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Agradecimentos

Este livro n ã o foi feito atravé s d e a m p a r o , autorizaçã o o u orientaçã o d e


n e n h u m a instituição, ma s está distante de ser tarefa solitária de seu s autores , que , por
serem dois já tê m o nó s c o m o us o obrigatório . Em muitas passagens ,
entretanto , o nós abrange muit o mais pessoa s além do s doi s autores . A s
pessoa s a q u e m estamo s agradecendo aqui no s ensinaram , emprestara m sua
inteligência e energia ao noss o projeto, enxergara m caminho s q u e se ocultavam ,
criticaram estrutura, detalhes , estilo e referencial teórico.

Nosso s agradeciment o s sã o especialment e para:


Alfredo Jerusalinsk y (primeir o mestre , q u e no s instigou a pensa r sobr e a infância co n te m p or â ne a ) : APPOA
(porqu e o ofício da psicanálise sobreviv e graça s a lugare s com o esse) ; Contard o Calligaris (e m cujo pensament o
no s inspiramos) ; Ed a Estevanell Tavare s (qu e també m c onhec e o m u n d o da s fadas, po r idéias q u e incorporamo s
ao texto); Eduard o Mende s Ribeiro (po r estar nest e livro d es d e q u e ele era um a fantasia);
E.liana do s Reis Calligaris (pel a cumplicida d e fraterna, na teoria e na prática); Eva Susana e J u a n
Lichtenstein (interlocutore s incansáveis); Flávio Azeved o (po r ter sido amig o a p o nt o de ser sever o
co m noss o texto): J o ã o Carneiro e Nazareth Agra Hasse n (pel a força no m o m e n t o inicial); Jorg e
e Maria da Graça Falkembac h (pela leitura afetiva); Júlia Lichtenstein Corso (consultor a em J. K. Rowling
e em Maurício de Sousa, pela pesquisa das fontes em todo s os capítulo s e pela s hipótese s propostas) ;
Laura Lichtenstein Corso (entusiasta da Terra Média, por nos iniciar em Dorothy , Poo h e Harry
Potter e pela leitura crítica dos originais); Loraine Schuch (po r tratar curiosidade s de criança co m
seriedad e de gent e grande) ; Maria Ângela Brasil (cujo argument o foi definitivo para o início do
livro); Rosan e Monteiro Ramalh o (pela s questõe s meticulosas) ; Simon e Moschen Rickes (qu e mais de
um a vez ajudo u a pensa r as linhas mestras); Zinah Corso (po r ter conse guid o compartilha r a vida dest e
projeto).
Modos de Usar

O presente volume pode ser utilizado de vários modos. De acordo com as espectativas do
leitor, podemos sugerir diferentes métodos de abordagem.
ALEATÓRIO: para quem. se interessa por literatura e que r saber mais
sobre seus contos ou histórias preferidos. Nesse caso. sugerimo s qu e vá direto aos capitulos
qu e lhe
chamare m a atenção , se m preâmbulos . O livro p o d e ser perfeitamente lido em
ordem aleatória, nu m percurs o costurad o pelas narrativas qu e marcaram a memória de
cada um Para tanto, cada capítulo tem a estrutura de um ensaio, prop õ e
interpretações sobre personage n s e tramas, assim c o m o lança mã o do s conceitos
psicanalíticos qu e alicerçam
tais hipóteses. Visando a permitir esse tipo de leitura, cada element o teórico tratado e esclarecido na ocasião
em que surge. Há algun s casos em qu e remetemo s o leitor, qu e esteja em busca de alguma dimensã o
qu e requeira esclarecimentos, para outr o capítulo, mas normalment e cada história ou grup o de conto s encontra
um tratamento complet o e fechad o em si.
SISTEMÁTICO: q u e m está interessad o em c o m p r e e n d e r a infância, trabalh a co m criança s
ou estud a psicanálise, psicologia , psiquiatria , peda go gi a ou disciplina s afins, atravé s da leitura
contínua , encontrará , na primeira part e d o livro, um a espéci e d e roteir o d o de se n v ol vi m e n t o infantil,
ilustrado através do s conto s d e fadas. Nã o é u m m a n u a l d e psicologi a d o d e s e n v o l v i m e n t o , ma
s busc a apresenta r o tracadi inicial d o cresciment o de um a crianç a até a adolescênci a e seu s
co nt ra te m p o s , já q u e as historias oferecera m excelente s oportunidad e s par a apresenta r e ilustrar algun s
conceitos . A segu nd a part e do livro, se lida de m o d o continuado . suger e u m a interpretaç ã o da infância
c o n t e m p o r â n e a , ou seja, o q u e é ser crianç a e viver em família hoje. PARA TODOS: p e n s a m o s
noss o interlocutor imaginário c o m o uma pesso a q u e p o d e ser leiga, mas qu e
por razõe s de trabalho , paternidade , ou po r ser um curios o sobr e a alma hum ana , que r sabe r
mais sobr e as histórias infantis d e o nt e m e hoje. Apena s u m d o s capítulo s será d e leitura mai s
árdu a para algué m sem conheciment o s prévio s em psicanálise, psicologia ou literatura: o capítul o
XII, o n d e fazemos a crítica de um livro fundamenta l sobr e o assunto . Ali estã o as justificativas
teóricas e metodológica s dest e trabalho , assim com o o diálog o c o m ess e livro clássic o q u e n o s
serviu d e m o d el o . D e q u a l q u e r maneira , m e s m o ness e capítulo, busc a mo s a clareza, assim c o m o
tentamo s realizar um deba t e sobr e a cultura infantil moderna , seu s novos meio s e temáticas.
Aliás, se algu m fio tece u nossa narrativa, foi o da busc a cia leveza. Mesm o tratand o de tema s árduo s e ne
m sempr e agradáveis , fizemos o possível par a entrega r ao leitor o fio de Ariadne, para q u e o Minotauro da
chatice nã o no s devore.. .
Sumário

PREFACIO
A CRIANÇA E SEUS
NARRADORES
15
Maria Rita Kehl

APRESENTAÇÃO
21

PRIMEIRA PARTE -HISTÓRIAS CLÁSSICAS


25
Capítulo I
EM BUSCA DE UM
LUGAR
31
O Patinho Feio, Dumbo e Cachinhos Dourados
Capítulo II
EXPULSOS DO
PARAÍSO
41
João e Maria, O Lobo e os Sete Cabritinhos e O Flautista de Hamelin
Ca p í t u l o III
UM LOBO NO
CAMINHO
51
Chapeuzinho Vermelho, Dama Duende, João-Sem-Medo e Os Três Porquinhos
Cap ít u l o I V
A MÃE
POSSESSIVA
63
Rapunzel e A Fada da Represa do Moinho
Capítulo V
O DESPERTAR DE UMA
MULHER
75
A Jovem Escrava, Branca de Neve, A Bela Adormecida e Sol, Lua e Tália
Cap ít u l o V I
O PAI
INCESTUOSO
93
Bicho Peludo, Pele-de-Asno, A Ursa e Capa-de-Junco
Cap ít u l o VII
A MÃE, A MADRASTA E A MADRINHA
107
Cinderela e Cenerentola
Cap ít u l o VIII
PAPAI OGRO , FILHO LADRÃO
117
João e o Pé de Feijão
Ca p í t u l o I X
HISTÓRIAS DE AMOR I: QUEM AMA O FEIO, BONITO LHE PARECE
129
O Rei Sapo. A Bela e a Fera e O Príncipe Querido
Ca p í t u l o X
HISTÓRIAS DE AMOR II: AS METAMORFOSES
141
A Leste do Sol e a Oeste da Lua, O Carneiro Encantado,
O Lobo Branco. Cupido e Psique, A Pequena Sereia e Flans, o Ouriço
Ca p í t u l o XI
HISTÓRIAS DE AMOR III: FINAIS INFELIZES
151
Barba Azul. O Pássaro do Bruxo. Nariz de Prata e Av Três Folhas da Cobra
Ca p í t u l o XII
CONSIDERAÇÕES SOBRE O LIVRO:
A PSICANÁLISE DOS CONTOS DE FADAS ( de Brun o
Bettelheim) I6 1

SEGUNDA PARTE - HISTÓRIAS


CONTEMPORÂNEAS...................................................183
Ca p í t u l o XIII
A LÓGICA DA INFÂNCIA EM PROSA E VERSO
187
Winnie-the-Poob
Ca p í t u l o XIV
UM POR TODO S E TODO S EM UM
201
A 'Turma da Mônica
Capítulo XV
ERRAR É HUMANO
213
Pinocchio
Capítulo XVI
CRESCER OU NÃO CRESCER
227
Peter Pan e Wendy
Capítulo XVII
O PAI ILUSIONISTA 243
O Mágico de Oz

Capítulo XVIII
UMA ESCOLA MÁGICA
253
Harry Potter
Capítulo XIX
AS CRIANÇAS-ADULTO
269
Peanuts, Mafalda e Calvin
Anexo
GÊNESE E INTERPRETAÇÃO DE UM CONTO FAMILIAR
289
Vampi, o Vampiro Vegetariano (por Mário
Corso). Pais Suficientemente Narrativos
Conclusão
O VALOR DE UMA BOA HISTÓRIA
303
QUASE ÍNDICE
307

FONTES PRIMÁRIAS DE CONSULTA


311

BIBLIOGRAFIA TEÓRICA
313

ÍNDICE
317
Prefácio
A CRIANÇA E SEUS NARRADORES
Maria Rita Keh l

Uma infância são


ânsias
(Marilene Felinto)

Certo dia, a mãe de uma menina - Onde ponho meu avental?


mandou que ela levasse - Jogue no fogo. Você não vai precisar mais dele.
um pouco de pão e leite para Para cada peça de roupa (...) a menina
sua avó. Quando caminhava fazia a
pela floresta, um lobo mesma pergunta, e a cada vez o lobo respondia:
aproximou-se e perguntou-lhe - Jogue no fogo... (etc).
onde ia. Quando a menina se deitou na cama, disse-
- Ah. vovó! Como você é peluda!
- Para a casa da vovó. - É para me manter mais aquecida, querida.
- Por qual caminho, o dos alfinetes ou o das - Ah, vovó! Que ombros largos você tem!
agulhas? (etc, etc, nos moldes do diálogo conhecido,
- O das agulhas. até o clássico desfecho):
O lobo seguiu pelo caminho dos alfinetes e chegou - Ah, vovó! Que dentes grandes você
primeiro à casa. Matou a avó, despejou seu tem! É para comer melhor você,
sangue numa garrafa, cortou a carne em fatias querida.
e colocou numa travessa. Depois, vestiu sua roupa E ele a devorou!
de dormir e deitou-se na cama, à espera.
Pa, pam. Para nosso espanto, este conto recolhido
- Entre, querida. na França, por Charles Perrault, da tradição oral
- Olá, vovó. Trouxe um pouco de pão e leite. campo- nesa do século XVII, termina
- Sirva-se também, querida. Há carne e bruscamente aqui. O corajoso caçador, que viria
vinho na copa. A menina comeu o matar o lobo e resgatar com vida a pobre
que foi oferecido, enquanto um gatinho Chapeuzinho Vermelho e sua querida avó, não existe
dizia: "menina perdida! Comer a carne e beber o nesta versão. Não existe um final feliz, nem uma moral
sangue da avó!" da história. Seu objetivo original, afirma Robert
Então, o lobo disse: Darnton, não era o de prevenir as crianças a
- Tire a roupa e deite-se comigo. respeito dos perigos da desobediência aos pais
(na
Fada s n o Di v a — P s i c a n á l i s e n a s Hi st ó ri a s Infanti s

versã o m o d e r n a d o c o n to . C h a p e u z i n h o escolh concomitant e à criaçã o d e u m mund o


e o ca minh o o p os t o a o r e c o m e n d a d o po r sua p r ó p r i o d a crianç a e a o r e c o n h e c i m e n t o d e
mãe) , d e m o d o a protegê-la s do contat o u m a "psicologi a infantil", da qua l mais tard e a
precoc e co m a sexualidad e adulta . As narrativas psicanálise viria a se destaca r radicalmente .
popular e s européias , matrizes do s m o d e r n o s conto s Os autore s dest e Fadas no Divã, o casal
infantis2 que , a partir da s adaptaçõ e s feitas no Diana e Mário Corso, sabe m de tud o isso. Na linha
sécul o XIX, passara m a inte- grar a rica mitologia inaugurad a pe l o psicanalista austríac o Brun o
universal, n ã o aprese ntav a m a riquez a simbólica Bettelheim4, afirmam q u e a capacidad e d e
q u e faz do s conto s d e fadas u m de positári o d so br e vi vê n c i a d o s m e l h o r e s conto s d e fadas, q u
e significações inco nscient e s abert o à e continua m e n c a n t a n d o crianças da s geraçõe s do
interpretaçã o psicanalítica. Na verdade , eles n e m era m s c o m p ut ad or e s , videogame s e jogos d e RPG.
destinado s especificament e à s crianças, n e m parece c o n s i s t e e m s e u p o d e r d e si m b o liz a r e
m aliados a uma pedagogi a iluminista. "Longe de "resolver" o s conflitos psíquico s incon scient e s
oculta r su a mensage m co m símbolos , o s q u e aind a dize m respeit o às crianças de hoje. A
contadore s d e histórias do sécul o XVIII, na leitura da p e s q u i s a d e t a l h a d a e d eli ca d a q u e
França, retratavam um m u n d o de brutalidad e nua o casa l Cors o co n d u z ao long o dest e livro no s
e crua3 ", escrev e Robert Darnton . faz ver q u e o atual impéri o da s imagen s n ã o
A função das narrativas maravilhosas da retirou a força da s narrativas orais.
tradição oral poderia ser apena s a de ajudar os É provável q u e a s técnicas d e transmissã o
habitantes de aldeias camponesa s a atravessar as oral, q u e n a falta d e i m a ge n s visuai s a p e l a m
longa s noites de inverno. Sua matéria? Os perigos do a o p o d e r imaginativ o do s p e q u e n o s ouvintes ,
mu ndo , a crueldade, a morte, a fome. a violência do s sejam at é hoje c a p a z e s d e conecta r a s
ho men s e da natureza. O s conto s populare s p r é - criança s a o e l e m e n t o maravilhoso e à
m o d e r n o s talvez fizessem po u c o mais do q u e multiplicidade de sentidos q u e caracteriza m o
nomear os medos presente s no coraçã o de todos , mito em toda s as culturas e em toda s a s épocas
adulto s e crianças, qu e se reunia m em volta do fogo , formando , n a expr essã o d o s autores , u m
en q ua n t o os lobos uivavam lá fora, o frio recrudescia " a c e r v o c o m u m d e h i s t ó ri a s " a t r a v é s d o
e a fome era um espectr o capa z de ceifar a vida q u a l a h u m a n i d a d e re c on he c e a si mesma .
do s mais frágeis, mê s a mês . Nesse sentido , o s autores , q u e t a m b é m sã o
A s m oderna s versõe s do s conto s d e fadas, pais e c on ta d or e s d e histórias, tê m a sabed ori
qu e encantara m tant o nosso s antepassado s a d e nã o esgotar pela explicaçã o psicanalítica todo s
q u a n t o a s crianças de hoje, data m do sécul o XIX. os elemento s q u e c o m p õ e m a magia d o s conto s
São tributárias da criação da família nuclear e da d e fadas. Pudera : Dian a e Mário Cors o n ã o
invenção da infância tal c o m o a c o n h e c e mo s hoje. entrara m n o m u n d o da s histórias infantis po r pur o
Isto implicou: interesse intelectual; entrara m co n d uzi d o s pela s mão s
d e sua s du a s filhas. Por isso mes mo , sabe m o
1. a progressiva exclusão do s pe q ue n o s do q ua n t o é ingênu a a prete nsã o de se p r o p o r um a
m u n d o d o trabalho , n a m e di d a e m q u e a únic a chav e d e e n t e n d i m e n t o par a a s histórias,
Rev oluçã o Industrial criou espaço s de produçã o uma vez q u e a s crianças sabe m utilizar o s
separado s do espaç o familiar (o segund o era conto s à sua maneir a e segund o sua s
característico da s organizações do trabalho necessidades :
artesanal e campesino) ; "com o era usad o o mito na s sociedad e s antigas. (...)
2 . o s ideai s iluminista s e o s n o v o s c ód ig o s A criança é garimpeira , sempr e p r o c u r a n d o
civis trazidos pela s revoluçõe s burguesa s pepita s n o mei o d o cascalh o n u m e r o s o q u e lh e
passara m a reconhe ce r as crianças c o m o é servid o pela vida5". Além disso, c o m o
sujeitos, co m direito tant o a p ro te ç õe s legais psicanalistas, compartilha m da paixã o da
específica s q u a n t o a o r e c o n h e c i m e n t o d e um psicanálise pela fantasia, resolutiva de conflitos ,
a subjetividad e diferen • ciada d a d o s adultos . constituti v a d e i d e n t i d a d e s , criador a d e espaço
s psíquico s tã o reais e potente s q u an t o a dita
Assim, a infantilização da s narrativas tradicionais, realidad e da vida. Os psicanalistas leva m a
tra nsf or m a d as nos atuais " cont os de infância a sério. No cas o de Diana e Mário Corso , à
fadas", é paixã o pel o univers o infantil soma-s e o gost o literário
pelo s conto s

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D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s
o
publicitárias. Nossa s criança s continua m interessada s

d e fadas . Co m isso , o s a u t o r e s c u m p r e m a
mai s i m p o r t a n t e da s cinc o condiçõe s
proposta s p o r Fernando Pessoa par a um crítico
literário: a simpatia.

Tem o intérprete qu e sentir simpatia pelo


símbolo que se propõe interpretar. A atitude cauta,
irônica, a deslocada - todas elas privam o intérprete da
primeira condição para poder interpretar.6

Munidos d e indiscutível simpatia po r se u


objeto, na interface entr e a psicanálise e a literatura, os
autore s vêm contribuir co m a ousad a propost a de
pr ee n ch e r um vazio na área da crítica de
literatura infantil no Brasil.
Diana e Mário Cors o nã o sã o
tradicionalistas . Reconhecem que , nas últimas
décadas , o po d e r da s comunicaçõe s n o m u n d o
globalizad o acelero u u m trabalho de transmissão
de histórias qu e levou séculos d e tradiçã o oral , n
o O c i d e n t e . A e xt e n s a anális e apresentada neste
livro contempla , desd e os tradicionais contos d e fadas
coletado s n a Europ a pelo s irmão s Grimm e po r
Charles Perrault, até os atuais e cinemato • gráficos Harry
Potter, Turma da Mônica e O Senhor dos Anéis,
en c err a n d o c o m os herói s do s melhore s cartuns
contemporâneos : Mafalda, Peanuts e Calvin.
Segundo o s autores , d o p o n t o d e vista d o
ouvint e infantil, n ã o faz muita diferença se a história é
passad a o u contemporâne a . O s conto s qu e
aparentement e nã o correspondem a questõe s do m u n d o
atual interessam â criança, sempr e abert a a toda s
as possibilidade s da existência e capa z de identificar-
se co m as personagen s mais bizarras e as narrativas mais
extravagantes. Com o a criança aind a n ã o delimito u
as fronteiras entr e o existent e e o i m a g i n o s o ,
entr e o verdadeir o e o verossímil (fronteiras
estabelecida s , e m parte , pel o recalque da s
representaçõe s inconscientes) , todas as possibilidades
da linguagem lhe interessam para compo r o
repertório imaginário de qu e ela necessita para aborda r os
enigmas do m u n d o e do desejo.
Se algun s do s mistérios envolvido s na s
antigas narrativas maravilhosa s - os mistérios da
fertilidade, a d e p e n d ê n c i a h u m a n a e m r e l a ç ã o
ao s cic l o s d a natureza, o d es co n h eci m e n t o de
fenô meno s naturais, etc. - hoje p a r e c e m su p er a d o
s pel a tecnociênci a e pelo acess o q u e toda s as
crianças tê m à informaçã o televisiva, isto n à o
significa q u e a zon a estranhamente familiar da s
manifestaçõe s d o inconscient e tenh a s e reduzido
ao discurs o científico e à ousadi a da s imagen s
17
e m se u própri o univers o d e mistérios, q u e
sobreviv e à a p ar e nt e transparênci a da era das
com unica çõe s , co m se u imperativ o d e t u d o
mostrar, t u d o dizer, tud o exibir.
Mais, ainda : est e m u n d o q u e p r o p õ e trazer
toda a riqueza subjetiva para um a zon a de plen a
visibilidade p a r e c e convence r meno s a s
criança s d o qu e o s adolescente s e
a d u l t o s . A s c r i a n ç a s c o n t i n u a m interessada s
no mistério; se ele se e mp o br e c e , elas o
reinventam . D a mesm a forma, sã o fascinadas po r
tud o o q u e despert e nela s a vasta gam a de
sentimento s de m ed o . O m e d o é um a da s
semente s privilegiadas da fantasia e da invenção ;
gr a n d e parte del e prové m da s mes ma s fontes d o
mistério e d o sagrado . O m e d o p o d e ser p r o v o c a d o
pel a p e r c e p ç ã o d e noss a insignificância diant e do
Universo, da fugacidad e da vida. da s vastas zona
s sombria s d o d es c o nh ec i d o . E u m
sentiment o vital q u e no s proteg e do s riscos da
morte . Em tunçã o dele , desenvol ve mo s ta m bé m o
sentid o d a curiosidad e e a disposiçã o à coragem , qu
e supera m a mera função d e defes a d a
sobrevivência , poi s possibilita m a expansã o
da s pulsõe s d e vida.
As crianças procura m o m edo . As histórias
infantis inclue m sem pr e eleme nto s assustadore s
q u e ensina m os p e q u e n o s a c o nhece r e enfrentar o
med o . Curioso s e e xc ita d os , o s pequeno s
ex ig e m q u e o s a d u l t o s repita m várias veze s
a s passagen s mais amedronta - cloras do s
conto s de fadas. A madrasta malvada da
Branca de Neve é mais popula r do q u e os
b o n d o s o s anõezi nhos , assim com o a bruxa comedor a
d e crianças de João e Maria ou o t e n e b r o s o
Dart h Vader , do c o n t e m p o r â n e o Guerra nas
Estrelas.
Na primeira part e do livro, os autore s
analisam conto s infantis q u e conte mpla m o m e d
o d a agressivi- d a d e sexua l do s pai s
incestuos os , assi m com o d a rejeição
inconscient e d e alguma s mãe s po r sua s crias. O
tem a da s madrasta s invejosas e má s - em
Branca de Neve e Cinderela, po r exempl o
- interess a às crianças p o r q u e no meia m
indiretament e a rivalidade da s mãe s em relaçã o a
sua s filhas, q u e o mito da perfei- çã o do amo r matern o
obriga a recalcar. A sobrevivência d e diversa s
histórias d e a b a n d o n o da s crianças po r
mães/ ma drasta s egoístas, na linha de João e
Maria e Pequeno Polegar, indica q u e as criança s
querem saber d o s limites e d a ambivalênci a d o
a m o r mater no . A s o b r e v i v ê n c i a d e u m a d a s
história s infanti s mai s popular es , a saga d o
p o b r e patinh o feio expuls o d a convivênci a co m
o s irmão s b e m nascidos , indica, na s palavra s do
s autores , q u e tod a a criança c o n he c e a
Fada s n o Di v a - Psi c a ná l is e n a s H is tó ri a s Infant i s

experiênci a d e sentir-s e u m a "estranh a n o "a mort e imaginária da criança, pois esta sent e qu e
ni n ho " . Ouvir histórias é u m do s recurso s d e q u e só existe e nq u an t o sua palavra valer"7.
a s crianças dispõe m para desenha r o map a Talvez po r isso, o inesgotável potencial (re)criativo
imaginári o q u e indica seu lugar, na família e no abert o pelas narrativas infantis resida na sabedoria com
mundo. q u e apresenta m a função paterna , reduzid a ao
Histórias d e crianças q u e sae m o u sã o traço mínimo , indispensável, a partir do qual é a criança
expulsa s de suas casas, ou qu e perde m o rum o de quem tem qu e se encarrega r do resto do trabalho. O
volta depoi s de um passeio mais ousad o e se depara exempl o do Mágico de Oz é reto mad o co m muita
m co m perigos inimagináveis, funcionam com o sensibilidade pelo s autores , s e g u n d o os quai s a
antecipaçõe s qu e lhes permite m domina r o m e d o d o falta de magia do mago é o ponto mais mágico da
"mund o cruel" que , mais dia, me no s dia, terã o de história (o u do filme), poi s indica q u e o pai nã
enfrentar. Nestas incursõe s pel o m u n d o proibid o o é tã o p o d e r o s o quant o se esperava . Basta q u e
long e d a proteçã o familiar, o s melhore s conselho s seja "um h o m e m bom , mas u m ma u mágico " 8 ,
- com o os do Grilo Falante, da história de de m o d o a q u e a criança seja obrigada a re s ol v e
Pinóquio - existem para nã o ser obedecido s . De toda s r s o z i n h a o s p r o b l e m a s q u e a vid a lhe
estas, pens o qu e a soluçã o mais feliz e men o s moralista apresent a. Nesse sentido ta m b é m, as
é a de Peter P a n , meni n o qu e fugiu de casa i n ú m e r a s aventura s infantis q u e termina m c o m
exatament e par a perpetua r a utopi a d a um a volta para casa n ã o sã o tã o conservadora s c o m
infância , associada ã liberdade quas e sem limites qu e o p o d e m parecer. C o m o n a p e q u e n a novela d o
a fantasia permite. Com o observam os autores , em Bo m Leão, criada por Ernest He ming wa y ( q u e n ã o
Peter Pan, ao contrário da história de Pinóquio, o integra est e livro), aquel e qu e retorna à casa depoi s de
m u n d o da fantasia nã o é um desvio errado em relação uma longa aventura nunca será o m e s m o q u e um dia saiu
às norma s do m u n d o adulto: ele indica qu e a criança para con hece r o mundo . No entanto , a viagem de
precisa desejar crescer, para qu e isto aconteça. Por outr o iniciação necessária para
lado, a Terra do Nunca, ilha da utopia o n d e as q u e tod a a criança conquist e o m u n d o à su a
crianças nunc a crescem , nã o tem ne n h u m a maneira ne m sempr e leva para muit o long e de
semelhanç a co m o paraís o bíblico: o prazer d e casa. A análise d a sag a contemporâne a d e
habitá-la está ligado a o goz o d o perigo, d o med o e H ar r y P o tt e r revela , s e g u n d o o s autores , o
da aventura. Não interessa às crianças a fantasia de um pape l d a escola c o m o espaç o de transiçã o da
paraíso pacificado, sem conflitos. Elas desejam o infância para a adolescênci a - ou com o o luga r
medo , o praze r do mistério e do desafio, ao s o n d e é possíve l viver est e p e r í o d o q u a s e
quais responde m co m a máxima potênci a de suas impossível da vida, a chamad a pré-adolescência .
fantasias d e onipotência . No último capítul o de Fadas no Divã, o
De toda a gama de ameaça s e perigos qu e assolam e leitor será p re s en te a d o co m um a surpresa : um a
fascinam o m u n d o infantil, é important e destacar história qu e o pai-narrado r Mário Cors o criou
o desampar o das crianças diante da s fantasias inconscien• em parceri a co m sua s dua s filhas, hoje
tes do s pais, às quais estão particularmente adolescente s . C o m o toda s a s histórias d o gê n er o
exposta s pel o fato de serem, para elas, perigo s maravilhoso , esta t a m b é m conté m ele mento s
irrepresentáveis. Estes nã o se resume m às obscura s simbólico s q u e remonta m a questõe s sobr e a orige
fantasias incestuosas do s adultos ; engloba m també m m familiar da s menina s ( q u e nã o vo u antecipa r aqui
tod a um a gam a d e possibilidades de resposta à par a n ã o estragar o praze r do s leitores). Contar
pergunt a sobr e o sonh o parental: o qu e o Outr o história s n ã o é a p e n a s u m jeito d e da r
que r de mim? Pergunta cuja resposta é impossível de pr az e r à s crianças: é u m m o d o d e ampará-la s e m sua
ser atendida pela criança. Com o lembram Diana e Mário s angústias, ajudá-las a no mea r o q u e n ã o podi a
Corso, ao analisar a história de Pinóquio: a paternidad ser dito, amplia r o espaç o da fantasia e do pensamento
e é o sonh o de fazer de algué m a marionete de nosso : a ficção, escrev e C or s o , "acab a send o um a
s próprio s sonhos . E acrescenta m que , da posiçã o de saíd a p a r a q u e c er t a s verdade s s e imponham".
9
filhos, "somos o delicad o equilíbrio entre nã o encarna r
o qu e se esper a de nós, e (viver) levand o e m Contar histórias é ainda um a da s melhores maneiras
cont a ex at a m e nt e isso". Nesta balanç a precária, o de ocupa r o lugar geracional qu e cab e aos pais, junto a
adulto nã o p o d e vencer: sua vitória implicaria seu s filhos - lugar q u e os adultos hoje relutam em ocupar,
no afã de se conservar eternament e adolescentes .
Se cad a filho te m qu e reconta r a própria história à su a

18
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o Co r s o

maneira para fazê-la sua, os autores apresentam sua versão


particular do s pais suficientemente bons , de
Winnicott, como pais suficientemente narradores: estes
são capazes de tecer uma teia de sentido em torn o das
crianças, e ao m e s m o t e m p o deixá-l a in c o m pl et a
par a q u e esta s continue m a tarefa de produzi r
o romanc e familiar apropriado a suas pequena s
vidas.
A associaç ã o entr e os cui da d o s parentai s
e a narratividade me fez lembrar o relato do
romancista argentino Ricardo Piglia sobr e os índios
sul-americanos ranqueles, dizimados no final do século
XIX. Viviam em tribos nômad es , se m relaçõe s
fixas de autorida d e e obediência. Entre os
ranqueles. o pode r nã o advinha da força de coação,
mas da capacidad e narrativa do chefe.

Nessa s s o c i e d a d e s , q u e s o u b e r a m p r o t e g e r
a linguagem da degradação qu e as nossas lhe infligem,
o uso da palavra, mais do que um privilégio, é
um dever do chefe. O pode r outorgad o a ele
do uso narrativo da linguagem deve ser
interpretado com o um meio que o grup o tem de
manter a autoridade a salv o d a vi o l ê n c i a
c o e r c it i v a . (...) com o u m personagem de
Kafka, esse homem , prisioneiro de seus súditos,
continua, todos os dias, construindo seus belos
relatos de ilusão. E porque , apesar de tudo,
continua falando, todos os dias, ao amanhece r ou
ao entardecer , consegu e fazer co m qu e suas
histórias entrem na grande tradição e sejam lembradas
pelas gerações futuras. Até que , por fim, um dia,
as pessoas o abandonam : alguém, em outro local, nesse
momento , está falando em seu lugar. Seu
poder, então, acabou.1 0
C o m o o antig o chefe ranquele, os pais
narrativos servem-s e d e seu p o d e r d e dize r
coisas significativas a seu s filhos, dia a p ó s dia, até
percebe r q u e eles estã o d e ix an d o de lhe s da r
ouvidos . É hor a de deixá-los falar po r si
mes m os . O a m o r entr e ele s continu a - ma s seu
p od e r acabou .

Notas
1. Apud Robert Darnton, O Cirande Massacre de (kitos
(e Outros Fpisódios da História Cultural
Francesa). Rio de Janeiro : Graal, 1986.
Traduçã o de Sônia Coutinho.
2. Moder nos , e m b or a já tradicionai s para
nossa s crianças, porqu e são versões posteriores
ao século XVII.
3. Darnton. cit., p. 29.
4. Autor do consagrado A Psicanálise dos Contos
de
Fadas.
5. M. e D. Corso. p. 29
6. Apontamento de Fernando Pessoa utilizado
como nota preliminar publicada pela
primeira vez na edição da Obra Poética do autor
pela editora Aguilar, Rio de Janeiro . 1960. As
outra s qualidad e s do de ci fr ad o r d e
símbolo s seria m a i nt ui çã o , a
inteligência, a compreensã o e a graça.
7. p. 219 e 224.
8. p . 248 e 250.
9. p. 307.
10. Ricardo Piglia, O Laboratório do Esctitor: Sao
Paulo: Iluminuras . 1994, p. 90-91 . Traduçã o
de Josely Vianna Baptista.

19
Apresentação

A psicanálise sente-se â folclóricas sobreviventes. Pretendemos traçar hipóteses


vontade n o terren o das a respeito do quê as mantêm vivas até
narrativas , afinal, trocando agora, que fantasias poderiam estar animando-as.
em miúdos, uma vida é uma Embora muita coisa tenha mudado no reino dos
história, e o que contamos homens, parece que certos assuntos permaneceram
dela é sempre algum tipo de reverberando através dos tempos. Por exemplo, os
ficção. A história de uma temas do amor, das relações familiares e da construção
pessoa pode ser rica em das identidades masculina e feminina ainda podem se
aventuras, reflexões, frus• inspirar em narrativas muito antigas. Essas velhas
trações ou mesmo pode ser insignificante, mas sempre tramas devem ter achado razões para existir em
será uma trama, da qual parcialmente tempos tão distintos, senão teriam perecido.
escrevemos o roteiro. Freqüentar as histórias São problemas e soluções de outrora, mas que
imaginadas por outros, seja escutando, lendo, assistindo surpreendentemente encontraram lugar no interesse de
a filmes ou a televisão ou ainda indo ao teatro, gente novinha em folha. Por quê?
ajuda a pensar a nossa existência sob pontos de A segunda questão busca saber se os contos de
vistas diferentes. Habitar essas vidas de fantasia é uma fadas podem evoluir. A resposta a essa
forma de refletir sobre destinos possíveis e cotejá-los interrogação passa pela identificação daqueles
com o nosso. Às vezes, unia história ilustra que seriam os sucedâneos modernos dessas
temores de que padecemos, outras, encarna narrativas centenárias. Se pudermos analisar histórias
ideais ou desejos que nutrimos, em certas infantis mais recentes, ma s q u e já se tornara m
ocasiões ilumina cantos obscuros do nosso ser. O certo é clássicas , nascida s e consagradas ao longo do
que escolhemos aqueles enredos que nos falam de século XX, buscando nelas as novas formas qu e
perto, mas não necessariamente de forma direta, pode a fantasia encontrou de se conjugar, talvez
ser uma identificação tangencial, enviesada. possamos compreender melhor algu• mas coisas Sobre
A paixão pela fantasia começa muito cedo, as crianças, as famílias e as pessoas do nosso tempo.
não existe infância sem ela, e a fantasia se alimenta da Através das fantasias que embalaram os sonhos das
ficção, portanto não existe infância sem ficção. Observamos gerações mais recentes, deve ser possível saber algo
que, a partir dos quatro últimos séculos, quando a mais sobre o tipo de gente que estamos nos
infância passou a ter importância social, as narrativas tornando.
folclóricas tradicionais, os ditos contos de fadas, A importância dos contos tradicionais
constituíram-se numa forma de ficção que foi para a construção e o desenvolvimento da
progressivamente se direcionando para o público subjetividade humana já foi estudada e demonstrada,
infantil. Hoje, os contos de fadas são considerados coisa especialmente por Bruno Bettelheim em seu livro A
de criança, mas curiosa• mente muitos deles continuam Psicanálise dos Contos de Fadas. Essa obra foi
estruturalmente parecidos com aqueles que os uma experiência pioneira em interpretar
camponeses medievais contavam. Como foi que esses exaustivamente os contos de fadas a partir da
restos do passado vieram parar nas mãos das crianças de teoria psicanalítica, ressaltando que seu uso pelas
hoje? crianças contemporâneas visa a ajudá- las na
O presente livro organiza-se ao redor de elaboraçã o de seus conflitos íntimos. Ele
duas questões. A primeira é direcionada a essas acreditou encontrar na eficácia psicológica
narrativas dessas
Fada s n o D i v a - Ps ic a n ál is e n a s His t óri a s Infa nt i s

tramas o motivo de sua p er enida d e e, co m bas e ness a questões sobre os sonhos e pesadelos dos
hipótese , discorreu sobr e um a série d e sere s h u m a n o s .
características d a infância. Inspirad o ness e trabalh o O ut r o fator t a m b é m estimulo u ess e estudo
d e Bettelheim, noss o estud o compartilh a d e seu . O território da análise da ficção dirigida à infância é
c a m p o d e interesse e de suas questões , ma s visa a lugar d e u m paradoxo : preocupamo-no s
seguir um pass o adiant e dess a pesquisa , ou seja, crescent e e obsessivament e co m a s crianças,
verificar se histórias infantis do sécul o XIX e XX sã o nunc a tant o inves• timent o foi feito em sere s tã o
usada s pela s crianças de forma similar. Além disso, nova s p e q u e n o s e dele s tanto se esperou . Além disso,
histórias r es p on d e m a nova s n e c e s s i d a d e s subjetivas , cad a vez mais se acredita nas influências precoce s d a
a s fantasia s t r a d u z e m a s novidade s existentes n a formaçã o n o destin o do s seres h u m a n o s . Por isso
vida d o s joven s h u m a n o s , ma s q u e modificações sã o m e s m o é intrigante q u e tenhamo s tão p o u c o
essas? es pa ç o para a crítica à ficção q u e lhes é
Na primeira parte do livro, enfocamo s conto s de oferecida . E m contrast e c o m o v ol u m e d e
fadas tradicionais tal c o m o fez Bettelheim. Dedicam o estudo s d ed ic a d o s â literatura, â mídia e às
s u m capítulo a o re-estud o d e seu livro, on d e apontamo s artes c o m o um t o d o , parec e qu e pouco s
a s interpretaçõe s interessantes q u e ele no s legou, profissiona i s e s t ã o em • p e n h a d o s e m decifrar o s
ma s també m as divergências, fazemo s críticas efeitos sobr e a s crianças d o lequ e cie cultura q u
particular• ment e a certas idealizações co m q u e o e hoje lhes é ofertado . Q u a n d o esse s estudo s sã
auto r cerco u o problema . o feitos, salvo raras exceções , tende m a ganha r
Tanto o m u n d o do s conto s de fadas, q ua n t visibilidade públic a a pe n a s as interpretaçõe s
o a oferta atual de ficção para crianças sã o universo s catastrofistas q u e surge m s o b forma d e alerta,
muit o extensos , e isso se reflete ao long o do denun • ciand o os nefastos efeitos q u e seria m
livro, o n d e també m contamo s e analisamo s muitas gerado s a partir de um a infância marcad a pelo
narrativas, o q u e basicament e s e constitu i n o s games e d e s e n h o s animad o s violentos.
re ch e i o d e n o s s o trabalho. Q u e m nã o está habituad o Mais d o q u e oferece r soluçõe s par a o s
a o tema p o d e julgar excessiv o o númer o d e enigma s q u e as trama s narrada s apresenta m , noss o
história s examinada s par a responde r questõe s objetivo foi incentivar ess e cami nh o e unir
ap ar e nt e m en t e tão simples, poré m nã o acreditamo s esforços co m aquele s críticos q u e já o estã o
possível u m est u d o dess e assunt o se m essas trilhando . Para isso, usa m o s a ferramenta da qua l
referências múltiplas. dispo mo s - a psicanálise -, ma s um a anális e
Certament e podería mo s ter mantid o u m purament e psicanalític a certament e é
de b at e basicament e teórico co m o leitor, ma s reducionista , t e nt ar e m o s s e m p r e q u e possíve l
o pta m o s po r u m ca minh o demonstrativo . Através abrir o leque . Seria um a deslealdad e tratar qualque r
d e um a ampl a gam a de exemplo s de histórias fantasia d e m o d o simplista , é n e ce ss ár i a u m a
infantis, tradicionais e m o d e r n a s , e da leitur a r e l a çã o d e respeit o co m o caráte r s u r p r e e ndent e d e
psicanalíti c a d o c o n t e ú d o inconscient e q u e elas cad a história, assi m c o m o u m a assu mid a hu mildad e
pode m evocar , p r e t e n d e m o s contribuir para d o q u a n t o su a riquez a tr a ns ce n d e noss a
elucidar as razõe s de sua atualidad e e consagração . c a p a c i d a d e d e anális e
E m termo s d e linguagem , e m p e n h a m o - no s e m Essas histórias sensibilizam q u e m as escuta
desdobr a r o s conceito s psicanalíticos d e forma qu e s e em diversos planos, e certament e nã o
torne m compreensívei s par a o s leitores nã o conseguiremo s dar conta de todos . Por exemplo , o
iniciado s ness a teoria , ma s q u a n t o a o n ú m e r conto João e Maria fa\a da escassez, de alimentos e da
o d e e x e m p l o s n ã o é possíve l economizar , faz expulsã o do lar po r essa c o n tin g ên ci a . A s criança s
part e d a naturez a d o objeto. d a Velha E ur o p a q u e o escutavam entendia m
Com o efeito secundári o d o present e estudo , b e m d o q u e s e tratava, pois a comid a faltava
a anális e d e história s a ca b a s e n d o u m a form a mesmo . Mas a empati a co m um a história se dá em
mai s agradável de entrosament o co m a teoria vários níveis e é provável que , junto co m o tema
psicanalítica, pois aqui s e pod e vê-la e m da fome real, també m fossem tocada s po r outras
funcionamento . Evidente• mente , person agen s d e questões , para as quais toda s as crianças sã o sensíveis,
conto s n ã o sã o pacientes , e n e n h u m dele s receb e co m o a separaçã o da mã e nutridora e o m e d o
algu m tip o d e diagnóstico . Trata- s e a p e n a s d e de ser a b a n d o n a d o pelo s pais. J á um a criança
história s q u e n o s p e r m i t e m a b o r d a r moderna , d e um a família abastada, quiçá n e m saiba
o q u e poss a ser a falta de alimentos , nã o obstant e se
fascina co m a
D i a n a Li c h t e n s t e t n Co r s o e M a n o C o r s o

mesma história, e provavelment e isso será devid o p or q u ê d e d et er m i na d o s conto s tere m s e


às questões mais subjetivas. celebrizado , d u r a d o , permanecid o co m u m
Ainda e m u m outr o p o n t o d e vista, n ú c l e o c o m u m tã o preservado , s e n d o qu e nã o sã o
p o d e m o s supor qu e um a criança brasileira, habitant e da necessariament e muit o m el h or e s d o q u e outros .
periferia miserável d o s centro s urbanos , se escuta r Entre a variad a oferta d e combinatória s de
a história de Joã o e Maria, vai encontra r no fadas, bruxas , am ore s e aventuras , algun s conto s
cont o um a fonte para traduzir a angústi a concret tiveram a sorte de oferecer um a mistura a d e q u a d a
a de ser expuls a de cas a p o r s e u s p a i s e a o us o do s narradore s d e outro s tempos . N os s
a d ú v i d a d i á r i a s o b r e a possibilidade d e ele s o trabalh o busc a c o m pre e nd e r quais desse s
conse guire m trazer comid a o u não; mas , eleme nto s estã o presente s e m u m de te r mi n a d o
a c r e s ci d o a es s e s e n t i d o dir et o , talve z conto , qua l teria sid o o acert o daquel a síntese
compartilhe co m a criança de vida mais abastad particular para q u e ele fosse escolhid o para durar.
a a questão sobr e a posiçã o da mã e nutridora , Uma espéci e de análise d o p ro d ut o para entende r seu
cujo seio ela també m tev e de deixar. É prováve l qu sucesso , à s veze s secular, n o m er ca d o d a ficção.
e a empati a com o s pe rs o n ag e n s dess e cont o ocorra e Q u a n t o às narrativas mais recentes , o critério
m doi s níveis foi similar, poi s dedica m o- no s basicament e àquela
(social e íntimo ) par a toda s as criança s s qu e j á m os tr ar a m sinai s d e c o n s a g r a ç ã o junt
brasileiras, afinal, há Jo ã o s e Marias em t o d o s os o a vária s geraçõe s d e crianças. Por isso,
semáforo s do país, entã o co m o nã o pensa r e m ser trabalhamo s alguma s ficções nascida s c o m o sécul o
abandonado ? Além disso, i n d e p e n d e n t e m e n t e d o XX, q u e aind a sã o p o p u • lares, e analisamo s també
q u a n t o a realidad e d a pobreza se impõ e para as m alguma s histórias prove • niente s da s últimas
diferentes cama da s sociais, não h á mã e q u e n ã o décadas , cujas personagen s e tramas s e tornara m d e
faça questã o d e lembra r a seu s rebentos, q u a n d o do míni o público , s e n d o conhecida s muit o além
eles e s n o b a m o alimento , q u e h á outras crianças d e sua existência escrita, d es e nh a d a o u filmada.
q u e passa m fome. Este livro inclui també m um apêndice ,
Co m o forma d e estrutura r o livro, o p t a m o s o n d e é contad a e analisada um a história familiar
po r agrupar o s conto s t e n d o c o m o eix o a s criada para nossa s filhas, n ã o é u m c o nt o
fantasias q u e acreditamos q u e suscitam, diss o resulto u folclórico, ne m u m sucess o de público . A única
q u e alguma s histórias e p e r s o n a g e n s clássicas fosse tradição a q u e ela pertenc e é a da p e q u e n a família
m c o n v o c a d a s e outras não . Toda a escolha implica nuclea r q u e constituímos, sua única popularida d e é
perdas, certament e o s leitore s e n c o n t r a r ã o omissõe entr e as crianças filhas do s amigos q u e recebera m um
s qu e c o n s i d e r e m imperdoáveis . A seleçã o de a cópi a dessa historinha. mas sua participaçã o
história s é t a m b é m a q u e nos foi possível, poi s no livro é justificada pela possibilidad e de
incluímo s aquela s sobr e as quai s sentíamos q u e exemplificar e explicar c o m o determi na d o cont o é
tín h a m o s alg o a dizer, e n t e n d e n d o - s e por isso a s escolhid o e construíd o e n q u a n t o part e d a
q u e tocara m e m algu m p o n t o r e m a ne s • cente da men sage m
noss a infância e q u e deixo u resto s na vida (inconscient e ) q u e o s pai s passa m ao s seu s
adulta. Certament e a parentalida d e ajudo u a precipita r filhos. Num a história inventada , fica mais fácil
essas escolhas , já que foi quand o no s c o m p r e e n d e r e demonstra r a transparênci a entr e os
de sc o br i m o s n o pape l d e pai s narradore s q u e seu s elem ent o s e o inconsciente , tant o d o
tod a a d i m e n s ã o desse p e d a ç o d a infância narrado r q u a n t o d e su a platéia.
aflorou. Entre a s herança s simbólicas q u e passa m d e
E m g er al , q u a n d o c o n t a m o s u m c o n t o pais par a filhos, c e r t a m e n t e , é d e inestimá ve l
n o s apropriamo s dele , o subjugamo s ao s nosso s valo r a importância dad a à ficção no context o de
interesses. Para tanto , um a part e se conserv a um a família. Afinal, um a vida se faz de histórias - a
(um a espéci e de núcleo da história), ma s outr a é qu e vivemos, as q u e contamo s e a s q u e no s
acrescentada , po r isso, a s histórias n ã o p e r m a ne c e m contam .
exatament e iguais co m o passar do s anos . É isso
q u e torn a tã o instigante o
Primeira
Parte
- HISTÓRIAS CLÁSSICAS -

"...as fábulas são verdadeiras. São, tomadas em conjunto, em sua sempre repetida e variada casuística de
vivências humanas, uma explicação geral da vida, nascida em tempos remotos e alimentada pela lenta ruminação
das consciências camponesas até nossos dias; são o catálogo do destino que pode caber a um homem e a uma
mulher, sobretudo pela parte da vida que justamente é o perfazer de um destino: a juventude, do nascimento que
tantas vezes carrega consigo um auspício ou uma condenação, ao afastamento de casa, às provas para tornar-se
adulto e depois maduro, para confirmar-se como ser humano."
Ítalo Calvino1
servia m a uma parcel a restrita de pessoas ; ele s
nascera m par a

A primeira parte do livro


destina- s e basicament e a o
leitor q u e q u e i r a s a b e r m a i
s sobr e o s conto s de
fadas folclóricos e a s razõe s d
o seu encanto . Nós n o s
interrogamo s sobr e a s
co n di ç õe s d a eficácia
dessa s narrativas junto à
subjetividade infanti l e p o r
que algumas
delas p e r d u r a m at é hoje. Afinal, entr a geração ,
sai geração e seguimo s repetind o as mesma s histórias
para as crianças. Por vezes , dam o s nova s roupagen s a
velhas tramas; em outras , modificamo s o desfecho ,
o ritmo, o estilo, ma s muitas dela s sobrevivera m quas e
idênticas a si mesma s ao long o de séculos . Isso é
absolutamen t e surpreendent e n u m m u n d o cad a ve z
mai s mutante .
E i nt er es sa n t e q u e e ss e s c o n t o s t e n h a m
sid o relegados à infância, já q u e na su a orige m n ã o
todos . Dur ant e séculos , faziam part e d e
m o m e n t o s coletivos , e m q u e u m b o m c o n t a d o r
d e história s emocionav a su a platéia, incluind o gent
e d e toda s a s idades . Co m o passa r do s tempos ,
foi diversificando- se a forma da narrativa, através da
popularizaç ã o d o s livros - tant o em ediçõe s primorosa s
destinada s à corte e à burguesi a nascente , q u a nt o e m
brochura s baratas , pa r a s e r e m c o n s u m i d a s p o r
um a sociedad e e m crescent e process o de
alfabetização ou m e s m o através do teatr o popular .
Mais recentemente , o cinem a e a TV foram
d o m i n a n d o a cena . I n d e p e n d e n t e m e n t e do m ei o ,
fomo s assistind o a u m d e s l o c a m e n t o : essa s
formas d e narrativa mágica foram send o
e m p urr a d a s par a o do míni o infantil.
Q u a n d o essa s histórias faziam part e d a tradiçã
o oral, o m u n d o domésti c o n ã o era tã o dissociad
o d o rest o d a sociedade , trabalhava-s e n u m lugar q u e
er a a extensã o d a casa. Nã o havia um a distância clara
entr e casa e trabalho , n e m entr e o m u n d o da
infância e o
Fada s n o D i v ã — P s i c a n á l i s e n a s His t ór i a s Infanti s

do s adulto s , assi m c o m o t a m p o u c o havi a fazem ec o na infância e a tentativa, a partir desses,


u m a pr e oc u pa ç ã o co m a formaçã o da s crianças, de conjecturar po r q u e as criança s as mantivera m
poi s n e m havia um a clara idéia de q u e a vivas. B e t t e l h e i m demonstra um enfoque
infância, tal qua l a co ncebe m o s , existisse. Na que
partilha ocorrid a posterior• mente , qu e fez co m p od er ía m o s cha ma r d e dar winian o dess a relaçã o bem-
qu e casa e trabalho , adulto s e crianças se su ce d id a , a c r e d i t a n d o q u e a s trama s q u e
separassem , os conto s de fadas ficaram em casa co m sobrevi• v e r a m atravé s do s tempo s fora m
o s p eq u en o s . aquela s q u e oferecia m o p o r t u n i d a d e par a
A partir da mod ernida de , com eço u a have r represent a r conteúdo s d o inconscient e infantil, o u
um a distinçã o e n t r e p r o d u t o s culturai s pa r a seja, a s q u e foram capaze s d e s e ad a pt a r à s
a d u l t o s e produto s para crianças, noss o t e m p o n e c e s s i d a d e s atuais . Par a ele , h á u m a s e l e ç ã o
levou isso a o extremo , e cad a idad e passo u a ter seu s ativ a p o r p a r t e d a s c r i a n ç a s e sua s famílias,
produto s b e m delimitados. A cultura assimilou as n o sentid o d e escolhe r e usa r certa s histórias c o m o s e
leis do mercado , i n c o r p o r a n d o s u a s fossem u m e s q u e m a n o qua l s e apoia r para
p r e r r o g a t i v a s d e c o n s u m o e publicidade . Fm realizar sua s elaborações . Cad a história conteri a
função da s intençõe s pedagógic a s e m e r c a d o l ó g i c a s uma m e n s a g e m , u m desafi o e u m desfech o q u
, pa s s a e n t ã o a se r i m p o r t a n t e a definição e par a a criança interess a ouvi r e m d e t e r m i n a d o
de um público-alvo . Graça s a isso, o grau de m o m e n t o d e su a vida. E m linha s gerais ,
especializaçã o da cultura produzid a para a infância concordamo s co m esse p o n t o de vista e
t o r n o u - s e al g o a se r e s t a b e l e c i d o c o m te nt a m o s a c o m p a n h a r ess e auto r à altura d a
p r e c i s ã o . Levando em cont a a psicologia de cad a époc a importânci a d e sua s elaboraçõe s , de di c an d o - no s a
da vida, t e m o s oferta s culturai s d i f er e n c i a d a s trabalha r um a série d e conto s d e fadas, inclusive algun s
pa r a b e b ê s , criança s p e q u e n a s , escolares , p r é- so b r e o s quai s el e j á escrevera , assi m c o m o
p ú b e r e s , adoles • centes , adulto s solteiros, famílias outra s histórias c o n t e m p o r â n e a s .
e assim po r d i a n t e / Esses produto s culturais par a A obr a de Brun o Bettelhei m foi a pe d r
a infância geral• a fun• damenta l d a p r o d u ç ã o analítica sobr e o s
ment e sã o aceitos se m reservas pel o público-alvo , ma s conto s d e fadas, ensinand o-no s o s mecanismo s d
sem pr e estã o so b a suspeita adulta de sere m e sua eficácia n a vida da s crianças. P o d e m o s
preju• diciais ou deformador e s da ment e infantil. Ao inclusive dize r q u e seu text o foi decisivo par a a
contrário, o s conto s d e fadas atualment e parece m legitimação do s conto s de fadas e n q u a n t o digno s
estar isentos dess e tipo de desconfiança, e é d e fazer part e d a formaçã o da s criança s
praticament e consen • sual o apreç o a esse tipo de contemporâneas . Vive mo s tempo s m ui t o
narrativa. O únic o se n ã o é um certo filtro quant o a psicológicos , no s quai s há um a p r e o c u p a ç ã o a
passagen s mais cruas. Alguns conto s foram submetido s a priori co m o s efeitos d e t o d o o estímul o q u e s e
um a certa censura,3 e mbor a possamo s dizer qu e seu oferec e à s crianças . Bettelhei m elevo u o s c onto
c o n t e ú d o básic o foi mantido . Hoje eles fazem part s d e fadas a o estatut o d e recomendáveis , o q u e
e da e d u c a ç ã o desejável, assim co m o aprende r a certament e ta mbé m contribui u de algum a forma
conta r e se alfabetizar, e é impensáve l qu e uma criança par a su a sobrevivênci a e p o pu la ri da d e .
cresça e m u m ambient e considerad o estimulador sem Da obra de Bettelheim. ap re n de m o s o métod o
ter entrad o e m contat o jamais co m Chapeuzinho de observa r o diálog o da criança co m o cont o
Vermelho, João e Maria ou Bela qu e lhe agrada, principalment e sua corage m ao
Adormecida. Ne m q u e seja intuitivamente , a atribuir essa escolh a ao s aspecto s estruturais
maio r parte da s pessoa s acredita q u e essa tradiçã o inconscientes . Acre• ditamos, porém , qu e ele
te m algo a dizer. co m p re e n d e u essa relação d e form a alg o
H á muit o par a p e n s a r s o b r e esse s rest o idealizada , imaginand o qu e o s conto s
s d a tradição oral q u e s e perpet uara m n a preservado s eram aquele s qu e desem pen hava m funções
intimidad e d o s lares, passand o a fazer part e da edificantes n o sentid o d o cresciment o o u d a elaboraçã o
formaçã o da s crianças. Q u a n t o ao s presente s de conflitos. Não temo s um a visão tã o otimista
capítulos , c a b e - n o s enfoca r de s d e o únic o ângul assim. Acreditamos q u e muitas histórias a pe n a s
o q u e temo s competênci a par a fazê-lo: a leitura pe r m an e c e m pel o seu caráter merament e ilustrativo ou
psicanalític a do fenômen o e da s histórias. representativo, c o m o u m esque m a imaginário o n d
Seguimo s o s passo s d o psicanalista austríac o Brun o e s e apoia m ele • mento s consciente s e
Bettelheim, que , co m se u livro A Psicanálise dos inconscientes. O q u e cad a trama evoca no leitor ou
Contos de Fadas, criou o caminh o q u e no s inspira: a ouvinte, ou seja, a combinatóri a de elemento s e m
leitura do s aspecto s psicológico s q u e nessa s histórias qu e um a representaçã o s e apóia, nã o
necessariament e faz parte intrínseca da história, ela p o d e

26
D i a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o C o r s o

mudar conforme o cenário e a época em que a narrativa é


contada. Dentro desse ponto de vista, é possível supor que
contos como Cinderela ou João e o Pé de Feijão não
resistiram até nosso tempo pelas mesmas razões que
os consagraram nas tradições recolhidas pelos
folcloristas ou nas versões de Perrault e Jakobs.
Da mesma forma, podemos supor que contos como
Bicho Peludo ou Pele de Asno tiveram sua
popularidade encolhida pelas inconveniências que
continham, na medida em que não é admissível
hoje contar aos pequenos histórias tão francamente
incestuosas.
Nosso trabalho é uma tentativa de
alargar o horizonte que Bettelheim nos deixou.
Uma certa idealização restritiva na sua compreensão
do que seria um conto de fadas o afastou de um conjunto
de ficções especialmente intrigantes e
importantes para as crianças. Divergindo dele,
acreditamos que existem novos contos de fadas,
configurando-se num gênero dedicado não apenas ã
preservação, mas também ã renovação. Em função
disso, propomos uma inclusão de histórias que o
autor não considerava genuínos contos de fadas,
nem apropriados para crianças, no gênero do
maravilhoso.

Conto de fadas versu s


conto maravilhoso
O que entendemos aqui por conto de
fadas é o mesmo que Vladimir Propp
denominou conto maravilhoso,' em
função da onipre• sença de algum
elemento mágico ou fantás•
tico nessas histórias. Contos de fadas não precisam ter
fadas, mas devem conter algum elemento
extraordi• nário, surpreendente, encantador. Maravilhoso
provém do latim mirabilis, que significa admirável,
espantoso, extraordinário, singular. Muitos
optaram por essa denominação justamente para
dar conta da vastidão de personagens e
fenômenos mágicos, absurdos ou fantasiosos que
podem povoar os reinos encantados. Mas
preferimos seguir a sabedoria popula r qu e
manteve as fadas enquanto representantes deste reino.
Elas já foram associadas ãs Moiras, imaginadas
com uma roca nas mãos, que conteria o fio de nosso
destino, como uma espécie de parteiras mágicas,
que pos• sibilitam a vida e definem os seus percalços.
As fadas seriam as herdeiras das sacerdotisas de ritos
ancestrais, já que a elas é reservada a função de veicular
a magia. Por isso, não abriremos mão da denominação
que em tantas línguas as tornam embaixatrizes
do mund o mágico.
27
O element o fantástic o present e
e n q u a n t o maravilhoso nessa s narrativa s c u m p r
e a funçã o de garantir qu e se trata de outra
dimensão , de outr o mun do , co m possibilidades e
lógicas diferentes. Assim fazendo, os argumento s da
razão e da coerência já sã o barrado s na porta, e
a festa p o d e começa r se m suas incômoda s
presenças , bastand o pronuncia r as palavras mágicas
Era uma vez... co m o um a senh a de entrada.
Vivemos n u m m o m e n t o e m q u e a
mutaçã o d o s meio s dessa s histórias atingiu um
p o n t o de virada: a tradiçã o oral cede u e sp a ç o
a o impéri o da s imagens . Hoje, tud o o q u e s e diz
dev e se r ilustrado. O s sons , o s silêncios, a
en to n aç ã o e a capacid a d e dramática, q u e
faziam a glória de um b o m contado r de histórias
foram, substituído s pela s capacidade s narrativas
do s estúdio s de cinema , da televisão e d o s
ilustradores de livros e quadrinhos . O q u e no s
interessa é o fato de muitas histórias tere m
subsistidos através desse s novo s meio s e
pe r du ra r e m e v o c a n d o a s mesma s e m o ç õe s .
Noss o propósit o é encontra r velhas trama s
m e s m o q u e es• tejam ve stind o n o v o s trajes.
Seguire mo s o s rastros daquela s qu e s e preservara
m d e formas meno s vistosas, assim c om o tentaremo
s detecta r a existência de novi• da d e s na terra
da fantasia.
Aproximando-s e do folclore de vários
países, é possível constata r q u e certas histórias,
clássicas par a n ó s , n a v e r d a d e , c o n s t i t u e m
a p e n a s u m arranj o particular qu e encontro u um a
forma feliz, fez ec o num a certa comunidad e e tev
e a sorte de ser preservado . Nã o é i n c o m u
m e n co n tr ar m o s na s compilaçõe s d e histórias
folclóricas, de distintas nacionalidades , conto s que
co m e ç a m c o m o o noss o co n h eci d o Branca
de Neve, s eg u e m c o m are s de A Bela e a Fera e
termina m igual ao de Cinderela.
É prováve l q u e a maioria do s conto s
de fadas esteja irremediavelment e esquecida .
As histórias q u e sucumbira m dava m cont a d e
situaçõe s q u e j á n ã o s e repetem : explicaçõe s
mágicas para problema s relativos á fertilidade, ao s
mistérios da natureza , a regras morai s n u m te m p o d e
rigidez religiosa, a rituais d e passage m e a tanta s
outra s coisas, ma s deixaremo s essa pesquis a par a
q u e m te m a competênci a d e fazer um a
arqueo • logia d o s conto s d e fadas..5 Uma
simple s leitura n o a m pl o univers o dele s j á
suger e q u e existe m algun s q u e atualment e nã o
causa m o s m e s m o s efeitos e estã o e m via d e
esqueciment o , subsiste m a pe n a s no s escritos d o s
folcloristas, ma s praticament e n ã o sã o mai s
lidos o u contados .
C o m o te m o s acess o ao s conto s d e fadas
através d e u m acerv o coletad o po r
folcloristas, te n de m o s a concebê-lo s c o m o um a
coleçã o d e narrativas compost a
Fada s n o D i v ã - P s i c a n á li s e n a s História s Infan ti s

d e histórias fechadas e m si. Pensa r assim, n o


entanto , seria um tant o reducionista, poi s as histórias qu e
conhe • ce mo s hoje sã o um a part e preservad a d e
u m acerv o muit o mais rico. Em seu s primórdios ,
elas era m um sistema lógico e m q u e várias
histórias poderia m ser com bina da s . Por isso,
melho r seria c o m pr ee n dê - la s c o m o u m gigantesc o
baralh o d e cartas q u e permitia u m sem-n ú mer o d
e arranjos, dentr o d e certos tipo s d e seqüênci a
lógica, ma s c o ns er v an d o um a plastici• d a d e e m
q u e vários ele mento s p o d e m se r m u d a d o s e certos
sentidos , preservados . O s conto s q u e co n h e •
cemo s sã o algun s do s produto s dess e tod o maio r qu
e s e mo v e co m regra s próprias , mai s
ap ar e nt ad a s a o mito qu e a o noss o p e n s a m e n t o
racional.
O s contos d e fadas têm e m comu m co m o s mitos
o fato de nã o possuírem propriament e um sentido, sã o
sim estruturas qu e permite m gerar sentidos, po r
isso toda a interpretação será sempr e parcial. Os conto s
sã o formados com o imagens de um caleidoscópio,
o q u e mud a são as posições dos elementos .
Certos arranjos particularmente felizes por equilíbrio,
beleza e força, cristalizam e formam algumas dessas
narrativas qu e hoje conhecemo s com o as nossas
histórias clássicas.
Nos capítulo s q u e s e segue m , v a m o s
reconta r s i n t e t i c a m e n t e a l g u n s d o s c o n t o s d e
fada s ma i s populares , assim c o m o outro s m e n o s
notório s o u mais antigos q u e lhes sejam cone xos ,
emb ora , n o q u e tang e as pessoa s da sociedad e
ocidental , seria precis o ter cr es ci d o e m Marte
par a n ã o c o n h e c ê - l o s e m su a maioria. Aliás,
este é mais u m do s motivo s d o noss o interesse
pel o assunto : o fato de q u e todo s partilhamo s u m acerv
o c o m u m d e histórias. E m u m i n u n d o tão
plural, de tantas ideologias, tradiçõe s e religiões,
elas constitue m u m d e n o m in ad o r c o m u m .

Sobre as fontes
rocuraremo s agrupa r as histórias pela fantasia
principal qu e ela geralment e evoca. É
claro qu e é uma reduçã o difícil, porqu e a
mesm a
históri a poder á se r retomad a em
o u t r o m o m e n t o , inserid a e m outr a reflexão . A
idéi a d e trabalhar u m cont o até esgota r quas e
todo s o s seu s el e m en t o s é tentadora , foi o
corajos o c a m i n h o de Bettelheim, ma s é perigoso .
Ningué m dá conta de tudo , um cont o inclui muito
material não-interpretável pela psicanálise: formas
arcaicas de narração, cacos de antigos mitos , q u e j á n ã
o n o s di z e m mai s resp eito , resto s histórico s d e
experiên cia s d e d e t e r m i n a d o s p o v o s ,
falar qu e cairíamos e m outr o problema , s e fôssemos
considera r um a história e n qu a nt o u m todo , teríamos
de eleger um a versão, ma s qua l seria a melho r fonte?
Na pesquis a so b r e a variedad e de história s e
versões , nossa s fontes serã o toda s a s d e q u e puder mo s
dispor, privilegiand o a variedad e se m hierarquiza r o
q u e seria um a narrativa autêntica , original d e deter•
minad o conto . Por isso, e m torn o d e cad a eix o temático
escolhido , organizamo s várias histórias, cujos detalhe s a s
diferenciam , ma s p a r e c e m convergi r par a u m centro comum .
Compartilhamos , relativo ao s conto s d e fadas, a idéia do
antropól og o Claud e Lévi-Strauss referente ao s mitos.
S eg u n d o ele , fazem part e d o mit o toda s a s sua s versõe s e
n ã o haveria um a versã o original a ser privilegiada6.
Embor a deva mo s reconhece r q u e o cont o maravilhos o sofre
transformaçõe s históricas, inclusive algun s conto s passara m
po r modificaçõe s d e tal mont a q u e resta pergu ntar mo s s e
dize m o m e s m o q u e diziam antes , p o d e m o s su p o r q u e ,
s e ele s s ob re vi v e m , é p o r q u e no s toca m d e
d e t e r m i n a d a form a e q u e p r o v a v e l m e n t e alg o foi
p r e s e r v a d o d e se u arranjo inicial. Caso contrário, teriam
perdid o a força, o encant o e cairiam no esqu eci ment o .
É c la r o q u e o s c o n t o s d e fada s d e v e m
su a sobrevivênci a a um a série de folcloristas, que , de um
a forma mais apaixonad a d o q u e científica, no s legaram
sua s versões . C o m o essas compilações , agor a clássicas,
constituíram o degra u q u e possibilitou a chegad a até
nó s dessa s trama s tã o antigas, eles angariara m o s mé • ritos
q u e justificam q u e o s privilegiemo s diant e d e
infinitas formas de vulgarizaçã o e difusão.
Nossa escolha, e n qu a nt o estrutura do livro, é pela
análise da eficácia das fantasias q u e os conto s possa m
mobilizar no s ouvinte s atuais. Sempr e é b o m lembrar
q u e está n o interior d e cad a u m a tecla mágica,
pois ne m todo s sã o tocado s pelo s mesmo s contos , n e m
d a mesm a forma. Afinal, conto s qu e nunc a foram
esque • cidos e provocara m horro r e fascínio em un s
passa m despercebido s para outros. Na seleçã o de quais
conto s escolher, privilegiamos entã o as histórias qu e sã o ainda
lembrada s e que , po r isso, segue m causand o efeitos ao long
o do s séculos em seu s leitores e ouvintes.

O uso do conto pelas crianças


as crianças, é mai s fácil observa r o impact o
da ficção, elas se a p e g a m a algum a história e
usam-n a par a elabora r seu s drama s íntimos, par a
da r colorid o e imagen s a o q u e estã o
vi ve n d o . Elas a u s a m c o m o er a u s a d o o mit o e m
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o
quantida de : em termo s de ficção elas são
consumidor a s onívora s e insaciáveis. Em noss a
sociedade s antigas, entra m na trama oferecida e tenta m
encaixar sua s questõe s no s esquema s
interpretativos previament e disponibilizados . O u e nt ã
o s e apropria m d e fr ag m en to s , c o m o tijolo s d
e significaçã o q u e combina m à sua m o d a par a
levantar a obr a de deter • minado assunt o q u e lhe s
questiona .
O q u e fica de um cont o par a um a criança
é o que ele fez reverbera r na sua subjetividade,
aliad o ao fato de co m o chego u até ela. Caso tenh
a vind o pela mão d e u m adulto , p o d e ser tomad o pela
criança c o m o se ele tivesse tido a intençã o de dize r
alg o através da escolha daquel e trech o dramátic o
específico. For sua vez, a criança faz sua s en c o menda s ,
qtier escuta r deter• minada história, p e d e q u e lhe
alcance m cert o livrinho, propõ e q u e s e brinqu e co m
ela considerando - a c o m o se fosse um a personag e m .
Enfim, essa s trocas entr e o adulto e a criança, t end o
os conto s c o m o intermediá • rios, p o d e m o p er a r
c o m o um a espéci e d e diálog o inconsciente.
O important e é t er m o s clar o q u e a
crianç a é garimpeira, está sempr e buscand o
pepita s n o mei o do cascalho n u m e r o s o q u e lhe é
servid o pel a vida. A relação da infância co m as
histórias fantásticas é antiga e sólida, o q u e no s leva à
convicçã o de q u e essa ficção é preciosa para as
mente s jovens.
Teste mu nho s e m anális e s o br e a força
dessa s histórias sã o freqüentes, é c o m u m paciente
s adulto s mencionarem um cont o de fada ou um a
ficção infantil contemporâne a q u e nunc a esquecera m
e q u e jamais, desde qu e a escutaram , foram os
mes m os . Essas lem• branças abre m boa s associaçõe s
para sua s análises. E ainda, há q u e m diga q u e as
coisas mais dura s q u e já escutaram estava m
contida s e m algum cont o d e fada ou numa
história infantil e q u e nunc a mais vivencio u uma
empatia tã o intensa junt o a outr a forma de arte.
Nesses relatos, a lembranç a do cont o é
a c o m p a n h a d a d a evocação d o m o m e n t o d a narrativa,
o u seja, q u e m apresentou a história, q u a n d o e
o n d e isso se deu .
Portanto, seja co n ta d o po r algué m o u po r
outr o meio, há um encont r o entr e as crianças e
os conto s de fadas q u e rarament e falha. Se alguma s
tê m a sorte de ter adultos q u e sejam narradores ,
certament e isso vai fazer parte da su a memóri a relativa
â história. Mas, aqueles qu e n ã o tê m essa
oportu nidad e , encontrar ã o nos livros, na TV, na
escola, no cinema , no teatro um a fonte ond e bebe r sua s
dose s de fantasia e ficção. Aliás, mesmo a s crianças qu e
escuta m histórias narrada s po r seus pais, parente s o u
cuidadores , recorrerã o t a m b é m a outros meios , poi s
par a elas import a a qualidade , mas també m a
29
visão, o important e é qu e , de algu m m o d o , as
histórias c h e g u e m até as criança s par a ajudá-
las a pensar , e q u an t o m e n o s impessoa l for o
veícul o dess a narrativa, tant o melhore s serã o
seu s efeitos.

