pela experiência; dado que não podemos
saber pela experiência que Deus existe, segue-se que não podemos saber se Deus existe. No segundo,
defende-se que os argumentos a favor e contra a existência de Deus se anulam mutuamente.
O primeiro argumento enfrenta a seguinte dificuldade: a ideia de que só podemos conhecer o que
podemos conhecer pela experiência não pode ser conhecida ou sustentada pela experiência. Nenhuma
experiência laboratorial, por exemplo, permite determinar que só podemos conhecer o que podemos
conhecer pela experiência. Para estabelecer esta tese é necessário argumentar filosoficamente, e uma
parte importante dessa argumentação não será baseada na experiência. Por exemplo, pode-se argumentar
que todo o conhecimento implica justificação, e que a única justificação disponível é empírica. Mas o
próprio princípio de que o conhecimento implica justificação não é algo que se conheça pela experiência,
nem pela experiência se conhece a ideia de que só há justificações empíricas — na verdade, a
experiência parece até mostrar-nos o contrário, pois os matemáticos não recorrem à experiência para
estabelecer os seus resultados, que estão entre os mais sólidos resultados de sempre da empresa
cognitiva humana.
Isto significa que a ideia de que só podemos saber o que podemos saber pela experiência é, se não
incoerente, pelo menos teoricamente instável — pois, se for verdadeira, parece que não podemos saber
que é verdadeira. Uma saída para esta dificuldade é sublinhar, como Kant, a diferença entre saber ou
conhecer algo, por um lado, e pensar algo ou levantar conjecturas, por outro. Assim, podemos argumentar
que a nossa posição, pelos seus próprios critérios, não pode obviamente ser conhecida, porque não pode
ser conhecida pela experiência; no entanto, pode ser pensada ou conjecturada. Um problema desta
resposta é tornar aparentemente a posição original arbitrária. Pois se a posição original pode ser
conjecturada com densidade suficiente para em função dela se recusar a possibilidade de saber se Deus
existe ou não, então também podemos conjecturar que Deus existe (ou que não existe), apesar de
reconhecermos que essa é uma mera conjectura, e não conhecimento propriamente dito.
Quanto ao segundo argumento, enfrenta a seguinte dificuldade: para os argumentos a favor e contra a
existência de Deus se anularem mutuamente não basta contá-los, ou apresentar objecções a cada um dos
argumentos a favor ou contra a existência de Deus — é preciso mais. Nomeadamente, duas coisas, pelo
menos: primeiro, é preciso mostrar que os argumentos a favor e contra a existência de Deus são
rigorosamente de igual força; segundo, que quaisquer argumentos concebíveis contra ou a favor da
existência de Deus terão sempre os seus opostos, e de força rigorosamente igual. Ora, mostrar qualquer
uma destas duas coisas é cognitivamente mais exigente do que argumentar apenas que Deus existe ou que
não existe. Além disso, se todos os argumentos a favor e contra a existência de Deus se anulam porque
não têm base experimental, então também os argumentos a favor dessa mesma posição se anulam perante
os argumentos da posição rival, pois também aqui não há base experimental.
Além disso, é defensável que ambos os argumentos confundem o problema da existência de Deus com
o problema de saber se Deus existe. A diferença torna-se clara se pensarmos em extraterrestres. Neste
caso, é óbvio que há uma grande diferença entre saber se existem e existirem efectivamente ou não.
Podemos facilmente imaginar cenários em que os extraterrestres existem, mas, por não quererem dar-se a
conhecer ou porque, querendo, não podem fazê-lo por se encontrarem demasiado longe de nós, não
podemos saber da sua existência. Mas da impossibilidade de saber que os extraterrestres existem não se
segue que não existem, apesar de ser verdadeiro que se não existirem extraterrestres se segue que não
podemos saber que existem. No que respeita a Deus, mesmo que tivéssemos razões para pensar que não
podemos saber se existe, isso não constitui em si razões para pensar nem que Deus não existe nem que a
própria existência de Deus é irrelevante. Mesmo sem saber se Deus existe, podemos querer pensar na
hipótese de que existe ou que não existe, e, caso exista, que género de características poderá ou não
poderá ter.
Ambos os argumentos são, pois, improcedentes, pelo menos sem reformulações cuidadosas. Mas as
ideias subjacentes a estes argumentos desempenham o seu papel habitual: fazem parar de pensar e de
investigar ainda antes de se dar os primeiros passos.
Metafísica, epistemologia e lógica
A filosofia da religião ocupa-se de problemas metafísicos, epistemológicos e lógicos suscitados pelas
religiões. Esta é uma caracterização razoavelmente neutra da filosofia da religião, mas para a
compreender é necessário saber o que se entende em filosofia por problemas metafísicos,
epistemológicos e lógicos.
O problema intuitivamente óbvio da existência de Deus, por exemplo, é metafísico. Um problema
filosófico é metafísico quando diz respeito aos aspectos mais gerais da realidade — e não quando diz
respeito ao oculto ou ao misterioso, como popularmente se pensa, nem quando diz respeito ao que não
pode ser conhecido pela experiência. A ontologia é a subdisciplina da metafísica que procura estabelecer
as categorias mais gerais da existência. Isto implica discutir se há realmente números, por exemplo, ou
proposições, ou se estas são meras projecções mentais dos seres humanos. Num certo sentido, todos os
problemas são metafísicos, porque todos os problemas são sobre a realidade (incluindo os problemas
sobre o conhecimento da realidade, pois tal conhecimento é também parte da realidade). Mas é óbvio que
não consideramos que um físico está a fazer metafísica ao teorizar sobre átomos, por exemplo. A razão é
que consideramos que pertencem à província da metafísica apenas aqueles problemas fundacionais sobre
a realidade que não são susceptíveis de estudo científico (ou seja, experimental ou matemático).
Enquanto que a metafísica se ocupa de problemas fundacionais sobre a realidade, a epistemologia
ocupa-se de problemas fundacionais sobre o conhecimento e outros fenómenos cognitivos centrais, como
a crença e a fé. Por isso, chama-se «teoria do conhecimento» à epistemologia.
Usa-se por vezes o termo «epistemologia» para falar exclusivamente de filosofia da ciência. A
generalidade dos autores não faz tal coisa, porque a filosofia da ciência em si não trata apenas de
problemas epistemológicos suscitados pelas ciências, mas também de problemas lógicos (como o
problema da indução) e metafísicos (como o problema da existência ou inexistência de entidades
científicas postuladas, mas nunca directamente observadas, como os quarks).
O estudo filosófico do conhecimento, da crença e da fé difere do estudo científico, psicológico ou
sociológico destes mesmos fenómenos. Em sociologia pode-se perguntar, por exemplo, em que condições
sociais determinadas teorias — científicas, por exemplo — são vistas como verdadeiras; em psicologia
pode-se perguntar que tipo de processamento cognitivo ocorre quando se raciocina com base na
experiência, por oposição ao que ocorre quando se raciocina matematicamente apenas; mas em
epistemologia pergunta-se, por exemplo, se sabemos o que pensamos saber, em que condições há
conhecimento genuíno, o que é afinal o conhecimento em si, o que é a fé e se esta é epistemicamente
íntegra.
A lógica é uma disciplina transdisciplinar, no sentido em que usa recursos matemáticos, linguísticos e
filosóficos, e é também uma disciplina que tem aplicações em áreas diversas, como a filosofia, a
computação e a matemática. O objecto central de estudo da lógica é a argumentação e o raciocínio —
não estudando os aspectos psicológicos, retóricos, históricos ou sociológicos da argumentação e do
raciocínio, mas antes os aspectos relevantes para a cogência da argumentação e do raciocínio. «Central»
porque a lógica acaba por se interessar pela estrutura da linguagem, seja ou não argumentativa. Por
exemplo, em lógica queremos saber se a frase «O actual rei de França é careca» é uma expressão
puramente quantificada, como «Há cidades bonitas», ou uma expressão denotativa, como «Asdrúbal é
bonito».
Os argumentos e os raciocínios têm simultaneamente aspectos em comum e aspectos diferentes. Tanto
num caso como no outro se trata de articular informações para delas extrair conclusões; a diferença é que
num argumento se pretende persuadir alguém, ao passo que num raciocínio estamos apenas a tentar obter
conclusões a partir de informações.
Em filosofia da religião estuda-se problemas de carácter lógico suscitados pelas religiões; mas não
se estuda o tipo de problemas que se estuda na lógica propriamente dita. Um problema de carácter lógico
não é do interesse da própria lógica se depender fortemente de conceitos que pertencem a outras áreas
que não a lógica. É o que acontece no caso do problema do mal, em filosofia da religião. Este é um
problema de carácter lógico, no sentido em que se trata de saber se as seguintes afirmações são
consistentes entre si:

Deus é omnipotente, omnisciente e sumamente bom.


O mal gratuito existe.

Um conjunto de afirmações é consistente quando todas podem ser simultaneamente verdadeiras. Aquilo a
que em filosofia da religião se chama «o problema do mal» é, então, o seguinte: a existência de mal
gratuito parece incompatível com um Deus que pode impedir o mal porque é omnipotente, que sabe que o
mal existe e sabe como o impedir porque é omnisciente, e que quer impedi-lo porque é sumamente bom.
Fala-se de mal gratuito porque alguns males não são gratuitos, mas antes meios para bens maiores —
por exemplo, o mal de sofrer as dores de uma intervenção cirúrgica é um meio para o bem maior de ficar
saudável. Distingue-se também o mal moral do mal natural. O mal moral resulta da actividade humana,
como é o caso dos roubos ou homicídios; o mal natural não resulta da actividade humana, como é o caso
dos terramotos, das secas ou da maior parte das doenças. Pelo menos à primeira vista, é mais difícil
responder ao problema do mal natural do que ao problema do mal moral.
O problema do mal tem um carácter lógico, porque é um problema de consistência entre afirmações e
a consistência é um conceito lógico; mas não é um problema da lógica porque depende crucialmente de
conceitos extralógicos, como o conceito de mal, de Deus, de omnipotência, de omnisciência e de suma
bondade. E cada um destes conceitos levanta igualmente problemas lógicos que são estudados em
filosofia da religião e não em lógica, tratando-se de saber se, por exemplo, é possível articular
coerentemente os conceitos de omnipotência ou de omnisciência.
As distinções entre problemas metafísicos, epistemológicos e lógicos não devem ser entendidas como
se fossem estanques, claras e inequívocas. Os problemas lógicos, por exemplo, são metafísicos ou
epistémicos, consoante dizem respeito ao que pode ou não existir na realidade (poderá existir um ser
omnipotente?) ou ao que podemos ou não concluir (será que da existência do mal gratuito se pode
concluir que Deus não existe?); e, como deveria ser evidente, todos os problemas epistémicos dizem
respeito a um determinado aspecto da realidade: a actividade cognitiva de agentes capazes de ter estados
cognitivos sofisticados. Em todo o caso, é importante distinguir, ao abordar um dado problema, os seus
aspectos metafísicos, epistemológicos e lógicos.
Epistemologia
Conhecimento, crença e fé são conceitos distintos. Definir rigorosamente o conhecimento é um dos
problemas em aberto da epistemologia, mas algumas distinções cruciais podem ser dadas como
razoavelmente seguras.
Quando se fala de crença em filosofia não se tem em mente apenas a crença religiosa, caso em que
esta última expressão seria um pleonasmo. Por crença entende-se em filosofia qualquer representação,
susceptível de ser verdadeira ou falsa, que um agente cognitivo faz de seja o que for. As crenças podem
ser muito sofisticadas ou muitíssimo elementares: temos crenças sobre a natureza dos átomos, mas
também sobre a localização dos nossos joelhos. As opiniões são crenças razoavelmente sofisticadas e
articuladas; crianças de seis anos, por exemplo, podem ter crenças fortes sobre o que gostam ou não de
comer, mas não têm opiniões, políticas ou outras. O termo crença é usado em filosofia no sentido em que
muitos filósofos gregos usavam o termo δόξα (doxa). Já o termo fé é usado em filosofia no sentido do
termo grego πίστις (pistis) e do termo latino fides.
Podemos distinguir três tipos de conhecimento ou saber (as duas palavras são usadas como
aproximadamente sinónimas):

1. Conhecimento proposicional ou de verdades (saber-que);


2. Conhecimento por contacto; e
3. Saber-fazer.

O conhecimento proposicional é o que temos quando «sabemos que»: sabemos que Lisboa é uma cidade
portuguesa, que Marte é um planeta deserto e que a água é H2O. O objecto de conhecimento, neste caso, é
uma verdade ou uma proposição. (A noção de proposição será esclarecida de seguida.)
O conhecimento por contacto é o que temos quando sabemos algo directamente, ainda que não
tenhamos conhecimento de verdades claramente articuladas sobre isso: conhecemos Londres por contacto
quando visitámos Londres, mas só temos conhecimento por descrição de Londres (conhecimento
proposicional ou de verdades) se nunca visitámos a cidade, mas sabemos várias coisas sobre Londres.
Também temos conhecimento por contacto de nós mesmos, apesar de muitas vezes ser bastante difícil
articular o que sabemos realmente de nós mesmos: «Quando olho para mim, não me percebo», escreveu
Álvaro de Campos.
Finalmente, o saber-fazer é o que sabemos quando sabemos fazer algo, como andar de bicicleta,
raciocinar cogentemente ou pintar um quadro. O saber-fazer ou conhecimento como habilidade ou
competência não parece reduzir-se ao conhecimento proposicional ou de verdades e parece
marcadamente distinto deste: podemos saber muitas coisas sobre bicicletas e não saber andar de
bicicleta, e podemos saber andar de bicicleta sabendo quase nada sobre bicicletas (também é
argumentável que se pode saber muitas coisas sobre filosofia sem saber fazer filosofia).
O conhecimento é factivo, o que provoca por vezes confusões desnecessárias. Quando se diz que no
tempo de Ptolomeu se sabia que a Terra estava imóvel e agora se sabe que a Terra não está imóvel, vive-
se em plena confusão conceptual. Se a Terra está imóvel, nós hoje não podemos realmente saber que se
move — apenas podemos considerar erradamente que sabemos isso. E se a Terra sempre se moveu,
ninguém pôde algum dia saber que estava imóvel — apesar de muitas pessoas poderem ter tido essa
crença falsa.
O conceito de factividade não é exclusivamente filosófico: é também linguístico, dizendo respeito ao
tipo de pressuposições associadas a certos termos e às suas regras de funcionamento. As definições
rigorosas de factividade, infactividade e contrafactividade são as seguintes, sendo x uma pessoa
qualquer, V um verbo e p uma afirmação ou proposição:
Um verbo V é factivo se, e só se, «x V que p» implica p.
Um verbo V é infactivo (ou não factivo) se, e só se, «x V que p» não implica p.
Um verbo V é contrafactivo se, e só se, «x V que p» implica a negação de p.

Por exemplo, o verbo ver é factivo porque se o Asdrúbal vê que está a chover, então está a chover. Claro
que o Asdrúbal pode acreditar erradamente que está a ver chover quando na realidade está a sonhar ou a
ter uma alucinação ou a confundir a água de rega com chuva — mas em nenhum desses casos está
realmente a ver que está a chover. O mesmo acontece com o conhecimento: Asdrúbal só pode saber que
há vida em Marte se houver vida em Marte; se não houver vida em Marte, pode acreditar muito
firmemente que há vida em Marte, mas não pode saber tal coisa.
Ao contrário do conhecimento, a crença não é factiva — mas também não é contrafactiva, pois tanto
podemos ter crenças verdadeiras como falsas. Não são só os verbos que são factivos: advérbios,
adjectivos e quaisquer modificadores ou operadores podem ser ou não factivos. Pseudo- é contrafactivo
porque, se Asdrúbal for um pseudopintor, não é um pintor. Fingir é aparentemente contrafactivo, mas de
facto é apenas infactivo, pois uma pessoa pode estar a fingir que é rica acreditando que é pobre quando,
sem o saber, lhe saiu ontem a lotaria.
Em suma, ao passo que a crença não é factiva, o conhecimento é factivo. Insistir na factividade do
conhecimento por oposição à infactividade da crença pode parecer um exagero de exactidão, mas trata-se
apenas de rigor conceptual elementar. Tal como em física a massa não é esparguete, e a nenhuma pessoa
culta ocorre tratar esse conceito como se fosse tal coisa, também o conceito de conhecimento é factivo e
é escusado insistir que é possível saber que a Terra está imóvel não estando a Terra imóvel.
Não adianta também argumentar que há um conceito de conhecimento que não é factivo, diferente do
conceito filosófico, sendo esse o conceito que as pessoas sem formação filosófica adequada usam, pois
seria como argumentar que na verdade há um conceito de massa, diferente do conceito físico, sendo esse
o conceito que as pessoas que não sabem física usam quando falam de pedras a cair e de carros em
movimento. Com certeza que tanto num caso como no outro esses conceitos populares são usados pelas
pessoas, mas se estamos realmente interessados em estudar o conhecimento ou a massa, temos de
abandonar essas noções, que só produzem confusão.
Todo o conhecimento proposicional — assim como a crença — é uma relação entre uma pessoa que
conhece e uma proposição ou verdade conhecida. Portanto, quando não havia pessoas ou outros agentes
cognitivos, não podia haver conhecimento proposicional — ainda que existissem árvores e pedras e
planetas e átomos disponíveis para serem conhecidos caso existissem agentes cognitivos. E é também
óbvio que sem agentes cognitivos não havia conhecimento por contacto nem saber-fazer.
Por proposição entende-se geralmente o que é expresso por uma frase verdadeira ou falsa. A frase
«Está calor» exprime a proposição de que está calor em Ouro Preto no dia 1 de Março de 2009, mas
exprime outra proposição se for proferida noutro dia ou noutro local. Portanto, a mesma frase pode
exprimir diferentes proposições. E diferentes frases podem exprimir a mesma proposição: «A neve é
branca» e «Snow is white» exprimem ambas a proposição de que a neve é branca.
As frases são inequivocamente entidades espácio-temporais — um certo conjunto de sons articulados
num dado intervalo de tempo ou um certo conjunto de traços inscritos num papel. Mas as proposições não
são inequivocamente entidades espácio-temporais. Isto porque as proposições não se confundem com os
pensamentos, no sentido psicológico do termo, enquanto ocorrências físicas num cérebro. Quando penso
que está a chover e outra pessoa pensa o mesmo, o meu pensamento enquanto ocorrência física no meu
cérebro é diferente do pensamento dela enquanto ocorrência física no seu cérebro; mas ambos estamos a
pensar, num certo sentido, o mesmo pensamento — ou seja, estamos a pensar na mesma proposição. A
existência de proposições não é pacífica: alguns filósofos consideram que não existem tais coisas, sendo
forçados então a explicar o que há de comum entre várias frases ou pensamentos que exprimem o mesmo
(a via mais óbvia é insistir que tudo o que há de comum nas várias frases e pensamentos que dizem que a
neve é branca é representarem a neve como branca).
Que há pelo menos três tipos centrais de conhecimento (proposicional, por contacto e saber-fazer),
que o conhecimento é factivo e a crença não, e que o conhecimento e a crença proposicionais são
relações entre pessoas e proposições são aspectos elementares dos conceitos de conhecimento e de
crença. Contudo, é muito difícil saber precisamente o que é o conhecimento, com o mesmo tipo de
precisão com que sabemos o que é a massa em física. O problema da definição de conhecimento é
muitíssimo difícil, precisamente por se tratar de um conceito muito básico. Apesar disso, é comum
aceitar que há três condições necessárias para o conhecimento proposicional, ainda que não sejam
suficientes: para que algo seja conhecimento proposicional é preciso que seja

1. uma crença,
2. verdadeira
3. e justificada.

Efectivamente, se concebemos a crença como qualquer representação, susceptível de ser verdadeira ou