Notas
1. CALVINO, ítalo . Fábulas Italianas. São
Paulo : Companhia das Letras, 1992. p.15.
2. Essa proliferação de categorias nã o pára
de nos surpreender. A título de exemplo ,
podemo s citar um a séri e televisiv a d e
sucess o recente : o s Teletubbies,
provavelmente o primeiro programa no qual se
trata de captar a lógica dos bebê s para cativá- los.
A reação de seu público extremamente precoce
parece confirmar o acerto da proposta.
3. A transformação dos contos de fadas em relatos
bem co mp ortado s e meno s grotesco s nã o
é absolu • tamente fruto de arroubo s
pedagógicos recentes. Por exemplo, já no
início do século XIX, ao longo das sucessivas
edições da compilação dos irmãos Grimm .
é possíve l a c o m p a n h a r o progressiv o
abrandament o das tramas e das personagens,
com o a transformação da mãe má em
madrasta. "Em seu idealismo romântico, os
Grimm literalmente nã o toleravam que uma
presença materna fosse equívoca ou perigosa, e
preferiram bani-la completamente. Para eles, a
mãe má precisava desaparecer para que o idea l
so br e vi ve s s e e permitiss e q u e a Mãe
florescesse com o símbolo do eterno feminino, a
terra natal, e a família em si co m o o
mais elevad o desiderato social." In WARNER.
Marina. Da Fera à Loira: sobre Contos de Fadas
e Seus Narradores. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999, p.244.
4. PROPP, Vladimir. Morfologia do Conto, Lisboa: Vega
Editora, 2003-
5. O exempl o mais clássico desse tipo de pesquisa
é o conhecid o As- Raízes Históricas do
Conto Maravi• lhoso, de Vladimir Propp. Para dar
um exemplo mais recente, em 1994, foi
publicado o livro de Marina Warner, Da
Fera à Loira: Sobre Contos de Fadas e Seus
Narradores, qu e realiza uma viagem
pel o c o n t e x t o históric o da s narrativa s
tradicionai s , e n f o c a n d o p r i n c i p a l m e n t e a
i mp o rtâ n ci a da s mulheres.
6. LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia
Estrutural. Rio de Janeiro: Temp o Brasileiro,
1985. p.250.
7. Um do s mais famosos casos clínicos
relatados por Sigmund Freud, popularment e
conhecid o com o O Homem dos Lobos, tem
boa parte de seu conteúd o
Fada s n o D i v ã — Ps ic a n áli s e n a s His t óri a s Infa nti s

baseada em reminiscências do paciente relacio• nu m livro de contos de fadas. Sua irmã


nadas a contos infantis, assim com o às circuns• mais velha, qu e lhe era superior, costumava
tâncias em qu e os escutou ou leu. apoquen- tá-lo segurand o essa figura
Relativo à análise de um sonho, em qu e específica na sua frente, sob qualquer
aparecem lobos no s galhos de uma pretexto, para qu e ele ficas• se aterrorizado e
árvore, Freud comenta : começasse a gritar". In: FREUD, Sigmund.
"Sempre vinculara esse sonh o à recordação História de uma Neurose Infantil. Obra s
de que, durante esses anos de infância, Completas, vol. XVII. Rio de Janeiro :
tinha um med o tremendo da figura de um Imago Editora. 1987, p.46.
lobo que vira
30
Capítulo I
EM BUSCA DE UM LUGAR

O Patinho Feio, Dumbo e Cachinhos Dourados


Desamparo infantil - Valor da infância na modernidade - Vínculo mãe-
bebê Angústia de separação - Valor social da maternidade e do amor
materno - Sentimentos de inadequação e de rejeição na família

Andersen foi, sozinho,


responsável por um revigoramento do
conto de fadas e um alargamento de
seus limites
para acomoda r novos desejos e
fantasias.
Maria Tatar1

A cabeç a é desproporcionalmen t e realment e são. Com o tempo , vã o ficando


grande ; a s pernas , praticament e graciosos, r os a d o s e prop orcionai s , ca p az e s d e
atrofiadas, sã o incapaze s d e sus• co m u n ic aç ã o , estand o realmente habilitados a ocupa r
tenta r o c o r p o ; o s o l h o s um lugar ao sol. Antes disso são... patinhos feios.
tê m um a película opac a e Escolhemos para iniciar este livro aquela s histórias
azulad a q u e lhe torn a o olha r q u e no s oportunizasse m falar da chegad a da criança na
en e vo a d o ; o cheir o n ã o é família, da s dificuldades q u e u m b e b ê enfrenta
melho r q u e a aparência : fezes par a encontra r e constati r um lugar no mundo . Embor a
e vômit o sã o e m a na çõ e s essa primeira parte do livro seja dedicad a á análise do s
constantes . À s veze s conto s da tradição, partiremo s de dois exemplare s
são carecas, n ã o p o s s u e m linguagem , p r o d u z e m atípicos, já qu e sã o conto s do sécul o XIX: O
son s desagradáveis e guturai s emitido s a pleno s Patinho Feio,2 escrito po r Andersen ; e Cachinhos
pul mões . E ainda achamo s u m b e b ê bonito . Dourados,'' um a história em qu e as fontes e as
A beleza qu e os adultos percebe m em seu s bebês variantes se confundem , co m o n u m telefone se m
recém-nascidos é totalmente reativa diant e do qu e fio. Eles figuram em primeir o lugar,
eles
Fadas n o Div ã — P s i c a n á l i s e n a s História s Infa nti s
filme e m anim açã o d e Walt Disney,
denominado Dumbo, q u e te m c o m o
porqu e decidimo s começa r co m um a seqüênci a
q u e reproduz a a do cresciment o da s crianças.
Essas dua s histórias sã o d o agrad o da s
crianças b e m pe q u en a s . São tramas se m drama s
amorosos , n e m bruxa s vingativas. O q u e as crianças
precisam , ao se inaugura r n o m u n d o , é d e u m
lugar ac o n ch e ga n t e o n d e possa m sentir-se bem-vindas .
Patinh o Feio pass a tod a a sua infância num a espéci e de
exílio e Cachinho s Dourado s s e desencontr a co m o s
objetos d a casa do s ursos, d o s quai s esperaria obte r
algu m bem-estar. Esses personagen s no s lembra m qu
e n ã o é fácil chega r a o m u nd o , co meça mo s ao s
berros , e o de sa m p a r o amea • ça-no s po r um bo m
te m p o . As crianças e sua s famílias têm colaborad o
para a preservaçã o dessa s histórias centenária s
porqu e elas sã o u m retrato da s primeiras lágrimas,
daquil o pel o qua l c h o r a m o s antes , muit o antes,
de saber o significado do amor.
Não há fadas nesses primeiros contos de qu e
no s ocupamos, aliás, há inclusive que m diga qu e sequer
sejam contos de fadas, já qu e lhes faltam os elemento s
mágicos em sua forma tradicional. Bettelheim lhes
neg a essa característica, porqu e nã o há a luta do
herói, vencend o as provações e encaminhando-.se
para a resolução de um conflito, itens qu e ele considera
imprescindíveis para essa classificação. Quant o a
nós, acreditamo s qu e o simples fato de haver
uma família de ursos m orand o numa casinha na
floresta, qu e dorm e em camas, senta em cadeiras e
com e na tigela é o bastante para situar o leitor nu m
território mágico. Se contarmo s ainda co m uma
pata preocupad a co m a imagem pública da sua
prole e co m uma série de animais falantes no
caminh o de um angustiado patinho, temo s dose s
de fantástico suficientes para reivindicar a essas
histórias algum lugar n o m u n d o mágico, senã o
enqua nt o conto s d e fadas, pel o meno s na categoria
de conto s maravilhosos.'
Q u an t o à crítica d e Bettelheim, d e q u e
nessa s histórias faltaria a luta da persona ge m rum
o á supe • ração , p e n s a m o s q u e , nest a form a
d e catalogaçã o subjetiva, faltaria considera r outras
formas de superaçã o q u e nã o passa m po r vence r
bruxas , dragõe s o u con • quistar princesas. A
jornad a desse s p e q u e n o s heróis , o patinh o e a
menina , é mais interior do q u e exterior. O primeir o
luta contr a o de s a m pa r o e a desespera nça , a segund a
busca se u lugar n u m a casa, num a família. Por
isso, d e n o m i n a m o s este capítul o de Em Busca de
um Lugar.
Para efeitos d e atualizaçã o da s questõe s
abor • dadas , lançamo s m ã o à anális e d a q ue l e
q u e consi • dera mo s um a versã o m o d e r n a par a
O Patinho Feio, d e Andersen . Trata-se d e u m
cont o coincidência s e diferença s q u e no s permitirão
discutir questõe s sobr e a infância conte mporâ ne a .

Novas personagens para


um novo público
s crianças demoraram até quase o fim do
século XVI para serem dignas de alguma
importância e atenção. Antes disso, quando
sobreviviam aos altos índices de mortalidade
infantil, eram criadas entre os adultos, compartilhando
promiscuamente todos os aspectos da vida, até que a
maturidade física as tornava um deles. A partir do
momento em que passaram a valer mais para seus
adultos, conquistaram o direito a um reduto literário. Estas
duas histórias de que nos ocuparemos, por
exemplo, foram escritas e compiladas numa época em que
os pequenos já eram objeto de preocupação, sendo inclusive
dedicadas às crianças. Sua origem é diferente dos outros
contos de fadas da tradição, que conhe• cemos através
das compilações de Perrault e dos irmãos Grimm, entre
outros. Estes clássicos, por sua vez, se deslizaram da sua
audiência adulta original, constituída pelos trabalhadores em
seu momento de descanso ou pelos nobres em seus salões,
para a condição de uma narrativa destinada às crianças.
Hans Christian Andersen escolheu as crianças
como seu público, mas não sem vacilaçào. Era comum aos
autores de literatura infantil, que antes tinham
tentado vencer no território da escrita para adultos,
considerada mais séria, poré m só conheceram a
consagração como escritores para crianças, obtendo
junto a elas o prestígio que os meios literários
lhes haviam neg ado . De qualqu e r maneira ,
convém observar que esses contos, que atendem tão bem
ao critério da sensibilidade das crianças pequenas, datam do
século XIX. O primeiro livro de literatura infantil de
Andersen foi publicado em 1835, já a versão mais antiga
de que se tem notícia do conto de Cachínhos
Dourados foi escrita por Eleanor Mure, por volta de
1830, para seu sobrinho de 6 anos. Nessa versão, a
invasora ainda ' era uma velha, ela só assume a
identidade de uma menininha em 1850.5
Não surpreende que os contos que nos propiciam
abordar assuntos relativos aos bem pequenos sejam
diferenciados e um pouco posteriores aos da tradição. Como
ressaltamos acima, Andersen reinventou o conto de fadas
para os novos tempos. A sociedade que passou a
valorizar a infância presta atenção à constru• ção da vida de
cada indivíduo, agora levando em conta
D i a n a Li c h t e n s t e i n Co rs o e Mári o C o r s
o
sentiu rejeitado até pelo s cães de caça, q u e o farejaram
mas , n ã o o morder am . Sempre v o a n d o par a long e d o
perigo , el e caiu n a
3S permitirão seus pensa m ento s , sua s convicções , seu s desejo
nporânea. s e principalmente suas particularidades. A literatura
sofreu transformações com o u m todo , a s
persona gen s dei• xaram de ser estereotipadas , e as
aventura s passara m a incluir aspecto s relativos a
tensõe s subjetivas.
Patinho Feio é um do s primeiros heróis mod erno s
escritos para crianças, seu drama baseia-se nu m
ise o fim d
per• sistente sentimento de rejeição. Inclusive ele
o s de
tem sido considerado co m o u m alter-ego d o própri
alguma iisso,
o Andersen. O conto poderia ser lido co m o um a
quand o
descrição alegórica da infância difícil dess e dinamarquê s
? mortalidade
de origem humild e e aparência bizarra, q u e passo u
npartilhando
po r mau s b o c a d o s devid o à su a p e r s o n a l i d a d e
da, até qu e a
sensível , c o n s i d e r a d a efeminada po r alguns d e seu
A partir do s contemporâneo s .
tis para seu s
Anderse n coloco u muito s conflitos
luto literário,
e m oc io n ai s modernos, incluind o o sofrimento subjetivo
aremos, p o r
da s perso • nagens, dentr o d e u m format o e m q u e
na época em s e beneficio u dos recursos d o s conto s maravilhosos .
pação, send o Assim, recrian • d o o cont o d e fadas par a
TI é diferente n e c e s s i d a d e s d e o ut r o s tempos, contribui u par a
que conhe - e a c o ns a gr aç ã o d o gênero , enquant o um a
dos irmãos r modalidad e narrativ a , nã o n e c e s • sariamente
sua vez, se pres a a de te r mi n a d a constelaçã o d e tipo s de
1, constituída persona gen s e tramas .
descanso ou
lição de um a

O Patinho Feio
as crianças
. Era comu m históri a d o Patinh o Fei o é
intes tinham a m p l a m e n t e conhecida . Mas n ã o i m p e d e
)ara adultos, qu e a recon - temo s - em grande s
nheceram a pincelada s - tant o para alicerçar a análise
:as, obtend o q u e faremos q u an t o para
terários lhes retomar a história original, pois ela é muit o
ra, c o n v é m difundida com passagen s cortada s ou simplificadas.
tão bem a o N o com eç o havia u m ov o diferente n o ninh o
íenas, datam d e uma pata, ele era maio r e de ch o c o mais
itura infantil d e m o r a d o que os outros . Por fim, de u orige m a
versão mais e um a avezinh a graúda, desengonçad a e acinzentada , em
Cachinhos por nada parecida com seu s gracioso s irmãos . Seu
volta de as pe c t o distint o é determinante para ser discriminad o
•sa versão, a po r todos , inclusive pela mãe . Após s e enche r do s maus-
5 assum e trato s dispensa do s por ela, irmão s e vizinhos, el e voo
a os propiciam u para long e dess e galinheiro infernal.
uenos sejam No lago o n d e foi parar, relacionou-s e co m
da tradição, doi s jovens gansos , apesa r da frase inicial dess a
ntou o cont o amizade :
:iedade q u e "você é tã o feio, que vamo s c o m a sua
io à constru- cara". Mas durou p o u c o ess e laço, poi s seu s
do em conta amigo s foram aba • tidos num a caçada . Escondid o entr
e o s juncos , salvou- s e d e um a carnificina q u e liquido u
co m tud o q u e voa• va. Paradoxalmente , el e se
d e de um caçado r qu e o desentranho u do gel o e
o levou para sua casa. Lá, devid o a
tanto sofrimento qu e teve na vida, interpretou com
choup o agressões as brincadeiras do s filhos de seu
an a salvador. Numa tentativa d e escapa r deles,
d e provoco u uma revoada desastrosa, derrama nd
um a o a manteiga, o leite e a farinha da
velha , casa. Q u a n d o a mulhe r d o caçado r gritou,
qu e po r caus a d a confusão, ele fugiu mais uma vez,
o resignado a sobreviver sozinh o no lago até a
acolhe primavera. Essa estação troux e de volta os
u cisnes, as bela s aves q u e ele admirara e vira partir
pensa no outono . F.ntão, ao curvar a cabeça de
nd o m e d o de que eles t a m b é m o maltratassem ,
tratar- ele se viu no espelh o das águas, descobrind o
se de qu e havia transformado- se no mais bel o dos
um a cisnes.
pata
poedei Pouca s histórias infantis foram capaze s
ra . Lá de um a e m p a t i a t ã o fo rt e e d u r a d o u r a
se co m o p ú b l i c o , certament e devid o a o
sentia mérit o d e traduzir muit o b e m a angústia da
hostili criança pe q ue n a . O calvário do cisnezinho , q u e
zado foi cair no ni n h o errado , é igual ao de todo s
pelo s nós . Na verdade , a trama sintetiza dua s
outro s fantasias assusta• doras : um a do s pais, o
animai m e d o de ter o filho trocad o po r outr o -
s da hoje, po r um equívoc o na maternidade ,
casa e outrora po r alguma artimanha d e algué m o u d o
foi destino; e outr a do s filhos, a de
ficand descobrirem-s e adotivos. Na primeira, o
o co m filho está no ninh o errado ; na segunda ,
sauda ele ve m d o ov o errado . Ambas ,
de da entretanto , evoca m um a certa verdade :
água , s o m o s t o d o s adotivos , o laç o biológic o nã
até o no s oferece a s garantias necessárias par a sentir-
qu e s e a m a d o . Me s m o q u e sejamo s nascido
decidi s d a mesm a mã e q u e no s ama me ntar á e
u educará , aind a resta um vag o e
voltar desagradáve l sentime n t o de ser o ov o
a o errad o n o ninh o errado .
lago. Entre o feto q u e se avolum a na barriga
T e o b e b ê q u e sai e é ap re s en ta d o ao s
ud o pais n ã o há um a iden• tificação direta.
corre u Acreditamo s q u e o b e b ê e a mã e se
be m reconh ece m , a música d e fund o dess e
at é a encontr o amo • ros o é o batiment o cardíac o
chega m at er n o q u e comparti • lhara m tod a a
da d gestação , assim c o m o há o reconhe •
o ciment o da s voze s mais constantes , q u e
invern penetra m n a cavidad e líquida d o n e n ê . Porém ,
o , isso n ã o terá sentid o s e n ã o for reapresentad o
quand ao b e b ê .
o Ele reconh ece r á a voz da m ã e do
ficou lad o de fora c o m o s e n d o a q u e l e m e s m o
congel s o m a b a f a d o q u e s e imiscuía na s água s
ad o e uterina s q u e o banha va m , d es d e q u e ela
desma reintroduz a ess a vo z n a vida dele . A
iou . mãe
Teria
morrid
o , nã o 3
fosse a 3
b on d a
Fada s n o D i v ã - P s i c a n á li s e n a s His t ór i a s Infa n ti s
pr ee n ch e r o

precisará conquistá-lo , falando co m ele , par a q u e


el e conect e o so m de fora co m o de dentro . Já,
par a ela, será difícil reconh ece r naquel e ser esquálid o
e sujinho o filho q u e tant o fantasiou; el e també m terá d e
seduzi r su a m ã e . m a m a n d o e m se u s seios ,
d e m o n s t r a n d o capacidad e d e respon de r ao s seu s
estímulos .
O volum e do ventr e ma tern o é p re e nc hi d o
pela fantasia do filho perfeito, já o b e b ê q u e
sai, c o m o dizíamos , é o patinh o feio. A m ã e precisa
olhar, reco • nhece r e adota r ess e recém-nascid o
c o m o se u filho. O víncul o q u e existia na gestaçã o
entr e o feto e a mã e precisa ser renegociado . Te m tud o
para da r certo. E m geral, o pact o de olhare s entr e
o recém-nascid o e a mã e é tão rápid o e eficiente
q u e n e m é visível, n e m parec e qu e foi necessário .
Embor a o amo r à primeira vista entr e ele s doi s
p os s a se r fulminante , n ã o é automátic o ne m
infalível, c o m o prova m a s psicose s puerperai s e
as descone xõe s do b e b ê .
A mã e e o beb ê têm vários m o m e nt o s
para se desencontrar : n a gestação , n o part o o u n o
puerpéri o . Em todo s os casos trata-se do fracasso
de um víncul o q u e gostaríamos d e crer c o m o natural.
Entre o s animais, os filhotes fracos e defeituoso s sã
o deixado s morre r ou sã o devorado s pela própri
a mãe . For mais cruel q u e seja, isso no s parec e
mais compreensível , já q u e nesse s casos a rejeição de
um filhote o b e d e c e a algum a lógica biológica.
No cas o da mã e hu ma na , a lógica q u e
reg e o víncul o é infinitamente mais complicada . Na
gestaçã o o u n o parto , po r e xe m p l o , ela p o d e
rejeitar u m filho perfeito q u e reconheç a c o m o seu,
p o r q u e ocorr e qu e ela nã o s e admit e n o pape l d e mãe
. N o puerpério , ela p o de r á dedicar -s e a o filho,
atencios a e prestativa , ocupan do -s e dele, mas o
beb ê p er ce b e q u e ela está emocionalmen t e
alienada , suprind o a falta de víncul o c o m um a
eficiência m e câ ni c a . Po r isso, u m beb ê
limpinho, gordinh o e belo , pod e ser
com pleta men t e desconecta d o po r n ã o ter e n c on tr a d
o seu ninho .
Na maior part e da s vezes , ao escuta r o
primeir o chor o d o recém-said o d e seu ventre , a mã
e sent e q u e es t e é o se u e s p e r a d o b e b ê ,
o l h a r o c o r p i n h o en s a n gü e nt a d o só confirma o
q u e seu s ouvido s já lhe informaram, po r isso, o
encontr o é feliz. Mas a suspeit a q u e t o d o s t e m o s é
de sermo s incapaze s de n o s igualarmo s à
fantasia q u e s e avolumar a n o ventr e d e noss a mãe .
Esse temo r no s a co m p a n ha r á par a sempre , justificando o
sentiment o de rejeição q u e no s identifica ao patinho ,
a b a n d o n a d o e órfão d e s d e o ovo . O ventr e da mã e é
estufado de ideal, os filhos cresce m e, m e s m o q u e s e
t o r n e m belo s cisnes , ficam s e m p r e c o m o
sentiment o d e q u e lhe s falta alg o par a
de seu s pais. A família tradicional era um lugar
árido e, se um filho n ã o tivesse predica do s log o
ao nascer, provavelmen t e n ã o sobreviveria . Crianças
q u e a mã e esperava . Essa defasage m é o tecido defeituosas, co m incapacidades , nã o teriam maiore s
do cont o d o Patinh o Feio. regalias e, caso sobrevivesse m , aind a teriam de
A história t a m b é m lembr a q u e o ambient e que levar o estigma de falhadas, já q u e os pais
re ce b e m e s m o o mai s a m a d o e e s p e r a d o do s filhos seriam be m francos em não esconde r o q u an t o
n ã o deixa de ter sua s hostilidades . Além da s supra• lhes desagradav a um filho aleijado, po r e x e m pl o .
citadas eventualidad e s ou fantasias de rejeição, está o Cremos q u e o feio p o d e ser usad o para toda a gam a
fato de os b eb ê s interpretare m c o m o hostilidades exter• na s do qu e nã o se encaixa num a normalidade, algo q u e
até m e s m o aquela s q u e s e p r o d u z e m dentro d o se u está fora do padrã o - pel o que contam os
pr ó pr i o c o r p o . Fome , gases , c an s aç o e cólicas p o d e biógrafos, o própri o Andersen , excêntric o e
m p ar ec e r u m v er da de ir o c o m p l ô d o mund o delicado, era diferente d o padrão .
contra si. For isso. n ã o é difícil imaginar q u e todo o
b e b ê po r veze s habit a u m m u n d o hostil, gelad o
e solitário c o m o o do patinho . Na clássica história
de Andersen , a p e q u e n a av e interpreta c o m o Dumbo: um amor
maldade at é mesm o açõe s benéfica s o u se m grande como um
i n t e n ç ã o d e m a c h u c a r q u e lh e s ã o dir ig id a s . O
p a t i n h o está pa ra n ói c o d e p o i s d e t u d o o q u e
elefante
sofreu. U m bebê t a m b é m fica inconsoláve l em certas
filme Dumbo é mai s um a criaçã o de
ocasiões, afinal, ele está m o r r e n d o de cólicas e ningu é m
Walt Disney que , s e p o d e dizer, fo i
fez nada para impedir...
responsável po r u m revigoramen t o d o s
Há també m algo de verdad e histórica neste conto: a s conto s d e fadas.
criança s p r é - m o d e r n a s est a v a m mai s sós . S e o Desd e o la n ça m e n t o de se u filme
persona ge m d o Patinh o n ã o era dign o d o amo r d e sobr e a Branca de Nev e (e m 1936), el e foi o
sua mãe , isso n ã o constituía um a realidad e tã o distante par a precurso r de outr a mo dali dad e d e apropriaçã o d
se u autor . Nu m passad o mai s r e c e n t e para a linguage m dos conto s d e fadas, agor a narrado s e
Anderse n do q u e par a os dias de hoje, era freqüente a m c o m p as s o com a s
história d e crianças q u e n ã o era m adotada s n o amor

34
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o

imagens, so b forma de d e se n h o s animados . As histórias


da tradição oral, assim c o m o aquela s obra s
literárias qu e se tornara m clássicas, c o m o é o cas o de
O Patinho Feio, deve m sua sobrevivência às sucessivas
reapropria - ções d e q u e foram objetos. O s
compilador e s tradicio• nais, co m o Perrault, as adaptara
m à linguage m de seu tempo. P od e m o s dize r q u e
houv e - e haver á - repeti• dos mo m ento s d e
reciclagem, e m q u e velha s narrativas se atualizam em
nova s linguagens . Uma história n ã o necessariamente
super a a outra, muita s vezes , p o d e m proliferar
versões ou tramas inspiradas uma s nas outras. Lançado em
1941, Bumbo lembra o cont o de Andersen, não o
substitui n e m o supera . Por isso, vamo s enfocar nossa
leitura na s diferenças entr e essa s histórias.
A história do elefante voado r foi escrita
pel o próprio Disney. Ele afirmou ter se inspirado na
Figura de um elefante qu e vira num a caixa de cereais.
Através desse desenh o animado , aproximadament e u
m século depois, o patinh o feio e rejeitado
transformou-se nu m bebê-elefante qu e nasceu co m
gigantescas orelha s d e abano. Esse defeito o
tornava motivo de escárnio po r parte de todo s no
circo em q u e vivia. Mas agora o filhote torto está
co m a sua mãe , e ambo s sofrem co m o seu defeito. A
novidade é qu e a mã e modern a aceita - pelo meno s
tem de aceitar - o filho do jeito qu e venha . Afinal,
agora o amo r matern o é um valor em si.
Mesmo contand o inicialmente co m o amo r da sua
mãe, o drama de D u m b o tam bé m é de separação . Don a
Jumbo, a mãe , é encarcerad a apó s ter um a
crise de fúria contr a a q u e l e s q u e maltratav a m
su a cria. O elefantinho ficou só, tend o apena s o rato
Timóte o co m o conselheiro. Co m um final feliz, a
história termina pro • vando qu e o defeito de Dumb
o era na verdad e um a virtude, pois suas enor me s
orelha s o transformam nu m elefante voador. Com o o
Patinho Feio, cuja aparência diferente nã o era um
defeito, apena s uma característica das jovens aves de
sua espécie , o elefantinho tinha as tais orelha s
destinada s a alg o maior. Ambo s desco • nheciam
suas qualidades, qu e carregavam consigo com o um fardo,
ambo s se descobrira m superiore s ao s outros, mas s ó
depoi s d e u m bocad o d e sofrimento.
Até o c o m e ç o da sociedad e m o de r n a , o
amo r matern o n ã o figurava entr e o s requisito s
q u e um a mulher queri a reivindicar par a si. Nos
primeiro s mo • mentos da eman cipaçã o feminina, era
grand e o desej o d e desincumbir-s e d o s filhos e d
o lar, se m p r e q u e houvesse posse s par a isso.
Libertadas d o p e s a d o fardo do trabalh o doméstico , as
n ob r e s eman cipad a s e as primeiras burguesa s
jogara m o b e b ê fora junt o c o m a água d o b an h o ,
dedicaram-s e a o óci o e à s tentativas de se
mimetizar co m os privilégios e as tarefas mascu •
linas. Incu mbia m seu s b e b ê s ao s cuidado s d e
amas - de-leite , muita s veze s fora d o lar d e
origem , e o s recebia m d e volta q u a n d o j á tivessem
formato d e gente . se tivessem sobrevivid o até lá."
Na mo d er ni d ad e , o filho passa a ser um
projeto prioritário para a mãe , m e s m o ante s
de prova r sua viabilidade. O destin o dela está
associad o ao do filho. A sociedad e incluiu o
cu id a d o co m a família entr e as realizaçõe s
necessária s para atingir o sucesso . Acaba valend o
a máxima : "diga-me c o m o sã o teu s filhos e eu
te direi q u e m és". A maternidad e nã o é um a
tarefa degredada , realizada no s bastidore s d a
sociedade , hoje el a é importante , central ,
d i g n a de o c u p a ç ã o e p r e o c u p a ç ã o .
Q u a n d o Disney criou D u m b o , essa muda n ç
a já estava consolidada . Dona J u m b o nã o s e faz d e
rogada , aceita o seu filhote e briga po r ele,
m e s m o q u e isso venh a a arruiná-la, c o m o é o
caso . O filho vai ser se mpr e sentid o e vivido com
o se fosse part e da própria mãe . Ela ficará ao seu
lad o no infortúnio e ele será sua extensã o
narcísica.
O dram a d o elefantinh o centra-se n o fato d
e q u e ele se vê privad o dess a proteção , q u an d o
sua mã e é e n ca rc er a d a . Essa história te m se u
fim q u a n d o s e produ z o milagre de fazer um elefante
voar. A diferença entr e a história do pat o e do
elefante está na consa • graçã o d o amo r m atern o
co m o u m grand e valor. O patinh o j á
demonstr a ess a valorização , p el o lad o
negativo , na medid a em q u e a história frisa a
rejeição egoísta da pata e o de sa m p a r o do filho.
D u m b o . qu e te m sua mã e a seu lado . nã o se
transforma num a bela criatura preexistent e na
natureza , co m o o cisne, ele se revela um ser
fantástico, um elefante voador . Co m o vemos , a s
mãe s n ã o investem e m troca d e pouco.. .
Nesse sentido , o final do filme de Disney
difere do cont o de Andersen : em O Patinho Feio, a
felicidade signific a e n c o n t r a r a tri b o e te r
u m a e x i s t ê n c i a autônoma ; para D u mbo , o final feliz
está em preenche r as expectativa s do ideal matern o e
ser algo grandioso . O impossível de um elefante
voar aconteceu , logo as fantasias desatinada s d e
um a mã e dedicad a p o d e m ser alcançadas .
Assumir o formato do ideal materno , no entanto ,
é Lima propost a regressiva. E um a pos •
sibilidade de se entrega r infantilmente à condiç ã
o de ser objet o da mãe . Infelizmente, a
experiênci a clínica n o s revela o q ua n t o isso puls
a forte em cad a um de nós , perseguin do-no s a
vida inteira.
S e n a m o d e r n i d a d e a mã e m u d o u , o
m e s m o ocorre u co m a infância. O aspect o mais
marcant e dess a modificaçã o é se u prolongamento . Nã
o h á mai s press a e m a ba n d o n a r a s asas d a mãe . Junt o
dess a prorrogaçã o

35
Fadas n o Div ã — Ps ic a n áli s e n a s Hi st ór i a s Infanti s

d o crescimento , estã o a valorização dess e p er ío d o masculinos , a condiçã o universal e p re c oc e de


d a vida e as expectativa s q u e temo s dele : ser suas representaçõ e s n ã o oferec e barreira s à
crianças p o r mai s tempo , par a q u e o s pai s identificação da s meninas .
t a m b é m p os s a m investir mais e m torna r o s filhos alg o A o c o m p a r a r a história d e D u m b o c o m
mais próxi m o d e se u ideal. Em Dumbo. essa infância a d o P a t i n h o Feio , p o d e m o s p e n s a r q u e o
prolonga d a já está presente , poi s ele é u m heró i c o n t o d e Anderse n n ã o se deixo u substituir e
fixado ness e períod o d e idílio co m a mãe . é mantid o vivo pela s crianças e seu s pais , graça s
E o pai de Dumbo ? Nã o temo s notícia, â ênfas e no fato de q u e cad a u m terá d e batalha r pel o
ma s a função paterna é feita po r um ratinho, o Timóteo . se u lugar n o mundo . Embor a D u m b o tenh a vivid o
Com o nas histórias d e fadas qu e veremo s adiante, su a aventur a long e d a pr ot eç ã o materna , nu m a
temo s u m pai desvalorizado, nest e caso, minúsculo . jornad a d e crescimento , a fonte d e sofriment o s e
A assimetria dess e casal rato-elefante , n o exercíci situa n a conjugaçã o d a hostili• d a d e d o m u n d o co
o da s funçõe s pa te r n a e mat er n a , simboliz a m a ausênci a d a m ã e . O Patinh o Feio n ã o
b e m o q u e s e m p r e sentimos: uma mã e maior d esperav a nad a d e su a m ãe , q u e aliás s e
o q u e suportamos ; e u m pai sempr e a qu é m d o re ve l o u um a m a d r a s t a . Mas c o m p a r t i l h a m o s
necessári o par a barra r a sua potência. Nas piada co m a m b o s um a certa d o s e d e d e s a m p a r o e d e
s tradicionais, o e n o r m e elefante costuma ter me d sentiment o d e rejeição , o q u e n o s impulsion a n
o d e ratos, mostrand o q u e tama nh o nã o é a busc a d e u m lugar a o sol.
documento . Porém, nã o deixa de ser ilustrativo qu e O Patinho Feio já se descolo u de se u
a mã e seja tão imensa, en q ua n t o o personage m criador, foi a p r o p ri a d o po r todo s e circula em
qu e poderíamo s associar a o pai seja tã o p e qu e ni n o . várias versões. Sua força é tal q u e muito s c h e g a
O ratinho representa um pai qu e surge com o m a cre r q u e é um c o nt o d a tradiçã o oral, o
um conselheiro oportun o e sábio, ma s só depoi s q u e serv e par a prova r qu e a s criaçõe s literárias
q u e o destino tira de cena a don a Jumbo , cujo p o d e m ter a m es m a pregnânci a q u e o s conto s
amo r paqui- dérmico ocupav a todo s os espaços . ancestrais . H á alg o d e estrutur a co mu m e nt r e ess a
Timóte o cria um objeto mágico, uma peninha, q u e faz criaçã o d e A n d er s e n e o s c o n t o s tradi• cionais
co m q u e o elefan- tinho perca o med o de voar. : o p ati n h o n ã o r e c e b e u m p r e n o m e , designa - s e
Convence-o qu e se estiver segurando-a na tromba nã o pela s característica s funcionai s d o p er s on a ge m ,
cairá. Só depois, qu a n d o Du mb o já estava assim c o m o o final feliz redim e e justifica o sofrimento
convencido de seu dom , Timóteo lhe revela qu e a a n t e ri o r . Falt a p o r é m a t r a d i c i o n a l r e v a n c h
história da peninh a fora um p e q u e n o truque. Não pod e e o u p u n i ç ã o dos vilões. Nessa história n ã o
haver nada mais patern o d o q u e esse há um vilão específico, a pe n a s o ambient e te m
episódio . Ele é similar ao qu e ocorr e q u a n d o as crianças sua s rusticidades, ele sofre de frio e fome. O pape l
aprende m a anda r d e bicicleta: e m determinad o de ma u se reserva às ave s q u e o discriminaram ;
mo • mento , q ue m as está segurand o deixa-as soltas, assim c o m o no circo, o elefantinh o or e l h u d o
e elas segue m pedaland o sozinhas, confiantes de foi achincalhad o pela s amigas da mãe. 8 De qualque
q u e estã o send o amparadas . O trabalho do pai é r maneira , esse s p ers o n ag e n s qu e maltratam o patinh o
esse auxílio no crescimento, qu e passa po r deixar voar, estã o long e de ser vilões do quilate d e bruxas , ogro s
mas entregand o um a peninh a q u e represent e su a e dragões . T a m p o u c o encontramo s a q ue b r a de
presença , ou , co m a s mão s soltas, a c o m p a n h a c o algum a interdição , q u e geralmen t e faz a virada
m o olha r a s primeira s pedalada s independentes . da s situaçõe s n o s conto s d e fadas.
Trata-se d e u m apoi o q u e saiba se ausenta r na C o m o d i z í a m o s a n t es , c o n s i d e r a m o s q u
hora certa e possa ser substituído pela confiança no s e O Patinho Feio faz um a p o n t e entr e o
passos do filho. cont o de fadas tradicional e o ro manc e moderno , já
Quand o Anderse n escreve u O Patinho que , na trama de Andersen , a fonte do sofrimento
Feio, justamente se estava o pe ra n d o a valorização da é t a m b é m interna. Esse cont o já conté m um a
infância q u e culmino u no s dias d e hoje. For psicologia rudimentar , coisa q u e a s pe rs o na g en s do
algum a razão , porém , essa história n ã o sucumbiu . s conto s d e fadas p o d e m até revelar, ma s o
O s adulto s a se • g u e m contando , a s criança s sofrimento se dar á mais em funçã o da tragédia e m
continua m escolhendo- a c o m o algo dign o d e ser s i e m e n o s n o discurs o d a personage m . A c a m i n h a d a
repetid o a cad a noite . Pel o jeito, ela n ã o é apena d o P a t i n h o F e i o , d i f e r e n t e m e n t e d o percurs o
s um a relíquia, ela fala de coisas q u e aind a sã o ativas da s pe rs o na g e n s clássicas d e conto s d e fadas, é
n o noss o inconsciente . P e n sa m o s q u e , nesse s casos, mobilizad a p el o sentiment o de rejeição e pel a
p o u c o import a o s e x o d o perso • nagem , embor a sua vo nt a d e interna . Lembremo -no s d e q u a n d o el e
tant o o patinh o q u an t o o elefante sejam deix a a casa d a velha , o n d e n ã o estav a s e n d o
propria me n t e

36
Di a n a Li c ht e ns te i n C o r s o e Mári o C o r s o
razão : provavelmen t e a mora l contid a é mai s uma
desculpa , o q u e transmitimo s a o conta r u m a
maltratado, p o r q u e n ã o s e adapt a à co m p a n hi a
d o s outros animais doméstico s - un s tipo s b e m
desagradá • veis - e senti a s a u d a d e s d e n a d a r
na la g o a . A s dificuldades externa s auxiliam na s
decisõe s d e q u a n d o partir, mas o q u e realment e o mov e
é o fato de n ã o se sentir be m recebid o e m
deter minad o lugar.

Cachinhos Dourados:
uma casa que não acolhe
a versão mais popular, Cachinhos
Dourados fala de um a menin a qu e foi
passea r num a parte da floresta q u e ainda
n ã o conhecia . Lá e n c o n t r o u um a casa ,
provisoriamente
abandonada pelo s seu s donos : três ursos qu e
haviam saído para dar um a volta en q ua n t o seu mingau
esfriava nas tigelas. Esses ursos ás vezes sã o
representado s po r uma família - co m o na versã o mais
popula r hoje -; po r outras, são apena s o urso grande , o
médi o e o p e q u e n o . A trama é breve , conté m quas
e n e n h u m a ação ,
enfoca a pe n a s a estad a da m enin a na casa. Cachinho s
tenta saciar sua fome na s tigelas: o minga u da
grand e está muito quente , o da médi a muit o frio
e o da p e • quena, na medida . Por isso, ela c o m
e o aliment o do urso p e q u e n o . Cansada , busco u u
m lugar par a senta r e experimento u as três
cadeiras : a grand e era muit o dura, a média muit
o mol e e a p e q u e n a lhe parece u ótima, mas
ela era muit o gr a n d e par a o assent o e acabou
q ue br a nd o - o . Por último, foi tenta r dormi r um pouc o
na s cama s e a experiênci a se repetiu . Apó s
achar a cama do papa i urs o muit o dura , a da
m a m ã e muito mole e a do filhote ótima, p eg o u no
sono . Nã o durou muito se u descanso , acordo u
apavorada , rodea • d a d e ursos e m t or n o d a
cama . Nã o tev e dúvidas , pulou pela janela e
fugiu. Fim.
Cachinho s Dourado s está long e d e ser u m
b e b ê feinho, já é um a linda menin a crescida, ma s
n e m po r isso conquisto u um lugar. A preservaçã o dess a
história na vida da s crianças c o nt e m p or ân e a s já
garant e um a questã o im po rtante . Certa me nt e n ã o
seria po r se u conte úd o moral , poi s n ã o c o n t é
m n e n h u m a lição, apena s deix a u m v a g o avis o
d e q u e n ã o c o n v é m invadir propriedad e alheia, ne
m usar objetos se m auto • rização d e seu s d o no s . E m
geral, s u p o m o s q u e tod a a história possu i algu m
tip o d e moral , lição o u b o m exemplo , e isso
seria o motiv o de introduzi-la na vida d e uma criança.
Esta é um a prov a d e q u e n ã o é b e m essa a
história é alg o q u e n o s escapa , q u e o b e d e c e a deter •
minaçõe s inconscientes .
A história de Cachinh o s Dourado s n ã o é
um a lição d e bondade , d e bravura, d a
persistência neces • sária até encontra r u m lugar,
d o fato d e q u e t o d o o sofrimento u m dia terá
um a c o m p en s aç ã o . Q u a n d o o heró i nã o mostra algu
m tip o d e mérito, teríamo s aind a o fund o moral
q u e justificaria um a narrativa, c o m o alertar sobr
e os perigo s da curiosidad e (Barba Azul) o u d a
desobediênci a (Chape uzin h o Vermelho). Esse cont
o n ã o oferec e n e n h u m a m e ns a g e m positiva, seria
simplória a leitura de q u e a menin a é punid
a pela curiosidade , p a g a n d o u m preç o pela
transgressã o d e invadir um a casa q u e nã o é sua,
e que , co m ela, as crianças apren deria m a nã o
ser xeretas. Cachinho s é ap e n a s um a menininh a
cansad a e co m fome, depoi s de um a excursã o
na floresta. Afinal, se fosse o cas o d e culpa r
alguém , po r q u e n ã o re p re en d e r a casa do s urso s
po r n ã o ser mais acolhedora ?
Ela chega sozinha, vinda nã o se sab e de
onde , tenta de todas as formas encontrar no
ambiente algum tipo de aconcheg o e se desentend e co
m os objetos do • mésticos. Duros demais, muito
grandes, excessivamente moles, menore s do qu e
deveriam ou frágeis. São camas, cadeiras, pratos e
alimentos qu e se mostram inadequados, demonstrand o
sim qu e a menina nã o serve para se utilizar deles. Por
último, exausta depoi s de tantas aventuras, ela
adormec e na cama do beb ê urso, mas somente até o
retorno de seu verdadeiro dono .
T a m b é m c o n v é m nota r q u e t o d o s o s
aconte • cimentos dessa história ocorrem dentro da
casa. Aqui a floresta é com o uma boca de cena, por ond e
desaparecem e aparece m os personagens , o foco
está lá dentro. Se tivéssemos qu e resumir a
trama, diríamos: a casa nã o serve para a menina
e a menina nã o serve para a casa, enquant o a
floresta ainda nã o se constitui nu m lugar.
Boa part e da s histórias tradicionais infantis ocorr e
na floresta ou inclui a tarefa de atravessá-la. É o e s pa ç o
po r o n d e passa a missã o de sair par a o m u n d
o par a prova r algu m valor, c o m o ser capa z d e
sobrevive r ao s seu s perigos , trazer u m objeto o u
tesouro , tarefas mais usuai s do s herói s do s conto s
de fadas. Seja c o m o for, o q u e interessa é q u e
se repet e a situaçã o em q u e o p er s on a g e m pass
a p o r algu m tip o d e expulsão , fuga ou partid a
do lar, a partir da qua l e m p r e e n d e r á a
verdadeir a aventura , q u e s e desenrol a d o lad o d e
fora d e casa, n a floresta o u atravé s dela .
Viver junt o da família, na mesm a casa,
equival e a ficar à merc ê de seu s julgamento s
e desígnios . É precis o partir par a o m u n d o par a
revelar e descobri r o

37
Fadas n o D i v ã - Ps ic a n áli s e n a s História s Infanti s
feitio,

própri o valor, conquista r méritos q u e funcione m com o


um a p e q ue n a vingança. For melho r qu e seja a família,
haver á um a lista d e queixa s q u e coleciona m os ,
d o q ua nt o nã o no s consideram o s apreciado s e
a m ad o s . A primeira dessas insatisfações prové m de q u e a
criança pe quen a é excluída de um a série de
evento s e vista c o m o incapa z para muitas tarefas e
atividades, o q u e , aliás, às vezes, é a mais pura verdade .
Co m o nà o somo s norteado s pela razão, sem pr e
restarã o mágoas . E m última instância, parec e q u e
algué m deveri a paga r pel o fato d e virmo s a o m u n d
o tão impotente s e despre • parados .
A partir d o m o m e n t o e m q u e no s
julgue mo s vitoriosos n a aventur a d a vida, po r
ter c o n s e g u i d o q u a l q u e r cois a qu e achemo s
m e r e c e d o r e s d e se r apreciada pelos outros, temos um
sentimento de vingança relativo àqueles qu e pensávamo
s qu e nã o acreditavam em nós. Estes, na verdade, talvez
nunca tenha m duvidad o da nossa competência,
simplesmente no s viam co m a juventude e a
ignorância qu e de fato tínhamos, prova• velmente
estavam nos cuidand o e educando .
Apena s crescemo s um p ou c o , o suficiente
par a anda r pela s própria s pernas , e um bel o dia
passamo s a achar a casa familiar estreita e querem o s
de algum a forma partir. Desejamos transcende r aquel
e ambient e , mas sentimo s c o m o se os pais e os irmão
s no s achas • sem desvalorizado s e no s
expulsasse m . Fantasiand o um a expulsão , projetamo s
no s outro s o noss o desej o de sair.
Nos conto s d e fadas, algu m tip o d e
maltrat o preced e a partida do lar: a vida do heró i corr
e perigo , ele é mal-amado , mal-co mpre endi do . E
precis o q u e suas conquistas, em outro s reinos ou na
floresta, sirvam para mostrar às pessoa s q u e o
viram crescer, e q u e apostava m tã o pouc o nele, o seu
grand e valor. Q u a n d o ele volta para a família, o
faz chei o de tesouro s e glória. Muitas vezes, ne
m volta: vai viver sua realeza n u m m u n d o po r
el e co n q uis ta d o atravé s d o s d o n s q u e e m casa
ningué m s o u b e apreciar.
Cachinho s é totalment e atípica. Nã o há
família para testemunha r nada , ta m p o u c o ela que r provar
algo; sua história é uma simple s busc a inglória po
r algum a form a d e a m p a r o . Essa p e r s o n a g e m
talve z po s s a propiciar um a representaç ã o para a
situaçã o do filho caçula, q u e já encontr a um a
família pront a e n à o sab e o n d e se encaixar. Mas
ta m b é m serv e par a o filho mais velho , cujo lugar foi
u s u r p a d o p el o recém-c hegad o bebê , q u e tem
direito a o berç o n o quart o d o s pais ( a cama) , ao
sei o (o prato ) e a um aparent e lugar junt o a o
casal q u e s e recolh e hibernante, c o m o ursos, e
m volta d o nov o b e b ê . O m u n d o n ã o está n o se u
a comid a n à o é a q u e el e q u e r e se u lugar na
casa sofre inexplicáveis alterações .
A identificação co m Cachinhos nã o é privilégio de
crianças qu e têm irmãos, ela també m serve para
todo s o s d e s c o n t e n t a m e n t o s q u e a crianç a te m
c o m se u ambiente, qu e são vividos com o hostilidades. Se a
cama está incômoda, a comida não tem gosto bo m e as
cadeiras nà o são confortáveis, é porqu e esses objetos
nà o sào mais para a criança, e que m sab e eles já nã o a
quere m mais? Freqüentement e as crianças sente m c o m
o vind o de fora o qu e estão vivendo po r dentro.
Elas projetam seus sentimentos em pessoas e objetos do m u n d
o externo, sem a mínima noçã o de seu envolvimento.
À m e d i d a q u e cresce , o b e b ê c o m e ç a a
da r trabalho , j á nà o com e co m o m e s m o apetite , se u so n o
fica inquiet o e chei o d e p es ad el o s , n ã o pár a
s e n t a d o e m lugar n e n h u m e sua mãozi nh a curios a
s e met e e m t o d o s o s lugares , e m busc a d e algu m
objet o q u e ne m ele sab e qua l é . N a é p o c a e m
q u e c o m e ç a a caminhar , a crianç a te m um a
atividad e ansios a q u e a a c o m p a n h a r á pelo s an o s
seguintes , até q u e cons olid e a linguage m e a
c a p a c i d a d e de brincar.
Cachinho s é t a m b é m ess e ser inquieto , q u e
joga culp a n o m u n d o pel a insatisfação q u e a aflige.
Diant e d e tanta atividade d a criança, se u ambient e
doméstic o começ a a apresenta r sinais d e inadequação . O s
objetos mais frágeis sà o colocado s fora d e se u
alcance , repe • tidos nãos torna m cad a mo vim ent o se u
um a negocia • ção , h á muito s lugare s on d e nà o p o d e i r
o u coisas e m q u e nà o p o d e mexer. Além disso, o s adulto s
t a m p o u c o estã o s e m p r e d e a c o r d o c o m a o pi ni ã o
d a crianç a sobr e o m o m e n t o de fazer a higiene , se
agasalha r ou se alimentar. Se nã o há acord o relativo
ao s hábitos , muit o men o s haver á e m relaçã o a o sabo r da s
comidas , q u e aind a o b e d e c e m a o cardápi o parental ,
emb or a o p e q u e n o j á s e ach e n o direito d e fazer
sua s escolhas . De certa forma, a casa tod a fica mei o
hostil, c o m o a do s urso s par a Cachinhos .
É b o m insistir q u e o s conto s infantis n à o serve
m a p en a s à criança, o at o de narrar abre , par a os
pais, u m e s p a ç o d e e l a b o r a ç ã o s o b r e o q u e
ocorr e n o víncul o co m o filho. A história de
Cachinho s brind a a possibilidad e d e ver representad o
o seu trabalh o d e inventar u m lugar para o s
p e q u e n o s q u e che gam .
É recorrent e escuta r d a s criança s p e q u e n a s
a pergunta : o n d e e u estava q u a n d o e u aind a n ã o
tinh a nascido? A p re o cu pa ç ã o dela s é imaginar a
inexistência d e u m lugar prévio , d e d u z i n d o q u e , s e
algué m u m di a n ã o esteve , o u t r o di a p o d e r á
n ã o mai s estar . Inexistir ante s d e ter nascid o é pio
r qu e morrer, poi s q u e m morr e deix a
lembrança s, marcas de sua
Diana Lichtenstein Corso e Mário Corso

passagem. Mas quem ainda não nasceu constata que o Cachinhos também é a criança que cresceu um pouco,
mundo se virava bem sem sua presença. As respostas dos agora tem condições de olhar de fora e ver o
pais, revelando que o filho já morava em seus bebê que já não é mais.
corações ou em sua imaginação, tranqüilizam a criança, Muitas crianças têm cachinhos na primeira versão
assegurando-lhe que ela foi precedida por um desejo, o dos seus cabelos, os quais geralmente não sobrevivem
que já é um consolo. ao primeiro corte. Os cachinhos são o cabelo do bebê
Se tiver sido desejada, a criança de alguma forma que cresceu. Às penugens do recém-nascido,
existia antes de nascer. "Mas por que meus pais sorriam muitas vezes, se sucede uma cabeleira vasta e
tanto naquelas fotos da viagem, ou da boda ondulada, com cachinhos, que as mães têm pena de
ou da festa, se EU não estava lá?" Acompanha essa, a cortar, tanto em meninos quanto em meninas.
fatídica questão: "e se eu não tivesse nascido?" E terrível Possivelmente, o adjetivo dourados diga respeito ao
cons• tatar que não faríamos falta, pois não valor em ouro que esses cachos têm para as mães,
saberiam de nós. Portanto, se perguntar pelo lugar na ou ainda ao fato de a primeira cabeleira do ser humano
família, pelo desejo que justificou um nascimento é ser mais clara, alourada, que a permanente.
pura filosofia, e é dela que se incumbe Para muitas crianças, o primeiro corte de cabelo
Cachinhos. Um lugar na casa, um lugar ao sol, se o é marcante: depois nunca mais serão louras
temos, existimos. nem cacheadas, esse é um tempo que acaba
Nesse caso, os ursos funcionam como uma metáfora ali. Depois disso, há um mundo que espera, mas até
da família humana. Os animais muitas vezes representam lá, embora a casa esteja ficando um pouco
os humanos, mas os ursos são um caso particular em incômoda, o tora de casa ainda não tem
que esse comportamento é muitas vezes retomado. O registro. Nesse momento, sair correndo de casa
urso é um animal que vivia próximo do homem, facil• sem ir a lugar algum faz sentido, porque não
mente encontravel nos lugares onde os contos nasceram. há exatamente um lugar tora da família. Embora
Além disso, o urso é onívoro como o homem, pode ser a primeira infância traga consigo elementos de
feroz, mas nem sempre, é um animal de belo socialização, o mundo referencial dos pequenos
porte, pode andar em duas patas e usar as mãos, não transcende o universo familiar. Cachinhos lembra
parecendo-se conosco. Mas é o fato principalmente de aos pequenos e ás suas famílias que ainda não é hora
hibernar com suas crias que faz com que pareça ter um de sair, mas nem tudo são rosas na toca dos ursos. Por
lar para sua família, como os humanos. baixo das cabeleiras douradas e cacheadas, há
Os ursos, ao contrário da maioria dos uma revolução que se gesta.
animais, teriam suas casas, tornando-se portadores do
tema do dentro e fora do lar, do aconchego da casa da
família nuclear versus a floresta inóspita e perigosa do Leitores versu s ouvintes
mundo externo. Os animais sempre estiveram
nos contos folclóricos, mas, desde que o homem ssas histórias raramente são lidas
começou a sair do campo e vir para a cidade, eles pelas próprias crianças. Quando já
passaram a repre• sentar também a idealização da estiverem no ponto de lerem sozinhas,
natureza, um lugar onde a harmonia ainda existiria. buscarão tramas
Cachinhos Dourados diferencia-se do conto mais complicadas, que propiciem devaneios
de fadas tradicional por não ter um desfecho bem sobre a coragem e o amor. É enquanto ouvinte que seu
marca• do. Quando é descoberta, a menina foge bem jovem público se situa. Mas não há o que temer,
espavorida para a floresta, deixando aos ursos a tarefa afinal elas falam de um mundo de bichinhos, se a mãe
de recons• truir seus objetos, o equilíbrio doméstico e ou a professora contarem essas histórias tristes, a criança
arrumar a bagunça que deixou. não se sentirá obrigada a uma identificação consciente.
Na família urso, Cachinhos enfrenta impasses que Hoje tem-se optado por livros dirigidos às crianças
são os de qualquer criança quando aquilo que deveria pequenas em que se narram conflitos cotidianos, nos
ser tão adequado a ela deixa de ser seu número. quais elas próprias são protagonistas,
Já não encontra seu lugar nem junto ao pai, cujo amor explicitando emoçõe s ou p r o p o n d o soluçõe s
é duro, alto e quente demais; nem junto à e negociaçõe s possíveis. O franco otimismo desse
mãe, cuja presença esfriou qual a sopa e cujo abraço é tipo de narrativa9 ameniza o peso das escolhas
demasiado mole, às vezes sufocante; muito menos lhe temáticas, afinal, sempre apresentam uma solução ou
serve ser o bebê, cujo lugar agora parece frágil
consolo.
e pequeno .
Já os contos maravilhosos não precisam ser
tão delicados, podem tratar os assuntos com mais
crueza,
39
Fada s n o Div ã — P s i c a n á l i s e n a s Hi st ó ri a s Infanti s
consi •
derada a mais antiga disponível: um cont o
escocês,
graças ao distanciament o qu e a fantasia
oportuniza , talvez de v a m a isso su a long evida de .
O fato de o personage m ser u m pato, permit e qu e
ac o m p an h e m o s sua infância miserável; já qu e é um
elefante, nã o importa se o m u n d o o ridiculariza, e ele
necessita se fazer valer longe da mãe; e, quant o à
história da menina , c o m o a casa é de ursos, n ã o
parec e tã o preocupa nt e q u e seja tão po u c o
acolhedora , q ua n t o seria se a hostilidade proviesse
de uma casa de humanos .
O própri o do maravilhoso, tal c o m o definido
po r Todorov, é tratar-se de um tipo de escrita o n d
e o ele• ment o do sobrenatural figura co m toda a
naturalidade possível. Por mais maluco s e oníricos
qu e sejam os acontecimentos, nã o haverá
estranhamento , pois está tácito d e q u e estamo s e m
outr o registro, q u e tud o é totalmente fictício. Isso
ele denomin a de "maravilhoso puro", "que nã o se
explica de nenhu m a maneira".10

Notas
1. TATAR, Maria. Contos de Fadas: Fdição
Comentada e Ilustrada, Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2004.
2. ANDERSEN. Hans Christian. Contos de
Andersen.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
3. A compilação anteriormente citada, de autoria
de Maria Tatar. disponibiliza a variante padrã o em qu
e a personagem principal é Cachinhos Dourados;
ela também inclui a versão de Robert Southey,
publicada em 183", na qual a invasora era
uma velha. Em algumas compilações de contos para
crianças, com o Children's treasury (Global Book
Publishing, 2002) ou A Chil's Book of Slories
(Random House, 1998), a personage m é
s e m p r e a menin a C ac hi n h o s Dourados. Esta
última compilação citada atribui a autoria da
versão ã francesa Madame D'Aulnay, mas nela os
dono s da casa nã o são uma família, são
ursos de três tamanhos. Apesar dessas variantes, tudo
indica que a versão da história do s três ursos repre•
sentado s com o uma família e a invasora
com o Cachinhos Dourados veio para ficar.
4. "Relaciona-se geralmente o gênero maravilhoso
ao dos contos de fadas, o conto de fadas não é
senão uma das variedades do maravilhoso. (....)
O qu e distingue os contos de fadas é uma
certa escritura, nã o o estatuto do sobrenatural."
In: TODOROV, Tzvetan. Introdução ü
Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva,
2003, p. 60.
5. Brun o Bettelheim mencion a um a versã o
com o as mulheres devem dar conta de ser
profissionais e mães com a mesma competência, os
homen s também passaram a ter qu e mostrar
no qual a invasora é uma raposa qu e termina devo• rada
seu desempenh o n o mund o doméstico.
pelos proprietários da casa. Ele frisa, porém, qu e este
seria: "um cont o admonitório, advertindo- nos a respeitar a 8. O fato de os perseguidores de ambo s
propriedad e e a privacidade dos outros". BETTELHEIM, personagens serem figuras da mesma espécie da
Bruno. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Rio de Janeiro : mãe leva-nos a supor qu e elas nã o passam de
Paz e Terra, 2001, p. 256. Consideramos essa versão a duplicações de sua figura. Em Andersen, as
forma folclórica do conto , ante s cie ser direcionad a outras aves do galinheiro propiciam uma
ao públic o infantil. representação caricatural e exagerada da rejeição da
mãe. No caso de Dumbo , seria uma divisão
6. Ao escreve r seu s ensaios , no s ano s 1580-1590,
maniqueísta da mãe, entre uma toda boa e
Montaigne já reclama contra isso. Diz ele: "E fácil ver por
aquela madrasta que rejeita, clássica nos contos
experiência que essa afeição natural (amor dos pais), a
de fadas. Nesse caso, o papel da madrasta é
que damos tanta autoridade, tem raízes bem frágeis . Em
represen• tado pelas amigas discriminadoras de
troc a d e u m p e q u e n o benefíci o , arrancamos todos
dona Jumbo.
os dias crianças do s braços das mães e a estas
encarregamos de nossos próprios filhos; obrigamos essas 9. São livros dirigidos às crianças bem pequena s
mães a abandonar os filhos a alguma pobre ama, a quem que corajosamente enfocam, de forma direta,
não desejamos entregar os nossos, ou a alguma cabra". assuntos difíceis, com o a morte de um familiar muito
Aliás, o próprio Montaigne, que não pertencia â alta querido, a separação do s pais, a inclusão
aristocracia, quis que sua mulher recorresse a amas, de social de amigos ou colegas com alguma
tal mod o o irritava a presença de crianças pequena s sob seu deficiência, os sentimentos de raiva ou inveja e
teto. In: BADINTER, Elisabeth. Um Amor Conquistado. Rio de a desigualdade social, entre muitos outros.
Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p.66. 10. TODOROV , T z ve ta n . Introdução à
Literatura
~\ A mesma questão se coloca para os homens : hoje de
pouc o vale ser um sucesso no mund o externo e um Fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2003, p.63.
fracasso no casamento e ou na paternidade. Assim

40
Capítulo II
EXPULSOS DO
PARAÍSO

João e Maria, O Lobo e os Sete Cabritinhos e O Flautista de Hamelin


Concepção oral do mundo - Aquisição da locomoção - Desmame -
Fantasia de ser devorado - Fantasia de expulsão do lar - Distúrbios
alimentares
suficient e p a r a t o d o s . O p a i protesta, mas
ced e ao argument o de q u e o casal deveria

O s i r m ã o s d o c o n t o João
e Maria' alcançar a m a
proez a d e sere m conhecido s po r
prati• ca ment e toda s a s
crianças d o m u n d o ocidental . S
e existe u m cont o q u e fala a o
coraçã o da s crianças, este é o
caso . Nã o se p o d e dize r q u e
o s conto s d a tradiçã o
tenham uma boa
campanha d e lançament o , s e ele s sã o lem brado
s é porqu e a peneir a do s s é c ul o s o s
destaco u c o m o importantes. Co m o fonte dest a
história, e n c on tr a m o s a versã o do s irmão s
Grimm, Hansel und Gretel, publicada em 1812.
Joã o e Maria sã o filhos de um p o b r e
lenhador , cuja miséria extremad a levo u sua
esposa , madrast a das crianças, a sugerir q u e se
livrassem delas , já que nã o havia aliment o
se livrar das d u a s boca s extras para salvar a
própri a vida. A mulhe r suger e q u e as crianças sejam
levada s para o coraçã o da Floresta, par a um lugar o n d e
seriam deixada s à própri a sort e e d e o n d e n ã o saberia m
retor• nar, o u melhor, u m lugar e m q u e certament e
seriam e nc o nt ra d a s pela s feras, servindo-lhe s d e
alimento , ante s q u e achass e m a saída.
N a propost a d a madrasta , o s enteado s estava
m destinado s a o pape l d e refeição. Co m o veremos ,
era exata me nt e isso q u e assombrav a o destin o deles ,
ma s o q u e o s es pe ra v a n ã o er a u m a matilh a d
e lobo s famintos e sim outr a mulhe r perversa ,
um a brux a - provavelme n t e outr a face d a própri a
madrasta .
Nã o foi tã o fácil livrar-se da dupla . Enqua nt o
os pai s arquitetava m o plan o d e a b a n d o n o , a s
crianças, q u e n ã o havia m conseguid o conciliar o son o po r
tere m id o par a a cam a co m fome, ouvira m tudo .
Maria se desespero u , ma s J o ã o p e n s o u e m algo: n o
mei o d a noite, saiu d e casa e e nc h e u o s bolso s co m
pedrinha s
Fadas n o Div ã - Psi c a n áli s e n a s Hi st ó ri a s Infanti s

brancas , d o tip o q u e brilhava à luz d a lua. Q u a n d Con quistad a a liberdad e , o s irm ão s


o o plan o do s pais foi executado , J o ã o foi en c he r a m o s b o l s o s c o m p é r o l a s e p e d r a s
de ix a n d o cair as pedrinha s ao long o de to d o o p r e c i o s a s q u e e nc o nt ra r a m na cas a ela bruxa . Mas
trajeto de ida; assim q u e anoiteceu , elas indicara m o aind a tinha m qu e e nc o nt r a r o c a m i n h o ele volta.
ca m i n h o d e volta. A o amanhecer , eles batiam à porta Curios a ment e , dessa vez agira m c o m o s e
da casa, são s e salvos. Na próxim a tentativa de s o u b e s s e m p o r o n d e ir, sinal d e q u e já era hor a
livrar-se dele s t u d o se ele voltar. Poré m , no ca m i n h o , foram barrado s po r
repetiu , m a s a madrast a t ra n c o u a port a d a u m g r a n d e rio q u e teria m ele cruzar, se m
casa , i m p e d i n d o q u e J o ã o foss e a b a s t e c e r - s e auxíli o ele p o n t e o u can oa . Mais um a vez , chama a
c o m a s providenciai s pedrinhas . Não te n d o c om ate n ç ã o a estranhez a dess e c a m i n h o ele volta,
o marca r o caminho , o menin o utilizou o únic o pois n ã o h á notícia dess a travessia n a ida. Nã o
recurs o q u e tinha: migalhas d e pão , q u e obviament e p o d e n d o enfrenta r ess e desafi o sozinhos , foram
serviram d e aliment o ao s pássaros , deixand o o s irmão s ajudado s por um pato , que os transporta , um p o r
se m guia par a voltar para casa. Sem encontra r a saída, vez, par a a outra m arge m .
caminhar a m a e s m o dias e noites pela floresta at é q u e , Outra vez Maria mostrou-se esperta, pois é ela quem
exauridos , seguira m u m encantad o r pássar o branco , se deu conta ele qu e nã o poeleriam subir juntos na
q u e o s levou par a o qu e parecia ser a salvação: ave, que afundaria co m o peso . Com isso, os irmãos
"uma casinha feita de p ã o doc e e d e bolos, cujas ficaram quites, coubera m a cada um dua s ocasiões
vidraças era m d e açúca r cande" . Q ua n d o começara m a ele mostrar sua capacidade . Sem outras dificuldades,
devora r o telhad o e as janelas, saiu ele elentro dela chegaram em casa para elescobrir ejue a madrasta també
uma velhinha, que foi gentil co m eles, convidando- m morrera, e o pai só fazia lamentar a perda elos filhos.
o s para entrar. Graças às riquezas ela baixa , os três viveram felizes,
"Acomodaram-se , co m a sensaçã o ele estar livres da ameaça da fome e ela maldad e ela
no céu", lá foram regiament e alimentado s e madrasta.
ac o nc h eg a d o s até ador mec ere m . Mas. apó s ess e
agradáve l s o nh o , esperav a po r eles o pior pesadelo . A
velha na v er d a d e era uma perversa feiticeira, e a Tempos difíceis
casinh a n ã o passava ele uma isca para fisgar suas
presas . sta é um a história d e pai s q u e
N a manh ã seguinte , J o ã o desperto u conde na m seu s filhos a morre r de fome,
enjaulado , e n q u a n t o Maria foi acorelaela ao s gritos, livram-se deles par a ficar co m o p o u c o
q u e a convo • cava m par a o trabalh o eloméstico. Sua aliment o q u e restou,
primeira tarefa era prepara r uma comiela elestinada já q u e sã o incapaze s de abastece r a
a engorelar se u irmão, que aind a estava muit o magr o família. A fome é um do s eixo s em torn o do s quai s
para ser comido . Todo s os dias, a bruxa ia girou boa p a r t e d a históri a d a h u m a n i d a d e ,
verificar o a n d a m e n t o do p r e p a r o ele su a iguaria m u i t a s vezes , imp ulsio nan d o o s movimento s
, par a tant o p e di a que el e colocass e o eleelinho migratórios, a s disputas d e poder , a s guerras . N o cenári
par a fora elas graeles, par a ver se não estava mais tã o e u r o p e u , o n d e nasce• ram essas histórias, o tem a
o ossudo . O menino , que n ã o era bobei, da falta de aliment o só foi s up er a d o recentement e .
mostrava a ela um ossinh o q u e guardar a para Incontávei s o n d a s d e escassez dizimara m bo a part e
essa finalidade, o b t e n d o assim um a prorrog açã o d a populaçã o o u o s deixaram fracos para
ela sentença . Não sabe mo s po r q ua n t o t e m p o ess e d oe nç a s d e ocasião , d e m o d o que , não faz
truqu e surtiu efeite), mas o certo é que um bel o dia a
muito s anos , o m e d o de morre r de fom e era
paciênci a d a brux a acabou , decidind o comê-l o c o m
uma realidad e cotidian a ness e continent e (e aind a o é
o estivesse, magr o mesmo .
para um a inaceitável part e d a h u m a ni da d e) .
el a ma ndo u prepara r u m p a ne lã o ele águ a Existia inclusiv e um a utopi a m ed ie v a l a
par a cozinha r o menin o e ordeno u á irmã q u e esse respeit o q u e n o s d á a d i m e n s ã o d a
esquentas s e o torne), onele assaria t a m b é m um p ã o . ex te n sã o e d a importânci a da fome. O
A intençã o ela brux a era devora r ambos , empurrand o contrap on t o dess a escassez d e n o m i n a v a - s e
a menin a par a elentro elo forno, imaginava que ela Coc anha , 2 luga r imaginári o o n d e a comid a
seria mais saboros a assaela. Mas Maria t a m b é m
existia e m abun dância . E m Cocanh a havia rio s d e
tinh a lá su a esperteza : alegand o n ã o sabe r
vinho , a s lingüiças pulava m na s frigideiras, chovia
verificar a temperatur a elo forno, ela consegui u que
pãe s e queijos, enfim, tu d o aquil o p o r q u e
a brux a se debruçass e nele , de tal forma q u e
fosse possíve l empurrá-l a par a dentro . Foi assim ansiava a maioria da s pesso a s estaria lá presente . Na
q u e ela arde u na s própria s chamas . verdade , a utopi a se prestava a outro s s o nho s também :
lá ningué m trabalhava , a hierarqui a d o m u n d o estava abolida
, mas
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Co r s
o

lãos enchera m certamente o acent o mais forte era na abun dânci a de


preciosas q u e alimentos. A insistência de tanta s histórias infantis no
ida tinham q u e tema d a fome pa re c e se r t a m b é m u m e c o de ss e s
lamente, dess a tempos difíceis.
ide ir, sinal de
Outro comentári o q u e s e faz necessário , sobr e
aminho, foram
esta e outras histórias: refere-se às crianças c o m o as
am de cruzar,
primeiras sacrificadas q u a n d o a escasse z de alimento s
ma vez, cham a
chega. Por exemplo , no cont o O Pequeno Polegar.3 é a
de volta, poi s
vez de o pai fazer o pape l de carrasco , di ze n d o à
Não p o d e n d o i
ajudados p o r z, sua esposa:
para a outr a
Você está vendo que não podemo s mais alimentar
nossos filhos. Não tenh o coragem de vê-los morrer de
pois é ela que m
fome diante dos meus olhos, estou resolvido a levá-
' juntos na ave,
los amanhã à floresta e deixá-los lá, perdidos, o que não é
irmãos ficaram
difícil fazer.
3es de mostrar
chegaram em
Convé m observa r qu e O Pequeno Polegar
m morrera, e o
coincide em alguns po nto s co m João e Maria. Apó s
iças às riquezas
os sete irmãos terem sido expulso s de casa po r vontad e d o pai,
da ameaça da
encontrarã o u m ogr o devorado r d e crianças. O que mais
uma vez no s leva a pensa r q u e existe um a correlação entre
essas figuras: o pai ou a mã e q u e rejeita e o monstr o
q u e ameaç a devorar, n ã o po r acas o são d o mesm o sex o e m
amba s histórias.
Era u m t e m p o e m q u e o s pais , s ó d e p o i s d e
ue condena m
enche r b e m a barriga , l e m b r a m q u e a s c r i a n ç a s
ivram-se dele s
poderiam ficar co m as sobras.4 O d u r o é q u e era b e m
to que restou,
assim. A criança c o m o algué m q u e possu i um valor
scer a família,
mais alto qu e o adulto, algué m a q u e m se dev e cuida r e
tais girou bo a
preservar, é uma conquist a da m od er ni d a d e . Para nós
íuitas vezes ,
é tão natural abrirmo s m ã o d o p o u c o par a q u e não
DS, as disputas i,
falte à s c r i a n ç a s , quanto , par a a sociedad e
onde nasce-
tradicional européia , era deixá-las co m as sobras .
imento só foi is
Mas essas sã o c o ns id er a ç õ e s gerai s q u e no s au•
de escassez os
xiliam a contextualiza r o clima da s o cie d a d e em q u e
deixaram
nasceram esse s contos , e m b o r a n ã o e xp li q u e po r qu e eles
>do que, n ã o
continua m s e n d o tã o p op ul ar e s . Aliás, observa r a
ome era um a
diferença cultural q u e separ a o m u n d o d e orige m
inda o é para
dessas histórias d a realidad e d e seu s atuai s leitore s
nos instiga aind a mai s a busca r nela s o motiv o de
lieval a ess
sua longevidade . S ó p o d e m o s conjetura r q u e esse s
e ítensão e
elementos ancestrai s estã o hoje a serviç o d e outro s
da
significados. Acreditamo s q u e se u u s o hoje é psicoló • gico.
;ssa escassez
Considera r o s aspecto s histórico s n ã o substitui a
íário ond e a
necessidad e d e a pr ec ia r a s possívei s e v o c a ç õ e s
lha havia rios
inconsciente s d e s p e r t a d a s p e l o c o n t o , q u e sã o a s
leiras, chovia
verdadeira s r e s p o n s á v e i s p e l a s u a permanência ,
ue ansiava a
mesmo q u a n d o a s c o n di çõ e s objetiva s j á n ã o per •
Ja verdade, a i:
mitem um a identificaçã o diret a en tr e o leito r e a
lá ninguém
personagem .
abolida, ma s
e important e explicar u m p o u c o esm orece .
mais sobr e o funcionament o de
um be b ê , par a c o m pr ee n d er m o s po
Famintos 43
r que , nesse s conto s d e
e fadas, os pais estão tão e m p e n h a d o s em
Desmamados livrar-se do s filhos e da tarefa de alimentá-
los. Em João e Maria, as crianças ficam a maior
i
parte da história relacionadas ao tema da
s
alimentação. Embora passe m da condiçã o
a
de famintos à de iguaria, só depoi s de
n
derrotar a bruxa
d
(qu e parec e morrer a o m e s m o t e m p o qu e
a madrasta, indicand o q u e sã o personage n s
o
conexas) , o s irmãos acertam o pass o para voltar
para casa, fazendo a travessia necessária para outra
a
forma de vínculo familiar. O cont o é a história
dessa travessia, simbolizada pel o cruzament o do
u
rio na viagem de volta. Do outr o lado do rio, já
m
n ã o há fome, ta m p o u c o há bruxa s
a
devoradoras . Vejamos c o m o esses últimos
elemento s s e combina m .
a
Neste conto , o s pais sã o acusad o s
n
d e estare m i m p o n d o ao s filhos aquil o que
á
, n a verdade , o se u própri o cresciment o
l
está precipitand o e m sua vida. Crescer traz
i
ganh os , mas ta m b é m perdas . Estas últimas
s
fazem co m qu e a independênci a conquistad a pel
e
o filho seja vivida c o m o a b a n d o n o po r part e
do s pais, já q u e é muit o difícil, nest e
d
m o m e nt o , s e reconhece r c o m o auto r da
e
própria história. Muitas vezes, a criança mesm a
"se desmama " e , a o m e s m o temp o ,
c
inconscientemente , acus a a mã e de negar-lh e
u
o seio.
n
Estamos acostumad o s a acom pan ha r o
h
sofrimento co m o qua l as mãe s prescinde m da
condiçã o de fonte de aliment o para seu s filhos.
o
Serão lágrimas de tristeza, pel a p e r d a d e u m
tip o d e víncul o ond e ela s sã o
p
insubstituíveis junto a seu s bebês , assim c o m o
s
palavras d e culpa , pel o notóri o g a n h o e m
i
liberdad e q u e o fim da tarefa lhes proporciona .
c
Tod o ess e discurso habitua- no s a
a
compreende r o desmam e com o um a
n
atitud e basicament e materna , o q u e ofusca a
a
e n o r m e partici• paçã o d o b e b ê nessa
l
decisão .
í
O d e s m a m e é o primeir o mo vi ment
t
o de inde • pend ênci a d o b e b ê , ele ocorr e
i
c o m o o fim d e um a relaçã o am orosa , n a
c
qua l o casal vai se nt in d o e m diversas
o
ocasiõe s qu e o es p er a d o encontr o n ã o acon
,
• tece, a sintonia diminuiu , há ruíd o na
comunicação . O cresciment o da criança, assim
t
c o m o a reestruturaçã o da vida e de) corpe)
o
da mã e a p ó s o parto , vai dimi• nuind o as
r
condiçõe s propícias par a a entreg a necessária a o
n
amor os o m o m e n t o d a am a ment ação . Cada vez
a
mais, acontec e q u e a m b o s estã o u m p o u c o
-
mai s distraídos, impacientes , o s corpo s n ã o
s
s e encaixa m tã o bem , é um a paixã o q u e
Fadas n o Div ã — P s i c a n á l i s e n a s Hi st ó ri a s Infa nti s