falsa, que uma pessoa faz da realidade, certamente que todo o conhecimento proposicional é uma crença,
porque é uma representação da realidade: saber que Londres é uma cidade é uma representação da
realidade. E dado que o conhecimento é factivo, segue-se que só podemos saber algo se isso for
verdadeiro. Esta segunda condição separa o conhecimento da crença, pois podemos evidentemente ter
crenças falsas. A terceira condição, a justificação, é a mais problemática e, ao mesmo tempo, a mais
frutuosa filosoficamente.
Para haver conhecimento não basta haver crença verdadeira, porque podemos ter crenças verdadeiras
por sorte — e certamente que isso não é conhecimento. Por exemplo, imagine-se que tenho a crença de
que são 16:55 horas porque olhei para o relógio, e imagine-se que realmente são 16:55 horas. Acontece
que, sem eu saber, o meu relógio avariou-se e está parado — mas, por coincidência, olhei para ele
quando era 16:55. Não parece razoável dizer que sei que são 16:55 horas, apesar de ter essa crença e de
isso ser verdadeiro — não parece razoável, porque a minha justificação para essa crença não é
adequada. Não é adequada porque não é fidedigna: a mesmíssima justificação exactamente produziria
uma crença falsa, apenas meia hora antes ou depois, e não uma crença verdadeira. Assim, apesar de ser
razoável pensar que todo o conhecimento é uma crença verdadeira justificada, parece razoável que nem
toda a crença verdadeira justificada é conhecimento.
A noção de justificação é crucial para o conhecimento. Para um agente saber realmente algo tem de
ter uma crença verdadeira adequadamente justificada sobre isso. Saber exactamente o que distingue uma
justificação adequada de uma justificação inadequada é um problema filosófico em aberto, como tantos
outros. Contudo, podemos avançar na compreensão da justificação sem nos embrenharmos nos seus
aspectos mais complexos. Uma alternativa que poderemos querer evitar é conceber a justificação de um
modo tão forte que implique a verdade, excluindo por isso a possibilidade de se ter uma justificação
adequada a favor de uma crença falsa.
Um exemplo ilustrativo do que está em causa é o seguinte: Cláudio Ptolomeu (100–170 d.C.) tinha a
crença de que a Terra estava imóvel, girando todo o restante universo em seu torno. Imagine-se, contudo,
que Ptolomeu não tinha essa crença por ser cognitivamente preguiçoso, preconceituoso ou hipócrita:
formou essa crença cuidadosamente, analisando dados e fazendo observações. Se isto for verdadeiro,
então é razoável afirmar que Ptolomeu tinha uma justificação adequada para a sua crença — que,
contudo, era falsa. Ptolomeu teve azar epistémico: estava numa situação epistémica em que não podia
saber que a sua crença era falsa e que os dados em que se apoiava eram enganadores. O mesmo acontece
a um detective, por exemplo, que investiga um crime: pode ficar convencido de que o criminoso foi o
Vilaça, não por preguiça, preconceito ou hipocrisia, mas por azar epistémico: todas pistas apontam, por
azar, para o Vilaça, mas não foi ele realmente o criminoso.
Assim, seja qual for a nossa noção sofisticada de justificação, é defensável que tem de permitir casos
em que um agente tem justificação para acreditar em falsidades. Daí que ter uma crença justificada seja
defensavelmente uma condição necessária para saber algo, mas não suficiente.
Se aceitarmos um conceito de justificação que permita a existência de crenças falsas justificadas,
como parece plausível, é natural passar a dar atenção aos procedimentos epistémicos e até ao carácter
epistémico da própria pessoa. Repensemos nos exemplos acima de Ptolomeu e do detective: não
estaremos dispostos a dizer que as suas crenças estão justificadas se as formaram ao acaso, sem darem
atenção aos indícios disponíveis, por preguiça ou preconceito, ou cometendo erros grosseiros de
raciocínio ou de análise dos indícios disponíveis. Na verdade, nesse caso diremos até que as suas
crenças não tinham justificação, mesmo que fossem verdadeiras. Assim, o conceito de virtude epistémica
torna-se rapidamente central em epistemologia.
Uma perspectiva inicialmente plausível é defender que uma crença está justificada, ainda que seja
falsa, desde que quem tem essa crença tenha sido epistemicamente virtuoso, ao invés de ser
preconceituoso, tendencioso, preguiçoso ou pura e simplesmente falho de raciocínio. Nesta perspectiva,
a justificação adequada não é primariamente uma propriedade das crenças, mas antes das atitudes
epistémicas das pessoas; só derivadamente a justificação adequada é uma propriedade das crenças. Esta
abordagem deu origem à chamada epistemologia das virtudes, que ao analisar o problema central da
justificação epistémica põe a ênfase no carácter epistemicamente virtuoso ou não das pessoas, e não nas
propriedades intrínsecas da justificação.
Uma vantagem desta abordagem é o seu particularismo. Dada a complexidade da realidade, é
argumentável que não é possível estabelecer condições gerais, aplicáveis a qualquer caso, do que
constitui ou não uma justificação adequada. Aristóteles (384–322 a.C.) considerava que não poderíamos
ter uma teoria moral que nos dissesse, por si, o que é correcto fazer em cada caso, sendo antes importante
esclarecer o que é uma pessoa virtuosa; a acção correcta é então o que, em cada caso, a pessoa virtuosa
decide fazer. A epistemologia das virtudes pode ser entendida do mesmo modo: em vez de tentarmos em
vão estabelecer condições necessárias e suficientes do que constitui uma justificação adequada,
tentaremos estabelecer algumas virtudes epistémicas; compete depois à pessoa epistemicamente virtuosa
dizer-nos, em cada caso, que procedimentos investigativos devemos adoptar, em função do contexto e do
que estamos a tentar descobrir.
A justificação e a racionalidade são conceitos subtilmente relacionados, apesar de diferentes. Ter
uma crença injustificada, à qual nos apegamos firmemente, rejeitando que seja posta em causa, é ser
irracional; e justificar cuidadosamente as nossas crenças, estando dispostos a revê-las e a abandoná-las,
é parte integrante do que é ser racional.
Finalmente, note-se que qualquer concepção excessivamente restritiva da justificação é implausível,
porque tornaria a maior parte das nossas crenças injustificadas. Caso se considerasse que só é racional o
agente que souber justificar cientificamente todas as suas crenças, seriam irracionais quase todas as
crenças das pessoas — incluindo as crenças científicas dos cientistas. Isto porque ninguém dispõe do
tempo nem das energias nem das competências para analisar e testar cientificamente todas as suas
crenças. A maior parte das pessoas tem a crença de que a água é H2O, que Marte é um planeta desértico
ou que ocorreu a segunda guerra mundial, sem ter justificações adequadas para estas crenças — na maior
parte dos casos, limitamo-nos a aceitar o testemunho de outras pessoas, nomeadamente os cientistas. Uma
maneira errada de acusar os crentes religiosos de albergarem crenças irracionais é argumentar que são
incapazes de justificar as suas crenças religiosas — pois, nesse caso, todas as pessoas seriam irracionais
porque são incapazes de justificar as suas crenças químicas, físicas, astronómicas, históricas ou até
quotidianas. E se o testemunho dos cientistas é suficiente para justificar crenças, o testemunho dos livros
sagrados e dos profetas também o será — a menos que encontremos diferenças relevantes.
Uma análise da fé
O que é exactamente a fé? Mesmo que não possamos responder a esta pergunta apresentando condições
necessárias e suficientes, é iluminante ter pelo menos uma caracterização razoavelmente precisa da fé.
Sem essa compreensão, a análise da epistemologia da fé poderá ser desadequada — exigindo-lhe, por
exemplo, padrões epistemológicos desadequados à sua natureza.
Há pelo menos duas concepções cruciais de fé: a objectal e a fenomenológica. A objectal é a ideia de
que a fé é apenas uma crença fenomenologicamente como as outras, cuja diferença reside exclusivamente
no seu objecto. A crença de que ontem foi Domingo, por exemplo, só diferiria da fé numa divindade
porque a primeira tem por objecto uma banalidade e a segunda uma divindade. A concepção
fenomenológica é a ideia de que a fé é uma crença diferente das outras não apenas por ter um objecto
diferente, mas também por envolver atitudes diferentes por parte da pessoa. Segundo esta concepção, a fé
numa dada divindade é diferente da crença de que ontem foi Domingo não apenas por ter uma divindade
por objecto, mas por envolver reverência, testemunho, entrega, mistério e outras atitudes próprias da fé.
Exploremos cada uma destas concepções.
Se a concepção objectal de fé for verdadeira, ter fé em Deus é como ter outra crença qualquer: esta
crença estará justificada ou não do mesmo modo que qualquer outra crença. Se houver razões para pensar
que é irracional acreditar em algo sem provas, será irracional ter fé em deuses sem provas.
Há dois argumentos centrais contra a concepção objectal de fé. Em primeiro lugar, não parece fazer
jus à experiência da fé que os crentes religiosos efectivamente têm, e que a concepção fenomenológica
destaca. A fé não parece ser para quem a tem uma crença como qualquer outra, mesmo que a comparemos
com crenças muitíssimo importantes e valiosas, como a crença de que os nossos filhos nos amam. Além
de mais intensa, parece mais valiosa.
Em resposta a esta objecção podemos argumentar que as diferenças entre a fé e as outras crenças
resultam precisamente da natureza do objecto da crença. Sendo a fé uma crença que tem por objecto
divindades, é natural que, por isso mesmo, as atitudes associadas à fé sejam adequadamente diferentes
das atitudes associadas a qualquer outro tipo de crença. Mas as atitudes associadas a uma crença não são
constitutivas dessa crença.
A segunda objecção é mais promissora: se a fé fosse como qualquer outra crença, teria de ser
possível uma pessoa ter fé na existência de uma divindade depois de saber que essa divindade existe. Na
verdade, depois de uma pessoa saber que uma divindade existe, teria de lhe ser impossível não ter fé na
sua existência, tal como é defensavelmente impossível que não acreditemos que a neve é branca quando
sabemos que a neve é branca. Contudo, parece implausível defender sequer que é possível ter fé que uma
divindade existe depois de sabermos que existe, e mais implausível ainda defender que saber que uma
divindade existe implica ter fé nessa divindade. Isto porque a fé é o género de atitude que se tem perante
o que se desconhece: antes de uma intervenção cirúrgica delicada, uma pessoa pode ter fé de que tudo irá
correr bem, mas não pode ter fé de que tudo correu bem depois de tudo ter corrido bem. No entanto, há
efectivamente um sentido em que se pode ter fé no que se conhece — no sentido de se ter confiança nisso.
Assim, podemos rejeitar a objecção acima distinguindo dois sentidos de fé: a fé como crença
proposicional e a fé como confiança. Há um sentido no qual não só temos fé em alguém ou algo mesmo
sabendo que isso existe como só é racional ter fé nesse alguém ou algo se acreditarmos que existe. Por
exemplo, uma pessoa só pode ter fé no amor dos seus filhos se acreditar que tem filhos. Fé, neste
contexto, quer dizer confiança: ter fé em alguém ou em algo é confiar nessa pessoa ou nesse algo. Nesta
acepção, todos temos fé diariamente em muitas coisas — na gravidade, por exemplo, no poder nutritivo
do que comemos e na medicina — porque todos confiamos nessas coisas. Mas é possível ter fé no
sentido da crença proposicional sem ter fé no sentido da confiança: uma pessoa pode saber que o
primeiro-ministro existe, mas não confiar nele. Na Bíblia afirma-se: «Tu crês que há um só Deus? Fazes
bem. Também o crêem os demónios, mas enchem-se de terror» (Tiago, 2:19) — o que poderá significar
que os demónios acreditam que Deus existe, mas não confiam nele.
A componente da confiança é sem dúvida uma das mais importantes da fé. Mas a perspectiva objectal
sobre a natureza da fé não se lhe adequa muito bem — pois, nessa perspectiva, só o objecto da fé a
distingue de outras crenças, e não as atitudes do agente. Ora, a confiança é precisamente uma atitude
particular que podemos ter perante objectos diferentes. E ainda que objectos diferentes possam alterar a
fenomenologia da confiança, é argumentável que há algo de comum a todas ou, pelo menos, à maioria das
atitudes de confiança; seria esse aspecto fenomenológico da confiança que a caracterizaria, e não o
objecto da confiança. Em conclusão, tentar defender a perspectiva objectal da fé socorrendo-se de uma
acepção de fé que a aproxima da confiança tem um efeito contrário ao pretendido, pois conduz-nos à
perspectiva fenomenológica da natureza da fé.
Acresce que apesar de a confiança ser uma componente importante da fé, não é nem poderia ser a
única. Parece impossível ou irracional ter confiança em algo e não acreditar pelo menos na possibilidade
de isso existir. Podemos, evidentemente, ter confiança em algo que não sabemos se existe, mas
gostaríamos que existisse — pois nesse caso a nossa confiança é condicional. Por exemplo, um náufrago
pode não saber se o desaparecimento do seu veleiro foi registado, mas ter a esperança que o tenha sido e
confiar que, nesse caso, os serviços de emergência náutica acabarão por salvá-lo. Mas é impossível ou
irracional o náufrago confiar que os serviços de emergência náutica acabarão por salvá-lo se souber que
o desaparecimento do seu veleiro não foi registado. Ou seja, a confiança parece envolver uma
componente proposicional, pelo menos quando não estamos em contacto com o objecto da confiança e
quando não se trata de um saber-fazer. Logo, ainda que a confiança seja uma componente importante da
fé, é defensável que tem de haver nesta uma componente proposicional: quem tem fé numa dada
divindade tem de acreditar que essa divindade existe ou, pelo menos, desejar que exista ou ter esperança
que exista, e em qualquer destes casos estamos perante atitudes proposicionais. Esta é a designação que
se dá a qualquer atitude que tenha por objecto uma proposição: recear que esteja a chover, ter medo de
perder o comboio ou ter a esperança de chegar a horas são atitudes que têm como objecto,
respectivamente, as proposições expressas pelas frases «Está a chover», «Vou perder o comboio» e
«Chegarei a horas».
É ilusório pensar que a perspectiva objectal da fé fica vindicada se admitirmos que a fé tem
necessariamente uma componente proposicional. Na verdade, a perspectiva fenomenológica de fé não
está comprometida com a exclusão da componente proposicional da fé: limita-se a sustentar que não é
apenas a diferença de objecto que caracteriza a fé, mas também e sobretudo a atitude do agente. Nada na
concepção fenomenológica de fé a impede de aceitar que a atitude do agente é uma atitude proposicional.
A concepção fenomenológica de fé
Passemos então à análise da concepção fenomenológica de fé. Deste ponto de vista, a fé não é como
qualquer outra crença, diferindo apenas quanto ao objecto; ao invés, além da diferença de objecto,
envolve aspectos que as outras crenças não envolvem. Um desses aspectos é a força da convicção: a fé
exibe a força da convicção do conhecimento, apesar de não ser conhecimento (ou, pelo menos, não é
como os outros conhecimentos comuns, como o conhecimento de que a água é H2O, por exemplo;
exploraremos já de seguida a ideia de que a fé é um tipo especial de conhecimento). E por não ser
conhecimento, a fé é, nesse aspecto, como a mera crença. Portanto, deste ponto de vista, a fé é como o
conhecimento num aspecto e como a mera crença noutro. Assim, a fé não é apenas uma crença que tem
por objecto um certo tipo de entidades: é uma crença que tem características próprias, que a distinguem
de muitas outras crenças, ou mesmo de todas.
Comparar a força da convicção da fé com a força da convicção associada ao conhecimento é
esclarecedor. Efectivamente, quando sabemos algo, temos uma forte adesão psicológica ao conteúdo do
nosso conhecimento, bastante mais forte do que quando temos uma mera crença, ainda que parcialmente
justificada. Quando acredito meramente que a Joana está na praia porque me disseram, a força da minha
convicção é muitíssimo menor do que quando sei que ela está lá porque acabei de a ver.
Contudo, será a fé como o conhecimento em todos os aspectos, caso em que a fé seria conhecimento?
Podemos defender que a fé é conhecimento — mas um tipo diferente de conhecimento — ou defender que
a fé não é conhecimento, apesar de ser fenomenologicamente como o conhecimento no que respeita à
força da convicção.
A primeira coisa a fazer quando se defende que a fé é conhecimento é esclarecer de que género de
conhecimento se trata: proposicional, saber-fazer ou por contacto. Defender que a fé é conhecimento
proposicional implica defender que só há fé quando há justificação, pois só há conhecimento
proposicional quando há justificação. No caso da fé, a justificação seria a revelação: a ideia de que Deus
se deu a conhecer a algumas pessoas especiais, que depois transmitiram por testemunho essa ocorrência.
Um argumento contra esta perspectiva é que, se fosse verdadeira, quase nenhumas pessoas religiosas
teriam de facto fé — só a teriam aqueles teólogos e filósofos que sabem justificar adequadamente a sua
crença numa divindade. A maior parte das pessoas que acredita no Deus cristão, por exemplo, pouco ou
nada sabe sobre os supostos testemunhos da revelação que sustentariam a sua fé. Como isto é
implausível, a perspectiva seria falsa.
Este argumento, contudo, não é convincente, pois ignora uma diferença entre haver justificação e o
agente do conhecimento ou da crença em causa conseguir articular essa justificação. Por exemplo, uma
criança forma a crença de que está uma maçã em cima da mesa ao vê-la lá; a justificação da sua crença é
muitíssimo mais sofisticada do que o mero «Vi-a lá» que ela é capaz de articular, pois envolve coisas
como condições normais de luz e o funcionamento correcto do seu aparato visual e cognitivo. Parece
excessivo exigir que um agente tenha de conseguir articular uma justificação adequada das suas crenças
para estas poderem constituir conhecimento proposicional, dado que, na sua maior parte, as pessoas têm
grande dificuldade em fazer tal coisa. (Contudo, podemos insistir que as pessoas quase nada sabem, na
sua maior parte, vivendo apenas com base em meras crenças.) Uma alternativa é então aceitar que um
agente tem conhecimento proposicional desde que tenha uma crença verdadeira que se pode justificar
adequadamente, ainda que ele mesmo não o saiba fazer ou não o tenha efectivamente feito. Chama-se
externismo a esta posição sobre a justificação, e internismo à posição oposta.
Aplicando esta distinção à fé, poder-se-ia então insistir que as pessoas só podem ter realmente fé
numa divindade caso seja possível justificar tal crença, ainda que elas mesmas sejam incapazes de o
fazer. Ter fé numa divindade seria, assim, análogo a muitas outras crenças que somos incapazes de
justificar adequadamente, mas que pensamos que outros seres humanos sabem justificar adequadamente.
Por exemplo, na sua maior parte, as pessoas são incapazes de justificar adequadamente a crença na
cosmologia do Big Bang, pois não têm os conhecimentos nem os recursos necessários para justificar esta
teoria: limitam-se, por isso, a transferir para os especialistas relevantes a tarefa da justificação.
Esta perspectiva implica que caso não exista justificação adequada para crer numa divindade,
ninguém teve jamais fé nessa divindade, apesar de ter pensado que a tinha. Note-se que isto é compatível
com a diversidade de religiões e de divindades; pois apesar de as diversas divindades que são objecto
de fé em diferentes religiões serem incompossíveis (ou seja, não são conjuntamente possíveis: não
podem existir todas simultaneamente), é perfeitamente possível que existam justificações adequadas para
as crenças religiosas nessas divindades. Recorde-se que podemos defender que a justificação não é
factiva, o que significa que diferentes pessoas em diferentes contextos epistémicos podem ter justificação
adequada para crer em divindades diferentes e incompossíveis.
Contudo, a perspectiva que estamos a explorar não defende apenas que só há fé quando há
justificação: defende também que a fé é factiva, pois defende que a fé é conhecimento, ou um tipo de
conhecimento. E é isto que torna esta concepção implausível, pois significaria que caso a única
divindade que realmente existe seja Diana, por mais genuína que fosse a fé dos antigos egípcios no deus
Rá, por exemplo, ou dos actuais cristãos em Deus, nenhuma dessas pessoas tinha realmente fé — apenas
acreditava erradamente que a tinha. Isto parece excessivo: quem tem fé numa divindade que, sem ela o
saber, não existe, não parece ter uma fé menos genuína do que quem tem fé numa divindade que realmente
existe. Assim, a fé, ao contrário do conhecimento, não parece factiva.
Uma saída para esta dificuldade seria sustentar que a fé é um tipo diferente de conhecimento, que não
envolve factividade. Mas isto seria presumivelmente um mero jogo de palavras, dado que conhecimento
infactivo não é conhecimento, em qualquer acepção relevante do termo: é mera crença (que pode até estar
justificada).
Dado que tanto o conhecimento proposicional como o conhecimento por contacto são factivos, o
mesmo argumento se aplica para refutar a ideia de que a fé poderia ser conhecimento por contacto:
aceitar que a fé é conhecimento por contacto implica a tese implausível de que a maior parte da
humanidade ao longo da maior parte da história não teve realmente fé, apesar de pensar que a tinha.
Testemunho e risco epistémico
Note-se, contudo, que há pelo menos um aspecto crucial que o conhecimento por contacto partilha com a
fé. No conhecimento por contacto não há apenas uma forte convicção acompanhada muitas vezes de uma
incapacidade para articular uma justificação adequada — isto também acontece no conhecimento
proposicional. Um traço central do conhecimento por contacto que o distingue do proposicional é o
aspecto pessoal, subjectivo ou testemunhal: quando conhecemos algo por contacto não se trata apenas de
sermos muitas vezes incapazes de articular uma justificação adequada desse conhecimento; há
aparentemente um aspecto fenomenológico irredutível a qualquer justificação cuidadosamente articulada.
Este aspecto do conhecimento por contacto envolve o que se chama qualia: a qualidade interna da
experiência. É este aspecto do conhecimento por contacto que está em causa nos famosos artigos «Como
é Ser um Morcego?», de Thomas Nagel, e «What Mary Didn’t Know», de Frank Jackson.
No primeiro caso, Nagel faz notar que temos muito conhecimento proposicional sobre a
ecolocalização usada pelos morcegos, e usamo-la também em navios, recorrendo a radares: um sinal
sonoro é enviado e o tempo decorrido entre o seu envio e o eco devolvido permite determinar a distância
e parcialmente a forma do que se encontra na direcção relevante. Contudo, argumenta Nagel, num certo
sentido não podemos saber como é percepcionar objectos dessa maneira, não sabemos como é a
experiência interna da ecolocalização: não sabemos como é ser um morcego.
No exemplo de Jackson, imagina-se uma neurocientista da cor, a Maria, que tem um conhecimento
proposicional exaustivo do mecanismo da visão de cores que ocorre nos seres humanos. Contudo, nunca
viu cores porque viveu sempre num quarto a preto e branco. (Será também preciso imaginar que tinha
uma doença da pele que a tornava completamente branca, que o seu cabelo era completamente preto, que
não podia ficar menstruada, porque nesse caso veria a cor do seu sangue, etc., o que torna tudo isto uma
fantasia filosófica, mas que serve correctamente os seus propósitos.) Um dia, a Maria pôde finalmente
sair do seu quarto e viu uma rosa vermelha ou um pôr-do-sol radioso. Apesar de ter um conhecimento
proposicional exaustivo do processamento visual e cognitivo das cores, havia algo que a Maria não
sabia, pois parece óbvio que há algo que ela aprendeu quando viu a rosa ou o pôr-do-sol. O
conhecimento que não tinha era o conhecimento por contacto, o conhecimento íntimo, subjectivo ou
testemunhal do que é ver cores.
Este aspecto testemunhal do conhecimento por contacto parece crucial na fenomenologia da fé. Ter fé
numa divindade é talvez mais do que ter uma convicção forte na sua existência: é ter como que um
contacto íntimo com essa divindade; é ter uma experiência defensavelmente irredutível a todo o
conhecimento proposicional. Contudo, levar a sério a ideia de que a fé é conhecimento por contacto
implica, uma vez mais porque o conhecimento é factivo, que a maior parte da humanidade ao longo da
maior parte da história não teve experiência da fé genuína, mas apenas a ilusão de que a teve, dado que
as muitas divindades que foram objecto de fé ao longo da história humana são incompossíveis.
Não é, pois, plausível que a fé seja conhecimento proposicional nem por contacto. Contudo, é
inegável que há algo na fenomenologia da fé irredutível às crenças proposicionais, pelo simples facto de
que toda a atitude proposicional tem uma fenomenologia própria, irredutível às crenças proposicionais.
Por exemplo, ter medo de dragões tem uma fenomenologia própria, diferente de ter a esperança de haver
dragões, que não depende do objecto, mas sim da própria atitude. Assim, ter fé terá sem dúvida uma
fenomenologia distinta, mas não implica de modo algum que tenha de existir a divindade que é objecto da
fé. A impressão subjectiva do conhecimento por contacto, testemunhal e subjectivo que se associa à fé
pode ser independente da existência da divindade que é objecto da fé em causa: pode ser uma
peculiaridade da atitude. A peculiaridade da fé, uma vez mais, é não ser fenomenologicamente como uma
mera crença, como as muitas crenças que temos e a que não damos muita importância: a fé é uma crença
considerada e sentida como muitíssimo importante pelos crentes.
Uma objecção imaginativa a esta última ideia insiste que, apesar de historicamente a fé ter sido
considerada e sentida como muitíssimo importante pelos crentes, poderia não o ser. Podemos imaginar
pessoas que têm fé numa divindade menor, digamos, com poucos poderes ou com poderes limitados, e
que intervém apenas em trivialidades do quotidiano — como nunca deixar uma pessoa esquecer-se de
fechar a tampa da sanita, por exemplo. Estas pessoas teriam uma fé banal, digamos, neste tipo de
divindade menor, precisamente por ser uma divindade menor.
Esta objecção insiste na conexão entre o objeto da fé e a atitude do crente: a ideia é que a atitude de
extrema importância associada à fé resulta da natureza da divindade que é objecto da fé.
A resposta a esta objecção é a seguinte: do mesmo modo que ter medo de escorregar quando neva é
diferente de ter medo quando um leão corre na nossa direcção, porque os objectos do medo são
diferentes, persistindo todavia algo em comum (caso contrário não seria medo), também a fé será
inevitavelmente influenciada pela natureza do objecto da fé. Quem tiver fé numa divindade menor, terá
presumivelmente uma fé diferente de quem tiver fé numa divindade omnipotente, mas algo em comum terá
de haver em ambos os casos para que sejam ambos fé. E apesar de ser evidentemente possível imaginar
cenários em que já duvidamos se estamos perante fé ou perante uma mera crença banal e quotidiana, o
objectivo da nossa investigação é a fé que de facto as pessoas têm, e não a que conseguimos imaginar,
mas que depois nem sabemos bem se é ainda fé ou outra atitude. Ora, nas manifestações conhecidas de fé,
esta não é uma crença banal, como as outras crenças quotidianas; é uma crença a que o próprio crente dá
extrema importância.
Afastadas as hipóteses de que a fé seja conhecimento proposicional ou conhecimento por contacto,
resta ver se poderá ser um saber-fazer. Esta ideia também não é plausível, pois saber fazer algo como
andar de bicicleta envolve uma actividade, mas não necessariamente uma atitude, ao passo que ter fé
numa divindade envolve necessariamente um tipo de atitude, mas pode ou não envolver uma actividade.
É certamente verdadeiro que os crentes religiosos consideram que o seu modo de vida é profundamente
afectado pela sua fé, mas não parece verdadeiro que esse modo de vida constitua a fé. Uma vida
dedicada à bondade e a aliviar o sofrimento alheio pode coincidir exteriormente com uma vida religiosa;
mas muitos ateus escolhem esse género de vida, sem terem, portanto, qualquer atitude análoga à atitude
de uma pessoa de fé. Por outro lado, mesmo que todas as pessoas de fé desenvolvam um tipo de
actividades, estas parecem consequência da sua fé, não constituindo a fé em si.
Podemos então concluir preliminarmente que a fé não é conhecimento, nomeadamente porque a fé é
infactiva e o conhecimento é factivo. Mas esta não é a única razão. Mesmo que a fé implicasse
conhecimento, nunca poderia ser conhecimento, constitutivamente, dada a diferença entre as
fenomenologias da fé e do conhecimento. Vimos que a fé se assemelha ao conhecimento proposicional
por envolver uma forte convicção, e que se assemelha ao conhecimento por contacto por envolver um
aspecto testemunhal. Mas noutros aspectos a fé é profundamente diferente desses tipos de conhecimento.
Para ver porquê, considere-se o que aconteceria se uma divindade se manifestasse inequivocamente
junto dos seres humanos. Alguns ateus, perante tal manifestação, passariam evidentemente a acreditar que
essa divindade existe, precisamente porque passariam a saber que existe. Mas teriam fé? Poderiam
ganhar fé no sentido de terem confiança na divindade, se soubessem que essa divindade estaria a zelar
por eles, sendo sumamente boa e sumamente poderosa. Contudo, alguns aspectos que parecem
constitutivos da fenomenologia da fé poderiam não se manifestar, tornando implausível afirmar que esses
ateus passaram a ter fé. Os sentimentos de reverência, ligação profunda, êxtase e mistério que parecem
estar associados à fé poderiam perfeitamente estar ausentes das atitudes epistémicas desses ateus
relativamente a essa divindade. Parece, por isso, conceptualmente possível saber que uma divindade
existe sem ter fé na sua existência (mesmo que nela se tenha fé, no mero sentido da confiança).
Søren Kierkegaard (1813–1855) foi um dos filósofos que mais claramente sublinhou este aspecto da
fé, que a torna incompatível com o conhecimento — e, por isso, com as provas, argumentos ou
justificações. Este aspecto da fé parece corresponder à desvalorização, por parte de alguns crentes, dos
intrincados argumentos filosóficos a favor e contra a existência de Deus. Talvez isso ocorra por
considerarem, como Kierkegaard, que a fé é precisamente o género de confiança ou convicção profunda
que se tem numa divindade quando não temos provas da sua existência:

Em nome de quem se procura a prova? A fé não precisa dela. Sim, tem de encará-la como inimiga.
Mas quando a fé começa a ter vergonha, como uma rapariga para quem o amor deixa de ser
suficiente, que secretamente tem vergonha do seu namorado e tem por isso de confirmar junto de
outros que ele é realmente notável, quando a fé vacila e começa a perder a sua paixão, então a prova
torna-se necessária para parecer respeitável da perspectiva do descrente. (Pós-Escrito Anti-
Científico Final, p. 27)

Sem risco não há fé. A fé é precisamente a contradição entre a paixão infinita da interioridade e a
incerteza objectiva. Se posso compreender Deus objectivamente, não acredito; mas porque não
posso conhecer Deus objectivamente, tenho de ter fé; e se for firme na fé, tenho de estar
constantemente determinado a agarrar-me à incerteza objectiva, para permanecer sobre as
profundezas do oceano, sobre setenta mil braças de água, e continuar a acreditar. (Pós-Escrito Anti-
Científico Final, pp. 171-172)

Kierkegaard considera a fé incompatível com o conhecimento, por este último implicar a justificação, ao
passo que a fé implica o risco epistémico. Podemos fazer uma analogia com o que ocorre quando
encontramos um desconhecido e o ajudamos, sem ter provas da sua probidade, descobrindo mais tarde
com gosto que ele nos procurou para nos restituir o dinheiro emprestado, por exemplo, ou para nos
manifestar a sua gratidão. Esta analogia permite compreender o tipo de valor que é possível ver na fé
quando esta é concebida como crença injustificada ou sem provas. Num certo sentido, tem mais valor
confiar num desconhecido, sem provas da sua probidade, do que confiar nele quando temos essas provas.
Confiar nele quando temos essas provas não envolve qualquer risco, nem é um gesto particularmente
generoso da nossa parte. Kierkegaard parece defender algo análogo relativamente à fé: se procuramos
provas da existência da divindade, é porque de algum modo não queremos arriscar ter fé na sua
existência; mas se tivermos provas de que essa divindade existe, a fé parece não poder ter lugar, tal como
nada arriscamos ao ajudar uma pessoa quando sabemos que ela nos recompensará.
Será realmente defensável o risco epistémico de crer no que não temos provas que existe? William
James argumenta que sim.
Aposta momentosa
James sublinha que em alguns casos as nossas crenças são motivadoras: um desportista ganha em
acreditar que consegue obter um resultado; um estudante ganha em acreditar que conseguirá bons
resultados num exame difícil. Nestes casos, precisamos de acreditar sem provas, de maneira a ter
motivação para tentar: não faria sentido treinar ou estudar se não confiássemos na possibilidade de obter
os resultados desejados, ainda que não tenhamos realmente provas de que os conseguiremos obter. Será a
fé análoga a este género de casos? Tratar-se-ia nesse caso de ter confiança em algo que não sabemos bem
se ocorrerá ou se existe. A fé ficaria assim mais próxima da esperança.
Sem dúvida que este tipo de crenças motivadoras e sem grandes provas existem, e são constitutivas
da nossa vida. É difícil imaginar como seria a nossa vida sem elas. Mas não é claro que este facto acerca
da nossa vida cognitiva tenha relevância para a legitimidade da fé sem provas, ao contrário do que James
parecia pensar. Vejamos dois argumentos contra a posição de James.
Em primeiro lugar, as crenças motivadoras só são racionais porque têm efeitos causais: se um
estudante acreditar que com o seu esforço irá conseguir obter um certo resultado, isso tem o efeito causal
de lhe dar mais ânimo, o que contribui para obter o resultado desejado. Mas no caso da crença religiosa
não há qualquer nexo causal, nem pode haver, entre a força da convicção e a existência ou inexistência de
divindades: estas não existem ou deixam de existir consoante as pessoas estão mais ou menos fortemente
convictas da sua existência.
Em segundo lugar, é irracional ter confiança quando a possibilidade de realização do que se almeja é
demasiado improvável. Uma pessoa em risco de morte pode ganhar em ter confiança que conseguirá ser
bem-sucedida num salto difícil que poderá salvar a sua vida, se o salto que tem de dar for de, digamos,
um metro e meio. Mas, se for de dez metros, nenhuma confiança lhe dará energia suficiente para
conseguir salvar-se. O mesmo ocorre todos os finais de semestre com demasiados estudantes: não
estudaram ao longo do semestre e depois vão fazer os exames cheios de confiança que, naquele momento,
algo de mágico ocorra e subitamente sejam capazes de responder a perguntas sobre matérias que
desconhecem quase por completo: o resultado inevitável, apesar de tanta confiança, é a reprovação. E
esses estudantes teriam ganho mais em reconhecer a verdade da situação, ficando em casa tranquilamente.
Portanto, este género de confiança na ausência de provas só pode ter relevância caso não estejamos
perante uma impossibilidade ou quase impossibilidade.
Blaise Pascal (1623–1662), contudo, ficou famoso por defender que, bem vistas as coisas, temos tudo
a ganhar e nada a perder em apostar na existência de Deus. Chama-se aposta de Pascal ao seu
argumento, que pertence à mesma família da posição de James: trata-se de dizer que, na ausência de
provas a favor ou contra a existência de Deus, temos um argumento a favor da crença sem essas provas.
No caso da versão de Pascal, a ideia é fazer uma matriz para revelar as quatro combinações
possíveis que resultam de se acreditar ou não e de Deus existir ou não:

1. Caso não acreditemos e Deus não exista, nada de especial ganhamos. Apenas não perdemos tempo,
por exemplo, em rituais religiosos.
2. Caso não acreditemos e Deus exista, perdemos a possibilidade do paraíso, o que é terrível.
3. Caso acreditemos e Deus não exista, nada de especial perdemos. Apenas perdemos tempo, por
exemplo, em rituais religiosos.
4. Caso acreditemos e Deus exista, ganhamos o paraíso, o que é maravilhoso.

Portanto, continua o argumento, é irracional não escolher acreditar. Porque se acreditarmos, o pior que
pode acontecer é termos perdido tempo; e podemos ganhar o paraíso. Mas se não acreditarmos, o melhor
que pode acontecer é não termos perdido tempo; e podemos perder o paraíso.
Este género de argumento pode ser visto como desprezível por muitos crentes. Pois o seu efeito é
retirar à fé o elemento de risco epistémico que Kierkegaard considerava importante: a fé torna-se o mero
resultado do calculismo egoísta, e não uma atitude de risco epistémico que nos dá confiança perante a
«incerteza objectiva».
O pior do argumento, contudo, é precisar admitir pressupostos pouco razoáveis sobre Deus. Por que
razão haveria Deus de castigar quem não acredita que ele existe precisamente por falta de provas? E por
que razão haveria Deus de recompensar com o paraíso o calculista? A ideia de que ter fé é em si
importante porque Deus castiga quem não a tem é praticamente indefensável. Se Deus for sumamente bom
e sábio, não pode ser o género de ser que exige dos seres humanos crenças arbitrárias; pelo contrário,
será o género de ser que exige que os seres humanos sejam virtuosos, e ser epistemicamente virtuoso
parece incluir não acreditar sem provas.
O defensor da aposta de Pascal pode responder que não temos de ter uma concepção primitiva de um
Deus castigador: podemos entender a própria vida do crente, com a graça da fé, como uma dádiva de
imenso valor, e a vida do descrente como um deserto espiritual que ninguém quererá viver. Assim,
apostar em Deus faz sentido não porque a divindade recompense a credulidade e castigue a
racionalidade, mas antes porque a própria vida sem fé em Deus é um martírio, ao passo que uma vida
com fé em Deus é graciosa e compensadora.
William James tem em mente algo como esta caracterização da vida de fé. Antes de analisarmos
brevemente as suas ideias, importa esclarecer as seguintes diferenças:

1. Acreditar que Deus existe.


2. Não acreditar que Deus existe.
3. Acreditar que Deus não existe.

Confunde-se por vezes 2 com 3. 2 é mais fraco do que 3, no sentido em que 3 implica 2, mas 2 não
implica 3: quem acredita que Deus não existe, não acredita que Deus existe, mas quem não acredita que
Deus existe pode não acreditar que Deus não existe. Suspender o juízo quanto à existência de Deus é
rejeitar 1 e 3: é o que faz o agnóstico. O crente, claro, aceita 1 e rejeita as outras; o ateu aceita 3, o que
implica aceitar 2, e rejeita 1. Estas relações lógicas dizem respeito a qualquer crença, e não
especificamente à crença de que Deus existe. A maior parte das pessoas, por exemplo, nem acredita que
existem extraterrestres nem que não existem extraterrestres; considera as duas hipóteses interessantes e
até momentosas, mas limita-se a suspender o juízo.
Esta atitude de suspensão do juízo na ausência de provas é precisamente o que propõe um
indiciarista, como Clifford. Na verdade, é o género de atitude que temos relativamente às mais diversas
matérias. James, todavia, discorda. Do seu ponto de vista, é legítimo crer em Deus, quando a sua
existência é intelectualmente indecidível, desde que a opção pela crença seja viva, forçosa e momentosa.
Uma opção é viva quando não é uma mera hipótese intelectual vaga, mas antes algo que realmente nos
importa: supostamente, para quem se debate com a questão de Deus, a hipótese de acreditar ou não é para
ela uma opção viva. Essa mesma pessoa pode não se debater com a questão de acreditar ou não em
Apolo, por exemplo. Uma opção é forçosa quando não tomar partido é o mesmo que tomar partido.
Suspender a crença quanto à existência de Deus tem o mesmo efeito que não acreditar na existência de
Deus, pensa James. Finalmente, uma opção é momentosa quando é de extrema importância, e não uma
questão trivial.
James argumenta então que, reunidas estas condições, é epistemicamente legítimo acreditar sem
provas, quando a questão é intelectualmente indecidível. A razão é que não o fazer priva-nos de algo
importante — uma vida religiosa, a perspectiva de uma vida eterna — sem nada de importante nos dar
em troca, excepto a garantia de não crer em falsidades. O argumento de James pertence, pois, à mesma
família da aposta de Pascal; mas em vez de se basear directamente na ideia de que, sob a hipótese de
Deus existir, os descrentes ou os agnósticos serão enviados para o inferno, indo os crentes para o
paraíso, permite dar ênfase ao ganho que o crente tem nesta vida. A ideia torna-se mais vívida se
imaginarmos casos em que uma mentira piedosa poderá salvar alguém de sofrimento inconsequente: por
exemplo, uma mãe a quem, no leito de morte, se oculta a tragédia do seu filho que acaba de falecer de
acidente.
Contudo, o argumento de James enfrenta uma dificuldade relacionada. É verdadeiro que não
dependemos de uma concepção brutal de um Deus que quer ser objecto de culto na ausência de provas da
sua existência, castigando quem suspender o juízo. Mas estamos perante uma concepção provinciana da
vida humana — como se uma vida humana plenamente realizada só pudesse ocorrer na presença da fé.
Pelo contrário, muitos artistas, cientistas, filósofos e filantropos viveram vidas preenchidas e felizes, sem
qualquer crença em divindades. Para essas pessoas, a questão de haver ou não divindades poderá ser
intelectualmente interessante, mas nenhuma consequência prática tem para qualquer lado. Isto porque
nenhuma pessoa genuinamente boa pode acreditar que Deus, se existir, é um ser malévolo, que castiga
quem nele não acredita, ainda que essa pessoa tenha uma vida virtuosa, sob todos os aspectos.
A ideia de que uma vida virtuosa não é possível sem crer em divindades é uma manifestação de
provincianismo — ou de um mau íntimo: alguém que só não trapaceia, mente, rouba e mata por ter medo
de ser castigado na outra vida. Kant, que era religioso, considerava que uma acção feita com vista à
recompensa ou com medo do castigo não é moralmente correcta, ainda que exteriormente o pareça. E não
é preciso invocar Kant para compreender que quem não mata o seu semelhante por medo do inferno e não
por respeitá-lo, não é o género de pessoa que queiramos ter por semelhante.
James poderia aceitar que é possível ter uma vida compensadora e virtuosa sem qualquer crença
religiosa, mas insistir que uma vida religiosa permite a qualquer pessoa, por mais culturalmente
carenciada que seja, o género de vida compensadora que um artista ou cientista pode ter. A vida religiosa
colocaria ao alcance de qualquer pessoa o género de vida compensadora a que, de outro modo, só alguns
poderiam almejar.
A ideia de que a religião permite às pessoas culturalmente mais carenciadas ter uma vida mais
compensadora do que de outro modo teriam é plausível. Tal como é plausível que a religião pode
oferecer conforto emocional a pessoas cujas vidas são desagradáveis em quase todos os aspectos.
Contudo, este género de argumentação não é particularmente promissora, pois não só implicaria que a
religião seria apenas um paliativo para o infortúnio, como tornaria difícil explicar a fé de pessoas
muitíssimo cultas, como cientistas, filósofos, artistas ou outros intelectuais. A verdade é que tanto se
encontra pessoas descrentes e crentes entre os cultos como entre os incultos; e a verdade é que a vida
religiosa tanto oferece conforto emocional como opressão.
James precisa de defender que a crença na existência de divindades é forçosa. Mas ou é forçosa
porque se concebe Deus como um ser castigador, como Pascal, e nesse caso aplica-se-lhe o mesmo
contra-argumento; ou o é porque se tem uma concepção provinciana, e historicamente falsa, do que é uma
vida humana generosa, bem-aventurada, virtuosa e realizada, considerando erradamente que sem a crença
em Deus esse tipo de vida não é possível. Em qualquer caso, não temos razão para pensar que a opção
entre crer ou não em Deus é forçosa. Suspender o juízo por falta de provas só é equivalente a não crer
quando a consequência de ambas é aproximadamente igual. Mas as duas opções só são equivalentes caso
um Deus ciumento castigue quem nele não crê, ou caso nenhuma vida humana agnóstica ou ateia possa ser
plena e digna. Quem rejeitar estas duas hipóteses, rejeita a ideia de James de que a opção da crença é
forçosa. Poderá até aceitar que é uma questão momentosa, que nos dispomos a estudar e discutir com
sobriedade, como estudamos e discutimos a cura do cancro, sem que tenhamos de acreditar sem provas.
Podemos insistir na ideia original de James concedendo que é perfeitamente possível ter uma vida
humana digna e realizada sem crer em Deus; mas sublinhar que, mesmo assim, acrescentar a crença
religiosa a uma vida humana que já é digna e realizada sob todos os outros aspectos é fazer algo de
importância superlativa. Uma vida humana digna em todos os outros aspectos, mas a que se acrescenta a
crença religiosa, é uma vida ainda mais digna e rica, adquirindo uma textura e dimensão que nenhuma
vida de agnóstico pode ter. Neste sentido, portanto, é forçosa a opção entre crer ou não em Deus.
Concedendo que a opção é forçosa neste sentido, o problema é que agora o agnóstico ou o ateu têm
uma resposta demasiado fácil. Podem responder que só é forçosa a decisão de ter ou não uma vida de
crente religioso porque ou é verdadeiro ou não é verdadeiro que Deus existe. O que torna forçosa a
opção é que se Deus existir, vivemos na verdade se formos crentes — e a verdade é de importância
primordial para seres como nós. Uma vida de crente não pode ser uma coisa boa por ser boa apenas
internamente — isto é, por fazer o crente sentir-se melhor. Isso torna de tal modo subjectiva a crença
religiosa que faz dela uma opção não momentosa mas mesquinha, ainda que seja forçosa: trata-se de
escolher o que me faz sentir bem, como quem escolhe os sapatos mais confortáveis, e não o que é
superlativamente real e importante. Para que a minha escolha seja superlativamente importante não pode
ser apenas uma escolha do que me faz sentir bem. Tem de ser também uma escolha do que me conecta
com uma realidade de superlativa importância — recorde-se que o sentido do étimo da palavra religião
é religação. É mesquinho escolher uma vida religiosa pressupondo que a existência ou inexistência dessa
realidade de superlativa importância é irrelevante porque tudo o que conta é que me sinta bem. Escolher
ou não escolher uma vida religiosa só é de suprema importância porque isso me abre ou não a uma
realidade de suprema importância.
Assim, a ideia é que, precisamente por prezar a verdade, o ser humano não deve aderir sem provas,
sobretudo quando se trata de matérias de importância superlativa. É verdadeiro que muitas vezes temos
de assumir riscos epistémicos, mas estes casos só são razoáveis quando há uma relação causal entre a
crença e o que dela resulta: cremos, sem grandes provas, que somos capazes de fazer um curso
universitário, e isso motiva-nos de tal modo que contribui para o sucesso dos nossos estudos. No que
respeita a Deus, não há tal relação causal: crer em Deus não o faz existir magicamente. O único poder
causal dessa crença diz respeito à nossa vida, e não é óbvio que, sob a hipótese de Deus não existir, uma
vida de crente seja realmente melhor do que uma vida virtuosa e realizada, aberta à possibilidade de
existir Deus, mas que não a aceita sem provas.
Assim, o argumento de James implica que a questão da existência ou inexistência de Deus tem
prioridade sobre a opção de crer ou não. Optar pela crença no caso de Deus não existir é tão grave
quanto optar pela descrença caso Deus exista, e precisamente pela mesma razão: porque em ambos os
casos a crença é falsa. A nossa melhor atenção cognitiva deve, assim, dirigir-se para os argumentos a
favor e contra a existência de Deus, porque é isso que é decisivo; e sem argumentos suficientes para um
ou outro lado, a opção epistemicamente virtuosa é suspender o juízo e continuar a investigar.
James enfrenta outra dificuldade. Uma opção é forçosa quando não tomar partido é, na prática, a
mesma coisa que tomar partido. O problema é que não é fácil encontrar casos neutros de opções
forçosas. Um caso de uma opção forçosa é alguém dar-nos um prazo de dois dias para decidir comprar
ou não uma casa, por exemplo. Mas estamos indecisos e deixamos passar o prazo. A indecisão, neste
caso, é equivalente à decisão de não comprar a casa. O problema deste tipo de exemplos é que só se
aplica ao Deus mesquinho referido. Pois seria como se Deus nos desse nesta vida a oportunidade de
optar sem provas pela crença, acabando-se o prazo quando morremos. Pelo contrário, um Deus razoável
consideraria sensato que não decidíssemos tão momentosa questão sem provas fortes; e se só na outra
vida tais provas surgissem, essa seria a altura para crer na sua existência.
Este tipo de argumento põe em causa frontalmente a ideia central do fideísmo de que é virtuoso crer
sem provas. O fideísta poderia rejeitar o argumento por essa razão. Mas isto seria confundir as coisas. O
argumento conclui que não há virtude em crer sem provas, pois é isso mesmo que estamos a discutir. Se o
fideísta discorda desta conclusão, tem de mostrar o que há de errado com o argumento apresentado, e não
apenas insistir que esta conclusão contraria a sua ideia de que é virtuoso crer sem provas.
Acresce que a ideia de que crer sem provas é virtuoso poderá ser uma forma subtil de impor a crença
religiosa, um pouco como jogar um jogo viciado em que se sair caras ganho eu, se sair coroas perdes tu.
Pois se alguém declarar que algo existe, fica a dever-nos evidentemente algumas provas, sobretudo se for
algo momentoso e não uma trivialidade. Se essa pessoa declarar que não tem provas, mas que é bom
acreditar sem provas nisso que ela diz que existe porque nessa circunstância coisas maravilhosas irão
acontecer-nos, está a trapacear-nos. O que lhe pedimos, muito razoavelmente, foram provas. A sua
resposta, muito insensatamente, foi uma ameaça. Perante a incerteza da vida humana, sobretudo onde os
níveis de bem-estar são muitíssimo baixos (por falta de cuidados de saúde, protecção no emprego,
recursos económicos adequados, etc.), este género de resposta torna a aposta de Pascal muito vívida:
nada se tem a perder e pode-se ganhar muito em crer sem provas. Mas o preço a pagar, como vimos, é
uma concepção de uma divindade brutal. Concepção que é difícil crer que uma pessoa genuinamente boa
e epistemicamente virtuosa possa aceitar.
Voltemos ao aspecto forçoso da opção quanto à crença na existência de Deus. É iluminante pensar
noutros casos em que a opção é forçosa. Por exemplo, não sabemos se conseguiremos realmente salvar
uma criança que acaba de cair no rio; mas não decidir tentar é igual a decidir não tentar. Por isso, a
virtude exige que tentemos. Mas pensemos melhor no que está oculto neste tipo de exemplo. Não seria
uma exigência da virtude decidir tentar se fosse impossível ou quase impossível salvá-la; e ainda menos
se ao tentar fosse inevitável ou quase inevitável que nós mesmos pereceríamos, privando assim os nossos
filhos do apoio que lhes devemos. Isto significa que quando se pressupõe que crer ou não em Deus é uma
opção forçosa é porque se aceita duas coisas, e James só explicitou uma delas: aceita-se que a questão é
intelectualmente indecidível, mas aceita-se também que o preço por acreditar não é demasiado elevado.
Ora, não podemos em rigor pressupor que crer é melhor, exista ou não Deus, do que não crer. Clifford
argumenta que crer na ausência de provas é sempre pior, porque contribui para a crendice, e a crendice
tem inevitavelmente, e a longo prazo, más consequências. Este argumento, que é crucial para a posição de
Clifford, nunca é enfrentado por James, que se limita a pressupor que crer em Deus é sempre melhor do
que não crer.
James argumenta, com alguma plausibilidade inicial, que a posição de Clifford nos afasta da verdade,
por estar demasiado preocupado com o erro. Compara Clifford a um general que, por querer provas
cabais da vitória antes de enviar as suas tropas, nunca ganha qualquer batalha, porque nunca envia as
suas tropas. A ideia é que por vezes é preciso aceitar o risco epistémico. Clifford concorda com a ideia,
mas rejeita que o risco epistémico implique crença sem provas: apenas implica que, quando é necessário
agir sem certezas, devemos agir em função do que é mais provável.
O problema é que nada disto se aplica à crença em Deus. Esta crença não é urgente: não temos de
decidir, aqui e agora, crer ou não crer em Deus: podemos perfeitamente continuar à procura. É o que
fazemos com muitas outras crenças momentosas: queremos saber o que poderá curar uma doença grave,
por exemplo, e é extremamente difícil decidir. Mas se pararmos de tentar decidir porque consideramos
virtuoso o risco epistémico de apostar numa das hipóteses sem provas, não estamos a contribuir para a
descoberta da verdade, mas antes a dificultá-la. Se o que realmente nos interessa é saber se Deus existe
ou não, e isso qualquer crente terá de aceitar, a menos que tenha uma concepção de tal modo subjectiva
da crença que torne irrelevante a existência de Deus, não é uma boa ideia decidir de antemão e sem
provas que existe. Se Deus realmente existir, acertámos na verdade por sorte apenas, o que não constitui
conhecimento — privámo-nos assim de conhecer uma verdade de superlativa importância. Se não existir,
fomos crédulos e impedimos a descoberta de que não existe. Assim, a acusação central que James faz a
Clifford — que está tão preocupado em evitar o erro que não permite acertar na verdade — aplica-se
facilmente a James, que parece ter pensado que tudo o que conta no que respeita à verdade é acertar nela,
ainda que por acaso, e não conhecê-la.
Racionalidade distribuída
A objecção de Plantinga a Clifford é uma objecção geral a qualquer posição indiciarista. Consiste em
defender que, pelo próprio critério indiciarista, não devemos acreditar em coisa alguma sem provas; mas
não há provas de que o indiciarismo seja verdadeiro; logo, não devemos acreditar no indiciarismo.
Esta objecção depende, contudo, de uma concepção muito rígida de prova, concepção que o próprio
Clifford não defendia. Certamente que Clifford não pensava que o único género de provas eram provas
matemáticas ou científicas. Em muitas matérias, prova-se ideias argumentando, e os argumentos podem
ser muito complexos. Aquilo a que Clifford claramente se opunha era a crença sem provas, sem
quaisquer razões, só porque se decide arriscar acreditar.
Quando perguntamos se a fé é aceitável na ausência de provas, o termo «aceitável», neste contexto,
quer dizer «epistemicamente legítimo». Esta expressão é melhor do que «prova», que tem um significado
demasiado restrito. Mas não é fácil saber o que é epistemicamente legítimo e o que o não é. Para
esclarecer este conceito, podemos recorrer a alguns paradigmas de atitudes epistemicamente legítimas e
ilegítimas.
Antes, porém, é importante fazer notar que é argumentável que nem tudo o que é epistemicamente
ilegítimo ou incorrecto é moralmente ilegítimo ou incorrecto. Sem dúvida que há alguma conexão entre os
dois conceitos; em alguns casos, uma atitude pode ser moralmente incorrecta precisamente por ser
epistemicamente incorrecta; Clifford, todavia, ou confundia ambos os conceitos ou estabelecia entre
ambos uma conexão excessivamente forte. O argumento de Clifford a favor da ideia de que é sempre
moralmente incorrecto acreditar em algo sem provas é que, mesmo no caso de uma crença trivial e
meramente pessoal, o facto de se acreditar sem provas torna-nos crédulos e isso acabará por ter efeitos
moralmente maus. Isto é um exagero: é fácil pensar em contextos em que ser crédulo não terá quaisquer
consequências para a humanidade em geral: numa pequena ilha, um ancião doente alimenta a crença
injustificada de que os seus companheiros serão salvos, mas nada lhes diz e morre pacificamente. O
máximo que se pode defender é que na maior parte dos contextos é uma má ideia criar hábitos de
credulidade, em vez de hábitos de análise cuidadosa das coisas, porque as consequências, directas ou
indirectas, a curto ou longo prazo, são quase sempre desastrosas.
Por outro lado, podemos considerar que os deveres epistémicos — procurar honestamente a verdade,
não ser tendencioso, etc. — são casos especiais de deveres morais. Neste caso, é verdadeiro que
qualquer violação de um dever epistémico é, eo ipso, a violação de um dever moral. Mas isto é um
pouco enganador, pois quer apenas dizer que descurar um dever epistémico é descurar um dever moral:
não quer dizer que, ao fazê-lo, descuramos um dever moral de outra categoria. Por isso, é menos
enganador falar apenas do que é epistemicamente legítimo ou não, em vez de usar a linguagem de
Clifford, na qual não atender aos indícios é moralmente incorrecto.
Voltemos ao esclarecimento do que é epistemicamente legítimo e ilegítimo, recorrendo a exemplos
claros de ambos. Começando pelo último caso, é claramente ilegítimo rejeitar quaisquer argumentos
contra uma dada posição, ao mesmo tempo que se aceita o mesmo género de argumentos a favor dela.
Este tipo de ilegitimidade epistémica ocorre quando uma pessoa põe em causa a ciência ou a lógica, por
exemplo, quando estas parecem militar contra as suas crenças mais queridas, ao mesmo tempo que abraça
ambas calorosamente quando parecem militar a seu favor. Esta arbitrariedade é claramente ilegítima,
epistemicamente, ainda que não consigamos estabelecer condições necessárias e suficientes do que é uma
atitude epistemicamente legítima. Se uma pessoa considerar que acreditar sem provas só é
epistemicamente legítimo no caso da crença religiosa, há alguma probabilidade de não ser
epistemicamente virtuosa. James, note-se, apresenta critérios suficientemente gerais que tornariam
epistemicamente legítimo ter qualquer crença, religiosa ou não, sem provas. (A dificuldade, como vimos,
é que em todos os casos não religiosos a crença sem provas só é legítima quando crer tem uma conexão
causal com um resultado desejável, coisa que não há razões para pensar que ocorre no caso da crença
religiosa.)
Quanto à legitimidade epistémica, esta parece manifestar-se mais claramente quando alguém muda de
ideias por se deparar com razões adequadas para isso: por exemplo, o João pensava que a Francisca
tinha ido ao cinema, mas ao chegar a casa encontra-a lá e muda por isso de ideias.
Contudo, nem toda a mudança de ideias é epistemicamente legítima: só o é quando há razões
adequadas para isso. Uma pessoa que acreditava em Deus e deixa de acreditar só porque assistiu a uma
palestra de uma hora sobre o tema poderá não ser epistemicamente virtuosa, mas antes viciosa — neste
caso, por ser leviana.
Assim, o problema é saber o que são «razões adequadas» para mudar de ideias. No caso do João, a
razão adequada é ter visto a Francisca em casa; mas a visão só em certos casos é fidedigna. Na seguinte
imagem, por exemplo, a segunda linha parece maior do que a primeira, mas ambas têm o mesmo
comprimento:

Assim, nem sempre a simples visão nos dá razões adequadas para acreditar no que vemos: nos sonhos,
também nos parece que vemos muitas coisas, mas essas coisas podem não existir. Distinguir as condições
em que os dados dos sentidos são fidedignos dos casos em que não o são é por isso crucial.
A tentação a evitar aqui é pensar como os cépticos, que negam a possibilidade do conhecimento
genuíno. Uma maneira de argumentar a favor do cepticismo é que as ilusões cognitivas, como as visuais,
são recorrentes e não temos um modo de ter a certeza, perante uma dada crença ou percepção, se é uma
ilusão ou não.
A primeira crítica a fazer ao argumento céptico é que o conceito de certeza é epistemicamente
irrelevante e confuso. O conceito de certeza pode ser entendido de duas maneiras. Por um lado, podemos
conceber a certeza meramente como uma forte convicção. Neste caso, a certeza é irrelevante para o que
está em causa, porque se podemos estar enganados quando vemos, também podemos estar enganados
quando temos uma forte convicção de que não estamos enganados quando vemos. É argumentável que,
nesta acepção, a certeza é apenas mais um nível de ilusão epistémica — como se a forte convicção fosse
garantia de que não estamos enganados.
Outra maneira de conceber a certeza é pensar que se trata de estar certo, no sentido de acertar. Nesta
acepção de certeza, por definição, quando se tem a certeza de algo, é porque se acertou na verdade. Mas
nesta acepção podemos sempre estar enganados: quando pensamos que acertámos, podemos não ter
acertado.
Assim, seja a certeza concebida do primeiro modo ou do segundo, é irrelevante para a discussão em
causa. Parece relevante, porque se confunde e mistura os dois sentidos: como se acertar implicasse uma
convicção mais forte, e como se esta implicasse acertar. Mas isto é falso: na melhor das hipóteses, uma
convicção mais forte, que se mantém depois de uma investigação cuidadosa, está correlacionada com
maior probabilidade de se ter acertado, o que é muito diferente de implicar que se acertou.
Seja qual for a concepção de legitimidade epistémica que tenhamos, a mera certeza não parece
relevante: podemos ter a certeza por sermos casmurros, por exemplo, defendendo firmemente uma ideia
contra a qual há excelentes indícios ou argumentos. Também a mera possibilidade de estarmos
enganados, explorada pelo céptico, não parece relevante para a ilegitimidade epistémica: do facto de
podermos estar enganados não se segue que estamos enganados, e do facto de não se poder garantir que
não estamos enganados não se segue que qualquer maneira de investigar as coisas e de formar crenças
tem o mesmo grau de legitimidade epistémica.
Não parece haver receitas automáticas para determinar quando um dado processo de formação de
crenças é epistemicamente legítimo, e este é um dos problemas centrais da epistemologia da fé. Quem
defende o indiciarismo, como Clifford, tende a pensar que nenhuma crença é epistemicamente legítima
sem provas, incluindo as crenças religiosas, porque tem em mente o género de processo de
estabelecimento de verdades que se usa em medicina, física, biologia, matemática, etc. Quem defende a
posição contrária tem em mente os processos mais quotidianos de formação de crenças, que incluem
coisas como a experiência pessoal, a tradição e a confiança nos outros, além do poder motivador das
crenças.
O indiciarismo está por vezes associado a uma certa ingenuidade epistémica. A essa ingenuidade
epistémica podemos chamar o mito do investigador solitário. Esta ingenuidade epistémica dá origem a
uma versão infantil de indiciarismo, que é fácil refutar: a ideia de que cada um de nós só tem
legitimidade epistémica para aceitar o que nós mesmos somos capaz de provar. Muitos crentes
consideram, com razão, que esta posição é insustentável, além de algo cega.
Para ver porquê, considere-se o memorável ensaio de George Orwell, de 1946, em que ele se
pergunta «Como sei que a terra é redonda?». Rapidamente nos apercebemos que só por testemunho
sabemos que a Terra é esférica, ou que a água é H2O: os professores ou cientistas escreveram isso ou
disseram isso, e nós acreditamos. Não só não temos provas directas dessas coisas, como a maior parte de
nós não saberia estabelecer tais coisas, mesmo que tivéssemos os meios para isso: eu, por exemplo, não
saberia estabelecer que a água é H2O, mesmo que tivesse acesso a um laboratório de química. E, apesar
de poder viajar num avião ou outro meio de transporte para poder ver directamente que a Terra é
esférica, não saberia dizer se o que me pareceria visualmente evidente não ficaria a dever-se a alguma
ilusão perceptiva, dado que neste caso eu estaria muito afastado do meu ambiente perceptivo comum.
Estas considerações parecem militar contra Clifford, mas a sua posição é mais sofisticada do que
isso. Na segunda parte do seu ensaio, Clifford aborda explicitamente o que acontece quando temos de nos
apoiar em terceiros para justificar as nossas crenças. Este problema torna-se mais vívido se
compararmos estes dois casos: no primeiro, a Josefa vem do supermercado e diz ao marido: «Afinal, não
havia leite, esgotou-se»; no segundo, a Marília vem também do supermercado e diz ao marido «Afinal,
não havia leite; vieram uns extraterrestres e levaram-no todo». No primeiro caso, o marido aceita o
testemunho da Josefa, sem mais perguntas, e será capaz de dizer com toda a segurança a outra pessoa,
alguns minutos depois, que não há leite no supermercado porque se esgotou. Mas, no segundo, o marido
da Marília fica estupefacto e começa imediatamente a fazer perguntas; muitas perguntas. Qual é a
diferença?
No primeiro caso, o testemunho da Josefa é banal; no segundo, não é banal. Aceitamos informações
banais por testemunho, sem mais perguntas; mas quando o testemunho transmite supostas informações que
não são banais, queremos razões mais fortes do que a mera confiança na pessoa. Neste último caso,
queremos algumas razões para pensar que a pessoa não está a enganar-nos; ou que não se enganou ela,
sendo vítima de uma ilusão. O caso caricatural mais óbvio que esclarece o que está em causa é o
seguinte: passamos na rua e perguntamos as horas a alguém, e confiamos na resposta; mas perguntamos a
essa mesma pessoa se há extraterrestres e, seja a resposta afirmativa ou não, não confiamos na resposta.
Porquê? Clifford viu porquê: porque num caso a pessoa está a dizer-nos algo que nós próprios sabemos
como podemos saber; no outro, está a dizer-nos algo que nós mesmos não sabemos como poderíamos
saber. Acreditar no testemunho de alguém que afirma saber algo que não fazemos ideia como nós mesmos
poderíamos saber é credulidade; e, claro, a credulidade é mais tentadora quando o que essa pessoa nos
diz é o que queremos ouvir.
Contudo, não é num certo sentido verdadeiro que muitos de nós não fazem ideia como seria possível
descobrir a composição química da água? No entanto, confiamos no testemunho dos cientistas. Será isso
credulidade? Se não o for, por que razão seria credulidade acreditar num profeta que afirma ter tido
contacto directo com uma divindade?
Há duas respostas a este desafio. Primeiro, o género de experiência em causa é muitíssimo diferente.
Num caso, trata-se apenas de estudar química, e isso não exige quaisquer capacidades especiais da nossa
parte. Quem estuda química tem um acesso privilegiado à verdade, mas apenas num sentido fraco: no
mesmo sentido em que se eu estiver a ver uma árvore e a outra pessoa não, eu tenho um acesso
privilegiado à árvore — mas a outra pessoa teria exactamente o mesmo acesso caso estivesse na minha
situação, vendo a árvore. Contudo, no que respeita a subir a uma montanha e ouvir a palavra de Deus, as
coisas são muito diferentes: não basta subir e ficar à espera. Milhões de pessoas podem fazer isso e
nenhuma voz ouvir. Quem ouve tais vozes tem um acesso privilegiado à intimidade dos deuses, acesso
que os outros não têm.
Assim, a primeira resposta é que seremos crédulos se acreditarmos num testemunho que pressupõe
que a outra pessoa tem um acesso privilegiado à verdade, no sentido forte. Isto é credulidade porque a
pessoa poderá ser vítima de alucinação, ainda que seja sincera; ou poderá estar a mentir, por qualquer
motivo. Acresce que qualquer pessoa que pense ouvir a voz de uma divindade terá pelo menos de
levantar a hipótese de estar a ser vítima de ilusão, se for epistemicamente virtuosa, tal como olhamos
com estupefacção quando vemos coisas incomuns — uma mulher a ser aparentemente serrada ao meio,
num circo, e que, no entanto, continua a mexer os pés no outro lado da caixa. O que poderá fazer-nos
aceitar prontamente a nossa experiência religiosa, sem um exame cuidadoso, ao mesmo tempo que não
aceitamos a nossa experiência visual de ver uma mulher ser serrada ao meio e sobreviver, é a
credulidade: a vontade de acreditar no que gostaríamos que fosse verdadeiro.
Um antídoto à credulidade é o seguinte: quanto mais gostaríamos que algo fosse verdadeiro, mais
razões temos para ver cuidadosamente se é mesmo verdadeiro, ou se estamos a enganar-nos a nós
mesmos, nomeadamente por sermos vítimas da superstição comum de que acreditar em algo muito
firmemente contribui para a sua verdade, ainda que nenhuma relação causal exista entre uma coisa e
outra. Rejeitar este princípio é incompatível com a virtude epistémica.
A segunda resposta é que a estrutura epistémica da comunidade em causa é crucial. Tenho razões para
aceitar as afirmações de um cientista, afirmações que pessoalmente não posso testar, se as próprias
instituições científicas tiverem uma estrutura epistémica adequada. Essa estrutura epistémica resume-se
na máxima de John Stuart Mill:

«As nossas crenças mais justificadas não têm qualquer outra garantia sobre a qual assentar, senão
um convite permanente ao mundo inteiro para provar que carecem de fundamento» (Sobre a
Liberdade, 1859, p. 58).

Dada a falibilidade humana, precisamos de testar cuidadosa e permanentemente as nossas crenças —