Aliás, n ã o dem or a muit o par a q u e a criança pass e a Paraíso, poi s alé m d e n o futuro virar comid a d e bruxa,
s e sentir incomplet a c o m o q u e p o d e consegui r e agor a aind a terá d e trabalhar.
m termo s de satisfação e motivaçã o através da O trabalh o de Maria retrata a p e r d a da
boc a e critica a provedora , c o m o se a falha fosse grata passividad e d o b e b ê , q u a n d o pel a su a
dela . Q u e m s a b e se o p r o d u t o foss e mai s a invalidez tudo lhe é alcançado . Há um a époc a na vida
se u contento , o consumid o r nã o ficaria tão em qu e se diz à s crianças, m e s m o p e q u e n a s , q u e
insatisfeito... use m sua s pernas para ir busca r o q u e quere m , q u e
A primeira forma de decodificar o m u n d o é procure m e alcancem seu s objetivos, e é notóri o o
oral: chupar , lambe r e suga r sã o meio s q ua n t o elas resistem a isso. Embor a já saiba m falar
privilegiado s d e con heci m en t o e satisfação. Os olho s alguma s palavras , insistem em pedi r o objeto
fazem um ma pea • ment o geral, situam o objeto, mas , desejad o ao s gritos ou através de gestos . Q u a n d o
para investigações mais profundas , sã o requerido s j á p o d e m s e locomover , se u interesse privilegiará
os lábios, a língua e um revestiment o de saliva qu aquil o q u e tiver d e lhe s se r alcançado, m e s m o
e atesta o c o n he ci m e nt o adquirid o . q u e haja outro s tantos , igualment e atrativos,
Mas chega um dia em q u e ess e sistema e o m u n d o colocado s o n d e possa m pegar. Fazer o esforço de pedir
q u e el e p o d e abra nge r p a r e c e m p e q u e n o s , c o m palavra s (e m vez d e gritos), trabalhand o n
outro s horizonte s sã o requerido s pela curiosidad e o uso d o vo ca b ul ári o , assi m com o s e
d o be b ê . A o crescer, sua motivaçã o pass a pel a a b a s t e c e r d o que necessita m (ind o busca r o s
exploraçã o d e t o d o s o s lugare s o n d e su a s objeto s c o m a s próprias pernas ) sã o ato s vividos
perna s e seu s o l h o s p ud er e m levá-lo. A c o m o a b a n d o n o . Se a criança tiver de se engenha r par
loco moçã o é fascinante, tant o a própria co m o a do a atingir um objetivo é porque n ã o o fizeram po r e para
s objetos, q u e sã o arremessad o s o u têm providenciais ela. Neste m o m e n t o (à s vezes pe l o rest o da vida), se r
rodinhas . T u d o s e mo ve . ate n di d o é um a forma primitiva de ser a ma d o ,
trabalha r par a cuidar-s e e abastecer-se evoc a um a
Jo ã o e Maria jamais admitiriam q u e gostaria m de
forma d e solidão .
ter saído d e casa. q u e ansiava m o s mistérios d a floresta. O
desej o mais imediat o seria de q u e su a própri a casa Engaiolad o pel a baixa , J o ã o fica n o pape l aparen•
fosse comestível e q u e eles p u de ss e m passa r o teme nt e mais passivo , mai s regressivo, d aquel e qu
resto da vida la m b e n d o sua s paredes . Nã o fosse a e é impe did o d e crescer, q u e s e ma nté m alhei o a o
fome e a expulsão , jamais sairiam. Aí q u e está o engano mundo . Porém , se u pe rs o n ag e m incumbe-s e d e urna
, o mai s c o mu m é as crianças se lançare m à floresta, da s mais primitivas formas d e atividade, q u e constitui n
ma s acu• s a n d o o s pais d e tê-las ex p ul sa d o d e o exercí• cio do direito de se recusa r a comer .
casa e d iz e n d o q u e ali passava m fome. Nas histórias Fechar a boc a é a primeira rebeldia
de fadas, é muit o c o m u m um a te m p or a d a na assumida de u m bebê . A o entrega r o ossinh o e
floresta, significand o o m u n d o externo , o fora m lugar d o dedo para engana r a bruxa, J o ã o se
de casa, q u e invariavelment e s e iniciará c o m o um a posiciona c o m o magro - ossudo , c o m o se diz -, na
expulsã o o u co m a fuga d e um a condenaçã o á morte mesm a medid a em qu e ela o que r rechonchud o com o
. H á muita s morte s a o long o d o crescimento , cad u m porq uinho . Esse tip o d e recus a alimenta r é
a nova etap a obriga o ser h u m a n o a ver morre r similar à do s filhos, q u e insistem em seleciona r
aquil o q u e ele era e a família q u e servia àquel a o própri o cardápio , discordant e do da mãe ,
modalida d e d e relação . assim c o m o a o freqüent e f e n ô m e n o d e q u e a s
Neste conto , e m q u e a expulsã o d e casa s e crianças c o m e m d e tu d o n a casa do s outros , enquant
dev e à falta de alimentos , a mã e ou sua o na própri a são enojado s e seletivos. É simples , na
representante , a madrasta , te m a idéia de livrar-se casa d o s o u t r o s ( q u e assi m s ã o c h a m a d o s
da s crianças , ma s o pai resiste, embor a se deix e porqu e nã o p e r t e n c e m à família mai s
levar. Parec e coerente , afinal é ela q u e m faz questã p r ó x i m a ) n i n g u é m está p en de nt e d o q u e eles c o m e
o no conto , é o se u corp o q u e é negado , já qu e m o u não . Nesse s casos, a crianç a realiza u m a
de v e m o s co mpree nde r o aliment o e n q ua n t o extensã o d o a p r o p r i a ç ã o d o at o alimentar , destinad o agor a
corp o d a mã e e d e seu s atributos m a t e r n o s . Perdido s a p e n a s à própri a satisfação, orientad o pelo s seu s
n a floresta , reencontra m um a representaçã o critérios.
d e s s e c o r p o , s o b a form a d a cas a comestível, A propost a da brux a a J o ã o n ã o existe
q u e de v or a m se m pre o c up a çã o , c o m o u m sedent o n o só nas fábulas. Muitas patologia s grave s d o víncul o
desert o s e atira na s água s d e um a miragem . O preço , mãe-bebê , q u e vã o r e d un d a r e m psicose s
c o m o sabe mos , é alto. J o ã o é engaiolad o par a infantis e e m certos q ua d ro s d e d e m ên ci a s e m
se r c o m i d o pel a brux a e Maria t a m b é m p e r d e o adultos , sã o frutos dessa bruxaria , qu e
co st u m a m o s c ha m a r d e simbiose . São
44
Diana Lichtenstein Corso e Mário Corso

filhos engaiolados, não têm olhos para floresta alguma, Por isso, os dois irmãos se prestam para repre•
só vivem para e através de um vínculo umbilical com sentar duas formas importantes do crescimento: a troca
sua mãe. Jamais desenvolverão linguagem, porque só da passividade pela atividade e a separação
ela os entenderá e só isso importa, se caminharem o entre o desejo da mãe que quer alimentar e
farão sem rumo, pois só existe a presença magnética a vontade de comer do filho. O complemento
da mãe, todo o resto não é compreensível. seio-boca rompe-se definitivamente quando a
Talvez usem fraldas e se babem como bebês, criança passa a escolher e recusar alimentos. Antes,
ofertando-se no altar dos cuidados maternos, o seio simbolizava o alimento perfeito, portanto
embora em muitos casos estejamos falando de raramente era recusado, mesmo que viesse aplacar
homens barbudos e com pêlos pubianos. Esse é o outros incômodos diferentes da fome. De um jeito
filho que a bruxa devorou. Há patologias físicas, ou outro, o seio era sempre bem-vindo, se não para
mamar, para usá-lo de bico ou para ficar olhando
como lesões cerebrais e síndromes genéticas, que
para a mãe.
condenam pais e filhos a relações mãe-bebê, num
sofrimento que se prolonga até que a morte os É importante observar que o paraíso representado
separe, mas não estamos falando desses casos. Nas pelo seio - esse modo de vida em que nada falta e em
patologias psíquicas anteriormente referidas, não há que não é preciso fazer nenhum esforço - não existe
concretamente na vida dos humanos. Desde o primeiro
acidente, não há doença diagnos- ticável no corpo
encontro, quand o o recém-nascido dá a
que justifique a gravidade do quadro,
mamada inaugural e mãe e filho são banhados de uma
apenas um vínculo sufocante e demenciante. sensação de reconhecimento mútuo, estabelece-se
Maria também terá o destino do forno, já que ser uma relação que já supõe dois seres distintos. Eles
devorado não é um privilégio da relação da mãe com o passarão bom tempo sentindo-se visceralmente
filho homem. O que muda sua sorte é que ela estava unidos, mas essa é uma ilusão compartilhada. No
trabalhando, de alguma forma independente, por isso, desmame, rompe-se essa fantasia, não uma
dela parte a possibilidade de reagir. João, por sua vez, simbiose de fato. A necessária presença do
não está como a vítima hipnotizada da cobra, esperando o olhar como complemento da mamada, que o
bote, ele mantém a esperteza e engana a bruxa. bebê reivindica (ãs vezes até furiosamente),
Buscar seus próprios objetos, de alguma deixa bem claro que ele quer a mãe, não o leite, que
forma trabalhar, não é a única maneira de romper o o seio é parte de um contexto, não serve isoladamente.
fascínio de ser cuidado, descobrir que é possível É por isso que os bebês podem ser amamentados com
discordar do adulto, que ele não é tão poderoso nem mamadeira sem traumas, quando necessário, como nos
onipresente, como se acreditava, também é importante. casos de adoção ou de algum impedimento físico para
A tarefa é dar-se conta do quanto se é independente dar o seio.
do desejo da mãe: não adianta a bruxa querer
Quando esse primeiro idílio amoroso se rompe,
lhe empurrar comida, fazendo de Joã o um
restam a queixa e a idealização do que se
porquinho , ele lhe responderá com sua magreza.
supunha ter. Em João e Maria, a queixa é
representada pela expulsão de casa, onde a
madrasta lhes recusava co• mida, assim como a
Paraíso perdido idealização fica a cargo da ma• ravilhosa casa
comestível da bruxa.
oão é um bom exemplo para ilustrar Chame-se ela casa de gengibre, de
um tipo de anorexia infantil, doces, de pães e bolos, não há quem não tenha em
absolutamente normal, no qual a criança seu acervo alguma versão apetitosa dessa casa
testa e constata da bruxa. Sua aparência varia, pode ter sido
quão grande é a vontade da mãe de que ela fornecida pela gravura de um livro infantil ou por
coma. Quant o mais se recusar, mais uma criação pessoal, mas ela faz parte da galeria
variadas e angustiadas ofertas de alimento a da infância. A casa da bruxa significa fartura, pena
mãe lhe fará, ignorando que a única coisa que lhe que o preço seja fazer parte do cardápio. Aliás, a
permitiria voltar a comer seria se abster de lhe maior parte desse conto gira ao redor do comer:
oferecer muito e insistentemente. Se a mãe não começa com a fome em casa, o banquete na casa da
mostrar ansiedade em alimentar o filho, o desejo deste bruxa (onde se comem até as paredes), o terror de
pelo alimento poderá até se expressar, mas, enquanto serem devorados por ela e conclui com um belo
a insistência da mãe lembrar que ele comerá para assado de bruxa. O mundo de João e Maria é
a satisfação dela, ele recusará. 5 interpretado a partir da oralidade, mas, na prática, isso
é uma evocação, como aquelas memórias que fazemos
Fada s n o D i v ã — P s i c a n á l i s e n a s Hi st ó ri a s Infa nti s

sobr e algum a pesso a querid a qu e perdemos , po r mort e o Seja através de um a velha baix a ou de um
u separação , entã o pinça mo s par a n os s o us o s ó lobo, de p oi s q u e um a floresta separ a m ã e e
a s parte s q u e no s interessam . A memóri a é sempr filho, restam evocaçõe s de dois tipos: idealizadas (a
e um a versã o d o s fatos. saudad e de ura m u n d o comestível) e aterrorizantes. A
Separa do s d a mã e pelo s n o v o s horizont e s figura primordial assustadora é uma versão da mã e
d e c o n h e c i me n t o e relaçõe s q u e se descorti na m a imaginária do primeiro vínculo simbiótico e, embor a
partir d o d e s m a m e , faremo s de s s e pri meir o pareç a estranho , pode muito b e m ser representad a
m o m e n t o um a versã o mítica, d e um a Mãe-Cocanha pel o lobo , associado em outra s histórias à figura
, d e cujos peito s jorrava m o leite e o mel . Mas masculina . O monstr o não precisa ser um a
ess a fantasia te m se u lad o negro : é a brux a figura feminina, porqu e ele nã o é a mãe , ele
de v or a do r a . Nã o poderíamo s pensa r qu e apena s dev e ter um apetite insaciável e feroz c o m o
s e m e l h a n t e fantasia d e c o m p l e m e n t a • ridad e entr o do ogr o de O Pequeno Polegar, de Perrault. O
e mã e e filho parecess e possíve l se m repre • senta r algu ap et it e p e r e m p t ó r i o d a velh a brux a o u a
m tip o d e ameaça . Ser u m s ó c o m a m ã e bocarra escancarad a do lob o representa m a
signific a p e r d e r - s e nel a , se r r e a d m i t i d o e m mesm a ameaça: ser visto apena s c o m o algo q u e
s u a s entranhas , e m suma , ser assado , cozid o e precisa ser incorporado o mais rápid o possível. Depoi s
co m i d o . Observe-s e q u e é uma fantasia possíve l de comidos , os filhos já n ã o terão existência própria,
a p e n a s par a q u e m j á te m b e m clar o q u e está d o lad farão parte do monstro.
o d e fora, p o r isso, tem m e d o d e se r reincorporad o . Esses conto s tã o assustadores , e m verdade ,
S ó p o d e voltar a entra r q u e m já saiu. têm u m aspect o extre ma m ent e tranqüilizador. O s
irmãos J o ã o e Maria n e m ch e g a m a se r devorados
, enquant o os cabritinhos e a menin a Chapeuzin h o
Vermelho saem intactos d a barriga d o lobo . Com
O Lobo e os Sete Cabritinhos
o a s histórias são contad a s d e s d e a perspectiv a
ara deixa r mai s claro q u e o important e da s crianças q u e já ti• vera m sua s rudimentares ,
é a separaçã o e m si, p o d e m o s lançar ma s bem-sucedida s , expe• riências d e separação ,
m ã o d e outr a história , t a m b é m m uit o n ã o h á mai s perd a d a integri• dade , ning ué m se
c o n h e c i d a , compilad a pelo s irmãos Grimm: dissolve na s entranha s da bruxa ou d o lobo .
O Lobo e os Q u a n d o um olha r enlaç a a mulhe r a se u
Sete Cabritinhos," em cujo c o m eç o há um a filho, q u e mam a e m seu s braços , j á estamo s nu m
inversã o em relaçã o a João e Maria, já q u e é a momento e m q u e ela e se u b e b ê sã o sere s separados . O
m ã e q u e m sai par a a floresta. primeiro tem po , q u e seria da simbios e absoluta , ne
Era um a vez um a velh a cabr a q u e tinh a m existe de fato. Na vida real, o seio represent a a
set e cabritinhos e os amav a c o m o as mãe s a m a m os mãe , ma s é ela q u e é a m a d a , p o r isso, é
filhos. Certo dia, ela teve de ir à floresta em busc a de re pr es e nta d a c o m o uma mulhe r (n o cas o a madrasta ,
a velha cabra) . Vice-versa, o filho interessa a ela n ã o só
aliment o e r ec o m e n d o u ao s set e cabritinhos :
p o r q u e a suga , há muitos significado s qu e se
"Tenh o de ir á floresta , meu s queridinhos , e você s
a c o p l a m á m a t e r n i d a d e - d e conquist a d e um
de v e m toma r muito cuidad o co m o lobo , q u e é
a identidad e feminina, d e poder , d e prov a de
muit o ma u e muit o peri• goso . S e ele entra r aqui e m
amor , etc. A mã e p o d e ser um a só, mas a
casa, devorar á você s todos , inteirinhos, da cabeç a ao m at er ni d a d e n ã o é um a coisa só . So ment e
s pés . Ele muitas veze s se disfarça, ma s é fácil apó s a primeira separação , da qual a criança se
reconhecê-l o logo, po r su a vo z ásper a e seu s pé s sent e autora - q u a n d o ela "se desma ma " -, aparecer
muit o pretos" . á a figura mons• truosa, c o m o se a criança p u d es s e
Disfarçado, o lob o consegui u devora r todo s se dizer: "Vejam só, o t a m a n h o d o perig o d e q u e
os cabritinhos , m e n o s o me n or zí n h o q u e s e e u m e escapei!".
e s c o n d e u be m e conto u para a mã e o aconteci d
A versã o pavoros a d o primeir o enlac e
o q u a n d o ela voltou . Eles encontrara m o mon str o
amoroso é um a espéci e de alerta par a a m bos . Para
d o r m i n d o d e bar• riga cheia e, de forma similar ao a mãe , que certament e c o n h e c e a s p e r s o n a g e n s
final de Chapeuzinho Vermelho ( q u e analisaremo s d a su a própria infância, este é o aviso: n ã o
n o p r óx i m o capítulo) , abriram a barriga d o lob o reincorporará s teu produto, s o b p e n a d e t e
c o m um a tesoura , salvaram o s filhotes d e v o r a d o s assemelhar e s a monstro s d o pior tipo; par a o filho:
e r e p u s e r a m o v o l u m e c o m pedras . O lob o s e estás n u m a viage m se m volta.
acordo u c o m sede , caminho u at é o poço , mas , com o Nã o esqu eça mo s q u e tant o a brux a quant o o lobo
o p e s o da s pedra s o derrubo u lá dentro , acabo u s ó fazem sua apariçã o n u m se g u n d o momento , apó s
m o r r e n d o afogado . a saída de casa do s filhos ou da mãe . Por sorte, em
geral,

46
Di a n a L i c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o C o r s o

esses monstros são fantasias q u e só habita m os porõe s É relevante o detalh e de q u e a travessia final tenh a
da memória, nã o fazem part e concret a da vida familiar. de ser feita a sós, ou seja, os irmãos terã o de se separar,
Uma palavra a mais é necessári a sobr e as pedra s inclusive entr e eles mesmos . Já observamo s o fato de o
na barriga do lobo: preenche r o lob o é c o m o ter certeza percurs o de volta ser tà o diferente do da ida, afinal nã o
de que sua fome será aplacada , nad a mais caber á h á notícias d e qu e eles tenha m atravessado
lá. Está bem, mas se tem ta m b é m a e n c e n a ç ã o n e n h u m curs o d'água n o trajeto inicial, muito meno s
de um a gravidez masculina, o q u e també m ocorr e em u m grand e e difícil de transpo r c o m o esse.
Chapéu- zinho Vermelho. No final, a mã e ou o Um e x e m p l o q u e segu e atual sobr e a importânci a
caçado r recos - turam a barriga do lob o co m da águ a na s passagen s é o batismo . Algumas
pe d ra s dentro , e el e morre disso. Essa "gravidez tradiçõe s religiosas tê m revalorizad o o batism o
masculina " n ã o funciona, pedra é algo inanimad o e em sua forma primitiva, a imersã o total do neófito na
morto.8 Q u a n d o o lob o sofre uma "cesariana", o q u e água . Só depoi s disso, ele estará dentr o d e outr a
sai é alg o q u e já foi nascid o antes, ele mes m o é orde m mais elevad a q u e a do início. A partir da
estéril. A barriga de ped ra s já é uma tentativa da imersão . será recon heci d o c o m o m e m b r o d e
criança de diferenciar os sexos , entr e as mulheres qu e determinad a c o m u n i d a d e religiosa, ou seja, é um
carrega m os b e b ê s em seu ventr e e os homens qu ritual de passage m em q u e a água assinala o m o m e n t o
e n ã o o fazem. Inicialmente, ela part e da premissa d e transformação .
de qu e todo s sã o iguais e p o d e m fazer as mesmas Muitos sere s mágico s sã o incapaze s d e atravessar
coisas, log o gesta r e parir seria m atributo s curso s de água . Um expedient e c o m u m para se
comuns a ambo s os sexos . A realidad e liquida livrar d e u m perseguido r sobrenatura l é pular u m
essa hipótese e talvez a g e sta ç ã o p ét re a seja riach o o u atirar-se n u m rio, pois aquel e ficará
u m a bo a ilustração dessa infettilidade. invariavelment e detid o na margem . A mitologia e
a tradição folclórica parece m sublinha r a travessia
da águ a c o m o um a da s m e t á f o r a s par a a
p a s s a g e m p ar a o u t r o níve l d e existência, d e
A travessia
transformação , n ã o s e sai d o outr o lad o d a marge m
o fim da história, conform e a versã o d o m e s m o m o d o c o m o s e entrou .
d o s irmãos Grimm, J o ã o e Maria "achara A casa par a a qual retorna m J o ã o e Maria
m em tod o o cant o da casa da baix a arcas de n ã o é a m e s m a d e o n d e partiram, n ã o h á
pedra s preciosas e pérolas" qu e eles levaram mais nela um a figura m a t e r n a a m e a ç a d o r a , e
consig o a s ri q u e z a s fora m c o n q u i s t a d a s p e l a s p r ó p r i a s
de volta para casa. "São m elhore s q u e as cri a nç a s . E u m final diferente de tantas histórias
pedrinha s brancas", afirmaram referindo-s e à q u e l a de fadas, em q u e o heró i c o nq ui s t a se u p r ó p r i o
s c o m q u e assinalaram o cami nh o de volta na reino , riqueza s e um a bel a princesa , d a n d o as
primeira vez em que foram expulsos . Em casa, J o ã costas para o seu castelo de origem. João e Maria é
o havia e n ch i d o os bolsos d e pedrinha s o u migalha s anterio r a esse s horizontes , há um a revoluçã o
q u e lhe permitisse m voltar; dessa vez, o faz co m a fazer, ma s ela é intramuros , seu s efeitos serã o
outr o tip o de tesouro , cujo valor nã o é o de contabilizado s aind a dentr o da relaçã o familiar. O
um a passage m de volta. Eles encontram o pat o c o m o mei o d e transport e talvez seja um a
ca m i n h o d e casa, ma s pela s própria s pernas, as h o m e n a g e m à versatilidade dess e animal, poi s pouco s
pedra s preciosa s e as pérola s sã o um valor mundano, c o m o el e voam , camin ha m e nadam . Difícil
sã o c o m o dinheiro , q u e providenciar á o imagina r algué m mais b e m p r e p a r a d o par a a s
abastecimento d e q u e eles precisam . Agora, o s bolso transformaçõe s q u e a vida exige, portanto , ele parec e u
s estão pleno s d e indepe n dência . 9 m b o m exem pl o de mobilidad e possível. C o m o ele
Uma vez morta a mãe, que se negava a ser o paraíso, e domin a vários meios, p o d e figurar c o m o u m
livres dos perigos de ser devorado s po r ela, os irmãos se auxiliar ajudand o algué m a passa r po r eles.
satisfazem co m as jóias qu e pode m compra r comida e bem-
estar, representantes das riquezas qu e tanto fizeram falta
nos tempo s de escassez. Muitas histórias infantis Outros gulosos
contemplam u m verdadeiro crescimento, lembrand o qu e
quando partimos nã o voltamos nunc a mais, vivemos em xiste u m c o nt o curto, muit o antigo, repetid
outro reino, o antigo morreu. Isso equivale a dizer q u o e m vários folclores, geralment e
e uma vez qu e se mud a de posição subjetiva n ã o há volta, co n he ci d o c o m o título de Os Três
10
se verá tud o desd e um outr o prisma. Desejos. A história é a seguinte : um
p ob r e h o m e m conseg ue ,
Fada s n o D i v ã — P s i c a n á l i s e n a s H is tó ri a s Infanti s
importânci a d o p o d e r d e fazer cessa r o
jorr o d e a li m e nt o . A s
po r intermédi o d e u m ser mágico , a graç a d e
ter três desejos atendidos . Mas ele e sua mulhe r
sã o muit o tolos e . c o m o q u e m nunc a c o m e mel,
q u a n d o c o m e se lambuza , desperdiça m seu s
desejos de um a forma estúpida . O pape l de mais
tolo ora é da mulher, ora é do marido , ma s o certo
é q u e um do s dois, distraído e m conjectura r qua l
a m el h o r form a d e fazer se u pedido , enunciar á
alto sua vontad e d e c o m e r algum a coisa.
Prontamen t e o pedido_ é atendid o e assim se
d e s p e r d i ç a c o m u m si m pl e s a l i m e n t o a q u i l o
q u e poderi a conte r todo s o s tesouro s d o m u n d o .
O outr o cônjuge, raivoso po r ter visto um desejo ser
banalment e usado , n u m impuls o p e d e q u e a tã o
desejad a lingüiça grud e no nariz do guloso , e lá
se vai outr o desejo . Com o d a primeira vez,
trata-se d e u m p e n s a m e n t o q u e é en u nc ia d o
alto; se inicialmente há um a gula desmedida ,
nessa segund a vez, ocorr e u m descontrol e de raiva.
For último, o derradeir o pe di d o é gast o par a livrar o
nariz do monstruos o a d e n d o . E o casal está de nov o
co m o ante s d a possibilidad e d e desejar.
Além de ser um a fábula sobr e a dificuldade
de sabe r o q u e desejamos , a história n o s
mostra que, q u a n d o nã o s a be m o s o qu e
queremos , existe um a bo a chanc e d e
escorregarmo s par a o s desejos orais ou par a outro
s impulso s primitivos. Nessa história, há dua s formas
d e incontinênci a oral, a d e raciocinar c o m o estômag o
e a de falar se m pensar . Nas histórias de fadas,
muitas vezes , as person a gen s vomita m coisas boa s
o u ruins q u a n d o falam, mostra nd o q u e palavra s
també m sã o objetos q u e sae m da boc a e é
precis o controla r o q u e se diz. Em um a delas ,
As Fadas,1 1 a b o n d a d e é premiad a co m a expulsã o d e
pérola s junt o a cad a palavra , ao pass o q u e a
p e r s o n a g e m má é c o nd en a d a a vomitar sapo s
sem pr e q u e falar.
Outra história sobr e satisfação oral chama-s e
O Mingau. É narrad a pelo s irmão s Grim m e mal
passa de um parágrafo. Nela, um a menin a
faminta receb e c o m o pr e se nt e , d e um a velh a
q u e e nc o nt r a , um a panel inh a mágica . O objet o
fantástic o s e m p r e lh e oferecerá a quanti dad e q u e
ela desejar de mingau . A velha lhe ensin a as
palavra s mágica s par a iniciar e cessar o feitiço,
e assim a menin a providenci a par a q u e ela e sua
m ã e n ã o t en h a m mai s fome. U m dia, n a sua ausência ,
a mã e c on s eg u e fazer o feitiço iniciar, ma s n ã o
sab e fazer a panel a parar, acontec e e nt ã o um a
e n o r m e inun daçã o d e minga u q u e envolv e tod a a
cidad e e só cessa c o m a volta da menina .
O Mingau é um a fantasia sobr e um paraís o
oral, pel a possibilidad e d e satisfação irrestrita, cujo
p o d e r está co m a criança. É necessári o frisar a
criança s p e q u e n a s sã o e m b uti d a s d e comid a d e tal
m o d o q u e a idéia d a colhe r vind o par a um a
boca , q u e te m d e s e escancara r b e m obedie nte , vai
ficando terrífica á medid a q u e crescem . Fecha r a boc a
é uma da s primeiras formas d e poder . For isso, essa
pe q ue n a história, q u e ne m seque r angario u muita
popularidade , é significativa par a noss a análise.
Arriscamos dize r qu e seu e nc a nt o está e m dize r q u e
a crianç a p o d e até compartilha r co m a mã e o
p od e r de fazer brota r o alimento , mas o de fazê-lo
cessa r é só dela, ningué m vai lhe fazer co me r o q u e
ela n ã o queira .
O s paraíso s orai s n ã o p e r d e r a m se u prestigiei,
s e g u e m s e n d o imaginados . Acreditamo s qu e , contem -
p o r a n e a m e n t e . o mai s r e q u i n t a d o é a fabric a
de choc olat e do livro A Fantástica Fábrica de
Chocolate, de Roald Dahl.1 2 A trama é muit o mai s
rica do qu e um a utopi a oral, mas , d e q u a l q u e r
forma, o cenári o principal , em q u e a história se
de se n v ol v e , é uma fábrica mágica-tecnológic a o n d e
t u d o é comestíve l e todo s o s s o n h o s glutõe s infantis
p o d e m se r atendidos . Nessa novela , a magia é
substituíd a pel a tecnologia , e a floresta encanta d a é u m a
fábrica n ã o m e n o s encan • tada . Enfim, u m a c o c a n h a
infantil moderna , o n d e to d o s o s d o c e s estã o
disponívei s se m custo s e sem limites, ma s cad a um a
da s criança s visitante s terá d e a p r e n d e r a se controlar
. A p as s ag e m pel a fábrica é t a m b é m u m ritual d e
saída d a infância, n a medid a e m q u e cad a u m
precis a prova r q u e n ã o s e deixa levar pel a oferta
oral , p o r mai s q u e a te nt aç ã o seja d o t a m a n h o d e
um a fábric a e se u p r o p r i e t á r i o feiticeiro, u m
g r a n d e sedutor .
O s drama s atuais, c o m o obesidade s , anorexias,
toxicomanias e alcoolismo, sã o histórias de gente , jovem o u
adulta , t e n t a n d o sol u ci o na r o s p r o b l e m a s co m
pedrinha s branca s q u e a s recon duz a m a o calor d e u m
lar q u e o s expulso u q u a n d o crescera m . Diant e do s
fracassos, da s insatisfações, esses João s e Marias tentam
devora r a casinha, ingerindo alimentos ou incorporand o
substâncias tóxicas q u e proporcion e m um a satisfação. Se
consumire m a comida , ou a substância "mágica",
tenta m atingir tal satisfação, mais mítica do q u e real.
Trata-se d e gent e qu e sab e o q u e que r e p o d e consegui- lo,
se u desejo é a incorporaçã o de um objeto concreto. A
anorexi a é o m e s m o pela s avessas , o objet o é a
comida, só qu e a relação é de recusa.
A toxicomania , c o m o a bulimia, sã o um circuito d
e vid a r e d u z i d o , ela s a p l a i n a m o p r o b l e m a d o s
desejos. Afinal, nunc a sa b e m o s muit o b e m o qu e , o u
q u e m q ue re m o s , n e m d o q u e precisamo s ser par a qu e no s
queiram . Q u a n d o o assunt o s e resolv e e m termo s d e
ingestão, c o n s u m o ou abstinência de algum
Diana Lichtenstein Corso e Mário Corso

alimento ou substância, sabemos que queremos aquilo e


que se tivermos aquilo nos sentiremos
queridos. Como se vê, João e Maria é uma
história de gente pequena que serve também para
gente grande.13

O voto de morte paterno


oão e Maria é uma história que
também oportuniza a elaboração do voto
de morte dos pais sobre os filhos, a fantasia
de filicídio.
O começo é muito explícito, os pais
não querem mais as crianças, elas atrapalham
a sua sobrevivência, comem sua comida. Como não há
para todos, então os pequenos têm de partir. É
mais do que uma expulsão, eles são deixados à
própria sorte na floresta. Os pais nã o se
preocupa m se eles conseguirão sobreviver sozinhos;
o que importa é que não voltem, se morrerem ou
viverem dá no mesmo. Nesse conto, a vontade paterna
é manifesta, mas cremos que existe outro que, embora
velado, discursa mais sobre o quanto os filhos
atrapalham a vida de um casal. Trata-se de O
Flautista de Hamelin,14 uma história européia que nos
mostra a vontade dos adultos de se livrar desses
pequenos seres que tanto comem e
só atrapalham.
A história é simples: uma cidade é assolada por
ratos, e os cidadãos já não sabem o que fazer. Os ratos
estão em toda a parte, importunando a todos, estragando e
comendo a comida da cidade. Os métodos habituais
não surtem efeitos, pois os animais são muitos, ninguém
dá conta de se livrar de tantos. Como último recurso, o
prefeito oferece uma valiosa recompensa a
quem conseguir livrar a cidade dessa praga.
Logo depois surge um flautista que diz ter uma
solução, com sua flauta mágica encanta a todos
os ratos e some com eles. A cidade comemora feliz
por estar livre dos roedores. Mas na hora de
cumprir o trato, o prefeito não quer pagar ao flautista
a quantia justa por ele ter livrado a cidade da peste. O
flautista não pensa duas vezes em se vingar de uma
cidade tão ingrata, pega a flauta, encanta desta
vez as crianças encerrando-as dentro de uma
montanha. Um menino coxo, que não consegue
acompanhar a turma, é a única criança que se
salva desse estranho destino e resta para relatar o
ocorrido. O menino manco tem inveja dos que se
foram, pois a promessa da música do flautista, que
ele também ouvira, era de um mundo melhor, onde
nada falta, onde não há perigo, e ele mesmo
ficaria bom da perna.
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Existe uma história moderna , uma
pequen a novela inglesa, qu e pod e ajudar-
nos a pensa r a equivalência entre criança e
ratos, chama-se As Bruxas, também de Roald Dahl.1
5
Nessa história, as bruxas são uma sociedade
secreta cujo objetivo é odiar e ex• terminar
crianças. Estão tentando usar em larga escala um
veneno, ministrado em guloseimas, que
transfor• maria as crianças em ratos. E, para a
maior glória das feiticeiras, seriam os próprios
pais e professores que vão matar seus
pequeno s sem saber o que estão fazendo.
Nessa novela, há uma pista para pensar o
porquê dos ratos: o menino que vem a
ser o personagem principal da história cria ratos,
são os seus animais de estimação. Ou seja, os
ratos podem estar nestas duas posições: ser um
bicho pequeno e gracioso e ser uma peste que
transmite doenças e dizima celeiros. O seu
aspecto de pequeno e doce é hoje bastante
lembrado, as histórias infantis do século XX estão
cheias de ratos, basta lembrar de Mickey e
Jerry para ficar nos mais famosos. As aventuras
de Tom e Jerry, sua permanência e simpatia
(apesar, ou talvez por causa da violência) se
devem, ao nosso ver, à eterna luta entre grandes e
pequenos, entre adultos e crianças. Como
o século passado foi um período de simpatia
crescente com as crianças, é natural que Jerry se
saia tão bem diante de seu inimigo natural bem
maior.
Mais recentemente, foram lançados vários
filmes em que os ratinhos são associados ao tema
da adoção. Por exemplo, em Bernardo e Bianca,
dois ratinhos se envolvem em salvar uma menina
órfã; em Stuart I.ittle, um ratinho é adotado
como filho por uma família humana.
Curiosamente, o menino que enfrenta as
bruxas no livro de Roald Dahl também é órfão.
Esse é um expediente pelo qual as histórias infantis
oferecem uma bem-vinda separação entre os
adultos maus, as bruxas, e seus pais, que são
inocentados desse voto de morte pela sua
ausência da cena.
Ora, se a equivalência ratos-crianças
pode ser estabelecida nesses contos modernos, e
esse simbolismo transposto para O Flautista de
Hamelin, então o conto faz sentido. O que a
cidade não agüentava mais - os seres pequenos
que tanto comem e que estão por todos os lados
incomodando a todos - eram as crianças.
Simbolicamente esse duplo movimento do
flautista, ora com os ratos, ora com as crianças,
de encantar e sumir é o mesmo. Trata-se de
sumir com as crianças para a felicidade dos
adultos.
Claro que o final é triste para a cidade, que
está privada de suas crianças, mas assim é a vida,
sempre
Fada s n o D i v ã - P s i c a n á li s e n a s Hi st ó ri a s Infan ti s
diferente

p e r d e m o s alg o m e s m o q u a n d o no ss o s desejo s
sã o satisfeitos. Uma i n c o m p r e e n s ã o c o m u m d e
q u e m s e aproxi m a d a psicanális e é p e n s a r q u e o
c a m i n h o d a cu r a seri a a s i m p l e s r e a l i z a ç ã o
d o s d e s e j o s . N a v er d a d e seria m el h o r co n h ec ê-l o
s par a p o d e r enfren • tá-los , sa b e r lida r c o m
ele s , n ã o n e c e s s a r i a m e n t e realizá-los. S e assi m
fosse, um a q u e s t ã o d e satisfação direta, existiriam
p o u c o s h o m e n s sobr e a face da terra, j á q u e s o m o s
h a b i t a d o s p o r d e s e j o s d e m o r t e , direcionado s
inclusive ao s nosso s sere s mais queridos , incluind o
n os s o s filhos. Existem m o m e n t o s e m q u e
q u e r e m o s q u e ele s su m a m , q u e vacilamo s s e foi um a
bo a idéia tê-los tido . Esse p e q u e n o c on t o d á
va z ã o à s fantasias q u e n o s p e r c o r r e m a respeit o
d o n o s s o desejo , muita s veze s am bivale nt e , pelo s
filhos. São o s m o m e nt o s q u a n d o o s pai s p e n s a
m o q u a n t o o s filhos p o d e m se r u m p e s o n a su a vida
. Mas ess e c o n t o fala a am bos : às crianças , po r
tere m um a intuiçã o de q u e p o d e m se r o peso ;
e ao s pais , par a p o d e r e m pensa r c o m o seria
enfrenta r ess a ci da d e (casa ) vazia. O s pais têm
dificuldade d e re sp o n d e r c o m o seria
a sua vida se m os filhos. Certament e seria mais
fácil, mais barata, co m mais t e m p o par a eles , ma s
ficariam c o m o a cidad e d e Hamelin, c h o r a n d o
pela s crianças q u e s e foram o u q u e n ã o tiveram. Ter
filhos n ã o é u m b e m universal inquestionável , é cad a
vez mais, par a a sorte de todos , uma escolha . Relançar
o desejo h er d a d o d o s pais na geraçã o seguint e
se m p r e foi o destin o da hu manid ad e , paga m o s o
q u e nosso s pais investiram e m nó s n a próxim a
geraçã o q u e , po r su a vez, vai pagar tend o filhos e
assim sucessivamente . Acreditamos q u e é este p a ga m e n t
o q u e o prefeito de Hameli n inter• rompe u e, po r isso,
as crianças sumiram . Talvez hoje a pressã o po r ter
filhos n ã o esteja tã o forte c o m o um a imposiçã o
social, e existe m outra s formas de paga r ao s
pais po r no s fazer existir.

Notas
1. GRIMM, Jaco b & Wilhelm. Contos de Fadas.
Belo
Horizonte: Villa Rica Editora Reunidas, 1994.
2. Existe um conto dos Grimm, A Terra da
Cocanha, mas ali estão exposto s apena s os
traços bizarros desse lugar mágico. Um bo m livro
qu e analisa essa utopia é Cocanha- História de
um País Imaginário, de Hilário Franco Júnior,
publicado pela Companhia das Letras, São Paulo, em
1998.
3. PERRAULT, Charles . Contos de Perrault.
Bel o Horizonte: Editora Itatiaia, 1989. É bo m lembrar
qu e O Pequeno Polegar de Perrault é muito
das outras histórias com esse nome . Aqui ele é o
caçula de sete irmãos, qu e são expulsos de casa
pela miséria, o começ o é praticamente igual a João e Maria.
Na floresta, eles enfrentam um ogro que os quer
devorar, mas, graças à astúcia do Pequeno Polegar,
habilmente conseguem escapar.
4. Nas palavras da mulher do lenhador dessa história:
- "Onde estarão nossos pobres filhos agora? Eles
fariam uma boa refeição com estes nossos restos!"
5. Voltaremos a esse assunto no Capítulo XIV, anali•
sand o os personagen s de Maurício de Sousa, Magali e
Dudu.
6. GRIMM. Jaco b & Wilhelm. Contos de Fadas. Belo
Horizonte: Villa Rica Editora Reunidas, 1994.
7. Em Chapeuzinho Vermelho, ele faz o papel de adulto
sedutor e ardiloso, similar às raposas das fábulas, qu
e tentam e engana m os inocentes e os otários.
8. Idéia desenvolvida em FROMM, Erich. A Linguagem
Esquecida. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1962.
9. Retomamos essa questã o da troca de um tesouro de valor
oral por outro de importância monetária, na análise do
conto João e o Pé de Feijão, Capítulo VIII.
10. JACOBS, Joseph . Histórias de Fadas - Mundo da
Criança, volume III. Rio de Janeiro: Editora Delta, sem
data.
11. PERRAULT, Charles . Contos de Perrault. Belo
Horizonte: Editora Itatiaia, 1989. Citamos Perrault, mas
essa história é conhecida em todos os folclores com os mais
variados títulos. Quase sempre existem duas irmãs, uma de
boa índole e outra má e egoísta, send o esta última sempr e
a preferida da mãe.
12. O livro tem tradução no Brasil pela Editora Martins
Eontes, 2000. Em 1971, saiu o filme homônim o que muito
contribuiu para a popularização dessa história.
13. Na verdade, especialmente a toxicomania comporta vários
outros elementos, aqui falamos apena s de um do s
circuitos qu e estão operand o nesses con• textos de
adição.
14. BROWNING, Robert. O Flautista de Manto Malha- do
em Hamelin. São Paulo: Musa Editora, 1993. Esta
lenda ficou popula r através da poesi a feita po r esse
inglês, mas já era conhecid a há séculos. A cidad e de
Hamelin existe, fica na Baixa Saxônia e é també m um
porto . Há q u e m queira buscar indícios reais d e
um a migraçã o d e criança s o u jovens ocorrida no
sécul o XIII, mas nad a ficou provado , e tud o entã
o fica nest e território vago o n d e o s mitos
florescem.
15. DAHL, Roald. As Bruxas. São Paulo: Martins Fontes,
2000. Em 1990, essa história foi filmada com o nom e de
Convenção das bruxas.
Capítulo III
UM LOBO NO CAMINHO

Chapeuzinho Vermelho, Dama Duende, João-Sem-Medo e Os Três


Porquinhos
Perda da inocência - Curiosidade sexual infantil -
Fantasias de sedução por um adulto - Fantasia de
incorporação -
O papel do medo na construção da função paterna

- Para qu e esses olhos tão


grandes?
- Para te ver melhor, minha
netinha.
- Para qu e estas orelhas tão
grandes?
- Para te escutar melhor, minha
netinha.
- E para qu e esta boca tão grande?
- Para te comer melhor, minha
netinha!
ser á devorada, capa z d e preve r cad a frase, q u e
sab e d e cor e exige qu e a cad a vez seja repetida
ss e d i á l o g o é e s c u t a d o de forma idêntica. A o long o d o s últimos
h á gerações , e o leitor séculos , d e s d e Perrault,1 que a compilou do
certament e o conhece : faz folclore no sécul o XVII, essa história
part e do cont o Chapeuzinho
Vermelho. Se toda a
narrativa te m seu clímax, pouca s
tê m um a cadênci a tã o bo a até
atingi-lo c o m o esta. Ao final
dess e diálogo, a criança q u e
ouv e a história já está ele-
trizada, pendente d o d e s ti n o d a m e n i n a q u e
foi s e n d o suavizada . Sua primeira versã o francesa em
pape l (1697) n ã o conté m u m b o m final para a menina :
depoi s d o diálog o clássico, ela é definitivamente devo • rada .
O text o de Perrault te m um caráter de fábula
moral, ensin a q u e q u e m transgrid e a s regras s e expõ e ao
perigo , é p u n i d o e fim de história. Inclusive alguma s versõe
s d e Perrault traze m un s versinho s finais q u e
alertam as me nina s ingênua s sobr e o perig o d o s
lobos de fala mansa :

Vemos aqui qu e as meninas e, sobretudo, as mocinhas


lindas, elegantes e finas, nã o devem a qualquer um
escutar. E se fazem-no, nã o é surpresa, qu e do lobo
virem o jantar. Falo "do" lobo, pois nem todos eles
Fada s n o D i v ã - P si ca n á lis e n a s H is tó ri a s Infan ti s

são de fato equiparáveis. Alguns são até muito amá• ante s à cas a da avó . Já na história de Perrault, o
veis, serenos, sem fel nem irritação. Esses doces lobos, lob o desafia C hape uzinh o par a um a corrida até se u
co m tod a a e d u c a ç ã o , a c o m p a n h a m a s objetivo, s e n d o q u e lh e indica o c a m i n h o mai s
joven s senhoritas pelos becos afora e além do lo n g o e vai p el o mais curt o tratar d e seu s
portão. Mas ai! Esses lobos gentis e prestimosos são, assunto s c o m a vovó. E m toda s a s versões ,
entre todos, os mais perigosos." C h ap e uz in h o n ã o c u m p r e seu trajet o d e u m a
form a d ir et a . Seja p e l a s flore s e b o r b o l e t a s
Cent o e sessent a an o s depoi s (1857), os d o caminho , seja pel o praze r d e um a
irmão s Grim m escrevera m um a continuaçã o d a corrida , ela n ã o leva su a tarefa totalmente a
história, q u e lhe emprest a u m caráter d e cont o sério, cumpre- a brincando.
d e fadas.3 Nesta, a p ó s Ch a pe u zi n h o ter sid o De qualque r maneira , o Lobo cheg a ante s à
devora da , u m lenhado r q u e estava passand o em casa da avó , anuncia-s e c o m o s e n d o a neta e
frente à casa da av ó da menin a escuto u o ronc o d o lob o aproveita par a d e v or a r a velh a se m de lo n g as ,
q u e dormi a d e barriga cheia. Ele entro u e cortou-lh e ve sti n d o suas r ou p a s de dormi r e deitando -s e em sua
a barriga, retirand o a a v ó e a neta vivas de seu cama , à esper a d a m e n i n a . C h a p e u z i n h o c h e g a
ventre; após , os três pr ee n ch er a m o espaç o vazio d o d e p o i s , e , n e s s e m o m e n t o , ocorr e o clássico
estômag o d o animal co m pedras . O lob o acordo u s e g u n d o diálog o - repro • duzid o acima -, q u e é
co m sed e a acabo u afunda nd o n a águ a qu e se m p r e o clímax da narrativa. Por mais variaçõe s q u
pretendi a beber, m orr e n d o d a mesm a forma q u e e a história poss a produzir , essas falas sã o com o u
em O Lobo e os Sete Cabritinhos. m núcle o pe r m a ne nt e .
Apesar de os finais da s histórias de Num a ediçã o com entad a e ilustrada d o s
Perrault e do s irmãos Grimm diferirem, seu s inícios conto s de fadas, Maria Tatar disponibiliza um a curiosa
sã o bastant e similares. Temo s um a menin a adorável , versão, de feitio mais antigo, dess a história. Ela foi
conhe cid a d e todo s pel o capu z vermelho , compilad a a parti r d e na rr ati v a s orais , n a
pr es e nt ea d o pela avó , o qual andav a se mpr e Fr a nç a , e m 1885; portanto , q u a n d o já existiam
vestindo . U m dia, su a mã e p e d e - lhe q u e leve un s disponíveis par a o públic o as versõe s impressa s de
bolinho s e vinh o (o u manteiga ) par a sua av ó q u e Grim m e Perrault. O cont o chama-s e A História
vivia na floresta. Em Grimm, essa or d e m é da Avó ' e te m as características da s narrativas
a c o m p a n h a d a d e u m p e q u e n o sermão : folclóricas, n ã o originalment e direcio• nada s par a a
s crianças. Po r isso, n ã o h á nel e ne nh u m a mensa ge m
Trate de sair agora mesmo , antes qu e o sol pedagógi c a subliminar, n e m p re o cu p aç ã o e m
fique quent e demais, e, quan d o estiver na suprimir o s eleme nto s grotescos .
floresta, olhe para a frente com o uma boa menina e A História da Avó merec e um comentário ,
nã o se desvie do caminho. Senão pod e cair e quebra r poi s está fora do p ad r ã o habitual . O c o m e ç o é
a garrafa, e nã o sobrará nada para a avó. E igual, mas m a i s sucinto , se m o sermã o
quand o entrar, nã o se esqueça de dizer bom-dia materno , qu e est á totalment e ausente . O
e nã o fique bisbilho- tand o pelos cantos da diálog o co m o Lob o é breve , a p ena s est e pergunt
casa. a po r o n d e ela vai e segu e o outr o caminh o corrend o
par a chega r antes . Devor a a avó , ma s n ã o toda ,
Disposta a obedecer , C h ap e uz in h o peg a o deix a u m p o u c o d e carn e e um a garrafa d e sangu e
ca• minh o conform e lhe fora indicado , ma s par a depois . Q u a n d o C h ap e uz in h o chega , el e
p e d e - l h e par a deixa r a cest a na d e s p e n s a e
encontra-s e co m o Lobo. As várias versõe s frisam q u e
a convid a co m a carn e e o vinh o (o u melhor, o
ela n ã o tev e m e d o , poi s n ã o sabia d o perig o q u e
sangue ) q u e estã o n a prateleira. N o fund o d a
corria c o m ele . N o primeir o diálog o do s dois, chei o d
cena , u m gat o falante c o m e nt a q u e é precis o
e gentilezas, el e tom a a iniciativa e lhe pergunt a
se r um a porc a par a com e r da carn e da av ó e bebe r
a o n d e ela vai. Pron • tament e a menin a conta ao Lobo o seu sangue . A menin a n ã o parec e da r importânci a
sua missão, seu trajeto e a localização precisa da a essa observação , ma s está atent a a o convit e d o
casa da avó . Lobo par a irem par a a cama :
O ardilos o animal elabor a entã o u m plan o
par a devora r n ã o uma , ma s dua s criaturas. Para isso
precisa d e tem po , entã o faz Ch a pe u zi n h o ver c o m o o Tire a roupa , minh a filha, e venh a para a
sol está lind o e qua nta s flores há par a colhe r pel o cama comigo.
cami nho . A menin a s e entusiasm a c o m a proposta ,
s e distrai c o m as flores e admirand o borboletas , e ele A cad a peç a d e roup a q u e ela tira, pergunt a par a
consegu e chega r o Lobo o n d e colocar, el e r e s p o n d e s e m p r e o
mesmo:
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o

Jogue no fogo, minha filha, nã o vai precisar


mais dela.

O strip-tease é detalhado , q u a n t o ao avental,


ao vestido, ao corpete , a anágu a e finalmente as meias ,
e mais minucioso será, q u an t o mais o narrado r
quise r acentuar as tintas eróticas da cena . Q u a n d o
ela final• mente deita, depoi s d o diálog o
co n he ci d o sobr e a s partes grandes e peluda s do corp
o do Lobo, a menin a tem uma súbita vontad e de urinar
e p e d e par a se aliviar lá fora, ao qu e o Lobo
r e s p o n d e q u e faça na cam a mesmo. A menin a
insiste, e ele deixa-a sair, ma s co m um cordão
amarrad o no pé . A menin a amarra o cordã o numa
árvore e dispara par a casa tã o rápid o q u e o
Lobo não a alcança.
Desd e ess a narrativ a d a tr ad iç ã o ora l -
q u e consideramos a mais antiga -, passand o po r Perrault,
até a história como é contada hoje - praticamente a
.versão dos Grimm - , o s as p ect o s mai s erótico s
( e m q u e Chapeuzinho se desp e para entrar na
cama do lobo- vovozinha) e canibalísticos (quando ,
antes de come r a menina, o lobo lhe serve a
carne e o sangu e da avó) foram sendo suprimidos,
substituídos e suavizados.
Apesar das modificações, a o long o dess e proces •
so, ficou preservad a a existência de um diálogo ,
em que a vítima faz perguntas , parecend o
desconfiada , mas ingenuament e se entreg a à bocarr a
de se u algoz. Por mais máscara s q u e s e p o n h a
par a suaviza r a violência do relato, a menin a será
engolida , e a tensã o da narrativa prové m da percepçã o
da s crianças ouvin • tes, que antecipa m o perigo , ao
pass o q u e a menin a se deixa enganar.
Mas se existiram tantas maneira s de conta r
essa história, numa s a menin a se salva, noutra s é
devorada , por vezes precisa de ajuda, po r outra s
foge sozinha , com o e n t e n d e r q u e r e c o n h e ç a m o
s t o d a s c o m o Chapeuzinho Vermelho? 'Na
verdade , c o m o em outro s contos, toda s a s
forma s s ã o válidas , inclusiv e a s modernas
visivelmente mod eradas , poi s estas sã o as
necessárias para noss a sensibilidad e atual. Toda s
as narrativas mantê m o essencial, po r isso sã o
re co n h e • cidas, afinal o q u e faz um cont o sã o os
eleme nto s em jogo, nã o necessariament e os seu s
ira a cama desfechos . O cont o d a Chapeuzinh o conté m u m
dram a sobr e a perd a d a inocência, e isso está
preservad o em toda s as versões . Chapeuzin h o é um a
criança c o m a ingen uidad e
de que m nã o sab e - e aind a nã o suport a sabe r - sobr e o
sexo, ma s sua intuiçã o lhe diz q u e há alg o a
mai s que anima o s sere s h u m a n o s . Embor a ela lev
e do c e s para a vovozinha , p a r e c e n d o q u e na vida
co m e r é a
rent e inocênci a infantil par a o c o n he ci m e n t 3
o da existência da s práticas sexuai s adultas ,
q u e surge m n a vida d a criança à s veze s
mai através d e um a seduçã o imaginada ou , em
o r caso s grave s e traumáticos, vivida.
sati
O apel o dess a história é forte, porqu
sfaç
e todo s já fomo s algum a vez C h a pe u zi n h o
ão e
Vermelho, que r dizer, d e s c o b r i m o s q u e a s
a
d e m a n d a s sexuai s existe m e p a s s a m o s a
solu
investiga r n o q u e no s dize m respeito .
çã o
Curiosos, ma s de s pr ep ar a d o s , corremo s o
par a
risco de ser c on v oc a d o s a o pape l d e objeto
tod
d e u m desejo erótico ante s d e estarmo s
o s
seque r remotamen t e pronto s par a tal. Q u e
os
dess e dram a um a menin a seja a protagonist
mal
a parec e normal , mesm o pa r a a
e s
id en tif ic aç ã o d o s ho m e n s , poi s se mpr e q u e
(vo
houve r um a criança s u b me • tida à s ed u ç ã o
v ó
po r um adulto , seja de q u e sex o for,
ficar
ficará fe m i ni za d a em decorrênci a da
á bo
p a s s i v i d a d e própri a d o ato . Isso n ã o que r
a da
dizer qu e u m m en i n o perder á sua
d oe
masculinidad e a partir de um incident e
nç a
desses , ma s sim que , naque l e m o m e nt o , estará
) ,
vivend o alg o q u e p o d e ser c o m p r e e n d i d o a
ela
partir d o p o n t o d e vista da entreg a sexua l
enc
feminina.
ontr
a no
cam
inh O que quer Chapeuzinho?
o
outr a époc a da criaçã o da teoria
o s psicanalítica, um a da s descobert a s
enc freudiana s mais difíceis d e absorver,
ant po r um a sociedad e q u e j á no s
os : pr ec e d e e m u m século , foi a d a
a sexualidad e
lábi infantil. Freud atribui a ignorância dess e
a aspect o da vida da s crianças a doi s fatores: a um
lupi preconceit o moral e à amnési a "qu e na maioria
na ,
da s pessoa s (ma s n ã o em todas!) en c o br e o s
as
primeiro s ano s d a infância, até o s
flor
6 o u 8 ano". 5 Talvez deveríamo s
es,
conjecturar q u e n ã o s e trata d e um a amnési a
as
bor total, ma s d e um a memóri a seletiva.
bol N a anális e d e u m adulto , através
eta s da s associa • ções , temo s acess o a u m nu meros o
e o acerv o d e fantasias erótica s infantis. Nela s
praz podemo s constat a r tant o o caráter
e r sexualizad o q u e a criança perceb e no s vínculo s
de a m o r o s o s familiares , assi m com o a
brin er oti z aç ã o d e m a n i p u l a ç õ e s medicinai s e
car. d e higiene . T a m b é m é possíve l evocar, a o
Ela lo n g o d e u m a análise, a s fantasias q u e a
repr crianç a fabrica pa r a se u us o
ese mastur batóri o , n o r m a l m e n t e formatada s d e
nt a a c o r d o c o m a s teoria s sexuai s q u e possu i
a n a ocasião , portant o privilegiand o
tran
siçã
o da
apa 5
Fada s n o D i v ã - P s i c a n á l i s e n a s Hi st ór i a s I n fa n ti s
sabemos , pelo s drama s q u e circunda m o
control e esfincteriano - a tirada da s fraldas
a s parte s d o c or p o mais importante s par a a
criança p e q u e n a q u e par a o adulto : a boc a e o
ânus .
Outra forma d e mante r a memóri a desse s
velho s prazere s certament e fica ao s cuida do s da s
manifes• tações culturais. Tal pape l cab e certament e à
lembranç a d e algu m a artista o p u l e n t a q u e t e n h
a p o v o a d o a imaginaçã o do s p e q u e n o s , a algu
m trech o d e livro, convers a o u filme q u e a s criança
s t en h a m c on s eg ui d o coletar , ma s história s
infantis com o ess a t a m b é m oportuni/.a m a
ex p re ss ã o d o q u a n t o a s criança s s e sente m
atraídas po r ess e de sc o n he ci d o tentado r q u e é o
sexo . A menin a dess a história advert e q u an t o ao s
riscos q u e as crianças corre m graça s à sua inocênci a e à
maldad e d e algun s lobo s perversos , ma s t a m b é
m ilustra o quant o elas p o d e m vir a se expo r em
funçã o da curiosidad e e do s desejos erótico s
confusos, ma s imperiosos , qu e guarda m e m seu
interior.
Assim , fica difíci l i n t e r p r e t a r a a t i t u d
e d e Chapeuzinh o d e da r confiança par a u m estranh o
c o m o pur a ingenuidade . F m quaisque r da s versões ,
m e s m o na s be m co mp ortad a s q u e chegara m at é
nosso s dias . percebe-s e sutilmente , so b a trama
dess e conto , q u e entr e o Lobo e sua pres a há
um diálog o q u e n ã o se restringe à iminent e
devoração , a convers a te m um a inequívoc a
coloraçã o erótica.
Chapeuzinho Vermelho é um a história q u e
p o d e até incumbir-se da s seqüela s psíquica s d o
d e s m a m e e aj u d a r a organiza r a s fo bi a s
necessárias , m a s é principalment e evocativa d e
um a corrent e erótica q u e perpass a a relaçã o d a
criança c o m seu s adultos . Diant e d e s s e ti m b r e
se ns u a l d o a m o r familiar, a crianç a p e q u e n a
é tã o i n g ên u a q u a n t o C h a p e u z i n h o , ma s també
m tã o ousad a q u an t o ela. A menin a p o d e n ã o
sabe r qu e jogo está s e n d o jogado , ma s é inegável
seu interesse em participar.
Apesa r d e p e r c e b e r q u e v o v ó estav a
m u i t o estranha , ela entr a n o jog o d e palavra s
e s e deix a devora r pel o lobo . Aliás, trata-se d e
um a convers a d e mútu a sedução , plen a d e
preliminares . Sem destaca r seu caráter d e tentaçã o
erótica, seria incompreensíve l pensa r po r q u e o
lob o nã o a c o m e u co m a mesm a objetividad e
q u e o fez co m a vovozinha.. . Fm vez disso,
ele e a menin a ficam travand o um d ue l o verbal,
totalment e dispensáve l s e C ha p eu zi n h o nã o
passass e d e u m b o ca d o d e carn e tenra.
Em A História da Avó, a menina ,
d e p o i s de despida , escap a porqu e insiste co m o
Lobo par a q u e a deix e sair par a urinar, a o q u e
el e a c e d e s e ela for amarrada co m um fio de lã,
recurso de q u e ela se livra c o m facilidade. Ora, b e m
- e p e l o s repetitivo s c a s o s d e e n u r e s e n ot u rn a
- incontinência urinária -, q u e fazer xixi em hor a e lugar
inconvenient e s é , muita s vezes , manifestaçã o d e uma
excitação sexua l irrefreável par a a criança.6
A vontad e de urinar está freqüentement e associada ao
praze r das menina s e se mistura co m os primórdios da
masturbaçã o feminina. Na versã o folclórica do conto, então , é
indiscutível q u e Chapeuzinh o ficou excitada co m aquel a
conversa e co m o strip-tease. Embora os relatos mais
mo derno s n ã o tenha m essas partes picantes, restaram o diálogo
seduto r e o fato de q u e o lob o recebe a menin a na cama.
Seria p o u c o pensa r q u e d o pai s ó s e esper a
o pape l d o Lobo n o sentid o d e coloca r a s coisas n o seu
lugar e impo r as leis. Sabemo s q u e ele t a m b é m tem
seu s atrativos, principalm ent e par a a s Chapeuzinho s
Vermelhos q u e ele tem e m casa. O s me nino s també m
vã o se interessar po r ele, c o m o vere mo s em João e o
Pé de Feijão (Capítul o VIII), a se u m o d o , m a s
as menina s usarã o també m a s arma s femininas d a seduçã o par a
conquista r par a si a a te nç ã o do pai . É p o r isso q u e
elas s e deixa m cativar n o s diálogo s co m ele, qu e
d e s o b e d e c e m á mãe . O pa i d e v e ser temível, c o m o o
Lobo, ma s par a a menin a é important e fantasiar qu e
el e t a m b é m a desej a e a corteja. Essa q u e s t ã o
da importânci a d o desej o pa te r n o torna-s e relevant e mais
tarde, q u a n d o a menin a entra n a adolescênci a (com o
vere mo s adiante) , ma s o idílio já é b e m antigo , desd e o s
rudiment o s d a feminilidade d e cad a filha.
Três geraçõe s d e mulher e s estã o envolvida s n o
conto : a filha, a mã e e a avó . Se o Lobo p u d e r també m ser
consider ad o um a forma d e simbolizar aspecto s d o desejo
paterno , veremo s q u e ele s e interessa justamente po r aquela s
q u e n ã o p o d e n e m dev e seduzi r n a vida real. O
lobo-pa i teria de se restringir às mulhere s da su a
geração , se m assu nto s a tratar c o m criança s e
senhora s c o m idad e par a se r su a mãe .
É exatam ent e isso q u e a criança está tentand o
decodificar n a organizaçã o sexual d a vida adulta. Q u e m p o d e
casar co m q u e m e po r q u e o s velho s e a s crianças parece m
estar fora dess e tema? Q u e r e m c o m p r e e n d e r sobr e o amor,
q u e m se submet e a q u e m e qua l dessa s submissõe s (vista na
ótica infantil, é claro ) é sexual . A C h a pe uz i n h o te m e m
c o m u m co m a av ó o fato d e estar fora do comérci
o sexual , se o pa i n ã o respeit a essa orde m , é
natura l q u e v á c o m e r a a v ó ta m b é m , afinal toda s as
mul here s da família seria m en t ã o dele . O s a s p e c t o s
eróticos tão latentes q u a n t o
insistente s d a históri a d ã o c o nt a d e u m a c o rr en t e
s e n s u a l q u e s e e s t a b e l e c e e n t r e a crianç a e s e u
s progenitor e s , ma s n ã o deix a d e s e ate r ao s
velho s
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o

conhecidos: a boc a e o praze r oral. Ao m e s m o t e m p o Curiosidade sexual


que o conto funciona dentr o do antig o registro
oral, tão cômodo para a criança, observ a certas pesar de existirem diferentes versões,
pe rc e pç õ e s novas, ainda nà o passíveis d e sere m há poucas histórias similares à de
decodificadas , que balançam o esquem a d e Chapeuzi• nho. Os contos de fadas são
organiza çã o psíquic a primordial. O praze r da convers extremamente
a e de brinca r entr e as flores se interpõe ao tema da repetitivos, uma leitura mais extensiva nesse
comida . Sua missã o era levar comida para a vovó território revela que uma mesma fórmula aparece, com
, c o m o se da í proviess e a forma única d e variações apenas superficiais, sob vários títulos. Nesse
a g r a d o possíve l , m a s eis q u e n o caminh o o sentido , Cbapeuzinbo é ímpar. Mas existe
mund o s e re ve l a be m maio r q u e a s uma exceção: uma história curta, narrada
guloseimas qu e cabe m na cesta. pelos irmãos Grimm, que pode evocar traços
Nào é difícil p e r c e b e r q u e C h a p e u z i n h o de Chapeuzinho, chamada Dama Duende.'"
est á cativada po r alg o q u e n ã o c o m p r e e n d e , ma s Nele, uma menina, que já é
se nt e . Nesse sentido , s ã o m u it o ilustrativa s a s desobediente e teimosa, pede aos pais para conhecer
g r a v u r a s clássicas d e Gustav e Dor é q u e retrata m a Dama Duende, uma senhora de má fama. Ouve-se
o primeir o encontro da menin a c o m o l o b o dizer que em sua casa ocorrem prodígios, a menina
na floresta e os dois d e i t a d o s l a d o a l a d o então é atraída por isso e tem muita curiosidade
n a c a m a . E m a m b o s desenhos , C h a p e u z i n h o de ver tais maravilhas, não explicitadas no
olh a par a o l o b o fixamente , entre intrigada e conto . Seus pais a proíbe m terminantemente
hi p no ti za d a . Há u m a m út u a s e d u • ção implícita. de ir lá, inclusive ameaçam de não reconhecê-la
O q u e s e d u z e fascina a m e n i n a n ã o é mais como filha, mas tal advertência pouco
certament e a bele z a d o lob o , d e que m surte efeito, ela vai mesmo assim.
n à o podemo s afirmar q u e seja u m galã , s ã o sua s O desfecho é rápido, a menina entra na casa da
se g u n • das intenções . Afinal, o p r e d a d o r p o d i a te r Dama Duende e quando chega diante da propriamente
d e v o r a d o sua tenra pres a n u m c a n t o q u a l q u e r dita já está pálida de medo. O que se sucede
d a floresta . Distraíd a colhend o flore s e é um diálogo que lembra o diálogo de Chapeuzinho
corrend o atrá s d e borboletas, era fácil d e se r com o Lobo. Neste conto, a menina já está
e m b o s c a d a , m e s m o assi m ele a atraiu par a a cama , amedrontada e não quer crer no que seus olhos já
par a lá lh e passa r sua con • versa mole ante s de viram: a casa se revela um lugar diabólico, com
devorá-la. 8 figuras masculinas aterrorizantes. A Dama Duende
Chapeuzinh o está interessad a e m sabe r n o é de uma crueldade impassível, transforma a menina
q u e ele está interessado, p odería mo s dize r q u e é o num pedaço de lenha que imediatamente é
desejo dele qu e a intriga. Mas gostaríamo s de frisar que , consumido pelo fogo.
para a menina, isso é mai s um a cu ri os id a d e , A moral da história é tão breve quanto o conto:
di ga m o s , teórica, qu e a pretensà o de chega r a não se deve ser desobediente e não se deve
algu m tip o de envolvimento erótic o co m se u buscar nada com as pessoas más. Mas, falando em
sedutor . U m abism o separa a s intençõe s d e u m tentação, o que essa menina desobediente procurava?
pedófilo d a capacidad e d e compreensão d a criança Que lugar é este que , apesa r do medo , dá
d e q u e m el e s e aproveita . Infelizmente, para as má fama e da advertência categórica dos pais,
p ob r e s vítimas dess e crime, é justament e ess a não deixava de atraí- la? Talvez a melhor pista seja o
i n o c ê n c i a c u r i o s a q u e s e d u z o abusador: o seu destino, virar um objeto a ser consumido pelo fogo.
contraste entr e a condiçã o adulta de seu propósito Na versão A História da Avó, existe um fogo aceso que
e a infantilidade da vítima. consome as roupas de Chapeuzinho, aqui a própria
O cont o Chapeuzinho Vermelho trabalh a o menina se torna um objeto a alimentar as chamas.
tem a d a sexualidade infantil dentr o d o território d o O fogo em questão é um recorrente símbolo do
possível e necessári o par a a s criança s p e q u e n a s desejo sexual e do ato sexual. Não falamos
. Te r u m a sexualidade, sabê-la e exercê-l a sã o apenas do popularmente conhe• cido fogo da paixão,
três coisa s b e m distintas. Esta última possibilida d e é bom lembrar também que existe a crença popular de
s o m e n t e se inau • gura co m a adolescênci a , que criança que brinca com fogo se urina na cama.
enquant o a infância oscila entre a s dua s Outra história dos Grimm que mistura os elemen•
anteriores . C h a p e u z i n h o é útil par a aqueles q u e tos do medo e da curiosidade sexual é
se nt e m q u e a têm , estã o curioso s c o m seu João-Sem- Medo.11 Este personagem não se assusta
significado, ma s aind a n ã o estã o p r o n t o s par a com nada e,
explicitar ess e c o n he ci m e n to . 9
Fada s n o D i v ã — P s i c a n á l i s e n a s Hi st ó ri a s Infa nti s

po r isso, pass a reclamando : "Ah, s e e u p u d e s s e treme r Comer e ser contido


d e medo!".
Aqui n o s afasta mo s d e C h a p e u z i n h o , m a m Os Três Porquinhos,12 conto da
s a temática é a mesma : o enigm a diant e de tradição inglesa, també m há um
sensaçõe s do m u n d o adulto , ou seja, o q u e é o en contr o dos personagens com o lobo,
se x o e, principal • mente , c o m o n ã o temê-lo . Com mas esta história
o o maio r desej o d e João-Sem-Med o é encontra r alg ressalta outro significado desse evento:
o q u e lhe permit a viver essa sensaçã o q u e o s outro s tê m a fantasia de incorporação. Aqui, o risco de ser
e parec e ter-lhe sid o vedada , nã o lhe resta alternativa devorado é o tema central, enquanto em
senã o sair pel o m u n d o e m b us c a d e u m e n c o nt r o Chapeuzinho é um significado associado ao tema
co m o medo . E m se u caminho , po r sorte, da curiosidade sexual, como analisamos acima.
encontr a u m castel o e n ca nt a d o , assombrad o po r Neste conto, chega um dia em que os três irmãos
tod a a classe de diabo s e fantasmas, e q u e m porquinhos estão em idade de sair de casa, pois sua
consegui r desencantá-l o terá as graça s do rei e sua mãe já não tem meios de sustentá-los. Partem então
filha c o m o esposa . separados, seguindo caminhos diferentes. A primeira
Até os diabo s se assusta m co m a corage providência de cada um é conseguir uma casa
m de João : ele fica as três noite s - o te m p o q u e para morar, o primeiro faz a sua rapidamente
um preten • dent e devia passa r ali dentr o - se com um p ou c o d e palh a qu e receb e d e u
divertind o c o m as tentativas do s sere s da s trevas em m hom e m n o caminho. O segundo pede e
expulsá-lo . For fim, o s fantasmas s e dã o po r ganha, também de um homem que encontra, um
vencido s e sae m d o castelo, q u e p o d e se r pouco de gravetos e com isso faz a sua casa,
habitad o p o r h o m e n s n o v a m e n t e . O heró i ganh a levemente mais robusta qu e a do irmão anterior. For
a princesa c o m o prêmio , p or é m segu e frustrado fim, o terceiro porquinho dispensa mais tempo para
p or q u e ainda nã o consegui u treme r d e medo . A criada d fazer sua casa, pois ela é feita da maneira mais
e su a recém-espos a te m um a idéia: q u a n d o ele está sólida possível, é construída de tijolos, qu e també
na cama d or m in d o co m sua mulher, ela lhe joga m gan ho u d e u m d es co n h e ci d o n o
em cima uma tina de águ a co m peixe s vivos. Este caminho. Todos recebem, portanto, alguma ajuda (um
susto, q u e desta vez o colh e no lugar certo , na homem que lhes fornece o material
cam a co m uma mulher, produz-lh e a sensaçã o tã o necessário), o qu e varia entre eles é a
almejada, finalmente trem e d e m e d o . disponibilidad e para o trabalho.
Bettelhei m encontr a o sentid o dest e Quando o lobo entra em cena, os porquinhos já
c o n t o c o m p r e e n d e n d o - o a parti r d o se u fim, têm onde se abrigar. O primeiro corre até sua casa e
q u e o re - significa: a busc a de João , o q u e lh e se esconde, mas o lobo com facilidade sopra a casa
faltava sentir, n ã o era o m ed o , ma s os tremore s e pelos ares e devora o porquinho. O
afetos relacionado s ao sexo . Era ess e o efeito q u e ele segundo dos irmãos tem o mesmo destino, o
buscava , cuja ausênci a lhe impedi a d e s e sentir u m lobo simplesmente tem de soprar um pouco mais.
h o m e m completo . Afinal, é na cama e a partir de É apenas no terceiro porquinho que a história
um a sensaçã o produzid a pel a a ç ã o de um a toma outro rumo. O lobo sopra, mas não
m u l h e r - n o ca s o , a criad a é u m a duplicaçã derruba a casa. Já que suas ameaças de nada valem -
o da espos a - que ele sent e o q u e nunc a "vou assoprar, bufar, e sua casa vou derrubar!" -,
sentira. procura então outra maneira.
João-Sem-Med o partiu para o m u n d o movid o pela Usando a mesma lábia que surtiu tão bom efeito
curiosidade sexual, mas, c o m o já era jovem, p ô d e afinal s e com Chapeuzinho Vermelho, ele tenta
divertir, n ã o foi d e v o r a d o n e m c o ns u m i d o pela seduzir o porquinho com indicações de onde existem
s chamas . J á estava long e d a époc a e m q u e o apetitosas iguarias para ele. O porquinho escuta e
praze r dependi a d a boca , sã o o s peixinho s p u l and vai buscar a comida, mas sempre se antecipando ao
o e m sua pele , escorregand o juntament e c o m a lobo, que não consegue nada com suas armadilhas, a
águ a fria q u e o excitam . não ser perder maçãs e nabos para o espertinho.
O significado mais co mpl et o d o cont o seria Por fim, o lobo apela para uma medida
um a advertência : n ã o adiant a a corage m na extrema, tenta entrar pela chaminé da casa do
vida se m a corage m na cama , se m isso n ã o se porquinho; dessa vez, este também estava preparado,
é adulto . Muitas vezes, u m b o m d e s e m p e n h o e o lobo tem o seu fim dentro de uma panela de
diant e do s desafios d a vida n ã o implica q u e água fervente. Nesta história inglesa, o porquinho
tivemo s a corage m d e enfrentar o s fantasmas q u e come ensopado de lobo no jantar, ou seja, quem veio
no s a ss o m br a m entr e o s lençóis. comer acabou devorado.
Diana Lichtenstein Corso e Mário Corso

Os Três Porquinhos têm a simplicidade que


as crianças bem p eq u e n a s apreciam , se m
muito s personagens, os bons de um lado e um
malvado de outro. A trama, porém, embora simples,
toca a fundo as crianças pequenas, que afinal um dia
terão de sair de casa e proteger-se sozinhas. Nessa
história mais antiga, os dois primeiros são
devorados, mas nas versões contemporâneas
todos se salvam: a cada investida do lobo, a
casa é derrubada e eles correm para se abrigar na
casa do irmão.
Embora os porquinhos não sejam tão
ingênuos quanto a menina, ambas as histórias
compartilham certa decodificação oral do mundo -
dividida entre os que comem e os que são
comidos -, que ainda persiste um bom tempo após
o desmame. O porquinho pode ser pensado como
sendo três em um. O trio daria espaço para a
evolução do personagem, representando sucessivos
momentos. Inicialmente desprotegidos, à mercê de
serem devorados, o porquinho e a criança aprendem a
criar empecilhos que os separem da mãe, diferenciando
sua vontade da dela. Como situávamos nos capítulos
anteriores, a separação da criança, o trabalho
de se compreender como um indivíduo é
progressivo e bastante marcado por estratégias
de defesa, como se recusar a comer e negar-se a fazer
o que lhe é solicitado. Sucessivas paredes, cada vez mais
bem construídas, demarcarão os territórios entre
a criança e seus adultos.
A arma do lobo é sempre a boca, afinal, o sopro é
uma força que provém dali e, de certa
maneira, também a lábia em querer enganar vem
do mesmo lugar. A boca cumpre múltiplas funções
quando se é muito pequeno, além de fonte de
saciedade, prazer e conhecimento, ela é uma espécie de
portal. Os trânsitos que ainda restam entre o bebê e sua
mãe, uma vez que a comunicação umbilical foi
cortada, terão passagem prioritária pela boca. O
olhar é uma fonte muito importante de vínculo.
Em função do que vê, o bebê pode se tranqüilizar -
"que bom, mamãe chegou" - ou inquietar-se - "Perigo!
Perigo! Ela pegou a bolsa, ela vai sair!". Mas só
aquilo que se engole é factualmente passível de
ser possuído e controlado.
Embora ainda não compreenda conscientemente, a
criança procede como se soubesse que sua primeira
morada é o ventre materno. Por sua vez, o raciocínio
de que se possa entrar e sair de dentro do outro não é
nada estranh o para alguém qu e há pouc o
se alimentava diretamente do corpo de sua mãe. Se
aquele líquido morno sai diretamente dos seios dela
para sua boca, outros trânsitos de dentro de um para
o outro também são imaginariamente possíveis. Mas
eis que
vem o lobo para lembrar que essa história não é
tão simples assim.
No imaginário infantil, o lobo e as bruxas gulosas
- tal qual a de João e Maria - assustam mais
que as baixas ciumentas - como as encontráveis em
Rapunzel, Branca de Neve e A Bela
Adormecida -, q u e geralmente aparecem
depois. Estas últimas são mais complexas, assim
como vai ficando a vida depois que as relações
passam a ser claramente entre pessoas inteiras
e não mais entre bocas. Quando as bruxas
ciumentas reinam, já há uma família inteira, há
uma criança que sabe que vai crescer e já pode se
colocar questões relativas à ambivalência de
sentimentos e à fragilidade dos pais. O primeiro
perseguidor, o papão da primeira infância,
freqüentemente pertence ao gênero masculino,
tendo no lobo seu ancestral mais famoso, tanto
que até hoje se fala dele. Mas na vida dos
pequenos o lobo não está só, pode ter a companhia do
Papai Noel, que não traz só presentes, são muitas as
crianças que o temem; do bicho-papão, que geral•
mente mora em baixo cia cama, mas freqüenta
outros cantos escuros; do palhaço, o terror dos
aniversários; do cachorro, que, como o lobo, vaga
pelas ruas pronto para cravar os dentes afiados
nas criancinhas; e de outros, ao sabor do
freguês. A bruxa também é assustadora, mas
ela não costuma sair das histórias para
aterrorizar o cotidiano dos pequenos, ou pelo
menos é mais raro encontrar uma bruxa
incumbida do papel de objeto fóbico.
Em relação aos três porquinhos, vence
aquele que melhor soube prever e se proteger, que
construiu a casa de tijolos. São histórias
que dão conta da necessidade de proteção da
criança diante de perigos que ela ainda não
decodifica bem, mas desconfia que deve aprender
a evitar. Os Três Porquinhos possui també m
agregad o um aspect o de fábula moral,
mostrando que a perseverança vence, que o
mundo não é só brincar, que o trabalho árduo é
recompen- sador e que crescer é saber cuidar de si.
No desenho da Disney referente a esse
conto, há uma provocação interessante à figura do
lobo, pois os porquinhos ganham uma trilha sonora
onde cantam de forma desafiadora: "Quem tem medo
do lobo mau, lobo mau, lobo mau?", provocando
seu perseguidor, como um toureiro. O porquinho
não se contenta em fugir e procede como a criança
que pede a repetição do conto, no incansável
prazer de ter medo. Graças ao lobo, a criança
poderá simbolizar o med o de desaparece r
dentr o do corp o da mãe, com o os
alimentos desaparecem dentro de sua boca, indo
morar em sua barriga.