todas elas. Quando as instituições têm este género de estrutura epistémica, convidando o mundo inteiro,
permanentemente, a provar que as suas afirmações carecem de fundamento, dão-nos razões para aceitá-
las. Isto porque torna menos provável que resultem da ilusão ou da mentira, pois se podem ser
continuamente postas em causa e discutidas abertamente, é mais provável que as ilusões e os erros sejam
detectados. Não significa, contudo, que tais afirmações são imutáveis: na verdade, no caso das
instituições científicas, é o próprio facto de terem permitido ao longo do tempo a revisão das crenças
científicas fundamentais que nos dá razão para aceitar as afirmações científicas actuais — porque quando
houver boas razões para pensar que são falsas, essas razões serão difundidas e discutidas e assumir-se-á
que são falsas.
Note-se que isto não significa que os membros dessas instituições sejam tão abertos à discussão
quanto seria desejável. Alguns poderão não o ser; mas isso é irrelevante se outros o forem e se estes não
forem impedidos de apresentar as suas ideias discordantes. Analogamente, numa instituição que não
permite a crítica aberta, alguns dos seus membros podem ser-lhe favoráveis — mas isso não torna as
afirmações dessa instituição dignas de crédito. Só o serão se as vozes discordantes não forem
silenciadas, mas antes acolhidas, levadas a sério e frontalmente discutidas.
Assim, a nossa estrutura epistémica é eminentemente social não apenas no sentido trivial de que só
em conjunto sabemos o que nenhum de nós sabe isoladamente: não se trata apenas de precisarmos de
vários cérebros para armazenar quantidades gigantescas de informação, como quem precisa de vários
armazéns de fruta. A nossa estrutura epistémica é eminentemente social no sentido mais profundo de
precisarmos de vários olhares críticos para diminuir a probabilidade de sermos vítimas de erro e ilusão
— diminuir, note-se, e não eliminar. Em seres falíveis, dificilmente haverá maneiras de eliminar o erro e
a ilusão. Mas se tentarmos activamente encontrar os erros e ilusões uns dos outros, teremos mais
probabilidades de os descobrir.
Mesmo intuitivamente, sem qualquer discussão epistemológica sobre as consequências da nossa
óbvia falibilidade, damos bastante importância ao controlo social dos erros. Isto é bom, por um lado,
mas mau, por outro. É bom porque nos faz dar muita importância ao que as outras pessoas afirmam; e se o
que eles afirmam colide com o que nos parece que é verdade, desconfiamos que poderemos ter errado.
Mas também é mau porque uma crença amplamente partilhada socialmente pode estar apesar de tudo
errada, tendo razão o ser humano isolado que contraria o que todos os outros aceitam. Comecemos com o
primeiro caso.
Imagine-se que, sem a Josefa saber, uma equipa de psicólogos decide fazer uma experiência com ela.
Falam com as pessoas do escritório de advogados onde trabalha e, na hora do almoço, transformam o
escritório num consultório de dentista. Quando ela chega do almoço, entra no prédio, entra no elevador e
carrega no número 5. Chegado ao andar correcto, entra no seu escritório e fica perplexa: não vê o que
esperava ver, mas sim um consultório desconhecido de dentista. A sua primeira reacção será
provavelmente duvidar de que esteja no andar correcto. Isso parece-lhe mais provável, e é, do que a
hipótese doida de o escritório onde trabalha há mais de cinco anos ter desaparecido durante a hora do
almoço. De modo que sai do consultório e volta ao elevador. Para seu espanto, está mesmo no quinto
andar. Agora as coisas começam a ficar mais estranhas para ela. O que poderá haver de errado? Fica
ligeiramente desorientada: poderão todas as suas memórias de que trabalha naquele prédio estar erradas?
Será que está a enlouquecer?
Um pouco desorientada, considera então que poderá ter-se enganado no prédio. Entra no elevador,
chega ao rés-do-chão e sai do prédio. O resultado é assustador: é realmente aquele o prédio em que ela
trabalha. Pelo menos, tanto quanto se recorda. Muito provavelmente, a Josefa voltará a entrar no
elevador, porque duvida agora de que tenha realmente estado ao quinto piso, apesar de o ter verificado
há menos de cinco minutos. Irá de novo ao quinto piso e, ao ver uma vez mais o estranho consultório de
dentista, começará a duvidar de que o seu escritório de advogados esteja afinal no quinto andar. Não
seria antes no 15.º?
O significado desta história é que o nosso contexto epistémico quotidiano é feito de controlos e
ajustes. Isso inclui não apenas a observação directa das coisas, mas também as informações que os outros
nos transmitem. Em nenhuma acreditamos em absoluto; a todas damos algum crédito. Quando vemos algo
à nossa frente, em certas condições, acreditamos que aquilo está mesmo ali. Quando vemos uma mulher a
ser serrada num número de circo, contudo, não acreditamos que está a ser serrada. Quando falamos com
as pessoas, acreditamos à partida no que nos dizem; mas muitas vezes pensamos que têm razões para nos
mentir, ou que estão enganadas. Quando nos lembramos de coisas, como o andar em que trabalhamos há
cinco anos, acreditamos na nossa memória; mas por vezes temos razões para duvidar dela. Quando
ouvimos vozes, acreditamos geralmente que algumas pessoas estão do outro lado a conversar; mas
desconfiamos que podemos estar a ficar esquizofrénicos se ouvirmos vozes num deserto ou noutro lugar
sem pessoas à nossa volta.
A ciência e a filosofia nada fazem de extraordinário excepto alargar esta prática epistémica de
controlos e ajustes a questões que são mais difíceis de conhecer. Mas o princípio geral é o mesmo:
avanços e recuos, controlos e ajustes. Nem crendice nem cepticismo, mas algo no meio: estudar
pacientemente as coisas, formular hipóteses, testar ideias e argumentos. Leva-se a sério o que nos diz um
colega cientista, mas precisamos conseguir reproduzir a experiência que diz ter feito ontem e ter dado um
resultado extraordinário; precisamos ver o que poderá ter corrido mal, onde poderá esconder-se uma
ilusão. Se o resultado é bom de mais para ser verdadeiro, é provável que seja realmente bom de mais
para ser verdadeiro — e somos tanto mais rigorosos nos testes que fazemos e exigimos.
Passemos agora para o segundo caso. As pessoas mentem e enganam-se. Mas se forem erros
epistemicamente comuns, as outras pessoas irão ter a ilusão de estar a confirmá-los, precisamente por
serem comuns. Sem estudar cuidadosamente astronomia, nenhum ser humano tem razões directas e óbvias
para pensar que a Terra se move, ou que é esférica. E terá uma razão acrescida para pensar que está
imóvel: todas as outras pessoas à sua volta pensam o mesmo. Parece improvável que todas estejam
erradas, ainda que o estejam de facto. Nessa circunstância, não é óbvio que seja epistemicamente vicioso
um ser humano crer que a Terra está imóvel e que não é esférica, mas antes plana, ainda que tais crenças
sejam falsas.
Se aceitarmos isto, teremos de aceitar a tese de Plantinga: em certos contextos é epistemicamente
legítimo acreditar em Deus sem provas — ou melhor, sem provas cabais. Na realidade, haverá nesse
contexto o mesmo género de provas não cabais que temos para acreditar que a Terra é plana e está
imóvel: todas as pessoas à nossa volta acreditam em Deus e podemos ter experiências religiosas ao
contemplar a natureza ou ao ler livros sagrados. É o que acontece a uma criança de doze anos, por
exemplo, que cresceu numa comunidade de adoradores do deus Rá. Todas as pessoas à sua volta
acreditam nessa divindade e ela sente uma comunhão com Rá em certas circunstâncias. Quando lê os
textos sagrados, sente certas emoções que interpreta como um contacto com Rá. Ninguém na sua
comunidade põe em causa a existência nem as intervenções milagrosas de Rá. Ela acredita em Rá, e a sua
crença não parece epistemicamente ilegítima.
Diversidade epistémica
As considerações da secção anterior dão uma imagem da legitimidade epistémica muito diferente do que
por vezes se pensa. A ideia de que somos agentes epistémicos sociais e de que estamos continuamente a
fazer controlos e ajustes nas nossas crenças colide com um ponto de vista comum, na história da filosofia,
no que respeita à justificação última das nossas crenças. Esse ponto de vista tradicional tem a designação
de fundacionalismo. A ideia é que as nossas crenças só têm justificação, na sua maioria, porque se
baseiam noutras, das quais são inferidas. Assim, acreditamos que não nascemos ontem, por exemplo,
porque nos lembramos de existir há vários anos. Portanto, a crença de que não nascemos ontem baseia-se
noutras crenças. Mas nem todas as crenças poderão basear-se noutras, sob pena de regressão infinita;
logo, algumas crenças são básicas: crenças que não se baseiam noutras.
Às crenças básicas que são epistemicamente legítimas chama-se crenças apropriadamente básicas.
Determinar que crenças são apropriadamente básicas é o que o fundacionalista terá de fazer. Quando o
fundacionalista considera que essas crenças básicas não incluem senão crenças empíricas, é um
empirista; quando considera que só incluem crenças que não são empíricas, é um racionalista.
O fundacionalismo é um ponto de vista muito natural. E parece particularmente apelativo a quem tem
uma mentalidade científica. Neste caso, a ideia é que as crenças apropriadamente básicas serão
perceptivas. A ciência é então vista como um desenvolvimento de teorias que se baseiam em crenças
perceptivas apropriadamente básicas. Suspeita-se que poderá haver algo de errado nesta ideia quando
consideramos que a agricultura empírica, pré-científica, se baseia em crenças perceptivas básicas, mas
não tem o poder explicativo nem o grau de sofisticação e precisão que permita afirmar que é científica.
Um agricultor empírico sabe como cultivar um terreno, mas não sabe explicar por que razão fazendo as
coisas de uma maneira tudo corre bem, mas tudo corre mal se fizermos de outra. Um agricultor científico
sabe explicar, pelo menos parcialmente, por que razão as coisas funcionam de uma maneira e de outra
não.
O que faz a diferença é que a agricultura científica resulta de se testar explicitamente ideias diferentes
e de se procurar activamente explicações melhores, ao passo que a agricultura empírica consiste quase
exclusivamente na aceitação do que a tradição nos ensinou a fazer, e no que podemos ver sem recorrer à
observação sistemática nem a testes e controlos explícitos. Assim, o que parece crucial é o carácter
activo e temporal dos nossos procedimentos epistémicos, num caso, e passivo e atemporal, no outro. O
que parece crucial não é, então, o carácter apropriadamente básico das crenças de partida, nem o seu
carácter observacional, mas antes a atitude activa de procurar controlos e ajustes, ao longo do tempo.
Se rejeitarmos o fundacionalismo, contudo, não teremos de dizer que a estrutura das nossas crenças é
viciosamente circular? Afinal, se não há crenças apropriadamente básicas com base nas quais
estabelecemos as outras, o que estabelece a verdade de uma crença? Chama-se coerentista à ideia de que
as nossas crenças podem justificar-se entre si sem que tal círculo seja vicioso. Na teoria coerentista
pode-se aceitar que algumas crenças são mais básicas ou elementares do que outras; mas nega-se que
existam crenças rigorosamente básicas, com base nas quais todas as outras se justifiquem.
O caso da Josefa, acima, ajuda a compreender o coerentismo: em alguns contextos, confiamos na
nossa memória; noutros, pomos a memória em causa. Há uma dialéctica contínua entre o que está em
causa, o contexto em que estamos e muitas outras crenças relacionadas com o que está em causa.
Quotidianamente, não parece sensato pôr em causa que a Terra está imóvel; mas a continuação do nosso
estudo da natureza pode fazer-nos rever esta crença. Para o fazermos, contudo, teremos de ter um
conjunto de outras crenças que julgamos mais sólidas do que essa: podemos rever qualquer crença, mas
não as revemos todas ao mesmo tempo nem à toa, sem ter em consideração as outras crenças
relacionadas. E este processo de rever crenças é contínuo, decorrendo ao longo do tempo.
Porque somos falíveis, a virtude epistémica exige que estejamos dispostos a pôr em causa as nossas
crenças, incluindo as mais queridas. E é difícil imaginar contextos epistémicos nos quais a falibilidade
humana não seja evidente. Contudo, em muitos contextos epistémicos, a falibilidade humana é objecto de
ocultação, fingindo-se que certas pessoas ou instituições são infalíveis, sendo impróprio e até ofensivo e
blasfemo pôr em causa o que essas pessoas e instituições afirmam. Se levarmos a sério a falibilidade
humana, um agente terá tanto menos legitimidade epistémica para aceitar o que afirma um grupo de
pessoas quanto mais essas pessoas procuram impedir que as suas afirmações sejam postas em causa. E,
em muitos casos, basta que nos perguntemos se as pessoas que afirmam algo não poderão estar enganadas
para destruir a aparência de autoridade epistémica que fingem deter.
Considere-se o Adelino. Vive numa comunidade tradicional, sem conhecimentos científicos. Não faz
a mínima ideia sobre a constituição da água, nem sobre a natureza do Sol. Ignora que a Terra não está
imóvel, e parece-lhe óbvio que está imóvel. Mas mesmo ele sabe que somos falíveis, pois muitas vezes
lhe parecia ver ao longe alguém, quando afinal era só uma árvore; ou parece recordar-se de ter visto uma
árvore num dado lugar, e depois descobre que afinal estava noutro. Além disso, vê que o mesmo ocorre
com as outras pessoas da sua comunidade. Por isso, se reflectir cuidadosamente, verá que não é só ele
que não tem realmente razões de muito peso para pensar que a Terra está imóvel: ninguém na sua
comunidade as tem. Com respeito a uma crença inócua como esta, o Adelino talvez esteja disposto a
abandoná-la, se com o decorrer do tempo começar a ter razões para pensar que é falsa. E se não estiver
disposto a isso, será epistemicamente vicioso.
Se considerarmos agora o género de interlocutor que Clifford tem em mente, vemos muitas
diferenças. Clifford fala para ingleses do séc. XIX. Nesta altura, muitas crenças tradicionais foram postas
em causa, à medida que os estudos cada vez mais complexos prosseguiam. Neste contexto epistémico, já
não é verdadeiro que toda a gente pensa que Deus existe, por exemplo. Neste contexto, muitos estudiosos
declaram-se descrentes. Neste contexto, nenhum Adelino, educado na fé cristã, pode ficar indiferente
perante a hipótese de estar enganado quando pensa que a divindade cristã existe; e se o ficar, é porque
não é epistemicamente virtuoso.
O primeiro resultado desta análise é que aceitar a tese de Plantinga tem consequências menos fortes
do que se poderia pensar. Tudo o que Plantinga defende é que em certos contextos é epistemicamente
legítimo crer em Deus sem provas. Mas não mostra que é epistemicamente legítimo crer em Deus sem
provas num contexto em que muitos outros agentes epistémicos põem a existência de Deus em causa. Só
conseguiria mostrar isso se conseguisse mostrar que as crenças ateias não devem ser tidas em conta pelos
crentes, por qualquer razão. Mas que razão poderemos invocar?
Podemos defender que falta aos descrentes uma faculdade especial, o sensus divinitatis; ou que esta
faculdade foi corrompida pelo pecado. O problema de qualquer uma destas ideias é não ser mais
evidentemente verdadeira do que a hipótese de que são as pessoas crentes que são vítimas de ilusão, ou
que são epistemicamente viciosas, crendo ser verdadeiro o que lhes dá jeito crer que é verdadeiro.
Esta será outra discussão; para já, importa apenas mostrar o papel da diversidade e da tolerância na
nossa estrutura epistémica. A diversidade de pontos de vista é uma ameaça a sistemas de crenças que se
protegem precisamente porque as pessoas que têm essas crenças desconfiam que são falsas, mas
gostariam que fossem verdadeiras. É difícil conceber qualquer virtude epistémica nesta atitude. Trata-se
tão-somente de evitar o incómodo de ter de mudar de ideias. Quem crê sinceramente que as suas ideias
são verdadeiras não pode sentir-se assustado quando alguém as põe em causa. E quem ao mesmo tempo
crê na sua óbvia falibilidade epistémica, quererá pô-las em causa, pois se não resistirem ao exame
crítico é porque são provavelmente falsas e devem ser abandonadas.
A diversidade epistémica é por isso saudável, e terá de ser acolhida com agrado por quem for
epistemicamente virtuoso. Cada um de nós pode pôr em causa as ideias em que acredita, mas a melhor
pessoa para o fazer é o nosso semelhante que desde o início não acredita nessas ideias. Assim, qualquer
crente epistemicamente virtuoso acolhe com agrado os descrentes que argumentam contra a sua fé; e
qualquer descrente epistemicamente virtuoso acolhe com agrado os crentes que argumentam a favor da fé.
O valor epistémico da diversidade de opiniões é permitir que as ideias mais díspares sejam defendidas
por quem genuinamente acredita nelas. E o primeiro sinal de vício epistémico é a falta de tolerância, que
se revela na vontade de eliminar ou silenciar quem pensa de maneira diferente de nós, ou na manipulação
da discussão, tornando-a um exercício performativo que visa cativar e seduzir, e não descobrir a verdade
e detectar o erro.
Admitindo que James e Plantinga conseguem resolver as dificuldades discutidas, o que se segue da
aceitação das suas posições é a legitimidade epistémica de crer sem provas; não se segue das suas
posições a legitimidade de crer com imensa convicção sem provas. Se considerarmos que crer com
imensa convicção é constitutivo da fé, então nenhum destes dois filósofos foi bem-sucedido em defender
a legitimidade epistémica da fé sem provas.
Conclusão
Ambrose Bierce (1842–1914) definiu a fé como «Crença sem indícios no que diz quem fala sem
conhecimento de coisas sem paralelo».1 Esta humorística definição caracteriza bem a atitude de muitos
descrentes, que consideram por vezes a fé um paradigma de vício epistémico. Muitos crentes, por sua
vez, consideram que esta atitude é insensível a realidades mais importantes e profundas, incluindo os
aspectos vivenciais de quem tem uma vida e atitude religiosa. O exame preliminar aqui realizado de
algumas ideias e conceitos centrais desta área poderá ajudar crentes e descrentes a discutir melhor o
tema. Outro não era o objectivo.
The Devil’s Dictionary, 1906. Há uma tradução portuguesa, na Tinta da China.
2. A ética da crença

W. K. Clifford

I. O dever de investigar
Um armador preparava-se para enviar para o mar um navio com emigrantes. Sabia que o navio estava
velho e tinha defeitos de construção; que conhecera já muitos mares e climas e teve de ser reparado muito
mais de uma vez. Alguém sugeriu ao armador que o navio talvez não estivesse em condições de navegar.
Estas dúvidas pesavam-lhe na consciência e deixavam-no infeliz; pensou que talvez devesse mandar
inspeccionar e renovar completamente o navio, embora isto provavelmente ficasse bastante caro. Antes
de o navio zarpar, contudo, o armador conseguiu deixar para trás estes pensamentos melancólicos. Disse
para consigo que o navio enfrentara com êxito tantas viagens e resistira a tantas tempestades que não
havia razão para supor que não regressaria ileso também desta viagem. O armador confiaria na
providência, que seguramente não deixaria de proteger todas aquelas infelizes famílias que abandonavam
a pátria em busca de uma vida melhor alhures. Silenciaria todas as dúvidas mesquinhas acerca da
honestidade dos construtores e dos empreiteiros. Assim, alcançou uma certeza sincera e confortável de
que o seu navio era completamente seguro e estava em condições de navegar; viu-o partir com
despreocupação e desejos caridosos de que os exilados fossem bem-sucedidos no novo e estranho lar
que os esperava; e recebeu o dinheiro do seguro quando o navio se afundou em pleno mar sem deixar
rasto.
O que diremos do armador? Seguramente, que é muitíssimo culpado pela morte daqueles homens.
Admitindo-se que acreditava sinceramente no bom estado do seu navio, a sinceridade da sua convicção,
porém, não lhe pode valer de maneira alguma, porque não tinha o direito de acreditar com base nos
indícios de que dispunha. Não adquiriu a sua crença por mérito honesto, através da investigação
paciente, mas silenciando as suas dúvidas. E embora no final a sua certeza sobre o assunto fosse
porventura tão grande que não era capaz de pensar de outra maneira, temos de o considerar responsável
pelo sucedido, na medida em que se colocou deliberada e voluntariamente naquele estado de espírito.
Alteremos um pouco a história e suponhamos que o navio não estava, afinal, em mau estado;
suponhamos que fez a viagem em segurança, e muitas outras viagens após aquela. Será que isso diminui a
culpa do seu proprietário? Nem um pouco. Quando se pratica uma acção uma vez, esta é correcta ou
incorrecta para sempre; nenhuma falha acidental das suas boas ou más consequências pode alterar isso. O
homem não seria inocente; apenas não teria sido descoberto. A questão do correcto e do incorrecto tem a
ver com a origem da crença do armador, e não com o seu conteúdo; não é a crença que conta, mas o modo
como a adoptou; não se trata de a crença ser afinal verdadeira ou falsa, mas de o armador ter ou não o
direito a acreditar com base nos indícios de que dispunha.
Era uma vez uma ilha onde alguns dos habitantes seguiam uma religião que não pregava a doutrina do
pegado original nem a doutrina do castigo eterno. Espalhou-se a suspeita de que os seguidores desta
religião se tinham servido de meios desonestos para ensinar as suas doutrinas às crianças. Acusaram-nos
de violar as leis do país de maneira a afastar as crianças da vigilância de quem tinha a sua custódia
natural e legal; e até de as roubar e manter escondidas dos amigos e familiares. Algumas pessoas
formaram uma associação com o objectivo de provocar a agitação do público a respeito deste assunto.
Publicaram acusações graves contra cidadãos individuais do mais elevado estatuto e reputação, e fizeram
tudo o que estava em seu poder para lesar estes cidadãos no exercício das suas profissões. Fizeram
tamanho barulho que foi nomeada uma comissão para investigar os factos; mas após a comissão ter
averiguado cuidadosamente todos os indícios que se podia obter, parecia que os acusados estavam
inocentes. Não só foram acusados com base em indícios insuficientes, como os indícios da sua inocência
eram tais que os agitadores os podiam ter facilmente obtido, se tivessem procurado fazer uma
investigação imparcial. Após estas revelações, os habitantes daquele país passaram a encarar os
membros da associação agitadora não só como pessoas em cujo discernimento não se devia confiar, mas
também como indivíduos que não mais podiam considerar honestos. Pois embora acreditassem sincera e
diligentemente nas acusações que fizeram, não tinham todavia o direito de acreditar com base nos
indícios de que dispunham. As suas convicções sinceras, em vez de merecidas pela investigação
paciente, foram roubadas, dando ouvidos à voz do preconceito e da paixão.
Introduzamos uma variação também neste caso e suponhamos, deixando o resto na mesma, que uma
investigação ainda mais meticulosa provava que os acusados eram realmente culpados. Faria isto
diferença alguma para a culpa dos acusadores? Evidentemente que não; a questão não é a de a sua crença
ser ou não verdadeira, mas a de a terem ou não sustentado sem razões adequadas. Sem dúvida diriam:
«Agora vêem que afinal de contas tínhamos razão; talvez para a próxima acreditem em nós.» E talvez
acreditassem neles, mas não se tornariam homens honestos por causa disso. Não estariam inocentes,
apenas não teriam sido descobertos. Se cada um deles, sem excepção, decidisse examinar-se in foro
conscientiae, saberia que tinha adquirido e acalentado uma crença, quando não tinha o direito de
acreditar com base nos indícios de que dispunha; e assim saberia ter feito uma coisa incorrecta.
Dir-se-á, todavia, que em ambos estes casos hipotéticos não se considera errada a crença mas a
acção que dela decorre. O armador pode afirmar: «Tenho a absoluta certeza de que o meu navio está em
bom estado, mas ainda assim sinto que é meu dever mandar examiná-lo, antes de lhe confiar as vidas de
tanta gente.» E poder-se-ia dizer ao agitador: «Por muito convencido que estejas da justeza da tua causa e
da verdade das tuas convicções, não devias ter atacado publicamente o carácter de uma pessoa antes de
teres examinado os indícios de ambos os lados com a máxima paciência e cuidado.»
Em primeiro lugar, admitamos que, no que diz respeito ao nosso assunto, esta perspectiva é correcta e
necessária; correcta, porque mesmo quando um homem tem uma crença tão firme que o torna incapaz de
pensar de outra maneira, continua a ter escolha relativamente à acção que a crença lhe sugere e, portanto,
não pode escapar ao dever de investigar o fundamento da força das suas convicções; e necessária, porque
aqueles que não são ainda capazes de controlar os seus sentimentos e pensamentos precisam de uma regra
clara para lidar com actos inequívocos.
Mas tendo-a formulado como necessária, torna-se claro que não é suficiente, e que é preciso
complementá-la com o nosso juízo anterior. Pois não é possível separar assim a crença da acção que
aquela sugere, de maneira a condenar uma, mas não a outra. Ninguém que sustente uma crença forte sobre
um dos lados de uma questão, ou mesmo deseje sustentar uma crença sobre um desses lados, pode
investigá-la com a mesma imparcialidade e meticulosidade que teria se realmente duvidasse e fosse
isento; pelo que a existência de uma crença que não é sustentada por uma investigação imparcial torna um
homem inapto para a realização deste dever necessário.
Tão-pouco é uma crença aquilo que não influencia de modo algum as acções de quem o sustenta.
Quem verdadeiramente acredita naquilo que o encoraja a realizar uma acção contemplou já a acção com
um desejo intenso, já a realizou no seu coração. Se uma crença não se realiza imediatamente em acções
inequívocas, é reservada para orientação no futuro. Passa a fazer parte daquele agregado de crenças que
é o elo entre a sensação e a acção em cada momento de todas as nossas vidas, e que está de tal maneira
organizado e compactado que nenhuma parte deste se pode isolar do resto, cada novo acrescento
modificando a estrutura do todo. Nenhuma crença genuína, por mais superficial e fragmentária, é, em
circunstância alguma, realmente insignificante; prepara-nos para receber mais crenças semelhantes,
confirma as crenças semelhantes anteriores, e enfraquece outras; e assim, gradualmente, estabelece um fio
condutor implícito nos nossos pensamentos mais íntimos, que pode um dia manifestar-se em acções
inequívocas e deixar a sua marca no nosso carácter para sempre.
Em circunstância alguma a crença de um homem é um assunto privado, que apenas diga respeito ao
próprio. As nossas vidas guiam-se por essa concepção geral da ordem das coisas que a sociedade criou
para fins sociais. As nossas palavras, as nossas expressões, as nossas formas, processos e modos de
pensamento, são propriedade comum, modificados e aperfeiçoados de época para época; um legado que
cada geração sucessiva herda como um depósito precioso e uma doação sagrada a transmitir à geração
seguinte, não sem modificações, mas alargado e depurado, com algumas marcas distintas do seu engenho
específico. Nisto, para o bem e para o mal, se entretece cada crença de cada homem que partilha a língua
dos seus semelhantes. É um terrível privilégio e uma terrível responsabilidade, ajudarmos a criar o
mundo no qual viverão as gerações do futuro.
Nos dois casos hipotéticos que temos vindo a ponderar, considerou-se incorrecto acreditar com base
em indícios insuficientes, ou acalentar crenças suprimindo as dúvidas e evitando a investigação. A razão
deste juízo não é difícil de ver: é que em ambos os casos a crença sustentada por um homem era de
grande importância para outros homens. Mas na medida em que nenhuma crença sustentada por um
homem, por muito trivial que a crença pareça e por muito obscuro que seja o crente, é na realidade
insignificante ou desprovida de consequências para o destino da humanidade, não temos escolha senão
alargar o nosso juízo a todos e quaisquer casos de crença. A crença, essa faculdade sagrada que
impulsiona as decisões da nossa vontade e une num funcionamento harmonioso todas as energias
compactas do nosso ser, pertence-nos não para nosso usufruto, mas para a humanidade. É correctamente
usada em verdades que foram estabelecidas pela longa experiência e pelo trabalho persistente, que
enfrentaram a luz intensa do questionamento livre e intrépido. Além disso, ajuda a unir os homens, a
fortalecer e orientar a sua acção comum. Profana-se a crença ao concedê-la a afirmações improvadas e
inquestionadas, para consolo e prazer privado do crente; para acrescentar um falso esplendor à estrada
simples e directa da nossa vida e exibir para além dela uma miragem radiosa; ou mesmo para afogar as
angústias comuns da nossa espécie através de um auto-engano que lhes permite não só deprimir-nos como
rebaixar-nos. Quem desejar bem aos seus semelhantes nesta matéria guardará a pureza da sua crença com
o fanatismo próprio de um zelo ciumento, para que a dada altura não recaia sobre um objecto indigno,
ganhando uma mancha que jamais se poderá remover.
Não é só o líder de homens, o estadista, o filósofo, ou o poeta, que tem este dever moral perante a
humanidade. Cada campónio que debita na taberna da aldeia as suas frases lentas e esporádicas pode
ajudar a matar ou a manter vivas as superstições fatais que toldam o seu género. Cada diligente esposa de
artesão pode transmitir aos filhos crenças que manterão a sociedade coesa ou a farão em pedaços.
Nenhuma ingenuidade, nenhuma obscuridade de estatuto, podem escapar ao dever universal de questionar
tudo aquilo em que acreditamos.
É verdadeiro que este dever é difícil e a dúvida que dele nasce é muitas vezes amarga. Deixa-nos
desprotegidos e impotentes quando nos julgávamos seguros e fortes. Saber tudo acerca de qualquer coisa
é saber como lidar com isso em todas as circunstâncias. Sentimo-nos muito mais felizes e seguros quando
julgamos saber exactamente o que fazer, independentemente do que acontece, do que quando nos
perdemos e não sabemos por onde ir. E se pensávamos saber tudo acerca de alguma coisa e nos
julgávamos capazes de agir adequadamente a esse respeito, é natural que não nos agrade descobrir que na
verdade somos ignorantes e impotentes, que temos de voltar mais uma vez ao início e daí partir, tentar
aprender o que a coisa é e como se deve lidar com ela — se é que na verdade podemos conhecer algo
acerca disso. É o sentido do poder ligado a um sentido do conhecimento que deixa os homens desejosos
de acreditar e receosos de duvidar.
Este sentido do poder é o mais elevado e o melhor dos prazeres, quando a crença em que se funda é
verdadeira e foi honestamente alcançada pela investigação. Pois então podemos sentir com justiça que é
propriedade comum e se aplica aos outros bem como a nós mesmos. Então podemos alegrar-nos, não
porque eu tenha aprendido segredos que me dão maior segurança e força, mas porque nós, homens,
ganhámos domínio sobre uma maior porção do mundo; e seremos fortes, não por nós próprios, mas em
nome do Homem e da sua força. Mas se a crença foi aceite com base em indícios insuficientes, é um
prazer roubado. Não só nos engana ao dar-nos um sentido do poder que efectivamente não temos, como é
pecaminoso, porque é roubado em desprezo pelo nosso dever perante a humanidade. Esse dever consiste
em precaver-nos de tais crenças como de uma epidemia, que pode em pouco tempo tomar conta do nosso
próprio corpo e então propagar-se para o resto da cidade. O que se pensaria daquele que, por causa de
um fruto doce, corresse deliberadamente o risco de trazer uma epidemia à sua família e aos seus
vizinhos?
E, como acontece noutros casos, não é apenas o risco o que se tem de considerar; pois uma má acção
é sempre má no momento em que é praticada, independentemente do que aconteça depois. Sempre que
nos permitimos acreditar por razões indignas, enfraquecemos os nossos poderes de autocontrolo, de
dúvida, de avaliação imparcial e honesta dos indícios. Todos sofremos gravemente com a sustentação de
crenças falsas e as acções fatalmente incorrectas a que conduzem, e o mal que decorre de se sustentar tal
crença é grande e vasto. Mas surge um mal maior e mais vasto quando o temperamento crédulo é mantido
e apoiado, quando se acalenta e perpetua o hábito de acreditar por razões indignas. Se roubo dinheiro a
uma pessoa qualquer, talvez não resulte um grande mal da mera transferência de posse; ela pode não
sentir a perda, ou talvez isto a impeça de dar mau uso ao dinheiro. Mas não deixo de fazer este grande
mal à humanidade: o de me tornar desonesto. O que lesa a sociedade não é a perda da propriedade, mas o
de se tornar um covil de ladrões; pois então deixará forçosamente de ser uma sociedade. Por esta razão
não devemos fazer um mal para que dele resulte um bem; pois em todo o caso daí resulta este grande mal:
que fiz um mal e que por isso me tornei malvado. De igual modo, se me permito acreditar seja no que for
com indícios insuficientes, da mera crença pode não resultar grande mal; pode afinal ser verdadeira, ou
posso nunca ter ocasião de a manifestar em acções públicas. Mas não deixo de cometer este grande mal
contra o Homem: o de me tornar crédulo. O perigo para a sociedade não é meramente o de acreditar em
coisas erradas, embora isso seja suficientemente mau; mas o de se tornar crédula e perder o hábito de
testar as coisas e de as investigar; pois então reincidirá forçosamente na selvajaria.
O mal que a credulidade faz num homem não se limita à estimulação de um carácter crédulo nos
outros e à decorrente defesa de crenças falsas. O hábito de ser descuidado com aquilo em que acredito
leva os outros a serem por hábito descuidados com a verdade daquilo que me é dito. Os homens dizem a
verdade uns aos outros quando cada um respeita a verdade na sua própria mente e na mente do outro; mas
como poderá o meu amigo respeitar a verdade na minha mente quando eu próprio sou descuidado com
ela, quando acredito em coisas porque quero acreditar nelas, porque são reconfortantes e agradáveis?
Não aprenderá ele a exclamar «paz», na minha presença, quando não há qualquer paz? Adoptando tal
caminho, envolver-me-ei numa atmosfera carregada de falsidade e fraude e aí tenho de viver. Talvez seja
de pouca importância para mim, no meu castelo nas nuvens, feito de doces ilusões e mentiras queridas;
mas para a humanidade é de enorme importância que eu tenha preparado os meus vizinhos para
enganarem. O homem crédulo é o pai do mentiroso e do batoteiro; vive no seio da sua família, e não é de
admirar que fique igualzinho a eles. Tão intimamente unidos estão os nossos deveres que quem observa a
lei em geral e, no entanto, a transgride num ponto particular, é culpado de tudo.
Resumindo: é sempre incorrecto, em todo o lado, para qualquer pessoa, acreditar seja no que for com
base em indícios insuficientes.
Se um homem, ao manter uma crença que lhe foi ensinada em criança ou da qual o persuadiram mais
tarde, reprime e afasta quaisquer dúvidas que lhe surgem na mente a esse respeito, evita intencionalmente
a leitura de livros e a companhia de homens que questionam ou discutem essa crença, e considera ímpias
as perguntas que não se pode colocar facilmente sem a perturbar — a vida desse homem é um enorme
pecado contra a humanidade.
Se este juízo parece severo quando aplicado àquelas almas simples que nunca conheceram outra
coisa, que desde o berço foram educadas no horror à dúvida, a quem ensinaram que o seu bem-estar
eterno depende daquilo em que acreditam, então leva-nos à questão muito grave: Quem fez Israel pecar?
Talvez se me permita reforçar este juízo com o veredicto de Milton:2

«Um homem pode ser um herético na verdade; e se acredita nas coisas apenas porque o seu pastor o
afirma, ou a assembleia assim o determina, sem conhecer outra razão, embora a sua crença seja
verdadeira, a própria verdade que sustenta torna-se a sua heresia.»

E com este famoso aforismo de Coleridge:3

«Quem começa por amar mais o cristianismo do que a verdade, começará a amar mais a sua própria
seita ou igreja do que o cristianismo, e acabará por se amar a si próprio mais do que a tudo.»

A investigação dos indícios respeitantes a uma doutrina não se faz de uma vez por todas para então se
assumir como definitivamente resolvida. Nunca é legítimo silenciar uma dúvida; pois que ou se lhe pode
responder honestamente através da investigação já feita, ou então a dúvida é a prova de que a
investigação não está completa.
«Mas», dir-se-á, «sou um homem ocupado; não tenho tempo para os demorados estudos que seriam
necessários para me dar alguma competência para avaliar certas questões, ou mesmo para me tornar
capaz de compreender a natureza dos argumentos.» Nesse caso, não deveria ter tempo para acreditar.
II. O peso da autoridade
Teremos então de nos tornar cépticos universais, duvidando de tudo, sempre receosos de pôr um pé à
frente do outro antes de termos testado pessoalmente a solidez do pavimento? Teremos de nos privar da
ajuda e orientação daquele vasto corpo de conhecimento que cresce diariamente em todo o mundo,
porque nem nós nem qualquer outra pessoa pode em circunstância alguma testar a centésima parte desse
conhecimento por experiência imediata ou por observação, e porque não estaria completamente provado
se o fizéssemos? Roubaremos e pregaremos mentiras por não termos tido uma experiência pessoal
suficientemente vasta para justificar a crença de que é incorrecto fazê-lo?
Não há qualquer perigo prático de que tais consequências alguma vez decorram do cuidado
escrupuloso e do autocontrolo em matéria de crença. Aqueles homens que mais se aproximaram de
cumprir o seu dever a este respeito consideraram que certos princípios muito importantes, sendo estes os
mais apropriados para a orientação da vida, se destacaram cada vez mais nitidamente em proporção ao
cuidado e honestidade com que foram testados, e adquiriram assim uma certeza prática. As crenças
acerca do que é correcto ou incorrecto, que orientam as nossas acções ao lidar com os homens em
sociedade, e as crenças acerca da natureza física que orientam as nossas acções ao lidar com corpos
animados e inanimados, nunca são prejudicadas pela investigação; estas sabem tomar conta de si
próprias, sem serem sustentadas com «actos de fé», com o alarido de apologistas remunerados ou com a
supressão de indícios contrários. Além disso, há muitos casos em que temos o dever de agir com base em
probabilidades, embora os indícios não sejam tais que justifiquem a crença em causa; porque é
precisamente por tal acção e pela observação dos seus resultados que se obtém indícios que podem
justificar a crença futura. Pelo que não temos qualquer razão para temer que um hábito de investigação
escrupulosa paralise as acções da nossa vida quotidiana.
Mas porque não basta afirmar «É incorrecto acreditar com base em indícios indignos» sem explicar
também que indícios são dignos, passamos agora a investigar as circunstâncias em que é legítimo
acreditar com base no testemunho de outros; e depois, além disso, investigaremos mais em geral quando e
por que razão podemos acreditar naquilo que ultrapassa a nossa experiência, ou mesmo a experiência da
humanidade.
Assim, perguntemos, antes de mais, em que casos o testemunho de um homem não é digno de crédito.
Este pode afirmar o que é contrário à verdade, sabendo-o ou não. No primeiro caso, mente, e o seu
carácter moral é culpável; no segundo, é ignorante ou está equivocado, e apenas o seu conhecimento ou
discernimento estão em falta. De maneira a podermos ter o direito de aceitar o seu testemunho como base
para acreditar no que afirma, precisamos de uma justificação razoável para confiar na sua veracidade:
que ele procura realmente dizer a verdade na medida em que a conhece; no seu conhecimento: que teve
oportunidade de conhecer a verdade acerca deste assunto; e no seu discernimento: que fez um uso
apropriado dessas oportunidades ao chegar à conclusão que anuncia.
Por muito simples e óbvias que sejam estas razões, de modo que nenhum homem de inteligência
mediana, ao reflectir no assunto, pode deixar de alcançá-las, é ainda assim verdadeiro que um grande
número de pessoas tem por hábito desconsiderá-las ao avaliar um testemunho. Das duas questões,
igualmente importantes para a credibilidade da testemunha, «É desonesto?» e «Pode estar enganada?», os
membros da humanidade, na sua maioria, ficam perfeitamente satisfeitos se a uma delas se pode, com
alguma probabilidade, responder pela negativa. O excelente carácter moral de um homem é apresentado
como justificação para aceitar as suas declarações acerca de coisas que não pode de maneira alguma
conhecer. Um maometano, por exemplo, dir-nos-á que o carácter do seu Profeta era tão nobre e majestoso
que impõe reverência mesmo àqueles que não acreditam na sua missão. Tão admirável foi o seu
ensinamento moral, tão sabiamente edificada a máquina social que criou, que não só uma grande parcela
da humanidade aceitou os seus preceitos, como lhes tem efectivamente obedecido. As suas instituições,
por outro lado, fizeram o negro sair da selvajaria e por outro lado ensinaram a civilização ao Ocidente
em desenvolvimento; e embora os povos que detinham as formas mais elevadas da sua fé, e que mais
plenamente davam corpo aos seus ideais e pensamento, tenham todos sido conquistados e dizimados por
tribos bárbaras, a história dos seus feitos maravilhosos permanece uma glória imperecível para o Islão.
Poderemos duvidar da palavra de um homem tão grandioso e tão bom? Poderemos supor que este
magnífico génio, este esplêndido herói moral, nos mentiu acerca das matérias mais solenes e sagradas? O
testemunho de Maomé é claro: que não há senão um Deus, e que ele, Maomé, é o seu Profeta; que se
acreditarmos nele, gozaremos da felicidade perpétua, mas que se não acreditarmos, seremos condenados.
Este testemunho assenta no mais terrível dos alicerces, a revelação dos próprios céus; pois não foi ele
visitado pelo anjo Gabriel, enquanto jejuava e rezava na sua gruta no deserto, tendo-lhe sido permitida a
entrada nos campos abençoados do Paraíso? Seguramente que Deus é Deus e Maomé é o Profeta de
Deus.
O que deveríamos responder a este muçulmano? Em primeiro lugar, sem dúvida, talvez nos sintamos
tentados a protestar contra a sua perspectiva do carácter do Profeta e da influência uniformemente
benigna do Islão: antes de o acompanharmos completamente nestes assuntos, parece que talvez
tivéssemos de esquecer muitas coisas terríveis de que ouvimos falar ou que lemos. Mas se decidimos
conceder-lhe estes pressupostos, para fins de argumentação, e porque é difícil tanto para o fiel como para
os infiéis discuti-los imparcial e desapaixonadamente, ainda assim teríamos algo a dizer que lhe retira a
base da sua crença, mostrando, portanto, que é incorrecto sustentá-la. Nomeadamente, o seguinte: o
carácter de Maomé é um excelente indício de que era honesto e dizia a verdade tanto quanto a sabia; mas
não é indício, de todo em todo, de que soubesse o que era a verdade. Que meios teria de saber que a
forma que lhe pareceu o anjo Gabriel não era uma alucinação e que a sua aparente visita ao Paraíso não
foi um sonho? Conceda-se que ele próprio estava plenamente persuadido e acreditava honestamente que
tinha a orientação dos céus e era o veículo de uma revelação sobrenatural, como podia saber que esta
forte convicção não era um equívoco? Coloquemo-nos no seu lugar; veremos que quanto mais nos
esforçarmos por compreender plenamente o que lhe passava pela mente, mais claramente veremos que o
Profeta não podia ter qualquer sustentação adequada para a crença na sua própria inspiração. É
muitíssimo provável que ele próprio nunca tenha duvidado do assunto, ou sequer pensasse em colocar a
questão; mas nós falamos do ponto de vista daqueles a quem foi colocada a pergunta e que têm de lhe dar
uma resposta. É do conhecimento dos observadores médicos que a solidão e a carência alimentar são
meios poderosos de produzir a delusão e de fomentar uma tendência para a doença mental.4 Suponhamos
então que, como Maomé, vou para lugares desertos jejuar e rezar; que coisas me podem acontecer que me
darão o direito de acreditar que recebi a inspiração divina? Suponhamos que recebo informação,
aparentemente de um visitante celestial, que, ao ser testada, se considera correcta. Não posso ter a
certeza, em primeiro lugar, de que o visitante celestial não é um produto da minha própria imaginação e
que a informação não me chegou, sem que na altura tivesse consciência disso, através de um qualquer
meio sensorial subtil. Mas se o meu visitante era um visitante real e durante muito tempo me deu
informação que se concluiu ser fidedigna, isto constituiria de facto uma justificação para confiar nele
futuramente, no que diz respeito a assuntos que entram no âmbito da capacidade humana de verificação;
mas não seria justificação para confiar no seu testemunho em quaisquer outros assuntos. Pois embora o
seu carácter comprovado me desse justificação para acreditar que dizia a verdade tanto quanto a sabia,
colocar-se-ia a mesma questão: que justificação há para supor que ele sabe?
Mesmo que o meu hipotético visitante me tivesse dado tal informação, subsequentemente verificada
por mim, probatória de que dispunha de meios de conhecimento, acerca de assuntos verificáveis,
muitíssimo superiores aos meus, isto não me daria justificação para acreditar no que ele afirmava acerca
de assuntos que de momento não são susceptíveis de verificação pelo homem. Daria suporte a uma
conjectura interessante e à esperança de que, em resultado da nossa investigação paciente, pudéssemos
eventualmente conseguir tais meios de verificação, que justificadamente transformariam a conjectura em
crença. Pois a crença pertence ao homem e à orientação dos assuntos humanos: nenhuma crença é real a
menos que oriente as nossas acções, e essas mesmas acções fornecem um teste da sua verdade.
Mas, replicar-se-á, a aceitação do Islão como um sistema é precisamente a acção que é encorajada
pela crença na missão do Profeta, e que servirá para um teste da sua verdade. Será possível acreditar que
um sistema que prosperou tanto está realmente fundado numa delusão? Não só os santos individuais
encontraram alegria e paz na crença, e verificaram essas experiências espirituais que são prometidas aos
fiéis, como também se ergueu nações da selvajaria e do barbarismo até um estado social mais elevado.
Seguramente podemos afirmar que se agiu com base na crença e que foi verificada.
Não se exige, todavia, senão alguma ponderação para mostrar que aquilo que realmente se verificou
não é de todo em todo o carácter celestial da missão do Profeta, ou a fidedignidade da sua autoridade em
assuntos que nós próprios não temos como testar, mas apenas a sua sabedoria prática em certas coisas
bastante mundanas. O facto de que os crentes encontraram alegria e paz na crença dá-nos o direito de
afirmar que a doutrina é confortável, agradável à alma; mas não nos dá o direito de afirmar que é
verdadeira. E a questão que a nossa consciência levanta sempre acerca daquilo em que nos sentimos
tentados a acreditar não é «Será confortável e agradável?», mas «Será verdadeira?». Que o Profeta
pregou determinadas doutrinas e previu que nelas se encontraria o conforto espiritual, prova apenas a sua
compaixão pela natureza humana e o seu conhecimento da mesma; mas não prova o seu conhecimento
sobre-humano da teologia.
E se admitimos para fins de argumentação (pois parece que mais não podemos fazer) que o progresso
feito pelas nações muçulmanas em certos casos se deve realmente ao sistema formado e lançado no
mundo por Maomé, não nos é permitido concluir a partir daqui que ele foi inspirado a declarar a verdade
acerca de coisas que não podemos verificar. Só nos é permitido inferir a excelência dos seus preceitos
morais, ou dos meios que concebeu para levar os homens a obedecer-lhes, ou da maquinaria social e
política que estabeleceu. E seria preciso examinar muito cuidadosamente a história destas nações para
determinar quais destas coisas influenciaram mais o resultado. Pelo que, mais uma vez, é o conhecimento
do Profeta acerca da natureza humana e a sua compaixão pela mesma que se verificam; e não a sua
inspiração divina ou o seu conhecimento da teologia.
Se houvesse apenas um Profeta, com efeito, podia muito bem parecer uma tarefa difícil e mesmo
desagradável decidir os aspectos com base nos quais confiaríamos nele e os aspectos com base nos quais
duvidaríamos da sua autoridade, vendo a ajuda e o progresso que todos os homens ganharam em todas as
épocas com os que viam mais claramente, sentiam mais fortemente e procuravam a verdade com maior
dedicação do que os seus irmãos mais fracos. Mas não há só um Profeta; e ao passo que o consentimento
de muitos naquilo que, como homens, tinham meios genuínos de conhecer e conheciam, persistiu até ao
fim e foi honrosamente integrado na grande estrutura do conhecimento humano, o testemunho divergente
de alguns acerca daquilo que não conheciam nem podiam conhecer é um aviso permanente de que
exagerar a autoridade profética é usá-la indevidamente e desonrar aqueles que apenas nos procuraram
ajudar e fazer avançar com o seu poder. Dificilmente faz parte da natureza humana que um homem avalie
com bastante precisão os limites da sua própria sagacidade; mas é o dever daqueles que beneficiam com
o seu trabalho considerar cuidadosamente onde poderá ele ter sido levado a ultrapassar esses limites. Se
temos de preservar os seus possíveis erros juntamente com as suas sólidas realizações e usar a sua
autoridade como uma desculpa para acreditar naquilo que não pode ter sabido, fazemos da sua bondade
uma ocasião para pecar.
Considerando apenas um de tais testemunhos: os seguidores do Buda têm pelo menos o mesmo direito
de apelar à experiência individual e social em defesa da autoridade do salvador do Oriente. Consta que a
marca distintiva da sua religião, na qual nunca foi ultrapassada, é o conforto e consolo que dá aos
doentes e infelizes, a compaixão afectuosa com que suaviza e alivia todas as dores naturais dos homens.
Seguramente que nenhum triunfo de moralidade social pode ser maior ou mais nobre do que aquele que
tem evitado que quase metade do género humano se dedique a perseguições em nome da religião. A
confiarmos nos relatos dos seus primeiros seguidores, Buda acreditava que viera à Terra com a missão
divina e cósmica de pôr em movimento a roda da lei. Sendo príncipe, despojou-se do seu reino e, de
livre vontade, conheceu a miséria, para aprender a lidar com ela e a subjugá-la. Poderia tal homem falar
falsamente acerca de coisas solenes? E no que diz respeito ao seu conhecimento, não era ele um homem
milagroso com poderes sobre-humanos? Nasceu de uma mulher sem a ajuda de um homem; levitou e
transfigurou-se à frente dos seus familiares; por fim ascendeu em forma corpórea aos céus a partir do
topo do Pico de Adão.5 Não haverá que acreditar na sua palavra quando testemunha acerca de coisas
celestiais?
Se apenas ele, e nenhum outro, fizesse tais afirmações! Mas há Maomé com o seu testemunho; não
temos escolha senão escutar ambos. O Profeta diz-nos que há um Deus e que viveremos na alegria ou na
infelicidade eternas, consoante acreditamos ou não no Profeta. O Buda afirma que não há qualquer Deus e
que seremos completamente aniquilados se formos suficientemente bons. Não podem ambos ser objecto
de uma inspiração infalível; um ou outro teve de ter sido vítima de uma delusão, pensando saber o que na
realidade não sabia. Quem se atreverá a afirmar qual dos dois? E como poderemos ter justificação para
acreditar que o outro não estava também deludido?
Chegamos assim aos juízos que se seguem. A bondade e a grandeza de um homem não nos dão
justificação para aceitar uma crença com base na sua autoridade, a menos que haja uma base razoável
para supor que conhece a verdade daquilo que afirma. E não pode haver bases para supor que um homem
sabe aquilo que não se pode supor que nós, sem deixarmos de ser homens, podemos verificar.
Se a mim, que não sou químico, um químico afirmar que se pode obter uma determinada substância
combinando outras substâncias em certas proporções e sujeitando-as a um processo conhecido, tenho
toda a justificação para acreditar nisto com base na sua autoridade, a menos que tenha conhecimento de
algo desfavorável a respeito do seu carácter ou discernimento. Pois o seu treino profissional é tal que
tende a encorajar a veracidade e a procura honesta da verdade, e a produzir um desprezo por conclusões
precipitadas e pelo desleixo investigativo. Tenho uma base razoável para supor que ele conhece a
verdade daquilo que afirma, pois embora eu não seja um químico, podem-me fazer compreender o
suficiente acerca dos métodos e processos da ciência de maneira a que me seja possível, sem deixar de
ser um homem, verificar a afirmação. Posso nunca a verificar efectivamente, ou mesmo ver qualquer
experiência tendente a verificá-la; mas ainda assim tenho razão suficiente para justificar a minha crença
de que a verificação está ao alcance dos instrumentos e capacidades humanas, e em particular que foi
efectivamente realizada pelo meu informante. O resultado, a crença a que foi conduzido pelas suas
investigações, é válida não só para ele, mas também para os outros; é observada e testada pelos que
trabalham no mesmo campo, e estes sabem que não se pode prestar maior serviço à ciência do que
depurar os resultados aceites dos erros que neles se podem ter introduzido. É desta maneira que o
resultado se torna património comum, um objecto apropriado de crença, a qual é uma preocupação social
e um assunto de interesse público. Assim, há que observar que a autoridade do químico é válida porque
há quem a questione e verifique; é precisamente este processo de exame e depuração que mantém vivo
entre os investigadores o amor àquilo que suportará todos os testes possíveis, o sentido de
responsabilidade pública por parte daqueles cujo trabalho, se for bem feito, persistirá como a herança
duradoura da humanidade.
Mas se o meu químico me diz que um átomo de oxigénio existiu desde sempre, inalterado em peso e
taxa de vibração, não tenho o direito de acreditar nisto com base na sua autoridade, pois se trata de algo
que ele não pode conhecer sem deixar de ser um homem. Pode muito honestamente acreditar que esta
afirmação é uma inferência legítima a partir das suas experiências, mas nesse caso o seu juízo está em
falta. Uma reflexão muito simples acerca do carácter das experiências mostrar-lhe-ia que estas nunca
podem conduzir a resultados desse tipo; que, sendo elas mesmas meramente aproximadas e limitadas, não
nos podem dar conhecimento exacto e universal. Nenhuma eminência de carácter e génio pode dar a um
homem a autoridade suficiente para justificar que acreditemos nele quando faz afirmações que implicam
conhecimento exacto ou universal.
Uma vez mais, um explorador do árctico pode relatar-nos que, numa dada latitude e longitude, teve
experiência de um certo grau de frio, que o mar tinha uma certa profundidade e que o gelo tinha um certo
carácter. Teríamos toda a razão em acreditar nele, na ausência de algo que comprometa a sua veracidade.
É concebível podermos, sem deixarmos de ser homens, ir ao local e verificar a sua afirmação; pode ser
testada pelo testemunho dos seus companheiros e há uma base adequada para supor que conhece a
verdade daquilo que afirma. Mas se um velho baleeiro nos diz que o gelo tem 90 metros de espessura até
ao pólo, não teremos justificação para acreditar nele. Pois embora a afirmação seja susceptível de ser
verificada pelo homem, seguramente que não é susceptível de ser verificada por ele, com quaisquer
meios e instrumentos de que dispusesse; e deve ter-se persuadido da verdade daquilo que afirma por
meios que não dão crédito algum ao seu testemunho. Ainda que, portanto, o conteúdo do que se afirma
esteja ao alcance do conhecimento humano, não temos o direito de aceitá-lo com base na autoridade a
menos que esteja ao alcance do conhecimento do nosso informante.
O que diremos daquela que é a autoridade mais venerável e augusta do que qualquer testemunho
individual, a tradição, consagrada pelo tempo, do género humano? Uma atmosfera de crença e
concepções que se formou pelos esforços e lutas dos nossos antepassados, que nos permite respirar por
entre as diversas e complexas circunstâncias da nossa vida. Está à nossa volta, perto de nós, e dentro de
nós; não podemos pensar senão nas formas e processos de pensamento que nos proporciona. Será
possível duvidar dela e testá-la? E se for, será correcto fazê-lo?
Veremos razões para responder que não só é possível e correcto, como também é o nosso dever
incontornável; que o principal objectivo da própria tradição é dar-nos os meios de colocar questões, de
testar e investigar as coisas; que se lhe damos mau uso e a vemos como uma colecção de frases feitas a
ser aceites sem investigação complementar, não só nos prejudicamos a nós próprios, como, ao recusar
contribuir com a nossa parte para aumentar a estrutura que será herdada pelos nossos filhos, contribuímos
para nos apartarmos a nós e ao nosso género da linhagem humana.
Tomemos em primeiro lugar o cuidado de distinguir um tipo de tradição que urge examinar e pôr em
causa, por ser particularmente esquiva à investigação. Suponhamos que um curandeiro na África Central
declara à sua tribo que na sua tenda se propiciará uma certa poção poderosa se matarem o gado da tribo,
e que esta acredita nele. Não há maneira de verificar se a poção se propiciou ou não, mas o gado foi-se.
Ainda assim, pode-se manter na tribo a crença de que a propiciação se realizou desta maneira; e numa
geração posterior será tanto mais fácil a outro curandeiro persuadi-los de um acto semelhante. Aqui a
única razão para acreditar é que toda a gente acreditou durante tanto tempo na mesma coisa que deve ser
verdadeiro. E, no entanto, a crença foi fundada numa fraude e propagada pela credulidade. Sem dúvida
que agirá correctamente e será amigo dos homens aquele que a questionar e vir que não há indícios a seu
favor, que ajudar os seus vizinhos a ver como ele, e até, se for preciso, que entrar na tenda sagrada e
destruir a poção.
A regra que nos devia orientar em tais casos é bastante simples e óbvia: que o testemunho conjunto
dos nossos vizinhos está sujeito às mesmas condições que o testemunho de qualquer um deles em
separado. Nomeadamente, não temos o direito de acreditar que algo é verdadeiro porque toda a gente diz
que é, a menos que haja boas razões para acreditar que pelo menos uma dessas pessoas tem os meios de
conhecer a verdade, e que fala a verdade tanto quanto a conhece. Por muitas nações e gerações de
homens que se traga ao banco das testemunhas, não podem testemunhar coisa alguma de que não tenham
conhecimento. Todo aquele que tenha aceitado a afirmação de outrem, sem ele próprio a verificar, está
excluído do tribunal; a sua palavra não vale, em rigor, coisa alguma. E quando finalmente regressamos à
verdadeira origem da afirmação, temos de tirar duas questões do caminho, a respeito da primeira pessoa
que fez a afirmação: estaria ela enganada ao pensar que sabia algo acerca deste assunto, ou estaria a
mentir?
Esta última questão é infelizmente muitíssimo actual e prática, mesmo para nós, nesta época e neste
país. Não é preciso ir a La Salette, ou à África Central, ou a Lourdes, para ter exemplos de superstição
imoral e degradante. É muito bem possível que uma criança cresça em Londres rodeada de uma atmosfera
de crenças unicamente apropriadas a selvagens, que nos nossos dias se fundaram na fraude e propagaram
pela credulidade.
Pondo então de lado as tradições que passam sucessivamente de geração para geração sem serem
testadas, consideremos aquilo que é verdadeiramente construído a partir da experiência comum da
humanidade. Esta grandiosa estrutura serve-nos para orientar os nossos pensamentos e, por meio deles,
as nossas acções, tanto no mundo moral como no material. No mundo moral, por exemplo, dá-nos as
concepções da rectidão em geral, da justiça, da verdade, da beneficência, e coisas semelhantes. Estas
apresentam-se como concepções, e não como afirmações ou proposições; respondem a certos instintos
definidos que seguramente se encontram em nós, seja por que meio lá foram parar. Que é correcto ser
beneficente é objecto da experiência pessoal imediata; pois quando um homem se recolhe ao seu íntimo e
aí encontra algo mais vasto e mais duradouro do que a sua personalidade solitária, algo que afirma
«Quero agir rectamente», bem como «Quero fazer bem ao homem», pode verificar por observação
directa que um instinto se funda no outro e concorda inteiramente com ele. E o seu dever é verificar esta
afirmação e outras semelhantes.
A tradição afirma também, num local e época específicos, que determinadas acções são justas, ou
verdadeiras, ou beneficentes. Para todas essas regras se precisa de uma investigação complementar, pois
são por vezes estabelecidas por uma autoridade que não o sentido moral fundado na experiência. Até
recentemente, a tradição moral do nosso próprio país — e na verdade de toda a Europa — ensinava que
era beneficente dar indiscriminadamente dinheiro aos pedintes. Mas o questionamento desta regra, e a
investigação da mesma, levaram os homens a ver que a verdadeira beneficência é aquela que ajuda um
homem a fazer o trabalho para o qual é mais apto e não aquilo que o mantém na inactividade e a encoraja;
e que descurar esta distinção no presente equivale a preparar a indigência e a miséria no futuro. Por este
exame e discussão não só a prática se depurou e tornou mais beneficente, como a própria concepção de
beneficência se tornou mais lata e mais sábia. Agora a grande herança social consiste em duas partes; o
instinto de beneficência, que, quando predomina, leva certa faceta da nossa natureza a desejar fazer bem
aos homens; e a concepção intelectual da beneficência, que podemos comparar com qualquer conduta que
se apresente e perguntar: «Será isto beneficente ou não?». Ao colocar tais perguntas e responder-lhes
continuamente, a concepção cresce em fôlego e clareza e o instinto reforça-se e purifica-se. Parece,
portanto, que a grande utilidade da concepção, a parte intelectual da herança, é permitir-nos fazer
perguntas; através dessas perguntas, cresce e mantém-se recta; e se não a usamos para este fim perdê-la-
emos completamente e ficaremos com um mero código prescritivo a que já não se pode chamar, de todo
em todo, «moralidade».
Tais considerações aplicam-se de uma maneira ainda mais clara e óbvia, se tal é possível, à reserva
de crenças e concepções que os nossos pais acumularam para nós a respeito do mundo material. Estamos
prontos a rir do hábito do australiano que continua a amarrar o machado ao cabo, embora o serralheiro de
Birmingham lhe tenha feito propositadamente um buraco para aí inserir o cabo. Os do seu povo amarram
assim os machados há gerações: quem é ele para se opor à sua sabedoria? Desceu tanto que não consegue
fazer aquilo que alguns deles tiveram de fazer no passado distante — pôr em causa um uso estabelecido e
inventar ou aprender algo melhor. No entanto, aqui, no amanhecer do conhecimento, onde a ciência e a
arte são uma só, encontramos apenas a mesma regra simples que se aplica às mais elevadas e às mais
profundas ramificações daquela Árvore cósmica; aos seus mais imponentes ramos floridos bem como às
mais profundas das suas raízes escondidas; a regra, nomeadamente, de que quem faz um uso apropriado
daquilo que foi acumulado e que nos foi transmitido é quem age da mesma maneira que os criadores
agiram, quando o acumularam; os que o usam para fazer mais perguntas, para examinar, para investigar;
que procuram com honestidade e seriedade descobrir qual a maneira correcta de ver as coisas e de lidar
com elas.
Uma pergunta apropriadamente colocada é já metade da resposta, afirmou Jacobi; podemos
acrescentar que o método de a solucionar é a outra metade da resposta, e que o resultado efectivo para
nada conta ao lado destas duas. Tomemos como exemplo o telégrafo, onde a teoria e a prática, ambas
desenvolvidas discretamente ao longo dos anos, se unem para servir vantajosamente o homem. Ohm
descobriu que a intensidade de uma corrente eléctrica é directamente proporcional à potência da bateria
que a produz, e inversamente proporcional à extensão do fio condutor que tem de percorrer. A isto se
chama «lei de Ohm»; mas o resultado, encarado como uma afirmação na qual acreditar, não é a parte
valiosa do mesmo. A primeira metade é a pergunta «Que relação se verifica entre estas quantidades?»
Assim formulada, a pergunta envolve já a concepção de intensidade da corrente e da potência da bateria,
como quantidades a medir e comparar; sugere claramente que são estas as coisas com que se tem de lidar
no estudo das correntes eléctricas. A segunda metade é o método de investigação: como medir estas
quantidades, de que instrumentos se precisa para a experiência e como devem ser usados? Não se pede
ao estudante, que começa a sua aprendizagem na electricidade, que acredite na lei de Ohm; fazem-no
compreender a pergunta, colocam-no diante dos instrumentos e ensinam-no a verificá-la. Aprende a fazer
coisas, e não a pensar que sabe coisas; a usar os instrumentos e a fazer perguntas, e não a aceitar uma
afirmação tradicional. A pergunta que para ser apropriadamente colocada exigiu um génio é respondida
por um principiante. Se a lei de Ohm subitamente se perdesse e fosse esquecida por todos os homens,
mas preservando-se a pergunta e o método de solução, o resultado podia ser redescoberto numa hora.
Mas o resultado por si só, se conhecido por um povo que não pudesse compreender o valor da questão ou
os meios de a resolver, seria como um relógio nas mãos de um selvagem que não lhe soubesse dar corda
ou um navio a vapor manobrado por maquinistas espanhóis.
A respeito, portanto, da sagrada tradição da humanidade, aprendemos que não consiste em
proposições ou afirmações que se tem de aceitar e nas quais se tem de acreditar com base na autoridade
da tradição, mas em perguntas apropriadamente colocadas, em noções que nos permitem levantar
perguntas complementares, e em métodos de lhes responder. O valor de todas estas coisas depende de
serem testadas quotidianamente. O próprio carácter sagrado do precioso depósito impõe-nos o dever e a
responsabilidade de o testar, de o depurar e alargar até ao máximo das nossas capacidades. Aquele que
se serve dos resultados desta tradição para silenciar as próprias dúvidas, ou para impedir a investigação
por parte dos outros, é culpado de um sacrilégio que os séculos jamais apagarão. Quando os trabalhos e
as investigações de homens honestos e corajosos tiverem elevado a estrutura da verdade conhecida a uma
glória que nós nesta geração nem podemos esperar nem imaginar, naquele templo puro e sagrado não terá
ele parte nem quinhão, mas o seu nome e as suas obras serão lançados nas trevas do esquecimento para
sempre.
III. Os limites da inferência
A questão dos casos em que podemos acreditar naquilo que ultrapassa a nossa experiência é muito ampla
e delicada, abarcando toda a extensão do método científico, e exigindo um aumento considerável da sua
aplicação antes de lhe podermos dar alguma resposta que seja mais ou menos completa. Mas pode-se
aqui aflorar e formular brevemente uma regra de extrema simplicidade e enorme importância prática, que
se situa no limiar deste tema.
Um pouco de reflexão mostrar-nos-á que todas as crenças, até as mais simples e mais fundamentais,
ultrapassam a nossa experiência quando são encaradas como guias para as nossas acções. Uma criança
que se queimou teme o fogo, porque acredita que o fogo a queimará hoje tal como ontem; mas esta crença
vai além da experiência e pressupõe que o desconhecido fogo de hoje é como o fogo de ontem. Mesmo a
crença de que a criança se queimou ontem vai além da experiência presente, que contém apenas a
memória de uma queimadura, e não a própria queimadura; pressupõe, portanto, que esta memória é
fidedigna, embora saibamos que uma memória pode amiúde estar incorrecta. Mas se há que a usar como
guia para a acção, como uma pista daquilo que será o futuro, tem de pressupor algo acerca desse futuro,
nomeadamente, que será consistente com a suposição de que a queimadura realmente ocorreu ontem; o
que é ir além da experiência. Mesmo o fundamental «Eu sou», de que não se pode duvidar, não é um guia
para a acção até se tornar «Eu serei», que vai além da experiência. A questão não é, portanto, «Podemos
acreditar no que ultrapassa a experiência?» pois isto está envolvido na própria natureza da crença; mas
«Até que ponto e de que maneira podemos alargar a nossa experiência ao formar as nossas crenças?»
E o exemplo que considerámos — uma criança que se queimou teme o fogo — sugere uma resposta
extremamente simples e universal. Podemos ir além da experiência pressupondo que aquilo que não
sabemos é como aquilo que sabemos; ou, por outras palavras, podemos alargar a nossa experiência
pressupondo a uniformidade da natureza. O que esta uniformidade é exactamente, como adquirimos maior
conhecimento dela de geração para geração, são questões que de momento deixamos de lado,
contentando-nos em examinar dois exemplos que poderão servir para tornar mais clara a natureza da
regra.
A partir de certas observações feitas ao espectroscópio, inferimos a existência de hidrogénio no Sol.
Olhando para o espectroscópio quando o Sol incide na sua abertura, vemos determinadas linhas
luminosas: e experiências realizadas com corpos na Terra ensinaram-nos que quando se vê estas linhas
luminosas a fonte delas é o hidrogénio. Pressupomos, portanto, que as linhas luminosas desconhecidas no
Sol são como as linhas luminosas conhecidas do laboratório, e que o hidrogénio no Sol se comporta
como o hidrogénio se comportaria na Terra em circunstâncias idênticas.
Mas não estamos a confiar demasiado no nosso espectroscópio? Seguramente que tendo-o
considerado fidedigno para substâncias terrestres, onde as suas asserções podem ser verificadas pelo
homem, temos justificação para aceitar o seu testemunho noutros casos semelhantes; mas não quando nos
dá informação acerca de coisas que estão no Sol, onde o seu testemunho não pode ser directamente
verificado pelo homem, certo?
Queremos sem dúvida saber um pouco mais antes de se poder justificar esta inferência; e felizmente
sabemo-lo. O espectroscópio testemunha exactamente a mesma coisa nos dois casos; nomeadamente, que
através dele passam vibrações de luz de dada proporção. A sua construção é tal que se estivesse errado
acerca disto num caso, estaria errado no outro. Quando começamos a examinar o assunto, descobrimos
que pressupomos realmente que a matéria do Sol é como a matéria da Terra, composta por dado número
de substâncias distintas; e que cada uma destas, quando muito quente, tem uma taxa de vibração distinta,
pela qual se pode reconhecer e isolar do resto. Mas este é o tipo de pressuposto que temos justificação
para usar quando alargamos a nossa experiência. É um pressuposto de uniformidade na natureza, e só se
pode verificar por comparação com muitos pressupostos semelhantes que temos de fazer noutros casos
semelhantes.
Mas será verdadeira a crença na existência de hidrogénio no Sol? Poderá ajudar na orientação
correcta da acção humana?
Certamente que não, se as bases para a aceitar forem indignas e desprovidas de qualquer
compreensão do processo pelo qual se obtém essa crença. Mas quando se compreende este processo
como a base para a crença, torna-se uma questão bastante séria e prática. Pois se não há hidrogénio no
Sol, o espectroscópio — o que é o mesmo que dizer, a medida das taxas de vibração — terá de ser um
guia inexacto no reconhecimento de substâncias diferentes; e consequentemente não se deveria usá-lo na
análise química — nos ensaios químicos, por exemplo — para maior economia de tempo, dificuldades e
dinheiro. Ao passo que a aceitação do método espectroscópico como fidedigno não só nos enriqueceu
com novos metais, o que é óptimo, mas também com novos processos de investigação, o que é ainda
melhor.
Para outro exemplo, consideremos o modo como inferimos a verdade de um acontecimento histórico
— por exemplo, o cerco de Siracusa durante a guerra do Peloponeso. A nossa experiência é existirem
manuscritos dos quais se afirma serem os manuscritos da história de Tucídides e que se referem a si
próprios desse modo; que noutros manuscritos, atribuídos a historiadores subsequentes, se afirma que
viveu durante o período em que se deu a guerra; e que livros que supostamente datam do renascer do
saber nos dizem como estes manuscritos foram preservados e onde foram adquiridos. Depreendemos
também que em geral os homens não forjam livros e histórias sem um motivo especial; pressupomos que
neste aspecto os homens do passado eram como os homens do presente; e observamos que neste caso não
se apresentava qualquer motivo especial. Isto é, alargamos a nossa experiência no pressuposto de uma
uniformidade nos caracteres do homem. Porque o nosso conhecimento desta uniformidade é muitíssimo
menos completo e exacto do que o nosso conhecimento daquilo que se verifica na física, as inferências
do tipo histórico são mais instáveis e menos exactas do que as inferências em muitas outras ciências.
Mas se há alguma razão especial para suspeitar do carácter das pessoas que escreveram ou
transmitiram certos livros, o caso muda de figura. Se um grupo de documentos apresenta indícios internos
de terem sido produzidos entre pessoas que forjavam livros em nome de outras, e que, ao descrever os
acontecimentos, suprimiam as coisas que não lhes convinham, enquanto engrandeciam o que lhes
convinha; que não só cometeram estes crimes, como se regozijaram neles como provas de humildade e de
zelo; temos então de afirmar que não se pode basear em tais documentos qualquer inferência histórica
genuína, mas apenas conjecturas insatisfatórias.
Podemos, então, alargar a nossa experiência no pressuposto de uma uniformidade na natureza;
podemos preencher a nossa imagem daquilo que é e daquilo que foi, à medida que a experiência a
fornece, de maneira a tornar o todo consistente com esta uniformidade. E a inferência praticamente
demonstrativa — o que nos dá o direito de acreditar no seu resultado — é uma amostra clara de que só
pela verdade deste resultado se pode salvaguardar a uniformidade da natureza.
Nenhum indício, portanto, pode dar-nos justificação para acreditar na verdade de uma afirmação que
seja contrária ou exterior à uniformidade da natureza. Se a nossa experiência é tal que não a podemos
preencher consistentemente com uniformidade, tudo o que temos direito a concluir é que ocorreu um erro
algures; mas a possibilidade da inferência é afastada; temos de nos apoiar na nossa experiência, e não ir
além dela de maneira alguma. Se de facto ocorresse um acontecimento que não fizesse parte da
uniformidade da natureza, teria duas propriedades: nenhum indício poderia dar fosse a quem fosse o
direito de acreditar nele excepto àqueles que efectivamente tiveram a experiência; e nenhuma inferência
digna de crédito se podia fundar nela, de todo em todo.
Teremos então forçosamente de acreditar que a natureza é absoluta e universalmente uniforme?
Certamente que não, não temos direito de acreditar em seja o que for deste género. A regra apenas nos diz
que ao formar crenças que vão além da experiência temos de pressupor que a natureza é, para efeitos
práticos, uniforme, no que nos diz respeito. No âmbito da acção e verificação humanas, podemos formar,
com a ajuda deste pressuposto, as crenças propriamente ditas; para lá dele, só podemos formar aquelas
hipóteses que servem para a colocação mais precisa das perguntas.
Resumindo:
Podemos acreditar no que ultrapassa a nossa experiência apenas quando o inferimos a partir dessa
experiência pelo pressuposto de que aquilo que não conhecemos é como aquilo que conhecemos.
Podemos acreditar na afirmação de outra pessoa, quando há uma base razoável para supor que ela
conhece o assunto de que fala, e que fala a verdade tanto quanto a sabe.
É incorrecto em todas as circunstâncias acreditar com base em indícios insuficientes; e onde duvidar
e investigar é uma presunção, acreditar é aí pior do que uma presunção.
Areopagitica.
Aids to Reflection.
É preciso não confundir ilusão com delusão. Enquanto a ilusão tem como resultado uma crença ou
conjunto de crenças do indivíduo, não pondo em causa a sua compreensão global da realidade, a delusão
é um estado mental em que a compreensão da realidade pelo indivíduo está inteiramente comprometida.
Um bom exemplo de ilusão é pensar que estamos a ver uma pessoa ao longe quando na verdade é uma
árvore; um bom exemplo de delusão é o fanatismo político que pode distorcer totalmente a compreensão
da realidade. (N. do T.)
O monte Sri Pada, no Sri Lanka (antigo Ceilão). Local de importância religiosa para diversas tradições.
(N. do T.)
3. A vontade de acreditar