57
Fada s n o D i v ã — P s i c a n á l i s e n a s Hi st ór i a s Infanti s
figura faz um contrapont o com o u m aspect o d o lob o
q u e é um a ameaç a primordial.
São tem po s de uma subjetividade simples,
um a é p o c a e m q u e é c o n v e n i e n t e a i nv o ca ç ã
o d e u m intermediário entre a mã e e a criança, esse é
precisamente o lobo. Q u e m já brincou co m
pequenos , pouc o mais qu e bebê s deambulantes ,
descobriu qu e se esconde r e ser encontrad o é muito
divertido para eles.
Apó s aguardare m ofegantes , escondido s debaix o
d e um a cobert a o u atrás d e um a cortina, ele s
gritam nervoso s e eufóricos q u a n d o sã o descoberto s
e sae m correndo , c o m o p or q ui n h o s gritões. O
m o m e n t o d e esper a so b o s panos , ante s d e sere
m descobertos , é equivalent e à expectativa q u e
a c o m p a n h a o diálog o co m o lob o e o objetivo da
criança co m essa brincadeira é sentir m e d o . Mas po r
q u e um a criança gostaria o u precisaria sentir
medo?

Para que sentir medo?


e a criança n ã o soub ess e q u e há um
lobo - adult o r o n d a n d o lá fora, n ã o teria
tranqüi • lidade par a ficar oculta so b o
tecido , teria m e d o de nunc a sair de lá.
É o lob o q u e a
fará sair de seti esconderijo . O terror mais primitivo
é o de ser enterrad o vivo nas entranha s da
mãe . Por isso, a maior part e da s crianças eleger á
algum a figura a p a vo ra n t e par a se u us o pessoal ,
co n he ci d a pelo s psicanalista s c o m o objet o fóbico
. Sua form a varia bastante , ma s a certeza é q u e
o m u n d o ficará geogra • f i c a m e n t e mapead o
conform e su a presenç a o u ausência . O s objetos
fóbicos mais c o m u n s sã o aquele s fáceis de ser
encontra do s no dia-a-dia e no s lugares
freqüentado s pela s crianças. N e nh u m a dela s terá terror a
pingüins... A n ã o ser q u e mor e no Pól o Sul.
Sabendo-s e qual é o perig o e o n d e fica, o m u n d o
se torna mais previsível e tranqüilo. O pior
m e d o é despertad o q u a n d o nã o conhec e mo s be m o s
contorno s d o q u e no s ap a vo r a , p o r isso , o
terro r habit a n a escuridão. A fobia qu e
normalment e se manifesta na infância é um recurs o
de defesa contra um a forma de med o muito mais
terrível, qu e é a angústia: essa sensaçã o de q u e algo
indefinível e nào-localizável no s ameaça . A o
escolher u m algoz c o m o u m cã o o u u m palhaço ,
p o d e m o s controlar esse sentiment o d e forma be m mais
eficiente d o qu e s e formos tomado s po r ele.1 3
Algumas formas de angústia sã o relativas a sentir- s
e dissolvido ness e outr o maior qu e p o d e no s
conter, no s engolir. Após Chapeuzin h o ter
sucu mbid o a tã o aterrorizante destino, surge, na
versã o do s Grimm, o caçador qu e a tirará de lá. Essa
transforma da em
a v i ã o z i n h o q u e a s mãe s fazem, m a r c a n d o
ruidosa• m e n t e a vi a g e m d o a l i m e n t o d o
Parec e contraditório , ma s a figura d o lob o abr e
p r a t o à b o c a , é denotativ a dess a separaçã o . Seja
espaço , a o m e s m o t e m p o , par a represent a r o risco d a n o sei o o u n a mama • deira, o at o de se alimenta r
i n c o r p o r a ç ã o a o c o r p o m a t e r n o , assi m c o m o seu era de a co n c he g o , mas co m a chegad a d o prat o
oposto , a personificaçã o d e u m objet o fóbico q u e lhe e d a colhe r h á u m mu n do , chei o d e instrumento
ajude a circular no m u n d o externo . A lógica da história c o m o s frios e duros , q u e s e interpõ e entr e mã e e filho.
dizíamo s é da s mai s primitivas: "é visível q u e o l o b o Só de aviã o para cobrir um a distância tã o nov a e
está interessado , ma s s e algué m q u e r alg o d e mim, as su st a do r a . Po r isso , o d e s m a m e , n o sentid o
q u e m sab e p o d e ser q u e queir a m e engolir", ess e subjetivo q u e lh e atribuímos , é u m process o
poderi a ser o tip o d e raciocínio d e Chapeuzin h o diant e longo , almejad o e temid o pel a criança, do qua l o med o
do lobo . Por isso, o caçado r te m q u e fazer um parto, d o lob o é u m recurs o defensiv o auxiliar.
já q u e é n a s c e n d o q u e se sai do ventr e materno . A cen a d o O pedid o da s crianças para escutar o
b e b ê alimentando -s e a o sei o reprodu z cont o da Chape uzinh o repetida s veze s justifica-se
po r fora a situaçã o q u e o c ordã o umbilical estabelecia p o r pel o prazer de encontra r o lobo , constatar a
dentro , de um fluido q u e liga o c o r p o de m ã e e ameaç a real q u e ele conté m e assustar-se, par a
filho c o m o se fossem um só . A partir dela, a b e m de tranqüilizar-se. E po r isso q u e o objeto
criança iniciará u m s e g u n d o parto , dess a ve z fóbic o te m n o pa i se u melho r representante . O pai
psíquico . O d e s m a m e é um nasciment o subjetivo, no ocup a a mãe , ao exigir seu quinhã o n o interesse dela,
qua l o mais important e é a garanti a par a a crianç a oferecendo-lh e prazere s adulto s qu e o b e b ê n ã o
de q u e seu c o r p o e su a pesso a sã o um a u n i d a d e p o d e lhe dar, fazend o co m q u e muitas veze s
indivisível e separad a d o corp o materno . É important e ela se desconcentr e da criança. E claro q u e o
ressaltar qu e es s e p r o c e s s o n ã o ocorrer á s o m e n t e c o trabalh o dela, assim c o m o a s preocupaçõe s mundana s
m criança s alimentada s a o seio, seu s e s q u e ma s s e co m o dinheiro , c o m a vida social e cultural, produ z
reproduzirã o t a m b é m c o m a q u e l a s q u e u s a r a m o m e s m o efeito; ma s s e h á algué m disponíve l
m a m a d e i r a e precisa m transitar para outra s formas de par a ser culpabilizad o p o r retirar d a criança a
alimento , mais ativas e q u e exige m q u e a criança co m a atençã o d a mãe , est e é o pai , afinal é c o m el e
q u e ela d o r m e . Nada
fora do colo. A p a n t o m i m a da colher

58
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o

mais compreensível entã o q u e s e alicerce m e m


su a figura as representaçõe s do objet o fóbico,
q u e será conclamado para ronda r d o lad o d e
fora d a casinh a do porquinho.
Para o s pe q ue n o s , q u e c o n h e c e m a boc a
c o m o fonte primeira de prazer, é fácil pensa r
q u e aquil o que os adultos fazem q u a n d o estã o a sós
se relacion a com se morder uns ao s outros . Essa conclusã
o se impõ e porque ele decodificará tal m od al id a d e
a partir do seu desejo de mordiscar e aboca nha r o
seio, q u e sã o formas carinhosas de devoraçào . Os
adultos , em um a certa sabedoria inconsciente, log o
desco bre m o imens o prazer que infunde no se u b e b ê a
brincadeir a de beijar a barriguinha com o se fossem
comê-los.
O lobo nã o é um bich o tã o grand e e
rarament e ataca o homem , entã o po r q u e ele foi
escolhid o par a esse papel desabonador ? Acreditamo s
q u e justament e por ser a versão maligna do cachorr o :
a m b o s partilham a mesma carga genética , conform e
a raça, q u a s e a mesma aparência, e p o d e m cruza r
entr e si. Enfim, um é a versão doméstica, e o outro , a
versã o selvage m do canídeo. Tão iguais e tã o
diferentes, o lob o e o cã o mostram-se propício s
par a su p or ta r a metáfor a d o perigo associado
ao amo r incestuoso , afinal, é alg o tão familiar e
próximo , c o m o os pais, q u e p o d e ser vivido de
maneir a selvage m e distante , tal qua l os desejos
inconfessáveis e incompreensívei s q u e se imis• cuem na
relação co m eles.
Entre as tantas interpretaçõe s possíveis da história
de Chapeuzinho, pode-s e pensa r q u e ela seja
alusiva a o potencial d e sedu çã o contid o na s relaçõe s
co m o s adultos. Sendo assim, é natural q u e estes,
vividos até então com o protetores , revele m se u
lad o o b s c u r o : alguém qu e segu e s e n d o o mes mo ,
ma s q u e mostra sua face selvagem. Co m o o cã o
doméstic o se prest a para encarnar a fera de q u e
necessitamo s invocar em determinado s m o m e n t o s
( a q u e l a s criança s qu e s e desesperam q u a n d o
v ê m um , aferrando-s e a o col o mais próximo), o
lob o é, em definitivo, essa versã o selvagem d o
perig o doméstico , um a prov a d e q u e o papai
bonzinh o q u e s e te m e m casa p o d e tornar-s e
uma figura ameaçador a e temível.

Chapeuzinbos quando
(não) crescem...
xi st e m adulto s qu e sã o
co m pl et a me n t e alheio s à s sutileza s
e r ó t i c a s q u e e s t ã o presente s na vid a
cotidian a (certament e o l eit o r c o n h e c e r
á a história de a l g u é m
alfabetizar, voltar-se par a o s amigos , par a a
escola . T u d o vai b e m at é q u e a
próxi m o q u e seja assim) . São aquela s
mul here s o u h o m e n s q u e nu n c a p e r c e b e m 59
quand o estã o s e n d o olhados , dificilmente
arranjam parceiro s e m funçã o d e q u e n ã o
sabem , n e m rudimentarment e , praticar o jog o d
a seduçã o e s e queixa m d e sere m
invisíveis, q u a n d o n a verdad e sã o é cego s par a
est e assunto .
Q u a n d o enfim alg o acontec e par a ess e
tip o d e inocentes , eles p õ e m t u d o a perde r po r s ó
en te n de r e m as coisas depoi s da noit e ter passado .
Muitas vezes , se envolve m e m relacionamento s e m
q u e sã o usado s da s mais diversas formas, já qu e
a passividad e infantil é a únic a m o d ali d a d e d e
relaçã o q u e tê m a oferece r e se m p r e h á
q u e m tire proveit o disso . P os su e m um a
ingenui dad e crônica, a experiênci a parec e
nunc a ser cumulativa , estã o sem pr e repetind o
seu s erros , inca• paze s d e a pr en d e r c o m o
funciona o jogo sexual . Co m algum a freqüência,
essa inocênci a militante s e estend e par a o s
território s fora d o am or , fica c o m p l i c a d o
trabalha r e estudar , j á q u e rara ment e
p e r c e b e m o s subtexto s q u e estã o implícitos n a
com unica çã o entr e a s pessoas , na s instituições qu e
freqüentam , enfim sã o imu ne s a quaisque r
sutilezas.
A ingenuida d e adulta é um a patologi a da
s mais sérias, caus a u m a série d e embaraços ,
atrapalh a o u inviabiliza a vida amoros a da s
pessoa s envolvida s e, pior, geralment e n ã o é
reconhecid a c o m o u m g ra n d e proble ma . A pesso a
q u e a possui se sent e pur a e boa , e n q u a n t o os
outro s é q u e sã o cheio s de hipocrisia e
intençõe s escusas . Pois bem , um a provável fonte
dess a ingen uida d e prové m d e um a recusa
inconscient e e m admitir o p r e p o n d e r a n t e pape l do
sex o na nossa vida. A o long o d o crescimento , h á
um a série d e idas e
vinda s a respeit o dess a q uestão . O períod o de
latência, po r e x e m pl o , é u m m o me n t o d e suspensã o
d a proble • mática. Algo c o m o : n ã o q u e r o sabe r
disso, pel o m e n o s nest e m o m e n t o , t e n h o coisas
mais importante s para m e ocupar . Depoi s d e ter
passad o pel o intens o dram a am oros o e erótic o d o
Co mple x o d e É di p o, " q u e torn a a s criança s at é
o s 4 , 5 a n o s tã o difíceis d e lidar,
finalmente a s exigência s eróticas e a s disputa s d e
p o d e r d ã o um a trégua .
Na verdade , é um armistício merecido ,
poi s a long a batalh a anterio r estabelece u o
lugar da s coisas. Q u a n d o a latência chega , o s pais
diminuíra m a morosa • m e n t e d e tamanh o e
a u m e n t a r a m su a estatur a e m autoridade , a
própri a criança já n ã o se sent e tã o central n a vid a
deles . Muitos vínculo s d e d e p e n d ê n c i a mai s
primitiva, qu e envolvia m tant o física e
espiritualment e pais e filhos, estã o se dissolvend o ness
a ocasião . Graças a isso, sobr a energi a par a se
Fada s n o D i v ã - P s i c a n á li s e n a s Hi st ó ri a s Infan ti s
Bel o
Horizonte: Ed. Itatiaia, 1989.

p u b e r d a d e termin a c o m a trégua , traz n ov a m e nt


e à ce n a desejo s i nc o m pr ee n sí ve i s , modific a o
c o r p o , erotiza a vida.
Essa postur a latente vida afora é inviável,
poi s n ã o c a b e mai s n o q u a d r o d o adulto : se u
c o r p o é se x ua d o , o s calore s d o desej o invade m
se u corpo , que r seja na fantasia masturbatóri a
quer, no s piore s casos , s o b a form a d e u m a
angústi a q u e o deix a de sam parad o . Essas almas
puras q u e r e m ser celiba- tárias c o m o o s latentes, ma
s termina m fazend o o pape l d a avestruz qu e escond e a
cabeç a n o buraco , deixan d o e x p o s t o o e n o r m e
c o r p o . D en tr o d e s s e e s q u e m a , q u a n d o a vida lhes
impõ e u m pape l sexual, vã o ofere• cer o qu e têm:
sua ingenuidade . Ser um a assustad a Chapeuzinh o
é até o n d e vai a sexualidad e de q u e m nã o que r
sabe r nad a d o assunto .
Acima d e tudo , essas pessoa s n ã o q u e r e m
sabe r da diferença do s sexos , já q u e o amo r e o
exercício da sexualidad e sã o movido s po r um a
sensaçã o d e q u e somo s incompletos , um a m etad e
e m busc a d a outra . A diferença do s sexos , q u e
partilha o s sere s co m bas e e m um a grand e divisão
d e identidade , no s coloc a a priori diant e d a
impossibilidad e d e pertenc e r ao s doi s times. O
desejo sexual é mais variad o do q u e isso, ele permit e
q u e tant o a identificação (masculin a ou femi• nina) ,
assim c o m o o tip o d e objet o escolhid o par a
ama r (homossexua l o u heterossexual) , faça
combina - tórias diversas, pessoai s e intransferíveis.
Mas há um p o n t o d e partida co m o qual n ã o
p o d e m o s deixa r d e lidar: e m co n di ç õ e s nor mai s
n a s c e m o s fisicament e sexuados , pertencent e s a um
a da s metades .
Aceitar a diferença do s sexo s traz, c o m o
decor • rência, a perd a n ã o s ó d a inocência , c o m o
ta m b é m d a onipotênci a infantil. É difícil aceitar qu
e há alg o em nó s q u e sempr e d e p e n d e r á d o
outr o par a ser con • quistado . Uma vez sexuados
, sere mo s par a s e m p r e incompletos . Por mais qu e u
m h o m e m s e conect e co m seu lad o feminino e vice-
versa, se m p r e será o outr o lado. Amar é... ser
incomplet o . Por isso, essa ingenui • dad e é defendid a
co m u n h a s e dentes , par a voltar a ser algo tã o
valioso c o m o acreditávamo s ser q u a n d o b e b ê s e
perdê-l a é ficar à merc ê do amor . H o m e n s ou
mulheres , po r mais principesco s o u p o d e r o s o s
q u e sejam, s e estivere m e m busc a d e algu m amor,
estarã o lidand o co m a incompletud e .

Notas
1. PERRAULT, Charles . Contos de Perrault.
2. Da obra original de Perrault (Histoires ou Contes du Temps
Passe, Avec des Moralités. Paris: Barbin, 1697), in TATAR,
Maria. Contos de Fadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2004. É interessante observar qu e esses
versinhos finais foram suprimidos das edições atuais
de contos de Perrault.
3. GRIMM, Jaco b e Wilhem. Contos de Grimm. Belo
Horizonte: Ed. Villa Rica, 1994.
4. Conforme Maria Tatar: A História da Avó foi contada po r
Louis e François Briffaut, em Nièvre, 1885.
Publicada originalmente por Paul Delarue em Lês
Contes Merveieux de Perrault et la Tradition
Populaire", "Bulletin Folklorique de l'Îlle-de France"
(1951). Ibidem p. 335. Essas fontes sugerem que,
embora A História da Avó tenha chegad o até nós
graça s a um a pesquis a posteri o r à q ue la s que
propiciaram as compilações mais tradicionais, como as de
Perrault e do s irmãos Grimm, ela é resultante de uma
pesquisa dentr o de parâmetro s de rigor histórico qu e
nos autorizam a considerar esta versão mais antiga qu e as
anteriores.
5. FREUD, Sigmund. Três Ensaios sobre a Teoria da
Sexualidade (1905). Obra s Completas , vol. VII,
p.163. Rio de Janeiro: Imago, 1989.
6. Surpreendentemente, a enures e é um sintoma cuja cura
respond e bastant e be m a um a intervenção
moderadament e severa por parte da família. Uma
explicação plausível para esse fenômen o deve-se ao
fato de a criança receber a reprimenda como a bem-
vinda proibição de se entregar a uma forma de
satisfação sexual que , embor a sinta, é muito pesada
para carregar. Trocando em miúdos, ela sente um prazer
sexual de alguma forma conex o com coisas qu e os
adultos fazem e sobre as quais ela nã o sabe be m o qu e
são. Essas sensações corporais estranhas e boas, de
alguma forma, se associam a seus pais, porém ela nã o
tem registro possível para tal desejo, porqu e é proibido e
complicado demais. Por isso, se urina em sonho s ou
mesm o segura o xixi até qu e sua saída explode com o forma
de prazer. Quand o lhe é proibido urinar em qualquer
lugar, embora pareça um contra-senso proibir algo
que tem motivaçõe s inconsciente s , muita s vezes , a
criança consegue controlar-se; é com o se ela fosse
excluída de um circuito de prazer muito complicado para ela
mesma. Algo semelhante ao qu e sentimos qu and o ficamos
impedido s de comparece r a um compromisso desejado,
mas qu e temíamos enfrentar.
7. Ver em PERRAULT, Charles. Contos de Perrault. Belo
Horizonte: Editora Itatiaia, 1989, p.53 e 24.
Diana Lichtenstein Corso e Mário Corso

8. No Capítulo VI do livro O Pensamento dament e precoc e e inesperadamente intensa, pelos


Selvagem, Levi-Strauss demonstra as ponte s entr problemas sexuais, e talvez seja até despertada por
e os tabu s sexuais e a l i m e n t a r e s : "Toda s eles". In: FREUD, Sigmund. Três Ensaios
a s s o c i e d a d e s concebem uma analogia entre as sobre a Teoria da Sexualidade (1905). Obra s
relações sexuais e a alimentação... (...) Em tod o o completas vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1989-
cant o do m undo , o pen same nt o human o p.182.
p a r e c e c o n c e b e r um a analogia tão estreita entre 10. GRIMM, Jaco b & Wilhelm. Todos los Cuentos de
o ato de copular e o de comer que muitas los Hermanos Grimm. Madri: Coedição Editorial
línguas designa m essas dua s coisas pela Rudolf Steiner, Mandala Ediciones, Editorial
mesma palavra." É na base disso que , explica o Antroposófica,
autor, os tabus geralmente se estabelecem sobr e 2000.
este s c a m p o s , o u seja , a s r e g r a s q u e 11. Na versão brasileira, o cont o chama-se História
estabelecem que m poder á casar-se co m do Jovem Que Saiu pelo Mundo para Aprender
q ue m . deslizam-se metaforicament e para "que o Que É o Medo. In GRIMM, Jaco b & Wilhem.
m com e quem", r e d u n d a n d o na s prática s d Contos de Grimm. Belo Horizonte: Ed. Villa Rica,
e restriçõe s alimentares, ou seja, o qu e se pod e e 1994.
nã o se pod e comer. In: LEVI-STRAUSS, Claude. 12. JAKOBS, Joseph . Contos de Fadas ingleses. São
O Pensamento Selvagem, São Paulo: Editora Paulo: Landy Editora. 2002.
Nacional e Editora da USP, 1970. 13. Voltaremos a este assunto no Capítulo XIV, analisando
9. "Ao mesmo temp o qu e a vida sexual da o personagem Cascão, de Maurício de Sousa.
criança chega a sua primeira florescência, entre os 14. É como os psicanalistas chamam o triângulo amoroso
três e os cinco anos, também se inicia nela a em que os filhos pequenos se envolvem com
atividade qu e se inscreve na pulsão de saber ou de seus pais. O filho amará o progenitor do sexo
investigar. (...) Constatamos pela psicanálise que , oposto e disputará sua preferência com o do mesmo
na criança, a pulsão de saber é atraída, de sexo. Este primeiro amor deixará seqüelas pelo
maneira insuspeita- resto da vida. Freud utilizou-se da trama da
tragédia grega Édipo Rei, de Sófocles, como
metáfora desse triângulo.
61
Capítulo IV
A MÃE POSSESSIVA

Rapunzel e A Fada da Represa do Moinho


Simbiose materna - Desejos de grávida -
IXsafios na instalação da paternidade - Dificuldade materna diante do crescimento -
Saindo da família para o amor

ra uma vez um casal que queria a prometer a filha que nasceria para a perversa mulher
muito ter um filho. em troca do raponço.
Quando finalmente atingiu Assim que nasceu, a menina foi recolhida
essa graça, ocorreu que a mãe por essa estranha madrasta, que a batizou de
foi tomada por um clássico Rapunzel, numa alusão aos raponços pelos quais
desejo de grá• vida: queria fora trocada. Tão grande era o apego da bruxa
comer os rapon- ços,1 (uma á Rapunzel que, quando esta atingiu a idade de
verdura para salada), qu e 12 anos, se tornando uma bela jovem, foi colocada
cresciam no jardim da numa torre sem portas, para que ninguém a visse. O
vizinha, conhecida como uma único acesso aos aposen• tos de Rapunzel era por meio
perigosa feiticeira. Tanto incomodou seu de suas próprias tranças. A bruxa madrasta chegava
marido, lamentando que morreria caso seu desejo ao pé da torre e gritava a frase que celebrizou essa
não fosse satisfeito, que ele se dispôs a correr o risco personagem:
de colher o vegetal. A primeira porção só incitou
a mulher a exigir mais, motivo pelo qual ele "Rapunzel, Rapunzel! Jogue suas tranças!"
empreendeu uma segunda excursão à horta da bruxa.
Dessa vez, ele se deu mal, foi surpreendido pela dona Pelos cabelos da moça, ela subia. A
da casa, obrigado a explicar seus propósitos e visita da bruxa era o único contato de Rapunzel com
somente saiu vivo - e carregado da verdura tão o mundo externo. Certo dia, um príncipe escutou a voz
cobiçada - porque foi coagido da jovem,
Fadas no Divã - Psicanálise nas Histórias Infantis

que cantava para aplacar a solidão. Não só costuma ser contada dentro dos limites do que se
descansou enquanto não descobriu a fonte da julga conveniente para as crianças, não é
música qu e o encantara. Escondido, assistiu à bruxa narrado o fato de que ela teve dois anos de
subindo e deci• diu usar o mesmo expediente. Depois concubinato clan• destino (e dois filhos) com seu
que ela partiu, repetiu a mesma frase e as tranças príncipe. Nesse caso, quem conta um conto, subtrai
caíram. um ponto.
Chegando aos aposentos de Rapunzel, contornou o Por sorte, a essência da história de Rapunzel não
susto da moça, que jamais vira um estranho, muito está no pedaço omitido, mas sim no desejo
menos um homem, garantindo-lhe que a amaria mais incontro- lável que ocorreu durante a gestação de sua
do que qualquer um. Assim começou um mãe, dando origem á trama que fez da menina filha
romance que só poderia terminar em um plano adotiva de uma baixa. A marca registrada desse
de fuga: ela pediu ao rapaz que lhe trouxesse conto é o exílio na torre sem portas, cuja única
entrada dava-se por meio das longas tranças da jovem.
seda com a qual teceria uma escada para descer
Como veremos, tanto o desejo incontinente da mãe,
da torre. Na véspera da sua partida, ela recebeu a
quanto a clausura da filha, responde ao mesmo
rotineira visita da baixa, mas acabou falando mais do fenômeno: a mãe possessiva. Acreditamos que
que deveria. Na versão que chegou até nós, ela diz à Rapunzel não deve fazer companhia a outras jovens,
madrasta.: "Como é, boa mãe, que você é tão mais pesada como Branca de Neve e Cinderela, que padecem da
que o jovem príncipe?" Porém, na primeira versão dos inveja da madrasta de sua beleza juvenil. Ela terá de
Grimm para essa história, a menina teria perguntado: enfrentar a ira da mulher que a criou como filha, mas
"Por que meu vestido está ficando mais apertado na a origem do conflito entre as duas está na atitude
cintura?", pelo que deduzimos, ela está grávida, mas é tão possessiva materna, que vê o crescimento como um
inocente que não compreende o que lhe ocorre. abandono. O pecado dessa personagem não é o de
A bruxa ficou furiosa, cortou as tranças da moça e ser mais sedutora que a mãe, mas o de incluir alguém
a expulsou de seu convívio, exilando-a num deserto. Na mais. o príncipe, numa relação que deveria ser completa,
seqüência de sua vingança, amarrou as tranças na torre em que mãe e filha se bastassem.
e ficou lá esperando o príncipe. Quando ele Rapunzel congrega três grandes temas recorrentes
subiu por elas, o empurrou, fazendo-o cair sobre es• nas histórias de fadas: o filho prometido a contragosto
pinhos que o cegaram. Dessa forma, condenou- para um ser mágico em troca de algum favor (ou da
o a nunca mais ver sua amada. Ele vagou por anos vida), a clausura do filho ou filha pela mãe
pela floresta, comendo raízes e frutas, enquanto no ou pai
deserto Rapunzel deu á luz a um casal de (tentando mantê-lo longe dos braços de seu amor) e,
gêmeos. Em sua errância, o príncipe chegou até por último, o surgimento de um apaixonado em função
onde ela estava e lhe reconheceu a voz, abraçando- de resgate, retirando a jovem (ou o jovem) da clausura,
se a ela, desesperado. Tomada de tristeza, ao ver seu do sono ou do feitiço. Esse conto ainda
amado naquele estado, ela chorou e suas lágrimas contempla uma jornada posterior, que também é
devolveram a visão a ele. O conto Rapunzel2 bastante comum nessa literatura, em que os amados
conserva-se lembrado pelas crianças apesar de não ter se desencontram por longos anos, esquecem-se um do
tido, até agora, grande ajuda da mídia moderna para sua outro ou não se reconhecem, para depois reatar o
difusão. Não contamos ainda com uma versão laço amoroso.
cinematográfica, apena s segu e comparecendo A sua aparição mais antiga é atribuída, por diversos
nas compilações de contos de fadas folclóricos. autores, a um conto narrado pelo precursor de Perrault
As versões que conhecemos são todas inspiradas e dos irmãos Grimm: Giambattista Basile. Em 1636, 60
na de Jacob e Wilhelm Grimm. Recentemente, o conto anos antes de Perrault, Basile publicou a primeira versão
ganhou mais uma censura, por exemplo, a literária de impacto popular de contos de
omissão da maternidade de Rapunzel no deserto. fadas, o Pentamerone, onde figurava a história de
Na verdade, a própria versão dos Grimm já é Petrosinella
modificada nesse sentido, visto que a pergunta que a (salsa, em italiano). Nesta, uma grávida é
jovem faz à bruxa - pela qual esta descobre seu descoberta roubando a horta de uma baixa, que lhe
plano de fuga - deixou de ser alusiva a uma gestação, faz prometer o bebê em troca da vida. De
como vimos antes. Essa última transformação já posse da menina, a enclausura numa torre, de
responde ao direcio• namento dessa obra de onde ela é resgatada por seu príncipe, após vários
encontros eróticos.
compilação folclórica para o público infantil. Isso
não é uma novidade, a Bela Adormecida passou Embora o autor italiano tenha enfatizado o amor
pelo mesmo crivo. Sua história hoje dos jovens e a engenhosidade da heroína para escapar
da torre, as versões seguintes já foram introduzindo o
sofrimento na vida do casal. Sessenta e um anos depois,

64
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Cors o
ameaça d e morrer ,

em 1697, uma aristocrata francesa, Charlottte Rose


de Caumont de Ia Force , pu b lic o u a v er sã o
q u e d e u origem ao conto, traduzido para o alemã o po r
Friedrich Schulz, considerado a prováve l fonte de
inspiraçã o dos irmãos Grimm. Na história francesa, a
dupl a pass a por maus bocado s até desperta r no
coraçã o da bruxa a capacidade de perdoá-los .
A jovem presa num a torre é um a image m
forte usada po r m u i t o s a u t o r e s , p o r i s s o , é
c o m u m associarmos um s em-númer o de joven s
enclausurad a s como versões de Rapunzel . Mas
ela é um a síntes e singular e seria uma pen a
tomá-la po r um de seu s elementos isolados . O
q u e vale , a n o s s o ver, é a combinatória
específica da trama. P o d e m o s considera r como cerne
da história a associaçã o entr e um b e b ê entregue
a um ser mágico , um pa i fora de cen a e a
mãe (no caso um a substituta ) n ã o s u p o r t a n d o
q u e alguém se interponh a entr e ela e a filha.
Por isso, vamos trabalhar co m a versã o do s irmão s
Grimm, q u e legaram essa síntese ao s nosso s
tempos , e qu e , n ã o por acaso, é a qu e perdura .

Um desejo imperativo
esde o mo m ent o em qu e o pai aceita o
trato e a menina é levada pela vizinha q u e a
batiza de Rapunzel - co m o alusã o ao
objeto pel o qu e foi trocada -, os pais
biológicos desapa •
recem da história. Essa feiticeira é muito diferente
da s ogras devoradoras de criancinhas e da s bruxa s más
de outros contos de fadas, ela se comport a c o m
o um a verdadeira e atenciosa mãe . Sua malvadeza nã
o mostra expressão mágica, ne m seque r se
co m p re e n d e o qu e apavorou tanto o pai de
Rapunzel, já q u e em n e n h u m momento ela faz
propriament e um feitiço. Se algué m realiza um ato
mágico, esta é Rapunzel . q u e cura a cegueira do
príncipe co m suas lágrimas.
A fúria da bruxa é se m pr e o resultad o de
sentir- se invadida, é mais egoíst a que mágica ,
seu s ato s malvados sã o conseqüênc i a da
dificuldade de ver a menina crescer e do m e d o
de perdê-la . Ela vocifera contra q u e m e n t r a e m
su a h or t a o u t o r re , s e a deixassem em paz,
aparente me nte , ela n ã o faria ma l a ninguém.
Provavelmente , a c h a m a m o s de brux a po r falta
d e um a palavr a m elh o r par a um a m ul h e r
poderosa, intransigente e egoísta.
A madrasta e a m ã e sã o pe rs o na g e n s
conexas , porque amba s q u e r e m a satisfação de
seu s desejo s num esquem a d e t u d o o u nada , vida o u
morte . A m ã e biológica exig e a verdura , s o b
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levand o consig o a criança par a o túmulo . Já a
bruxa a m a su a filha, m a s s o m e n t e s e es s e
afet o lh e for exclusivo . Sentindo-s e traída,
expuls a aquel a a q u e m tant o s e dedicou ,
convencid a q u e n ã o lhe serve mais; de certa
forma, é c o m o se par a ela Rapunze l tivesse
morrido . Unidas pela intransigência de seu s
desejos, essas dua s personage n s materna s p od e m ser
compreen • dida s c o m o um a só . O process o d
o cont o vai nu m crescente isolamento da filha co m
a mã e até a separação radical, deixand o be m claro
qu e fora da torre uterina só há um deserto .
Essa mãe , além de querer a filha totalment e
para si, que r crer qu e é tud o para ela.
É inevitáve l pensa r qu e ess e co n t o
co nt e n h a algu m e c o d a história bíblica sobr e
a expulsã o d o Paraíso de Adão e Fva. Temo s
aqui um jardim-pomar maravilhoso , c o m o n o
Paraíso, o n d e s ó havia um a interdiçã o - nest e
cas o t a m b é m , ma s sobr e tod a a extensã o do
jardim-pomar da bruxa. No Paraíso bíblico, um a vez
burlad a a lei sobr e um vegetal interdito - a
maçã -, os dois sã o expulsos ; aqui idem, o pai e a mã
e biológicos sae m d e cena . Além disso, temo s outra
vez um a mulhe r incitand o um home m a quebra r as
regras. Nã o é o cas o d e um a re ed iç ã o d o
mito , ma s sã o elemento s e m jogo qu e permite m
raciocínios análogo s sobr e o s tema s d o desejo,
d a transgressão e d e u m castigo c o m o
paga me nto . Na história de Rapunzel, o ciclo se
repet e dua s vezes, já q u e o príncipe é pilhad o
r o u b a n d o a jovem, tal qua l ocorre u ao pai
co m os vegetais, e ambo s sã o c o n d e n a d o s a o
desterro.
O paraís o é, na visão de um a mã e
simbiótica,3 o q u e ela dá ao filho, ou a
com pletud e q u e sua relação e st a b e l e c e . Esse
pa ra ís o te m c o m o c o n t r a p o n t o a c o n d e n a ç ã o
a o deserto , q u e nã o poderi a ser melho r
m et áf o r a d a aride z qu e esper a o s
e x p u l s o s . D e q u a l q u e r forma, u m e l e m e n t o
de s s e paraíso , um a verdura , faz pape l de fruto
proibido ; já noss a heroína , g r a ç a s a u m
deslocamento , transforma-s e n u m substitut o
(Rapunzel-raponços ) d o objeto cobiçado. '

A exclusão do pai
feiticeira da casa vizinha e a mã e de
Rapunzel sã o mulhere s poderosas , cujos
desejos n ã o deve m ser negados , poi s a
cobiça da grávida era tã o impositiva quant o o
m e d o qu e a bruxa
infundiu n o pai d e Rapunzel. Esse po b r e homem ,
fraco co m o cab e à maior part e do s pais no s conto s d e
fadas, é u m joguet e entr e essas mulhere s exigentes:
um a que r raponços , outra que r Rapunzel. Sua mulher,
se morresse, levaria junto a filha q u e estava em sua s
entranhas ; já a
Fada s n o D i v ã - P sic a n á lis e n a s Hi st ó ri a s Infa n ti s
q u e o pa i vivenci e u m a e sp éc i e de mágoa ,
q u e muita s veze s
bruxa també m o fará perdê-la, levando- a para ser criada
long e dele. Ambas quere m o mesmo , porqu e
amba s sã o a mesma . Elas quere m o beb ê para si
e n ã o estã o dispostas a compartilhar, é um desejo se
m negociação . Q u e m desa par ec e é o pai, poi s el e
abdic a dess a filha p o r n ã o p o d e r satisfaze r a
su a mulher . Essa i ns ati sf aç ã o s e e x p r e s s a p e l
a e x i g ê n c i a d e m a i s raponços . n u m apetit e
insaciável q u e o deix a impo • tente . É c o m o se a
mulhe r dissesse : já q u e n ã o p o d e s me satisfazer, a
filha q u e virá será o me u objet o de satisfação. A
mãe , agora transfigurada na bruxa, anunci a ao pai o
víncul o simbiótico q u e irá ter c o m a filha e q u e ,
logicamente , o exclui. Rapunze l é a respost a para esse s
anseio s de grávida, a grávida co m e raponços , a
bruxa engol e a vida de Rapunzel . A diferença
entr e um a e outra é a existência do pai, b an i d o
da cena , junto co m a mã e biológica. Depoi s del e ter sid
o subju• g a d o pela bruxa, ningué m mai s ameaçar á
a s posse s do jardim ond e ela plantou Rapunzel para seu
usufruto
pessoal .
P o p u l a r m e n t e s e di z q u e , c a s o u m
d e s e j o alimentar da grávida nã o seja satisfeito, a criança
nasc e co m a cara daquil o qu e a mã e tant o
almejou. Pel o jeito, foi o qu e aconteceu : a
menin a ficou co m um n o m e qu e é a marca do objeto
q u e a mã e tant o queria . Mas q u e desejo é esse q u e
a grávida tem? Afinal, o q u e que r essa mulher, q u e
já está co m a barriga cheia? Teoricamente , uma
gestant e estaria plena , satis•
feita. A partir dessa perspectiva , cham a a atençã o q u
e ela queira tant o come r algo, mostrand o q u e seu apetit e
n ã o se satisfez co m o q u e lhe e n c h e o
ventre . Ela sab e precisament e o qu e lhe falta: come r um
a melancia às três da manhã , fruta q u e evidente me nt e
n ã o se te m em casa na ocasiã o ou ne m é época ,
po r e x e m pl o . O folclore sobr e o desej o
pere mptór i o da s gestante s é sábio, lembrand o qu e o
filho e s pe ra d o p o d e n ã o satis• fazer totalment e à mãe
, há algo q u e aind a lhe falta. Ainda bem ,
diríamos...
A s mulhere s geralment e deseja m a
gravidez , exibe m co m orgulh o a protuberânci a q u e torn a
pública sua condiçã o d e sexualment e desejada s e
demonstr a q u e ela foi agraciad a c o m o d o m da
maternidad e . O beb ê é herdeir o dess e orgulho :
incapa z d e anda r co m a s própria s pernas , locomove-s e
aderid o a o se u corpo , alimentando -s e d e seu s seios.
Nos caso s e m q u e a mã e fica fascinada ness a
possessão , el e será a m a d o e nq u an t o um a
continuidad e d o corp o d a mãe , enquan • t o nã o ameaç a
caminha r par a long e dele .
Q u a n d o u m casal é invadid o po r u m
terceir o elemento , o recém-nascido , nã o é incomu m
começ a no própri o curs o da gestação . A aparência de
plenitud e da grávida, alguma s veze s associada à recusa de
um a vida sexual mais animada , deixa o home m co m
um a sensaçã o d e exclusão . O nasciment o não
melhora as coisas: o recém-nascid o povo a a casa com
seu s objetos, seu s gritos e seu cheiro, incluindo, por
vezes , a p re s en ç a ostensiv a d a sogr a o u d e
outros estranho s na casa. A nova mã e passa o dia
seminua, ma s dess a vez n ã o h á n e n h u m apel o erótico,
apena s u m a font e d e leite . Ale m d i s s o , e x a u s t a ,
a mãe adormecer á co m o nen ê sempr e qu e tiver
oportunidade . Para o h o m e m , há algun s ca minho s
possíveis:
observar á tod o ess e circo a um a distância prudente ,
orgulhos o da paternidade , ma s estranh o a seu s rituais, o u é
possíve l qu e se id e nti fi q u e co m a mulher ,
com partilhan d o co m ela o s cuidado s materno s primá•
rios. De qualque r um a dessa s posições , precisará (ou
sentirá necessida d e de ) intervir, reconstruin d o a vida
erótica d o casal, l e m b r a n d o à mulhe r q u e aind a é
desejável, tirando- a d o s circuitos obsessivo s e m qu e
ela entra co m seu b eb ê . Por mais envolvi d o q u e esteja co m
mamadeira s e fraldas, o pai tend e a oferece r algu• ma
exterioridad e q u e areja a relaçã o c o m o b e b ê . As mãe s
principiantes entra m e m pen same nto s recorrentes e culposos
, e m qu e s e acusa m da s mai s variada s
insuficiências, alarmam-s e co m qualque r coisa e teme m a cad
a s e g u n d o pela vida d o b e b ê . Nada c o m o u m pai
para relativizar essa s p e q u e n a s , ma s sofridas lou• curas .
Porém , n e m se m p r e o h o m e m está pront o para exerce r tal
função . Ele p o d e t a m b é m entra r num a disput a c o m
o b e b ê , colocando-s e n a me s m a posição : chorã o e
exigente , ou aind a terá o recurs o de desistir, d e i x a n d o
su a m u lh e r e ntr e g u e a o pape l d a bruxa , vivend o
exclusivament e para o b e b ê . Muitas vezes, est a é a
ocasiã o par a providencia r um a relaçã o
extraconjugal , fazend o um a co n ve ni e n t e separa çã o
entr e a mã e e a mulhe r desejada , q u e ele nã o suport a vê-
las fundida s nu m a me sm a pessoa .

A história de Rapunze l é profunda m en t e ligada a


essa trama d o filho c o m o possessã o materna . Mas
long e d o cont o d e fadas, n e n h u m filhote h u m a n o faz
b e m ess e papel , todo s mostra m p o u c a vo ca ç ã o para
ess e idílio - se n ã o for assim , pagar á o p r e ç o
da d es c on e xã o , d a psicose , po r essa entrega . Talvez por
isso essa história se conservo u e é tã o bem-vinda , ela
mostra que há um a saída m e s m o q u a n d o se tem a
mai s possessiv a e dedicad a da s mães .
É interessant e nota r que , log o no s primeiro s dias d e u
m b e b ê , ocorr e u m f e n ô m e n o q u e neutraliza a
possibilidad e de ele se r objet o de plen a satisfação da
m ã e : sã o a s cólicas d o primeir o trimestre. Essa cólica
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e M a n o Co r s o

é uma dor de barriga mesclad a de angústia q u e díad e m ã e - b e b ê . O pa i dess a história paga ,


faz uma percentage m muit o gr an d e d e recém- c o m o a p a ga m e nt o d e se u person age m , o preç o d e
nascido s gritar incessantemente po r horas , se m qu e ser me n o r q u e a s exigência s d e su a mulher . Ela
o seio, o colo, as cançõe s de ninar, ou queri a algo q u e a satisfizesse, ma s n ã o basto u a
q u a l q u e r dispositiv o tentado, surtam maiore s efeitos. primeira leva de vege • tais ro ub a d o s do jardim da
A cólica é atribuída a uma imaturidad e gástrica , bruxa . A continuida d e da exigênci a é o qu e permit e
p o r é m c u r i o s a m e n t e s e observa que bebê s se m q u e a mã e se transforme na bruxa , criand o essa
mã e (deixado s em hospitais, orfanatos) ou sem filha q u e ela cobiço u para seu us o pessoa l e
substituta n ã o costuma m desenvolve r esse quadro, ou intransferível.
seja, dói, ma s só adianta chora r se houver alguém
para que m se queixar.5 Geralment e todas as famílias
desenvolve m rituais do q u e julgam capa z de A clausura
cessar o sofrimento do pe q ue n o , alguns investem
em determinada forma de segurá-lo, na bolsa de apunze l cresc e co m essa mã e dedicad a
água quente, no chazinho, em algum remédio , num a até a p u b e r d a d e , q u e tra z par a a
música ou na alteração do ambiente . O certo é filha u m a curiosidad e d e transpo r o s
qu e o beb ê chorará até qu e consiga parar, em muro s d o jardim. Dessa vez, a m ã e será
geral, vencid o pela exaustão. A frustração insuficiente para com •
decorrent e de um a sessã o de gritaria dessas pletar a filha, a bruxa fica colocad a na mesm a
derruba qualque r ilusão de completu d e e posiçã o d o pai d e Rapunzel .
continuidade entre o b e b ê e o corp o materno , já q u e Q u a n d o a jovem atinge a idad e de 12
nada do qu e ela possa lhe oferecer o satisfaz. anos , a bruxa , temeros a d e q u e algué m visse
O folclore, a o alimenta r ess e mit o d e q u e sua crescent e beleza , a enclausur a num a torre,
u m desejo insatisfeito da ge st a nt e prejudicar á o sem portas, q u e só po de ri a se r acessad a
feto, ressalta em qu e ela, e m b or a grávida, aind a dever s u b i n d o - s e pelo s cabelo s d a moça . Rapunze l ná
á ser satisfeita pel o marido . Se este n ã o prova r sua o p o d e sair, e o acess o da mã e dá- s e através d e
potênci a satisfazendo-a, a m ã e p o d e se locupleta r co um a continuida d e corporal : u m pe d a ç o da filha
m o filho; e, se assim for, este efetivament e será da q u e se estend e a p ed i d o da mã e e garant e a
forma c o m o ela queria. Mas o q u e ela quer, nesse ligação da dupla . As tranças sã o um tipo de
s m o m e nt o s de insatisfação, nã o é da orde m do cordã o umbilical, simboliza m a continuida d e de
q u e o marid o p o d e lhe dar, nã o é um desej o corpo s qu e se corta co m o nascimento , mas qu e
sexual , é um desej o oral. Ora, bem sabemo s qu e o a bruxa reedita justament e q u a n d o ela mais tem e
território da oralidad e aind a é de domínio materno , o rompimento .
ou seja, no caráter do p e d i d o dela já está contid o Q u a n d o cheg a a pub erdade , os pêlos
q u e ele n ã o pod er á satisfazê-la. Talvez os desejos pubiano s - os cabelinhos qu e tanto crescem
orais da s grávida s sejam um último apelo dessas nessa époc a - nã o p e d e m licença para aparecer,
mulhere s que , estand o prestes a tornarem - se mães, se avoluma m co m o os belos cabelos d e Rapunzel,
terão q u e cede r o lugar de filho para se u bebê, mas ná o costumam obedece r á voz da mãe . A brux a
seria o último "mamã e eu q u e r o mamar".6 Talvez por isso dess a história te m o c o m a n d o s o b r e q u a n d o esse s
també m seja tã o tentado r o jardim da brux a e tão cabelo s sã o atirado s par a fora d a janela, ele s
impossível ao marid o satisfazer ã mã e de Rapunzel, seu crescem par a ela. Nã o é assi m c o m os
desejo já seria um assunt o entr e mã e e filha. adolesce ntes : q u a n d o o s pêlo s a p a r e c e m , d e
Tomada pel a fantasia d e plenitud e q u e certa forma o acess o d o s pai s é interditado . A
eman a de seu ventre volumoso , a futura mã e exigirá n u d e z será o u n ã o ocultada , confor m e o hábit o
mais do homem, so b pen a d e desistir d e outr o d a família, ma s o olha r n unc a mai s terá a mesm a
tip o d e satis• fação, qu e nã o aquel a provenien t e permissivida d e q u e se te m c o m a criança, cujas parte s
d a maternidade . Para qu e lhe seja c o n ce di d o o mais íntimas p o d e m ser v istas e tocada s i m p u n e m e n t e
direito de compartilha r o filho, evitand o q u e ele nasça pelo s pais. O corp o d e adolescent e cresc e para o olha r
co m a cara da inclemên - cia do desejo insatisfeito da mãe , d o parceir o erótico, q u e , d e certa forma, s e
o pai tentará satisfazer aos caprichos da gestante . anunci a c o m essa s transfor• m a ç õ e s físicas.
A história de Rapunze l mostr a o qu a nt o Rapunze l fica e nt ã o pres a n a torre ,
essa s exigências de rapon ço s e melancia s sã o r e c e b e n d o as visitas diárias da bruxa , e q u a n d o
um a cilada para o pai, que , testad o em su a está solitária se p õ e a ca nta r . Su a músic a
potência , se revelará pequen o diant e d o crescent e t r a n s p õ e o c l a u s t r o e p os si bi lit a c o m q u e
p o d e r d e exclusã o d a el a s u s c i t e o d e s e j o d e u m h o m e m , o qua l
ser á o g a n c h o necessári o par a a sepa • raçã o d a
m ã e . Po r d u a s vezes , o príncip e e ela s e
Fada s n o Di v ´ â - P s i c a n á l i s e n a s His t óri a s I nf a nt i s
jardim-pomar inicial. Tanto será assim, quant o mais
um a mã e simbiótica pensar qu e
en c on tr a m atravé s d a voz, poi s n ã o p o d e m s e
ver:
q u a n d o ela está n a torr e e q u a n d o el e está
cego .
Mostrar a nov a imagem , agor a c o m relevos ,
é, par a a s a d o l e s c e n t e s d o s e x o f e m i n i n o , a
form a privilegiada d e revela r o a va n ç o d a m a t ura ç ã o
sexual , assim c o m o par a os m e ni n o s a m u d a n ç a
de vo z é o sinal definitivo do processei. Ness e
caso , a image m atrai pela su a omissão , e r g u e n d o
muralha s q u e im pe • d e m de ver se u tesouro . A
brux a só faz instigar o olhar, poi s be m sabemo s o
q u a n t o o desej o é atiçad o pel o q u e s e oculta o u
a p e n a s s e insinua . A bel a vo z anunci a a bel a
moça , q u e mai s atraent e será q u a n t o mais difícil
for vê-la.
Q u a n d o o e n co n tr o enfim se dá , o príncip e qu e r
tirá-la de lá e levá-la consigo , ma s ela só p o d e r á
sair- q u a n d o fizer um a escada . Fia p r o p õ e e n t ã
o a se u a m a d o q u e . a cad a visita, ele traga
u m a m e a d a d e fios d e sed a co m o s quai s ela
tecer á essa escada , q u a n d o esta estiver concluída ,
ela descerá . E n q u a n t o tramava a fuga e a escada ,
n u m lapso , a jove m faz u m comentári o infeliz á
bruxa , d i z e n d o q u e achav a estranh o q u e ela fosse
mais p e sa d a q u e o príncip e , re v el an d o assi m seu
p l a n o e p e r m i t i n d o q u e esta fizesse algo para
impedi-la .
Inconscientemente , acaba dizend o q u e o
amo r da mã e é muito pesado. Esse comentári o qu e
a trai é considerado , por Bruno Bettelheim, u m
exe mpl o únic o de laps o num a narrativa de história de
fadas clássica. O laps o diz o qu e nã o se que r
dizer, mas , ao m e s m o tempo , enunci a tud o qu e s e
pensa . Co m ess e comentá • rio, Rapunzel desvela a
própri a divisão psíquica do mo m ent o da
personagem : que r sair e que r ficar. De qualquer
maneira, o lapso permite a resolução da relação co m a
baixa : a sua conseqüênci a é a expulsã o da jovem.
Rapunzel co m sua frase infeliz provoc a o cort e
da s tranças e da relação co m essa mãe .

O amor da mãe ou o deserto


amo r simbiótico nã o tem portas, a única saída é
pela janela, isto é, send o jogado,
defenes- trado, para fora do continente materno,
externo
ao qual a mã e supõ e qu e espera
apena s o vazio." Após as longas tranças, qu e
garantiam a conti• nuidad e entre mã e e filha, terem sido
cortadas, a traição será punida co m a expulsã o para o
deserto, por definição, um lugar ond e nã o há nada,
representand o a impossibili• dad e de a mã e ver qualquer
coisa além da díade e fazendo um contraponto ao paraíso do
por o n d e vei o o supost o pecado . S e
p e n s a r m o s qu e Rapunze l foi penalizad a co m o cort e
de cabelos , signo d e u m a castração , a cegueir a
se m ela nada existe e co m ela a criança teria o paraíso,
p o d e se r t a m b é m a contrapartid a masculina dess a
q ua n d o , na verdade , o filho é q u e seria um refúgio
castraçã o simbólica. Mas Rapunze l estava grávida, o
paradisíaco para a mãe.9
príncip e n ã o ficou só no olhar, po r isso dev e
Rapunze l pass a trabalho , ma s n ã o pa re c e deser-
ser p u ni d o . D e qualq ue r forma, há, par a a m b o s
tificar-se, vag a p o r m u i t o t e m p o n a s o li d ã o e n a
o s perso nage ns , u m a p a g a m e n t o d o m u n d o e m
miséria, ma s dá à luz a um casal de g ê m e o s ,
q u e habitavam , par a Rapunzel , o vazi o d o deserto ;
fruto da s visitas d o príncip e á torre . É interessant e
par a o príncipe , a falta de olhar.
com o ela pass a d a funçã o d e filha ã d e m ã e q u a s e
No final feliz, quand o as lágrimas
imediata• m e nt e . Isso n ã o é nad a es tr a n h o e m
devolve m a visão ao a m a d o e a felicidade ao
histórias qu e foram popula rizad a s e m t e m p o s anteriore s
casal, h o u v e uma modificaçã o d a imagem :
á anticon- c e p ç ã o , mas , par a a s m ul h er e s d e hoje, a
in de p e nd e nt e s terã o d e ver e ser vistos de forma
maternida d e n ã o é mai s o indíci o princeps da su a
diferente, c o m o h o m e m e mulher. Mas n ã o p o d e m o
maturi da d e sexual , há um l o n g o t e m p o entr e su a
s elidir o fato d e q u e ess a nova i m a g e m ,
iniciaçã o e a c o n c e p ç ã o .
inaugurad a pela s lágrima s , pressupõ e o
Q u a n d o o príncip e cheg a para busca r su a amada, é a
lament o pela s perda s q u e tiveram. E, afinal de
terrível sogra q u e encontr a em se u lugar. Nesse
contas, n ã o se cheg a à maturidad e se m perdas .
m o m e n t o , o discurs o da brux a é ilustrativo de sua
O corte da s tranças incidiu sobr e aquel e
fúria egoísta: atributo
(fálico, diríamos) qu e tornava essa filha valiosa
Arrá! Veio à procura da queridinha, mas a bela ave já não para a mãe . É po r isso que , em psicanálise, se diz qu
está no seu ninho cantando. O gato comeu e e o filho p e q u e n o é um falo para a mãe ,
também vai furar teus olhos. Você perdeu Rapunzel indepe ndent e men t e de q u e ele seja ou nã o dotad o de
para sempre, nunca mais a verá de novo. pênis . É na condiçã o de objeto de desejo par a a mã e qu
e ele se "faliciza", assim c o m o a perd a dess e lugar
Fica clar o q u e o pr í nc i p e foi p u n i d o c o m implicará um a castração, para m ã e e filho.
a cegueir a pel o crime de olhar. O castigo incid e

68
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Co rs o

Neste pont o da história, há mais um a virada:


na primeira, com o advent o da puberdade , a bruxa escond
e a jovem na torre; já, apó s o exílio
( a c o m p a n h a d o da maternidade), os amante s terã o
terminad o definitiva• mente de crescer. A marca
dess e nov o m o m e n t o é a solidão, essa consciência
da s perda s qu e acom p anh a tristemente todos os
adultos.
Nas histórias de fadas, sempr e a felicidade sobrevém
após um caminho de desafios e provações. Nesse caso.
Rapunzel e seu príncipe tinham de vencer a
bruxa e aprender a viver independentes , fora do
castelo e da torre. A jornada deles é a do crescimento, do
rompiment o do vínculo co m a mãe . É important e
percebe r q ue . enquanto a mãe a possuía
pacificamente, nã o houv e conflito no conto de
Rapunzel, ne m seque r a usurpaçà o do bebê pela bruxa
pareceu muito trágica. A verdadeira bruxa só se
materializa q u an d o a jovem precisa crescer, se afastar e
ser perdida pela mãe . A baix a da mãe nã o deixa a
filha partir, mas nessa história fica claro que , de certa
forma, també m a filha, no ato falho, a convoca
para a função de complicar sua saída. Na verdade, para
a filha também nã o é fácil abandoná-la.

As tranças
s cabelos, c o m o p o d e m o s constatar a o long o
da história, nunc a foram indiferentes.
Cada cultura, cad a época , decidi u o
significado de cortá-los, deixá-los cresce r ou
penteá-lo s
d e d ete r m in a d a forma , m a s se u u s o s e m p r
e foi simbólico.10 Seu corte foi um m o d o muit o
populariza d o de subjugar o inimigo, de impo r a
algué m um castigo desonroso, mas també m u m sinal d e
respeit o extremo , d e veneração. Cortavam-s e o s
cabelo s e m sinal d e luto (e muitas veze s era m
enterrado s junt o co m o ent e perdido); sua raspagem , a
tonsura , é t a m b é m o m o d o de os religiosos mostrare m
submissã o a Deus . Por isso, não pode mo s passa r
incólume s pel a relevância da s tranças nessa história;
elas foram um el o entr e a brux a e a moça, cortá-las
foi a castraçã o do q u e a relaçã o tinha de fálica.
Nesse caso, se algué m se reivindicava possuidor a
desse sempr e valioso objeto (o cabelo , as tranças ) era
também a bruxa. Cortá-lo é um a forma de
castração , mas num sentid o mai s amplo , n ã o a pe n a s
significando a ablação d o ór g ã o sexua l
masc ulino , c o n s i d e r a d o como uma espéci e d e
símbol o d o falo, d e represen • tação privilegiada
deste . Fálico, no jargão psicanalítico,
69

significa se m faltas, assim c o m o falo é o


c o m p l e m e n t o necessári o a um a supost a falta. É
important e q u e fique b e m claro qu e estamo s falando e
m termo s metafóricos. Nesse sentido , p o d e m o s dize r
q u e é fálica um a mulhe r q u e s e faz cobiça r n a su a
perfeição, um a m ã e q u e s e encastel a c o m o
possuidor a exclusiva de seu bebê , ou aind a um
h o m e m que se ach a o tal. Isso n ã o é um
insulto, é um a forma de expressa r q u e o
desej o e o objet o capa z d e provocá-l o sã o
móveis , p o d e m s e instalar e m alguém , e m
de te r mi n a d o m o m e n t o , e m um a relação .
Para Freud, os cabelos (enquant o
representantes do s pêlos pubianos) facilmente se prestam
para ser objeto de amo r fetichista." A explicação proposta
para essa idéia é a de qu e os pêlos pubiano s seriam
o último patamar, ante s q u e o s olh o s q u e
fitavam o p ú bi s feminin o constatassem a falta
de pênis, a "castração" da mulher. Para ele, a
aceitação da diferença do s sexos é um do s
grande s traumas co m qu e é preciso lidar. Atrás do s
pêlos pubiano s se escond e a raiz da nossa
incompletude. Os caracteres sexuai s secundários ,
c o m o pêlo s e protu- berâncias, são nuance s que .
por vezes, pode m confundir os sexos, mas o pênis e
a vagina dividem os humano s em dois. A presença
do órgã o sexual masculino, externo e visível, tornou- o
símbolo da completude.
A existênci a da falta c o n d e n a - n o s a se
r bio - logicament e d e doi s tipos , s e somo s um.
deixamo s d e ser o outro , o q u e faz. co m qu e para
sem pr e estejamos b u s c a n d o a outra metade . Para
tant o recorremo s ao amor, ao sexo , à maternidad e
ou a qualque r expedient e à procur a da q ue l e o u
daquil o q u e no s poss a restituir um a integridad e
supost a e para sem p r e perdida . Mas o
important e é c o m p r e e n d e r q u e a castraçã o n ã
o é um a prerrogativa da s mulheres , qu e o
corp o é feito de presença s e ausências , dividind o
o ser h u m a n o em d u a s classes. Essa realidad e é
limitante par a todos , poi s necessariament e
nasceremo s co m um a o u outra característica
sexual .
Para a s tranca s d e Rapunzel , c o nv er g e m
doi s sentidos : po r u m lado , sã o o símbol o d a
continuida d e entr e mã e e filha - cortá-las é cortar o
víncul o simbió - tico; po r outr o lado, sã o també m
u m corte n o corp o de Rapunzel , a marca q u e a
fará estar long e da mã e e, po r su a vez, a
capacitar á par a ama r e ter filhos. A castraçã o
é se mpr e lembrad a c o m o um a falta. Talvez seja
u m a i n c l i n a ç ã o pe ssi m i s t a d a n o s s a cultura
, p o r q u e , n a verda de , se m a instalaçã o dess a
falta, nã o h á desejo . Afinal, q u e m te m tudo , nad a
quer . É depoi s q u e ela p e r d e a s trança s q u e su a
vida d e fato começa .
Fada s n o D i v ã — P s i c a n á l i s e n a s Hi st ó ri a s Infa nti s

A fada do lago e m q u e a relaçã o c o m essa moç a começava , o


destino falou mais forte. Num a caçada , perseguin d o um
cont o de fa d a s Rapunzel, assi m a presa, matou- a próxim o d a represa . Depoi s d e
c o m o Chapeuzinho Vermelho, nã o possu i prepara r o animal, aproximou-s e do lago para lavar
muita s histórias conexas , e m b o r a exista um as m ão s e foi tragad o par a dentro . A fada enfim levou
a a que o q u e sempr e fora seu .
p o d e m o s recorre r par a am plia r a s É claro qu e todos o perderam, ele saiu desse mund o
idéia s sobr e os elemento s em c o m u m . Essa e foi para o reino da fada no fundo do lago, mas que
história nã o é semelhant e na aparência, mas sim na m mais o pranteava era a sua esposa. A dívida, motivo
trama q u e remet e a o tema d a mã e simbiótica. Nela de tanto sofrimento para seu pai, veio a ser
temo s u m menin o send o moed a de troca e uma efetivamente cobrad a da primeira mulhe r q u e o
fada qu e o afasta do pai. Uma propost a de troca a m o u . A espos a desesperou-se, compreend e u o
do b e b ê po r riquezas é feita log o q u e a crianç
qu e ocorrera, mas não sabia com o reaver o seu
a nasce , p o r é m a entreg a n ã o é imediata, co m
marido. Ao adormecer, ela teve u m sonh o e m qu e
o n o caso d e Rapunzel. N a medid a e m qu e
aparecia uma velha oferecendo-lhe ajuda. Q u an d o
cresce, a jornada dess e menin o é primeiro evitar,
depoi s se libertar, dess e ser feminino poderos o q u acordou , seguiu a pista do sonho : partiu em busca da
e o ganho u d o pai num a espéci e d e logro. velha trilhando o caminh o qu e lhe fora indicado.
De fato, o sonh o era uma influência mágica, pois
Trata-se de A Fada da Represa do Moinho:.12
terminou encontrand o a mesm a mulher bondosa,
vivia um a vez um moleiro na beira de um a repres a
pronta a lhe auxiliar a recuperar seu amado .
e p o d e se dizer qu e era próspero . Em cert o m o m e n t o
A senhor a deu-lh e u m pent e d e ouro ,
da vida. porém , a sorte o a ba n d on o u e ele
sugerind o q u e esperass e a lua cheia e fosse
endividou-se . Um dia estava à beira da represa,
cabisbaixo , p e n s a n d o n o seu destino , q u a n d o pentear-s e na beira do lago. A jovem fez o
emergi u um a mulhe r muit o bela da s águas . O co m b i na d o e, depoi s de um tempo , um a ond a
moleir o assustou- se . sabi a q u e encontrar a u m ser veio até a marge m e levou o pente . Das água s q u e
mágico , mas . c o m o ela c h a m o u - o po r seu nome , s e erguera m para o resgate d o present e d o u r a d o ,
ele nã o fugiu. A fada pergunto u o q u e estava surgi u a ca b eç a d o se u a m a d o , q u e lhe
ac o nt ec e n d o co m sua vida e ele explico u q u e a devolve u um olhar triste. Voltou até sua benfeitora, qu e
fortuna o a b a n d o n a r a . Entã o ela lhe p r o p ô s desta vez lhe ofereceu um a flauta de ouro ,
um negócio : ele voltaria a ter sorte se em troca lhe indicand o q u e esperass e at é a próxim a lua
dess e a criatura q u e estava na s ce n d o naqu el e chei a e tocass e o instrument o à beira do lago.
m o m e n t o e m sua casa. For mais estranh o qu e pareça , Novament e repetiu-se a cena : um a ond a levou
el e n ã o sabia q u e sua mulhe r estava grávida, po r a flauta, d ei xa n d o o marid o descobert o pela água ,
isso, p e ns o u q u e o trato viria a lhe custar um po r un s momentos , até a cintura. Seguind o o m e s m o
filhote de cachorr o ou de g a t o e foi p a r a cas a ritual, foi feita um a terceira
satisfeit o . Q u a n d o c h e g o u , anunciaram-lh e qu e a tentativa. Agora, c o m um a roc a d e ouro , s ó que , dest
mulhe r tivera um filho. O moleir o ficou triste e a vez, n o m o m e n t o e m q u e a ond a subiu par a
desconcertad o , poi s s e de u cont a d e q u e o negócio , pega r o presente , o marid o ficou inteirament e livre da
aparente me nt e barato , sairia b e m caro . A fada o água . A espos a estende u a m ão , d e u m salto el
havia logrado . e pulo u para fora do lago e a m b o s fugiram
Pelo m e n o s a fada tinha palavra e a correndo . Enfurecida, a fada criou um a o n d a
sorte do h o m e m d e fato voltou. O q u e n ã o gigantesca , fazend o c o m q u e tocla a águ a do lag
aconteci a nunc a era o dia da cobrança , o pai sabia o se levantass e e os perseguisse . Já se ciavam po r
q u e o m e ni n o n ã o era mais seu, sofria cad a dia vencidos , q u a n d o a espos a apelo u mais u m a ve z
po r isso, ma s t a m p o u c o vinh a algué m lh e cobra r par a a velh a s e n h o r a . Par a salvá-lo s d o
a dívida . O moleir o vivia exclamand o : "De q u e afogamento , ela os transformo u em rã e sapo .
m e vale a riqueza, s e t e n h o d e perde r me u filho". Os doi s sobrevivera m á investida da água ,
O m enin o tornou-.se um rapa z e provou-s e exce ma s se p er d er a m um do outro . Uma vez retornad o s à
• le n t e caçador , ma s ne m po r iss o forma hu mana , aind a lhes restava u m desafio:
a b a n d o n a r a m a cautela: ele era proibid o d e chega r estava m n u m lugar d es co n he ci d o e se m notícias d o
pert o d o lago, po r m e d o d e ser levado . Co m o s e parceiro . Embor a tristes , resignaram-s e a
destacav a n o se u oficio, ficou a serviço de um senh o r retorna r à vi d a c o m u m , trabalhan d o c o m o
local importante . Te mp o s depois , ganho u del e um a pastore s e m lugare s distintos. Muito t e m p o depois ,
casa para viver, d e s p o s a n d o um a jovem d a aldeia q u e eles s e cruzara m pastor eando , ma s n ã o s e
estava a m a nd o . N o m o m e n t o
reconh ecera m . D e qualq ue r maneira , ficaram felizes po r nã o estare m tã o sozinho s n o c a m p o .

70
D i a n a L i c h t e n s t e i n C o r s o e Mari o C o r s o
fada da represa, us a n d o uma terminologia mais precisa,
seria entã o um a sereia,
Numa noite em q u e conviviam , aind a incógnito s
um para o outro, o pasto r pe g o u um a flauta e
toco u uma canção bela e triste. Imediatament e , a
pastor a rompeu em prantos, d ize n d o que , em um a da s
últimas vezes que vira seu marido , ela tinha tocad o
essa triste música. Só entã o ele a olhou , a
re co n he c e u , e ela também. Era com o se um vé u
tivesse caíd o de a m b o s os olhos, possibilitando q u e
enfim se vissem. Dess e dia em diante, foram felizes
par a s e m pr e .