William James

Na biografia recentemente publicada que Leslie Stephen escreveu sobre o seu irmão, Fitzjames, há o
relato de uma escola que este frequentou em criança. O professor, um tal Sr. Guest, tinha o hábito de falar
com os seus alunos nestes termos: «Gurney, qual é a diferença entre justificação e santificação? Stephen,
prova a omnipotência de Deus!», etc. No seio do nosso livre-pensamento e indiferença de Harvard,
tendemos a imaginar que aqui, no nosso bom velho colégio ortodoxo, a conversa continua mais ou menos
nestes parâmetros; e para vos mostrar que em Harvard não perdemos todo o interesse nestes assuntos
vitais, trouxe comigo esta noite algo de semelhante a um sermão acerca da justificação pela fé, para vo-lo
ler — falo de um ensaio sobre a justificação da fé, uma defesa do nosso direito a adoptar uma atitude
crente em assuntos religiosos, apesar de o nosso intelecto meramente lógico poder não ter sido
compelido. «A Vontade de Acreditar», consequentemente, é o título do meu artigo.
Há muito que defendo perante os meus próprios alunos a legitimidade da fé adoptada
voluntariamente; mas assim que ficam bem adentrados no espírito lógico, têm por norma recusar admitir a
legitimidade filosófica da minha asserção, embora eles mesmos, na verdade, estejam todos, pessoalmente
e a cada momento, repletos de uma fé ou outra. Mantive-me sempre, contudo, tão profundamente convicto
de que a minha posição está correcta, que o vosso convite me pareceu uma boa ocasião para esclarecer
as minhas afirmações. Talvez as vossas mentes estejam mais abertas do que aquelas com que até agora
tive de lidar. Serei o menos técnico possível, embora tenha de começar por estabelecer algumas
distinções técnicas que acabarão por nos ajudar.
I
Chamemos hipótese a qualquer coisa que se proponha como objecto da nossa crença; e tal como os
linguistas6 falam em metáforas vivas e mortas, diremos que uma hipótese qualquer está viva ou morta.
Uma hipótese está viva se parece uma possibilidade real à pessoa a quem se apresenta. Se vos peço que
acreditem no Mádi, esta noção não estabelece qualquer conexão vívida com a vossa natureza — escusa-
se de todo em todo a pulsar com alguma credibilidade. Como hipótese, está completamente morta. Para
um árabe, contudo, (mesmo que não pertença aos seguidores do Mádi), esta hipótese encontra-se entre as
possibilidades da mente: está viva. Isto mostra que a morbidez e a vividez numa hipótese não são
propriedades intrínsecas, mas relações entre a hipótese e o pensador individual. São aferidas pela sua
inclinação para agir. O máximo de vividez numa hipótese significa inclinação para agir
irrevogavelmente. Na prática, isto quer dizer crença; mas há uma tendência para acreditar onde quer que
haja disposição para agir.
Em seguida, chamemos opção à decisão entre duas hipóteses. As opções podem ser de tipos
diferentes. Podem ser: 1) vivas ou mortas, 2) forçosas ou evitáveis, 3) momentosas ou triviais; e para o
que nos interessa, podemos chamar genuína a uma opção quando pertence ao tipo das opções que são
forçosas, vivas e momentosas.

1. Uma opção viva é uma opção em que ambas as hipóteses estão vivas. Se vos digo: «Sejam
teosofistas ou maometanos», trata-se provavelmente de uma opção morta, porque para vós nenhuma
das hipóteses tem probabilidade de estar viva. Mas se afirmo: «Sejam agnósticos ou cristãos», a
história é outra: dada a vossa formação, cada hipótese apela, por muito pouco que seja, à vossa
crença.
2. De seguida, se vos digo: «Escolham entre sair com ou sem a vossa umbrela», não vos ofereço uma
opção genuína, pois não é forçosa. Podem facilmente evitá-la não saindo sequer. De igual modo, se
digo «Ou me amam ou me odeiam», «ou consideram a minha teoria verdadeira ou a consideram
falsa», a vossa opção é evitável. Podem permanecer indiferentes a mim, nem me amando nem me
odiando, e podem recusar-se a emitir qualquer juízo a respeito da minha teoria. Mas se digo «Ou
aceitam esta verdade ou lhe passam ao lado», coloco-vos uma opção forçosa, pois não há lugar fora
da alternativa. Todos os dilemas baseados numa disjunção lógica completa, sem a possibilidade de
não escolher, são opções deste tipo forçoso.
3. Finalmente, se eu fosse o Dr. Nansen e vos convidasse a juntarem-se à minha expedição ao Pólo
Norte, a vossa opção seria momentosa; pois provavelmente não voltariam a ter uma oportunidade
semelhante, e o que escolhessem agora ou vos excluiria completamente do tipo de imortalidade
norte-polar ou colocaria pelo menos essa hipótese nas vossas mãos. Quem recusa uma oportunidade
única perde tão seguramente o prémio como se tivesse tentado e falhado. Per contra, a opção é
trivial quando a oportunidade não é única, quando o que está em causa é insignificante, ou quando a
decisão é reversível se mais tarde se mostrar insensata. Tais opções triviais abundam na vida
científica. Um químico considera que uma hipótese está suficientemente viva para passar um ano a
verificá-la: acredita nela até esse ponto. Mas se as suas experiências se mostram duplamente
inconclusivas, perdoa-se a sua perda de tempo, não resultando daí qualquer mal vital.

A nossa discussão será mais fácil se tivermos bem presentes estas distinções.
II
A questão seguinte a considerar é a psicologia propriamente dita da opinião humana. Quando olhamos
para determinados factos, parece que a nossa natureza passional e volitiva está na raiz de todas as nossas
convicções. Quando olhamos para outros factos, parece que essa natureza nada pode fazer depois do
intelecto se ter pronunciado. Consideremos antes de mais estes últimos factos.
Não parece absurdo, à primeira vista, afirmar que as nossas opiniões são modificáveis segundo a
nossa vontade? Poderá a nossa vontade ajudar ou estorvar o nosso intelecto na sua percepção da
verdade? Será que podemos, querendo-o apenas, acreditar que a existência de Abraham Lincoln é um
mito e que os seus retratos na McClure’s Magazine são de outra pessoa? Será que podemos, por qualquer
esforço da vontade, ou por força de desejar que fosse verdadeiro, acreditar que estamos de boa saúde
quando estamos acamados a berrar com reumatismo, ou ter a certeza de que a soma das duas notas de
dólar que temos no bolso perfaz cem dólares? Podemos afirmar qualquer destas coisas, mas não temos
de modo algum o poder de acreditar nelas; e é precisamente de tais coisas que se faz o tecido das
verdades em que realmente acreditamos — questões de facto, imediatas ou remotas, como afirmou Hume,
e relações entre ideias, que ou estão lá para nós ou não se as encararmos desse modo, e que não estando
não podem ser colocadas lá por qualquer acção nossa.
Nos Pensamentos de Pascal há uma passagem célebre, conhecida na bibliografia como a «aposta de
Pascal». Aí, Pascal tenta compelir-nos ao cristianismo argumentando como se a nossa preocupação com
a verdade se assemelhasse ao interesse que teríamos num jogo de azar. Traduzidas livremente, eis as suas
palavras: têm ou de acreditar ou de não acreditar que Deus existe — o que escolhem? A vossa razão
humana não pode decidir. Decorre um jogo entre vocês e a natureza das coisas que no dia do juízo vai
dar caras ou coroas. Ponderem quais seriam os vossos ganhos e perdas se apostassem tudo em caras, ou
na existência de Deus: ao ganhar nessas circunstâncias, ganhariam a beatitude eterna; perdendo, nada
perderiam sequer. Se nesta aposta houvesse uma infinidade de possibilidades e só uma favorável a Deus,
deviam ainda assim apostar tudo em Deus; pois embora agindo desta maneira arrisquem seguramente uma
perda finita, qualquer perda finita é razoável, até mesmo uma perda finita certa, se há sequer a
possibilidade de um ganho infinito. Vão, pois, tomar a água benta e mandar recitar a missa; a crença virá
entorpecer-vos os escrúpulos — Cela vous fera croire et vous abêtira. Por que não? No fundo, o que têm
a perder?
Provavelmente sentem que quando a fé religiosa se exprime assim, na linguagem da mesa de jogo,
está a lançar os seus últimos trunfos. Seguramente que a própria crença pessoal que Pascal tem nas
missas e na água benta teve uma origem muito diferente; e esta sua célebre página não é senão um
argumento para outros, uma última tentativa desesperada de deitar mão a uma arma contra a dureza do
coração do descrente. Sentimos que uma fé nas missas e na água benta adoptada voluntariamente depois
de um cálculo tão mecânico careceria da alma interior da realidade da fé; e se estivéssemos nós próprios
no lugar da divindade, provavelmente teríamos um prazer especial em impedir a crentes deste calibre o
acesso à recompensa infinita. É evidente que a menos que haja uma tendência preexistente para acreditar
nas missas e na água benta, a opção que Pascal oferece à vontade não é uma opção viva. Certamente que
nenhum turco, por sua própria conta, veria com bons olhos as missas e a água benta; e mesmo para nós,
protestantes, estes meios de salvação parecem impossibilidades de tal maneira ultrapassadas que a
lógica de Pascal, invocada especificamente a favor destes meios, nos deixa indiferentes. De igual modo
podia o Mádi escrever-nos, afirmando: «Sou o Esperado a quem Deus, no seu esplendor, criou. Serão
infinitamente felizes se me reconhecerem; de contrário serão afastados da luz do Sol. Ponderem então o
vosso ganho infinito no caso de eu ser genuíno, contra o vosso sacrifício finito no caso de não o ser!» A
sua lógica seria a de Pascal; mas seria vão usá-la em nós, pois a hipótese que nos oferece está morta.
Não há em nós qualquer tendência para agir com base nela, em grau algum.
Falar em acreditar segundo a nossa vontade parece, assim, de certo ponto de vista, simplesmente tolo.
De outro ponto de vista, é pior do que tolo: é vil. Quando nos voltamos para o magnífico edifício das
ciências físicas e vemos como foi erguido; quantos milhares de vidas morais humanas desinteressadas
jazem só nos seus alicerces; quanta paciência e adiamento, quanto abafar das preferências, quanta
submissão às leis gélidas do facto exterior, talhada na própria pedra e na argamassa; como se mantém de
pé, absolutamente impessoal na sua vasta majestade — como parece então enfatuado e desprezível cada
pequeno sentimentalista que vem soprar as suas espirais de fumo voluntárias, fingindo decidir as coisas a
partir do seu sonho privado! Será que nos podemos sentir surpresos, se os que foram criados na escola
austera e viril da ciência tenham vontade de cuspir tal subjectivismo das suas bocas? Todo o sistema de
lealdades que cresce nas escolas de ciência se opõe completamente a que se tolere tal coisa; de modo
que é perfeitamente natural que quem contraiu a febre científica passe ao extremo oposto e por vezes
escreva como se o intelecto incorruptivelmente honesto devesse preferir em absoluto a amargura e a
inaceitabilidade ao coração inebriado.

«Fortifica-me a alma saber


Que, embora eu pereça, a verdade é o que é»,

canta Clough, enquanto Huxley exclama:

«O meu único consolo está em observar que, por muito má que a nossa posteridade venha a ser,
enquanto se ativerem à regra simples de não fingir acreditar naquilo para o qual não dispõem de
quaisquer razões, por lhes poder ser vantajoso fingi-lo [a palavra «fingir» é seguramente redundante
aqui], não terão chegado ao patamar mais baixo da imoralidade.»

E Clifford, o delicioso enfant terrible, escreve:

«Profana-se a crença ao concedê-la a afirmações improvadas e inquestionadas, para consolo e


prazer privado do crente […] quem desejar bem aos seus semelhantes nesta matéria guardará a
pureza da sua crença com o fanatismo próprio de um zelo ciumento, para que a dada altura não
recaia sobre um objecto indigno, ganhando uma mancha que jamais se poderá remover […] Mas se a
crença foi aceite com base em indícios insuficientes [ainda que a crença seja verdadeira, como
Clifford explica na mesma página], é um prazer roubado […] É pecaminoso, porque é roubado em
desprezo pelo nosso dever perante a humanidade. Esse dever consiste em precaver-nos de tais
crenças como de uma epidemia, que pode em pouco tempo tomar conta do nosso próprio corpo e
então propagar-se para o resto da cidade […] É sempre incorrecto, em todo o lado, para qualquer
pessoa, acreditar seja no que for com base em indícios insuficientes.»
III
Tudo isto nos parece saudável, mesmo quando expresso, como o faz Clifford, com uma paixão demasiado
vocal. O livre-arbítrio e o mero desejo, no que diz respeito às nossas crenças, parecem estar a mais. No
entanto, se alguém pressupõe de imediato que a penetração intelectual é o que resta depois de o desejo, a
vontade e a preferência sentimental terem partido, ou que as nossas opiniões passam a ser decididas pela
razão pura, opor-se-ia directamente à realidade dos factos.
São só as nossas hipóteses já mortas que a nossa natureza volitiva é incapaz de trazer de novo à vida.
Mas o que as fez morrer para nós é, na sua maior parte, uma acção prévia, de tipo antagónico, da nossa
natureza volitiva. Quando digo «natureza volitiva», não me refiro apenas a volições deliberadas que
podem ter estabelecido hábitos de crença aos quais agora não conseguimos escapar — refiro-me a todos
os factores de crença, como o medo e a esperança, o preconceito e a paixão, a imitação e o partidarismo,
a pressão envolvente da nossa classe e grupo. Na verdade, damos connosco a acreditar sem saber ao
certo como nem porquê. O Sr. Balfour dá o nome de «autoridade» a todas estas influências, nascidas do
clima intelectual, que tornam as hipóteses possíveis ou impossíveis para nós, vivas ou mortas. Aqui nesta
sala, todos acreditamos em moléculas e na conservação da energia, na democracia e no progresso
necessário, no cristianismo protestante e no dever de lutar pela «doutrina do imortal Monroe», tudo por
nenhuma razão digna do nome. A claridade interior com que discernimos estes assuntos não é maior, e
talvez até seja menor, do que aquela que qualquer descrente nos mesmos pode ter. A sua
inconvencionalidade teria provavelmente algumas razões a mostrar a favor das suas conclusões; mas para
nós, não é a ideia sagaz e sim o prestígio das opiniões o que as faz soltar uma centelha e acender os
nossos paióis adormecidos da fé. A nossa razão satisfaz-se cabalmente, novecentas e noventa e nove em
cada mil de nós, se encontrar alguns argumentos que se possa recitar no caso de alguém criticar a nossa
credulidade. A nossa fé é fé na fé de outrem e, nas questões mais importantes, é isto sobretudo o que
acontece. A nossa crença na própria verdade, por exemplo, de que há uma verdade, e de que esta e as
nossas mentes foram feitas uma para a outra — o que é senão uma afirmação apaixonada de desejo, em
que o nosso sistema social nos apoia? Queremos ter uma verdade; queremos acreditar que as nossas
experiências, estudos e discussões têm de nos colocar numa posição cada vez melhor em direcção à
verdade; e nesta linha concordamos resolver as nossas vidas pensantes. Mas se um céptico pirrónico nos
perguntar como podemos saber tudo isto, poderá a nossa lógica dar-lhe uma resposta? Não! Certamente
que não. Trata-se apenas de uma volição contra outra — nós dispostos a avançar para uma vida com base
numa confiança ou pressuposto que ele, por sua parte, não se preocupa em fazer.7
Por regra, rejeitamos a crença em todos os factos e teorias para as quais não temos uso. As emoções
cósmicas de Clifford não vêem qualquer utilidade nos sentimentos cristãos. Huxley ataca duramente os
bispos porque no seu esquema de vida o sacerdócio não tem qualquer utilidade. Newman, pelo contrário,
passa para o catolicismo romano, e encontra todo o género de boas razões para aí permanecer, porque um
sistema sacerdotal é para ele uma necessidade orgânica e um deleite. Por que são tão poucos os
«cientistas» que chegam sequer a olhar para os indícios a favor da chamada «telepatia»? Porque pensam
que, como um importante biólogo já falecido me disse uma vez, mesmo se tal coisa fosse verdadeira, os
cientistas deviam unir-se para a manter reprimida e escondida. Esta desfaria a uniformidade da natureza e
todo o género de outras coisas sem as quais os cientistas não podem levar a cabo as suas actividades
investigativas. Mas se a este mesmo homem se mostrasse algo que ele, como cientista, pudesse fazer com
a telepatia, talvez não só examinasse os indícios como até os considerasse suficientemente bons. Esta
mesma lei que os lógicos nos impõem — se me permitem chamar «lógicos» a todos os que nesta questão
excluiriam a nossa natureza volitiva — em nada se baseia senão no seu próprio desejo natural de excluir
todos os elementos nos quais, na sua qualidade profissional de lógicos, não conseguem ver qualquer
utilidade.
É claro, portanto, que a nossa natureza inintelectual influencia as nossas convicções. Há tendências
passionais e volições que ocorrem antes da crença, outras que surgem depois, e só as últimas entram em
cena demasiado tarde; e não entram demasiado tarde quando o trabalho passional prévio já as vinha
preparando. O argumento de Pascal, em vez de não ter força, parece assim um tira-teimas como os outros,
e é a última estocada necessária para tornar completa a nossa fé nas missas e na água benta. É evidente
que este estado de coisas nada tem de simples; a mera penetração intelectual e a lógica, seja o que for
que possam fazer idealmente, não são as únicas coisas que de facto produzem as nossas crenças.
IV
O nosso dever seguinte, tendo reconhecido este estado de coisas misturado, é perguntar se é ou não
simplesmente repreensível e patológico, ou se, pelo contrário, temos ou não de o tratar como um
elemento normal ao tomar decisões. A tese que defendo é, em poucas palavras, a seguinte: A nossa
natureza passional não só pode, legitimamente, como deve decidir uma opção entre proposições,
sempre que se trata de uma opção genuína que não pode, pela sua natureza, ser decidida numa base
intelectual; pois afirmar, em tais circunstâncias, «Não decidas, deixa a questão em aberto», é em si
uma decisão passional — tal como decidir pelo sim ou pelo não — e tem o mesmo risco de perder a
verdade. A tese aqui expressa abstractamente tornar-se-á em breve, espero, bastante clara. Mas antes
tenho de me demorar um pouco mais no trabalho preliminar.
V
Observar-se-á que, para o que interessa a esta discussão, estamos em terreno «dogmático» — terreno,
quero dizer, que deixa completamente de parte o cepticismo filosófico sistemático. O postulado de que há
a verdade e que o destino das nossas mentes é alcançá-la, estamos deliberadamente resolvidos a aceitar,
embora o céptico não o faça. Afastamo-nos da sua companhia, portanto, absolutamente, daqui para a
frente. Mas a fé, segundo a qual a verdade existe e as nossas mentes a podem descobrir, pode ser
defendida de duas maneiras. Podemos falar no modo empirista e no modo absolutista de acreditar na
verdade. Os absolutistas neste assunto afirmam que não só conseguimos chegar ao conhecimento da
verdade, como podemos saber quando alcançámos esse conhecimento; ao passo que os empiristas
pensam que embora o possamos alcançar, não podemos saber infalivelmente quando o fizemos. Saber é
uma coisa e saber com certeza que sabemos é outra. Pode-se defender que a primeira é possível sem a
segunda; é por isto que os empiristas e os absolutistas, embora nenhum seja céptico no sentido filosófico
usual do termo, exibem nas suas vidas graus de dogmatismo muito diferentes.
Se olharmos para a história das opiniões, vemos que a tendência empirista prevaleceu em grande
medida na ciência, ao passo que na filosofia a tendência absolutista tem feito tudo à sua maneira. O
género característico de felicidade, de facto, que as filosofias produzem, tem consistido, sobretudo, na
convicção, sentida por cada escola ou sistema sucessivos, de que, por meio dessa escola ou sistema, se
alcançara a certeza definitiva. «As outras filosofias são colecções de opiniões, na sua maioria falsas; a
minha filosofia dá-nos um ponto fixo para sempre» — quem não reconhece nisto a tónica de todo o
sistema digno desse nome? Um sistema, para sequer ser um sistema, tem de se apresentar como um
sistema fechado, reversível neste ou naquele detalhe, talvez, mas nunca nas suas características
essenciais!
A ortodoxia escolástica, a que sempre temos de recorrer quando desejamos encontrar uma afirmação
perfeitamente clara, elaborou belissimamente esta convicção absolutista na chamada doutrina dos
«indícios objectivos». Se, por exemplo, sou incapaz de duvidar de que existo agora perante vós, que dois
são menos do que três, ou que se todos os homens são mortais, então também sou mortal, é porque estas
coisas iluminam o meu intelecto irresistivelmente. A justificação última destes indícios objectivos que
certas proposições têm é a adequatio intellectus nostri cum re. A certeza que traz envolve uma
aptitudinem ad extorquendum certum assensum por parte da verdade visada e, por parte do sujeito, uma
quietem in cognitione, assim que o objecto é mentalmente apreendido, não deixando lugar a qualquer
possibilidade de dúvida; e em todo este processo nada opera senão a entitas ipsa do objecto e a entitas
ipsa da mente. A nós, desleixados pensadores modernos, desagrada-nos a conversa em latim — na
verdade, desagrada-nos conversar com termos bem definidos de todo em todo; mas no fundo o nosso
próprio estado de espírito é muito semelhante a isto sempre que nos deixamos ir acriticamente: vocês
acreditam nos indícios objectivos, e eu também. De algumas coisas sentimos que estamos certos:
sabemos, e sabemos que sabemos. Algo ressoa em nós, um sino que bate as doze badaladas, quando os
ponteiros do nosso relógio mental deram a volta ao mostrador e se encontram ao meio-dia. Os maiores
empiristas entre nós só o são quando reflectem: abandonados aos seus instintos, dogmatizam como papas
infalíveis. Quando os Clifford nos dizem como é pecaminoso ser cristão com base em tão «insuficientes
indícios», a insuficiência é na verdade a última coisa que têm em mente. Para eles, os indícios são
absolutamente suficientes, só que em sentido contrário. Acreditam tão completamente numa ordem
anticristã do universo que não há qualquer opção viva: a hipótese do cristianismo está morta à partida.
VI
Mas agora, visto que todos somos tais absolutistas por instinto, o que devemos fazer, na qualidade de
estudantes de filosofia, acerca deste facto? Devemos defendê-lo e sancioná-lo? Ou tratá-lo-emos como
uma fraqueza da nossa natureza, da qual temos de nos libertar, caso o possamos fazer?
Creio sinceramente que o último procedimento é o único que podemos adoptar enquanto homens de
reflexão. Os indícios objectivos e a certeza são sem dúvida excelentes ideais com que brincar, mas onde,
neste planeta iluminado pela Lua e visitado por sonhos, os encontramos? Eu próprio sou, portanto, um
completo empirista no que diz respeito à minha teoria do conhecimento humano. Vivo, certamente, de
acordo com a fé prática de que temos de continuar a experimentar e a reflectir sobre a nossa experiência,
pois só assim as nossas opiniões se podem aproximar da verdade; mas creio que a atitude de adoptar
qualquer uma delas — é-me de todo indiferente qual — como se jamais pudesse ser reinterpretável ou
corrigível, é um tremendo equívoco, e penso que toda a história da filosofia me irá corroborar. Não há
senão uma verdade indefectivelmente certa, que o próprio cepticismo pirrónico deixa de pé — a verdade
de que o fenómeno presente da consciência existe. Isso, contudo, é o ponto de partida nu do
conhecimento, a mera admissão de uma matéria acerca da qual filosofar. As diversas filosofias são meras
tentativas de exprimir o que esta matéria realmente é. E se vamos às nossas bibliotecas quanto desacordo
descobrimos! Onde se encontra uma resposta indubitavelmente verdadeira? Além de proposições
abstractas comparativas (tais como «dois mais dois é igual a quatro»), proposições que em si mesmas
nada nos dizem acerca da realidade concreta, não encontramos qualquer proposição que alguém tenha
considerado evidentemente certa ao ponto de nunca a terem declarado uma falsidade, ou pelo menos cuja
verdade nunca foi seriamente questionada por outrem. Transcender os axiomas da geometria, não a
brincar, mas a sério, por parte de alguns dos nossos contemporâneos (como Zöllner e Charles H. Hinton),
e a rejeição de toda a lógica aristotélica pelos hegelianos, são exemplos flagrantes a este respeito.
Nenhum teste concreto daquilo que é realmente verdadeiro foi alguma vez objecto de consenso.
Alguns tornam o critério externo ao momento da percepção, colocando-o na revelação, no consensus
gentium, nos instintos do coração ou na experiência sistematizada do género humano. Outros transformam
o momento perceptivo em teste de si próprio — Descartes, por exemplo, com as suas ideias claras e
distintas garantidas pela veracidade de Deus; Reid com o seu «senso comum»; e Kant com as suas formas
do juízo sintético a priori. O carácter inconcebível do oposto; a capacidade de ser verificado pelos
sentidos; a posse de unidade orgânica completa ou auto-relação, realizada quando uma coisa é o seu
próprio outro — são cânones que foram, por sua vez, usados. Os louvadíssimos indícios objectivos não
estão, triunfalmente, em lado algum; é uma mera aspiração ou Grenzbegriff, assinalando o ideal
infinitamente remoto da nossa vida pensante. Afirmar que determinadas verdades agora o possuem é
simplesmente afirmar que, quando as consideramos verdadeiras, e são verdadeiras, os indícios a seu
favor são objectivos e de contrário não. Mas na prática, a nossa convicção de que os indícios por que
nos guiamos são da variedade genuinamente objectiva, é apenas mais uma opinião subjectiva que se
acrescenta às outras. Pois já se reivindicou a objectividade dos indícios favoráveis e a certeza absoluta
para uma tão grande variedade de opiniões contraditórias! O mundo é inteiramente racional — a sua
existência é um facto bruto último; há um Deus pessoal — um Deus pessoal é inconcebível; há um mundo
físico extramental imediatamente conhecido — a mente apenas pode conhecer as suas próprias ideias;
existe um imperativo moral — a obrigação é apenas o resultado dos desejos; há em todos um princípio
espiritual permanente — há apenas estados mentais inconstantes; há uma cadeia interminável de causas
— há uma primeira causa absoluta; uma necessidade eterna — uma liberdade; um propósito — nenhum
propósito; um Uno primordial — um Múltiplo primordial; uma continuidade universal — uma
descontinuidade essencial nas coisas; uma infinidade — nenhuma infinidade. Há isto — há aquilo; nada
há, na verdade, que alguém não tenha considerado absolutamente verdadeiro, ao passo que o seu vizinho
o considerou absolutamente falso; e nenhum absolutista entre eles parece ter alguma vez considerado que
o problema pode ter sido sempre essencial e que o intelecto, mesmo com a verdade directamente ao seu
alcance, pode não ter qualquer sinal infalível para saber se é ou não verdadeiro. Efetivamente, quando
recordamos que a mais flagrante aplicação prática à vida da doutrina da certeza objectiva foi o trabalho
consciencioso do Santo Ofício da Inquisição, sentimo-nos menos tentados do que nunca a ouvir com
bonomia tal doutrina.
Mas observem agora, peço-vos, que quando, na qualidade de empiristas, abandonamos a doutrina da
certeza objectiva, não deixamos por isso de procurar a verdade em si ou ter esperança nela. Ainda
depositamos a nossa fé na sua existência e ainda acreditamos que conseguimos progredir cada vez mais
na sua direcção, continuando sistematicamente a acumular experiências e a pensar sobre elas. A grande
diferença entre nós e o escolástico está no lado para o qual nos voltamos. A força do seu sistema está nos
princípios, na origem, no terminus a quo do seu pensamento; para nós a força está no resultado, no
desfecho, no terminus ad quem. O decisivo não é de onde vem, mas aonde conduz. Não importa a um
empirista qual a procedência de uma hipótese que se lhe depara: pode tê-la obtido por meios justos ou
ilícitos; pode ter-lhe sido sussurrada pela paixão ou sugerida pelo acaso; mas se a direcção total do
pensamento continuar a confirmá-lo, é isso o que significa dizer que é verdadeiro.
VII
Um aspecto ainda, pequeno, mas importante, e concluímos os nossos preliminares. Há duas maneiras de
encarar o nosso dever, no que diz respeito à opinião — maneiras completamente diferentes e, no entanto,
maneiras a cuja diferença a teoria do conhecimento parece ter dado até agora muito pouca atenção. Temos
de saber a verdade; temos de evitar o erro — estes são os nossos primeiros e grandiosos mandamentos,
como pretendentes ao conhecimento; mas não são duas maneiras de afirmar um mesmo mandamento, são
duas leis distintas. Embora possa de facto acontecer que acreditar na verdade A tenha a consequência
lateral de nos livrarmos de acreditar na falsidade B, quase nunca se dá o caso de acreditarmos
necessariamente em A apenas por não acreditarmos em B. Podemos, ao evitar B, acabar acreditando
noutras falsidades, C ou D, tão más como B; ou podemos evitar B tão-pouco acreditando seja no que for,
nem mesmo em A.
Acreditem na verdade! Evitem o erro! — Estas, como se vê, são duas leis materialmente diferentes; e
ao escolher entre elas podemos acabar por dar uma tonalidade diferente a toda a nossa vida intelectual.
Podemos encarar a caça à verdade como primordial e a fuga ao erro como secundária; ou podemos, por
outro lado, tratar a fuga ao erro como algo mais imperativo e deixar a verdade correr os seus riscos.
Clifford, na instrutiva passagem que citei, exorta-nos a escolher o segundo caminho. Não acreditem em
coisa alguma, diz-nos, mantenham para sempre a mente em suspenso, em vez de, cingindo-se a indícios
insuficientes, incorrer no terrível risco de acreditar numa mentira. Vocês, por outro lado, podem pensar
que o risco de cair em erro é algo de somenos importância por comparação à bênção do conhecimento
genuíno, e aceitar serem enganados muitas vezes na vossa investigação em vez de adiar indefinidamente a
hipótese de acertar na verdade. Por mim considero impossível acompanhar Clifford. Temos de recordar
que estes sentimentos sobre o nosso dever perante a verdade ou o erro são, em todo o caso, apenas
expressões da nossa vida passional. Biologicamente consideradas, as nossas mentes são tão aptas a
destilar a falsidade como a veracidade, e quem afirma «Antes passar toda a vida sem crenças do que
acreditar numa mentira!» apenas mostra o seu preponderante horror privado de se tornar um palerma.
Pode ser crítico relativamente a muitos dos seus desejos e medos, mas a este medo obedece servilmente.
Não pode imaginar que alguém questione a sua força vinculadora. Da minha parte, tenho também horror a
ser intrujado; mas acredito que neste mundo podem acontecer coisas piores a um homem além de ser
intrujado: pelo que a exortação de Clifford tem uma ressonância completamente fantástica nos meus
ouvidos. É como um general que diz os seus soldados que mais vale evitar eternamente a batalha do que
arriscar uma única ferida. Não se consegue assim vitórias sobre inimigos ou sobre a natureza. Os nossos
erros não são com certeza coisas tão horrivelmente solenes. Num mundo onde estamos tão certos de
incorrer neles, por muito prudentes que sejamos, uma certa ligeireza de espírito parece mais saudável do
que este nervosismo exagerado por sua causa. Em todo o caso, parece o mais apropriado ao filósofo
empirista.
VIII
E agora, depois de toda esta introdução, passemos de imediato à nossa questão. Afirmei, e agora repito,
que não só vemos que, na realidade, a nossa natureza passional influencia as nossas opiniões como que
há opções entre opiniões em que se tem de encarar esta influência como um factor determinante, tanto
inevitável como legítimo, da nossa escolha.
Receio neste ponto que alguns dos que me ouvem começarão a farejar o perigo, interpretando-me
então de modo não caridoso. Dois primeiros passos da paixão tiveram de facto de admitir como
necessários — temos de pensar de maneira a evitar a intrujice, e temos de pensar de modo a obter a
verdade; mas o caminho mais seguro para essas consumações ideais, considerarão muito provavelmente,
é de agora em diante não dar mais passos passionais.
Bom, claro que concordo, tanto quanto os factos o permitirem. Sempre que a opção entre perder a
verdade e ganhá-la não é momentosa, podemos deitar fora a hipótese de obter a verdade e, em qualquer
circunstância, salvaguardar-nos de qualquer hipótese de acreditar em falsidades, não decidindo sequer
antes de haver indícios objectivos disponíveis. Nas questões científicas, isto é quase sempre assim; e
mesmo nos assuntos humanos em geral, poucas vezes a necessidade de agir é tão urgente que faça uma
falsa crença sobre a qual basear a acção ser melhor do que nenhuma crença sequer. Os tribunais, de facto,
têm de decidir com base nos melhores indícios que se pode obter no momento, porque o dever de um juiz
é tanto fazer a lei como averiguá-la, e (como me disse em tempos um juiz de grande erudição) poucos são
os casos em que vale a pena perder muito tempo: o importante é decidi-los com base em qualquer
princípio aceitável, e passar adiante. Mas na nossa relação com a natureza objectiva somos obviamente
registadores e não produtores da verdade; e decisões tomadas apenas em função de decidir prontamente e
passar à próxima tarefa seriam completamente deslocadas. Em toda a amplitude da natureza física os
factos são o que são, independentemente de nós, e raramente há a propósito deles uma urgência tal que
tenha de se enfrentar os riscos de ser enganado por acreditar numa teoria prematura. As questões aqui são
sempre opções triviais, as hipóteses dificilmente estão vivas (em todo o caso, não estão vivas para nós
espectadores), a escolha entre acreditar na verdade ou na falsidade raramente é forçosa. A atitude do
equilíbrio céptico é, portanto, absolutamente sensata, para que evitemos os erros. Que diferença
realmente fará para a maior parte de nós se temos ou não uma teoria dos raios Röntgen, se acreditamos ou
não na substância mental, se temos ou não convicções acerca da causalidade dos nossos estados
conscientes? É indiferente. Tais opções não são forçosas para nós. Em todos os aspectos, é melhor não as
fazer, continuando, todavia, a pesar as razões pro et contra de modo indiferente.
Falo aqui, é claro, da mente puramente judicativa. No que interessa à descoberta, tal indiferença não
é tão fortemente recomendável, e a ciência estaria muito menos avançada do que está se se mantivesse
fora de cena os desejos inflamados dos indivíduos em ver confirmada a sua própria fé. Veja-se, por
exemplo, a sagacidade que Spencer e Weismann agora exibem. Por outro lado, se querem um perfeito
bronco a investigar, têm, afinal, de escolher o homem que não tem qualquer interesse nos resultados: é o
inepto autorizado, o tolo genuíno. O investigador mais útil, porque é o observador mais sensível, é
sempre aquele cujo interesse ardente num dos lados da questão é equilibrado por um nervosismo
igualmente intenso, para que não se deixe iludir.8 A ciência organizou este nervosismo tornando-o uma
técnica normal, o seu chamado «método de verificação»; e apaixonou-se tão profundamente pelo método
que se pode mesmo afirmar que parou de se preocupar com a verdade por si, de todo em todo. É apenas a
verdade enquanto tecnicamente verificada que lhe interessa. A verdade das verdades podia assumir uma
forma meramente afirmativa e ela recusaria tocar-lhe. A ciência podia repetir com Clifford que tal
verdade seria roubada em desrespeito ao seu dever perante a humanidade. As paixões humanas, todavia,
são mais fortes do que as regras técnicas. «Le coeur a ses raisons», como afirma Pascal, «que la raison
ne connaît point»; e por muito que o árbitro, o intelecto abstracto, seja indiferente a tudo excepto as
simples regras do jogo, os jogadores concretos que lhe dão os materiais para julgar estão normalmente,
cada um deles, apaixonados pela sua própria «hipótese viva» de estimação. Concordemos, todavia, que
sempre que não haja uma opção forçosa, o intelecto friamente judicativo, desprovido de qualquer
hipótese de estimação, salvaguardando-nos, como faz, do engano, em todo o caso, deve ser o nosso ideal.
Levanta-se em seguida a questão: não haverá algures opções forçosas nas nossas questões
especulativas, e será que podemos (como homens que talvez estejam pelo menos tão interessados em
obter positivamente a verdade como em meramente evitar o engano) esperar sempre impunemente até que
tenham chegado os indícios coercivos? Parece a priori improvável que a verdade se ajustasse assim tão
bem às nossas necessidades e poderes. Na grande hospedaria da natureza, raramente os bolos, a manteiga
e o xarope ficam tão suaves e deixam os pratos tão limpos. Na verdade, devíamos encará-los com
desconfiança científica se o fizessem.
IX
As questões morais apresentam-se imediatamente como questões cuja solução não pode esperar por uma
prova tangível. Uma questão moral não é sobre o que tangivelmente existe, mas sobre o que é bom, ou
seria bom se existisse. A ciência pode dizer-nos o que existe; mas para comparar os valores, tanto
daquilo que existe como do que não existe, temos de consultar não a ciência mas aquilo a que Pascal
chama o nosso «coração». A própria ciência consulta o coração quando estabelece que a infinita
averiguação dos factos e a correcção das crenças falsas são os bens supremos para o homem. Desafie-se
a afirmação e a ciência só pode repeti-la de modo oracular, ou então prová-la, mostrando que tal
confirmação e correcção trazem ao homem todo o género de outros bens que o coração do homem por sua
vez declara. A questão de ter crenças morais, de todo em todo, ou de não as ter, é decidida pela nossa
vontade. Serão as nossas preferências morais verdadeiras ou falsas, ou serão apenas fenómenos
biológicos peculiares, tornando as coisas boas ou más para nós, mas indiferentes em si? Como pode o
vosso puro intelecto decidir? Se o vosso coração não quer um mundo de realidade moral, a vossa cabeça
seguramente nunca vos fará acreditar num. O cepticismo mefistofélico, na verdade, satisfará os instintos
lúdicos da cabeça muito melhor do que qualquer idealismo rigoroso. Alguns homens (mesmo em idade
estudantil) são tão naturalmente frios que a hipótese moral nunca tem para eles qualquer vida pungente, e
na sua presença altiva o moralista ardente sente-se sempre estranhamente pouco à vontade. A aparência
de conhecimento está do lado daqueles, a naiveté e a credulidade do lado deste. Contudo, no seu coração
mudo, este agarra-se à convicção de que não é um palerma e que há um domínio em que (como afirma
Emerson) toda a perspicácia e superioridade intelectual daqueles não valem mais do que a astúcia de
uma raposa. O cepticismo moral não é mais fácil de refutar ou provar através da lógica do que o
cepticismo intelectual. Quando sustentamos que há verdade (seja de que tipo for), fazemo-lo com toda a
nossa natureza, e decidimos ficar de pé ou cair, consoante os resultados. O céptico, com toda a sua
natureza, adopta a atitude da dúvida: mas qual de nós é o mais sensato, só a Omnisciência sabe.
Passemos agora destas questões amplas sobre o bem para certa classe de questões de facto, questões
respeitantes a relações pessoais, estados mentais entre um homem e outro. Gostam de mim ou não? —
por exemplo. Se gostam ou não, dependerá, em inúmeras circunstâncias, de chegar a acordo convosco, da
minha disposição para pressupor que devem gostar de mim e de vos mostrar alguma confiança e
expectativa. O que vos faz simpatizar comigo, em muitos casos, é a fé prévia que tenho em como o farão.
Mas se me mantenho à distância e recuso mover-me um só centímetro antes de ter indícios objectivos,
antes de terem feito algo apropriado, como dizem os absolutistas, ad extorquendum assensum meum,
aposto que a vossa simpatia nunca se manifestará. Quantos corações de mulher se deixam conquistar pela
mera insistência confiante de um homem em como têm de o amar! Não aceitará a hipótese de que não o
podem fazer. O desejo por certo tipo de verdade provoca aqui a existência dessa verdade especial; e
assim é em inúmeros casos diferentes. Quem ganha promoções, favores, nomeações, senão o homem em
cuja vida se vê que estas coisas desempenham o papel de hipóteses vivas, que conta com elas, sacrifica
outras coisas por causa delas antes de as ter à vista e se arrisca de antemão por elas? A sua fé age sobre
os poderes acima de si como uma reivindicação, e cria a sua própria verificação.
Um organismo social de qualquer género que seja, pequeno ou grande, é o que é porque cada membro
cumpre o seu dever confiante de que os outros cumprirão o deles. Sempre que se alcança um resultado
desejado pela cooperação de muitas pessoas independentes, a sua existência factual é uma pura
consequência da fé prévia que as pessoas imediatamente envolvidas têm umas nas outras. Um governo,
um exército, um sistema comercial, um navio, um colégio, uma equipa de atletas, todos existem sob esta
condição, sem a qual não só nada se alcança, como nada alguma vez se procura alcançar. Um comboio
inteiro de passageiros (que individualmente são bastante corajosos) será saqueado por um punhado de
salteadores, simplesmente porque os últimos podem contar uns com os outros, enquanto cada passageiro
receia que ao encetar um movimento de resistência, será baleado antes que mais alguém o ajude. Se
acreditássemos que todos os passageiros se levantariam ao mesmo tempo connosco, cada um levantar-se-
ia individualmente, e jamais se tentaria assaltar comboios. Há, portanto, casos em que um facto não se
pode sequer dar a menos que exista uma fé preliminar no seu advento. E onde a fé num facto pode ajudar
a criar esse facto, uma lógica segundo a qual a fé que se adianta aos indícios científicos é o «tipo mais
baixo de imoralidade» em que um ser pensante pode incorrer, seria uma lógica doente. No entanto, tal é a
lógica pela qual os nossos absolutistas científicos pretendem regular as nossas vidas!
X
Nas verdades que dependem da nossa acção pessoal, portanto, a fé baseada no desejo é certamente algo
legítimo e possivelmente indispensável.
Mas agora, dir-se-á, tudo isto são puerilidades humanas, e nada têm a ver com as grandes questões
cósmicas, como a questão da fé religiosa. Passemos então a essas. As religiões diferem tanto nas suas
características acidentais que ao discutir a questão religiosa temos de a tornar muito genérica e lata. O
que entendemos então agora por «hipótese religiosa»? A ciência diz que as coisas são; a moralidade diz
que umas coisas são melhores do que outras; e a religião diz essencialmente duas coisas.
Em primeiro lugar, a religião afirma que as coisas melhores são as mais eternas, as que se
sobrepõem, as coisas que no universo lançam a última pedra, por assim dizer, e dão a última palavra. «A
perfeição é eterna» — esta expressão de Charles Secrétan parece uma boa maneira de colocar esta
primeira afirmação da religião, uma afirmação que obviamente não pode ainda ser cientificamente
verificada, de todo em todo.
A segunda afirmação da religião é que mesmo agora ficamos melhor se acreditarmos na sua primeira
afirmação.
Consideremos agora quais são os elementos lógicos desta situação no caso de a hipótese religiosa
em ambas as suas ramificações ser realmente verdadeira. (Evidentemente, temos de admitir à partida
essa possibilidade. Para discutirmos a questão, de todo em todo, esta tem de envolver uma opção viva.
Se para qualquer um de vocês a religião é uma hipótese que não pode ser verdadeira segundo qualquer
possibilidade viva, não precisam de ir mais longe. Falo apenas para as «excepções que restarem».)
Procedendo assim, vemos, em primeiro lugar, que a religião se oferece como uma opção momentosa.
Supostamente ganhamos, agora mesmo, ao acreditar, e perdemos ao não acreditar, um certo bem vital. Em
segundo lugar, a religião é uma opção forçosa, no que diz respeito a esse bem. Não podemos evitar a
questão permanecendo cépticos e esperando que se faça mais luz, porque, embora assim evitemos
realmente o erro no caso de a religião ser contrária à verdade, perdemos o bem, no caso de ser
verdadeira, tão seguramente como se de facto escolhêssemos não acreditar. É como se um homem
hesitasse indefinidamente em pedir uma mulher em casamento, por não ter a certeza absoluta de que
depois de a levar para casa ela continua a ser um anjo. Não estará a privar-se dessa possibilidade
angélica particular tão decisivamente como se casasse com outra pessoa? O cepticismo, portanto, não
consiste em evitar a opção; é a opção por certo tipo particular de risco. Antes arriscar não acertar na
verdade do que a hipótese de cair em erro — esta é a posição exacta do nosso vetante da fé. Arrisca-se
activamente tanto quanto o crente; está a apostar todos os cavalos contra o cavalo da hipótese religiosa,
tal como um crente aposta na hipótese religiosa contra todos os outros cavalos. Pregar-nos o cepticismo
como um dever até se encontrar «indícios suficientes» a favor da religião, equivale, portanto, a dizer-nos
que, na presença da hipótese religiosa, é mais sensato e melhor ceder ao nosso medo de que esta seja
errónea do que ceder à nossa esperança de que pode ser verdadeira. Não se trata do intelecto contra
todas as paixões, portanto; trata-se apenas do intelecto com uma paixão impondo a sua lei. E por que
meio, em boa verdade, se garante a suprema sabedoria desta paixão? Logro por logro, que prova há de
que o logro que resulta da esperança é pior do que o que resulta do medo? Por mim, não vejo prova
alguma; e simplesmente recuso obedecer à ordem do cientista para imitar o seu tipo de opção, num caso
em que o meu próprio interesse é suficientemente importante para me dar o direito de escolher a minha
própria forma de risco. Se a religião for verdadeira e os indícios a seu favor ainda insuficientes, não
desejo, deixando que extingam as chamas da minha natureza (que me parece afinal ter algo a ver com este
assunto), abdicar da minha única oportunidade na vida de entrar para o lado vencedor — dependendo
essa oportunidade, evidentemente, da minha disposição para correr o risco de agir como se a minha
necessidade passional de compreender religiosamente o mundo possa ser profética e correcta.
Tudo isto supondo que pode realmente ser profética e correcta, e que, mesmo para nós, que
discutimos o assunto, a religião é uma hipótese viva que pode ser verdadeira. Para a maioria de nós, a
religião surge-nos de outra maneira ainda, que torna ainda mais ilógico um veto à nossa fé activa. O
aspecto mais perfeito e eterno do universo é representado nas nossas religiões como algo que tem uma
forma pessoal. Quando se é religioso, o universo não é mais um mero Isso, mas um Tu, para nós; e
qualquer relação que pode ser possível entre pessoas pode também ser possível aqui. Por exemplo,
embora num sentido sejamos parcelas passivas do universo, noutro sentido mostramos uma curiosa
autonomia, como se fôssemos pequenos centros activos autónomos. Sentimos, além disso, que é como se
o apelo que sentimos da religião se exercesse sobre a nossa boa vontade activa, como se os indícios
pudessem ficar para sempre escondidos de nós a menos que percorramos metade do caminho na sua
direcção. Tomando numa ilustração trivial: tal como um homem que numa companhia de cavalheiros não
tomasse quaisquer iniciativas, pedisse uma garantia por cada concessão, e não acreditasse na palavra de
quem quer que fosse sem provas, privar-se-ia, com tal rudeza, de qualquer gratificação social a que um
espírito mais confiante teria acesso — também aqui, quem se fecha numa atitude lógica resmungona e
tenta fazer os deuses arrancar o seu reconhecimento contra a sua vontade, não o obtendo de outro modo,
pode perder para sempre a sua única oportunidade de travar conhecimento com os deuses. Este
sentimento, que nos é imposto sem que saibamos de onde vem, de que ao acreditar obstinadamente que há
deuses (embora não o fazer fosse tão fácil tanto para a nossa lógica como para a nossa vida) prestamos
ao universo o mais profundo serviço de que somos capazes, parece parte da essência viva da hipótese
religiosa. Se a hipótese fosse verdadeira em todas as suas partes, incluindo esta, então o puro
intelectualismo, com o seu veto a que tomemos iniciativas voluntárias, seria um absurdo; e exigir-se-ia
logicamente alguma participação da nossa empatia natural. Eu, portanto, por mim, não consigo ver-me
aceitar as regras agnósticas para a procura da verdade, ou concordar voluntariamente em manter a minha
natureza volitiva fora de jogo. Não o posso fazer por esta razão simples: uma regra de pensamento que
me impediria em absoluto de reconhecer certos tipos de verdade se esses tipos de verdade estiverem
realmente lá, seria uma regra irracional. Isto, para mim, é tudo o que há a dizer sobre a lógica formal
da situação, independentemente dos tipos de verdade que possam materialmente existir.
* * *
Confesso que não vejo como se pode escapar a esta lógica. Mas a triste experiência faz-me recear
que alguns de vocês ainda possam inibir-se de afirmar radicalmente comigo, in abstracto, que temos o
direito de acreditar por nossa conta e risco em qualquer hipótese que esteja suficientemente viva para ser
uma tentação para a nossa vontade. Suspeito, contudo, que se isto for assim, é porque se afastaram
completamente do ponto de vista lógico abstracto e pensam (talvez sem se aperceberem) em alguma
hipótese religiosa particular que para vós está morta. Aplicam a liberdade de «acreditar no que se quer»
a alguma superstição patente; e a fé em que pensam é a fé definida pelo aluno quando disse: «A fé é
quando acreditamos numa coisa que sabemos não ser verdadeira». Não posso senão repetir que isto é um
equívoco. In concreto, a liberdade de acreditar só pode abranger opções vivas que o intelecto do
indivíduo não pode resolver por si; e as opções vivas nunca parecem absurdas a quem as tem em
consideração. Quando olho para a questão religiosa tal como se coloca realmente a homens concretos, e
quando penso em todas as possibilidades que envolve, tanto prática como teoricamente, esta ordem de
pôr um travão ao nosso coração, instintos e coragem, e esperar — agindo evidentemente entretanto mais
ou menos como se a religião não fosse verdadeira9 — até ao dia do juízo, ou até ao dia em que o nosso
intelecto e sentidos, trabalhando conjuntamente, possam ter adquirido indícios suficientes — esta ordem,
digo, parece-me o ídolo mais bizarro que se fabricou na caverna filosófica. Fôssemos absolutistas
escolásticos, talvez tivéssemos uma desculpa maior. Se tivéssemos um intelecto infalível, com as suas
certezas objectivas, podíamo-nos sentir desleais perante um órgão de conhecimento tão perfeito ao não
confiar exclusivamente nele, não esperando pela sua palavra libertadora. Mas se somos empiristas, se
acreditamos não haver em nós quaisquer sinos a tocar a rebate quando estamos perante a verdade, parece
que pregar tão solenemente que temos o dever de aguardar pelo toque do sino não passa de uma
excentricidade vã. Na verdade, podemos aguardar, se quisermos — espero que não pensem que o nego
— mas se o fizermos, fazemo-lo por nossa conta e risco, tal como se acreditássemos. Em todo o caso
agimos, tomando as rédeas da nossa própria vida. Nenhum de nós devia impor vetos aos outros, nem
trocar palavras agressivas. Devemos, pelo contrário, respeitar delicada e profundamente a liberdade
mental de cada um: só então realizaremos a república intelectual, só então teremos aquele espírito de
tolerância interior sem o qual toda a tolerância exterior se torna oca, e que é a glória do empirismo; só
então viveremos e deixaremos viver, tanto nas coisas especulativas como nas práticas.
Comecei com uma referência a Fitzjames Stephen; permitam-me que termine citando-o:

«O que pensas de ti mesmo? O que pensas do mundo? […] São questões com que todos têm de lidar
como lhes parecer melhor. São charadas esfíngicas e, de uma maneira ou doutra, temos de lidar com
elas […] Em todo o comércio importante da vida, temos de dar um salto no escuro […] Se
decidimos deixar as adivinhas sem resposta, é uma escolha. Se hesitamos na nossa resposta, também
isso é uma escolha; mas seja qual for a escolha que fazemos, fazemo-la por nossa conta e risco. Se
um homem escolhe voltar completamente as costas a Deus e ao futuro, ninguém o pode impedir.
Ninguém pode mostrar para lá da dúvida razoável que está enganado. Se um homem pensa o
contrário, e se age tal como pensa, não vejo como alguém pode provar que ele está enganado. Cada
qual tem de agir como acha melhor, e se está errado tanto pior para ele. Estamos num desfiladeiro,
no meio de um turbilhão de neve e um nevoeiro denso, através do qual entrevemos de vez em
quando caminhos que podem ser enganadores. Se ficamos quietos, morremos congelados. Se
escolhemos a estrada errada, somos feitos em pedaços. Não sabemos com certeza se há ou não uma
estrada certa. O que temos de fazer? “Ser fortes e corajosos”. Ajam pelo melhor, esperem o melhor,
aceitem o que vier […] Se a morte a tudo põe fim, não há maneira melhor de ir ao seu encontro.»10

James faz originalmente uma analogia com a electricidade, e não com a linguística, pois em inglês chama-
se respectivamente live wire e dead wire a um fio com e sem electricidade, ou positivo e negativo. (N. do
T.)
Compare-se com a admirável página 310 na obra de S. H. Hodgson, Time and Space, Londres, 1865.
Compare-se com o ensaio de Wilfrid Ward, «The Wish to Believe», no seu Witness to the Unseen,
McMillan & Co., 1893.
Como a crença se mede pela acção, quem nos proíbe de acreditar na verdade da religião, proíbe-nos
também necessariamente de agir como deveríamos se acreditássemos na sua verdade. Toda a defesa da fé
religiosa depende da acção. Se a acção exigida ou inspirada pela hipótese religiosa não for de modo
algum diferente da que é ditada pela hipótese naturalista, a fé religiosa é uma pura superfluidade, que é
melhor podar, e a controvérsia acerca da sua legitimidade é uma frivolidade, indigna de mentes sérias.
Eu próprio acredito, obviamente, que a hipótese religiosa dá ao mundo uma expressão que determina
especificamente as nossas reacções, e as torna em grande parte diferentes daquilo que podiam ser num
esquema de crença puramente naturalista.
Liberty, Equality, Fraternity, p. 353, 2.ª edição, Londres, 1874.
4. Será a crença em Deus apropriadamente básica?