Um prisioneiro da sereia
ste conto é, na fantasia predominante ,
uma versão masculina da história de Rapunzel.
Nas duas histórias, desd e o nascimento , o pai
nã o
ignora qu e o filho vai pertence r a um
ser feminino mais p o d e r o s o . Em ambas , o
ve r da de ir o problema só começa q u a n d o um terceiro
ve m de fora e ameaça formar um nov o núcle o
amoroso . É ness e momento que a violência do laço com
a mãe-fada mostra a sua força. No primeiro caso,
Rapunzel é expulsa, só terá registro em seu amo r
se for poss e exclusiva da mãe. No caso masculino,
a mã e reté m o filho para si, impedindo-o de amar
outra mulher.
Esse rapaz foi trocad o pela riqueza do pai,
mas acreditamos qu e é outr o significado de
riqueza q u e está em jogo: ele ve m a ser a riqueza
da mãe . O pai que fique lá com as suas riquezas
mundanas , ma s deix e o filho para ela. Se essa for a
troca, admitimos q u e a fada é um dupl o mater no
. Afinal, ela a p ar e c e pel a primeira vez no dia do
nasciment o e só vai reaparece r para impedir o
envolvimento do filho co m outra mulher, do que se
depree nd e q u e ele já lh e pertence u po r todo s esses anos.
Senão, po r que , justamente no m o m e n t o em que
surge essa jovem, a fada ve m cobrar sua dívida? Parece-
nos qu e ela n ã o suporta qu e algué m venh a a
pegar a sua riqueza. Ela já conseguiu , mediant e o trato
inicial, tirar o pai do caminho , po r q u e viria
agor a a suportar uma concorrente?
No folclore europeu , c o m o em tantos outros,
as águas pode m ser reinos de seres mágicos. De um a forma
geral, águas calmas, c o m o as de lagos, represa s e fontes,
costumam ser habitado s po r seres femininos; e n q ua n t o
nas águas agitadas, com o as de rios e
corredeiras, se encontram seres masculinos. Ambo s sã o
sedutores , mas as criaturas mágicas femininas -
sereias ou ondina s - têm na seduçã o sua principal
característica: costuma m encantar jovens homen s qu e s e
pe r de m na s água s par a nunca mais sere m vistos. Essa
ou , pel o menos , s e comport a c o m o tal. Com o
sabemos , a s sereias prende m amorosament e o s homen
s n u m reino seu. A partir disso, eles vã o viver só
para elas, se n à o os matarem . Com o o enfeitiçado
só vai ter olho s para a sereia, nad a mais lhe
interessa na vida, a mort e p o d e ser interpretada
co m o uma morte social. Mediante essa tradição
folclórica, é natural qu e a prisão do h o m e m
enfeitiçado n à o seja um a torre, ma s a água. Neste
meio , totalment e envolvente , o herói esper a qu e
algué m de fora poss a vê-lo para ajudá-lo a fugir.
Além d a mã e e d a fada, q u e s e
alterna m n o m es m o papel , há um a representaçã o
diferente da figura materna . Trata-se da velha
bond osa , ou seja, a face da mã e permitind o q u e
o filho poss a ir embora . Ela é velh a p o r q u e
sab e q u e seu t e m p o já se foi. É ela q u e vai
ter u m diálog o simbólic o sobr e don s
femininos co m a futura esposa , q u e tenta dar à
sogra as prova s d e q u e possu i o s dote s
feminino s necessário s par a g a n h a r a d is p u t a
po r ess e home m . O s presente s entregue s a
o se r a q u á t i c o sã o representante s do s
encanto s e da s lides femininas. O pent e está
ligado à b el ez a , afinal ela necessitav a
pe nt e ar- s e a nt e s d e entrega r o objeto . A flauta
lembra a música, ma s tam• b é m o encant o da voz,
do canto . Aliás, cantar é o qu e as sereias fazem
de melhor. É claro qu e a sereia é a outra, ma
s se a futura espos a nã o tiver nad a de sereia, po r q u
e ess e h o m e m trocaria de fada? Por fim, a roca
é o símbol o do trabalh o feminino po r
excelência em é p o c a s passadas , alé m do s
encantos , um a mulhe r precisava prova r q u e
sabia trabalhar.1 3
Nessas dua s histórias, depoi s da libertação, temo
s u m m o m e n t o d e cert o desenc ontr o e d e uma
cegueira, eles s e olham , ma s nà o s e vêem . H á u m tip o
d e encan • ta ment o q u e precisa cair par a q u e o
amo r ressurja. A jovem espos a tev e seu s encontro s
oníricos e reais co m a velha mulher, q u e lhe
ensino u as artes da conquista , ma s n à o p ô d e
garanti r a uniã o d o casal. A última
transformaçã o em anfíbios,14 pela qual ela lhes
salva a vida, t a m b é m o s separa , a p o n t o d e
esquec ere m-s e d a image m u m d o outro .
O olha r é q ua s e se mpr e associad o à paixão .
Nas histórias d e amor, sempr e u m capítul o
privilegiado s e dedic a à primeira visão q u e u m
ama nt e te m d o outro . Na história de Rapunzel ,
po r d u a s vezes , o príncip e n à o p o d e vê-la,
ma s p o d e escutá-la. Nesta outra, o s a m a nt e s
alternam-se , resgatando-s e atravé s d o so m da
flauta.
Essa temp orad a pastoril ajuda-no s a re-
significar a part e final d o cont o d e Rapunzel ,
poi s tenderíamo s a pensa r q u e foram soment e
o s malefícios d a brux a q u e impedira m a felicidade
d o casal, cas o n ã o conside -
Fada s n o D i v ã - P s i c a n á li s e n a s Hi st ór i a s Infa n ti s
múltiplas tarefas n a gincan a d e conquista r a
capacida d e d e pertence r a u m casal. Amar é
trabalhoso .
rá ss e m o s a s limitaçõe s d e c a d a u m d ia n t e d
e u m relacionamento . O s doi s pastores , po r
ex e m pl o , n ã o foram impedido s d e s e encontra r apena s
po r u m agent e externo , tiveram d e vence r també m
u m a dificuldade interior: estavam cego s um par a o
outro .
Após a inundação, ainda estava reservada para
os amante s a experiência da solidão e da
responsabilidade, marcas do pastor, qu e anda só, cuidand o
de seu rebanho . E com o se as metamorfoses
continuassem, pois ainda nã o estavam prontos para
outr o tipo de relação.
É bastante comum , na experiência do s casais, estes
beneficiarem-se do s impedimento s q u e a relação possa
sofrer (proibiçõe s familiares , distância s e
outros) . Paradoxal ment e , sã o dificuldade s
e x t e r n a s q u e contribuem para o bo m andament o da
relação. Algumas vezes, depoi s d e terem lutado par a
vence r tud o o q u e o s i m p e d i a , s e d e s c o b r e m
j u n t o s ( e nf i m s ó s ) e desencantados . Não estavam
prepara do s par a enfrentar u m a o outro , se m a
interme diaç ã o d a família, d o s obstáculo s d o
trabalho , d o es tu d o o u d a distância. São
tomado s d e dúvida s sobr e o qu e sente m
e ameaça m separa r aquil o q u e pareci a tã o c oeso
. À s vezes, torna-se necessári o u m m o m e n t o d e
solidão, afastar-se emocionalment e , par a enfim,
amadurecido s , p o d e r e m voltar a se encontrar .
Q u a n d o o s amante s dest e cont o com eçara m
sua relação, o caçado r receber a um a casa d o
senho r par a q u e m trabalhava; portanto , tev e de
certa forma um apoi o paterno . Porém, aind a
vivia so b a ameaç a da fada d o lago um a mã e
possessiva so b cuja m e n ç ã o crescera. Nã o h á po r
q u e considera r irrelevante q u e ele tenh a se
esquecido dess e risco q u a n d o foi lavar as mão s n o
lago. Acaba assim fazend o u m laps o similar a o d e
Rapunzel. N o m o m e n t o d a partida, q u a n d o vai
viver co m a mulhe r amada , ess e jovem vacila e entrega -
se, uma última vez, a sua antiga fada.
A preparaçã o para a nova vida de um jovem casal
envolve novament e a família, q u e r seja na organizaçã o
de uma festa de casament o ou de um lugar para morar, há
uma nova convocaçã o par a a b ê n ç ã o e a
tutela. Foi nu m m o m e n t o c o m o ess e q u e o s
doi s jovens , Rapunzel e o caçador, vacilaram. Mediante
esses lapsos
- expressã o d e fraqueza diant e d e seu s propósito
s - , a saída só p o d e ser árdua , c o m o foi par a esse s
casais, cuja uniã o será tã o mais difícil q ua n t o for
a força do vínculo familiar q u e terã o d e romper .
É importan t e observa r q u e o s outros , a m u l h e r
d o c a ç a d o r e o príncipe d e Rapunzel, n ã o passara
m im pu ne s po r ess e processo : també m tiveram
a relação metafórica do vegetal com a interpretação
da história, da planta autogâmica com a mã e
totalizante, não deixa de ser no mínimo
Notas curiosa. In TATAR, Maria. Contos de Fadas. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1. Raponço ou rapôncio é uma denominaçã o comum a
duas plantas campanuláceas, cujas raízes se comem com o 2004.
salada. Do italiano, raponzo ou raperonzo. 5. SPITZ, René A. O Primeiro Ano de Vida. São
Paulo: Martins Fontes, 1983, p.193.
2. GRIMM, Jaco b & Wilhelm. Contos de Fadas. Belo
6. O carnava l brasilei r o cel e bri z o u a
Horizonte: Villa Rica Editora Reunidas, 1994.
marchinh a carnavalesca Mamãe eu quero (de
3. "O conceito de simbiose foi criado por
Margareth Mahler, tanto para dar conta de uma fase Jararaca e Vicente Paiva, 1936): "Mamãe eu
importante na evolução da relação mãe-filho, quant o quero, mamã e eu quero, mamã e eu quer o
para dar cont a d o f u n c i o n a m e n t o p s í q u i c o d a mamar, dá chupeta, dá chupeta, dá chupeta pr
criança psicótica. Trata-se mais de uma polaridade o beb ê nã o chorar". Neste moment o de encenar
do que de uma forma clínica particular (...)." In: fantasias, fica evidenciado que , pela vida afora, no
LEBOVIC1, Serge . Traité de Psychiatrie de fundo da nossa alma, ainda mora um beb ê chorão .
L'Enfant et de L'Adolescent. Paris: Presses 7. "Para a moça, a puberdad e assinala o qu e pod e ser
LIniversitaires de France, visto pelo s outros. (...) co m as
1985, p. 196 (Lês Psiychoses Infantiles, verbete escrito por modificações da silhueta, em particular o
René Diatkine e Paul Denis). crescimento do s seios, a image m d o corp o
•i. Maria Tatar insere uma associação desse vegetal cora a está comprometid a co m dois olhares: a busca
história. S e gu n d o o crítico Joyc e Thomaz , o de uma conformidade a um model o socialmente
raponç o seria uma "planta autogâmica, qu e fertiliza a definido, cujas pistas ela pod e encontrar nas revistas
si mesma, tend o ainda uma coluna qu e se divide em femininas (...); po r outro lado, com a demand
dua s se não-fertilizada, e as metade s enroscam- se a de uma confirmação pelos outros, tanto po r
com o trança s ou cacho s na cabeç a de uma sua família com o po r seus amigos, de qu e
donzela, e isso poe o tecido estigmático o estatuto de seu corpo mudou . (...) Para o rapaz,
feminino em contato com o pólen masculino na na
superfície exterior da coluna". Procedente ou não,

72
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o

puberdade, a pulsão vocal é qu e será imediatamente segund o p la n o , t ra b al h o , casamento ,


acentuada. (...) O qu e animará a relação qu e projeto s inconclusos , t u d o isso será a di a d o
ele terá com o outro sexo será a voz e sua colocação par a outr o momento . Não é fácil retomar. Muitas
à prova: o ato de contar vantagens." In: RASSIAL, Jean- vezes apegar- se ao beb ê é uma saída para
Jacques. O Adolescente e o Psicanalista. a covardia de re- enfrentar a vida. Fm casa, com
Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999, p. 25 seu filho, identificada com a vida infantil deste,
e 26. ela se manterá afastada d o trabalho , da s
8. Para a psicanálise, as fantasias ou tentativas exigência s sociais e , freqüen • temente, da
de defenestração (jogar-se desde uma abertura no própria sexualidade.
vazio) são de alguma forma evocativas de uma 10. A propósito do significado do s cabelos nos
separação radical. Freud analisou, no caso clínico contos maravilhosos, Vladimir Propp, os considera
de 1920, A Psicogênese de um Caso de símbolo de força, e citava o exempl o paralelo
Homossexualismo numa Mulher, a tentativa de de Sansão e Dalila:... "nos cabelos residia a
suicídio através da qued a como uma simulaçã alma ou o pode r mágico. Perder os cabelos
o de nascimento . Para essa leitura, ele equivalia a perder a força". In: PROPP, Vladimir.
apoiou-s e no us o da palavra alemã As Raízes Históricas do Conto Maravilhoso. São
niederkommen, que significa tanto "cair" quant o "dar á Paulo: Martins Fontes, 1997, p.35.
luz". Em suas palavras: "É provável qu e ninguém 11. No texto de 1927, O fetichismo, Freud tece algumas
encontre a energia mental necessária para matar-se, a consideraçõe s sobr e a figura d o
menos que, em primeiro lugar, agindo assim, esteja ao "cortado r d e tranças", um personage m
mesmo tempo matando um objeto com que m se desaparecido de nossos tempo s (junto com as
identificou e, em segund o lugar, voltando contra si tranças): "Nele, a necessidade de executar a
próprio um desejo de morte antes dirigido a outrem". castração, qu e ele mesmo rejeita, veio para o
In: FREUD, Sigmund. Obras Completas, vol. XVIII. primeir o plano . Sua açã o conté m em si
Rio de Janeiro: Imago Editora, 1987, p.203- Conside• própria as dua s asserções mutuament e
rando a saída pela janela, caindo no caso do príncipe incompa• tíveis: 'a mulher ainda tem um
ou send o destinada ao vazio do deserto , pênis' e meu pai castrou a mulher". In:
com o Rapunzel, enquant o "defenestraçòes" (afinal, FREIO), Sigmund. O Feti• chismo. Obras
com o Rapunzel saiu da torre?), podemo s pensar um Completas, vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago
pouc o no quanto é preciso matar em si o outro Editora, 1987, p. l84.
qu e nos sufoca e com isso morrer também um pouc o 12. GRIMM, Jaco b & Wilhelm. Contos de Padas. Belo
a cada separação. Somente esse tipo de Horizonte: Villa Rica Editora Reunidas, 1994.
associação ajuda- nos a entender por que , ao 13- Além de ser um símbolo do trabalho, a
longo do s tempos, as versões foram enfatizando roca está associada ao sexo. Ver próximo
nessa história o calvário do jovem casal. capítulo quand o falamos da Bela Adormecida.
9. Um filho recém-chegado pod e ser uma 14. Se existe um animal que pod e suportar a
suspensã o da relação com o resto do m u n d o metáfora do crescimento, este é o sapo, ou
para a mãe. Durante um tempo, as exigências da a rã, os dois passam por estágios muito
vida ficam em distintos, por transfor• mações radicais, no
rumo da maturidade. Por isso, se prestam a
alegorias sobre crescimento.
Capítulo V
O DESPERTAR DE UMA MULHER

A Jovem Escrava, Branca de Neve, A Bela Adormecida e Sol, Lua e Tália


Identificação da menina com a mãe - Importância da inveja materna -
Amor e ódio da filha pela mãe - Passividade feminina - Menarca -
Passagem da infância para a adolescência -
Adolescência como período de adormecimento e exílio

s bruxas dos contos de Já as analisadas neste capítulo são


que falamos até agora só fadas ou madrastas orgulhosas, qu e agem por
queriam saber de comer, de se sentirem ofendidas, por inveja, ciúme ou
engolir as crias. A face obscura narcisismo ferido. Nestas histórias, temos outro
da mãe, discutida nos capítulos aspecto da complicada relação com a mãe:
anterio• res, corresponde à da trata-se da problemática da construção da
primeira infância, quando está identidade feminina. Não podemos esquecer de
em jogo o lugar do filho como que a menina floresce na mesma pro• porção
posses• são materna. Essas cm que sua mãe perde o viço, restando o
primeiras incontornável conflito de como se parecer com esta,
histórias revelaram a versão terrífica desse tornando-se uma mulher, na mesma época em
idílio amoroso, lembrando que toda a entrega tem seu que a mãe vê declinar seus atrativos
preço. No amor, seja materno-filial ou erótico, femininos. Essas histórias são bem claras, avisam à
quanto mais profundamente alguém se entregar a viver futura mulher que a juventude da mãe morrerá
o papel de objeto, meno s saberá ond e estão esperneando e que nã o há lugar para dua s
os limites, as fronteiras, que assinalam onde mulheres desejáveis no núcleo familiar.
termina o eu e onde começa o outro. O preço Branca de Neve é uma das narrativas de que os
da entrega absoluta é a dissolução ou a pequenos mais gostam, talvez graças â presença dos
fragilidade do eu, que equivale na fantasia a ser sete anões, enquant o A Bela Adormecida é
devorado pelo outro ou a viver sob essa ameaça. hoje preferida das meninas, por ser acima de
tudo uma
Fada s n o D i v ã - Ps ic a n á lis e n a s Hi st ór i a s Infan ti s
m u m n ú m e r o proporciona l de críticas e
preconceit o s par a co m o sex o feminino ,
história d e amor . Nã o basta a p e na s a essa s
heroína s se livrar da velha bruxa , é precis o
enfrentar aind a a mort e da infância e as
dificuldades de desperta r no s braço s d e seu s
príncipes , q u e aliás s e apaixonara m po r elas
q u a n d o estava m adormecidas . Eis mais u m detalh
e q u e liga essas princesas : ambas , b e m c o m o
suas an te pa ss ad a s, passam por um período
d e adorm eci men t o - fato q u e dá n o m e a um a dela s e
é o estad o e m q u e seduze m o s seu s a m ad o s .
A s histórias c o m e ç a m muit o b e m , poi s
a m b a s a s m e ni n a s era m filhas desejadas . Branca
d e Nev e nasce u e xat a m e nt e c o m a s core s q u e
a imagi naç ã o de su a m ã e a pintou ; e Bela
Adormeci d a tev e su a cheg ad a a o m u n d o celebrad a
n u m l u xu o s o batizado , e m q u e a s fadas
dotaram-n a d e to d o s o s e nc a nt o s q u e um a
m ul h e r p o d e ter. Essas pri n ce s a s tê m o
privilégio d e c or re sp o n d e r e m g ê n e r o e n ú m e r o
a o desej o p a r e n t a l . N i n g u é m c o n s e g u e es s a
p r o e z a , c o m o lembrávamo s po r ocasiã o d a anális e
d o c o n t o d o Patinh o Feio, o filho idealizad o n ã o
nasc e n u nc a , restand o ao filho real a batalh a
inglória de tenta r se parece r co m o q u e ele
s u p õ e q u e ess e ideal poss a ser. Acrescente-se a
isso qu e , face á antigüidad e desse s contos , é
su rp re e n de n t e q u e haja filhas m ul h er e s n u m lugar tã o
idealizado , poi s é recent e a valorizaçã o do
nasci ment o d e um a menina .
A sociedad e qu e viu nasce r es s a s
hi st óri a s compr eendi a a utilidade de um a filha
mulhe r restrita à possibilidad e de alianças po r
casament o , o q u e era p o u c o face a o pape l d e
u m filho h o m e m n a trama sucessória. Q u a nt o à s
filhas, m e s m o q u e se u enlac e beneficiasse a
família, a necessidad e de lh e dispensa r u m oneros o
dot e lembrava a passage m d e u m encargo , d e u m
fardo , p e l o q u a l é n e c e s s á r i a a l g u m a in•
denização . Às plebéias , incapaze s de oferecer qualque r
aliança important e co m seu matrimônio , restava apena s a
função de fardo, já q u e seque r lhes cabia preserva
r o n o m e d a casa paterna . C o m o sabemos , havia
p o u c o a celebra r co m o nascimen t o d e u m
b e b ê d o sex o f e m i n i n o . Par a usa r um a
e x p r e s s ã o a nt i g a e d e esclarecedor a crueldade :
ter um a filha era c o m o rega r a horta do vizinho. As
princesas , portanto , explicitam em sua s histórias um a
contradição , pela qua l o desej o aparec e ao contrári
o de sua forma tradicional. Vale a p e n a s e
pergunta r o p o r q u ê .
Tã o lisonjeiros sã o esse s conto s par a a belez
a e o s d o n s d e sua s joven s p er so n a ge n s
femininas, q u e q u e m os apreci a mal p er ce b e o
q ua n t o o julgament o é inclement e relativo ao rest
o da s mulheres . Tanto s elogios, e m verdade , oculta
adulta . A mã e boa , q u e morr e rapida men t e na
história de Branca de Nev e e sai de cen a na
da Bela Ador• mecida , é muit o m e n o s expressiv a
cuj a fac e p e r i g o s a é e x p l i c i t a d a c o m requintes , do q u e a malvada. A bo a índol e está restrita às
principalmen t e na figura da madrast a da Branca de joven s e a um a q u e outra fada, ma s as fadas boa s
Neve . De a co r d o c o m esse s relatos , a jove m extrai jamais estã o desacompanh ad a s de su a versã o
seu s encanto s do fato de qu e aind a é inocente , portanto n ã o maligna. Essas histórias seriam, então, t a m b é m u
sa b e usa r o s ardi s típico s d a fême a humana. m tratad o so b r e a relaçã o d e h o m e n s e
Carent e de p o d e r formal, a mulhe r s e m pr e foi vista mulhere s co m a feminilidade: seu preço , se u
m a q u i n a n d o formas sutis de exercê-lo , e esse s são fascínio, a magi a magnétic a d e su a beleza ,
seu s feitiços. Além disso, somo s levado s a crer que, se u s p o d e r e s e perigos .
q u a n d o se torna r mãe , vai lidar co m se u filho como
u m dragã o sentad o sobr e se u tesouro , devorand o e
cu s pi n d o fogo e m q u e m ameaça r sua s crias.
No cont o da Bela Adormecida , a velha fada, com se u Lisa, a antepassada
ma u h u m o r invejoso e nocivo , exemplifica o que resta
isa, a heroín a de A Jovem Escrava,1
de um a mulhe r q u a n d o a juventud e a abandona. Os
atrativos femininos seria m um a arm a privilegiada d e conto escrit o p o r Basile, p u b l i c a d o em
conquist a d e posiçã o para um a mulher, com o o 1634, é a p o nt a d a c o m o a ancestra l
envelhe cim en t o a privaria destes , a mulhe r necessitaria recorre mai s próxima
r a outro s feitiços, os da bruxa . Um homem p o d e de Branca de Neve . De fato, o
ama r a pa i xo n ad a m e n t e um a princes a adorme• cida, co n t o de Basile, originalment e narrad o e m dialet
aprisionad a e passiva , ma s q u a n d o a mulher despert o napolitano, conté m algun s eleme nto s de Branca
a e p e r d e a belez a inocent e da juventude , resta a visão da de Neve, embora t a m b é m p o s s a m o s r e c o n h e c e r
sua verdadeir a alma: pod e rosa , perigosa e ardilosa . t r a ç o s d e A Bela Adormecida e Cinderela.
Vemos entã o que , so b um a cap a d e elogio, essas A história dest e cont o inicia c o m um a brincadeira
história s c o n t ê m u m avis o d e q u e t o d o cuidad o é d a jove m irmã d e u m b a rã o q u e faz u m a apost
p o u c o co m mães , sogra s o u t o d o o tip o d e mulher a com sua s amigas : qua l dela s conseguiri a pula r
um a roseira

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D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o

sem tocá-la. N e n h u m a c o n s e g u e , m a s a
menina
. trapaceia as companheiras , já q u e ela pul a melho r q u e
as outras e faz parece r q u e ga n h o u , ma s sab e
q u e deixou cair uma folhinha. Rapidamente , ela
engol e essa folha para garantir sua vitória no jogo .
T e m p o s depois se descobr e grávida. Desesperada ,
poi s nã o sabe como isso ocorreu , ela recorr e às
sua s amiga s fadas2 em busca de uma explicação. Estas
lhe informam que ela engravidara magicament e da
folha da roseira. Ela passa então a ocultar primeir o a
gestaçã o e depoi s a menininha qu e nascera, a q u e m dá
o n o m e de Lisa. Leva-a até as fadas, em busca de sua
be n ç ã o e proteção , e elas lhe dã o muita s
q ual id a de s . Um a da s fadas, porém, apressad a
par a c h e g a r a ess a e s p é c i e d e batismo, torce
o pé e, movid a pel a dor, rog a um a praga. A
maldição proferida era q u e Lisa, ao atingir 7 anos,
enquanto estiver s e n d o pentead a pela mãe , mor • rerá
com o pent e enterrad o em seu s cabelos . Chegad a a
funesta ocasião, a maldiçã o se confirma. A
rainha guarda sua filha, q u e parec e morta, ma s
m a nt é m as cores da vida, em sete caixas de cristal, um a
dentr o da outra. Essa urna é mantid a escondid a
pel a mã e em um remoto quart o do castelo, cuja chav
e leva s e m p r e consigo. Tomada de tristeza pela perda ,
a m ã e morre , não sem antes pedir, em seu leito de
morte , q u e seu irmão custodiasse a chave , se m
jamais abrir a port a do respectivo recinto.
Passados algun s anos , o irmã o casa-se co m um
a mulher perversa e ciumenta . Num a ocasião , el
e se ausenta para uma viagem e confia a chave ,
co m as devidas recomendações , par a sua esposa . É
claro q u e a mulher abr e a porta e encontr a a urn a
e nel a um a jovem (que na realidad e é sua
sobrinha) . A menin a crescera nesses ano s d e sono ,
assim c o m o seu caixã o transparente, q u e s e expandir a
c o m ela. Enlouquecid a de ciúme, pel o qu e julga ser
um objeto de culto do marido, ela arranca a jovem de
seu s o n o pelo s cabelo s e, com isso, faz cair o pent e q u e a
mantinh a enfeitiçada. Ao acordar do seu son o
mágico , Lisa exclama : "Oh . minha mãe!". Ao q u e
obté m c o m o resposta : "Vou te dar mãe e pai!".
Tratando-a c o m o um a escrava, a espos a do tio a submetia
a t o d o o tip o de trabalho , de maus - tratos e recobr e
seu corp o de trapo s e sujeira. Q u a n d o o tio retorna,
a espos a lh e cont a q u e Lisa er a um a escrava
qu e lhe havia sid o enviad a pel a sua mã e e,
sendo uma jove m perversa , deveri a se r
sistemati • camente castigada.
Certo dia, ao partir par a um a viagem, o tio
p e d e a todos no castelo q u e façam algum a
e n c o m e n d a , a jovem escrava p e d e u m a boneca ,
u m a pedr a d e afiar e uma faca. A bonec a servia
c o m o ouvint e de seu s
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sofrimentos e a pedr a par a afiar a faca, q u e seria
usad a par a p ô r fim à su a vid a miserável .
O tio termin a es c uta n d o su a história triste n o
m o m e n t o e m q u e ela a narrava para a b o ne c a ,
co m isso i m p e d e que ela se mat e e a mand a par a
casa de pessoa s de sua confiança, para recupera r a
sa ú d e e a beleza . Q u a n d o a jove m finalmente
está bem , ele realiza u m b a n qu et e e m sua
homenage m , apresenta- a à sociedad e com
o s u a sobrinh a e expuls a sua pervers a mulher .
Por fim, o tio providenci a u m b o m marid o para
Lisa.
Essa narrativa serv e par a q u e possa mo s
pensa r o q u e ela teria e m se u cern e par a ser
interpretad a c o m o a or ig e m de A Branca de
Neve. As trajetórias da s pe rs o n ag e n s n a
verdad e s e assemelha m apena s pel o
desapare cim en t o precoc e d e sua s mães . N a
história d e Basile , p a r e c e h a v e r al g o d e
p e c a m i n o s o n a c o nc e pç ã o , po r mai s mágic a
q u e seja, d e Lisa, poi s sua mãe , q u e a tev e
e m função d e um a travessura, precisa oculta r
a menina , sugerind o q u e sua orige m foi de
algum a forma escusa . Esse foi um el e m e nt o
q u e s e perdeu , poi s e m nad a lembra o
nasciment o d e Branca d e Neve .
Lisa c ha m a a tia de mãe , t o r n a n d o
possível o deslizament o dest a para o pape l
materno , assim c o m o se u tio e m s eg ui d a
a s s u m e u m luga r p at er n o , a o reestrutura r se u
luga r social e providenciar-lh e u m casamento .
Ta mbé m n ã o s e mantev e nas versões poste• riores a
suposiçã o da tia de que haveria algu m tip o de amo r
entr e se u marid o e a jovem adormecida , orige m de
se u ciúm e vingativo . Essa trama ce d e u
lugar a alusõe s b e m m e n o s incestuosas. Com o
veremos , n o cont o d o s irmão s Grimm, nad a d
á marge m seque r à suposiçã o de algu m amo r
familiar. O pai desapare c e ou é se m importância , e
a madrasta entra nu m a disput a d e belez a c o m a
enteada , intermediad a pel o ascético espelh o
mágico. Tud o indica qu e a passage m d o temp o foi
d e c a n t a n d o histórias cad a vez mais simbólicas
e metafóricas, necessária s à nov a sensibilidad e
m o d er n a e à p r e o c u p a ç ã o co m o q u e se
está oferecend o às crianças .
C o m o antepassada , Lisa serv e para
representa r a fundaçã o d e um a genealogi a d e
joven s mulhere s q u e terã o d e s e salvar d e praga s
e maldades , proveniente s d e q u e m deveri a
abençoá-la s e cuidá-las. Elas de v er ã o amad urece r
isoladas, oculta s dessa s terríveis invejosas. Por fim,
par a encontra r u m amor, terã o ante s d e passa r po r
u m s o n o enfeitiçado. Vamo s adiante , então ,
a o encontr o d e Branca d e Neve e Bela
Adormecida , q u e herdara m del a parte s da
história e sobrevive m hoje p ar a alimenta r
d e v a n e i o s a m o r o s o s e m pe ss o a s d e toda s a s
idades . Co m elas, p o d e m o s pensa r sobr e a s
Fadas no Divã - Psicanálise nas Histórias In fanti s

intempérie s provenie nt e s d a rivalidade c o m a sobrevivent e é essa madrasta , em cuja relaçã o


m ã e , q u e é precis o vence r par a a d or m e ce r m enin com a en te a d a n ã o h á o a m o r m a t e r n o par a
a e des • perta r mulher, assim c o m o sobr e o s amortece r o ciúm e e a inveja.
reveze s q u e sã o próprio s da adolescênci a de Apó s um a n o de luto, o rei, na última ve z qu
a m b o s os sexos . Mais adiante , encontraremo s e é m e n c i o n a d o n o c o n t o , cas a n o v a m e n t e
aind a Cinderela, q u e é um a jovem escrava, c o m c o m uma mulhe r tã o bela q ua n t o perversa . O pai
o Lisa, e no s fará avança r nessa s conjecturas . de Branca de N e v e n ã o ser á l e m b r a d o n e m
p a r a e x p l i c a r seu desap arecime nt o , n e m seque r
será m e n ci o na d a sua posiçã o diant e d o destin o
Branca como a neve d a menina . E m se u lugar, s u r g e u m e s p e l h o
mágico , objet o d e co n st an t e s consultas pela
ranca de Neve, tal com o a madrasta. Enquant o o espelh o respondia q u e ela era
c o n h e c e m o s , nã o conta co m uma versã o d e a mai s bela da s mulher e s (sim, el e era falante),
Perrault, ma s a p a r e c e na compilaçã o a entead a nã o trazia problemas , ma s quand o
folclóric a d o s irmãos Grimm..3 Seu sucess o chego u o dia em q u e ele m e nc io n o u q u e a
está de algum a
menina era a mais bela do reino, ela tornou-s e
forma associad o ao fato de ter sid o o primeir o
um a rival.
longa- metrage m e m de senh o s animados . O d e s e n h o
Isso ocorre u q u a n d o Branca de Neve tinha 7 anos.
anim ad o Branca de Neve e os Sete Anões (Estúdios
É curios o q u e aind a tã o jovem ela poss a se r ameaçadora
Disney, de
á posiçã o d e um a mulhe r adulta , po r
1937), alé m d e eleva r este s último s à c o n d i ç ã
is s o é compreensíve l qu e esse detalh e tenh a
o d e protagonistas , foi o precurso r de um a
linguage m q u e formará o gost o e o estilo de desaparecid o dos relatos contemporâneos . No
narrativa par a crianças de geraçõe s a partir daí. É filme da Disney, assim c o m o nas ilustrações
tã o marcant e a influência dess e filme q u e a mais tradicionais da história, a he r oí n a é
image m sugerid a po r el e par a a perso nage m da r e p r e s e n t a d a c o m o u m a a d o l e s c e n t e . E soment
Branca de Nev e hoje é indissociável desta. e nessa fase, q u a n d o perd e a condiçã o infantil, qu
Qual que r leitor q u e pensa r nela a imaginará tal com o e a jovem represent a uma ameaç a par a o reinad o da
ali foi desenha da . mulhe r mais velha da casa. Os 7 ano s talvez representem
N a v e r s ã o d o s irmão s G ri m m , o c o m e ç o m o m e n t o em q u e a menin a começ a a
o d a história nã o poderi a ser mais idílico: apresentar algu m interesse pelo s atributos de
feminilidade, com o roupa s e comportamentos , já que
Era uma vez uma rainha que, certo dia, no meio , até então , p o u c o se diferenciam na aparência as
cio inverno, quand o flocos cie neve caiam do céu com crianças de ambo s os sexos, mas isso são conjecturas.
o se fossem penas, costurava sentada junto à Outra fonte, be m mais provável da alusão a essa idade, é
janela, cujo caixilho era de éban o muito negro. E. o fato de que , á époc a dessas narrativas, os 7 ano s era m
enquant o costurava e olhava pela janela, espeto u a ocasiã o do fim da inocência infantil, o início de uma
o d e d o na agulha e três gotas de sangue certa responsabilidad e social.4
caíram na neve. Ela pensou então: que m me Vemos també m qu e é co m a idad e de 7 ano s q u e
dera ter uma filha branca com o a neve, vermelha Lisa está fadada a perde r sua mãe .
com o o sangue e negra com o o caixilho da janela. D e qualque r maneira , graça s ao s acontecimento
s q u e s e sucedem , é possível supo r q u e a s aventura s d
Seu desejo foi um a orde m , "pouc o depoi s de u e Branca de Nev e a c o n t e c e m q u a n d o a heroí n
á luz a um a filha q u e tinha cútis tã o alva com o a nev e a já é adolescente , portant o a criança am ad a e
e tã o corad a c o m o o sangu e e cujos cabelo s era m negro s desejad a já n ã o existe mais mes mo , foi
co m o o é b a n o q u e ficou cha mad a d e Branca d e Neve". substituída po r um a bela jovem. Um b e b ê te n d e
Mas o q u e era b o m d u r o u q u a s e nada , j á q u e a a ser objet o de contemplaç ã o e fascínio po r part e do s
m ã e morre u log o ap ó s o nascimento . Essa rainha pais, q u e celebra m a realização cie seu desejo . Já a
aparec e ap e n a s par a ser q u e m faz a e n c o m e n d a . moç a q u e ess e b e b ê se torno u é objeto d e desej o
Mãe boa , c o m o toda s a s d e conto s d e fada, que , po r ter para u m jovem príncipe , de s ba n ca n d o a m b o s de se u
desejad o tant o a criança, ficaria isenta de trono : o pai é substituíd o po r ele, e a mã e é
sentimento s hostis, a b a n d o n a a cen a rapida me nte , agor a um a madrast a invejosa cia belez a e da
par a deixa r surgir e m se u lugar a madrast a n u m juventud e da filha. É a partir d es s e p o n t o q u e a
n o v o casament o d o pai. Sempr e clarament e açã o realment e começa .
diferenciad a da genitora, a m ã e A fim d e livrar-se d a incôm od a presenç a d a bel
a jovem , a madrast a i n c u m b e a um c a ça d o r a
serviç o de su a cort e qu e lev e a entead a par a a
floresta, a
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o

mate e lhe traga seu fígado e pulmões t o m o prova.


O homem compadece-se das súplicas da
menina, deixando-a partir, confiante de que as
feras farão a tarefa por ele. Para simular que
cumprira sua missão, mata um animal e leva
suas vísceras para serem comidas pela invejosa
mulher. A menina atravessa a floresta livre de toda a
ameaça, ficando claro qume o perigo morava em casa.
Ao anoitecer, chega a uma cabana, onde tudo é
pequeno. Uma mesa servida para sete, assim como
sete caminhas e, nesse mundo em miniatura, se sente
aconchegada. Ela come um pouquinho de cada
prato e experimenta todas as camas, ficando
adormecida na última delas. A cabana pertencia a
sete anões mineiros que, ao anoitecer, retornam,
encontrando a bela invasora. Ela lhes suplica
que a deixem ficar e conta sua história. Sensi•
bilizados, eles a aceitam, mas com a condição
cie que ela faça os serviços domésticos.
A partir desse momento, eles se cuidam mutua•
mente, por isso, ao sair, sempre alertam para que ela
não permita a entrada de estranhos na casa. Enquanto
isso, a madrasta é comunicada pelo espelho - que nunca
mente - da sobrevivência e do paradeiro de Branca de
Neve. Por três vezes, ela visita a jovem, a fim de livrar- se
pessoalmente dela: na primeira, disfarçada de velha
vendedora ambulante, lhe oferece um cadarço para seu
corpete. Quando a moça aceita, ela o coloca na jovem,
apertando-o até sufocá-la, mas ela foi salva pela provi•
dencial chegada dos anões. Da segunda, mais uma vez
disfarçada, ela lhe oferece um pente envenenado. Assim
que o pente toca os cabelos da moça, ela cai morta,
mas mais uma vez os anões a salvam, retirando o objeto
de sua cabeça. Por último, mediante o fracasso
das tentativas anteriores, ela tenta a gula da
jovem com uma bela maçã vermelha envenenada.
Branca de Neve morde a maçã, cai como morta e dessa
vez não há o que seus amigos possam fazer para
reverter o fato.
Apesar de morta, a jovem parecia estar apenas
adormecida, mantendo-se rosada como em vida. Por
isso, os anões decidiram colocá-la em um
féretro de vidro, onde pudesse ser contemplada por
quem passasse, enquanto eles velavam e montavam
guarda ao seu lado. Não demorou muito para que um
jovem príncipe passasse por ali e ficasse
fascinado com a sua beleza inerte. Tanto que
pediu aos anões para que ela pudesse repousar
em seu palácio, prome• tendo honrá-la como
uma amada. Ao ser transpor• tada, um tropeço
dos lacaios balançou o caixão e, com o solavanco,
soltou-se da garganta de Branca de Neve o
p ed a ç o de maç ã e n v e n e n a d o q u e mantinha o
sono enfeitiçado. Ao despertar da amada,
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o príncip e declar a se u a m o r e é aceit o pel
a mo ç a . Co n vi d a d a á festa d e c a s a m e n t o , a
madr ast a c o m p a • rece , m e s m o corroíd a pel a
inveja. L á p o r é m a e s pe r a o castigo : é obrigad
a a calça r s a p a t o s em bras a e nele s d a n ç a r
at é a m o rt e .
Na versã o Disney, Branca de Nev e é
despertad a d e u m m o d o mais romântic o e m eno s
pudico , po r u m beijo, fruto do s novo s te m p o s .
Q u a n t o à malvada , é eliminad a pelo s anões ,
q u e s e encarrega m d e jogá-la d o alto d e um a
mo ntanha . J á qu e o filme lhes de u
pe rs o na li da d e s e papéi s mai s marcantes , n ã
o é d e estranha r q u e a vinganç a també m coubess
e ao s anões , assim c o m o ante s haviam s e
incu mbid o d a seguranç a da princesa .

Espelho, espelho meu...


morte precoce da rainha-mãe
representa que o filho que nasce não fica
com a cara cia encomenda por muito
tempo: assim que começa a crescer,
passa a escolher sua
própria carta de cores e matizes. Na versão dos
irmãos Grimm. a rainha morre no parto, o que é bem
correto, pois a criança que nasce não é
nunca exatamente como se sonhou, afinal ela já
chega ao mundo ber• rando, dando mostras de
alguma insatisfação. Assim, quem morre no
parto é esse ideal de que um filho será capaz
de satisfazer plenamente o desejo da mãe. Nos
contos, a mãe má é representada ora por
uma bruxa, ora por uma madrasta. Branca
ele Neve tem o azar ele ter as duas, com um
detalhe adicional: sua madrasta é bela, sua feiúra
é interior. Na cultura medieval cristã, a beleza
feminina se identificava ao maligno, à influência
do demônio, o que vem a ser o coroamento de uma
longa carreira ele preconceito para com a mulher.
Como os contos de fadas desde sempre foram
elessacralizados, nunca foram muito afetados
por essa visão cristã ela beleza como um
problema
(como o esconderijo do diabo): a beleza era
sempre um bom sinal, e a feiúra, o signo dos maus.
Nisso a madrasta ele Branca ele Neve
é uma exceção,5 mas convive com uma eterna
insegurança a respeito ele seus atrativos, não
lhe bastava ser bela, sua formosura tinha de ser
insuperável. A supremacia da beleza da madrasta é
objeto de consulta constante a um espelho mágico,
a quem ela pergunta:

Dize a pura verdade, dize, espelho meu:


Há no mundo mulher mais bela do que eu?
Fada s n o D i v ã - P s i c a n á l i s e n a s Hi s t ó r i a s I n fa n ti s
cresceu e

A verdad e é q u e a belez a só existe par a um olhar, 80


se m ess e recon heci men t o ela n ã o faz sentido , po r isso
o e s pel h o é o c o m p l e m e n t o necessári o da imagem .
O olhar n o espelh o traz s e m p r e um a pergunt a
e um a resposta. Cada um o contempl a tentand o
se ver "de fora", b u s c a n d o decifrar o impact o
de sua image m no s olho s do s outros , interrogand o
c o m o so mo s vistos. Outra fonte d e informaçã o a
respeit o d e q u e m
somo s é a comparação : é sempr e melho r se p o d e m o s
ser julgados mais lindos, inteligentes ou
interessante s q u e est e o u aquel e qu e
c o n s i d e r e m o s d i g n o d e admiração , imitação o u
desafeto . E m suma , q u e r e m o s s u p er a r algué m qu e .
pe l o direit o o u p e l o a ve ss o , consideremo s c o m o
parâmetro . Por isso. n ã o basta o espelh o respo nde
r q u e ela é bonita , ela te m de ser a mais bela d e
todas .
Nada mais útil entã o q u e u m e sp el h o capa
z d e emitir opinião , se assim fosse nã o
gastaríamo s tant o t e m p o no s p e r g u n t a n d o c o m o
est a m o s p a r e c e n d o . Porém, a melho r respost a aind a é
se r a m a d o . A admi • raçã o d o ser a m a d o , d e q u e m
nor mal men t e exigimo s que , c o m o o espelho , diga
alto e claro o q u a nt o no s aprecia, é o melho r
certificado de adequaçã o a este olhar, pois
significa q u e algué m viu, gosto u e desejo u aquil o q u
e somos . H á moça s q u e termina m na s mão s d e u m
e n a m o r a d o príncipe , ma s nunc a cessa m d e lhe
pergunta r se sã o amadas , aind a e de verdade , e
n ã o adiant a q u e el e assegur e q u e isso já foi dit o mil
veze s e q u e su a opiniã o n ã o m u d o u . Nã o basta se r
espelho , te m de falar.
O amant e da madrasta é representa d o po r
ess e espelh o mágico, capa z de lhe respon de r a
pergunt a a contento . Aliás, ningué m faria um a
pergunt a dessa s par a ouvir q u e a mais bela é a
outra, a respost a te m de ser previsível, é apena s um a
busca de confirmação . O drama começ a q u a n d o o
espelh o r es p on d e q u e a mais bela é a jovem. Até
aqui a convivênci a era pos • sível, o q u e fica
insuportável é justament e a c o m p a • ração das
belezas.

Espelho e caçador, duas faces do pai


as que olhar é este que acaba com a paz no
lar? O espelho mágico é um olhar pregado a
uma parede no quarto da madrasta. Assim
deveria ser o homem com quem ela se casou,
ou seja, ter olhos só para sua mulher; entretanto, esse
homem-espelho consegue ver também a beleza
da princesa, sua filha. Um belo dia, o pai, que é
também um homem, se dá conta de que sua menina
foi agraciad a c o m os atrativos de um a jove m mulher. É
um a constatação , ma s é t a m b é m o início de uma
se pa ra ç ã o entr e pa i e filha, el e n ã o mai s contemplará su
a n u d e z e m vão . A intimidad e q u e u m pa i podi a ter co m
sua menin a ante s dess a visão agor a é invadida po r u
m constrangiment o .
O e s p e l h o e n t ã o e n un c i a q u e h á u m a jovem
mulhe r na casa, su a própria mulhe r nã o é mais a única e está
ficando para trás. Existem outras histórias centradas no caráter
traumático para a jovem do m o m e nt o em q u e se
explicita esse olhar do pai, po r exemplo , no cont o
Bicho Peludo.6 É inegável q u e el e contribui para a
impossibilidade de permanênci a no lar da Branca de Neve,
ma s aqui vamo s centrar o enfoqu e na reação da mãe , ou
melhor, madrasta. De qualque r forma, nessa família só
há lugar par a um a mulhe r ser desejada. À filha só resta a
expulsão , partir em busc a de se u próprio espelho , ou seja,
de um amor.
Q u an d o ela perd e o lugar de única beldade , a fúria da
madrasta dá início ao drama. A inveja é o divisor de águas,
e ela ag e rápido: mand a se m rodeio s qu e um caçador
mate Branca de Neve e traga suas vísceras, que pretend e
devorar temperada s co m o sabor da vingança. A madrasta que r
incorporar os atributos da jovem, comer se u pulmão , se u
fígado, se u coraçã o (o órgã o varia conform e as
versões) . Comê-la é passa r a ser ela, a incorporação
é a forma mais primária de identificação. Nessa história, o
pe rs o na g e m do pai é um a figura
subordi na d a â madrasta , um olha r p r e s o â pared e do
q u a r t o . Mas p o r q u e el e n ã o p o de ri a se r também
re pr es e nta d o pel o caçador, c o m o se fossem dua s faces da
mes m a moeda ? Afinal, el e se s u b m et e à madrasta, m a s
po r outr o lad o a enga na . Diferentement e desta, o caçado r
co n se g u e ver a moç a c o m o um a menin a frágil, te m pen a dela
e a salva da inveja assassina materna. Há um a
cumplicida d e entr e o caçado r e a jovem, que minimiza o
p o d e r cia madrast a e permit e a fuga. 0 '
mai s importan t e é o fato de a m ã e p o d e r se r enganada, dela
nã o ter control e total sobr e ess e homem . O pai é fraco, po d
e enganar , ma s n ã o reverter o quadro , por isso, n ã o
vale a pen a ficar em casa po r ele. Além disso, é indign o do
a m o r da filha, livra-a da mãe , mas a deixa na floresta
á merc ê da s feras. Nesse caso, o amor do pai é impotent e
no m u n d o externo , fica restrito ao s muro s d a casa.
Os caçadore s era m n ob re s na origem, afinal a
caç a er a um atribut o da aristocracia. As crianças de
hoj e n ã o s a b e m d e ss e a s p e c t o histórico , mas eles
s e g u e m s e n d o figuras importante s , aparece m como
protetore s , poi s caça r animai s selvagen s é enfrentar o q u e
h á d e mai s perigos o n a floresta. Essa importância
Di a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o

é visível na popula r história de Pedro e o filho e o h o m e m a m a d o . O important e é essa variação,


Lobo, em que o caçador aparec e c o m o m o d e l o de d e m o d o q u e ninguém , n e m filho, n e m cônjuge,
identificação viril para os meninos , assim c o m o na seja objet o absoluto , capa z de locupleta r a mã e
etern a Cbapeu- zinho Vermelho, em qu e a menin a é ou o pai. A criança interessa-s e po r aquil o q u
retirada da barriga do lobo por um caçadora . 8 e é important e para seu s pais. p o r q u e , n u m
Por mais podere s qu e a bela madrasta tenha , primeir o m o m e n t o está b u s c a n d o lugar para s i n
ela não consegue controlar ne m espelho , ne m caçador. o amo r deles , ma s termina descobri nd o u m
O olhar de um e os atos de outr o a traem. O espelh o m u n d o mais vasto, plen o d e o p ç õe s amorosas , de
está preso à parede, mas enxerg a alé m do realizaçõe s possíveis e variadas formas d e realizar
recinto , e o caçador só finge qu e obedece . Se a mã e seu s desejos.
fosse perfeita, se sua beleza hipnotizasse o pai, qu e mais
ele quereria além de adorar e obedece r a sua
amada? A filha só restaria a opção de tentar se
mimetizar ã mã e para tornar- se também objeto dess e A turma dos anões
amor. É important e q u e a filha possa recolher elemento s ivrada da mort e pel o caçador .
de identificação co m a mãe.'' Ser como ela em alguns Branca de Nev e se vê sozinha , a b a n d o n a d
aspectos, mas c o m o p o nt o de partida, não de chegada.
a na floresta e se m ter par a o n d e ir.
Perceber a limitação do model o materno empurra ao
Vaga po r algu m t e m p o até q u e o
trabalho de busca r referenciais e vivências que
acas o a c o n d u z par a a
ampliam o horizonte da vida da filha.
casa do s an õ e s d a floresta. Q u e m sã o esse s
É um caminh o problemátic o para a filha q u a n d o anões? Ora, o folclore e u r o p e u está chei o deles ,
ela sente uma admiraçã o irrestrita pela mã e ou m e s m o sã o sempr e criaturas da terra, ou melhor, das
quando o amo r de se u pai pel a espos a é de entranha s da terra. São mineradore s incansáveis e
um a paixão engolfante. Isso relega a moç a a dua s detentore s do s segredo s e tesouro s d o interior da s
posiçõe s igualmente difíceis: p o d e tenta r se m o nt a nh a s . Geralmente , sã o representado s c o m o
iguala r à m ã e , perdendo o caminh o de construçã adulto s e m miniatura, usa m longas barbas , sã o avarento
o de sua própri a pessoa, ou ainda se identificar s e n ã o muit o amistosos . No noss o caso, se porta m
co m o pai, b u s c a n d o amar uma mulher maravilhosa muit o be m co m a heroín a e lhe d ã o casa e
assim c o m o a qu e ele ama. Na segunda escolha, ela comid a em troca de serviços domésticos . Ela
encontrará numa solução homossexual a possibilidad e de ganh a u m lar o n d e p o d e ocupa r u m lugar
relacionar-se co m a perfeição de sua mãe. 10 feminino, ma s n ã o sexua do , ela é a don a de
Porém, para haver algum a existência casa, mas n ã o é mulhe r de ninguém , todo s a
individual, algo que possamo s chama r de "eu", é quere m e a cuidam , mas n ã o há um a disput a sexual
precis o q u e saibamos nos diferenciar, particularizar
po r cia. No filme da Disney, eles c o m p e t e m po r sua
um a forma de ser. Tentar ser igual é uma forma de morte
atençã o c o m o u m gru p o d e irmãos , estã o
, de anulação , pois, se formos iguais a alguém , seremo s
e n a m o r a d o s dela, ma s c o m o crianças q u e q u e r e
essa pessoa , portanto nã o existirá aquel a forma
m u m q u i n h ã o maior d e sua atenção .
específica q u e no s identifica. Para a filha, é
necessári o constata r q u e o desejo do pai transcend e Nos conto s d e fadas, o s anõe s geralment e
se u amo r pela mãe , de forma a que esta nã o se cristalize estã o num a posiçã o o n d e desejam outras coisas
c o m o a única forma capa z de suscitar algum desejo. qu e nã o o sexo . Eles qu ere m riqueza s e
rarament e cobiça m as princesas , poi s estã o fora
A moça interroga par a o n d e se dirige o olha r e o
dess e d o m í n i o da s lides sexuais. São co m o os mais
desejo paterno, e s p e r a n d o q u e o pai se interesse
velho s ou c o m o as crianças, cies têm as barba s da
po r algo além de sua esposa , inclusive q u e ele
reserv e algum espaç o para percebe r q u e a filha velhice e o tamanh o da s crianças. Digamos qu e eles
cresceu . Essa questão nã o é restrita ao c a m p o p o d e m representa r um território fora do exercício
a m or o s o ou erótico , a amplitude d o desejo d o pai sexual (antes e depois) , um lugar o n d e a Branca
p o d e ser representa d a por um gosto dest e pel o se u d e Neve nã o precisa s e preocu pa r co m sua
trabalho , pel o jornal q u e lê com dedicaçã o beleza. Nesse sentido, é o lar ideal para o
obsessiva , p e l o esporte , amigos , leituras, programa m o m e nt o. " Temo s o b se rv a d o q u e no s d e s e n h o s
s de televisão — enfim, tu d o o q u e lembra qu e ele Disney é
n ã o te m olho s apena s par a su a mulher . O amor da mã e constant e a presenç a de figuras infantis
ta m b é m te m de ser repartid o entr e o representada s pelo s animai s e , nest e filme, t a m b é m
pelo s anõe s (poi s todo s disputa m o s cuidado s
materno s d a princesa) . Essas figuras funcionam com
o gancho s d e identificação mai s diretos par a as
crianças. Essa inserçã o é sábia, poi s a criança
p o d e sonha r em ser a bel a princes a ou o
príncip e corajoso n o futuro, s e n d o q u e n o
present e

8
1
Fada s n o D i v ã - P s i c a n á li s e n a s H is tó ri a s Infan ti s

ela s e permite , c o m o o s animaizinhos , participa r A mãe bruxa


d a trama se m s e projetar diretament e ness e
desafio q u e s ó o t e m p o lhe designará . Troc and o perversidade da madrasta de Branca de Neve
e m miúdos , a menina , po r exemplo , poder á sonha e sua determinação inamovível de livrar-
r co m u m dia ser a Cinderela, mas n o m o m en t o s e se da enteada obrigam-nos a tentar
imaginar á c o m o u m d e seu s ratinhos d e estimação . entender
A narrativa d o s Grim m frisa a importânci a qual a origem de tanto ódio. Só as rivalidades
da igualdade fraterna entre os anões . Por exemplo , o femininas, o pânico de ser superada pela mais jovem
an ã o qu e foi desalojado de sua cama pela exausta seriam suficientes?
Branca de Neve - quand o ela chega na casa pela Acreditamos que aqui temos retratado mais
primeira vez —, dorm e uma hora daquel a noite n a cama os sentimentos da filha pela mãe do que o contrário.
d e cada u m do s outros, para nã o sobrecarregar As meninas na primeira infância são tão
ninguém. Os objetos, as quantidade s de comida, os amorosamente dedicadas às suas mães como os
móveis são absolutamente iguais, equanimiment e meninos. Porém, enquanto estes continuam
divididos entre todos. amando alguém similar à mãe pelo resto da
A menin a Cachinho s de O u r o invad e a casa vida (desde, é claro, que sejam heterossexuais),
de um a família, utiliza os objeto s e, atravé s elas terão de abrir mão dessa moda• lidade
deles , se interroga sobr e o s lugares d e cad a u m amorosa, para experimentar com o pai os
n u m núcle o familiar. Branca d e Neve, po r su a vez, rudimentos do que será seu objeto amoroso heteros•
t a m b é m invad e um a casa, mas descobr e nela com sexual no futuro. Dos caminhos e percalços
o é u m gr u p o d e irmãos , o u d e amigo s q u e deste enlace amoroso, nos ocuparemos no capítulo
sã o e m certo s aspecto s equivale ntes . Nã o q u e r seguinte. Aqui pretendemos entender o que
dize r q u e o s a n õ e s seja m irmãos entr e si, pois o acontece quando esse primeiro amor das meninas
relato n ã o esclarec e se sã o um g r u p o d e com a mãe acaba.
trabalhadore s o u um a família , ma s o Geralmente, esse primeiro amor com a
funcionament o d o gr u p o é tipicament e fraterno. mãe sucumbe em meio a um mar de queixas,
Para os jovens, passa r a maio r part e do acusações e mágoas. A menina desvincula-se da
t e m p o e m companhi a d e u m grup o d e pares , sua mãe acusando-a de tê-la abandonado, descuidado
"turma", é um a da s formas de proteçã o d o s e preterido. Tem também queixas de que a
conflitos familiares gerado s pela adolescência . A casa mãe não a dotou dos atributos (fálicos, dirão
da família fica b e m difícil d e habitar q u a n d o o s os psicanalistas) de que ela precisava para ser
defeitos do s pais sã o tã o chamativos ao s olho s do s valiosa e escolhida na sua prefe• rência, por fim
filhos e vice-versa. Ao m e s m o tempo , desd e um a posiçã o ainda acusa a mãe de ser ela própria castrada e
m e n o s valorizada, fica difícil o exercício d e autoridad desvalida, incapaz de dar-lhe o que ela
e q u e o s pais aind a neces • sitam fazer. A necessita. Essas queixas se enlaçam às queixas relativas
conseqüênc i a disso é um ambient e tens o e ao desmame, de ter recebido pouco leite ou por tempo
potencialmen t e conflitivo, o n d e lugare s hierárquico s sã insuficiente.
o disputados , e pais e filhos passa m se Muitas dessas ruminações são comuns a meninos
criticando, e m discussõe s ou , n o mínimo , e m e meninas, pois a mãe sempre deixa a desejar. Como
pensa me nto s . vimos antes, é porqu e este amor materno
Esses grupo s fraternos costu ma m a mpara r a s pri• não é absoluto, nem locupleta ninguém, que um
m ei r a s e x p e r i ê n c i a s a m o r o s a s e s e x u a i s , e filho sente necessidade de crescer, desejar além
b e m sabemo s o quant o é difícil administrar o tem a do dos primeiros vínculos e partir. Mas entre as
amo r e da amizade . E sempr e constranged o r ama r mulheres essa falta materna acaba sendo o
algué m d o grupo , fala-se e m perde r a amizad e e combustível que faltava para que elas incinerem os
se m p r e q u e possível se am a algué m de fora, voltand o restos de um amor que terá de sucumbir. Freud
par a o gr u p o q u a n d o s e está só, para s e cura r do s escreveu em 1932: "não consegui• remos
fracassos d o amo r e par a toma r corage m par a um a entender as mulheres, a menos que valorizemos essa
nov a investida. O s anões , c o m o o s b o n s amigos , fase de vinculação pré-edipiana à mãe".12 Situações
sã o todo s d a me sm a geração , as desigualdad e s como a rivalidade mortífera entre a madrasta
sã o muit o sutis e o sex o fica excluíd o d a relação e a enteada desse conto nos obrigam a concordar.
. Po r outr o lado , c o m o ocorr e n o grup o adolescente , Parece que há algo de raivoso nas relações entre a
Branca d e Nev e s e prepar a ali par a transitar d o mãe e a filha, senão na prática, pelo menos nas
olha r e d o desej o d o pa i par a o encontr o co fantasias de que essas histórias se incumbem de
m se u príncipe , e o s anõe s sã o parteiro s dess e representar.
processo . A menina funciona como a raposa da fábula que
colocava todos os defeitos possíveis nas uvas que não

82
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Co r s o

conseguia alcançar e terminav a concluind o q u e


"as uvas estão verdes". Esse amo r mater no , que
ela n ã o levará consigo para sempre , q u e ela
sent e q u e está perdendo lugar, será desqualificado
, criticado c o m o as cobiçadas e inatingíveis uva s
da raposa . O e x p e • diente para livrar-se da mã e é
acusá-la de t o d o o ranco r que a filha sente po r esta
q u e a está a b a n d o n a n d o . Mais uma vez temo s um a
projeção , o n d e se atribui ao outro aquilo qu e sentimos
.
A forma pela qual a bruxa venc e Branca de Neve
(parcialmente), atravé s d a maç ã e n v e n e n a d a ,
di z respeito a essas queixas da filha, as quai s
p o d e m ser encontradas nas associações livres da s
paciente s em análise: o med o de ser envene nad a
pela mãe , assim como os inúmero s distúrbio s
alimentares , c o m o as anorexias nervosas, no s quais
tod o alimento envenena . A mãe é a primeira fonte de
alimento e os assunto s do estômago sempre lhe serão de
certa forma alusivos. Ser envenenada é també m um a
forma de lhe dizer q u e seu leite é ruim, qu e seu
alimento nã o nutre, mata. Mais uma vez é a mágoa
qu e dá o tom do texto da filha.
Por tudo isso, as mãe s farão papéi s extremamen t e
cruéis quand o a heroín a do cont o for um a moça , serã o
finalmente derrotada s e cruelment e castigadas. Q u a n t o
aos pais, quand o faze m sua s maldades ,
s e m p r e encontram algum tip o d e conciliaçã o o u
pe r dã o n o final. Realmente, ser mã e é desdo bra r
fibra po r fibra...

A maçã envenenada
espelh o tud o sab e e acab a reveland o á baix a
qu e a belez a de Branca de Nev e segu e viva,
assim com o su a localizaçã o . A
m a dr as t a
resolve q u e s e alg o te m d e ser bem-
feito tem de ser feito pessoalment e e part e par a
en v en e n a r a princesa. Disfarçada de velha ou de
cam pon esa , tira d o seu arsenal d e maldade s u m ve ne n
o p o d e r o s o q u e oferece a ela, so b a forma de um a
maçã .
O disfarce de velha é um a sábia forma de engana r
Branca d e Neve, poi s d o s velho s p o u c o h á par a temer.
Costumeiramente, o s adolescente s encontra m no s avó s
abrigo para os conflitos resultantes do narcisismo ferido
dos pais. No velho , p o d e m reencontr a r o
confort o daquele amo r matern o perdido ,
a d m i n i s t r a d o p o r quem já se apaziguo u relativo
ao s conflitos do sexo . A camponesa seria um a
mulhe r se m o s atrativos d e uma nobre, tosca e
voltad a par a o trabalho , portant o fora do circuito
da se d uç ã o .
83

Q u a n d o pedi mo s para crianças fazerem desenho


s de árvores , qualque r q u e seja, é incrível a
recorrência d a macieira, q u e parec e ser u m
arquétip o d e árvore. A maç ã ficou, dentr o da
noss a tradição, inseparável d o mit o d e Adã o
e Fva, c o m o sím bol o d e desej o proibido . F.
morde r essa maç ã q u e altera o destin o de Branc a d e
Neve , m orr e um a me nin a e nasc e um a
mulher, o v e n e n o é a sexualidade . Poré m até
aquel e m o m e n t o , a jove m se mostr a
tot al m e n t e casta . A madrasta leva até ela a
primeira tentação , so b a forma, é claro, do fruto
proibid o mais c o n he ci d o da tradição ocidental .
Fica a questã o do q u e a feiticeira foi
lazer lá. poi s a jovem já nã o perturbav a seu reinado ,
escondid a n o fund o d a floresta , brinc and o d e
m a m ã e junt o co m a turm a do s anões . Porém ,
um a vez q u e o espel h o lembro u q u e sua
belez a aind a conta , á m ulhe r mais velha c o u b e
fazer o resgate.
A cen a n ã o é inco mu m no cotidian o de
mãe s e filhas. Na maio r part e da s vezes , a
vida erótica da jovem é b e m maio r n a fantasia d
e sua mã e d o q u e n a prática da vida da filha.
A mã e su p õ e aconteciment o s q u e a jovem ne m
seque r ous a pensar, q ua n t o mais dizer. F m
determinad a etap a d o início d a adolescência , a mã e
pass a a n t e c i p a n d o e m seu s p e n s a m e n t o s a
principiant e sexualida d e q u e sua jove m filha
aind a n ã o sent e condiçõ e s de exercer. F isso
q u e a brux a foi fazer na casa do s anões , na
história vai para matá- la, na prática se trata de
fazê-la desperta r para o desejo sexual , para a
tentação . Tant o é assim q u e é so b os efeitos
da maç ã q u e a belez a de Branca de Neve se
expõe , tornando-s e disponível para o olhar do
príncipe. Assim, a mã e é important e fonte de
identificações, nas quai s a filha b e b e a ciência do s
atrativos femininos, afinal, el a lh e possibilit a
afinar a cintura , a fazer pe nt ea d o s diferentes
e a se mostrar disponíve l para ser a m ad a .
Mas a história lembr a que ess e en si n o t a m bé
m é a c o m p a n h a d o de rivalidade e de inveja pela
m u l h e r mai s velha . Talve z ess a seja a
ori g e m d a agressividad e latente e da rivalidade
sutil que perma • n e c e n a re l a ç ã o da s
m u l h e r e s e n t r e si, i n d e p e n • de nt e m e nt e d a
idad e e d o tip o d e vínculo .
É important e a ressalva de q u e , ao associar
essas questõe s da g ên e s e da identidad e feminina
à história d a Branca d e Neve , jamais no s ocorre u
q u e houvess e qualque r intencionalidad e n o sentid o d
a representaçã o desse s d ra m a s n u m c o n t o d e
fadas. A s origen s d a preservaçã o dess a trama se
d e v e m a múltiplos fatores, d o s quai s a p e n a s
p o d e m o s aqu i conjecturar alguma s
Fada s n o D i v ã — P s i c a n á l i s e n a s H is tó ri a s I nf a n ti s

facilitações, o u seja, um a possibilidad e d e comparaçã o Bela, porque adormecida


co m certas ocorrência s psicológica s constatávei s
n a noss a subjetivida d e c o n t e m p o r â n e a . Nesse s história deste conto tem, resumidamente
casos , permitimo-no s certo tipo d e livre associação , e até onde a prospecção histórica alcança,
aprovei • tand o a ocasiã o par a revela r a tram a três momentos. Começa em Giambattista
q u e s e p o d e associar a algun s aspecto s d o conto . Basile,
E m seu so n o letárgico, Branca d e Nev e com o nome de Sol, Lua e Tália'*
sedu z passivamente . O fato de pe r ma n ec e r corad a é a (1634); encontra outra versão consagrada em A Bela
marca d o feitiço, é o q u e mostra q u e ela n ã o Adorme• cida do Bosque.14 de Perrault (1697); e assume
está morta , q u a n d o a s core s d a vida a b a n d o n a m a forma pela qual a conhecemos hoje em A Bela
o corpo . Tã o viva ela está, qu e sua image m sedu z o Adormecida1^
príncipe , sobr e q u e m n ã o temo s motivo s par a (1812), dos irmãos Grimm. Em 1959, os estúdios Disney
pensa r q u e seja u m profanado r d e cadáveres , u m produziram sua versão em desenho animado.
necrófilo. El e é ap e n a s mais u m h o m e m qu e s e Na história de Basile, Tália é uma princesa que
apaixon a pela image m d e passividad e d a mulher. nasce com a mesma recepção festiva de suas similares.
Branca d e Nev e e m seu esquife d e cristal é a image Preocupado com seu destino, o rei manda
m d e um a mulhe r e nt re g u e a o desejo d e seu consultar astrólogos e magos, que se reúnem para lhe
príncipe. dar uma triste notícia: sua filha morrerá sob o
Estar corad a é um a expressã o da vivacidad e efeito de uma lasca de linho. O rei manda
do desejo, q u e no s esquenta q u a n d o ruborizamos . retirar de seu palácio tudo o que representasse
A co r vermelha també m costum a tingir as faces do risco para sua preciosa filha. Em certa ocasião,
s adoles • centes , q u a n d o sã o vistos, menci ona do s o u porém, ela vê uma mulher fiando, interessa-se pela
ab o rd a d o s po r algué m q u e lhes interessa o u consideram . atividade e pede para experimentar. É nessa ocasião
Portanto, ess a morte d e Branc a d e N e v e m a i que uma lasca presa ao linho entra sob sua unha,
s e x p r e s s a a possibilidad e d e ser vista d o qu e e ela cai morta. Desconsolado, o rei a veste
u m so n o propria • ment e dito. O feitiço da suntuosamente, coloca-a num trono de veludo e
madrasta torn a possível q u e su a belez a poss a ser a deixa num de seus castelos no campo, que manda
exibid a e desejada , disponíve l par a o amo r na fechar, como um grande monumento funerário. Certo
sua urn a transparente . dia, outro rei que caçava por ali perdeu um de
Essa m aldad e q u e sai pela culatra n ã o é seus falcões, que foi visto entrando no castelo. À
um a contradiçã o d o conto , é a p en a s um a prov a procura da ave. ele entrou no castelo
d e q u e para um a jovem a inveja de sua mã e abandonado. Quando chega á sala do trono, se
n ã o é neces • sariament e nociva. Essa inveja é um depara com a bela princesa desacordada e começa a
móve l important e d e confirmaçã o d e sua s gritar para despertá-la. Mesmo que ela não reaja aos
qualidad e s femininas, um a espéci e d e ferment o qu chamados, ele se enche de desejo pela jovem, leva-a
e permit e a e x p a n s ã o d e seu s encantos . Além disso, para um leito e a possui. Ao sair do castelo, envolve-
dev e ficar b e m claro q u e a jovem a se r invejada está se em seus assuntos, esquecendo-se da amante
em posiçã o b e m diversa da meni • ninha qu e a adormecida.
mã e enfeitava para sua própri a glória. A criança Nove meses depois, Tália dá à luz a um casal de
rosada, arrumad a co m b ab a d o s e fitas, dev e ser gêmeos, que, auxiliados por duas fadas, são colocados
en v en e na d a , d e v e morrer, par a q u e fique clar o para mamar em seus seios. Certo dia,
q u e agor a s ó restou a jove m cujos atributo s buscando os mamilos da mãe, os bebês começam
n ã o s e endereça m á mãe , mas sim a um príncip e a lhe sugar os dedos, possibilitando que a farpa
en c an ta d o de amo r pela sua imagem . saia de sua unha e da acorde. Tália desperta
Enfim, c o n v é m ressaltar a ligação dess a princes e encontra suas duas pequenas jóias, que chama
a co m a s cores, de s d e a s características co m a s de Sol e Lua, porém ainda não compreende o que
quai s deveri a nascer, at é a s q u e conservo u e m lhe ocorreu. O castelo é um palácio encantado, ela
se u s o n o enfeitiçado. Tant o um a c o m o a outr a sã o a s e seus filhos têm tudo de que precisam, mas nunca
core s c o m as quai s a mã e a pintou , as primeira s encontram ninguém. Quando o rei finalmente se
do desejo da rainha boa , as segu nda s as da inveja da lembra de Tália, comunica que sairá para caçar e volta
madrasta . Seja pel o direito ou pel o inverso , temo s a seu castelo. Feliz em vê-la desperta, se prolonga
o fato de q u e o amo r m at er n o será s e m p r e u m a junto dela por muitos dias, enamorado dela e de
espéci e d e matriz q u e definirá a carta de core s do s seus dois belos filhos. Conta-lhe tudo o que aconteceu
a m or e s q u e o sucederão . e promete que encontrará forma de levá- los
para seu reino.

84
D i a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o C o r s o

O rei está tão enamorad o qu e em


sonho s constantemente chama seus nomes, o que
motiva sua esposa a investigar quem são, desconfiando
que esta seja a razão da longa permanência do rei na
floresta. Quando descobre o segredo de seu
marido, pensa numa maneira de se vingar e se livrar
dessa incômoda rival. Por intermédio de um secretário
do rei, ela envia para Tália uma suposta missiva do
soberano, solici- tando-lhe que confie Sol e Lua a esse
homem, que os levará para junto do pai, pois ele sentia
falta e queria vê-los. Era uma grande cilada
montada pela esposa ciumenta, que pretendia servir os
filhos de seu marido como iguarias para o próprio pai.
As crianças salvam- se graças ao cozinheiro, que
pratica a tradicional substituição de crianças por
caça escondendo-as em sua casa. Enganada, a
malvada diverte-se, acreditando que está enganando
seu marido. Passado um tempo, ela manda buscar
Tália, que obedece prontamente, pensando tratar-se
de um chamado do rei. Para a rival, a rainha tinha
preparado uma fogueira, mas Tália se põe a gritar,
e o rei chega a tempo de alimentar as chamas com a
perversa mulher e o secretario traidor. Saindo de cena a
rainha, Tália se torna a nova esposa do rei, e este é o
final feliz. Neste conto, a ênfase está mais na relação
de Tália com o futuro marido que naquilo que a
adormece.
Já A Bela Adormecida do Bosque, de Perrault, dá
contornos mais precisos para o nascimento da heroína,
assim como compartilha com o conto de Basile
da segunda parte. Como escrevia para a Corte, o
francês deu um lustro moral a essa história, que,
convenhamos, é bem picante . Aqui a
p er s eg u i d o r a da Bela Adormecida não é a
esposa traída, mas sim a sogra. Porém, não
acreditamo s qu e as transformaçõe s produzidas
por Perrault visavam apenas ã maquiagem moralista da
história. Na verdade ele combinou outros elementos
dessas inúmeras partes, semelhantes em tantas
histórias, qu e se articulam para formar os
diferentes contos de fadas.
Em Perrault, a menina foi muito desejada
por seus pais, tanto que quando chegou foi
motivo de grandes comemorações. Numa das festas,
no entanto, acontece a maldição. As fadas foram
convidadas para o batizado, recebendo cada uma
talheres de ouro do rei; elas, por sua vez, ofereceram á
criança dons, como a beleza, a bondade e a graça. Mas
a corte esqueceu de convidar uma fada, tão velha e
isolada que inclusive a julgavam morta. Mesmo
assim ela foi ao evento, mas sente que não foi bem
recebida, por isso amaldiçoa a menina, para que
morra quando tocar num fuso. Por sorte, uma
jovem fada ainda não oferecera à
85

princesinh a se u d o m e uso u e n tã o su a
magia par a ameniza r a maldição : graça s a ela a
mort e se transfor• mo u n u m sécul o d e s o n o .
O rei m a n d a quei ma r a s rocas d o reino .
Mesm o assim, 15 ano s depois , ela encontr a um
a velha ( q u e n ã o sabia d a proibição ) fiando
l i n h o nu m a torr e d o castelo. A menin a pergunta ,
tod a a curiosa, o q u e era aquil o e p e d e par a
experimenta r o instrument o q u e par a ela era
novidade . Mal pego u o fuso, feriu-se e caiu
n u m s o n o centenário . Q u a n d o ficam s a b e n d o d a
tragédia, as fadas encanta m o castelo par a q u e
todos , m e n o s os pais, d u r m a m junto co m a princesa .
Magica- mente , a vegetaçã o em volta faz um a cerca de
espinhos , q u e ningué m co nsegu e ultrapassar.
Ao fim de ce m anos , um príncipe q u e
foi caçar po r aquele s lados encontro u o castelo. Sobre
este castelo havia um a lend a d e q u e era habitad o po r
uma beldad e ador meci d a , par a cujo resgate
estava destinad o u m príncipe. Entrand o n o
castelo sem encontra r n e n h u m obstáculo , poi s a
vegetaçã o espinhos a se afastava só para ele e se
fechava em suas costas, encontro u a prin• cesa .
E n qu a nt o el e a conte mp la v a p a s m o co m su a
beleza, ela despertou , pois havia chegad o o fim de
seu encantament o . Co m o a atração é recíproca, eles
come • ça m um romance . Esse caso cie amo r fica
clandestino po r dois anos , o temp o necessário
para q u e nasça m um casal de filhos, chamado s de
Aurora e Dia. Q u a n d o o pai do príncipe morre ,
ele herda o tron o e assum e publicament e o
relacionamento , para qu e nã o lhe fosse exigido casar
novamente .
Te m p o s depoi s, surge uma guerra, o
rei é obrigad o a partir, de ix a n d o o rein o e
a espos a ao s cuida do s de sua mãe .
Infelizmente, a sogra de Bela Ador me cid a er a
d e s c e n d e n t e d e um a linhage m d e ogro s e
q u e r c o m e r o s netos . Ela o rd e n a matá-los ,
ma s o criad o incum bi d o da tarefa lhes p o u p a
a vida, oferece carn e de caça par a a av ó
canibal e os oculta e m su a casa. Nã o contente ,
aind a m a n d a prepara r u m prat o co m a carn e
da nora , q u e é salva da mes m a forma q u e seu
s filhos. Felizmente , a s tanta s artimanha s par a
enganá-l a vã o d a n d o certo; n o final, o marid
o volta, e a m ã e malvada , surpreendid a em
sua vileza, s e atira n u m p o ç o d e víbora s o n d e
encontr a se u fim. Os irmã o s Grim m n o s
legara m A Bela Adorme•
cida q u e hoj e é a versã o mai s c on h ec i d a dess a
trama . A ênfas e está na relaçã o c o m os pais , o
desej o de ter a filha, su a posterio r maldiçã o
e se u despertar . As aventura s q u e o c o r r e m
a p ó s o desperta r d a jovem , si m p l e s m e n t e
inexiste m n e s s e relato . N o c o n t o , a se q üê n ci
a é c o n h e c i d a p o r t o d o s n ó s : u m casa l rea l
esper a a ns io s a m en t e par a ter u m herdeiro , u
m dia
Fada s n o D i v ã — P s i c a n á l i s e n a s Hi st ó ri a s Infa nti s
e ela me s m a vira

um a r ã a p a r e c e d u r a n t e o b a n h o d a rainh a
e lh e anunci a q u e ela terá urna filha. Dito e
feito, nasc e um a bela me nina . O s reis d ã o um a
g r a n d e festa d e batizad o e convida m t a m b é m as
fadas. C o m o o rei n ã o tinha prato s d e o u r o
par a toda s (s ó tinha 12), u m a ficou d e fora.
Essa fada e x cl uí d a , a d é c i m a terceira, cheg a à
festa m e s m o se m se r convida d a e, na sua fúria,
amaldiço a a menin a par a q u e n ã o viva mais q u e
15 anos . Ao che ga r a essa idade , ela estaria condenad
a a espeta r o d e d o nu m fuso e morrer . Por sorte
, um a da s fadas n ã o havia d a d o o se u d o m
e converte u a mort e e m u m s o n o q u e
imobilizaria a princes a po r ce m anos .
Nessa versão, t o d o o castelo, incluind o seu s pais,
ador mec e junto co m a princes a e começ a a
cresce r uma cerca d e espinheiro s a o redo r d o
castelo, q u e o cobr e inteiramente. Cria-se uma
lend a n o local q u e no tal castelo encanta d o vivia
a Bela Adormecida . E, d e s d e e n t ã o , assi m ficou
s e n d o c h a m a d a . Muito s príncipes tentara m chega r
a o castelo, mas acabava m desistindo de atravessar
o espess o espinheiro . Alguns qu e insistiram acabara
m m or re n d o . Quand o o praz o estava para
acabar, surge u m príncip e q u e n ã o te m m e d o
de atravessar a cerca de espinhos . Na verdade , nã o
precisa fazer grande s esforços, ele é de certa forma
escolhido , pois a o chega r pert o d o espinheiro , este s e
abr e em flores e o deixa facilmente passar. Encontrand o a
beldad e q u e lhe tinha sid o predestinada , el e
fica subitament e apaixo nad o e a beija. Apó s o
beijo t o d o o rein o desperta , e eles se casa m e vivem
felizes até o fim de seu s dias.
O d e s e n h o d o s Estúdio s Disne y traz-no s
um a Bela Adormecid a já nu m viés romântico , poi s
a livra dessa passividad e absoluta . Aqui o s dois
ap ai x o na d o s se escolhe m ante s q u e ela sucumb a
ao feitiço. Nessa versão, ela fica escondida , ao s cuidado
s da s boa s fadas, num a caban a na floresta até os
15 ano s par a estar a salvo da s maldade s da
bruxa . Desd e o c o m e ç o , a malvada é uma
bruxa e n ã o um a fada - um a velha senhor a q u
e havia sid o p r u d e n t e m e n t e excluíd a d a festa,
pois dela nã o s e esperav a nad a d e bo m . Durant e se u
t e m p o d e es c o nd er ij o n a floresta , a pr in ce s a
encontra , po r acaso , o príncipe ; os doi s jovens,
se m sabe r q u e já estava m prometid o s entr e si
pela s sua s famílias, s e apaixonam . Q u a n d o vã o ter
d e cumpri r o desígni o d o s pais, j á s e apropriara m
d o desej o deles , e entã o o final é feliz, poi s t ud o
é conciliado .
Mas Disne y o p e r a a lg u m a s m u d a n ç a s
imp or • tantes: o e n r ed o ganh a are s de Rapunzel , poi s a
brux a trança a Bela Adormecid a n u m castel o
inacessível, os espinheiro s estã o a se u c o m a n d o ,
deparando-se com os criados adormecidos, surpreen•
didos pelo sono mortífero que os condenou
a só despertar junto com a princesa. Dessa forma,
um dragão que impede a passagem do príncipe. Agora o
não só a mulher espera imóvel, como seu mundo
príncipe não encontra um caminho livre, ele tem de vencer
aguarda um novo amo para voltar a girar. A
os espinheiros e matar o dragão, com uma espada
entrega da Bela Adormecida é completa,
mágica fornecida pelas fadas, para chegar à princesa e
nenhuma princesa oferece tanta passividade a um
desencantá-la junto com seu reino. Embora a salvação esteja
homem como ela.
na força e na determinação do homem que escolheu essa
Apreciamos os amados em geral dormindo, não
princesa, ela já o havia explicita• mente escolhido
há mãe que não tenha ataques de ternura ao ver seus
também. Esse desenho animado não exime os heróis dos
anjinhos adormecidos. É extremamente
desígnios do destino, de serem joguetes na luta do bem
sedutora a visão dos rostos corados, os lábios
contra o mal, mas se empenha em ressaltar sua
entreabertos, a respiração tranqüila dos seres
capacidade de determinação, tanto na escolha amorosa
entregues ao sono, sem controle sobre seus
dos jovens quanto na capacidade de luta do príncipe.
corpos, inconscientes da força dessa presença
apaixonada que os possui com os olhos. O filho
e o ser amado adormecidos são perfeitos, são
Uma passividade absoluta possessões inermes, desarmadas, à mercê da nossa
as princesas dos contos de fadas, a Bela idealização.
Adormecida é a mais passiva, a começar por seu No amor, a mulher parece se colocar sempre o
nome. Sua característica principal é a dilema de que será bela enquanto se fingir de morta.
beleza inerte, objeto de cuidado e de con• Ela própria tende a narrar, para si e para os
templação por parte da Corte e do seu príncipe, que vem a outros, uma situação amorosa dando ênfase no
conhecê-la no sono enfeitiçado. Ela compartilha dessa impacto que produziu no outro, no desejo que
sedução passiva com a Branca de Neve e com Tália, que suscitou, mais que daquele sentido por ela. Embora as
cativam seus príncipes nesse estado de mortas. A mulheres modernas possam incluir seu desejo no
Bela Adormecida tem como túmulo o seu paláci o relato do desenlace de
enfeitiçad o . o prí n ci p e ch eg a até ela

86
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o

ama cena de amor, ou seja, dirã o se sentira m interess e


ou não, a movimentação d o s atore s tender á a q u e ela
seduza e ele conquist e . Me s m o q u e e ss e s
p a p é i s amorosos sucumbam a o grand e
q ue sti o na m e n t o q u e vêm sofrendo no s últimos
anos , a q u est ã o da pas • sividade e da atividade
conserv a sua atualidade .
A passividade n ã o se define pela ausênci a
de ação. Uma atitude silenciosa pod e se r
ex tr e m a m en t e ativa, basta, por exemplo , silenciar sobr e
algo em q u e o interlocutor deseja muito um a resposta,
para percebe r quanta atividad e p o d e h a v e r n u m
a a u s ê n c i a cie palavras ou atos. Se algué m diz ao
outr o q u e o am a e este se cala, gerand o do r e angústia no
primeiro , temo s uma s it ua ç ã o e m q u e a m b o s
fora m ativos . A passividade de p en d e d e qu e
algué m s e envolv a e m um evento sem se sentir
necessariament e sua causa . Ou seja, significa sofrer em
sua pesso a açõe s ou desejos que não antecipou , qu e
n ã o s u p ô s q u e p u d e s s e m ocorrer."' Nesse sentido.
Bela Adormecid a foi realment e passiva, ocupo u a
posiçã o paradigmátic a da femini• lidade tradicional,
aquel a que conduzi d a pel o pai é entregue no s
br aç o s d o m a r i d o n a c e r i m ô n i a d e casamento.
O simbolism o dess e gest o é c o m o o de um
objeto, qu e passa de m ã o em m ão , se m ter
um querer que defina sua trajetória.
Não há mulher qu e possa ou queira
plenament e se instalar nesse lugar passivo. Antes de
se deitar no esquife, cuidará dos detalhes do cenário,
aco mpa nhan d o com o canto do olh o cada moviment o do
príncipe. Mas essa história dá conta de um resto infantil qu
e se imiscui na gênese da sexualidade feminina: a
importância de ser desejada pelo pai. Não há melho r
resposta para o desejo de ser desejado qu e o fato de ser
escolhido q ua n d o nã o tínhamos intenção de seduzir. As
histórias de amo r mais românticas trazem seguidament e
relatos em q u e um a mulher é surpreendid a pel o
desej o d e u m h o m e m quando estava ocupad a co
m outra coisa, distraída em seu cotidiano nada sedutor.
Nada, então, confirmará mais que somos interessantes
para um outr o do qu e sermo s fisgados p el o
interess e d e s t e a n t e s q u e q u a l q u e r reciprocidade
se esboçasse. Assim, um a menin a gostaria de perceber o
impacto de seus encanto s sobre o pai sem que tivesse de
passar pel o constrangimento de seduzi- lo, ou de entrar
em qualque r disputa co m a bruxa da sua mãe. Dessa
forma, a passividade passa a fazer parte da cena
erótica humana , mais enquant o um a fantasia qu e
uma posição propriamen t e dita. É també m
en q ua n t o fantasia qu e a passividade assumiu lugar
privilegiado na erótica feminina, traduzindo-se n u m
intenso desejo de ser desejada, arrebatada e possuída se
m ter de fazer nada para provocar a cena.
87
Existe um a passage m q u e p o d e da r um
a idéia d o q u an t o ess a passividad e te m d e
ativa. Num a da s v e r s õ e s d o s i r m ã o s Gri mm ,
a Bela A d o r m e c i d a é cham ad a d e Rosa da s
Urzes, e m referência à s flores d o e s pe s s o
espinheiro . Tant o n o s Grim m q u a n t o e m
Perrault, ess e espinheir o impedi a a passage m de
muitos interessados , ma s q u a n d o chego u o
escolhido , ele s e abr e c o m facilidade. Aquil o
q u e espinhar a tanto s e q u e impedi a o acess o à
princesa , agor a se ach a abert o c o m o um corredor .
É difícil n ã o pensa r tais espinho s c o m o um a
proteçã o d a princes a q u e s e escondi a a o t oqu e
e ao olhar, as descriçõe s enfatizam q u e a cerca
cobria t o d o o castelo. Ou seja. só q u a n d o ela
quiser, o c a mi n h o estará franquead o par a q u e o
outr o o faça ativamente. Portanto , é ativa na
decisã o de abrir o flanco, deixar-se penetrar .
C o m o existe m tanta s histórias q u e alertam
sobr e o s perigo s oriundo s do s podere s
e x e r c i d o s pela s m u l h e r e s , q u e alia m su a
força à sabedori a e à s frustraçõe s d a
maturi dade , nã o s u r p r e e n d e q u e o s príncipe s
fiquem seduzido s po r aquela s q u e sã o bela s e
estã o inativas, indefesas. Veremos adiant e o
q ua n t o Cinderel a é diferent e dessa s princesas . Ela
luta par a ir ao baile, invoca co m seu sofrimento
o feitiço q u e a embeleza , e n c o m e n d a o
vestido, assim co m o entra e sai de cen a mostrand o
q u e a se d u çã o é feita de revelar e ocultar
alternadament e .

O sangue necessário
reviravolta da história é feita, c o m o é c o m u
m ness e tipo de relato, po r alguma
transgressão: a Bela Adorm ecid a se pica
p or q u e nã o devia
toca r o fuso. For mai s q u e a proibiçã o
tenh a tid o o objetivo de protegê-la, assim c o m o a
impost a à Branca de Neve, de n ã o abrir a porta
par a estranhos , trata-se d e algum a forma d e
um a o r d e m q u e n ã o é o b ed e ci d a . F.ssas
moci nha s s e s u b m et e m a o perig o porqu e sã o
desobedientes . Elas fazem o qu e nã o devem , ma s um a
maldiçã o anterior é a orige m da interdição, e é
niss o qu e devemo s no s centra r par a
deslinda r a história. A maldição prescrev e algo
q u e o futuro n ã o poder á evitar, c o m o crescer,
ama r e partir.
Um a fada, um a brux a o u ge n er ic a m en t
e um a mulhe r má, n ã o q u e r q u e a princes a
viva mai s d e q ui n z e anos . A o completa r ess a idade
, espetar á o d e d o e m um a roca, sangrar á e
morrerá . Aqui, ma s d e um a forma be m
disfarçada, a história s e aproxim a d a d e Branc
a d e Neve . É u m a substituta malévol a d a
mãe , m o v i d a pel a força d o ó d i o p o r n ã o
te r u m luga r
Fada s n o D i v ã — P s i c a n á l i s e n a s História s Infanti s

reconhecid o , po r ter sid o esquecida , q u e rogar á


88
um a prag a contra a transformaçã o de Bela
Adormecid a em mulher .
N a époc a e m q u e esse s co nt o s faziam part e
d a tradiçã o oral, acreditava-s e mais na eficácia
mágic a da s palavras . Rogar um a prag a er a
r e a l m e n t e u m perig o e , cas o algué m proferiss e
u m a maldição , o objet o da ofens a estav a
fat id ic a m e n t e expost o e necessitav a d e u m
contr a feitiço. Nós no s afastamos d e s s e
funcionamento , ma s seguimo s acreditand o
inconscie nte men t e q u e , s e algué m no s q u e r mal,
isso p o d e , de algum a maneira , no s afetar. As
praga s e o m a u- ol h a d o aind a fazem a s sua s vítimas.
Vind o e n tã o de um a fada, os pais de Bela
Ad orm ecid a ti n h a m todo s o s motivo s para s e
alarma r co m a maldição .
A roca era um objet o ab s ol ut a m en t e indispensá •
vel d o cotidian o da s mulhere s ; de p oi s d e
cozinhar , tece r era a o c u p a ç ã o feminina po r
excelência . Vários sã o o s conto s e m q u e at é
m e s m o o s reis escol he m p o r esposa s boa s
fiandeiras.1 A s m ul h er e s fora m a s primeiras
artesãs, inicialmente da cerâmic a e d e p o i s d a
tecelagem ; do mina r ess e ofício era própri o d a con •
diçã o feminina. O fato é q u e o rei n ã o que r sabe
r de nad a q u e tenh a a ver co m fiação e tent a
protege r su a filha d o inevitável, q u e i m a n d o toda s a s
roca s d o reino . Mas o destin o nesse s c o nt o s
s e m p r e confirm a sua força: um a única roca
esquecid a num a remo t a torr e qu al q u e r é
suficiente, a menin a a encontr a e, mara • vilhada,
aproxima-s e d o fuso, c u m p ri nd o -s e a pre • visão .
A princes a cai n u m s o n o profun do .
Ante s de tudo , est e é um cont o
sobr e a inexorabilidad e d o destino . Existe um a
fatalidade q u e vai acontece r sejam quai s forem a s
p r e c a u ç õ e s toma • das . Mas, ante s d e pensa r e m
pessimism o fatalista, c o n v é m conjectura r a respeit
o do q u e é m e s m o o inevitável. É inevitável
sangrar . Ser mulhe r é con • viver co m
sangrament o s incontornávei s : o primeir o é a
menarca , seguid a da s regras mensais ; e o segundo , par a
as q u e co meça m a ter vida sexual , é o decorrent e d o
ro m p i m en t o d o hímen . O at o d e s e s p e r a d o d o s
pais d a Bela Adormecid a p o d e ser visto c o m o
um a tentativa d e evitar a menarca , o u melhor ,
t o d o ess e derra ma ment o d e sangu e qu e lhes arrebatar á
a criança e fará dela um a mulher . A menarc a
marca , design a o fim de um a era o n d e a mã e é
a mai s bel a entr e as mulheres , e o pai é soberan o
no coraçã o da filha, nã o h á pais qu e abra m m ã o dessa
admiraçã o d e b o m grado . A mulhe r qu e surg e dessa s
gota s d e sangu e dedicar á seu s encanto s a o príncip e
q u e virá arrancá-la d e dentr o d o rein o d o pai.
As gotas de sangu e derramada s na roca dão início ao
efeito de um feitiço qu e represent a a irreversibilidade da s
transformaçõe s própria s da puberdade . Não se
determin a o cresciment o do s seios, do s pêlo s pubianos, o
início da s regras . Rebelde s ao livre-arbítrio, eles
escolhe m a hora e a forma de se instalar no corpo da
menina . Ela poderá , no futuro, usar esses atributos para
sedução , ma s esse m o m e nt o nã o cheg a junto. No início, essas
novidade s sã o secretas e incômoda s possessões p o d e m
ser vividas c o m o certa maldição.1 8
Con vé m lembra r q u e a bo a rainh a q u e concebe
Branca de Nev e o faz a partir da contemplaç ã o
de trê s gota s d e sa n g u e de r r a m a d a s n a nev e
quando pico u o d e d o c o m uni a agulh a de costura .
A jovem m ulhe r q u e deva nei a co m u m b e b ê , q u e
u m dia a fará feliz, é a co nti n ua ç ã o dess a história
da menina q u e cresc e e , á s custa s d e s an g u e , s e
torn a mulher. Afinal, haver á r e c o m p e n s a s p e l o s a ngu e
derramado: o príncip e e o filho s o n h a d o .
O ut r o viés interpretati v o p o d e se r t o m a d o : se a
q ue st ã o é evitar o cresciment o e a sexualidade , que
lugar é ess e o n d e n ã o se p o d e coloca r o dedo ?
Essa proibiçã o p o d e evoca r outra , b e m similar, dess a
vez dirigida á atividad e de coloca r o d e d o n u m
lugar proibido , a mastur b ação . Afinal, ess a é u m a
prática q u e a levará a pens a r em coisa s b e m long e do
s pais, isolando-s e e m busc a d e prazere s q u e o s
transcen• de m . D es d e Tália, é s e m p r e o d e d o , alg o
q u e não d e v e toca r o u se r t o c a d o s o b p e n a d e
paralisar a heroína . Por isso, é b e m possíve l q u e ess
e d e d o seja o m e s m o utilizad o par a a e x p l o r a ç ã o
sexua l pelas meni nas . A roca aqui volta a ser um sign o
mais amplo, é t a m b é m um a atividad e solitária, ma nu al ,
q u e impri• me na má q u in a um a certa agitaçã o
rítmica, o que p o d e t a m b é m sugeri r u m paralel o
simbólic o co m a atividad e masturbatória .

A morte necessária
o s ritos d e passagem , e m várias tradições,
existe um a repetiçã o facilmente constatável: a
passage m da existência anterior par a a que
se terá pós-ritual. A vida depoi s do rito
de p a s s a g e m é s e p a r a d a d a a nt er i o r p o r u m a
mort e simbólica e, nã o em pouca s tradições, os
neófitos até g an h a m u m nov o nome , poi s s e trata
m e s m o d e uma nov a existência . Com o sã o
so ci e da d e s c o m m e n o s degrau s etários qu e a nossa, morr e
a criança para emergir o adulto, se m fases intermediárias.
O q u e enten de mo s
D i a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o C o r s o
desperta m

por adolescência, num a sociedad e ritualizada, p o d e


se resumir a uma noite na floresta, a alguma mutilação ou
prova que se tenha de cumprir. Q u a n d o existe um ritual,
não há nuances, o antes e o depoi s nã o deixa m lugar a
dúvidas. Antes da cerimônia o sujeito era criança, depoi s é
adulto e ponto, vai respo nde r pelo s seu s atos
de outra maneira, vai ter outr o estatuto social e sexual,
vai estar pronto para o qu e que r qu e seja
considerad a a vida adulta.
A partir da sociedad e moderna , ficou estabelecid o
que, entre a infância e a vida adulta, haverá o períod o
cada vez mais prolonga d o da adolescência . Essa é
a época de um grand e sono , em que os sujeitos
estã o vivos, mas ausentes do m u n d o ao qual
pertenciam , sendo que ainda nã o despertara m no
temp o qu e será seu próprio futuro. Esses belo s
adormecido s provavel• mente têm contribuído para a
preservaçã o da s histórias de princesas adormecidas, já qu e
elas segue m existindo, agora com novo s significados .
Atual me nte , a a d o • lescência é a época de ser o qu e
todo s cobiçam: jovem, belo e com todas as
possibilidade s em aberto . Para nossa sociedade, o
jovem parec e ter o m u n d o a seu s pés." Mesmo
assim, é válida a metáfora de tal períod o como um
sono. O adolescent e parec e ador mecid o para o mundo
dos adultos, ma s ele n ã o está nad a parado : em seu
retiro, seja o quarto, o grup o ou o hobby , pra• ticará
frenética e entusiasticamente qualque r coisa qu e o
engate, se entregará ao amo r co m o nunca , dedicará a
seus amigo s mai s t e m p o d o q u e n u n c a ,
o d i a r á ferozmente a todo s os q u e del e discordam.
Portanto, fica estranho dizer qu e essas criaturas
dor me m .
O longo s o n o da Bela Adormecida , ess e
retiro da vida pública, garante q u e ela de algum a forma
morra para sua família e renasç a par a o exercício
da sexua • lidade, num temp o diferente d a q ue l e
vivido po r seu s pais. É interessant e le m b r a r q u
e a s d u a s v e r s õ e s clássicas, de Perrault e do s irmão
s Grimm , apresenta m diferenças importante s relativas
a ess e tem a da mort e e do renascimento.
Na narrativa de Perrault, a jove m é deixad a
em seu adormecid o castelo em com pan hi a da
criadagem , enquanto seu s pais, tristes pel a perda ,
parte m par a viver seu tempo , cuida r da vida e do
reino . Q u a n d o ela desperta, a époc a é outra, seu s
pais n ã o existe m mais, o rei do lugar m u d o u e n ã o
pertenc e à sua família. A história prossegu e alé m do
desperta r da princesa : ela casa co m se u príncip e
e te m doi s filhos, ficando essa relação po r doi s
an o s na clandestinidade .
Escrita mais d e u m sécul o depois , a versã o
d o s irmãos Grimm, q u e foi utilizada pelo s Estúdios
Disney, conta qu e os pais a d o r m e c e m c o m a filha e
Outror a o desperta r

c o m ela par a o c as a m e nt o e a felicidade 89


eterna . A história d e Perrault d á mais es p a ç o para
interpretaçõe s e seria interessant e p e ns a r p o r
q u e p e r m a n e c e u a versã o resumida .
A tendênci a natural é qu e pais e
filhos vivam t e m p o s diferentes . O s filhos
nunc a c o m p r e e n d e r ã o c o m o er a o a m b i e n t e
q u e a bri g o u a infância e a adolescênci a do s
pais; e estes, po r sua vez, em muito s caso s p o u c o
saberã o d o t e m p o d e maturidad e d o s filhos,
afetado s pela s limitações da velhice ou varridos d e
sua s vidas pela morte . C o m o n a história d e Perrault,
n ã o há concomitânci a na vida de pais e
filhos, há alternância, substituição. De alguma
forma, pais e filhos s e perde m mutuamente ,
habita m t e m p o s distintos . Q u a n d o un s acordam ,
outro s já partiram. Normalmente , o filh o l e m b r a
d o qu e g o s t a ri a d e te r di t o , o u
pe r gu nt a d o ao s pais, a pe n a s depoi s q u e este s
j á s e foram . A c o m u n i c a ç ã o entr e pai s e
filhos s e m p r e p a de c e dess e d e se n co nt r o
temporal .
Além disso, é ilusório pensa r q u e os pais
entre • ga m d e b o m gra d o se u filho â vida
amorosa , abrind o m ã o d a q ue l e q u e nasce u c o m
o seu objet o d e desejo. As aned ota s sobr e os
sogros , principalment e sobr e a sogra, sã o
esclarecedoras . Uma vez assumid a publica• me nt e
um a relação , aind a h á q u e separa r o consort e
d e seu s pais, e m geral d e forma traumática.
A p e r e n i d a d e da versã o resumida , na
qua l os pais despert a m co m a filha, nã o
ficando claro q u e o t e m p o d e maturidad e do s
jovens coincid e co m o d e declíni o do s mais
velhos , diz respeit o à instalação d o
envelhe cim en t o c o m o u m tema tabu . O
perm ane nt e elogi o do s encanto s d a
adolescê nci a n a so ci e da d e c o nt e m p or ân e a ( q u e
preservo u a versã o do s irmãos Grimm ) torna-
no s u m coletiv o se d en t o d e águ a d a fonte
da juventude . Face ao declíni o da fé na
vida etern a e á valorizaçã o da vida de cad a
indivíduo , o praz o de um a existência se revela
curt o para atingir a felicidade e o sucess o
necessários . Não há ser h u m a n o q u e n ã o queira
prorrogação .
Fechar a port a do castelo e pensa r q u e
os pais n ã o estarã o mais lá po r ocasiã o do
desperta r da filha é um a cen a insuportável para os
conte mp orâne o s . Hoje q u e r e m o s viver toda s as
fases co m o maio r grau de juve ntud e possível ,
leia-se, co m isso, co m o maio r gra u d e
distância d a mort e possível . Para o s filhos
t a m b é m é assustador a a idéia de acorda r q u a n d o
seu s pai s j á morreram , é m e lh o r cre r q u e
ele s seguirã o pr o te ge n d o p o r praz o indefinido .
O s estudo s d e história social tê m no s
oferecid o t e ste m u n h o s d e u m cresciment o d a
importânci a d a família nuclea r par a os indivíduos .
Fada s n o D i v ã — P s i c a n á l i s e n a s H is tó ri a s Infanti s
do s pais na maturidad e contribua m para minimizar
essa
junto co m a criadage m do castelo, garantind o se u lugar
social, era um a referência identitária suficiente,
hoje n ã o h á lugar social garantid o par a ninguém , 90
todo s o s referenciais d e identidad e sã o relativos e
p o u c o durá • veis. Nesse contexto , a importânci a
do s familiares na condiçã o d e testemunhas ,
capaze s d e reconh ece r o indivídu o c o m o s e n d o
ele m es m o , apesa r d e sua s transformações, é
necessária. Os pais deve m sobreviver à transformação
da criança em adulto . Isso, porém , nã o invalida
qu e algum tipo d e mort e simbólica ocorr a nessa
transição.

O sono necessário
c o n t o , n a v e r s ã o d e Perrault , t e m
d o i s m o mento s d e adormeciment o , d e
latência. O primeiro dele s é o s o n o da
Bela, q u a n d o
ce m ano s a separa m da criança q u e foi
um dia. O segund o é o períod o de doi s ano s
em q u e a jovem e seu príncipe mantê m o casament o
em segredo . O fato de a relação ficar abrigada, oculta
no castelo já desperto , mas ador mecid o par a o
m u n d o , estend e a ela os benefícios do sono . A
moç a acordo u par a o amo r e para o sexo , mas para
o m u n d o é c o m o se ela ainda dormisse , pois ningué m
sab e deles , representan • d o u m s e gu n d o tipo d e
latência.
O primeir o períod o d e ce m ano s d e
adormeci • m ent o é a part e essencial dess e conto
, q u e n ã o se p e r d e e m nenhu m a versão .
Esse sécul o d e s o n o simboliza aquel e
distanciament o q u e separ a e m doi s te m p o s a
vida de pais e filhos. Em sua separação ,
imposta pel o crescimento , é inevitável a mort e do qu
e fomos un s para os outros .
Q u a n d o s e é adulto , o s pais p o d e m ser
acolhe - dores , n a melho r da s hipóteses , ma s j á
n ã o p o d e m vence r a s batalha s pelo s filhos c o m o
faziam q u a n d o eles era m p e q u e n o s . Ao filho cab e
enterra r a grandez a e o h e r o í s m o q u e , q u a n d o
criança , supunh a n o s progenitores . O s filhos
p o d e m até aind a freqüentar o s pais, ma s possue m u m
m u n d o próprio , q u e transcend e d e tal maneir a a
família d e origem , q u e este s n ã o c o ns e gu e m
c o m p r e e n d e r tod a a dim ensã o d o q u e s e passa na
vida do s mais jovens. As vivências em c o m u m
escasseiam-se , m u d a m n o filho o s referenciais
co m q u e ele interpreta o m u n d o . Muitas d e sua s
cond uta s e crença s serã o pautada s po r identificações e
experiên • cias colhida s e ocorrida s fora da vida
familiar.
É possível qu e um clima de amizad e e a vivacidade
distância, ma s de algum a forma ela aparecerá . A grande exceçã o
para esse afastamento ocorr e q u a n d o há netos pe q ue n o s , q u a n d
o o compartilhament o do s cuidados c o m eles , assi m c o m
o a c o n s t a n t e e v o c a ç ã o da s lembranças infantis, produ z
um a renovada familiaridade, Porém , mais uma vez, é po r
um período . Por mais amoros o qu e seja um vínculo
familiar, q u a n d o o filho começ a a amar, se instala um
estranhament o com seus pais. Q u a n d o isso ocorre, os
pais n ã o se reconhecem mais no s filhos e, nã o raro. acusa m
o parceiro amoroso dest e pelas modificações. Temo s aqui a
morte do filho c o m o p o s s e s s ã o , já q u e n ã o é mai s
u m a criatura totalment e concernid a ao s seu s pais. Co
m o tempo, um mur o nã o de espinhos , mas de
diferenças, se erige entr e as gerações , qu e p o d e ser
co m p e ns a d o com a
permanênci a d e u m afeto mútuo , o u não.2 0
Do lad o do jovem, o r o m pi m e n t o co m a família é
vivido c o m o um a forma de exílio. Um exilado é
algué m q u e vive em outr o lugar po r ter sid o de alguma forma
expulso , banido , da sua terra de origem. Ele po d e ter
en c on tr a d o abrig o no mais bel o e confortável paraís o terreno ,
ma s será inevitavelment e abatid o por um a sauda de ,
resultant e d e sua saída aparentemente involuntária .
O e s pa ç o geográfico q u e se habita na adoles•
cência é típico de um exilado : um lugar q u e sé) existe
p or q u e é fora de outro . J o ve n s encontram-s e na rua,
em lugares públicos , na s casas q u a n d o os adulto s estão
ausentes , enfim, nu m lugar e te m p o q u e n ã o sã o reinos de
ninguém . Assim o jovem providenci a um a forma de
n ã o ser visto. Q u e m n ã o é visto n ã o é interrogado, n ã o é
cobrado , nã o é controlado . Esconder-s e assim é um a da s
formas de passa r dormindo po r ess e período. Para efeitos
d a s oci e da d e , t a m b é m sã o belos
adormecidos , já q u e se trata de sujeitos crescidos, mas qu e
nã o fazem muito além de se prepara r para a vida q u e
está po r vir. E um a fase de ensaio, de treinamento, de
simulação.2 1 Essa latência (o u exílio) social, espécie de
depressã o normal qu e ocorr e nessa época , é causada
justamente po r tud o o qu e os espera . Do lad o de fora
dess e castelo adolescente , a vida adulta espreita como
um a matilha de lobo s famintos, pront a par a cair sobre os
jovens. Esse desafio inclui as decisõe s vocacionais, o
trabalho, as opçróes amorosa s e a parentalidade .
H á u m potencia l d e desperdíc i o d e t e m p o nos
jovens , um a inutilidade necessária , um a abstinência da
s grande s tarefas d a vida, traduzível po r u m sono q u
e p a r e c e e te rn o . Diant e d e t u d o isso, é preciso
dormir, par a postergar, par a esquecer , par a repousar,
par a s e esconder .
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o
para um

Notas
1. BASILE, Giambattista. 'lhe Pentamerone,
traduzido por N. Penzer. A íntegra deste conto pod
e ser lida em wwAv.surlalunefairytales.com. de autoria
de Heidi Anne Heiner, disponível desde 1998.
2. As fadas, tanto estas, quanto as convidadas ao batizado
de Bela Adormecida, nào devem ser compreendidas
como as entendemo s hoje, com o seres
mágicos femininos benévolos. No folclore europeu
"fada" é um nome genérico para inúmeros seres
feéricos, nào necessariamente femininos,
intermediários entre os seres reais e os espíritos.
Podem estar nesse conjunto, por exemplo, os elfos, os
brounies, os duendes. Enfim é uma palavra pouco
precisa e não descreve o caráter desses seres, que
parecem tão suscetíveis em seus humores como
são os humanos. Ora se apresentam como amigos e
doadores, ora pode m roubar, raptar e amaldiçoar.
3. GRIMiVl, Jacob & Wilhelm. Contos cie fadas,
bel o
Horizonte: Villa Rica Editora Reunidas, 1994.
4. Aries nos ilustra esta questão da idade de 7
anos como a do fim da infância, no capítulo
denominado Do despudor à inocência: "A partir
de 1608, esse gênero de brincadeira (jogos eróticos
com suas amas) desaparece: o Delfim se tornara
um homenzinho - atingindo a idade fatídica de 7
anos - e era preciso ensinar-lhe modos e linguagem
decentes". In: ARIES, Philippe. História Social da
Criança e da Família. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1981, p. 127.
5. A beleza da madrasta assemelha-se à do herói
do clássico literário O Retrato de Dorian Gray, de
Oscar Wilde. Nesta história, um rapaz realiza uma
espécie de pacto com o diabo para permanece
r jovem e belo. Graças a isso, um quadro , que
o retratara no auge do viço juvenil, envelhece
em seu lugar. O retrato nào só envelhece, com o
também representa a feiúra de sua alma,
tomada pel o egoísm o e a maldade. Dorian
continua sempr e aparentement e igual, sua
imagem fica congelada naquele instante juvenil,
mas, enquant o isso, seu espírito passa a ser retratado
na pintura e revela em seus traços toda a sua
miséria interior. A madrasta tem esse tipo de
beleza. Que m paga qualquer preç o para
continuar belo e jovem, diria Wilde, não amadurece,
apodrece.
6. Este olhar patern o será mais analisado no
Capítulo
VI, O Pai Incestuoso.
7. Nas fantasias infantis, be m com o em crenças
de vários povos, a ingestão do inimigo serviria
para apropriar-se de suas qualidades. Assim,
1987, p . 148.

antropófago tupinambá, comer um valente


guerreiro inimigo era o reconhecimento de sua
bravura e força, assim com o a vontade de
91
incorporar essas virtudes. Existia a crença qu e
os leprosos comiam o fígado de crianças
para restaurar o seu, pretensamente ,
danificado órgão. Enfim, devorar seria
desejar as qualidades, a madrasta queria era
incorporar essa reconhecida beleza da
princesa.
8. E interessante lembrar qu e essa boa reputação
tenha persistido inclusive em nossos tempos
ecológicos, ond e os caçadores são sempre
(justamente) vistos com o maus, destruidores das
indefesas criaturas da natureza. O caçador com o
herói é um dinossauro, sobrevivente de um
imaginário antigo, já que hoje a civilização é a
grande madrasta, enquant o a natureza encarn a a
profanad a virgem, po r isso toda s as
simpatias das novas gerações estão com a caça.
9. Bettelheim nos faz notar que o espelho mágico
parece às vezes falar com a voz da filha, ou seja,
fala deste momento em que a menina acredita que
sua mãe é a mais bela das mulheres. In
BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos Contos de
Fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p.
246.
10. Esta nã o é. de forma alguma, a explicação
universal para a homossexualidade feminina.
Nesse caso, é apena s a solução para um
impasse, proveniente de uma identificação,
através de um mod o de amar.
11. Consideramos a casa dos anões como um
refúgio transitório e tolerante, onde se gesta o
crescimento da heroína. Por isso,
discordamos da crítica que Bettelheim dirige
ao desenh o animado, ond e diz
(trata-se de uma nota): "Os anões simbolizam
uma forma de existência imatura e pré-
individual qu e Branca de Neve deve transcender.
Por isso. o fato de dar nom e próprio e uma
personalidade individual a cada um - como
fez. Walt Disney no seu filme -, q u a n d o n o
cont o d e fadas todo s são idênticos,
interfere seriamente na compreensã o
inconsciente desse simbolismo: esses aspectos
prejudiciais aos contos de fadas, qu e
aparentemente aumentam o interesse humano,
pode m na verdade destruí-los, pois tornam difícil
captar o significado profundo e correto da
história". In: BETTELHEIM, Bruno. A
Psicanálise dos Contos de Fadas. Rio de
Janeiro: Paz e Terra,
1980. p . 249.
12. FREUD, Sigmund. Novas Conferências
Introdutórias sobre Psicanálise. Conferência
XXXIII: Feminilidade. Obras Completas, vol.
XXII, Rio de Janeiro: Imago,
Fada s n o D i v a - P s i c a n á l i s e n a s Hi st ó ri a s Infa nti s

13- BASILE, Giambattista. Sol, Lua e Tália. Esta história 18. Nas sociedade primitivas, as regras
pod e ser encontrada , inclusive acrescentad a determinavam um período de impureza para a mulher,
d o original em dialeto napolitano, no livro A havia objetos e pessoas qu e ela nã o podia
Princesa que Dormia - Nas Versões dos Irmãos tocar, atividades que nã o devi a fazer. Co m o
Grimm, De Charles Perrauli e de Giambattista passa r do s tempos , a menstruaçã o perde u
Basile. Florianó• polis: Editora Paraula, 1996. seu caráter social, a mulher nã o se retira para
14. PERRAULT. Contos de Perrault. Belo uma cabana na floresta esperando qu e passe, ela
Horizonte : Editora Itatiaia, 1989. a sente com o algo seu e pessoal, algo
15. GRIMM, Jaco b & Wilhem. Contos de Grimm. privado. Sendo qu e hoje resta apena s a TPM,
Belo nesta fronteira entre o fisiológico e o mítico,
Horizonte: Villa Rica, 1994. para lembra r q u e a mulhe r se encontr a
16. Essa compreensã o da atitude passiva se dedu z em estado delicado.
da obra freudiana, particularmente no qu e 19. "Os adultos querem ser adolescentes. Os adolescen•
tange ao tema da sedução, mas uma boa tes ideais têm corpo s qu e reconh ece mo s
sistematização dessa q u e s t ã o , tal qua l como parecidos com os nossos em suas
form ula mo s aqui , p o d e se r e nc o ntr a d a e m formas e seus gozos , prazere s iguais ao s
Je a n Laplanche . Conform e el e nosso s e, ao mesmo tempo , graças ã mágica
(citando Spinoza), "somos passivos quand o se da infância estendida até eles. são ou
faz em nós alguma coisa da qual somos a causa apena deveriam ser felizes numa hipotética suspensã o
s parcialmente". Com o exemplo , este autor das obrigações, das dificuldades e das
cita a diferença entre .ser amamentado, mamar responsabilidades da vida adulta. Eles são
e dar de mamar. Na conjugação passiva de adultos em férias, sem lei. (...) A adolescência torna-
ser amamentado se assim um ideal do s adultos". In: CALLIGARIS,
(diferentemente das posições ativas cie Contardo. A Adolescência. São Paulo: Publifolha,
mamar e dar de mamar), se expressa de tal 2000. p. 69.
forma qu e "faz- se em nós alguma coisa, da 20. Voltaremos a esse tema da relação dos jovens casais
qual somos a causa apena s parcialmente e da com as respectivas famílias e com a
qual buscamo s tornar- nos causa adequada". In: sociedade no Capítulo X.
LAPLANCHE, Jean . Teoria da Sedução
21. Calligaris descrev e a adolescênci a enqua nt o
Generalizada. Port o Alegre: Artes Médicas,
um período de moratória (termo utilizado
1988, p. 90.
originalmente por Erik Erikson) no.s seguintes termos:
17. LévkStrauss nos conta que entre os indígenas norte- "Ele se torna adolescent e quando , apesar de
americanos havia uma correlação entre boa seu corp o e seu espírito estarem prontos para
tecelã e mulher quent e na cama, que m sabe esta a competição, não é reconhecido como adulto.
ligação não pod e ser lembrada nos contos de Aprende que, por volta de mais dez anos,
fada. Afinal, é extraordinário qu e reis busque m boas ficará sob a tutela dos adultos, preparando-se
tecelãs para rainhas. A equivalência entre mitologias para o sexo. o amor e o trabalho, sem produzir,
tão distantes sempre se revela problemática e algo ganhar ou amar; ou entã o produzindo,
arbitrária, mas neste caso acreditamos qu e há ganhand o e amando , só qu e marginalmente".
um paralelo. Ver: LÉVI-STRAUSS, Claude. A In: CALLIGARIS, Contardo. A Adolescência. São
Oleira Ciumenta. São Paulo: Editora Brasiliense, Paulo: Publifolha, 2000, p. 15.
1986.
92
Capítulo VI
O PAI INCESTUOSO

Bicho Peludo, Pele-de-Asno, A Ursa e Capa-de-Junco


A importância do desejo paterno para o amadurecimento sexual da menina
Complexo de Édipo feminino - Construção da sedução feminina -
Restos maternos no amor adulto.

Mas se tudo andasse às mil maravilhas,


O drama em comum
não haveria história para contar, então a rainha
xistem duas histórias adoece. Todos os médicos do reino são
muito semelhantes, Bicho chamados , mas ninguém consegue curá-la e fica
Peludo. nos irmãos Grimm, e claro que a rainha vai morrer em breve. Já no leito
Pele-de-Asno, em Perrault, de morte, com muito esforço, a rainha chama o rei e
provavelmente oriundas de lhe dirige um último pedido: que ele não torne a
fontes anteriores co mu n s . casar-se senão com uma mulher tão linda e virtuosa
Uma desta s qu e contribuiu quanto ela. Uma vez que o rei, cego de amor e de
para a popularização de tais dor, aceita o pedido e jura não vir a tomar outra
narrativas é certamente A Ursa, esposa que não seja melhor do que ela, a rainha fecha
de Giambatistta Basile. os olhos e morre em paz.
Embora seu desfecho se distancie das demais, Evidentemente esse pedido é uma cilada,
razão pela qual trabalharemos esse conto em pois tanto Perrault quanto os irmãos Grimm comentam
separado, o começo é praticamente igual nas três que o verdadeir o objetivo da moribun d a é
histórias: num reino idílico, um rei bem quisto pelo seu nã o ser substituída. Se não tivesse absoluta
povo desposou uma rainha linda e sábia e tudo corre confiança em ser insuperável em seus atributos,
muito bem. A felicidade não pára por aqui, dessa não teria solicitado o juramento do marido.
união resulta uma filha, que é tão bonita e cheia de O que se segue é previsível: o melancólico
predicados como a mãe. rei sofre muito e não aceita as pressões da Corte por
uma
Fada s n o Di v a - P s i c a n á l i s e n a s História s Infa nti s
fuligem no rosto e nas mãos , t o m a n d o um aspect o
feio e repulsivo.
nov a rainha e po r mais filhos par a assegura r o destin o
d o reino . N a tentativa d e dissuadi r seu s
conselheiros , o rei comunic a a promess a q u e
fizera e anunci a q u e só tornará a casar-se co m um a
mulhe r aind a mais bela e virtuosa do q u e fora a esposa .
Seu s súdito s esforçam- s e po r encontra r um a nova
rainha, mas n ã o localizam ningué m em q u e m ele
veja tais qualidades .
Co m o passa r d o tempo , poi s s ó o te m p o aplac a
o luto, o rei faz um a descoberta : a única pesso a
q u e parec e estar à altura da falecida é sua filha,
afinal ela é tã o bela e virtuosa q u a n t o fora a
mãe , t e n d o seu s encanto s acrescido s pel o frescor
d a juventude . Num a atitude q u e assombr a a todo s d o
rein o e especialment e á princesa, o rei revela sua
deter minaç ã o de casar-se co m a própria filha c
imediatament e ped e sua m ã o . Apavorad a e
horrorizad a co m semelha nt e proposta , a princesa
pens a e m c o m o sair dess a enrascada . Ela, a o
contrário do rei. se dá conta da transgressã o incestuos a
q u e seria cometid a cas o a uniã o s e consu mas se .

Bicho Peludo
(SÉJJ^S qui a s versõe s d a história g a n h a m c o n to r n o s
W WS c lif t , r e n tes . Km Bicho Peludo,1 a versã
o do s fijLJf§j!l irmão s Grimm , o cabel o d o u r a d o é
um d o s r e q u i si t o s i m p o r t a n t e s q u e m ã e e
filha
possue m em co mu m , e ess e fetiche era exigid o par a a
substituiçã o d a falecida, alé m da s outra s virtudes .
Nu m e str at a ge m a q u e visa g a n h a r t e m p o
, a princesa - q u e depoi s ve m a ser Bicho Pelud o
— n ã o recusa diretament e a propost a incestuosa ,
ma s tent a evita r o de sa str e , p e d i n d o a o pa i
com o p r e s e n t e vestido s de sl u m b ra nt e s e
impossíveis : u m d o u r a d o c o m o o sol, outr o
pratead o c o m o a lua e o terceiro brilhante com o a
s estrelas. Além disso, que r u m mant o leito d e mil pele s
d e animai s diferentes, "cada espéci e d o teu rein o tem
q u e da r u m p e d a ç o d a su a pel e para tal fim". A
princesa pens a que , co m esse s pe di d o s
impossíveis, o rei vai recua r de su a investida. Mas el
e nã o pens a assim e, se m pestanejar, vai
realizand o os capricho s dela um a um, co m a
press a de q u e m te m u m desejo preme nt e a
satisfazer. Q u a n d o finalmente todo s txs mimo s foram
concedido s , o pai decreto u q u e a bod a seria no dia
seguinte .
Para a princesa , só resta e nt ã o fugir. Para isso, se
ocult a s o b o m a n t o d e pele s q u e g a n h o u ,
da í s e originand o o n o m e q u e d á titulo a o conto ; leva
consig o o s três vestidos deslumbrante s (guardado s nu m a
casca de coco ) e alguma s jóias; e aind a pass a
A jove m acab a s e n d o encontrad a p o r caçadores d e
u m outr o rei q u e a descobre m entocada , dormindo no o c o
de um a árvore , e acredita m tratar-se de um e s t r a n h o
anim al . Q u a n d o c o nst at a m q u e era uma mulher,
po r comiseração , o monarc a faz co m qu e ela seja levad a
ao paláci o par a ajudar na s tarefas mais sujas e
pesadas .
Bicho Pelud o te m e nt ã o seu s dia s d e Cinderela, é
obrigad a a fazer as tarefas mais degradadas , vive
c o m o um a serva em outra Corte. Até q u e certo
dia acontec e u m baile n o palácio , e Bich o Pelud o
pede par a ir espia r a festa. O cozinheiro , se u chefe, consente
q u e ela d ê um a espiada , ma s q u e volt e log o
para termina r de limpar a cozinha . Ciente de q u e tem pouco
te m p o , ela ag e rápido : p õ e o vestid o dotirad o como o sol,
tira a fuligem e vai par a o baile. Q u a n d o chega, pass
a a ser o centr o da festa, e todo s pensa m que
algué m tã o deslumbrant e só p o d e ser filha de um rei. O
rei dess e paláci o foi ao se u e n co nt r o e só dançou co
m ela, mas , terminad a a dança , ela desaparece u tão
espetacularmen t e c o m o surgiu. O rei faz busca s por
todo s o s lados, ma s n ã o c o n se g u e descobri r ne m por
o n d e ela saiu.
Ela já está de volta para sua pel e e, a pedid o do
cozinheiro real, vai prepara r a sopa qu e o rei
tomará depoi s da festa. Com tod o o esmero , preparo u um caldo
delicioso e colocou dentr o del e um do s seu s anéis. O rei gostou
da sopa e ficou intrigado co m o anel. Chamou o cozinheiro,
qu e inicialmente mentiu ter sido ele mesmo que m preparo u
o prato, mas acabou confessando que fora Bicho
Peludo . Esta foi imediatamen t e levada à presença do
rei e nego u q u e tivesse qualque r conhe• cimento de
com o a jóia fora parar no prato dele.
Em outra ocasião , houv e outr a festa no palácio e mais
um a o p or tu ni d a d e par a Bicho Pelud o dar uma fugida
da cozinh a para espia r a festa. Dessa vez, vai co m o
vestid o pratead o c o m o a lua; nova ment e faz sucess o
co m o rei e foge se m deixa r rastros. Tud o se repete ,
ma s nessa ocasiã o deix a cair na sopeir a uma p e q u e n a
roca de o ur o . É precis o u m a terceira festa par a q u e
o rei poss a prepara r um a p e q u e n a cilada: Bicho
Pelud o c o m p ar ec e co m se u vestid o brilhante c o m o a
s estrelas e . e n q u a n t o ele s dançam , se m que ela
p e r c e b a , o rei desliz a u m ane l e m se u dedo .
Q u a n d o s e repet e a situaçã o e m q u e ela é
chamada par a q u e expliqu e a orige m d o carretei d e
o ur o n a sopa , ela se disfarça às pressas , coloc a as
pele s por cima d o su nt u o s o vestido , ma s s e e s q u e c e
d e passar fuligem n o d e d o d o anel .
Pressionando-a , o rei a p u x a p el o br a ç o num
gest o brusc o e a s pele s caem , reveland o a dam a que
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o
Além disso, reparo u no bel o príncipe que , na volta das
caçadas, aparecia na granja real para um a refeição.
se escondia em seu interior. Ele a p e d e imediatament e
em casamento e dessa ve z nad a a i m p e d e de
aceitar.

Pele-de-Asno
orno a outr a p r i n c e s a . P el e - d e - A s n o 2
s e desespera igualment e co m a intençã o d o
pai e corr e e m b us c a d o s c o n s e l h o s
d e su a madrinha, a Fada do s Lilases. É
esta última
quem tem a idéia de pedir ao rei vestidos q u e consider a
impossíveis de sere m confeccionados : um co m a
cor do tempo, outro co m a cor da lua e, po r
último, um que imite o sol. Os pedido s sã o de
fato impossíveis, mas tão deter minad o est á est e
rei qu e força seu s artesãos a executar os
capricho s da princesa . Apesa r do absurdo da
situação, é indisfarçável o e n ca n t o q u e as vestes
incríveis pr o du z e m na jovem.
Quand o ela nã o p o d e mais recuar, a fada
lhe sugere qu e faça u m últim o p e d i d o q u e ela
julga totalmente impossível de ser atendido : p e d e a pel
e de um asno qu e o pai tem em sua estrebaria. Esse asn o
é encantado e, em vez de estrume , ele evacu a
m o e da s de ouro, send o assim a maio r fonte da riquez a
do rei. Mas ele não vacila, m and a sacrificar o precios o
animal, seu desejo pela filha é maior e está dispost o
a paga r qualquer preço. Quand o a princes a
finalmente obté m a pele do asno, sabe que mais nada tem a
pedir, que
não há mais limites, barreiras n e m critérios na vontad e
de seu pai, agora só lhe resta fugir. A sua
madrinh a lhe garante qu e seu s vestido s estarã o
se m p r e à sua disposição, entrega-lhe um a varinh a
mágica e assegur a que eles a seguirão po r baix o da
terra par a o n d e ela for, quando quiser trajá-los é
só bate r co m a varinh a no chão. A princesa peg a
alguma s de sua s jóias, se suja, se cobr e co m a
pel e do asn o sacrificado e foge sem rumo.
Por ond e passa, Pele-de-Asn o p e d e trabalho , ma s
ninguém que r algué m tã o repulsiv o em sua casa.
Por fim, consegue trabalhar n u m retirad o sítio, um a
granja real onde tiveram pen a de sua condiçã o e a
deixara m limpar o chiqueiro e levar as ovelha s par a
pastar. Foi numa ocasião de pastorei o que ela se
viu refletida na água e se assusto u c o m su a
terrível aparênci a . Foi como se despertass e de
um transe, lavou-se, gosto u do que viu e a partir de
entã o passo u aproveita r sua s folgas para usa r os
se u s be l o s vestido s e fazer-s e penteados em q u
e entremeav a flores e jóias em seu s cabelos, mas
sem pr e escondid a e m seu quarto .
entre mei a à história, observ a com

Certo dia, ele passeav a a esm o depoi s de 95


come r e foi espiar o q u e se escondi a num a aléia
escura, no fim da qual viu uma porta fechada.
A curiosidade o levou a olhar pela fechadura,
e ele n ã o acreditou no qu e seu s olho s
encontraram : ali estava um a princesa tão linda
e tã o ricamente vestida qu e ele supô s se
tratar de um a divindade . A visão lhe causo u tal
respeito qu e ele nã o bateu , ne m derrubo u a
porta c o m o era sua vontade .
Curioso , interroga q u e m habita aq u el e
local e receb e a informaçã o de q u e ali
mora Pele-de-Asno, um a seiva imund a co m a
qual ningué m seque r fala. Enfeitiçado po r ess e
amo r e se m sabe r muit o c o m o lidar co m
isso, o príncip e cai gravement e doente . A
rainha , su a m ã e , n ã o m e d e esforço s par a
curá-lo , oferece-lh e m u n d o s e fundos, ma s el e
só que r q u e a tal Pele-de-Asn o lhe faça um
bolo . Ningué m n e m ao m e n o s s a b e q u e m
ela é, ma s afinal é e n c o n t r a d a n a q u e l e
r e m o t o sítio ; faz o b o l o c o m r e q u i n t e s
culinários e deixa cair dentr o da massa um
delicad o anel d e ouro . Nã o s e sab e s e isso ocorr e
po r descuid o o u intencionalmente , ma s Perrault
observ a q u e n ã o dev e ter sid o po r acaso . O
príncip e encontr a a jóia e determin a q u e s e
casará co m aquel a e m q u e m ela servir.
Evidentement e o anel é experimentad o po r toda s a s
moça s d o rein o para, s ó po r último, servir e m Pele-
de-Asno , qu e o experimen t a e m mei o a
riso s e zombarias .
Pele-de-Asn o n ã o é bob a e, ante s de ser
levada ã presenç a do príncipe , po r baix o da pele
, se trajou à altura da nobrez a da sua origem. Q ua n d
o o anel serviu, ela deixo u cair a pel e e se revelo u
em tod a a plenitud e cie su a beleza . Ness e
m o m e n t o , cheg a a Fada do s Lilases e cont a
à família do noiv o a triste história da afilhada.
Os sogro s log o se e nt er ne c e m co m a virtude d a
princesa , e a s boda s sã o
p r o v i d e n c i a d a s imediatamente . Entre os
convid ado s estava seu pai, q u e havia esquecid o
o episódi o e encontrar a um a bela mulhe r para se
casar. No reencontro , eles se abraçara m e algum a
forma de pe r d ã o torna-s e possível.

O olhar do pai
mbor a a s princesa s acredite m q u e o
pedid o d o s vestido s vis a a
retarda r o a s s é d i o pa terno , n ã o
deix a d e ser curios o qu e , na s
a v e n t u r a s q u e a s e s p e r a m , seja m
essas
mesma s indumentária s a s q u e irão revelar su a
nobrez a e b e l e z a . O s vestido s sã o a s
a r m a s c o m q u e conquistarã o depoi s seu s
príncipes . Perrault , n o s comentário s q u e
Fada s n o D i v ã - P s i c a n á li s e n a s História s Infa n ti s
significam o contrári o d a nobreza , sã o
características d e q u e m te m q u e mete r a
mã o n a massa . Elas ficam assi m
perspicáci a q u e a s m oç a s p e d e m o s vestido s
socialment e desclassificadas, vã o ocu pa r o últim
e s e encanta m co m eles c o m o um a q ua s e
vacilação, afinal o q u e o pai te m a lhes oferece r o lugar
é b e m tentador . Por isso, ao fugir nunc a se
e s q u e c e m de levá-los junto , n ã o s ó o s desejavam, 96
com o ta m b é m precisa m tê-los consig o nas
aventura s q u e seguirão .
O q u e é q u e faz a graça , o e n c a n t o
de um a menina? Nã o há um a respost a simple s par
a isso, ma s o qu e faz uma menin a se m graça é mais
fácil responder . Existe um a constataçã o clínica
simples: u m pai q u e nã o d ed iq u e um olhar par a sua
filha a deix a se m arma s par a o futuro jogo am oros o
fora de casa. Não adiant a espelhar-s e n a mãe ,
m e s m o q u e esta seja c o q ue t e , s e a filha n ã o tiver
um a chanc e de ser vista pel o pai. Se ela n ã o
p ud e r disputa r o pai (na fantasia), n à o há razã
o par a a identificação co m as arma s da s ed u ç ã o
q u e a m ã e v e n h a a lh e oferecer . Esse s
v e s t i d o s representa m o olhar d o pai, olha r q u e
d e fato p o d e ser um tesouro . Sem ele fica
difícil construi r u m a image m desejável para q u e m
que r q u e seja. E m outra s palavras , um a menin a q u
e n ã o s u p o n h a u m olha r patern o desejante nã o
vai quere r se arrumar.
As artes da seduçã o da mulher se aprende m através
de um jogo qu e nã o p o d e ser realizado co m o pai. ma s
p o d e muit o be m ser en saiado . A imaterialidad e
d o vestido ve m depo r a o noss o favor: n o cas o d
e Bicho Peludo , o s vestidos p o d e m ser guardado s
num a casca d e c o c o ; e m Pele-de- Asno . a
madrinh a diss e q u e estariam se mpr e ao dispor,
bastaria usar a varinha. Esses vestidos mágicos são e m
verdad e d o n s imateriais, co m o s quais qualque r menin a
qu e s e supô s amad a po r seu pai - o u po r alguém qu e
oc u p e alguma posiçã o patern a
- se sentirá trajada quand o partir para as
batalhas do amo r e do sexo, cujo c a m p o de marte
sempr e se situa e m algum outr o reino, o n d e o pai
n à o governa .

Sob as peles
outra questão , tã o central q u an t o o tem a do s
vestidos, é o esconderij o na s peles ,
afinal s ã o e s t a s q u e as nomeiam ,
que vêm
emprestar-lhe s cert o a r rústico e da r
n o m e a o s c o n t o s . O q u e s ã o e s s a s peles ?
O q u e ela s escondem ? J á sabemo s q u e elas
e s c o n d e m a belez a d a filha q u e s e abriga d a
cobiç a d o olha r d o pai, ma s po r q u e n ã o s e
content a m c o m a sujeira da s cinzas?3
As cinzas estã o ligadas ao trabalh o e
reservad o às mulheres , poi s a sujeira está sempr e ligada ao
p o b r e e ao desvalorizado . Mas um pass o a mais p o d e
se r d a d o , co n si de ra n d o um a contextualizaçào social q u
e p o d e conte r mais d e um a referência.
Um d o s legado s da religião - q u e já foi mais
do minant e do q u e hoje - foi difundir a crenç a de que o
sex o é algo sujo, e é exata men t e o q u e aflige essas
m o ç a s , e l a s e s t ã o l i d a n d o c o m d e s e j o s sexuais
inomináveis , portant o elas estã o poluídas , impuras.
Desd e ess e p o n t o de vista, as moça s teriam perdido o seu
lugar social em função de sua apro xim açã o como p e ca d o do
incesto . Na verdade , elas n ã o fizeram nada de errado , ma s
o seu s pais explicitara m um desejo q u e lhes dizia
respeito , e isso é o suficiente par a torná- las part e d o pecado
.
Dess a forma, a n o br e z a fica associad a a uma
posiçã o mais alta no sentid o mora l e a pobreza, à
perd a da virtude. A viagem q u e elas iniciam, rumo à
r e t o m a d a e a o r e c o n h e c i m e n t o d e su a condição
aristocrática , p o d e se r vista c o m o um a espéci e de
penitência , c o m o um trech o de abstinênci a capaz de
angaria r o perdão .
O nobr e era identificado pela sua educação, pela
incorporação de uma série de limites no contato corporal, do
respeito às regras de etiqueta na alimentação, na
indumentária e no convívio. Por mais que , aos nossos
olho s contemporâneo s , a vida n u m castelo medieval
possa no s parece r um chiqueiro promíscu o e selvagem,
estamo s falando da etiqueta possível e adequad a a cada tempo .
O camponês , o trabalhador, ficava reduzido à necessidade:
comia porqu e tinha fome; vestia-se porque tinha frio; enfim, vivia
de uma forma rude . O nobre faria tud o isso po r prazer ou
obrigação social e da forma mais complicada possível.
Ao sair de se u rein o desprovid a s da nobreza de sua
origem , reencontram-s e co m um a dimensã o mais primitiva
de se u ser, perdida s da e d u c a ç ã o qu e re• cebe ra m
em casa c o m o se tivesse m desaprendido . Se pensarmo s qu e
o s prazere s era m supostam ent e restritos ao s nobres , fica fácil
c o m p r e e n d e r po r q u e essas moças se privam ta m b é m dessa s
prerrogativas . Livres de sua condiçã o nobre , poderia m viver
també m long e de toda tentação .
A riqueza da indumentária, a beleza qu e mobiliza a
paixão, só será novament e revelada para os olhos e o desejo de
outr o homem , de outr o reino e escolhido por elas. Este terá de
ser suficientemente nobr e para perceber as sutilezas qu e sinalizam
a nobrez a oculta. Trata-se de um a retomada; para pode r ser
novament e desejada, ela deverá encontrar, em outr o reino,
algué m qu e seja capaz de vê-la co m o mesm o encantament o do s
olhos do pai.
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o

O homem que substituirá seu pai a livrará dele, Paradoxalment e , o disfarce de pele s ex p õ e o qu e
mas será, de certa forma, seu equivalente. mai s s e oculta, s e p u d e r m o s pensa r a s pele s
S ó partind o de s s a premiss a é qu e c o m o s u bst it u t o d e s s e s p êl o s . Afinal es s e é
p o d e m o s entender por q u e a s histórias d e o jog o d a s p r i n c e s a s : a l t e r n a d a m e n t e oc ult a r
princesa s sã o tã o condescendentes co m o pai, n ã o e revelar . Elas m o s t r a m o q u e suscitar á o
imp ortand o o q ua n t o este as fez sofrer. Q u a n d o d e s e j o e, a seguir , o es co n d e m . S ó serã o vistas
pecaram , as mãe s má s ou substitutas morreram so b q u a n d o e q u an t o quiserem . Ter control e sobr e o
tortura, mas , q u a n d o se trata do pai, tudo termina n u m limite de entreg a ao seu parceir o a m o ro s o é muit
grand e b an q ue t e de perdão . A deduçã o q u e s e o important e par a um a jovem, poi s ela s ó
i m p õ e é q u e a l g u m t i p o d e reconciliação com deixará q u e ele tenh a acess o a o tant o q u e ela
o pai é necessária. É precis o algu m acordo para qu e suport a compartilhar. Nada estranh o entá o q u e
se possa transferir o amo r q u e o pai e a filha elas a n d e m coberta s e s imb olica men t e n u a s a o
tinham entr e si par a outr o h o m e m . No fim, ele m e s m o t e m p o , na s pele s e em pêlo . É diss o qu e se
deve comparece r para entregá-la ao herdeir o dess e afeto constrói a sensualida d e da s mulheres .
inaugural. Aind a a s p e l e s n o s le v a m a o u tr a
As peles, ante s de nosso s tempo s linh a cie raciocínio, algo tev e d e morre r para
ecológicos , receberam um lugar especial, justamente po r q u e a s heroína s ganha sse m sua s peles ; n o cas o
seu pape l diferencial entre os nobre s e os d e Bicho Peludo , u m se m -n ú m e r o d e animais; e
cam pon eses . E certo que os primitivos as usavam contra m Pele-de-Asno , o animal mais valioso do reino .
os rigores do inverno, mas elas terminaram associada s Esses fatos as ligam, de certa forma, a um a
ao s mais abastados . Além de convenientes pela morte , afinal elas porta m esse s animai s morto s e
quantidad e de calor qu e poderiam guardar, elas m seu s n o m e s e e m seu s corpos , ma s qua l
tinham um charm e a mais, era m troféus de caça. Pele-de- mort e está em jogo? Possivelment e a mort e da infância.
Asno e Bicho Pelud o carregam em seus disfarces peles Elas sae m de casa, já q u e n ã o há mais um
muito valiosas. lugar de filha e é o m o m e n t o de partir.
Um casaco feito co m amostra s de pele s de todo s Fazend o um a com paração , apesa r d e n ã o
os animais do rein o faz da filha a verdadeir a haver regra s gerai s n o s rituai s d e p a s s a g e m
rainha das peles. Por ela todo s os caçadore s do primitivos , p o d e m o s afirmar q u e quas e todo s fazem
rei fizeram uma verdadeira matança. Nossa jovem porta alusã o a um a mort e e a um a ressurreiçã o n u m nov o
suas peles , identificando-se a um a só vez co m a caça, co m estágio, ás veze s co m outr o n o m e (aqu i també m é
o animal que pertence ao rein o do pai, e co m o o caso, embor a só saiba mo s o se u n o m e d a
caçador, qu e ostenta a pele c o m o símbol o de sua fase d e transição) . Esse s conto s p o d e m ser tant o
conquista . Apesa r da aparência rústica q u e os o resto desse s rituais, q ua n t o p o d e m ilustrar
conto s alega m q u e elas assumiram, é plen o de alegoricament e o process o d e saída d a infância
significado q u e Bicho Pel ud o tenha sido encontrada para outr a modalid a d e d e existência.
, entocad a feito um bicho , po r um rei qu e
estava caçan do ; portanto , é c o m o caça que ela foi
levada ao castelo. Vivend o lá, termino u se A importância de ser amada pelo pai
comportando mais c o m o um caçador, atraind o o
seu eleito com sua s p e q u e n a s armadilha s . C o m o este s contos , n ã o se question a a
diz o ditado: um dia é da caça, outr o do castidad e d o s propósito s da s filhas ne m
caçador. s e duvid a d e q u ã o long e elas estã o
As peles dessa s histórias visam a ocultar a riquez a disposta s a chega r e m
de suas vestes, ma s n ã o p o d e m o s ignorar q u e defesa da su a honra . Embor a o rei
existe um contrapont o entr e as pele s e os esteja c e g o e m s u a o b s e s s ã o i n c e s t u o s a , a
vestidos . Estar com elas é estar se m os vestidos , r e l a ç ã o é preservad a d o pecad o pela recusa . Poré m
é estar des-vestidas. No Brasil, diz-se estar nu em h á alg o q u e pa i e filha co m p ar til h a m : o p e d i d
pêlo , ou seja, vestid o apenas co m o s pêlo s d o o d e u m objet o impossível. O s vestido s - co m a
corp o ( c o m o u m caval o q u e é montado em pêlo , se cor d o te m p o , d o sol, d a lua, da s estrelas - , assim
m a sela). A presenç a de peles , talvez alusiv a a c o m o o sacrifício d o asn o d a s feze s d e our o , sã
e s s e s p ê l o s , p o d e t a m b é m esta r r e m e t e n d o a o ressaltado s c o m o p e d i d o s inaceitáveis, tant o
um a marc a muit o i m p o r t a n t e d a maturação
q u a n t o o sex o c o m a própri a filha. A filha p e d e
sexual, o cresciment o de pêlo s pubianos .
ab s ur d o s qu e p en s a nã o poderã o se r
Acompanhados d o a u m e n t o d e volum e d o s seios,
satisfeitos , co m iss o talvez ,
o s pêlos são a marca de início do pudor , é a partir
p e d a g o g i c a m e n t e , dem ons tr e a se u pai q u e h á
dele s que os jovens passa m a ter o q u e esconder .
desejo s impossíveis, o u impagáveis , com o o
sacrifício d o asno .
Fada s n o D i v ã - P s i c a n á l i s e n a s História s Infa n ti s

O diálogo, realizado através de objetos, pa i entr a em jogo : será aquel e cujo amo r
manté m a filha na condiç ã o casta qu e a história pela filha reconhecer á a semelhanç a dest a c o m a
a apresenta , ma s esquec e u m detalhe : po r qu e essas mãe , ou seja, perceber á na filha potencialmen t e um a
princesas usa m co m o argument o precisament e o mulher . Porém, ess e a m o r t a m b é m terá de se r
pedid o d e q u e u m caprich o seu fosse realizado? Não interditado , com o foi aque l e primeir o idílio co m a
seria esse justamente seu problema , ser objeto d e u mãe , ele terá q u e mostrar q u e seu desej o já te m
m caprich o d o pai? Po r qu e responde r na mesm a en d er eç o , par a q u e a filha vá' busca r seu príncip e
moeda? Afinal, se ele que r um objeto de desejo, elas em outra s paragens . Portanto, o primeir o amo r
também . Demonstrar caprichos assim coloca pai e heterossexua l será o do h o m e m que reina sobr e
filha na mesm a situação, nisso se revela qu e nã o é sua vida: papai . Assim, a menin a poderá desejar
apena s o pai qu e quer, a jovem també m deseja algo. q u e ele a am e c o m o am a m a m ã e (o u ainda
Essas princesas acaba m ficando e m dua s posições, mais, de preferência ) e se saber á valiosa.5
tanto ativas, desejand o os vestidos, quant o Dessa forma, o eleme nt o a m or o s o interfere
passivas, com o u m objeto d o desejo paterno . na construçã o da identida d e sexua l da menin a
Ningué m sab e que m é e quant o vale po r si, essa mais do q u e no m en in o . O futuro h o m e n z i n h o
é um a questã o a ser respondi d a em interaçã o co fará o possível par a s e p a r e c e r e m alg o c o m
m a vid a q u e l e v a m o s e c o m a s p e s s o a s o pa i par a u m dia conquista r o am o r de um
co m q u e m convivemos , s e s o m o s alg o é a mulher , par a tant o basta incorpora r traços dest e
necessaria me nt e ao s olho s d e alguém . Num a em sua personalidad e . Já para a menina , se r c o m o a
esquemátic a leitura freudiana, d o qu e s e mãe , identificar-se c o m ela, não basta lh e copia r
c o n v e n c i o n o u c h a m a r d e C o m p l e x o d e Édip o - algun s traços, pass a po r ser amada corn o ela,
os primeiro s amore s vividos em família pela s ma s necessariament e perdend o a primeira
crianças —, sabe mo s q u e a m b o s os sexo s mo dalidad e d e amo r q u e experi mento u n a
principia m sua vida amoros a e m u m co rr es p o nd i d o vida.
amo r co m a mãe . Essa talvez serã a maio r paixã o q u O s garoto s continua m sempr e amand
e se viverá na vida. Para a criança pequ ena , a mã e é a o a s mulheres , d a m ã e par a a namor adinha , nã o h á
própria image m da perfeição, n ã o é à to a q u e as mudan• ças estruturais. A menin a pass a po r um a
mãe s largam ess e tron o c o m tanta dificuldade. nov a gestão: ama r algué m d e outr o sex o q u e o
A partir daí, os caminho s se bifurcam. O m e n i n d a m ã e abala a estrutura q u e o a mo r m at er n o
o partirá e m busc a d e angaria r atributos viris, com o deixo u montada , ela a b a n d o n a a m ã e , m a s
se u pai,4 par a obte r o amo r de outra mulher, poi s é p r o j e t i v a m e n t e se sente a b a n d o n a d a po r ela.
forçad o a desistir daquel a q u e foi se u primeir o Diant e dess a desilusã o amorosa, precisa no v a m en t e
amor, p o r q u e já te m d o n o . A menina , po r sua ser escolhid a c o m o objeto de amor, recebe r a
vez, par a ama r os h o m e n s n ã o contar á c o m o confirmaçã o d e su a capacid a d e d e se r amada par a s e
ca m i n h o traçad o p o r ess e amo r primordial: terá de s a b e r m u l h e r . Par a o s m e n i n o s h á uma
trocar, terá de a p r e n d e r a ama r algué m de outr o renúncia ; par a as meninas , uma perda .
sexo . Se ela tenta r mante r o primeiro esquema , As histórias dessa s princesa s sã o c o m o um drama
a saída será se identificar c o m o pai, o objeto edípic o feminin o explícito, a céu aberto . Elas venceram
de a m o r da mãe , e isso implicará se virilizar. a c o n t e n d a p e l o a m o r d o pa i q u e o u t r a s ,
Para ser mulher, precisará se identificar c o m a mãe com o Cinderela e Branca de Neve, perderam . E
, rivalizar co m ela, o q u e implica em q u e , em mais, o pai afirma q u e mulhe r algum a chegar á ao s seu s
vez d e se r a mad a po r ela. terá d e perdê-la . pés , afinal, a mã e maravilhosa e agor a morta foi nã
O menin o n ã o terá q u e elabora r a diferença entr e o só represen• t a d a , ma s superad a po r um a
ser a m a d o pela mã e e pel o seu futuro objeto de amor : v e r s ã o m e l h o r a d a , rejuvenescida , q u e é a filha.
sua na morad a o u espos a fará, queir a o u n ã o , E m suma , e m b o r a nessa s história s a s
sua s veze s d e m ã e , poi s n o h o m e m o afet o princesas p a r e ç a m contrariad a s n o p a p e l d e
a p e n a s s e transfere, nã o transmuta . A menin a terá escolhida s pelo pai , o simple s fato d e q u e p e ç a
d e m u d a r d e objeto, trocand o a m ã e pel o pai: se m p re se nt e s valiosos d e m o nst r a qu e ela s
quise r ama r e ser a m a d a c o m o a m ã e , a filha c o m p r e e n d e m e s e identificam co m a s vontade s d o
terá d e abdica r d e s s e primeir o vínculo e , aind a po r pai . Aliás, essa s princesa s desejam o desej o d o pai ,
cima, disputa r n o m e s m o território q u e ela. Se ela o exige m até , p e d e m pr o va s deste, q u e r e m sabe
ama r se u pai, e nt ã o a m ã e passará a se r sua r q u ã o l o n g e el e irá e m n o m e desse amor ,
primeira rival. É som ent e aqu i q u e o isso a s torn a b e m c o m pl ac e nte s , po rt an t o amo•
ro sa m e n t e implicadas .
D i a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o C o r s o

Um tesouro nas entranhas


ele-de-Asno foge vestida com a pele do tão
cuidado animal, o asno das fezes de
ouro; assim fazendo, termina por se
identificar totalmente com esse objeto.
Sob a sujeira
que recobre o corpo dessas jovens, assim como nos
dejetos do animal mágico, se esconde algo
valioso. Em ambos os casos, as aparências enganam. O
burro seria o menos garboso do estábulo, mas é o
preferido. Fezes são para jogar fora, mas essas são um
tesouro. Pele-de-Asno e Bicho Peludo são como esse
animal: vão vestidas nessa pele aparentemente feia,
cobertas de sujeira, ocupar-se das mais nojentas
tarefas do castelo, mas sob uma aparência rude
começam, tal qual o sacrificado asno, a defecar seus
tesouros.
As fezes de ouro são um notório resto
infantil. Para um bebê, seu cocô tem valor, ele o guarda
consigo tanto quanto puder, às vezes o retém como um
tesouro, experimenta o prazer de sua expulsão e o
contempla como parte desprendida de si. Não é sem um
emotivo adeus que ele suporta suas fezes serem
despejadas e desaparecerem na água da privada. Além
disso, o bebê pensa que é defecado e ignora a
existência da vagiria, mas não acreditamos que
signifique para ele nenhum demérito ocupar o lugar de
um cocô. For isso, Freud estabeleceu uma certa
equivalência na fantasia infantil entre pênis-fezes-bebês.
Pênis é uma parte do corpo com que uns
nascem dotados e outros não, metade das pessoas
têm e as outras não. Por isso é um elemento que
representa bem a alternância da presença e da
ausência; fezes são esse tesouro que todos fabricamos e
perdemos. Já os bebês são também um
conteúdo valioso do ventre da mãe que, por sorte,
ninguém joga na privada, mas que sempre acaba saindo.
O asno vale por todos esses significados. Ele não é
desejável em si, como seria um belo cavalo,
mas por seus dejetos, tornando-se apto a
representar os valores que o bebê e as fezes podem
ter e ser. Ainda na leitura freudiana, a tríade bebê-
fezes-pênis é de certa forma equivalente. Relativos ao
corpo, são todos elementos valiosos, condenados a
serem perdidos ou presentes só para alguns. Esses
tesouros corporais são os mais aptos a representar o
que a menina gostaria de receber do pai como prova
de amor, aliás como as meninas dessas histórias, que
fizeram suas exigências de presentes valiosos.
O recurso a tais simbologias freudianas ajuda a
nos familiarizar com os aparentes absurdos
dessas histórias da tradição. Aliás, em matéria de sem
sentido, a psicanálise descobriu que as crianças têm
muito a
99
no s ensinar. Por mai s q u e no s esforcemo s e m
mapea r alguma s fantasias, elas serã o pálidas
caricaturas, mero s es q ue m a s aproximativo s d e su a
com pree nsã o bizarra do m u n d o . Já a literatura
em sua versão ancestral, a narrativa da tradição
oral, oferece um acervo escato- lógic o e
fantástico q u e parec e coisa do Chapeleir o
Maluco, ma s q u e cu m p r e um a função qu e
ningué m precisa explicar, bast a co m isso p od e r
jogar. Artistas e crianças têm liberdad e d e tocar e m
ponto s nevrálgicos d o inconscient e co m a
liberdad e do s q u e nã o sabem, n ã o quere m , ne m
d e v e m sabe r o q u e fazem. O cont o folclórico
revela o q u e há de infantil na arte e de
artístico na infância. Histórias mais rude s c o m o
essas deixa m particularment e visível tal cone xão .
Aind a s o b r e o a s n o , p o d e m o s dize r
q u e u m rastreament o de seu simbolism o ve m
a corrobora r a hipótes e desta dupl a face: humildad
e e trabalh o versus exuberânci a sedutora . O asn o
é animal de carga, de trabalh o pe s ad o . Além
disso, carrego u Jesu s cjuando este entro u em
Jerusalém , ficando assim ligado à idéia de
humildad e e servidão . Q ua n t o â sua
sensualidade , temo s mais elementos : era oferend a
a Príapo, antig o d e u s ligado â fertilidade; na
índia, é símbol o da falta de castidade ; era a
cavalgadur a de Dionísio; na Idad e Média, era
us a d o c o m o image m do praze r carnal; e aind a
havia um antig o costum e jurídico de fazer as
mulhere s infiéis n o casament o cavalgarem u m
burro .