Alvin Plantinga

Muitos filósofos têm apelado à objecção indiciarista à crença teísta; argumentam que a crença em Deus é
irracional ou irrazoável ou racionalmente inaceitável ou intelectualmente irresponsável ou noeticamente
inferior, porque, segundo afirmam, os indícios a favor desta crença são insuficientes.11 Muitos outros
filósofos e teólogos — em particular os que se inserem na grande tradição da teologia natural — afirmam
que a crença em Deus é intelectualmente aceitável, mas apenas pelo facto de haver indícios suficientes a
seu favor. Estes dois grupos unem-se na defesa de que a crença teísta só é racionalmente aceitável se
houver indícios suficientes a seu favor. Mais exactamente, defendem que uma pessoa só é racional ou
razoável em aceitar a crença teísta se dispuser de indícios suficientes a favor dessa crença — isto é, só
se a pessoa conhece ou crê racionalmente noutras proposições que sustentam a proposição em causa, e
acredita na última com base nas primeiras. Em «Is Belief in God Rational?» argumentei que a objecção
indiciarista enraíza no fundacionalismo clássico, uma imagem muitíssimo popular ou uma perspectiva
total acerca da fé, do conhecimento, da crença justificada, da racionalidade e de tópicos relacionados.
Esta imagem tem sido amplamente aceite desde Platão e Aristóteles; as suas familiares próximas
continuam talvez a ser os modos dominantes de pensar acerca destes tópicos. Podemos imaginar o
fundacionalista clássico a começar com a observação de que algumas das nossas crenças se podem
basear noutras; pode dar-se o caso de haver um par de proposições A e B tal que acredito em A com base
em B. Embora não seja fácil caracterizar esta relação de uma maneira reveladora e intrivial, é ainda
assim familiar. Acredito que a palavra «umbroso» se soletra u-m-b-r-o-s-o: esta crença baseia-se noutra
crença minha: a crença de que é assim que o dicionário mostra como se soletra. Acredito que 72 × 71 =
5112. Esta crença baseia-se em diversas outras crenças que tenho: que 1 × 72 = 72; 7 × 2 = 14; 7 × 7 =
49; 49 + 1 = 50; e outras. Contudo, há crenças que aceito, mas não com base em quaisquer outras.
Chamemos-lhes «básicas». Acredito que 2 + 1 = 3, por exemplo, e não o acredito com base noutras
proposições. Também acredito que estou sentado à minha secretária e que tenho uma ligeira dor no joelho
direito. Também estas são básicas para mim; não acredito nelas com base em quaisquer outras
proposições. Segundo o fundacionalista clássico, algumas proposições são apropriadamente ou
adequadamente básicas relativamente a uma pessoa e outras não. As que não são, só são racionalmente
aceites com base em indícios, em que os indícios se têm de reportar, em última análise, ao que é
apropriadamente básico. A existência de Deus, além disso, não está entre as proposições que são
apropriadamente básicas; pelo que uma pessoa só é racional ao aceitar a crença teísta se tiver indícios a
seu favor.
Ora, muitos pensadores e teólogos reformistas12 rejeitaram a teologia natural (concebida como a
tentativa de fornecer provas ou argumentos a favor da existência de Deus). Não só afirmaram que os
argumentos apresentados não são bons, mas que toda a empresa está, de alguma maneira, radicalmente
equivocada. Em «The Reformed Objection to Natural Theology» (Proceedings of the American Catholic
Philosophical Association, 1980), argumento que se interpreta melhor a objecção reformista à teologia
natural como uma rejeição incipiente e imprecisa do fundacionalismo clássico. O que estes pensadores
reformistas realmente têm em mente sustentar, penso, é que a crença em Deus não tem de se basear, de
todo em todo, em argumentos ou indícios dados por outras proposições. Têm em mente sustentar que o
crente está inteiramente no seu direito intelectual ao acreditar do modo como o faz, mesmo que não
conheça qualquer bom argumento teísta (dedutivo ou indutivo), mesmo que não acredite que haja
qualquer argumento desse género, e mesmo que não haja de facto qualquer argumento assim. Defendem
que é perfeitamente racional aceitar a crença em Deus sem que o façamos sequer com base em quaisquer
outras crenças ou proposições. Numa palavra, defendem que a crença em Deus é apropriadamente
básica. Neste ensaio tentarei desenvolver e defender esta posição.
Mas primeiro temos de ganhar uma compreensão mais profunda da objecção indiciarista. É
importante ver que se trata de uma discussão normativa. O objector indiciarista defende que quem aceita
a crença teísta é de alguma maneira irracional ou noeticamente inferior. Aqui deve-se entender
«racional» e «irracional» como termos normativos ou avaliativos; segundo o objector, o teísta não
consegue satisfazer um cânone ao qual se deveria conformar. No que diz respeito às crenças, como no
que diz respeito às acções, há um procedimento correcto e um incorrecto; temos deveres,
responsabilidades, obrigações a respeito das primeiras, tal como no que diz respeito às segundas. Assim,
segundo o Professor Blanshard:

[…] em todo o lado e sempre a crença tem um aspecto ético. Há uma ética geral do intelecto.
Defendo que o princípio fundamental dessa ética é o mesmo na religião e fora dela. Este princípio é
simples e arrebatador: faça corresponder o assentimento aos indícios. (Brand Blanshard, Reason
and Belief. Londres: Allen & Unwin, 1974, p. 401.)

Pode-se interpretar de diferentes modos esta «ética do intelecto»; muitas questões fascinantes — nas
quais temos de nos abster de entrar — surgem quando tentamos formular mais precisamente as diversas
opções que o indiciarista pode querer adoptar. Inicialmente parece defender que há um género de dever
ou obrigação de não aceitar sem indícios proposições como a que afirma que Deus existe — dever
desprezado pelo teísta que não dispõe de indícios. Se não dispõe de indícios, então tem o dever de
suspender a crença. Mas há uma dificuldade frequentemente apontada: as nossas crenças, na sua maioria,
não estão directamente sob o nosso controlo. Maioritariamente, quem acredita em Deus não consegue
despojar-se dessa crença apenas tentando fazê-lo, tal como não conseguiriam dessa maneira livrar-se da
crença de que o mundo existe há muito tempo. Pelo que talvez a obrigação relevante não seja a de
despojar-me da crença teísta se não disponho de indícios (isso está para lá do meu poder), mas a de
tentar cultivar o género de hábitos intelectuais que tendem (esperamos) a fazer-me aceitar como básicas
apenas as proposições que são apropriadamente básicas.
Talvez se deva conceber esta obrigação teleologicamente: é uma obrigação moral que surge de uma
conexão entre determinados bens e males intrínsecos e a maneira como as nossas crenças se formam e
sustentam. (W. K. Clifford parece interpretar desta a maneira a questão.) Talvez se deva conceber
areteticamente: há estados noéticos ou intelectuais valiosos (sejam intrínseca ou extrinsecamente
valiosos); há também virtudes intelectuais correspondentes, hábitos de agir de maneira a promover e
melhorar tais estados virtuosos. Entre as nossas obrigações, portanto, está o dever de tentar promover e
cultivar estas virtudes em nós ou noutros. Ou talvez se deva conceber deontologicamente: esta obrigação
cabe-nos apenas em virtude de termos o género de equipamento noético que os seres humanos de facto
exibem; não surge de uma conexão com estados de coisas valiosos. Tal obrigação, além disso, podia ser
um género especial de obrigação moral; por outro lado, talvez seja uma obrigação amoral sui generis.
Mais ainda, talvez o indiciarista não tenha de falar aqui em dever ou obrigação de todo em todo.
Considere-se alguém que acredite que Vénus é menor do que Mercúrio, não porque tenha indícios de
qualquer género, mas porque acha divertido sustentar uma crença que ninguém mais sustenta — ou
considere-se alguém que defende esta crença com base num qualquer argumento escandalosamente mau.
Talvez não haja qualquer obrigação que ele não tenha cumprido. Não obstante, a sua condição intelectual
é de algum modo imperfeita; ou então, talvez, haja uma excelência comummente alcançada que ele é
incapaz de exibir. E a objecção indiciarista à crença teísta, portanto, pode ser compreendida não como a
afirmação de que o teísta que não dispõe de indícios não cumpriu uma obrigação, mas como a afirmação
de que o teísta sofre de um determinado género de imperfeição intelectual (de modo que a atitude
apropriada a adoptar quanto a ele seria a compaixão e não a censura).
Estas são algumas das formas, portanto, de desenvolver a objecção indiciarista; e evidentemente há
ainda outras possibilidades. Para facilidade de exposição, tomemos a afirmação deontologicamente; o
que direi aplicar-se-á, mutatis mutandis, se o tomarmos de uma das outras maneiras. A objecção
indiciarista, portanto, pressupõe uma perspectiva acerca de que género de proposições se aceita correcta,
devida ou justificadamente como básicas; pressupõe uma perspectiva acerca do que é apropriadamente
básico. E a afirmação minimamente relevante para o objector indiciarista é que a crença em Deus não é
apropriadamente básica. Tipicamente, esta objecção enraíza numa forma de fundacionalismo clássico,
segundo a qual uma proposição p é apropriadamente básica para uma pessoa S se, e só se, p é ou auto-
evidente ou incorrigível para S (fundacionalismo moderno) ou, alternativamente, se é ou auto-evidente ou
«evidente sensorialmente» para S (fundacionalismo antigo e medieval). Em «Is Belief in God Rational?»
argumentei que ambas as formas de fundacionalismo são auto-referencialmente incoerentes e têm,
portanto, de ser rejeitadas.
Enquanto a objecção indiciarista enraizar no fundacionalismo clássico, estará efectivamente mal
fundada: e tanto quanto sei, ninguém desenvolveu e articulou qualquer outra razão para supor que a
crença em Deus não é apropriadamente básica. Claro que não se segue que é apropriadamente básica;
talvez a classe das proposições apropriadamente básicas seja mais lata do que supõem os
fundacionalistas clássicos, mas ainda assim não lata o suficiente para admitir a crença em Deus. Mas
porquê pensar assim? Quais poderiam ser as objecções à perspectiva reformista, de que a crença em
Deus é apropriadamente básica?
Já ouvi argumentar que se não tenho quaisquer indícios a favor da existência de Deus, então se aceito
aquela proposição, a minha crença será infundada, ou gratuita ou arbitrária. Penso que isto é um erro;
permita-se-me que explique.
Suponha-se que consideramos as crenças perceptivas, crenças de memória e crenças que atribuem
estados mentais a outras pessoas: crenças como

1. Vejo uma árvore,


2. Tomei o pequeno-almoço esta manhã, e
3. Aquela pessoa está zangada.

Embora as crenças deste género sejam típica e apropriadamente aceites como básicas, seria um erro
descrevê-las como infundadas. Ao ter uma experiência de certo género, acredito que estou a
percepcionar uma árvore. No caso típico não adopto esta crença com base noutras; ainda assim não é
infundada. O facto de ter uma experiência daquele género característico — usando a linguagem do
Professor Chisholm, o aparecer-me arbóreo — desempenha um papel crucial na formação e justificação
dessa crença. Podemos dizer que esta experiência, juntamente, talvez, com outras circunstâncias, é o que
me dá justificação para a adoptar; este é o fundamento da minha justificação, e, por extensão, o
fundamento da própria crença.
Se vejo alguém exibir um comportamento típico de dor, depreendo que a pessoa está com dores. Mais
uma vez, não aceito o comportamento exibido como um indício a favor dessa crença; não infiro essa
crença a partir de outras crenças que tenho; não a aceito com base noutras crenças. Ainda assim, o facto
de percepcionar o comportamento de dor desempenha um papel único na formação e justificação dessa
crença; como no caso anterior, constitui o fundamento da minha justificação para a crença em causa. O
mesmo se aplica às crenças de memória. Parece que me recordo de tomar o pequeno-almoço esta manhã;
isto é, tenho uma inclinação para acreditar na proposição segundo a qual tomei o pequeno-almoço,
juntamente com uma experiência com sabor a passado, que a todos é familiar, mas difícil de descrever.
Talvez devêssemos dizer que as coisas me aparecem preteritamente; mas talvez isto distinga
insuficientemente a experiência em causa daquelas crenças concomitantes acerca do passado que não se
fundam na minha própria memória. A fenomenologia da memória é um domínio rico e inexplorado; não
disponho aqui de tempo para a explorar. Neste como noutros casos, todavia, verifica-se uma
circunstância justificante, uma condição que constitui o fundamento da minha justificação para aceitar a
crença de memória em causa.
Em cada um destes casos se aceita uma crença como básica, e em cada caso se a aceita
apropriadamente como básica. Há em cada caso uma circunstância ou condição que confere a
justificação; há uma circunstância que serve como o fundamento da justificação. Pelo que em cada caso
haverá uma proposição verdadeira do género:

4. Na condição C, S tem justificação para aceitar p como básica.

Claro que C variará com p. Para um juízo perceptivo como

5. Vejo uma parede cor-de-rosa à minha frente.

C incluirá o aparecer-me de certa maneira. Sem dúvida que C incluirá mais. Se algo me aparece da
maneira habitual, mas sei que estou a usar óculos cor-de-rosa, ou que sofro de uma doença que causa o
aparecer-me assim, independentemente da cor dos objectos próximos, então não tenho justificação para
aceitar 5 como básica. De igual modo para a memória. Suponha-se que sei que a minha memória não é
fiável; que me prega frequentemente partidas. Em particular, quando pareço recordar-me de ter tomado o
pequeno-almoço, então, não raro, não tomei o pequeno-almoço. Sob estas condições, não tenho
justificação para aceitar como básica a crença de que tomei o pequeno-almoço, embora pareça recordar-
me de que tomei.
Pelo que aparecer-me da maneira apropriada, no caso perceptivo, não é suficiente para dar
justificação; uma condição ulterior — difícil de explicar detalhadamente — é claramente necessária. O
aspecto central aqui, contudo, é que uma crença só é apropriadamente básica em determinadas condições;
estas condições são, digamos, o fundamento da sua justificação e, por extensão, o fundamento da própria
crença. Neste sentido, as crenças básicas não são, ou não são necessariamente, crenças infundadas.
Pode-se afirmar coisas similares a propósito da crença em Deus. Quando os reformistas afirmam que
esta crença é apropriadamente básica, não pretendem, evidentemente, afirmar que não há circunstâncias
justificantes para essa crença, ou que nesse sentido é infundada ou gratuita. Muito pelo contrário. Calvino
defende que Deus «se revela e mostra diariamente a toda a construção do universo», e a arte divina
«revela-se na inumerável e, no entanto, distinta e bem ordenada variedade da multidão celestial». Deus
criou-nos de tal maneira que temos uma tendência ou disposição para ver a sua mão no mundo à nossa
volta. Mais precisamente, há em nós uma disposição para acreditar em proposições do género: esta flor
foi criada por Deus ou este universo vasto e intricado foi criado por Deus quando contemplamos a flor
ou observamos os céus estrelados ou pensamos nos vastos recantos do universo.
Calvino reconhece, pelo menos implicitamente, que esta disposição pode ser despoletada por
condições de outro género. Ao ler a Bíblia, pode-se ficar impressionado com o profundo sentido de que
Deus nos fala. Depois de fazer o que considero reles, ou imoral ou malévolo, posso sentir-me culpado
aos olhos de Deus e formar a crença Deus desaprova o que fiz. Ao confessar-me e arrepender-me, posso
sentir-me perdoado formando a crença Deus perdoa-me o que fiz. Uma pessoa em grave perigo pode
voltar-se para Deus, pedindo-lhe protecção e ajuda; e claro que ele ou ela formará então a crença de que
Deus é de facto capaz de ouvir e ajudar se o considerar apropriado. Quando a vida é doce e gratificante,
um sentido espontâneo de gratidão pode ascender na alma; alguém nesta condição pode agradecer e
louvar o Senhor pela sua bondade e formará evidentemente a crença concomitante de que na verdade há
que agradecer ao Senhor e louvá-lo.
Há, portanto, muitas condições e circunstâncias que evocam a crença em Deus: culpa, gratidão,
perigo, a sensação da presença de Deus, um sentimento de que Deus fala, a percepção de diversas partes
do universo. Um trabalho completo explorará a fenomenologia de todas estas condições e de outras.
Trata-se de um tópico vasto e importante; mas aqui posso apenas indicar a existência destas condições.
Claro que nenhuma das crenças que mencionei ainda há pouco é a crença simples de que Deus existe.
O que temos, ao invés, são crenças como

6. Deus fala-me,
7. Deus criou tudo isto,
8. Deus desaprova o que fiz,
9. Deus perdoa-me, e
10. Há que agradecer a Deus e louvá-lo.

Estas proposições são apropriadamente básicas nas circunstâncias adequadas. Mas é bastante consistente
com isto supor que a proposição há uma pessoa que é Deus nem é apropriadamente básica nem é aceite
como básica por quem acredita em Deus. Talvez o que aceitam como básico sejam proposições como as
de 6 a 10, acreditando na existência de Deus com base em proposições como aquelas. Deste ponto de
vista, não é exactamente correcto afirmar que é a crença em Deus que é apropriadamente básica; mais
exactamente, são proposições como as de 6 a 10 que são apropriadamente básicas, cada uma das quais
implica auto-evidentemente que Deus existe. Não é a proposição relativamente de ordem superior e geral
Deus existe que é apropriadamente básica, mas, ao invés, proposições que discriminam alguns dos seus
atributos e acções.
Suponha-se que regressamos à analogia entre a crença em Deus e a crença na existência de objectos
perceptuais, de outras pessoas e do passado. Também aqui se trata de proposições relativamente
específicas e concretas, em vez das suas companheiras mais gerais e abstractas, que são apropriadamente
básicas. Talvez itens como

11. Há árvores,
12. Há outras pessoas, e
13. O mundo existe há mais de 5 minutos.

não sejam de facto apropriadamente básicas; sendo, ao invés, proposições como

14. Vejo uma árvore,


15. Aquela pessoa está contente, e
16. Tomei o pequeno-almoço há mais de uma hora,

que merecem tal reconhecimento. Claro que proposições do último género implicam imediata e auto-
evidentemente proposições do género anterior; e talvez não haja assim mal em falar nas anteriores como
apropriadamente básicas, ainda que isso seja falar sem grande exactidão.
O mesmo tem de se afirmar acerca da crença em Deus. Podemos afirmar, grosso modo, que a crença
em Deus é apropriadamente básica; estritamente falando, contudo, não é provavelmente essa proposição,
mas proposições como as de 6 a 10 que gozam desse estatuto. Mas a ideia fundamental aqui é que a
crença em Deus ou as de 6 a 10 são apropriadamente básicas; afirmá-lo, contudo, não é negar que haja
circunstâncias justificantes para estas crenças, ou condições que conferem justificação a quem as aceita
como básicas. Não são, consequentemente, infundadas ou gratuitas.
Uma segunda objecção, que ouço frequentemente: se a crença em Deus é apropriadamente básica, por
que não pode qualquer crença ser apropriadamente básica? Não podemos afirmar o mesmo acerca de
qualquer aberração bizarra que nos ocorresse? E quanto ao vudu e à astrologia? E quanto à crença de que
a Grande Abóbora regressa em todos os dias das bruxas? Poderia eu aceitar essa crença como básica? E
se não posso, por que posso aceitar apropriadamente a crença em Deus como básica? Suponhamos que
acredito que se agitar os braços com vigor suficiente posso descolar e voar à volta da sala; poderia
defender-me da acusação de irracionalidade afirmando que esta crença é básica? Se afirmamos que a
crença em Deus é apropriadamente básica, não estaremos comprometidos a defender que qualquer coisa,
ou quase, pode ser apropriadamente aceite como básica, escancarando assim a porta ao irracionalismo e
à superstição?
Certamente que não. O que nos poderia levar a pensar que o epistemólogo reformista se encontra
neste tipo de dificuldade? O facto de rejeitar os critérios para a basicidade apropriada fornecidos pelo
fundacionalismo clássico? Mas porquê pensar que isso o compromete com tal tolerância perante a
irracionalidade? Considere-se uma analogia. Nos dias felizes do positivismo, os positivistas andavam
confiantemente de um lado para o outro, brandindo o seu critério de verificabilidade e declarando sem
sentido muitas coisas que obviamente tinham sentido. Suponha-se agora que alguém rejeitou uma
formulação desse critério — a que se encontra na segunda edição da obra de A. J. Ayer, Linguagem,
Verdade e Lógica, por exemplo. Significará isso que a pessoa se compromete a defender que

17. Estava abrásigo; e os viscágeis xugaios moinhavam e esfuavam no ensouteiro.

ao contrário do que parece, tem sentido? Claro que não. Mas nesse caso o mesmo se aplica ao
epistemólogo reformista; o facto de rejeitar o critério da basicidade apropriada do fundacionalista
clássico não significa que está obrigado a supor que qualquer coisa é apropriadamente básica.
Mas qual é então o problema? Será porque o epistemólogo reformista não só rejeita aqueles critérios
para a basicidade apropriada, como não parece sentir qualquer urgência de apresentar aquilo que
considera um melhor substituto? Se não tem qualquer critério semelhante, como pode rejeitar
honestamente a crença na Grande Abóbora como apropriadamente básica?
Esta objecção trai um importante erro de perspectiva. Como chegamos correctamente a critérios de
significado, ou crença justificada, ou basicidade apropriada? De onde vêm? Será que temos de ter tal
critério antes de podermos sensatamente fazer quaisquer juízos — positivos ou negativos — acerca da
basicidade apropriada? Seguramente que não. Suponhamos que não conheço um substituto satisfatório
para os critérios propostos pelo fundacionalismo clássico; estou, não obstante, inteiramente no meu
direito ao defender que determinadas proposições não são apropriadamente básicas em determinadas
condições. Algumas proposições parecem auto-evidentes quando na verdade não são; é essa a lição de
alguns dos paradoxos de Russell! Não obstante, seria irracional aceitar como básica a negação de uma
proposição que nos parece auto-evidente. De igual modo, suponha que lhe parece ver uma árvore; seria
então irracional aceitar como básica a proposição segundo a qual não vê uma árvore; ou de que não há
quaisquer árvores. Da mesma maneira, ainda que não conheça qualquer critério de significado
esclarecedor, posso declarar bastante apropriadamente que 17, acima, não significa coisa alguma.
E isto levanta uma importante pergunta — que Roderick Chisholm nos ensinou a fazer. Qual é o
estatuto dos critérios para o conhecimento, ou basicidade apropriada, ou crença justificada? Tipicamente,
são afirmações universais. O critério fundacionalista moderno para a basicidade apropriada, por
exemplo, é duplamente universal:

18. Para qualquer proposição A e pessoa S, A é apropriadamente básica para S se, e só se, A é
incorrigível para S ou auto-evidente para S.

Mas como se pode saber tal coisa? Quais são as suas credenciais? Sem sombra de dúvida, 18 não é auto-
evidente ou apenas obviamente verdadeira. Mas se não é, como se chega a ela? De que género são os
argumentos apropriados? Claro que um fundacionalista pode achar 18 tão atraente que simplesmente a
aceita como verdadeira, nem apresentando argumentos a seu favor, nem a aceitando com base noutras
coisas em que acredita. Se o faz, todavia, a sua estrutura noética será auto-referencialmente incoerente.
Em si, 18 nem é auto-evidente nem é incorrigível; daí que ao aceitar 18 como básica o fundacionalista
moderno viole a condição da basicidade apropriada que ele próprio estabeleceu ao aceitá-la. Por outro
lado, talvez o fundacionalista tente apresentar algum argumento a seu favor a partir de premissas que são
auto-evidentes ou incorrigíveis: é extremamente difícil ver, todavia, como poderia ser tal argumento. E
até que o fundacionalista apresente algum argumento, o que farão os restantes de nós — que não
consideramos 18 óbvia ou convincente, de todo em todo? Como pode o fundacionalista usar 18 para nos
mostrar que a crença em Deus, por exemplo, não é apropriadamente básica? Por que acreditaríamos em
18, ou lhe daríamos qualquer atenção?
O facto é que, penso, nem 18 nem qualquer outra condição esclarecedora necessária e suficiente para
a basicidade apropriada se segue de premissas claramente auto-evidentes através de argumentos
claramente aceitáveis. E assim a maneira apropriada de chegar a tal critério é, grosso modo, indutiva.
Temos de reunir exemplos de crenças e condições tais que as primeiras sejam, de uma maneira óbvia,
apropriadamente básicas sob as segundas, e exemplos de crenças e condições tais que as primeiras, de
uma maneira óbvia, não sejam apropriadamente básicas sob as segundas. Temos então de enquadrar
hipóteses quanto às condições necessárias e suficientes da basicidade apropriada e testar estas hipóteses
por referência àqueles exemplos. Sob condições adequadas, por exemplo, é claramente racional acreditar
que o leitor vê uma pessoa humana à sua frente: um ser que tem pensamentos e sentimentos, que conhece e
acredita, que toma decisões e age. É evidente, além disso, que o leitor não tem qualquer obrigação de
defender argumentativamente esta crença a partir de outras que tem; sob aquelas condições, essa crença é
apropriadamente básica para si. Mas então 18 tem de estar errada; a crença em questão, sob essas
circunstâncias, é apropriadamente básica, embora não seja auto-evidente nem incorrigível para o leitor.
De igual modo, talvez pareça recordar-se de ter tomado o pequeno-almoço esta manhã, e talvez
desconheça qualquer razão para supor que a sua memória lhe prega partidas. Sendo assim, tem toda a
justificação para aceitar essa crença como básica. Claro que não é apropriadamente básica à luz dos
critérios dados pelos fundacionalistas clássicos; porém, esse facto não conta contra si, mas contra
aqueles critérios.
Em conformidade, tem de se obter os critérios para a basicidade apropriada a partir de baixo e não a
partir de cima; não se os devia apresentar como ex cathedra, mas sujeitos à argumentação e ao teste por
um conjunto relevante de exemplos. Mas não há razão para supor, antecipadamente, que todos irão
concordar com os exemplos. O cristão irá com certeza supor que a crença em Deus é inteiramente
apropriada e racional; se não aceita esta crença com base noutras proposições, concluirá que é básica
para si, bastante apropriadamente. Os seguidores de Bertrand Russell e de Madelyn Murray O’Hare
podem discordar, mas como será isso relevante? Terão os meus critérios, ou os da comunidade cristã, de
conformar-se aos seus exemplos? Certamente que não. A comunidade cristã é responsável pelo seu
conjunto de exemplos, não do deles.
Em conformidade, o epistemólogo reformista pode defender apropriadamente que a crença na Grande
Abóbora não é apropriadamente básica; apesar de defender que a crença em Deus é apropriadamente
básica e apesar de não ter qualquer critério, com pernas para andar, da basicidade apropriada. Claro que
está comprometido com o pressuposto de que há uma diferença relevante entre a crença em Deus e a
crença na Grande Abóbora, se defende que a primeira é apropriadamente básica, mas não a segunda. Mas
isto não deverá ser um grande constrangimento; há bastantes candidatos. Estes candidatos encontram-se
na proximidade das condições que mencionei na última secção, que justificam e fundamentam a crença
em Deus. Assim, por exemplo, o epistemólogo reformista pode concordar com Calvino na afirmação de
que Deus implantou em nós uma tendência natural para ver a sua mão no mundo à nossa volta; o mesmo
não se pode afirmar da Grande Abóbora; não existindo qualquer Grande Abóbora nem qualquer
tendência natural para aceitar crenças acerca da Grande Abóbora.
Em jeito de conclusão, portanto: ser auto-evidente ou incorrigível, ou evidente sensorialmente, não é
uma condição necessária da basicidade apropriada. Além disso, quem defende que a crença em Deus é
apropriadamente básica não está por isso comprometido com a ideia de que a crença em Deus é
infundada ou gratuita ou que não tem circunstâncias justificantes. E mesmo que careça de um critério
geral para a basicidade apropriada, não está obrigado a supor que qualquer crença ou quase — a crença
na Grande Abóbora, por exemplo — é apropriadamente básica. Como toda a gente o devia fazer, começa
com exemplos; e pode aceitar a crença na Grande Abóbora como um paradigma da crença irracional
básica.
Ver, por exemplo, Brand Blanshard, Reason and Belief (Londres: Allen & Unwin, 1974), pp. 400 ss, W.
K. Clifford, «A Ética da Crença» (Cap. 2 deste volume), A. G. N. Flew, The Presumption of Atheism
(Londres: Pemberton Publishing Co., 1976), p. 22, Bertrand Russell, «Why I am not a Christian», in Why
I am Not a Christian (Nova Iorque: Simon & Schuster, 1957), pp. 3 ss. e Michael Scrivin, Primary
Philosophy (Nova Iorque: McGraw-Hill, 1966), pp. 87 ss. Em «Is Belief in God Rational?» in
Rationality and Religious Belief, org. C. Delaney (Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1979),
considero e rejeito a objecção indiciarista à crença teísta.
Um pensador ou teólogo reformista é alguém intelectualmente afecto à tradição protestante que remonta a
João Calvino (e não alguém que foi anteriormente teólogo e que depois viu a luz).
Origem dos ensaios

«A Ética da Crença» é a tradução de «The Ethics of Belief», originalmente publicado em


Contemporary Review, Janeiro de 1877. O texto foi retirado de The Ethics of Belief and Other
Essays, de W. K. Clifford (Amhest, NY: Prometheus Books, 1999) e confrontado com a edição
organizada por Leslie Stephen e Sir Frederick Pollock, publicada em Londres em 1901 (Vol. 2, pp.
163–205).
«A Vontade de Acreditar» é a tradução de «The Will to Believe», palestra apresentada aos Clubes
Filosóficos das Universidades de Yale e Brown. Publicada originalmente em New World, Junho de
1896. O texto foi retirado de Writings: 1878–1899, de William James (Nova Iorque, NY: The
Library of America, 1992, segunda impressão). Esta cuidada edição foi preparada por Gerald E.
Myers, baseando-se na edição crítica da Harvard University Press das obras de James, corrigindo
alguns erros que nela se encontram.
«Será a Crença em Deus Apropriadamente Básica?» é a tradução de «Is Belief in God Properly
Basic?» (Noûs, Vol. 15, N.º 1, 1981, pp. 41–51), publicada aqui com a autorização do autor.
Leituras recomendadas

Adams, R. M. (1987) The Virtue of Faith and Other Essays in Philosophical Theology. Oxford:
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Cornell University Press.
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Responsibility. Oxford: Oxford University Press, 2001.
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Expressões estrangeiras

Ad extorquendum assensum meum — Que me obrigue ao assentimento


Adequatio intellectus nostri cum re — Adequação do intelecto à coisa
Aptitudinem ad extorquendum certum assensum — Aptidão para extrair assentimento certo
Cela vous fera croire et vous abêtira — Isso vos fará crer e vos embotará
Consensus gentium — Consenso dos povos
Entitas ipsa — A entidade em si
Extorquendum assensum meum — Que me obrigue ao assentimento
Grenzbegriff — Conceito regulador
In foro conscientiae — No seu foro íntimo
Le coeur a ses raisons que la raison ne connaît point — O coração tem razões que a razão
desconhece
Mutatis mutantis — Mudando o que deve ser mudado
Naiveté — Ingenuidade
Quietem in cognitione — Tranquilidade cognitiva
Sui generis — Peculiar
Terminus a quo — Extremo inicial
Terminus ad quem — Extremo final
Sobre o organizador

Desidério Murcho é professor de filosofia na Universidade Federal de Ouro Preto (Brasil). É autor de
vários livros, destacando-se Essencialismo Naturalizado (2002), O Lugar da Lógica na Filosofia
(2003), Filosofia em Directo (2011), Sete Ideias Filosóficas que Toda a Gente Deveria Conhecer
(2011) e Todos os Sonhos do Mundo e Outros Ensaios (2016). Traduziu vários artigos e livros,
incluindo obras de George Orwell, Thomas Nagel, Bertrand Russell, Alvin Plantinga, Susan Wolf, W. O.
Quine, Nelson Goodman e Simon Blackburn. Fundou a revista Crítica e escreveu para o jornal Público.
Copyright

Copyright © 2010 Desidério Murcho e Editorial Bizâncio (compilação)


Copyright © 2010 Vítor Guerreiro e Editorial Bizâncio (tradução)

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Versão de 28 de Março de 2017


Imagem da capa de Ryan McGuire.

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