Entre o erótico e o traumático


ssas histórias reproduz e m o núcle o do dram
a edípic o d a menina , ma s tud o aparec
e co m os pólo s invertidos: "não sou eu qu e
o quero , é ele q u e me quer'". A mã
e morta sai de
cen a par a facilitar a trama, ma s de um a forma ou
outra, essa é a história de toda s as meninas ,
cab e a elas da r cont a d o q u e elas s u p õ e m q u e
o pai queir a delas .
A morte de uma mã e jovem é um
problema. Já qu e as meninas se acreditam na reserva, a
mã e é a garantia de qu e elas nã o vão precisar jogar
de fato. O desejo de afastar a mã e da cena pod e ser
um pesadel o para algumas meninas, pois deixaria o
caminh o livre para esse amo r impossível. Esse
amo r do e pel o pai é útil enquant o um exercício de
hipótese, gerador do s atributos mágicos qu e a menin a
levará para construir seus encanto s de mulher
- com o os vestidos qu e Bicho Pelud o e Pele-
de-Asno levaram consigo. Porém, o sentimento
será traumático se o pai se dispuser a atuá-lo e
consumá-lo, tomand o a filha com o objeto de desejo
sexual. Desejar ser desejada nã o redund a n a vontad
e d e ser consumida.6
Fadas no Divã — Psicanálise nas Histórias Infantis

É traumático quando um adulto faz uma criança para que a filha possa fantasiar em paz sem temor de
viver algo que ela não tem como compreender, como o ser abusada. Bicho Peludo e Pele-de-Asno não foram
assédio sexual. Quando abusada, por mais que em certos abusadas, nem são jovens traumatizadas. Elas apenas
casos a prática possa até lhe causar um certo prazer, ela representam o fio de navalha pelo qual
terminará por se sentir privada de toda a caminha a construção da identidade de uma
identidade, reduzida a uma coisa. Abusar é confrontar a mulher.
criança com algo muito maior do que ela possa elaborar.
O assédio sexual do adulto sobre uma
criança materializa algo que, na mente infantil, não
passa de um conglomerado confuso de hipóteses,
Pistas douradas
imagens, fantasias e sensações. Esse caos só se redenção dessas jovens disfarçadas
definirá numa prática erótica que possa ser passa pela conquista de um príncipe, e, para
compartilhada com outros, quando a infância acabar e isso, elas têm seus instrumentos. Bicho
os pais já não forem mais os personagens principais da Peludo
vida. A estruturação de um desejo sexual é um foge de casa levando consigo, além de seus
processo demorado e paralelo ao crescimento. Isso vestidos, três objetos de ouro (um anel, um
ocorre assim não só para que o incesto seja evitado, fuso e uma roca) que ela colocará dentro da
mas também porque, para se desejar algo, é sopa de seu príncipe, como uma pista. Pele-
preciso sentir alguma falta. Buscar algo que não se de-Asno também entrega seus tesouros dessa
tem depende de se ter claro que se é alguém forma, colocando o delicado anel de ouro dentro
separad o dos outros, possuidor de uma do bolo. Ambas as prin• cesas se movimentam nessa
identidade e de carências. mistura entre o nojento - o sujo e excluído de seu
A criança pequena ainda tenta se iludir, pensando papel de servas imundas -, alternado com a
que possui todos os atributos necessários para ser amada, revelação de um tesouro interior - representado
portanto pretende ser e ter tudo de que precisa. R claro pelas jóias surpreendentes que brotam de dentro
que isso é uma ilusão, e, graças às inúmeras ocasiões do alimento.
em que se sente inadequadamente amada, ela encontra O sexo é como o tesouro do burro das fezes de
forças para se afastar da família e construir urna ouro, ocupa um território cloacal, a ponto de as crianças
vida própria. Um adulto, ou mesmo um jovem, já p equ en a s ( e muitos adulto s qu an d o
compreende que está só, carente do amor de que fantasiam) confundirem e misturarem as funções
necessita, por isso, fará o possível para conquistá-lo. É excretórias com a satisfação sexual. Ao vestir a
só aí que o desejo sexual vem para dar forma, para fantasia de pele, a princesa Pele-de-Asno se
enfeixar toda essa falta: ele funciona como uma caracteriza como o maior dos tesouros do pai.
espécie de parâmetro que organiza as carências. É como o ser monstruoso (o bicho feio que
Antes de ter vivido esse processo de separação, que defeca ouro) qu e ela se apresenta inicialmente
vai dando forma ao seu desejo, a criança não pode ao seu príncipe, para só bem depois assumir
tê-lo da mesma forma estruturada e sintética do adulto, a identidade daquela de quem ele se ena•
nem pode lhe ser imposta. A sexua• lidade deve ser morou. A ligação entre as duas identiciades, a da suja
vivida de acordo com as fantasias e os desejos que o serviçal e a da dama nobre, é feita pelas jóias, são elas
sujeito pode ou não assumir. que, embutidas na sopa ou no bolo, dão a pista.
Essas histórias relatam de forma privilegiada o longo Os disfarces, as várias trocas de identidade,
percurso que separa a inicial vontade de ser desejada (o são chaves para a compreensão desses contos.
voto de ter um lugar entre as mulheres) do momento Em seus reinos de origem, primeiro eram amadas
final, em que é possível traduzir isso num desejo próprio. como filhas, depois passaram a ser objeto da cobiça
Entre a menina que fantasia e a mulher que ela será, há erótica do pai. Ambas fugiram fantasiada s com
algumas etapas a cumprir, que não parecem nada fáceis as peles , que simbolizam tanto os tesouros de
de viver. As jovens dessas histórias saem de casa como seus pais, quanto o aspecto animalesco do desejo
meninas e terminam conquistando os seus amados como de que foram objeto; assim caracterizadas ,
jovens mulheres, isso vai ocorrendo na medida em que entrara m e m outr o reino, ocupando o mais sujo
aprendem a administrar as doses de sedução necessárias e desvalorizado dos postos.
para cativar seu príncipe. Nesse novo lugar, longe dos olhos do pai, puderam
A mãe tem de permanecer viva ou ser substituída se fazer desejar à sua moda e ao seu ritmo: permitindo
por outra mulher - real ou onírica - no desejo do pai, que sua beleza aparecesse e se ocultasse alternadamente,
de forma a seduzir o novo soberano de seus corações
e, só por último, revelam sua nobre identidade
por meio de algumas pistas. Aos príncipes, dão uma
imagem

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D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mário Co r s o
vinda s da s m ai s diversa s origens , ma s
nenhuma lhe parec e estar à altura d o jurament o
q u e fizera. Não de m o r o u muit o par a descobri r q u e
que enfeitiça, apaixona . Depois , coberta s de
buscav a
fuligem, elas entregam a pista qu e diz: você dev e buscar o
tesouro que viu e desejou o n d e ele m e n o s parec e estar.
O our o deverá ser desenterrad o da s entranha s do
burro .
Mas o our o aparec e també m em
continuida d e com a comida. O aliment o era de um
valor inestimável para as sociedades q u e dera m origem a
essas narrativas, altamente cobiçad o n u m context o de
fome e miséria.
0 ouro sublinha a importânci a do alimento , po r outr
o lado, cozinhar e alimentar, é coisa de mãe . O
príncip e d e Pele-de-Asno pa de ci a , morri a d e
a m o r e s , ma s nenhum alimento da casa poderi a
salvá-lo, som ent e aquele feito pela mulhe r amada . A
questã o é q u e seu estômago havia m u d a d o de
dona , a atual amad a é o tempero particular, é
ela q u e m vai alimentá-lo daqu i por diante e isso
será um d o s e l e m e n t o s da nov a aliança. Os
príncipe s t a m b é m fizeram seu caminho , embora
resumid o n a história: passara m d o pape l d e
filhos ao de h o m e n s ao afastarem-se da mã e nutridora .

A Ursa
história d e Gia mbatist t a Basile , A
Ursa , possui u m c o m e ç o idêntic o à s dua s
histórias anteriores, ma s o disfarce da s pele
s prové m de um a fonte mágica distinta.
O desenlac e
guarda semelhanças , em bor a saliente mais a
neces • sidade de aceitação da nor a pel a sogra.
Essa história nos é providencial par a ilustrar po r
q u e foi ta m b é m como cozinheiras q u e as joven s se
insinuara m a seu s amados. Elas revela m q u e n ã o
s ó d o lad o d a mulhe r há transições a fazer, o
h o m e m te m de ser tirado de sua própria mãe , e
ela s terã o de prova r se u valor também nesse
território.
O começ o é o mesmo : um rei apaixonad o
perd e sua incomparável esposa, e ela faz o fatídico pedid
o de que ele só torne a se casar com alguém ainda mais
perfeita do que ela. O rei desespera-se, pois sab e
qu e precisa providenciar para o reino um herdeiro,
e "a natureza, que fez sua amada Nardella, jogou o
mold e fora", e co m ele a capacidade de ama r de
seu coração . Da uniã o restou Preziosa, urna moça
tão bela quant o a mãe.
Desafiados a enco ntra r um a substitut a par
a o soberano , s e u s c o n s e l h e i r o s p r o v i d e n c i a
m u m a proclamaçã o q u e c o n v o c a m u l h e r e s d
e todo s o s lugares d o mund o a s e
ca n di da ta r e m a o pa p e l d e rainha. Por long o
te m p o , el e examin a longa s filas de beldade s
101
long e o q u e já tinh a em casa, q u e su a filha
Preziosa era "formada n o m e s m o mold e d e sua
mãe" .
Q u a n d o o rei revel a su a intençã o d e
tomá-la c o m o esposa , Preziosa literalmente arranca o s
próprios cabelos, tal seu desespero . Mas, em seu auxílio,
aparece um a velh a senhora , sua confident e ( q u e
pel o jeito era um a fada), a qua l lhe oferece um
d o m mágico qu e a ajudará a se safar dess e terrível
destino . A velha mulhe r deu-l h e u m p e d a ç o d e
madeira , q u e , a o mordê-lo, Preziosa se
transformaria imediatament e em um a ursa. Grande s
festas foram organizada s e, no moment o
em qu e o rei anunci a para a Corte suas
intenções de casa r co m a própri a filha,
Preziosa providenci a sua transformação num a
grand e ursa, cujo porte selvagem ac ab a c o m a
festa, poi s todo s foge m apavorados .
Aproveitand o a confusão, ela se interna na floresta mais
próxima, ficando lá até qu e um dia é
encontrad a po r um príncipe cjue caçava po r ali. A grand
e ursa aproxima- se do jovem d a n d o sinais de
simpatia, balançand o o rab o c o m o um cachorrinh
o e deixando-s e acariciar. O príncipe leva o
simpático animal para casa, ordena nd o q u e fosse
deixad o viver no s jardins do castelo.
Certo dia, q u a n d o estava só no castelo, o príncipe
se aproxim a da janela par a olha r a ursa e,
em se u lugar, encontr a um a bela jovem p e n t e a n d o
seu s longo s c a b e l o s d o u r a d o s , p o r q u e m fica
i m e d i a t a m e n t e apaixon ad o . Q u a n d o Preziosa descobr
e qu e está send o observada , mord e imediatament e o
pedaç o de madeira, transformando-s e nova m ent e e
m ursa.
O príncip e sucumb e e m profund a
melancoli a e , na s sua s febres , lamentav a
"minh a ursa, minh a ursa". Ele era filho únic o d e um
a m ã e muit o dedicada , q u e já n ã o sabia o q u e
fazer par a curá-lo , entã o ela p e n s o u q u e a ursa
h ou v es s e feito algu m mal a ele e m a n d o u matá-
la. O s criados , q u e compartilhava m co m o príncip e
a afeiçã o pel o gr an d e animal , apena s a
soltara m n a floresta, m e n t i n d o par a a rainh
a q u e havia m c u m p r i d o sua s o r d e n s . Q u a n d o
o príncip e fica s a b e n d o da s o r d e n s d a m ã e ,
levant a furioso d e se u leito, disp ost o a castigar
se ve ra m e n t e q u e m havia t i r a d o a vi d a d e su a
urs a e t e r m i n a o b t e n d o a confissã o d e q u e ela
havia sid o levad a par a a floresta. Mes m o d o e n t e ,
m o n t a e m se u caval o e n ã o descans a e n q u a n t o nã
o a traz d e volta. N o castelo , tranca-s e c o m a
urs a n o se u quart o e , po r lo n g o t e m p o , fica
inutilment e t e n t a n d o con vencê-l a a a b a n d o n a r
su a forma animal . Suplicou, fez promessas , tant o
imploro u at é q u e , totalment e enfraquecid o ,
de rr ot a d o p e l o se u fracasso, caiu novament e
enfer mo .
A m ã e desespera -s e mai s aind a e, dispost a a
fazer qualque r coisa, aceita o bizarro p e d i d o d o
filho d e s ó
Fada s n o D i v ã — P si c a ná li s e n a s História s Infanti s
m o d o d e amar.

ser atendid o pel a ursa. Ele exigia q u e so m e n t e


ela fizesse sua comida , arrumass e seu s lençóis e lh e
dess e o s r e m é d i o s . Me s m o q u e tais tarefa s
p a r e c e s s e m impossíveis d e ser executad a s po r u m
animal, a m ã e permitiu e ficou o bs er v a n d o a
delicadez a e a c o m p e • tência co m qu e a ursa as
executava . Maravilhada, ela admite qu e esse animal
vale seu pes o em our o e afirma compreende r po r qu e
seu filho se afeiçoa tanto a ela. Vendo qu e o
coraçã o da mã e amolecera, ele p e d e sua permissã o
para ser beijado pela ursa, ame açand o que , se nã o
fosse concedida , ele morreria. Pressionada, a mã e
aceita e, durant e o beijo, Preziosa deixa cair a
madeira, desfazendo-se o feitiço. O qu e se segu e
é o mesm o fim das outras jovens: ela conta sua triste
história, é recebida na Corte pelos sogros, q u e
celebra m sua beleza e virtude, e se casa co m o
príncipe .
O q u e mais su r pr ee n d e na história é o
fato de Preziosa n ã o usar suas artes d e s e d u ç ã o co m a
mes m a perícia d e sua s similares posteriores . Ela
pa re c e te r sid o surpreendid a po r acas o n a forma
h u m a n a , t u d o indica q u e ela teria p er m a ne ci d o
assi m par a s e m pr e , se n ã o fosse o e m p e n h o do
príncip e e a autorizaçã o da futura sogra para q u e
ela mostrass e seu s dotes . É claro q u e ela n ã o
penteav a seu s cabelo s d o u r a d o s s o b a janela d o
príncip e po r acaso , ma s su a atitud e está long e da
s o us a d a s peripécia s d e Bicho P el u d o e Pele-de-
Asno .
Depoi s de fornece r a pista pela qua l o
príncip e deduzi u ser ela um a donzel a enfeitiçada,
Preziosa n ã o cede u a seu s encanto s enquant o nã o s e
provo u capa z d e cuida r d o jovem co m o zel o d e
um a mãe . S e a s princesa s anterior e s passara m
pel a experiênci a d e supera r a própria mã e no
território do s atrativos, esta, po r su a vez, tev e d e
rivalizar c o m ela n o c a m p o d o s cuidado s
maternos .
Pelo jeito esse nov o desafio correspond e
muito mais à s necessidades d o rapaz d o qu e à s dela, pois
aqui temos mais uma inversão. Embora pareça ser ela
que m recusa apresentar-se na forma human a até qu e
a velha mulher admita qu e a ursa é tão bo a don a de casa
quant o ela, pode mo s pensar qu e ocorre o oposto .
De fato, o príncipe só beijou sua amad a ursa quan d o
esta mostrou q u e podi a ser tã o prendad a quant o
sua mãe . O q u e pareceria resistência dela, talvez fosse
um capricho dele, já qu e ne m sempr e as coisas contê m
a lógica mostrada na superfície. Portanto, deixar
suas pistas em sopa s e bolos saborosos faz parte
necessária da seduçã o també m para as outras princesas,
porqu e seus homen s nã o quere m apena s um a mulhe r para
desejar, eles també m espera m ser cuidados po r elas,
pois seu coração mud a de dona , mas ne m sempr e d o
histórias de princesas que conservam sua popularidade,
a ênfase é dada na luta contra a mãe, para que a filha
possa desprender-s e dela. Esta é uma
Capa-de-Junco, quase uma Cinderela operação necessária para que a mãe deixe a
or q u e esse s três co ntos , tã o ricos filha crescer e permita ser superada nas questões
e elaborados, que se prestam para femininas. Pareceria que, da parte do pai. não
ilustrar questõe s cruciais da vicia das haveria conflito, bastaria com que ele mantivesse
meninas, a bruxa ocupada. Como se vê. com essas histórias,
ocupam hoje um lugar menor e estão quase não é bem assim, há assuntos a tratar com o pai, ele
abandonados? A resposta não é difícil, já que é visível que tem um papel ativo na construção da identidade
seu conteúdo não é suportável para os nossos feminina.
contemporâneos. O século XX foi um século bem Existe uma variante dessas histórias que assinala
psicológico , no qua l se concentr o u a quais restos delas permaneceram disponíveis
extrema preocupação pelo caráter ideológico, nos nossos dias. É um conto cuja trama alude
pedagógico e psicológico de tudo que se difundiu, constante• me n t e a essa s qu e es t a m o s
particularmente no que se disponibilizava às crianças. Em an a l i s a n d o , mas combinado com elementos
BichoPeludo, Pele-de-Asno e A Ursa, a fantasia é comuns a outras histórias da tradição. O que chama a
muito explícita: temos Lima trama edípica exposta à atenção é que parte dessa história tem elementos
luz do sol, ela quase fala por si mesma, o que a deixa comuns com Cinderela, assim como outras
com um aspecto bem constrangedor . Não há evocam as qu e analisamos anterior• mente. É
seque r os disfarces clássicos, por exemplo, o padrasto como se fosse uma história de ligação entre as
ou um tio ocultando o caráter paterno daquele que semelhant e s à Bicho Peludo e à
faz a sedução, algo que livrasse a cara do pai. consagrada Cinderela. Esse conto chama-se
A unidade dessas três histórias está na diferença da Capa-de-Junco8 e nos chega a partir da compilação
posição do pai. Colocado na maioria dos contos do folclorista inglês Joseph Jakobs. Entre 1890 e
clássicos que sobreviveram como fraco, morto ou sem voz 1894, Jakobs publicou seus English Fairy Tales
ativa, aqui ele é chamado a proclamar seu amor ao e os Celtic Fairy Tales, considerados como o
extremo e escolher a filha. Na maior parte das cânone britânico para os contos da tradição.

102
Diana Lichtenstein Corso e Mário Corso
e à

A história tem um início diferente, essa


jovem hão foge, ela é expulsa de casa pelo pai. Esse
homem tem três filhas e resolve lhes perguntar o
quanto elas o amam, as duas mais velhas respondem o
previsível, que o amam como a vida, como o
mundo todo. A caçula (sempre a caçula,9 nos
contos) responde de forma mais enigmática, diz:
"o amo tanto quanto a carne fresca ama o sal".
Furioso por não compreender tal afirmação, o pai
expulsa a filha ingrata que não teria sabido
expressar seu amor por ele.
Esse conto, menos conhecido em sua
forma folclórica, pelo menos em parte, ganhou
perenidade ao ser transformad o em tragédi a
po r William Shakespeare, na peça O Rei Lear. O
princípio das duas histórias é idêntico, pois Cordélia,
a filha mais nova de Lear, nega-se a adular o
pai como suas irmãs interesseiras. Ela dá à
pergunta do pai uma resposta que privilegia a
sinceridade e a pureza dos senti• mentos,10 mas
o rei interpreta mal. Desde o desterro em diante, as
histórias divergem; o rei Lear paga muito caro pela sua
injustiça, enquanto, no conto de fadas, o desenlace é
mais fantástico e feliz.
Expulsa de casa, Capa-de-Junco passa por
um charco e ali junta suficiente quantidade do
vegetal que a nomeia para fazer uma capa com
capuz, de forma a cobri-la da cabeça aos pés e ocultar
suas belas roupas. Como vemos, outra vez o disfarce dá
o nome à personagem e ao conto. Assim vestida, ou
melhor. oculta, ela se dirige às terras vizinhas
onde pede trabalho e obtém o mais degradado da
casa. Algum tempo depois, é organizado um baile, e os
empregados têm permissão para assistir às danças. Ela
declara que está muito cansada e vai dormir. Porém,
escondida de todos, retira a capa, se lava e vai ao
baile.
Óbvio que o filho do patrão da casa em que ela
trabalha não tem olhos para outra senão para a
bela dama que nossa heroína se revelou; a noite inteira
dança com ela, que foge ao final, retornando ao seu
disfarce de junco. Quando todos voltam, ela finge
acordar e escuta o relato das próprias proezas feitos
pelos servos da casa. A sucessão dos acontecimentos
repete-se por três noites, sendo que, na última, antes que
ela fuja. ele lhe dá um anel e diz que morrerá de tristeza
se não for correspondido. Ela novamente se vai e o
jovem começa de fato a morrer de amores pela dama
misteriosa.
Em casa providenciam um mingau para o doente,
que ela pede para fazer, deixando no fundo da tigela o
delicado anel que ele lhe dera. O jovem encontra a jóia,
o disfarce cai e a bela dama aparece, sendo pedida em
casamento pel o patrão. Toda a redondez a é
convidada, inclusive seu pai, mas a jovem ped
cozinheira que, no jantar do casamento, a carne
seja preparada sem sal. Uma vez à mesa, o
pai prova o prato, nào consegue comê-lo e
se põ e a chorar, declarando que finalmente
entende o que a filha, que à essa altura já devia
estar morta, havia lhe dito. Nesse mo men t o ,
Capa-de-Junc o abraç a o pai, qu e a
reconhece, e se perdoam mutuamente.
Num primeiro momento, o que
modifica essa história em relação às anteriores é a
inversão: não é o pai que ama a filha, ele exige ser
amado por ela. Esse pedido do pai se repete em
outros contos, muitas vezes, associado à distribuição
da herança. O filho mais jovem, sempre o mais
devoto ao pai, leva a pior, por não ser hipócrita
como seus irmãos mais velhos, e sempre se revela
o de coração mais puro ou o mais bem-sucedido. De
qualquer maneira, justamente porque o pai
é incapaz de reconhecer o valor desse filho, ele é
fadado à aventura, vai buscar em outros reinos
o valor que lhe é negado no seu. Em casa é o
menor, no mundo provará que pode ser grande,
em todos os sentidos da palavra.
Assim, a nossa jovem é lançada à rua, mas
convém analisar a resposta que ela dá ao pai,
já que é bem enigmática. A jovem nào
responde com a abstração das irmãs, lança
mão a uma metáfora doméstica, situando o
pai como o tempero que torna a carne
apetitosa. Nisso, a história se inscreve na
seqüência das que estávamos estudando: uma
história de amor entre pai e filha, em que ele é o
que lhe dá os atributos que a tornarão sedutora.
Talvez nào haja metáfora mais rude e, ao
mesmo tempo, precisa do que falávamos antes
do que dizer que a filha é a carne e o pai o
tempero. Porém, dessa vez, é ele que se incumbe de
interditar o amor, negando- se a compreender o jogo
de palavras. Manda-a procurar seu tempero lá fora.
Mas, em verdade, ela já o tinha, sob a forma das
ricas vestes, e o caso agora é como administrar
isso fora da família. Como as suas
companheiras peludas, terá de se disfarçar e ir
mostrando aos poucos, tanto quanto suporta deixar
ver.
É aqui qu e se estabelec e a
con ex ã o com Cinderela: há o elemento dos três
bailes, da fuga e da pista que elas dão ao homem
amado ou que ele lhes dá, sejam os objetos de
ouro, o anel ou o sapatinho. Cinderela também
tem em comum com este conto o fato de ser a
preterida entre as filhas, a destinada ao trabalho
sujo.
Normalmente , os conto s tradicionais
são o resultado de diversas combinatórias
com elementos em comum. Eles são tais quais os
diversos jogos que podem ser jogados com o
mesmo baralho, por isso, a
Fada s n o D i v ã — P s i c a n á l i s e n a s História s Infa nti s

repetiçã o nã o su r pr ee n d e . O q u e estamo s Notas


situand o ness e m o m e n t o é um a espéci e d e cont o
d e transiçã o entr e aquele s q u e hoje n ã o sã o tã 1. GRIMM, Jaco b & Wilhelm. Contos de Fadas. Belo
o p o p u l a r e s e o c on t o q u e vence u a barreira Horizonte: Villa Rica Editora Reunidas, 1994.
d o t e m p o , o u seja, a Cinderela. Por isso, vale a 2. PERRAULT, Charles . Contos de Perrault.
pen a situar o q u e se mantev e aind a em Capa-de-Junco Belo
e o q u e m e s m o nel e se perde u . Horizonte: Itatiaia. 1989.
3. Temos um exemplo num conto russo no qual o que
faz o pai afastar-se é a pele. "No conto Pele-de-Porco,
Jogo de esconde-esconde o pai se apaixona pela filha e deseja desposá-la: 'Ela
foi até o cemitério chorar carinhosamente
q u e cham a a atençã o nessa s histórias sobre o túmulo da mãe'. Disse-lhe a mãe: 'Pede
é o fato de os outro s só enxergare m o que ele te compre um vestido recamado de
q u e as heroína s q u e r e m q u e seja visto. estrelas'. A jovem obedece, mas o pai está cada
Enquant o vez mais apaixonado. A mãe aconselha então a
estã o ocultas so b se u disfarce d e pel e filha a pedir um vestido ond e estejam
representados o sol e a lua. 'Mãe. meu pai continua
o u junco , ningué m perceb e sua beleza . No
a me amar cada vez mais!' Dessa vez a mãe lhe diz
ba n q ue t e de bodas , o própri o pai d e Capa-de-Junc
para pedir qu e a cubram com uma pele de porco :
o n ã o not a q u e a noiva é sua filha, até que ela
O pai cuspi u de nojo e expulsou-a'
o abraça . Da mesm a forma, as irmãs de
(Afanasiev 161 a/ 290)" In: PROPP,
Cinderela tam bé m sã o incapaze s de percebe r qu e
Vladimir. As Raízes Históricas do Conto
a mus a do baile é a própri a irmã, embor a a Maravilhoso. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p.
tenha m observad o a noite toda . Dessa forma, partind o de 174
uma casa o n d e o amo r entr e pai e filha se torna
4. Nos ocuparemo s mais desse processo no
insuportável, cai-se nu m outr o registro o n d e a Capítulo
jovem n ã o está mais exposta , ela é mestra d o s disfarces e VIII, sobre o conto de João e o Pé-de-Feijào.
p o d e se iniciar na arte feminina de oculta r e mostrar, 5. JERUSALINSKY discute essa questão em termos mais
para atiçar o desejo. complexos , ressaltando a importância do
O dramátic o é q ua n d o , na vida real, as desejo paterno para o sucesso da separação com a
menina s nã o conse gue m deixa r d e ser u m "Bicho mãe: "(a menina) acaba de se separar do corpo
Peludo" . O u seja, par a fugirem de um supost o materno e se instalar no lugar U'm, que vai
olha r p at er n o , e c o n s e q ü e n t e m e n t e d e u m desej buscar no olhar do Outro algo que a reconheça. F.
o incestuos o , certas mulhere s opta m po r enfear-se. ali qu e seu destino se bifurca. Será qu e vai ser
A forma mais c o m u m de esconder-se , e um do s sintoma no olhar da mãe ou no olhar do pai? Para qu e
disfarces mais difíceis de tirar, parec e ser a ela possa buscá-lo no olhar do pai, o pai tem que ser
gordura . Sob análise, descobrimo s q u e certas desejante. Isto é, tem que se mostrar obsceno. A
mulhere s assim s e ma ntê m obesa s po r um a dificuldade obscenidade do pai é essencial para a construção do
extrem a e m suporta r u m olhar desejante , agora já sintoma feminino, numa posição tal que o desejo
generalizado , ou seja, vind o de qualq ue r um . Mas o da menina - o desejo feminino - escape a uma
vestir-se p o d e ser tam bé m fonte de litígio: certas identificação absoluta com o fantasma materno" . In:
adolescente s sã o mestre s n u m a estética q u e desagrad e JERUSALINSKY, Alfredo. O Desejo Paterno.
ao s pais o u q u e sirva c o m o disfarce. Outras , Porto Alegre: Correio da APPOA. Ne 79 - ano
emb or a raras, prefere m a sujeira e o fedor corn o um IX.
eleme nt o qu e a s torn e desinteressantes , o q u e 6. A psicanalista Eliana Calligaris resgata uma
parec e ser um a defesa mais masculina. impor• tante contribuição de Helene Deutsch e
De qualquer maneira, o qu e se perdeu , o ressalta a dupla face dessa figura paterna,
grand e esquecid o das histórias tradicionais qu e cuja sedução se revela necessária e perigosa:
noss o temp o herdou , é, co m certeza, o amo r "Helene Deutsch fez uma distinção: a menina
confesso entre pai e filha. Em Cinderela, já nada dele pequen a tem dois pais - o pai do dia, co m o qual
restou. Realmente, esse deve ser um assunto be m sua relação é consciente e sublinhada por uma
cabeludo... ou peludo , se no s permitem o trocadilho. troca amorosa; e o pai da noite, qu e acarreta
ameaças de crueldade e sedução, e
'que mobiliza sonho s angustiantes' (...) Seduzir
o
D i a n a I i c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Co r s o

pai significa despertar o pai da noite: ele reconhecerá


que o corpo da menina é feminino, pois foi ele qu e o
castrou. Só qu e esse pai é chamad o a rasgar
a foto da entrega sem limites, ou seja, a foto qu e
no olhar da mãe cativa a menina num a eterna pequen
a comunhão. O pai, em suma, é também o
salvador. Por um lado é cruel e sedutor (o pai da
noite), por outro, afastou d o corp o d a
menin a o s flashes ofuscantes da mãe". In:
CALLIGARIS, Eliana dos Reis. Prostituição: o
eterno feminino. Dissertaçã o de Mestrado em
Psicologia Clínica. PUC/São Paulo 1996.
7. BASILE, Giambatistta. El cuenlo de los cuentus
(El
Pentamerón). Barcelona, José J. de Olarieta (ed.), 1992.
8. JAKOBS, Joseph . Contos de Fadas Ingleses.
São
Paulo: Landy, 2002.
9. Acreditamos que a persistente escolha do filho caçula
para encenar o drama da separação do s pais e
cio crescimento necessário deve-se ao fato de
qu e se supõe que ele será o último a sair de casa,
a casar. Antigamente, inclusive, existia a regra
de qu e as filhas se casassem por ordem de
nascimento, de tal
forma qu e nenhum a pudess e se casar antes
qu e sua irmã mais velha . Da mesm a forma
co m o o primogênito paga o preço da inexperiência
de seus pais, o caçula fica com o ônu s da resistência
destes de ver a família se dissipar.
10. Estas são as palavras da resposta de Cordélia: "Meu
bo m senhor, tu me geraste, me educaste,
amaste. Retribuo cum prind o me u deve r d e
obedecer-te , honrar-te e amar-te acima de todas
as coisas. Mas para qu e minhas irmãs têm os
maridos se afirmam qu e ama m unicamente a ti?
Creio que , ao me casar, o home m cuja mã o
receber a minha honra deverá levar també m
metad e d o meu amor, do s meu s deveres e
cuidados. Jamais me casarei com o minhas irmãs, para
continuar a amar meu pai - unicamente". Julgando que
sua resposta era movida pela ingratidão e pelo
orgulho, Lear a desterra e deserda, dizendo- l h e :
"tu a v e r d a d e ser á e n t ã o te u d o t e " . In:
SHAKF.SPEARE, William. O Rei Lear. Porto
Alegre: L&PM Editores, 1981.

105
Capítulo VII
A MÃE, A MADRASTA E A MADRINHA

Cinderela e
Cenerentola
Diferentes papéis atribuídos à figura da mãe - Rivalidade fraterna -
Valor da memória dos pais da primeira infância - Sedução - Fetichismo no amor

ertamente Cinderela é um dos do roteiro do desenho animado de Walt Disney (1950)


mais p o pu l ar e s conto s foi retirada da história francesa. Como no
d e fadas, sua estrutura é caso de Branca de Neve e suas similares, outra vez
simples, seu apelo é forte temos uma órfã nas garras de uma madrasta. O
e não ha quem não se personagem do pai é tão irrelevante que, em certas
emocione com esse destino . versões, não fica claro se já morreu ou se não se
Historiadores tê m importa com a filha. Nesse conto, além da madrasta
en co n t r a d o variaçõe s sobre para atazanar a vida de nossa heroína, existem as
essa narrativa em quase todas irmãs que lhe detestam.
as culturas, e sua anti•
guidade é proporcional à sua difusão. Já foi
docu• mentada uma versão chinesa do século IX da A Cinderela italiana
nossa era. Seu contraponto masculino não é
conhecido na nossa tradição ocidental, mas em inderela tem seu ancestral literário
culturas indígenas norte-americanas en co ntr am o s escrito por Giambattista Basile, fazendo
o Ash-Boy, um Cinderelo, com uma estrutura parte do
bastante similar à da faceta feminina. Pentamerone, uma compilação
A versão hoje mais difundida se deve basicamente a publicada em 1634, em dialeto napolitano,
Perrault (1697), seguida em popularidade pela versão dos narrada por várias vozes, ao longo de cinco noites
irmãos Grimm (1812). A maior parte dos elementos — com o mesmo tipo de estrutura narrativa do
Decameron. Basile recolheu histórias populares e,
entre elas, apareceu Cenerentola,'
Fadas no Divã - Psicanálise na s Histórias Infantis

a Cinderela italiana, avó da Borralheira que ainda vive folhas. Em poucos dias a árvore havia crescido, alta
entre nós. "como uma mulher". De seu interior saiu
Cenerentola conta as desventuras de Zezolla, uma fada que lhe perguntou o que ela queria.
a filha de um viúvo, mimada po r ele e Ela respondeu que queria poder sair da casa
po r uma governanta que lhe era muito devota. sem que suas irmãs soubessem. A fada lhe
Passado algum tempo do luto, o pai casou-se ensinou as palavras mágicas que. entre outras, dizia
com uma mulher malvada, que dedicava á enteada para a tamareira ao sair: "dispa- se e vista-me
um péssimo humor. Enquanto isso, Zezolla não rápido"; e, ao voltar, "dispa-me e se vista"
parava de lamentar o quanto desejaria que a (como se a árvore emprestasse as roupas).
governanta fosse sua madrasta, em vez dessa Chegada a temporada de bailes, Zezolla
terrível mulher. Foi essa queixa que oportunizou com• pareceu suntuosamente vestida, transportada por
a Carmosina (a governanta) propor a Zezolla uma luxuosa carruagem, a ponto de polarizar
uma forma de matar a madrasta e depois insistir junto comple• tamente a atenção do rei (que pelo jeito era
ao pai para que a desposasse. A menina fez solteiro). Na saída da festa, o rei colocou um servo
tudo conforme planejaram: deixou cair a tampa para segui- la, mas ela jogou moedas de ouro no
de um baú sobre o pescoç o da madrasta e chão, e ele se distraiu recolhendo-as. Dessa forma,
depoi s convenceu o pai a efetuar novas bodas com conseguiu manter seu mistério. No segundo baile,
Carmosina, a qual havia prometido qu e lhe apresentou-se ainda mais luxuosamente
seria fielmente dedicada. Durante as bodas do pai, paramentada, dançou com o rei, mas voltou a fugir,
Zezolla recebeu a visita de uma pomba que lhe dessa vez, jogando pedras preciosas que tinha
disse: "quando você desejar alguma coisa, mande o preparado para livrar-se do criado, que
pedido para a Pomba das Fadas, na ilha da Sardenha, e novamente a perseguia a mando do rei. Ainda numa
você terá seu anseio instantaneamente atendido". terceira festa, a cena se repetiu, ainda com
Não demorou muito tempo para qu e a mais ostentação. Como o rei estava muito
nova madrasta trouxesse para a família suas determinado a descobrir quem ela era. foi obrigada
seis filhas, mantidas ocultas até então, e Zezolla a fugir correndo e. na pressa, deixou seu tamanco
começasse a ser tratada como criada, vivendo na cair.
cozinha, entre as cinzas da lareira, passand o O rei organizou grandes jantares para
a ser chamad a de Cenerentola. O pai esqueceu-se experi• mentar o tamanco em todas as damas do
da filha, ficando total• mente envolvido com as reino, mas em nenhuma delas serviu um calçado
enteadas, a quem dedicava a mesma atenção de que tão delicado. Desesperado, lançou um pedido aos
antes ela era objeto. seus súditos para que apresentassem todas as
Km certa ocasião, o pai teve de tratar de negócios candidatas possíveis. Em função disso, o pai de
na Sardenha e oportunizou a cada filha que Zezolla lhe comentou que tinha mais uma filha em casa,
pedisse presentes. As seis enteadas fizeram suas mas que ela era tão esfarrapada e suja que não poderia
encomendas de roupas, perfumes e enfeites. sentar-se à mesa real. Mesmo assim o soberano
Dirigindo-se com ar zombeteiro para a própria ordenou que ela fosse trazida e, assim que a viu,
filha - lembrava de todos menos de seu próprio soube que era a moça que ele estava buscando. O
sangue, diz a história -, permitiu- lhe fazer também um conto não relata como ela estava trajada ness a
pedido. Ela respondeu que nada queria, mas pediu que o cas i ã o , pel o jeit o co m seu s andrajo s
levasse suas recomendações à Pomba das Fadas e lhe costumeiros. Assim que ela se sentou para
oferecesse a possibilidade de ela lhe mandar alguma experi• mentar, o pequeno tamanco arremessou-
coisa. Ele comprou todos os mimos solicitados se magica- mente para seu pé, reconhecendo sua
pelas enteadas, mas se esqueceu do pedido da filha. dona. Zezolla foi coroada imediatamente, e ás
Porém, ela havia lançado um feitiço: se ele não a irmãs coube apenas morrerem de inveja e
atendesse, não teria como voltar. O navio em que correrem para casa queixar-se para a mãe da
pretendia regressar não pôde sair do porto. Só então ele injustiça de não terem sido escolhidas.
lembra do pedido da filha e vai providenciá- lo; depoi
s disso , o navio enfim zarpa. Meio a
contragosto, ele trouxe para ela o que as fadas enviaram:
uma muda de tamareira, uma enxada de ouro, um balde A Cinderela francesa
também de ouro e um guardanapo de seda. versão seguinte, numa seqüência cronológica
Zezolla plantou a árvore com os das três mais famosas, é a de
instrumentos que se revelaram mágicos, regava-a Perrault, chamada de Cinderela ou O
e limpava suas Sapatinho de
Vidro..2 A Cinderela francesa só tinha
uma madrasta, que começou a maltratá-la de entrada. Com

108
Di a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o
o é tã o magn ânim a q u an t o a anterior. A
Cinderela 3 a le m ã é mai s p r ó x i m a d e
Zezoll a e d a s
ela vieram dua s filhas, possuidora s do m e s m o péssim o
gênio da mãe. Do pai, Perrault diz a pe n a s q u e
teria repreendido a filha cas o ela se queixass e da
madrasta ,
"porque era sua mulhe r q u e m dav a as or de n s na casa",
em suma, um fraco. Ela trabalhav a de sol a sol, po r é m
se mantinha afável co m todos .
Quando chegou o convite para o baile, a ningué m
ocorreu que ela poderia comparecer, afinal, era
com o uma criada. Após pentea r e arrumar as irmãs co m
esmero, ela se sentou na cozinha a chorar. Foi nesse
moment o que surgiu sua madrinha, um a fada qu e a
obrigou, entre soluços, a confessar seu desejo de ir ao baile.
Com vários passes de mágica, ela providenciou a
carruagem - a partir de uma abóbora, tend o ratos e
lagartos transformados em cavalos, cocheiro e libres - e
os vestidos necessários para fazer de sua chegada um
acontecimento. Mas havia um senão: o encantament o só
durava até a meia-noite. O desejo foi alcançad o e,
mais do q u e isso, sua aparição paralisou a festa.
Ela se torno u o centr o da s atenções do príncip e
solteiro, e o assunt o obrigatóri o nos comentários
do baile. Lá ela dedico u particular atenção às
irmãs, co m q u e m partilhav a as iguarias
oferecidas, se m ser reconhecida . Ao voltar para
casa, sentiu muito praze r em escuta r o relat o
da s irmãs, maravilhadas pela bela desconhecid a , se m
n e m seque r
suspeitar qu e fosse ela.
Na segund a noit e de baile. Cinderela repeti
u a proeza, mas distraiu-se d a n ç a n d o co m o
príncip e e teve de sair c or re n d o q u a n d o soara m
as badalada s das doze horas . Na pressa, deixo u
cair um de seu s sapatinho s d e vidro . N a
poss e dele , o p r í n c i p e determinou-se a
encontra r a amad a misteriosa, poi s ele já estava
ap ai x o na d o po r ela. Procurara m entr e todas as
mulhere s do rein o e em n e n h u m a servia um
calçado tão diminut o e elegante , até chega r à casa
de Cinderela, q u e pedi u para prová-l o também ,
apesa r de que caçoava m dela . Num a ap ot e o s e final,
q u a n d o o calçado serviu, a moç a tirou o outr o
pé de sapat o do bols o e aind a a fada
m a d r i n h a a p a r e c e u par a transformar o s trapo s n o
mais bel o do s vestidos.
A boa Cinderela de Perrault casou-s e co m
seu amado e ainda perdoo u suas irmãs malvadas,
levando- as para o palácio e providenciando-lhes bon s
casamentos.

A Cinderela alemã
próxim a versão , do s irmão s Grimm , nã
o é tã o popular , e su a pe rs o na g e m nã
t u d o s e repetiu , ma s dess a ve z ela

moça s qu e mostrara m su a b el e z a em
m o m e n t o s mágicos , ma s se es c on d er a m em
trapo s e pele s até o m o m e n t o final d a
revelação .
Nest a história , o vín c ul o d a jove m
c o m su a f a l e c i d a m ã e é m u i t o r e s s a l t a d o
: el a s e g u e a s r ecomendaçõ e s dest a n o leito d
e morte , d e ser sempr e bo a a piedosa , e chor a
diariament e em seu túmulo . Q u a n t o a se u
pai, em brev e voltou a se casar co m um a
mulher, mã e d e d u a s filhas, amba s d e bela
apa • rênci a e péssim o coração . A ela s
c o u b e o p a p e l p r e p o n d e r a n t e de es p ez in h a r
a nov a irmã, q u e foi rebaixada , obrigad a a
fazer trabalho s forçado s e a habitar e m mei o
à s cinzas.
Certa ocasião , ante s de partir para um a
viagem, o pai pergunt o u par a as três o q u e
queria m q u e ele trouxess e d e presente . A o
contrári o da s irmãs, q u e solicitaram as riqueza s
costumeiras , ela pedi u ape nas :
" o primeir o galh o d e árvor e q u e bate r e m teu
chapéu , q u a n d o estiveres voltand o para casa".
Q u a n d o recebe u a e n c o m e n d a , um galh o de
aveleira, a jovem planto u a m u d a n o túmul o
d e sua mãe , regando- a co m sua s copiosa s
lágrimas até q u e a mud a s e transformou e m
um a árvore . Freq üente me nt e , q u a n d o ela s e
sentav a à su a sombr a par a reza r e chorar,
em seu s galho s p o u s a \ a u m passarinh o q u e
realizava seu s desejos.
Um dia cheg a um convite para um a
festa q u e duraria três dias, o n d e o príncipe
devia escolher sua noiva. Por dua s vezes, Cinderela
implorou para també m comparecer , mas a
madrasta, a contragosto, disse qu e só permitiria
cas o ela conseguiss e catar os pratos de
lentilhas qu e ela esvaziou entr e as cinzas - o qu e
julgava impossível. Q u a n d o a jovem realizou a
tarefa, graças à ajuda do s passarinhos, a perversa
mulhe r lembrou-a de q u e ela n ã o tinha roup a e entã o
nã o poderi a ir. Q u a n d o elas se foram, Cinderela apelo
u para suas aves mágicas. Curiosamente , foi
obedie nte , poi s é impossível nã o observa r qu e
ela poderi a ter apelad o para essa soluçã o mágica
desd e o começo , mas, através dess e expediente , ela
obtev e a permissã o da madrasta para ir, pois realizou
as tarefas e só nã o p ô d e comparece r po r falta de
roupas . Então, providencian d o as vestes, ela nã o
estaria fazendo nad a d e errado .
Co m o s belo s vestido s em prestad o s ,
co m p ar e • ce u a o baile e obtev e o s favores d o
príncipe , q u e n o fim se ofereceu para acompanhá-l a
até sua casa, curioso po r sabe r q u e m ela era.
Pert o d e casa, ela fugiu del e e pulo u n u m
po mbal . Co m ajuda d o pai d a moça , eles
derrubara m o pom bal , ma s nã o a
encontraram . Ela já correr a par a devolve r o
vestido , q u e deixar a sobr e o tú mul o d a m ã e
par a ser recolhid o pela s aves . N o s e g u n d o baile,
Fadas no Divã — Psicanálise nas Histórias Infantis

se escondeu do príncipe subindo agilmente lhe declara seu amor, e só então ela revela que é a
numa pereira, que novamente foi derrubada, bela dama do baile. Por isso, não convém julgar qual
sem qu e a identidade de Cinderela fosse descoberta. é a melhor versão, acreditamos que o tempo faz uma
A cada vez que ajudava o príncipe, o pai se seleção natural dos aspectos da história adequados a
perguntava se seria sua filha a princesa misteriosa, cada época e. se ela continua sendo contada, é porque
mas nada disse. Na terceira noite, o príncipe em sua essência ainda tem algo a dizer.
preparou uma armadilha: mandara passar piche As versões mais complexas, a italiana e a alemã,
na escadaria, dessa forma um delicado sapato permitem detalhar melhor a força da relação da moça
dourado da fujona ficou preso. Munido da pista, o com sua finada màe, que aparece no derramamento de
príncipe foi buscar sua amada. lágrimas sobre o túmulo e na busca de Zezolla por uma
Mandou experiment a r o sapat o em substituta, que termina sendo a Pomba das
todas , declarando que se casaria com sua dona. Fadas. Também nestas, os mistérios de Cincierela
As irmãs tentaram calçá-lo, mas como era pequeno assumem o ar de uma certa picardia infantil;
demais, a mãe delas cortou o calcanhar de uma subindo em árvores, jogando iscas para distrair o
e o dedo da outra. Conformado, já qe elas criado, as moças vão a baile como mulheres, mas fogem
haviam calçado o sapato, por duas vezes, o príncipe como molecas. O que essas duas histórias oferecem
pôs uma das irmãs sobre seu cavalo, disposto a em relação a Perrault é uma riqueza maior, o
desposá-la. Mais uma vez, os pássaros mágicos que é bem-vindo para nossa análise, enquanto a
ajudaram, avisand o o príncipe de que havia versão francesa é a melhor síntese. Talvez esta versão
sangue no sapatinho. hoje domine a cena justamente pela forma, pois é a
Voltando para a casa do pai de Cincierela, que melhor amarra os elementos da história.
ele perguntem se não haveria outra filha - afinal a Em todas elas, a madrasta parece não
amada sempre desaparecia em seu quintal. O pai invejar diretamente a juventude, a beleza e o bom
disse que só restava uma maltrapilha, mas o caráter de Cincierela, mas deixa claro que não
príncipe exigiu que ela também experimentasse. O suporta a falta desses dons em suas filhas
sapato serviu e o príncipe a reconheceu. Quando legítimas. O castigo é simples, fazer a menina
tentavam assistir ao casamento daquela que tanto trabalhar, com a expectativa de que o próprio
haviam maltratado e que agora adulavam, as duas trabalho haverá de enfeiá-la. O nome da heroína em
irmãs finalmente foram castigadas: as mesmas diversas línguas, que também dá nome ao conto, é
aves qu e tanto auxiliaram Cincierela furaram- sempre o mesmo: uma alusão às cinzas do fogão
lhes os olhos, cond en an d o à cegueira aquela e ao fato de estar junto a ele, de forma que sempre
s qu e só se importava m com a aparência. fica marcado o lugar daquela que trabalha.
Existem outros contos que insistem na idéia
de que a fadiga do trabalho acaba com o
O essencial encanto e a beleza, que as vestes rústicas da
camponesa tornam invisíveis os encantos da princesa,
ara Bettelheim, "A borralheira de Perrault é sem falar da descida na escala social, pois quem
adocicada e de uma bondade insípida e não trabalha não é nobre. Este é então o destino da
tem nenhuma iniciativa (provavelmente heroína, não ser amada em casa e trabalhar feito um
por servo. Porém, tão bom é seu caráter que ela suporta a
essa razão Disney escolheu a versão carga sem pestanejar e não só trabalha muito, como
de Perrault como base de seu relato cinematográfico). trabalha bem. Sua trajetória contém de forma
A maioria das outras borralheiras são mais gente".4 De fato, dramática uma virada clássica nos contos de
comparativamente, parece que Zezolla e a fadas, em que o herói prova no mundo externo uma
grandeza que em casa ninguém via.
Cincierela dos Grimm são mais travessas, precisam plantar
e regar a árvore de onde provém a boa magia e Cincierela dá um colorido forte a
são menos atenciosas com suas algozes. Porém, sofrimentos como o de nào ser amada pelo pai, que a
a história de Perrault sintetiza melhor toda a abandona à mercê da mulher perversa e da dor pela
trama, é um roteiro mais eficiente e perda da màe boa. Trazendo todos esses conflitos
acreditamos qu e não se perde a seqüência para dentro da cena doméstica, essa história
permite uma emparia imediata de qualquer filho
essencial: a boa alma, companheira da beleza,
com ela, já que cada um sempre se sentirá
encontra o devido reconhecimento apesar dos trapos
demasiado injustiçado e exigido, assim com o
qu e a ocultam. A jovem joga um esconde-
pouc o amado . Acreditamos qu e daí provém
esconde com o príncipe e com sua família, seu sucesso. Por isso, não importa se a heroína
que se nega a ver nela algum valor. Ele investiga, a
descobre,
Di a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o
desejáveis, sa b e q u e está na hor a de ser olhad a po r
um h o m e m , e o baile
de Perrault é mais adocicada , já q u e o e nc a nt
o do conto é m esm o su a v oc a çã o par a o
dram alhão .

As filhas prediletas
s irmãs de Cinderela sã o seu avesso, pregui•
çosas, mal-humorada s e orgulhosas . Mes m
o q u a n d o é dito qu e sã o belas (Grimm),
sã o
aparentemen t e se m atrativos, nã o
obstant e detêm o amo r da mã e . O raciocínio óbvi o seria
atribuir essa preferência ao s laços de sangue , mas
isso já nã o salvou outras personagen s da s maldade
s maternas , e, como costumamos constatar, madrasta é
um qualificativo transitório d a mãe . Outr o ca minh o
seria pensa r q u e essas filhas infantilizadas ainda nã o
ameaça m o reinad o d a madrasta, elas n ã o s ã o
aind a mulheres , n ã o h á oposição, são crianças
mimadas , vivend o n o te m p o e m que a mãe ainda era
bo a e foco de admiração .
D e q u a l q u e r m o d o , ess a história engaj a
s e u s leitores num a profund a empati a co m a filha
q u e nã o é preferida n o amo r do s pais. O n d e
houve r irmãos , haverá desigualdad e d e fato o u a
suposiçã o d e q u e ela existe. É raríssimo o cas o
em q u e um g ru p o de irmãos consider e e q u â n i m e
a distribuiçã o do amo r dos pais. N or m a l m e nt e ,
o s filhos o b s e r v a m q u e a preferência do s pais, e
principalment e da mãe , incidirá sobre o filho m e n o s
independente , m e n o s rebeld e aos mimos, mais
exigent e d e atenção . O s filhos q u e mostram maior
interesse pel o m u n d o extern o qu e pelo s assuntos
doméstico s n ã o sã o digno s dess a escolh a po r serem
traidores. Para ama r fora de casa, é precis o ter
diminuído a importânci a do amo r dentro .
As irmãs da borralheir a se deixara m arruma r par a a
festa pela mãe , ma s c o m o c o m p l e m e n t o a su a glória. As
filhas só parecia m bela s ao s olho s matern os , su a
aparência n ã o foi chamativ a par a o príncipe ,
p o r q u e não foi par a el e q u e ela s se enfeitaram . Fora m
par a a festa com o os filhos p e q u e n o s iriam a um
aniversári o infantil. Co m Cinderela , o cas o
er a o u t r o : s e u embelezament o tinh a o e n d e r e ç o
cert o d o olha r d o príncipe e imediatament e se produ
z o efeito desejado . Esse feitiço sobr e o rapa z é descrit o
s e m p r e da mes m a forma: toda s as outra s moça s e
o rest o da festa se apagam, el e s ó tev e olho s
par a su a eleita. Portanto , não s e trata mai s d e
se r escolhid a n o a m o r d a m ã e ou do pai, o alv
o da flecha é o u tr o c or a çã o .
A reaçã o da jove m começ a q u a n d o ela faz a
su a primeira reivindicação : ir a um baile. Sua
vontad e é d e s e coloca r entr e a s m ul he r e s
. Em Cinderela,

é o lugar o n d e isso acontecerá . A madrast a 111


lh e dá várias missõe s impossívei s d e m o d o a
dificultar se u debut e , q u a n d o finalment e ela
ve n c e t od o s esse s desafios , aq u el a igual ment
e n ã o lh e ajuda. É um a recus a a admitir um
lugar diferente par a noss a heroína , para q u e ela
poss a a o m e n o s sonha r co m u m destin o melhor.
Além de ser impedid a de ir, Cinderela terá de s
e dedica r ao s preparativo s d e sua s irmãs par a o
baile. Finalment e cheg a o auxíli o na figura
da fada
madrinha . A madrinh a é a substituta da mã e
na sua falta, o q u e já n o s dá um a pista sobr e se
u significado. Perrault a p e n a s explicita melhor,
personificand o n u m se r m á gi c o aquil o q u e
n o s Grim m e e m Basile é r et r a t a d o d e
form a mai s simbóli c a e espiritual . O
important e é q u e no s três caso s o auxílio é
provenient e d o q u e decanto u d o antigo amo r do s
pais, agora morto, d es e nc ar n ad o , q u e j á n ã o te
m lugar n o m u n d o real da jovem.

Memórias encantadoras
a m o r m at er n o d á um a seguranç a q u e
p o d e se r a p r o v e i t a d a em vár i o s
m o m e n t o s e inclusive, contra t u d o e
contr a todos , no s
m o m e n t o s cruciais. É um a força
oriund a d o fato de q u e um dia fomos amados ,
significamos algo par a alguém, e imbuído s dessa
convicçã o vamo s entã o à luta. O d o m da fada
madrinh a - o m e s m o valend o para suas
similares - na verdad e é simples: restituir alg
o q u e um a filha já teve, q u a n d o era objeto do olha r
m at er n o a pai x o na d o d e q u e o s p e q u e n o s s e
nutrem . S ó u m o l h a r d e s s e calibre , h e r d e i r
o d e s s e amor , possibilitará q u e o encant o seja
realçad o e n ã o cobert o p o r cinza s e roupa s feias.
O q u e fica e m cad a u m d e nó s da força dess e
primeir o amo r matern o será o cern e d o narcisismo
ulterior d o sujeito, aquil o q u e c h a m a m o s
err o ne a m e nt e de auto-estima . Na verdade , é
tant o a força d e um a alter-estima q u e o funda,
q ua n t o reque r um olha r extern o par a ser
reafirmada a cad a tanto . F m geral , a s m ã e s
c o n t e m p l a m s e u s filhos c o m a mesm a paixã o
d o príncip e para Cinderela: eles sem pr e se r ã o o s
mai s b o n i t o s d a festa. Mas se u p o d e r é
temporário , a m ã e log o desapar ece , a o
contrári o d a madrast a q u e a m a n t é m so b o
jug o po r u m períod o mai s longo .
No s contos , madrast a é sinônim o d e m ã e
má, a ela sã o reservado s o s papéi s d a inveja,
d a colocaçã o d e entrave s par a q u e a menin a
s e torn e um a mulhe r
(Cinderela ) o u ainda , e m su a versã o mai s
mortífera, d o ód i o assassin o (Branca d e Neve)
Fadas no Divã — Psicanálise nas Histórias Infantis

temos o contraponto da fada madrinha ou das árvores pinçamos os trechos que nos convêm,
mágicas (quer crescidas no túmulo da mãe, cortamos os discordantes e alteramos alguns fatos e
quer enviadas pelas fadas, estas são erguidas datas.
sobre a memória da mãe perdida). Essas fadas são Na versão de Perrault, a fada madrinha viria era
personagens mais evanescentes, destinados a preservar seu auxílio sempre que, desesperada, a jovem deixasse
o lado bom da mãe, ou seja, a mãe da primeira cair lágrimas denunciadoras da força de seu desejo. A
infância. Porém, enquanto a madrasta é uma fada interroga o motivo de sua tristeza e providencia
personagem real, as fadas ou seus representantes uma ajuda: fazer dela uma princesa, mas por algumas
são figuras interiorizadas, aparecem apenas na horas apenas . De alguma forma, na hora
intimidade da jovem e são um segredo seu.5 de se apresentar para um homem, há uma
Na versão dos Irmãos Grimm, a jovem costumeira- reconciliação com uma dimensão boa da mãe, uma
mente visita e chora sobre o túmulo da mãe possibilidade de se identificar com seus melhores
onde plantou uma a veleira, proveniente do primeiro atributos. Em função desse desejo, a magia
galho de árvore que bateu no chapéu do pai quando materializa-se e oferece os objetos necessários
estava voltando de uma viagem. Foi esse galho, um para que a menina obediente e rústica, agora
símbolo do desejado retorno do pai, que vestida para seduzir, fosse ao baile.
embora vivo, na prática estava perdido, que ela As ajudas benignas nos contos de fadas oferecem
plantou e regou com as lágrimas de seu desamparo. instrumentos, jamais uma solução. A vida
Túmulo, árvore e pássaros mágicos formaram uma raramente transforma alguém em outra coisa, ela
espécie de altar dedicado aos pais da primeira infância, apenas brinda com alguns acasos, fatos e contextos
de onde se retira a força para seguir adiante. A mãe pelos quais uma vida pode mudar seu rumo. Os
biológica está morta, e o pai agora é um bobo insigni• objetos mágicos são representantes dessas
ficante, totalmente incapaz de protegê-la e condições, dão oportunidade à personagem de
valorizá- la. Mas nesse altar, se consuma a fertilidade revelar seus dons, são, por exemplo, vestes que
do pai (o galho que brota) sobre o corpo da ressaltam a beleza, botas de sete léguas que dão
mãe (a terra do túmulo), representados velocidade à esperteza do herói, o objeto surge então
espiritualmente pelo pássaro" e regados com a inserido no contexto de seus desafios e capacidades.
saudade cia filha. É um espaço de culto aos pais
perdidos - e por isso idealizado -, aqueles que
foram tão pcxlerosos a ponto de nos dar vida e tão As três formas da mãe
protetores a ponto de nos permitir que
sobrevivêssemos a riscos e incapacidades da primeira , u a n d o a filha s e dedica a fascinar seu
infância. A jovem está crescida, já não precisa prínci• pe, ela comete não uma, mas duas
mais ser carregada e alimentada, por isso, os pais da traições, já que ela não deseja mais
infância vivem apenas na memória. impressionar a
O encantamento capaz, de fazê-la renascer mãe e, ao mesmo tempo, ofusca-a
das cinzas para um novo tipo de amor, não mais como mulher, tornando-se centro das atenções. A mãe
materno, provém de um espaço interior à Cinderela. Todos perde o jogo, pois nem ela, nem suas lindas
temos, como ela, que montar com nossas criancinhas são o foco da atenção. Agora é a vez de
próprias mãos o altar onde colocamos as a jovem mulher ser o alvo dos holofotes. Não é de
evocações da infância, as lembranças que se admirar que a escolha dessa mulher recaia sobre
guardaremos conosco para uso em outros suas filhas, incapazes dessa dupla traição.
momentos da vida. Há um abismo entre a infância vivida Quanto à filha que se encaminha para a
e as lembranças que guardamos dela. Freud busca de seu príncipe, não estranhamos que
denominav a alguma s dela s com o considere a mãe boa como uma memória
"lembrança s encobridoras", ou seja, um tipo de
saudosa, enquanto a que está em casa será uma
memórias fabricadas, seguindo a mesma lógica
madrasta maléfica. A mãe receberá o mesmo
inconsciente com que se constrõem os sonhos, e que
sào evocadas quando estão ligadas a algo que estamos tratamento destinado aos amores que acabaram:
querendo elaborar em outro momento da vida. afinal, despeito, desvalorização e distan• ciamento são
Não quer dizer que as nossas lembranças sejam necessários para que uma história de amor
totalmente falsas, mas sim que, como em toda história termine e dê lugar a outra. Porém, tudo o que é
contada, ela será do ponto de vista do narrador. sentido pela filha será projetado na mãe (a projeção é
Organizamos o passado de forma tendenciosa, um mecanismo pelo qual se atribui ao outro o que na
verdade se está sentindo). Esse mecanismo é tão efetivo
que a filha poderia jurar que a mãe sente por ela tudo
o que na verdade rumina em seu interior.
112
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o
razã o q u e certos autores viram e m Cinderel a um a
re m a ne sc e nt e da s
Subjetivamente falando, a m ulhe r do pai n ã o é
a mesma pesso a q u e a mãe . A mã e é
a q u e l a q u e supostamente se complet a co m os filhos, qu
e tem nele s sua prioridade e jamais deseja sua ausência .
A mulhe r do pai tem uma história de amo r a
viver, q u e exig e tempo, dedicação, e p o d e se superpo
r em importânci a a suas majestades os bebês . A mulhe
r do pai é a ma• drasta dos filhos, aquel a para q u e
m o casa me nt o está em primeiro lugar, m e s m o qu
e seja a legítima mã e deles. Nesse sentido, o pai
p o d e ser ta mbé m colocad o nesse lugar de preferido ,
em detriment o do s filhos que se sentirão
injustiçados. A madrinh a é a repre • sentante do
efeito benéfic o da s lem brança s de um a infância
ond e houv e um víncul o a m o ro s o co m a mãe . Sendo
assim, toda mã e tender á a ser mãe , madrasta e
madrinha ao m es m o t e m p o .
A madrasta invejosa do s conto s cie fadas tem uma
função extra, ela reconhec e a supremaci a da beleza da
mais jovem. Se no s referirmos ã madrasta,
compreen • demos que agora se trata cie uma disputa entre
mulheres, em que a jovem ganh a um lugar na categoria, e
a inveja da mulher mais velha é testemunh a da importância
dessa conquista. A inveja da mã e é tão important e
quant o o desejo do pai, eles sinalizam qu e em
casa a filha já pode ser considerada um a mulher,
ou pel o meno s um bom protótipo. E co m esses
elemento s q u e um a jovem se autoriza a cativar outro s
olhares.

Habitando as cinzas
nom e d a p ers o n ag e m está
invariavelment e
?;: ligado àquel a q u e trabalh a junt o da s cinzas.8
As versõe s do cont o variam mais do q u
e o nom e d a d o à heroína , que , alé m
disso, é o
nome do conto , o q u e só sublinh a a importânci a
da s cinzas para a história. Os dois no me s co m o é
conhecid a em português , Cinderel a ou Gata
Borralheira , tê m origem comum , alude m ao resídu
o do fogo. Existia, no passado europ eu , um criad o
q u e guardav a o fogo e recolhia sua s sobras , u m
a funçã o q u e estava no s últimos degrau s d e
um a s o c i e d a d e m a r c a d a m e n t e hierárquica. Q u e
seja um lugar social desvalorizad o faz sentido, ma
s po r q u e se m p r e este?
As cinzas geralment e estã o ligadas ao luto
e à purificação. Cobrir-se d e cinzas po r ocasiã o
d e um a perda era be m usual e m culturas mediterrâneas .
C o m o o fogo tem um pape l purificador, seu s restos sã o
puro s também. Isso no s leva a um a posiçã o
ambígua : ela estaria pura e stand o suja. Nã o é se m
, d e u m a cert a nobreza . Da s múltipla s versõe s
dess a história, o q u e
vestais,9 as guardiã s do fogo sagrad o na cultura
romana. De qualque r maneira , a Borralheira é 113
suja po r fora, ma s pur a po r dentro , isso ela
demonstr a co m seu b o m caráter, q u e s e m a nté m
apesa r do s maus-tratos.
Investigand o a vida amoros a do s homens ,
Freud encontro u caso s típicos de c o m o lidar co
m o amo r e o desejo , poi s estes n e m sem pr e
an d a m juntos. O q u e no s interessa nest e cas o é
ressaltar certas características d o m o d o d e amar,
encontrada s e m quadro s d e neuros e obsessiv a d e
maneir a taxativa, ma s q u e so b uma forma diluída sã o
be m recorrentes . Certas pessoa s fazem um a cisão
entr e um amo r puro , elevado , espiritual e casto
em contrapo nt o a sua vida sexual carnal,
desvalori• zada, baixa e suja. Nesses qua dros , é
c o m u m oscilar entr e u m amo r celestial e u m
amo r terren o n o baliza• m e nt o da s escolha s
amorosas . Mas essa divisão entr e a mulhe r
santa e a degradad a ou prostituta nã o cor•
re sp o n d e a u m restrito n ú m e r o d e caso s
patológicos , pois e n c on tr a m o s certa disposiçã o
geral d o s h o m e n s para uma classificação da s
mulhere s co m esses critérios. Nas palavras de Freud:
"Ond e elas (estas pessoas )
amam , nã o desejam, e o n d e d e s e j a m nã o
conse gue m amar, a fim de mante r sua
sensualidad e long e de seu s objetos amorosos".1 0
Cinderela, assim co m o Fele-de - Asno e Bicho
Peludo , de certa forma suporta essas dua s ponta s d a
representaçã o d o desejo masculino. Nesse
sentido, elas sã o uma mediação , uma síntese da
mulhe r q u e certos ho men s procuram , ora
suntuos a e pura e por isso amável; ora suja e
degradada e, portanto, sexual• ment e desejável.
Cinderela é uma personage m qu e casa em si esses
opostos : p o d e entã o ser amad a e desejada.
Bettelheim no s aponta em outra direção, ele
no s
lembra qu e na língua alemã há uma figura de linguagem:
"ter de viver entre as cinzas"" q u e significava nã o só
da condiçã o inferior, mas apontava a rivalidade
fraterna. Ou seja, estar entre as cinzas era metáfora de
estar abaixo d e outr o irmão (independentement e d o
sexo), sofrendo a l g u m a d e s v a n t a g e m . Esse é
o g a n c h o par a q u e Bettelheim centre bastante
sua interpretação do cont o no sentido de dar
conta do s problema s fraternos.

Um amor fetichista
inderela é escolhid a po r um traço, o pé.1 2
Certos autore s vêe m aqui resquícios d e
um a orige m oriental d o conto , o n d e
o s pé s sã o v a l o r i z a d o s , o q u e é
uma hipótese a
considerar . D e qualq ue r forma, mão s e pé s
delicado s s ã o si g n o s d e q u e m n ã o tr a bal h a
Fada s n o Div ã - P s i c a n á li s e n a s Hi st ór i a s Infan ti s

s e repet e é a presenç a d o sapat o e d o O caráte r t r a u m á t i c o da c ast ra ç ã o pass a


por descobri r q u e existe m doi s sexos , c o n d e n ado
p r í n c i p e b u s c a n d o o bc e ca da m e n t e su a d o n a . N o
univers o d o s contos , h á muito s desse s príncipes , s a se diferencia r e im ag in ar ia m e n t e se
seduzido s po r u m objeto cuja presenç a complementar . A partir da c o m p r e e ns ã o do significado
é
imprescindíve l par a qu e um a m ulhe r da diferença dos genitais femininos e masculinos ,
seja
escolhida . P o d e m se r pé s , qu e estaremo s condenados a no s sentir incompletos .
calce m
deter mina d o sapato ; mãos , o n d e o objet o q u e Mas ningué m se resigna a' isso tranqüilamente . A
orient a a busc a é um anel; ou aind a um cabelo , mulhe r p o d e exigir um filho q u e a complete ; no
geralment e d o u r a d o e trazid o pel o vent o q u e inspira trabalho , p o d e busca r o prestígio q u e a iguale ao
a busc a po r sua dona , para citar un s p o uc o s h o m e m . Este, po r sua vez, também te m inúmero s
exe mplos . cami nho s par a lidar co m a falta, mas os fetiches q u e
É impossível nã o aborda r o tema do ilude m su a imaginaçá o sã o u m atalho
fetichismo, q u e consiste n u m desejo erótico subordinad o à freqüentemen t e utilizado.
presenç a d e u m objet o estritament e Se o fetichismo c o m o q u a d r o domin ant e é
d e t e r m i n a d o e s e m negociaçõe s qu e permita m sua raro clinicamente , já c o m o t e m pe r o erótic o ou c o m o
troca. A importância do pé em Cinderela é tã o aquele traç o de que o objet o a m a d o n ã o p o d
grand e q u e o príncip e estava disposto a levar a e prescindir, c o m a n d a as e s c o l h a s a m o r o s a s .
moça errada, desd e qu e nela pudess e calçar o sapatinho. Ele faz part e da det ermin açã o do atribut o
Fm Grimm, sã o os pássaro s qu e o avisam d o necessári o par a q u e o feitiço do desejei seja ligado.
equívoco , pois ele n ã o s e d á conta . Cinderela represent a ta mbé m a mulhe r
Para dize r al g u m a s pala v r a s sobr e o que se a d e q u o u â ess a exigênc i a da erótic a
caráte r fetichista dess a busc a do príncipe , será masculina. É aquel a q u e sab e da importânci a de
necessár i o t a n g e n c i a r o t e m a e s p i n h o s o d o se deixa r amar a partir de um traço, do us o de um
Complex o d e Castração. Freud trabalha e m fetiche e se conforma a fazer de um h o m e m a
inúmera s ocasiõe s sobr e o efeit o i m p r e s s i o n a n t e , fonte de sua felicidade. Ou seja, ela n ã o é
à s veze s traumático , d a descobert a d a amad a só p o r q u e te m o pé delicado, ela é
c a s t r a ç ã o d a m ã e p e l a s c r i a n ç a s p e q u e n a s . amad a em sua totalidad e e pel o conjunto de
A forte i m p r e s s ã o p r o v é m d e q u e ela s parte m seu s dotes , ma s ess e a m o r n ã o vai funciona r
d a premiss a d e q u e t o d o s p o s s u e m pênis , se não tiver ess e gatilho par a o desej o d o
ap e n a s o da s menina s aind a n ã o teria crescido . homem.
Apesar de a idéia da castração ser algo de A permanênci a dessa história no s dias
difícil digestão para ambo s os sexos, a visão do s atuais é curiosament e extemp orâne a . Enquant o na
genitais da mã e deixaria especialment e o menin o prática as mulhere s já nã o precisam sair de casa no dors
impressionado , tanto qu e ele tenderia, por efeito o do cavalo de um príncipe, Cinderela e seu sapatinho
traumático, a se apega r eroticament e à última coisa qu persistem na fantasia feminina co m o um protótipo a
e viu ante s do púbi s da mãe : os pés , os sapatos, as ser levado em conta, possivelmente porqu e neste cont
meias, as cintas-liga (q u a n d o eram usadas), certos o há um bocado de verdade sobre o desejo masculino. A
tecidos, etc.13 Esse objeto fortuito nega a castração vida das mulheres mudou , mas a construção da
da mã e ao m e s m o t e m p o qu e é a prova de sua identidade feminina ainda requer qu e ela se disponh
efetividade e fica c o m o um substituto do falo a a desempenha r um certo papel para uso da fantasia
matern o inexistente . Dua s realidade s psíquica s masculina. Independentemente da mulher forte e
convivem então: a mã e é castrada e a mã e nã o é castrada, a capaz qu e ela se mostre no mundo, Cinderela será
única síntese possível é o fetiche. O inconscient e nã o usa qualque r mulhe r que , na intimidade, se disponh a a
um a lógica formal, está alhei o ao proble m a da brincar de esconde-escond e no s encontros amoroso s
contradição, po r isso, esses oposto s pode m conviver e e a deixar em seu rastro um fetiche com o isca para o
muitas vezes orienta m certos destino s eróticos. h o m e m qu e que r seduzir.
Embora já saibamo s q u e a mã e n ã o tem
pênis , to d o s t e m o s q u e s t õ e s p e n d e n t e s c o m o
c o r p o d a mulher. Font e d e desejo , d e terror, objeto
d e manipu • laçõe s e martírios, o corp o feminin o será
Versões mais antigas
par a sempr e o herdeir o d o corp o d a mãe . Esse q u e inderela é um desse s conto s q u e
pariu, a m a m e n - tou, q u e foi d a primeira sedutora,1 4 este desnudam a insuficiência da pe s qu i s a
q u e pe rd e m o s , ma s seguimo s a vida tod a buscand o se atua l sobr e a mitologia. A antigüidad e
u calor. A mã e fálica é um a fantasia potencia l da da narrativa e sua difusão, inclusive entr e
infância, é aquel a a q u e m nad a faltava p o r q u e n o s culturas isoladas, nos
tinha, é a mã e idealizada do s primeiros te m p o s .
levaria m a pensar num suposto momento arcaico

114
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s
o
primitivas e difundidas formas religiosas, era o cult o
d o s mortos .
quando os homen s partilharam um a cultura única . Mas
isso são suposições, o fato é q u e a similaridade
da s fábulas e do s c o nt o s distribuíd o s pe l o s
canto s d o planeta segue se n d o um a questã o não-
resolvida .
Em versões mais antigas q u e estas q u e
estamo s trabalhando, se encontr a um auxiliar
mágic o distinto que nos afasta da fada madrinh a e
no s aproxim a da árvore mágico-doadora . Nelas,
Cinderel a é ajudad a por um animal q u e ela protegi
a (vaca, ovelha , cabra, touro o u aind a u m
p e i x e ) e q u e foi m o r t o pel a madrasta. Antes
de morrer, o animal dá instruçõe s à heroína do q u
e fazer co m os seu s ossos : dev e enterrá - los e regá-
los . D es s e t ú m u l o , nascem os o bj et o s mágicos
qu e vã o ajudar Cinderela . outra s vezes , sobr e ele
nasce uma árvor e mágica ou um animal ajudante .
Em outras versões, ainda , o animal ressuscita do s seu s
ossos e entrega à heroín a os presente s mágicos .
De qualquer maneira, a força dess e auxiliar mágic o
ve m de outro mundo : do rein o do s mortos .
Aqui encontramo s apoi o nu m mit o
b a s t a n t e difundido, o d o r e n a s c i m e n t o at ra v é s
d o s o s s o s . Tratava-se d e um a s u p osi ç ã o d e q u e
o s osso s d o s animais, s e e n v o l t o s e m su a
p e l e e e n t e r r a d o s , voltariam à vida - o q u e
n o s re me t e a q u a s e um paralelismo co m o
m u n d o vegetal, já q u e eles sã o plantados. São
crença s xamânica s , en co nt ra d a s e m inúmeros
lugares, q u e falam dess a possibilidade , tant o para
homen s q u a nt o par a animais, de p o d e r voltar á
vida se certas pr e ca u çõ e s rituais c o m seu s
osso s e peles fossem respeitadas . Cogita-se qu e ess e
envoltóri o de peles e osso s seria oferecid o ao s
deuse s para q u e estes lhes devolvesse m a vida. De
qualque r forma, os restos mortais sã o devolvido s à
terra nu m a esperanç a que ela nutra e preenc h a de carn
e outra vez a estrutura
(os ossos) e seu envoltóri o (a pele) .
Geralment e o s animai s ressuscitado s
voltariam com algum problema , algu m oss o faltaria,
ou um do s cascos, enfim, eles acabaria m m a n c a n d o
pel a falha de quem fez o rito. A interpretaçã o dad a é
de que , q u e m passou pelo m u n d o d o s morto s e voltou,
fica marcad o por ter feito sem elhant e empreitad a e po r
isso manca . Por aqui passa m alguma s da s interpretaçõe s
a respeit o da assimetria no andar , e, po r isso,
Cinderel a faria parte do grupo , junto co m Edipo, Jasã o e
Perseu: deste s que caminham c o m dificuldade, tê m o s
p é s marcado s ou usam um a só sandália. São
pe rs o na g e n s q u e , de alguma forma , teria m
conhecid o o s m e i o s d e comunicação c o m o
m u n d o do s mortos .
A religião cotidian a da s culturas q u e no s
dera m origem (greco-romanas) , e um a da s mais
115
O s morto s d a família era m reverenciado s c o m o
deuses , i n d e p e n d e n t e m e n t e de sua s açõe s na terra;
e os vivos tinha m u m a série d e obrigaçõe s para co m
eles. A força de um a família provinh a justament
e dess a união , já q u e o s morto s ativament e
tentava m ajudar seu s vivos e vice-versa . Talve z
a d e d i c a ç ã o d e Cinderel a n o túmul o da mãe ,
assim c o m o a força mágica provenient e dela, poss a
ser u m ec o dessa s antigas crenças . Graças a isso,
faria mais sentid o a idéia cie ligá-la de algum
m o d o ás cinzas e entã o ao s mortos.1 "

Notas
1. BASILE. Giambattista. The Pentamerone.
traduzido por N. Penzer. A íntegra deste conto
pod e ser lida em vwvw.surlalunefairytales.com. de
autoria de Heidi Anne Heiner. disponível desde
1998.
2. PERRAELT, Charles . Contos de Perrault. Bel
o
Horizonte: Itatiaia. 1989.
3. GR1MM, Jaco b e Wilhelm. Contos de Fadas. Rio de
Janeiro: Villa Rica, 1994.
4. BETTELHEIM. Bruno. A Psicanálise dos Contos de
Fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001. p. 292.
5. "A árvore cresce, e o mesmo ocorre com
a mãe interiorizada dentro de Borralheira.
(...) A medida qu e a criança cresce, a mãe
interiorizada também deve passar por
modificações, como ela própria. F u m
pr o ce ss o d e desmaterializaç à o semelh ant e
àquele em qu e a criança sublima a mãe
boa real, transformando - a num a experiênci
a interior d e confiança básica". Ibidem. p.
299.
6. Os pássaros são animais ligados à morte, eles é
que pode m voar até um lugar longínquo que é o
mund o do s mortos. Existe uma conexão
alma-pássaro cm culturas da antigüidade,
seguramente no Egito e na Babilônia. Na tradição
cristã, os anjos qu e levam as almas são alados.
Numa cultura tão distante desta, na do s
índios da América do Sul, encontramo s
também uma idéia de qu e certos pássaros,
e por isso são agourentos, seriam a morada
transité>ria do s mortos.
7. "Quand o as lembranças conservadas pela
pessoa sã o submetida s à investigaçã o
analítica, é fácil determinar qu e nada garante
sua exatidão. Algumas imagen s mnêmica s
certament e sã o falsificadas, incompletas ou
deslocadas no temp o e no espaço.
(...) Forças poderosa s de época s posteriores da
vida modelaram a capacidade de lembrar das
vivências infantis - provavelmente as mesmas forças
responsá• veis por termos nos alienado tanto da
compreensã o
Fada s n o D i v ã - P s i c a n á l i s e n a s Hi st ó ri a s Infa nti s

dos anos da nossa infância". In: FREUD, ligação com a terra, e outros vão ver nesse mesmo
Sigmund. Sobre a Psicopatologia da Vida fato uma ligação com o mu nd o do s mortos.
Cotidiana (1905), vol. VI, cap . IV, p. 56. 13- "Parece que , quand o o fetiche é instituído,
Obra s Completas. Rio de Janeiro: Imago Editora, ocorre certo processo qu e faz lembrar a
1987. interrupção da memória na amnésia traumática
8. Por exe mplo : Cenerentol a ve m de cenere, (...) é como se a última impressão antes da
em italiano, cinza; em francês é chamada de estranha e traumática fosse retida com o fetiche.
Cendrillon, que quer dizer mulher qu e está Assim, o pé ou o sapato devem sua preferência
sempre ao pé do fogo, suja, e provém de com o fetiche - ou parte dela - à
cendre, cinzas ou restos mortais; em espanho circunstância de o m enin o inquisitivo
l Cenicienta, provind o de ceniza, cinzas e espiar os órgãos genitais da mulher a partir
no figurativo restos mortais; em alemão , de baixo, das pernas para cima." In: FREUD,
temos Aschenputtel. derivad o de asche, cinza; Sigmund. Fetichismo
em húngaro temos a Hamupipöke , derivado de (1927). vol. XXI. Obras Completas. Rio de
hamu, cinza; em inglês se usa o nom e Janeiro: Imago Editora. 1987, p.182.
francês adaptado: Cinderclla. 14. "(...) pud e reconhecer nessa fantasia de ser
9. Donzelas qu e se consagravam ao culto da seduzida pelo pai a expressão do típico
deusa Vesta (ou Cibele) e com o sacerdotisa s Complexo de Edipo nas mulheres. E agora
estavam obrigadas, por juramento, a manter a encontramos mais uma vez a fantasia de seduçã o
virgindade para sempre. Seu principal ofício era na história pré-edipiana das meninas, contudo
nã o deixar apagar o fogo sagrado da deus a o sedutor é regularmente a mãe
so b a pena de serem enterradas vivas. As (...) foi realmente a mãe quem, por suas
vestais já são uma manifestação tardia da importância atividades c o n c e r n e n t e s â h i g i e n e c o r p o r a l
do fogo em cada lar grego ou romano, cada casa d a criança, inevitavelmen t e estimulo u e,
deveria ter o seu sempre acesso, e era uma talvez até mesmo despertou, pela primeira
obrigação do don o da casa a sua nâo- vez, sensações prazerosas nos genitais da menina.".
extinção, pois ele tinha um caráter sagrado. In: FREUD, Sigmund. Novas Conferências
10. FREUD, Sigmund. Sobre a Tendência Introdutórias sobre Psicanálise (1933), vol. XXI.
Universal à Depreciação na Esfera do Amor Conferência XXXIII Obras Completas. Rio de
(1912), vol. XI. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1987, p. 149.
Janeiro: Imago Editora. 15. "... esse culto do s mortos perdura por um
1987, 166 páginas. tempo especialmente longo porqu e os mortos
11. BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos Contos são deuses p r ó x i m o s e queridos , mai s
de acessívei s qu e a s divindades oficiais
Fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001, p. 278. onipotentes. Seu culto é estrito e pragmático.
12. Alguns antropólogos fazem aqui uma ligação Compreendemo s agora po r que o índio qu e
com certa s p e r s o n a g e n s míticas q u e p o s s u e deseja uma pesca abundant e vai se deitar sobre o
m um a assimetria no andar, pois, com um só túmulo de sua mãe e ali passa alguns dias
pé calçado, Cinderela certamente claudica. Há um us dormind o e orando ; exatamente da mesma
o mítico, e provavelmente um símbolo, em andar com forma, a Cinderela russa, em sua infelicidade,
um único pé de sandália (monossandalismo). Está vai até o túmulo da mãe e rega-o com água ou
correto, mas a ligação desse caso a essa suas lágrimas, depend end o da variante; ou seja,
característica nã o nos ajuda muito, pois as realiza um ato de libação." In: PROPP, Vladimir.
interpretações sobre a assimetria no anda r també m As Raízes Históricas do Conto Maravilhoso. São
variam muito . Certos autore s acreditam qu e Paulo: Martins Fontes,
seja uma marca da autoctonia, da 1997, p. 178.
116
Capítulo VIII
PAPAI OGRO, FILHO LADRÃO

João e o Pé de
Feijão
As várias faces do pai - Construção da identidade no menino -
Morte simbólica do pai - Reconhecimento familiar do crescimento

a maior parte dos contos Diferentemente da maior parte das


que analisamos, a maldade histórias trabalhadas até este ponto, cuja fonte
ficava po r cont a da s privilegiada encontra-se nas compilações dos irmãos
bruxas , o u mulheres Grimm ou de Perrault, João e o Pé de Feijão é
malévolas, às vezes com proveniente da tradição inglesa. As duas versões
poder e s mágicos, qu e tradicionais do conto pertencem a Benjamin Tabart e a
sempre mostravam suas piores Joseph Jakobs, sendo este último o responsável pela
intenções: eram antropófagas, abordagem mais conhecida. Quando realizou sua
invejosas e possessivas. Pois compilação, publicada em 1890, de contos tradicionais
bem, é chegada a hora de falar ingleses, Jakobs desprezou a versão escrita por
de monstros masculinos: os ogros e os gigantes. Eles Tabart, qu e existia desd e 1807, preferind o
são enormes, brutais, desprovidos de caráter, possuem referenciar-se nos relatos orais que conhecia.
bens preciosos, roubados de alguém, e adoram No texto de autoria de Tabart, Jack (João,
uma criança tenra em qualquer refeição. Nas histórias para nós) não é um filho inútil que vence como um
infantis, eles sào indiferenciados, podendo ser um ou ladrão- zinho esperto, mas sim um filho que vinga o
outro, até porque são muito similares,1 por isso, vamos pai com a ajuda de uma fada. Essa versão é
também usar indistintamente as palavras "ogro" ou considerada uma transformação da história
"gigante". O conto de fadas mais popular sobre um ogro tradicional em uma trama moral edificante, de
ou gigante é João e o Pé de Feijão, uma narrativa que menor autenticidade folclórica que a versão de Jakobs.
nos abre a possibilidade de falar sobre a construção da Bettelheim mostra-se simpático ao conto
identidade viril através da apropriação da herança de
paterna. Jakobs, considerando-o mais autêntico, mas nós não
Fada s no Divã — Psicanálise nas Histórias Infantis
O detalh e é q u e ele cha mo u a

acreditamo s q u e exista um a versã o original, q u e


seria entà o a mais verdadeira . No terren o do
folclore, pel a su a naturez a multiforme , tais
c o n s i d e r a ç õ e s s o a m estranhas . Afinal, se a versã o
de determinad a história é levada e m cont a po r
um a c o m u ni da d e , é p o r q u e segu e di ze n d o alg o
- adaptad o à s necessidade s d e deter minad o
m o m e n t o e lugar - , d e m o d o q u e se u cern e
ficou preservado . Preferimos entã o trabalhar co m amba s
e m p é d e igualdade .

A história de jakobs2
oã o e sua m ã e viviam à s custa s d e su a
vaca Branca-de-Leite, cujo leite vendia m na
feira. Cert o dia , a vac a s e c o u , e e le
s ficara m a m e a ç a d o s pela fom e e a
miséria, t e n d o
co m o única saída a vend a d o animal . J o ã o
sugeriu q u e poderi a trabalhar para o sustent o
deles , ma s a mã e argumento u qu e já ante s ningué m o
quis contratar. Ess a versã o é c o n d e s c e n d e n t e ,
poi s a l g u ma s adaptaçõe s sugere m qu e el e
er a u m r a p a z i n h o indolent e e mal-educado .
J o ã o saiu d e casa co m a tarefa simple s d e vende r
a vaca na feira, mas no mei o do camin h o
encontro u u m h o m e m q u e lhe fez um a propost a
peculiar: trocar a vaca po r um p u n h a d o de feijões
mágicos . Apesa r de a troca ser desproporciona l ,
noss o heró i aceitou sem pensa r muito . O h o m e m
lhe fez a seguint e promessa :
"se plantá-los à noite, pela m a n h ã estarã o lá no
céu", o q u e poderi a muit o b e m ser um a convers a d e
charla• t ã o v i s a n d o a e n g a n a r u m m e n i n o
t o l o . E foi exatament e isso q u e penso u a mã e
d e João , q u e s e deses pe ro u ao ser informada do
negócio , jogand o os feijões pela janela e m a n d a n d
o o tolinh o dormi r se m jantar, a m o d o de castigo.
A p ó s te r i d o p a r a a c a m a c o m f o m e ,
Joã o acordou-s e p el a manh ã co m um a
l u m i n o s i d a d e diferente e m se u quarto . O s feijões
mágico s atirado s p e l a j a n e l a c o n f i r m a r a m s e u
poder , crescend o espantosamente , d e tal
f o r m a q u e s e u s g a l h o s entrelaçado s s e perdia
m entr e a s nuven s c o m o um a escada . Não t en d
o mai s nad a a perder , o m e n i n o aceitou o
convit e da curiosidad e e subi u at é chega r a um a
terra e nc a nta d a , situad a acim a d a s n uv e n s . A
promess a d o h o m e m s e cumprira .
Saind o d o p é d e feijão, um a estrad a o
conduzi u até a port a de um a casa gigantesca ,
em cuja soleira estava um a mulhe r igualment e
grande , a q u e m J o ã o pedi u par a co me r alg o d e
café d a manhã , j á q u e n ã o havia seque r jantado .
o do seu jardim ante s de desce r pel o pé de feijão.
Graça s a essa s riquezas , mã e e filho viveram
be m po r u m tempo , ma s q u a n d o terminaram a s moedas,
enorm e mulhe r d e mãezinha e nã o p a r e c e tê-
foi necessári o subir novament e em busca de
la co n si de ra d o a m e a ça d or a . Mas a gigant a lh e avisou
mais.
q u e devia partir, poi s se entrass e na casa poderi a virar café
Na segund a visita, a história tod a se repeti
da m a n h ã de seu marido , o ogro , q u e já estava par a
u de forma similar, e mbor a tenh a sid o um p o u c o mais
chegar . P e n s a n d o mai s n a fom e q u e n o risco, J o ã o
difícil de con vence r a mulher. O souvenir dess a
imploro u q u e o deixass e entra r m e s m o assim, ao q u e a
ocasiã o era ainda mais valioso q u e as m o e d a s trazidas
mulhe r termino u c e d e n d o .
da primeira vez: era um a galinha q u e pu n h a ovo s
Em seguida , co m g r an d e estrondo , p o r qu e a casa tremia
d e o u r o sempre q u e lh e or denav am .
co m cad a um de seu s passos , um gigante de péssim a
E mbor a a galinh a lhe s garantis s e o
aparênci a entrou , mal t e n d o d a d o temp o de o m e n i n o
provent o necessário , J o ã o sentiu v o nt a d e de
engoli r um p o u c o de p ã o e leite e ser ocultad o
voltar lá, já que sua s visitas vinha m s e n d o tã o
dentr o do forno . O monstr o sentiu cheiro de carn e humana ,
rentáveis . Na terceira visita ne m tento u enga na r
ma s a mulhe r o e ng a n o u , dizend o que el e estava era
a mulher, entro u aprovei• tand o um a distração dela
sentind o o cheir o d o s restos d o menino q u e havia
e esconde u-s e n u m caldeirão de cobre . O ogr o mais
de g us ta d o na noit e anterior. Fia o distraiu servindo-lh e
um a vez o farejou e junt o com a espos a
um a lauta refeição, q u e o ogr o engoliu co m a
procurara m n o forno , ma s novament e
voracidad e própri a da espécie . Apavora d o em seu
julgaram se r o cheir o d o m eni n o d o jantar d a véspera.
esconderijo , o m en i n o fez m e n ç ã o de fugir, mas a mulhe r
O tesour o d a ve z er a um a harp a dour ad a q u e
lhe asseguro u q u e devia aguardar , pois ele s e m p r e
tocava e cantav a divinamente . Ao se u som , o
tirava u m cochil o depoi s da s refeições.
gigant e costu• mav a a d or m e c e r c o m o u m b e b ê . J o ã o
Depoi s de comer, o ogr o ordeno u à mulhe r que lh
aproveito u para fugir co m a harp a mágica d e po i s
e trouxess e sua s riquezas , e ela p ô s sobr e a mesa
q u e o ogr o pego u n o sono , ma s ela n ã o
sacos d e m o e d a s d e o ur o q u e ele co meço u a contar.
colaborou . C o m o falava, gritou assustad a q u a n d o o
De barriga cheia, termino u realment e pe g a n d o no sono. Essa
m e n i n o a p e g o u , a c o r d a n d o seu patrão .
foi a oportunida d e para a fuga de João , mas não sem
antes s e apossa r d e u m saco d e moedas , qu e jogou para dentr

118
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Cors o

Desperto, o ogr o iniciou a caçad a ao ladrãozinho ,


seguiu-o até o pé de feijão e o persegui u na
descida. Graças à sua agilidade juvenil, J o ã o chego u antes,
gritou para a mãe lhe alcançar um m a ch a d o e cortou o
grand e caule, fazendo o ogr o cair e morrer. Com
os ovo s da galinha e as a p r e s e n t a ç õ e s da harp
a mágica , ele s enriqueceram e Joã o pôd e se casar
co m uma princesa.

A versão de Tabart3
início da história é similar, embor a haja
um a ressalva de q u e o m e ni n o é um
inútil, ma s d e bo m coração . Q u a n d o partiu
par a vende r a vaca, ele encontro u um
açougueir o , q u e é
quem lhe fez a proposta . O detalh e interessant e
aqui é que ele realizou a troca pelo s feijões se m q u e
seque r o açougueiro tenh a lhe explicitad o b e m
qua l seria a mágica da qual as semente s era m
capazes . Co m o na outra história, ele é re pr e en di d
o pela mãe , q u e atira os feijões pela janela e o
julga um tolo se m conserto . A diferença entr e a s
versõe s começ a q u a n d o J o ã o chega ao alto do pé
de feijão e é recebid o po r um a
fada, que lhe cont a um a história:

Era uma vez um nobre cavalheiro que, junto com sua


amável esposa, vivia em seu castelo, na fronteira
da Terra das Fadas. Seus vizinhos, a gente pequena, havia
lhe dado muitos e preciosos presentes. A fama desses
tesouros espalhou-se, e um monstruoso gigante, muito
mau, resolveu se apossar deles. Para isso, ele subornou
um serviçal. qu e o deixou entrar no castelo e
matar seu dono durante o sono. Por sorte, a dama
não foi encontrada pelo gigante, pois lhe era
reservado o mesmo destino. Ela havia saído com o filho
para visitar sua antiga babá. Na manhã seguinte, um dos
serviçais do castelo, que havia conseguido fugir, contou á
mulher o terrível destino de seu marido, assim como a
intenção do gigante, que jurara matar mãe e filho
quand o os encontrasse . Em funçã o disso , a
se n ho r a ficou trabalhando como camponesa,
escondida na casa de sua velha ama, até que esta
morreu, deixando-lhe o pouco que tinha. Essa
pobre mulher é sua mãe, este castelo era de seu pai
e deve agora ser seu.4

Corno Jo ã o crescera se m saber da tragédia paterna, a


fada disse ter enviad o os feijões mágicos par a atraí-lo para
aquel e lugar, a fim de q u e ele recuperass e sua
legítima herança . A partir dess a revelação, o
menin o parte para enfrentar o assassino de se u pai. Vai
armad o apenas co m a corage m e a espertez a c o
m a qual os
detalhe reforça ainda

p e q u e n o s vence m os grandes . Para incentivá-lo, a 119


fada afirma: "Você é daquele s q u e mata m gigantes.
Lembre- se: tud o o qu e ele possui na verdad e é
seu".
Q u a n d o ele bateu á porta do ogro, foi
recebido por um a terrível giganta de um olh o
só. Apavorado , Joã o tentou fugir, mas ela o
pego u e o colocou para dentr o de casa, tencionand
o transformá-lo em seu pajem, queixando-s e d e q u e
o marid o devorava todo s seu s ajudantes e a
deixava co m tod o o trabalho. O ogro voltou, sentiu
cheiro de carn e humana , mas ela o engan ou ,
d i z e n d o tratar-s e d e um a c ar n e assad a q u e
havi a preparad o para o café da manhã . O gigante
comeu , saiu e deixou a mulher co m seu nov o pajem,
qu e a ajudou o dia todo . Após o jantar, através da
fechadura do armário, ele pô d e ver quand o o ogr o
mando u vir a galinha d o s ovo s de ouro . O resto
da história transcorre de forma similar á versão
anterior. Nas próximas visitas, disfarçado, ele volta para
trabalhar co m o pajem e rouba, uma vez o saco de our o
e, em outro momento , a harpa. Encontramos apena s uma
variação no final, pois é dito qu e Joã o vive feliz para
sempr e co m sua mãe.5

Trocando um pássaro
na mão por outro
voando
negócio da China feito por João
merece algumas palavras: afinal, que
troca é essa em que negociamos algo
valioso por uma
promessa? Pod e haver outro s
sentidos associados, mas salta aos olhos qu e
essa é uma representação perfeita para aludir ao
desmame. Afinal, é quand o fazemos o
negócio , a princípio nada proveitoso, de
trocar aquele leite certo de cada dia por algo
impalpável.
O fato é que a promessa da mágica dos
feijões se realiza. Afinal, toda criança verá um dia
seu corpo brotar em estatura tal qual o talo de
feijão, aimo ao céu. Se esses feijões realmente
significam a certeza de um crescimento, eles são,
de certa forma, mágicos.6
Porém, para crescer, é preciso perder as vantagens
de ser pequeno, como o leite do seio materno
represen• tado pela vaca. Podemos lembrar que,
movida pela raiva, a mãe manda Joã o para
cama com fome, sublinhando que o início do
conto trata mesmo de uma operação de
distanciamento da mãe e da sua condição de
alimentadora.
Quando o homem que propõe a troca da
vaca por feijões é um açougueiro (na versão
de Tabart), fica claro que ele a quer para outros
fins, diferentes do fornecimento de leite. Esse
Fadas n o Div ã — P s i c a n á l i s e n a s História s I n f an ti s
fada sabe mo s ter sid o o pai de João , é
muit o mai s um a permissã o simbólica par a a retomad
a do s tesouro s d o q u e um a ajuda. C o m o na s
mais a leitura de q u e J o ã o negoci a a versã o
histórias d e princesas ,
nutridor a da mãe . A troca resultante será a seguinte : el e
entreg a aquela qu e lhe dava leite, ma s secou , e
receb e u ma s semente s cuja magia é o crescimento
. É um negóci o de risco, pois ele dá algo q u e
n ã o lhe serve mais e receb e algo qu e ainda nã o é.
O passad o encontr a se u fim na s mão s do
açougueiro , o futuro é promissor, enquant o o
present e é um a incerteza.
O começ o do cont o já denunci a q u e a mã e
n ã o estava contente co m João . Em várias versões, ele é
um inútil desmiolado, com o se nã o bastasse, mostra-se
ainda mais tolo a partir do mau negóci o qu e faz. Enfim,
tud o começa com uma grand e desilusão de parte
a parte. Decididamente, Joã o está longe de ser o qu
e sua mã e espera dele. O contrário també m
ocorre , pois mã e e filho passavam fome, entã o
certament e Joã o nã o andav a satisfeito com sua nutriz. O
desencontr o já estava dado , em casa já nã o havia muito
para esperar, ao m enin o só restava partir para negociar co
m o destin o e tentar obte r o qu e necessitava fora de
casa.

Pai nobre, pai


açougueiro, pai
antropófago
o qu e se segue ao rompiment o entre mã
e e filho, começ a a riqueza da história qu e
torna esse cont o tão propício para falar da s
diversas
conjugações d o pai a o long o d o process o d
e construção da identidade do filho. Na verdade ,
temo s três homen s contracenand o n u m pape l q u e
poderíamo s considerar paterno : o açougueir o - ou
o h o m e m qu e faz a troca da vaca po r feijões; o
b o m e nobr e pai de Joã o - na versão de Tabart; e
o terrível ogro .
O personage m da estrada é um a da s
faces do pai q u e ve m marca r a intervençã o
necessári a par a afastar o filho do seio materno , mas é
um a face pacífica: mostra um caminh o possível de
crescimento , já q u e ele conso m e a vaca, ma s
c u m p r e o q u e promete . Se fôssemos fazer um
paralelo co m o desenvolvimen t o da criança, essa
parte nã o respeitaria a cronologi a da história
verdadeira : na vida real ess e en c on tr o n ã o é o primeir o
q u e ocorre . Seria mais u m epílog o e m q u e é
possível s e reconciliar c o m a lábia d o pai, q u e
n o s vende u algo q u e era a o m e s m o t e m p o nad a
e tudo . Trocamo s a mã e po r nad a alé m d e u m
caminho , q u e aind a po r cima somo s fadado s a
percorre r sozinhos . O b o m e no b r e cavalheiro ,
q u e pel o relato d a
me possuir.
Há um element o na versão de Tabart que propicia
em q u e a mã e bo a está se m p r e morta , nest a o a associação entre o gigante e o pai: no conto, o malvado
bom pa i t a m b é m está morto . Vivos resta m a o usurpado r mata o pai de J o ã o enquant o este dorme , já
menin o o açou gueir o , q u e vai esquarteja r a vac a o m en i n o aproveit a o s o n o d o ogr o par a
roubá-lo. Através dess a associaçã o entr e o assassino
leiteira, e o ogro , q u e está interessad o n a carn e
e o ladrão, que se valem do repous o da vítima, J o ã o
dele . J o ã o não recebe u p o de r e s o u objeto s co m o s
passa a ocupa r o lugar q u e antes fora do ogro , e este é
quai s vence r seu inimigo. A conquist a d o s tesouro s
vitimado com o o pai. Na equivalência estabelecida
d e p e n d e u unica• m e nt e d e sua coragem ; portanto , a
po r essa versão, qu e d á aos mau s atos d o menin o u m
versã o idealizada do pai nã o é um a ajuda concreta, é caráter d e vingança, se alicerçam as ponte s de qu e
apena s um exemplo a seguir , u m r e c o n h e c i m e n t o precisávamo s para propo r u m caminh o interpretativo.
d a l e g it i m i d a d e d o desafio, enfim, nã o passa m d e
u m incentiv o interno. Outr a figura pat er n a
e n c o n t r a - s e n o final d a
subid a do pé de feijão. Ali en contra mo s o pai enquant o u m Uma herança roubada
ogro . u m gigant e tirânico, qu e possu i muito s bens, ma s nã
s intençõe s d e u m e m relaçã o a o o ut r
o repart e co m nin gué m e aind a te m um a mulher q u e lhe
serve. Esse é o pai na visão primitiva da criança: ele é o d o n o sã o diferentes par a os rivais dess e conto :
o do pedaço , é o d o n o da mã e e, inclusive, vê o filho o ogr o q u e r come r crianças, o m e n i n o
c o m o um a de sua s posses . Boa part e das fantasias q u e r rouba r
de antropofagi a te m c o m o fund o a idéia de ser parte ben s d e circulaçã o social".
d e outro , ser incorporad o n o corp o d e alguém, afinal já Evidentement e q u e , q u a n d o sai e m perseguiçã o d
habita mo s o c o r p o da m ã e em noss a pré- história o p e q u e n o ladrão , o gigant e nã o está pensand o n o se
pessoal . Estar dentro , ser engolid o ou engolir alguém , u estômago , naquel a ocasiã o o outr o n ã o é um a
é ta m b é m um a forma rudimenta r d e represen • tar a iguaria, é um rival. Porém , e n q u a n t o estav a
identificação. Nesse caso , J o ã o projeta no ogro seu s e s c o n d i d o n o forno , J o ã o estav a a m e a ç a d o d e
próprio s ímpeto s d e s e apropria r d e seu s atributos: s e e u ser d e vo ra d o c o m o o m e n i n o d e cujos resto s a
q u e r o seu s tesouros , ele que r alg o d e mim, o u que r mul he r d o o gr o falara.

120
D i a n a I i c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o

O s r u d i m e n t o s d a id en tif ic aç ã o p a s s a m monstr o ma u deixa os rivais em campo s opostos, ficando


p o r abocanhar a p or çã o d o outr o q u e s e q u e r o heró i c o m o d o be m . Porém , q u a n d o s e
par a si. Esse process o é unicament e um trata d e roubá-lo, matá-lo par a conquista r seu s
pressup ost o incons • ciente, resultante do fato de tesouros , fica-se n a mes m a posiçã o q u e ele,
q u e o primeir o amor , a mãe, é algué m par a ser ganh a o melho r ladrão . Pensand o assim,
sugado . O raciocínio infantil decorrente seria que podería mo s considera r o ogr o co m o u m
ama r é comer-s e m u t ua m e nt e . Muitas vezes, porém intermediári o par a q u e J o ã o pu d es s e rouba r o
, as crianças muit o p e q u e n a s têm através de sua boc a s t e s o u r o s d e s e u p r ó p r i o pai . Aliás, a q u e l e
um diálog o sofrido co m o m u n d o , mordendo pessoa s é u m p e r s o n a g e m t ã o abjet o q u e a n i n g u é
o u amiguinhos , c o m e n d o o q u e não devem, m oc o rr er i a recriminar o menin o po r ter livrado
vo mitand o o q u e deveria m digerir. Ser devorado o m u n d o de sua presença ; po r outr o lado, se algué
pel o ogr o poderi a ser també m um a projeção, que é supo m narrasse a história d e u m jovem r o u b a n d o seu
r no outr o a intençã o q u e na verdad e nó s temos, própri o pai e travand o co m el e u m d u e l o
nest e caso , o desej o da criança de devora r mortífero , seria impossíve l q u e tivéssemos co m
aqueles qu e lhe sã o caros . ele qualque r empatia.
Os gigantes devorador e s têm muitos N a v e rs ã o d e Tabart , ess e c o n t o n o s
ancestrais, mas talvez o mais ilustre seja Cronos . Sua mostr a algué m r o u b a n d o sua própri a heranç a o u pel
história é a matriz de muitas outras da mitologia grega, o m e n o s , n a versã o d e J a k o b s . construind o u m
nas quais o pai precisa se livrar do filho para nã o ser mortpatrimôni o a partir d e u m roubo . Porém , apesa r
o po r ele. Cronos castrara seu própri o pai, Urano, e d o ditad o "ladrão q u e roub a d e ladrã o tem ce m
fora po r isso amaldiçoado co m o destin o de repetir a ano s d e perdão" , n ã o é possível esquece r qu e J o ã o
história, dessa vez com o vítima. Para se livrar do roub a várias vezes . Esses conto s mostram fatos nã o
vaticínio de ser eliminado po r u m descendent e , muito diferentes da realidade, recebe r um a heranç a
el e sistematicamente devorava todo s os filhos q u e sua nunc a é u m process o simples, h á percalço s n o
espos a Réia, lhe dava. Irritada c o m o fatídicoca m i n h o d a passage m par a o filho daquil o q u e
de sti n o de su a prole , Réia engenhou um plan o o sangu e ou o direito lhe design a co m o
para salvar seu último rebento , enganou Cronos, legitimament e seu . Por mais paradoxa l q u e
fazendo- o engolir um a pedr a envolta em trapos e pareça , um a heranç a te m d e ser roubada , assim
criou o me nin o escondid o do pai. co m o o pai te m d e ser d e algum a forma
Com o n a mitologia greg a ni n g u é m está assassinad o (nu m plan o imaginário, é claro).
acim a do destino, o d e s e n l a c e era previsível . Mas o q u e sã o esse s tesouro s usurpados ?
Cron o s foi derrotado po r ess e filho, q u e vei o a Eles consiste m n a matéria-prim a co m q u e cada u
ser Zeus , o qual não só vence u o pai, c o m o o m fabrica sua identidade . Sã o aquele s traços herdados ,
fez vomitar todo s seu s irmãos. Se n o s s o o gr o copiados , inspirado s n o q u e s e viu e viveu q u e
fizer jus à essa tradiçã o de comedores de passa m po r um a apropriaç ã o po r part e daquel e qu e
criancinhas , realment e fica fácil atribuir- lhe finalidade cresce, d a criança, do jovem, do filho, e serã o a
similar. Ele seria c o m o u m pa i q u e reincorpora matriz daquil o q u e um ser h u m a n o c o m p r e e n d e
a cria par a evitar q u e esta o s up e r e e termine c o m o sua personalidade .
apropriando-s e d e seu s tesouros .
Fora do s conto s de fadas, n ã o é necessári o
ter galinhas de ovo s de ou r o para assistir ao s filhos Com quantos
levarem consigo a juventud e perdid a do s pais, o
viço de seu apetite sexual , as o p o r t u n i d a d e s e
roubos se faz uma
a energi a par a aproveitá-las. Ver os filhos crescere m é identidade
c o n t e m p o r â n e o de se ver decrescer, e, no fim dess a
história, a tendênci a natural é qu e o pai de algum a t r a n s m i s s ã o d a h e r a n ç a imateria l é
forma morr a e n q u a n t o o filho o sobreviv e e u m a do a ç ã o ativa d o s pais (eles falam,
desfruta do tesour o de viver. A morte do ogro , educa m , cuidam , mostra m seu s a m or e s
depoi s q u e o m e n i n o obtev e o q u e quis dele, e mágoas) ,
mostra q u e n ã o h á lugar par a o s doi s sobr e a terra, ma s o filho n ã o é um herdeir o
algum precisa ser de v or a d o ou eliminado . passivo. Se recebess e passivament e os benefícios a q u
Reduzido à função de força bruta, o ogr o é vencid o e te m direito pel a filiação, n ã o s e possibilitaria co
como um monstr o qualque r a ser enfrentad o pel o herói, m q u e u m filho escolhesse , m e s m o q u e d e
mas a relação entr e o herói e seu inimigo é forma inconsciente , quai s aspecto s d a identidad e
diferente quando este possui tesouro s q u e se cobiçam . d e seu s pai s adotaria par a si. Além disso , h á u
Matar um m d e t al h e a mais : o q u e o s pai s termina m
legand o n ã o necessariament e é o tip o d e
coisa q u e cab e em seu s serm õe s e ideais. E
na vida familiar c o m o u m todo , d a forma c o m
o essa é ditada
Fadas n o Div ã — Psi c a n áli s e n a s Hi st ó ri a s Infa nti s
um b o m negociante com o algum de seus

pel o inconscient e parental , q u e o filho faz su a colheita d


e traços identificatórios. A percepçã o
inconscient e da criança vai além da hipocrisia, da
falsa moral, da s convençõe s sociais, m e s m o se m
sabê-lo , ela vai em busca do s detalhe s q u e
revela m a verdad e sobr e o amor, o desejo , as
frustrações e as expectativa s de seus pais.
Uma vez ex p os t o a esse s traço s do inconscient e
familiar, assim c o m o à cultur a d o se u g r u p o
( q u e inclui ofícios, inserçã o social, política, códig o de
ética, formas d e busca r praze r e tanto s outro s
parâ metr o s d e n t r o do s q u ai s vi v e m o s ) , à
m e d i d a q u e e s s e s elem e nt o s d e identificação vã o
s e n d o p in ç ad o s p e l o filho, resta-lhe descobri r q u e
tip o d e u s o fará deles . Poder á confirma r um a
i d e n ti d a d e c o m se u g r u p o s o c i a l , faze r u m a
versã o del a o u c o n t r a d i z ê - l a totalmente .
Evidentemen t e q u e estam o s faland o aqu i d e um a
escolh a ba si ca m e n t e inconscient e . A seleçã o d o s
aspecto s d a personalidad e e d o inconscient e
parenta l q u e farão sintom a e m nós , e c o e m
noss a form a d e ser, é um a taref a
d e s e m p e n h a d a pe l a inevitável n e ur o s e d e cad a
um .
A construçã o da identida d e d o s filhos nã
o se estrutura necessariament e sobr e o m o de l o da s
virtudes d o s pais, evidentemen t e q u e essas p o d e
m servir d e substrato , ma s o q u e organizar á a
lista d o s itens q u e um filho vai toma r para si
está mais do lad o do q u e falta a seu s pais d o
q u e daquil o q u e eles po ssuem . Por mai s q u e o s
pais possa m s e mostra r satisfeitos c o m o q u e
c o n q u i s t a r a m n a vida , ser á e m n o m e daquil o
q u e aind a lhes falta q u e eles próprio s seguirã o sua
caminhada .
O q u e falta ao s pais é representad o po r
aquilo q u e eles desejam. S e tiverem, po r exemplo
, sucess o profissional, mas lhes faltar qualidad e de
vida, para o filho ser á u m grand e desafi o
co n str u i r u m a vid a equilibrada entr e o trabalh o e o
lazer ou entr e este e o temp o dedicad o à família. Um
filho procurará transcen• dê-los, mais do q u e imitá-
los. Para tant o precisa se estruturar a partir do
qu e a eles faltou fazer, viver ou possuir. Partirá do
p on t o o n d e os pais encontrara m seu limite. U m do s
sentimento s possíveis d e u m pai, q u e assiste ao
filho realizar seu sonh o inconclus o é sentir- se
roubado , afinal aquilo era para ser vivido po r ele.
Porém o voto de ir além da s conquistas parentais é
um desafio e tanto, afinal mal sabemo s se conseguiremo s
chegar aond e eles chegaram ou se nã o
sucumbiremo s aos mesmo s empecilhos qu e os
fizeram fracassar, po r isso, a identidade co m a
falta do s pais precisa ser de alguma forma
processada, transformada. Por exemplo , se um filho for
busca po r traço s patern os .
A imensidã o do rival de J o ã o lhe garant e
pais, a identificação terá de transcorrer de tal forma que essa lugar n o p ó d i o do s pais. Gigante s sã o todo s o s adulto s
característica seja també m proprieda d e do herdeiro, pois se para a c r i a n ç a p e q u e n a , mas co m o t emp
ele pensa r tod o o temp o q u e ela pertence ao o el a vai desc obrind o q ue , su r pr ee n de nt e m e nt e ,
progenitor, fracassará no s negócios para nã o usurpá-la p o d e enganá- los. Manipula r co m seu s estado s d
dele. Se o filho se mostrar um b o m negociante por sua e humor , enganar co m p e q u e n a s mentira s o u
própria conta, poder á até conviver co m a consciência de qu e se omissões , compreende r se u p o d e r d e chantage m n
trata de uma identidade co m sua família de origem, mas para isso o jog o d o a m o r sã o instru• me nto s pelo s quai s
terá de ter matad o seu pai idealizado e se apropriad o daquilo a criança d e s d e muit o pequen a d es co b r e q u e a
qu e já era seu. Por outr o lado, se u m a família força desco mu na l d o s seu s gigantes te m inúmero
o b r i g a r - n a m a i o r p a r t e d a s vezes amorosamente s p o n t o s fracos.9
- um filho a herda r um ofício, uma A insistência d e J o ã o e m continua r rouband
característica , um negóci o , a passivida d e q u e essa o o ogro , m e s m o dep oi s d e obte r a galinh a do s
operaçã o lhe impõ e incorrerá no fracasso da empreitada, ou ovo s d e ouro , torna necessári o q u e avance mo s u m
pior. no sucess o da empreitada e na alienação do p o u c o mais ness a interpretação . Se no terceir o
sujeito, deixando- o numa infelicidade crônica. roub o o gigante finalment e despert a par a
reconh ece r e persegui r seu rival, p o d e m o s dize r
Fr e qü e nt e m en t e , ocorr e em famílias o roub o ou a
o m e s m o do m en i n o : é neste últim o furto q u e
ap r op ri aç ã o po r part e d o s filhos d e dinheir o o u d e
ele d e certa forma admit e q u e quer mai s d o q u
objeto s significativos, c o m o perfum e d a mãe , maquia• gem ,
e a s riqueza s d o monstr o , qu e r m es m o é
roupas , carro , bebidas . Nã o e sta m o s no s referi• m o s â
derrotá-lo , interessa-se po r ele.
delinqüê nci a , a o filho q u e roub a par a comprar drog as ,
ma s a o furto sintomático , a q ue l e e m q u e são Se até agora ele utilizou as riquezas do ogro
su rr u pia d o s objeto s q u e funciona m c o m o represen• sem se importar co m a procedência, ou seja, elas
tante s d o s pais . Esses objeto s estã o s u p o r t a n d o u m passaram a ser usadas po r João , da mesm a forma c o m o
rest o d e identificação, é melho r e n t ã o pe ns a r duas antes serviam ao gigante, q u a n d o se tratou da harpa,
veze s ante s d e fazer u m alarde , poi s n ã o s e objeto de prazer, ela gritou po r seu dono ,
trata e x a t a m e n t e d e r o u b o , sã o curtos-circuito s n a acordando- o para o duelo. A

122
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o
ogr o n ã o é t a m b é m uma antropófaga (como n
o Pequeno Polegar, de
partir daquele momento, as riquezas (estas mesma s q u e
estamos associando aos traços identificatórios herdados )
para serem do menino terão de deixar de pertencer ao
gigante de forma explícita, po r isso, este terá de morrer.
E importante observa r q u e é so ment e no último
roubo que o gigante r ec o n he c e J o ã o c o m o o
auto r dos outros dois. Se os disfarces adiantara m
ante s é porque foi só a partir dali q u e ele atingiu
algu m tip o de identidade. Essa tolice do ogr o - e da
sua mulhe r - serve para frisar qu e as sucessiva s
incursõe s é q u e foram construind o um a
identidad e par a J o ã o , q u e passou de ladrãozinh
o a n ô n i m o à posiçã o de rival. Depois disso, o
ogr o p ô d e morrer. Morto o d o n o , os bens
roubados restam c o m o um a herança , p as sa n d o a
ser legitimamente de João . O q u e de fato aí se legitima é a
condição de crescido, capa z da inteligência e da
coragem indispensáve i s par a b us c a r d o m u n d
o o
necessário para prove r a sua casa.

Os tesouros do ogro
s tesouro s do ogr o sã o três: a galinha
do s ovos d e outro , a s sacas d e moeda s d e
o ur o e uma harp a q u e canta e toca
sozinha .
A galinh a d o s o v o s de o u r o é a antítes e
da vaca seca. As galinha s serve m ao s h o m e n s
co m sua s u r p r e e n d e n t e c a p a c i d a d e d e fabrica
r o v o s diariamente. Estes, alé m de fonte de
aliment o para nós, referem a questã o da orige m da
vida. Inclusive o ovo é um do s símbolo s da vida,
ou da ressurreiçã o como na Páscoa católica. Então,
tant o qu a nt o a vaca. a galinha está em condiçõe s
de representa r a mulhe r e seus don s de fertilidade
e alimentação . Na versã o de Jakobs, a primeira coisa
que J o ã o tira do monstr o é aquela de qu e a vida o
havia privado : a mãe .
O ouro , porém , ultrapassa a condiçã o
matern a dos ovos. Esse metal é o lastro da s
moe das , possu i um valor universal, n ã o é fiel a
n e n h u m d o n o , serv e àquele qu e o possuir. Uma
mulhe r q u e fosse c o m o a galinha do s ovo s d e
o ur o seria c o m o u m c h e q u e a o portador, d a n d o
seu s tesouro s femininos àquel e q u e lhe ordenar.
De fato, o amo r é c o m o o ouro , p o d e brilhar
na m ã o de qual que r um q u e o possua .
Aliás, so b sua aparênci a de servilidade, a mulhe r
do ogro se revela b e m p o u c o fiel: alerta J o ã o
para o perigo qu e corr e e aind a o alimenta, parec e nã
o estar do lado do marido , ap e n a s está ali par a
servi-lo po r temor. Q u e m escut a essa história,
evidente me nte , se pergunta po r q u e a mulhe r d o
Perrault) , dispost a a partilha r d o delicios o
m e n i n o assado . C o m o Réia, a espos a de Cronos , a
ogra guard a o m e n i n o par a si, n ã o neg a q u e
o pai é um rival perigos o e temível, ma s te
m a corage m cie salvar o p e q u e n o ladrã o qu
e a sedu z co m sua condiçã o d e filho
faminto. F.ssa tensã o entr e a relaçã o co m
se u h o m e m e co m seu filho é a raiz da s
contradiçõe s q u e revela m à criança q u e ningué
m é um c o m pl e m e nt o perfeito para o outro .
Se o pai fosse t u d o para a mãe , ela
jamais teria s e entregu e à maternidade ,
d e s e j a d o par a s i u m p e q u e n o sugador . Se o
b e b ê fosse tud o para ela, para q u e entã o ela s e
manteri a co m seu ogro , providen - ciand o-lh e
todo s o s prazere s q u e ele lhe exige? A
galinha do s ovo s d e ouro , portanto , mostra q u
e J o ã o p o d e até voltar ao lar e oferecer os
tesouro s para sua m a m ã e querida , mas depoi s de
ter enfrentad o o gigante algo mudou . Ela estará mais
cm posiçã o de testemunha r a s conquista s d e
cresciment o d e seu filho, d o qu e d e retorn o a
um a díacle idealizada . As artimanha s do
m e ni n o lhe permitira m vence r o seu rival e
també m aprecia r su a grandeza .
Apenas para fazer um contrapont o co m o mito
de Eclipo, po d e m o s dizer qu e J o ã o nã o despos a a
mãe . A história cessa n o m o m e n t o e m q u e ele
lhe prova qu e cresceu e circula co m outro s
valores, mais importantes qu e o alimento qu e ela
pod e fornecer, ou seja, o our o capa z de
comprá-lo .
Depoi s de comer , o ogr o costumav a gritar co
m a mulhe r pedindo-lh e q u e seu s tesouro s fossem
trazidos. Ele o s examinava , contand o o
d i n h e i r o , v e n d o a galinha pô r seu s ovo s dourado
s e , po r fim, adormecia , r o nc an d o sonora mente ,
satisfeito co m a comid a e as posses . O último
desse s ben s nã o diz respeito ã riqueza, ma s diretament
e ao prazer: trata-se da harp a encantada . Ela toca
para ador mece r se u amo , mas ta m b é m é ela q u
e grita q u a n d o J o ã o a peg a e c o m eç a a
levá-la embora . A harp a faz o q u e a ogra n ã o fez, é
fiel àquel e a que m proporcionav a p ra ze r .
S o m e n t e q u a n d o privad o dess e bem , o gigant e
desperta , reconhec e J o ã o c o m o o me nin o qu e vinha
sistematicamente rouban do - o e decid e eliminá-lo.
D ec id i da m e nt e , nã o era possíve l
compartilha r ess e tesour o co m o pai . O s ovo s e a s
m o e d a s p o d i a m ser po ss uí d o s po r J o ã o , e n q u a n t o
o se u d o n o original aind a vivia ali no alto do
pé de feijão, ma s a harpa , ess e instrume nt o d e
prazer , j á é demais . Q u a n d o u m filho faz su a
escolh a a m or o s a o u erótica, d e o n d e buscar á
extrair o deleite , o g oz o , terá de ser o a m o
d a situação , desejar á s e senti r o o g r o d a vez .
Q u er er á se r o legítim o p o s s u i d o r d e seu s
tesouros , capa z d e

123
Fadas no Divã - Psicanálise na s Histórias Infantis

produzir naquele que escolher para amar ou desejar açougueiro é aquele que o priva dos seios, é o que
eroticamente a servidão da harpa, que não reconheça lança o menino na aventura e também o ensina que é
outro que não ele. Depois do furto da harpa encantada, preciso ser astucioso. Essa lição tem de ser rapidamente
nã o h á lugar para dois. Nesse mo mento , aprendida para ser usada contra aquele que representa
Jo ã o representa o menino crescido que já não se o aspecto mais terrível: o ogro. O pai açougueiro
contenta com o que é do pai, nem com o passado; da é també m o último, porqu e seus feijões
vida ele quer o prazer que lhe seja pessoalmente realmente fizeram a mágica. Só no fim é possível ao
endereçado. Nossos argumentos falam da imaterialidade menino dar- se conta que valeu a pena. mas depois de
desses tesouros, que não seriam outra coisa que a ter vencido os obstáculos que esse mesmo pai impôs.
transmissão de dons de pai para filho. Outra evidência Identificado com a inteligência desse pai, o
que valida a hipótese é o lugar onde João vai buscar menino arrancará a esperteza necessária para saber
os tesouros: num mundo à parte, cujo acesso o pé de como sair das ciladas da vida.
feijão pos- sibilita, criando uma passagem para essa É preciso lembrar que uma identificação
outra dimen- são (agora nas nuvens), embora já estejamos efetiva pressupõe a morte imaginária daquele que nos
no território das fadas. Que reino é esse que se situa além legou o traço. Muitos casos de incompetência de um
do nosso alcance? Que lugar e esse o qual só por meio sujeito para a \ ida se devem ao fato de que os dons
de um expediente mágico podemos alcançar? João continuam fazendo parte do pai, assim como toda a
não tem um pai vivo, logo só é possível encontrá-lo sabedoria e a esperteza seguem como atributos dele.
no reino dos mortos, que também é o reino Não é o caso de nosso herói, ele aprende
das gerações passadas, responsáveis pela tradição que rapidinho que na vida ganha quem pensa mais
nos é legada. Um dos aspectos sempre lembrado rápido, e o açougueiro, que não será mais
do ogro é necessário, desaparece.
seu excelente faro para humanos. "Fi-feu-fo-fum, farejo o O próximo pai, o ogro não está
sangue de um inglês, esteja vivo ou morto, doente ou disposto a entregar-se. Na verdade não é tarefa fácil
são, vou raspar-lhe os ossos e comer com pão"10 é a para os pais a de serem usados pela
frase mais marcante do conto e o clímax para subjetividade dos filhos e depois dispensados. Há
os pequenos. Existe uma crença muito antiga que algo nos pais que diz ao filho que ele nunca crescerá,
versa sobre os odores, a qual pode vir em nosso precisará deles para sempre e jamais será tão capaz
auxílio: tanto os humanos sentem facilmente o quanto eles para enfrentar a vida. Por isso, a
mau cheiro dos mortos, como os mortos sentiriam de resistência dos pais ao crescimento dos filhos
longe o mau cheiro dos vivos. Cremos que o ogro se precisa ser eliminada através da morte do gigante. Aliás,
situa nesse outro espaço porque ele está ligado à morte, a be m da verdade, quand o os filhos ficam
até porque ele traz a morte aos humanos. Nesse grandes, os pais parecem fisicamente menores.
caso, ela vem associada á comida (ser devorado), O ogro tenta correr tanto quanto João, mas este,
mas talvez não só pelo aspecto das teses orais de mais leve e rápido, corta o talo do pé de feijão, fazendo
incorporação, mas porque a carne possibilita o gigante desabar pelo próprio peso. Há um
pensar na diferença entre os mortos e os vivos. Afinal, corte que o filho tem de fazer desse vínculo,
como os vivos se alimen- tam de carne morta, embora este não cesse de se reconstituir e regenerar de
podemos pensar que os mortos se alimentam da várias formas ao longo da vida. Se de entrada o pai
carne dos vivos; pod e ser esse o raciocínio de precisa impor ao filho um limite, ficando com a vaca
fundo de algumas lendas sobre ogros e outros para sua própria satisfação, na saída é o filho que
antropófagos que vivem em outras dimensões. lembra ao pai que ele está pesado e velho. Nada
como conviver com a juventude dos filhos para
contabilizar que o tempo não traz só ganhos, que
Morte dos três pais as perdas são muitas.
O pai que ficará para sempre, no
ão é fácil ser filho, uma identidade é masti- melhor dos casos, é aquele nobre cavalheiro do
gada e digerida com lentidão e dificuldade. conto de Tabart, o dono original dos tesouros. O
O pai é uma figura que, sob todas suas faces, o problema é que ele nunca sobrevive para entregar
principal que tem a oferecer é o desafio. seus dons. Quando o filho se apropria, o pai em
Do ponto de vista do menino, cada conjugação pessoa, já superado, não tem mais a mesma
do pai merece uma contrapartida. O primeiro importância. Afinal, uma pessoa precisa crer que
a ser encontrado nesse conto é também o seus dons e conquistas são realmente seus, senão
último. O pai estará a vida toda lidando com a própria existência
como se fosse patrimônio alheio.
124
Di a n a L i c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o
casos, a

Volta ao lar
o fim do conto , em a p en a s um a da s versões ,
Joã o caso u co m algum a princesa ,
m a s podemo s ter a certeza d e q u e e m amba
s el e está apt o par a fazê-lo. A história
termin a
afirmando qu e ele e sua m ã e viveram felizes
par a sempre. Resta-nos a pergunta : o q u e J o ã o
q ue r c o m essa mãe que já nã o tem muito a lhe oferecer?
Sup o mo s que ela está na condiçã o de testemu nha r po r
part e da família o necessário r e co n he ci m e n t o da s
conquista s do filho. Justament e po r q u e as aventura s
acontece m fora do lar, é important e q u e os pais possa m
co n he c e r a vitória do s filhos, par a q u e fique claro q u e
est e q u e venceu é o m e s m o p e q u e n o de cujas
ca p aci d a de s todos duvidavam. Se essa é um a
história q u e tem a dizer sobre a aquisiçã o de um a
identidade , p o d e m o s acrescentar qu e esta t a m b é m
d e p e n d e d e s e fazer reconhecer co m o a mesm a
pesso a do início ao fim da própria história. Em
inúmero s conto s de fadas, o heró i busca sua família ,
e m gera l seu s irmãos , p a r a compartilhar suas
glórias, par a viver junto ness e nov o reino em qu e
ele é s ob er a n o .
A mãe perma nec e e m casa, c o m o u m resto
d o passado, com o ficam todo s os pais en q ua n t o seu s
filhos partem e voltam , de ta n t o em tanto , par
a fazer o balanço de sua caminhada . Os pais q u e
ficam, real ou metaforicamente, n o lugar e m q u e
foram deixado s a o partir, servem c o m o el o entr e a
criança q u e se era e o jovem ou adult o q u e o filho
se tornou .
Voltar par a casa é vivencia r um fio de
conti - nuidade, sentir-se part e de um a história,
confirmar a identidade de um a pesso a na s várias
circunstância s de sua vida. Por isso, nest e conto ,
c o m o na vida. o filho vai e a mã e fica, poi s
ela é fiel depositári a da memória da infância
perdida . E c o m u m q u e q u a n d o se encontrare m
en v ol vi d o s c o m a p a t e r n i d a d e ou maternidade, o
s filhos retorne m par a pergunta r à m ã e detalhes d o
se u p a s s a d o mai s r e m o t o . Desta vez, ouvem
com agrad o as mesma s histórias q u e ante s os
constrangiam : r e l a t o s d e c o m o d o r m i a m o u
s e alimentavam, de c o m o nascera m e da s
gracinha s ou travessuras q u e faziam q u a n d o bebês .
É q u a n d o s e está passand o par a o outr o lad o
da linha - agor a o filho é outr o -, q u e se torn
a possível resgatar essa s lembranças, compartilhá-la
s co m a mã e (o u co m os pais) e reapropriar-se
delas . Um d o s grande s benefícios da parentalidade está
em encontrar-s e de algum a forma com a criança q u e
um dia se foi.
Geralment e é na vida adult a a ocasiã o par a ess
e retorno , a s s i m c o r n o , n o m e l h o r d o s
125
o po rt u ni da d e para u m convívi o mais a m e n o
co m o s próprio s pais . O trabalh o d e
identificação a q u e n o s referíamos oportuniz a
tant o a consciênci a de q u e se é similar, em bor a
diferenciad o deles , q ua n t o o reconhe • ciment o d a
dívida sobr e o s legado s recebidos . Q u a n d o no s
re co n he c e m o s e n q u a n t o d ev e do r e s d o fato d e
ter pertencid o a uma linhage m ( m e s m o no s caso s
e m q u e acreditamo s q u e seja um a se m
predicados) , encontra • mo s um a forma d e
viver mais interessante , q u e no s permit e
oscilar entr e a individualidad e e o sentiment o d e
pertence r a u m gr u p o . O trabalh o d e um a
análise freqüentement e repet e a o pe ra ç ã o d e
João : primeir o pega r as riqueza s - sejam elas
fartas ou parca s - d o s pais , a segui r
conscientizar-s e d e q u e proviera m deles , d e p o i s
ap r op ri ar- s e dela s e , p o r último , aceita r a
o po rt u ni da d e d e q u e elas façam part e d e um a
história p e s s o a l . Par a s a b e r q u e m s o m o s ,
é f u n d a m e n t a l descobri r de o n d e viemo s e de
q u e é feita a bagage m q u e carregamo s para todo s
o s lados, a qual c h a ma m o s d e identidade .
Poderíamo s també m pensa r qu e Joã o
é u m p e q u e n o Édipo , poi s n o fim d a
aventur a el e volta par a casa, vitorioso, t e n d o
vencid o o gigante , par a goza r o s tesouro s co
m mamãe , c o m o aquele s filhos crescido s q u e
n ã o troca m o col o d a mã e po r amore s d o tip
o d e q u e u m h o m e m p o d e usufruir. Nã o
deix a de ser um final mais convenient e às crianças
peque nas , d o q u e aquele s no s quai s o s
tesouro s estã o se mpr e e m algu m rein o
distante , e a princes a te m d e se r
conquistad a o u d e algum a forma negociad a co m
algum s o b e r a n o s o g r o - o g r o . Pa re c e at ra e nt e ,
volta r par a finalmente o cu p a r o lugar d o papai
, se r o h o m e m d a casa. Mas essa é um a cen a
bastant e difícil, pois a mã e p o d e se r a mai s
atraent e da s m u l h e r e s ao s ol h o s a p ai x on a d o s
d o filho, mas , ao s olho s dela, el e sempr e será um
b e b ê incompetent e para a vida, q u e precisa
de sua ajuda par a co me r e se agasalhar.
Normalmente , essa saída acab a s e n d o m e n o s
um a forma d e se r o h o m e m da casa e mais
uma maneir a de perpetuar-s e na condiçã o de
filho.
Voltar par a casa vencedo r é um projeto da
criança q u e alguma vez se disse: -"ele s vã o ver!".
São inúmera s as histórias de fadas na qual um
jovem, de preferência o filho menor , considerad
o tolo e fraco, identificado co m toda s aquela s
incapacidade s q u e tem aquel e qu e ainda nã o
cresceu, sai para provar qu e é o mais espert o e capa
z de sua prole. Ele sempr e super a irmãos
mais velhos e sua revanch e às vezes passa pela
grandez a de incluí-los e m seu nov o reino,
oferecendo-lhe s esposa s e riquezas. Nã o é
precis o ser o filho caçula par a se identificar co
m ess e personagem , basta ser criança.
Fadas n o Div ã - P si c an á li s e n a s Hi st ór i a s I n fa n ti s
Tabart, qu e ele chama de "a versão
expurgada", "faz co m
Na maior part e da s vezes , é o pa i q u e m
duvid a da competênci a do filho mais m o ç o , o q u e
torn a su a aventura bem-sucedid a um a revanch e
contr a a falta d e crédito recebida . N o cas o d e
João , a dúvid a é explicitada pela màe , q u e
mediant e a troca infeliz do s feijões pela vaca constata
q u e n ã o d á par a conta r c o m o filho para nada,
fazend o cor o c o m textos os pai s e irmãos mais
velho s q u e dize m q u e n ã o s e dev e confiar n o s
p e q u e n o s , at é q u e ele s p r o v e m d o q u e s ã
o capazes .

Notas
1. Os gigantes e os ogros compartilham o tamanho, a
maldade, a brutalidade e a fama de
antropófagos. Ambos podem ser descritos com o
monoculares (o que a nosso ver sublinha o
papel do olhar nesses monstros) e, quan d o são
representados , ambo s possuem uma bocarra
pronta a devorar. Polifemo. o ciclope qu e
topou com Ulisses, é um ancestral ilustre
desses seres qu e hoje pode m ser incluídos
nessa categoria confusa entre o gigante e o
ogro. Por outro lado. existem inúmeros mitos qu e
levam a crer que o home m primitivamente era um
gigante e que vem degenerando , ficando cada
vez menor, mais traço e vivendo meno s tempo . O
ogro possui uma característica qu e nem sempre o
gigante possui, u m olfato b e m d es e n vo lv i d o
par a percebe r a proximidade de humanos.
Provavelmente a palavra
"ogro" vem de Orcus. figura de origem popular
na religião romana, às vezes confundida com
Caronte e, por isso. associado à morte.
2. JAKOBS, Joseph . Contos de Fadas Ingleses.
São
Paulo: Landy. 2002.
3. "As aventuras de Joã o foram registradas em primeiro
lugar por Benjamin Talbart, em 1807, c o m o
A História de João e o Pé de Feijão'. Tabart baseou-se,
sem dúvida, em versões orais qu e circulavam
em sua época, embora afirmasse qu e a fonte
de seu conto era um manuscrito original". In: TATAR,
Maria. Contos de Fadas: Edição Ilustrada &
Comentada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
Esta versão, m en o s popula r hoje e m dia, p o d
e ser lida e m portuguê s na tradicional
enciclopédi a infantil O Mundo da Criança,
publicada na década de 1950, pela editora
carioca Delta.
4. MILLS, Alice. Cbildren's Treasury. Ne w
York: Random House, 2002. Tradução nossa.
5. Na opiniã o de Bettelheim, esse cont o de
qu e tud o qu e suced e a Joã o seja uma
retribuição moral em vez de um a história sobre a
aquisição da masculinidade". Ele o contrapõ e ao cont o
de Jakobs, qu e considera "original": "O original de João
e o Pé de Feijão é a odisséia de um menin o qu e
luta para c o n s e g ui r i n d e p e n d ê n c i a de um a
m ã e que o menospreza e tenta conseguir por conta
própria uma certa grandiosidade. Na versão expurgada,
João faz apena s o qu e lhe diz outra mulher
mais velha e poderosa". In: BETTELHEIM, Bruno.
A Psicanálise dos Contos de Fadas. Rio de Janeiro:
Paz e Terra,
2001, p. 231 (nota).
6. Poderíamos inclusive pensar qu e eles contêm uma
promessa de crescimento qu e é muito preciosa era
particular para um menino , pois o feitiço
propicia algo qu e se parec e com uma ereçã o
gigantesca. Assim cont o as sementes são uma
analogia recor• rente do sêmen human o (não só pela
origem comum das palavras, mas també m pela
história da semen- tinha do papai na barriga da
mamãe). Nesse sentido, a magia do s feijões seria alusiva
à maturação sexual do menino. Bettelheim propõ e essa
leitura ao afirmar qu e "escalar o pé de feijão simboliza nã
o só o poder mágico de ereçã o do falo, uras
també m os senti• mentos do menin o em conexã o
co m a masturba- ção". Ele també m atribui essas
fantasias a um sonho, dize nd o q u e "nenhu m
menin o norma l poderia, durante o dia, exagerar
de mod o tão fantástico as esperanças qu e sua
masculinidade recém-descoberta lhe desperta. Mas
durante a noite, no s sonhos, isso lhe aparec e em
imagens extravagantes, com o o pé d e feijã o p o r
o n d e s o b e a t é o s c é u s " . In: BEITELHEIM.
Bruno. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Rio de
Janeiro: Paz. e Terra, 2001, p p . 227 e
228 (nota).
7. A leitura freudiana da identificação co m o pai e da
rivalidade qu e esta conté m leva-nos a pensar
que que m que r se parecer co m o outro tem boa s razões
para devorá-lo. Nesse sentido, poderíamo s pensar
q u e . de certa forma. J o ã o elimina o ogr o e
se apropria do s seus objetos com o se
incorporasse algumas partes deste, lhe comesse
alguns pedaços:
"A identificação é conhecida pela psicanálise como a
mais remota expressão de um laço emocional com outra
pessoa. Ela desempenh a um pape l na história
primitiva d o Co m p le x o d e Édipo . U m
menin o mostrará interesse especial pel o seu pai;
gostaria de crescer com o ele, ser com o ele e tomar seu
lugar em tudo. Podemo s simplesmente dizer qu e
toma seu pa i com o seu ideal. (...) O menin o nota qu
e o pai se coloca em seu caminho , em relação à
mãe.
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o C o r s o

Sua identificação com ele assume então um colorido


hostil e se identifica com o desejo de
substituí-lo também em relaçã o à mãe . A
identificação na verdade é ambivalente desde o
início; pod e tornar- se expressão de ternura com tanta
facilidade quant o o desejo de afastamento de
alguém. Comporta-se como um derivado da primeira
fase de organização da libido, da fase oral, em que o
objeto qu e prezamos e pelo qual ansiamos é
assimilado pela ingestão, sendo desta maneira
aniquilad o c o m o tal. ' In: FREUD, Sigmund.
Psicologia de Grupo e Análise do Ego(\92\), cap. VII,
p. 133- Obras completas, vol XVIII. Rio de
Janeiro: Imago Editora, 1987.
O ouro , assim c o m o o d i n h e i r o , sã o
valore s monetários e, portanto, uma abstração. Eles
não têm valor em si, não servem diretamente para
nada. sua
cotação depend e de parâmetros externas. A
comida ainda tem um valor direto: é o
alimento de qu e precisamos para sobreviver. Os
distúrbios alimentares variados (anorexias e
bulimias) provam qu e ela está sujeita a uma
inserção subjetiva, que relativiza esse caráter
direto, mas ainda é diferente das riquezas
monetárias, estas sim são de um valor
impalpável.
9. A arte dos pequeno s em enganar os grandes,
com o fez João . é recorrente nos contos de
fadas. Para citar apena s seus similares mais
populares, temos O Pequeno Polegar e O
Cato de Botas, am bo s de Perrault.
1
0 \a tradução de Maria Luiza X. de A. Borges,
para o livro: TATAR, Maria. Coutos de
Padas: Edição ilustrada & Comentada. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.

127
Capítulo IX
HISTÓRIAS DE AMOR I: QUEM AMA O
FEIO, BONITO LHE PARECE

O Rei Sapo, A Bela e a Fera e O Príncipe Querido


Repulsa infantil ao sexo - Idealização do objeto amado -
Início da vida sexual - Narcisismo infantil - Aspectos agressivos do
amor - Renúncia ao amor dos pais - Crescimento e civilidade

m diversos conto s de fadas, há u o s percalço s d a relaçã o c o m eç a m po r have r


m laps o d e t e m p o en tr e algo d e r e p u l s i v o , a n i m a l e s c o o u i n d o m a d o
o primeir o m o m e n t o e m qu e e m u m d o s m e m b r o s do casal - geralment e no
o príncip e e a princes a se olha m h o m e m . Na maioria da s vezes , o aspect o terrível
e se apaix ona m e aqu el e deve-s e a algu m feitiço q u e o a m o r finalment e
em q u e enfim ficam a sós no vencerá , p o r é m ante s ess e sentiment o terá d e s
leito nupcial . Muitas vezes , e prova r c o m o alg o maior q u e a atraçã o física,
haver á aventura s interposta s dever á transcend e r as aparências . Uma ve z posta s
entr e o pri m ei r o e n c o n t r o á prov a a nobrez a d o s sentimento s e a força
e a ceri • d o s heróis , o casal terá direito a uma image m
mônia de c a s a m e n t o . D ep o i s de d e s c o b r ir e m condizent e c o m a idealizaçã o da paixão , em
que desejam um ao outro , aind a lhes faltará lutar q u e a belez a e a riquez a da s veste s d o s
po r ess e amor, perder-se para reencontrar-se , vence r a m a d o s p o d e m recom pen sa r o s amante s pel a
opositore s ou enfrentar desafios. Temo s analisad o agrura d a conquista .
alguma s dessa s histórias no s capítulo s anteriores , mas , O casa me nt o é o último horizont e a qu e cheg a a
naquele s casos, a beleza d e a m b o s o s c o n s o r t e s maio r part e d o s herói s desse s contos , em bor a
ga ra n t e o m ú t u o encantamento d e qu e tirarão muitas v e z e s a relaçã o aind a tenh a d e
energi a para vence r o s obstáculos q u e o s separam enfrenta r a l g u n s cont ratem po s par a s e
. estabelecer , c o m o n o cas o d e Rapunzel e da Bela
Analisaremos agora alguma s das Adormecida, na versã o de Perrault. Depoi s do
i n ú m e r a s histórias d e desen contr o inicial. São felizes para sempre, q u e em geral significa casado
aquela s e m q u e s até q u e a mort e os separe , termin a o ciclo da
Fada s n o D i v ã — P s i c a n á l i s e n a s Hi st ó ri a s Infa nti s

maior parte desse s relatos; m e s m o q u a n d o m e n ci on a d o q u e t e n h a m ficado, n o nos s o t e m p o , par a


q u e o casal tev e filhos, a continuaçã o da história us o das crianças . O horizont e da juventude ,
n ã o vai muit o long e d a boda . o n d e elas têm o p o rt un i da d e de ama r e mostra r se
Quest õe s d a maturidad e n ã o sã o alvo do s conto s u valor, é fonte de apree nsã o , já q u e se p r e para m par
de fadas. Se a velhice, a mort e e a ed u ca ç ã o do s filhos a vivê-la, é a porção de futuro q u e têm em vista. Nos
aparecerem, serão sempr e mostradas desd contos , verificam que n ã o será um a experiênci a fácil,
e a perspectiva do s mais jovens . Certas histórias e m b or a perceba m que há luz no fim do túnel .
co m e ç a m co m a intençã o d e u m velh o rei d e Se há algum d a d o do futuro q u e as crianças levam
escolhe r u m entr e seu s filho s c o m o sucessor . em conta é o amor. Evidentement e estarão preocupadas
Nelas, a perspectiv a d a narrativa ac o m p a n h a a co m o que vão ser quando crescer, o q u e se
disput a entr e os príncipe s para obte r ess e direito, na qual traduz em expectativa s de trabalh o e sucesso ,
vence , na maioria da s vezes , o mais jovem e ma s sabe m que d e p e n d e m d e ama r e ser a m a d a s
ap ar e nt e m en t e m e n o s apt o d o s irmãos . Raros sã o o s par a sua sobrevivên• cia e n ã o tê m motivo s par a
caso s q u e enfoca m a qu estã o d a supo r q u e essa dependên• cia, tã o explícita na infância,
sucessã o d o po n t o d e vista d o s pais, daquele s se modificará radicalmen• te. E normal , portanto , qu e se
q u e envelhecem , q u e p er d e m a vez. Em A Gata p r e o c u p e m co m o futuro d e seu s vínculos am oros os .
Branca,' narrad o po r Madam e D'Aulnoy, o q u e Conhecedore s do s conto s d e fad a
moviment a a trama é o fato de o rei sempr e inventa r poderã o c o n tr a p o r qu e muita s história s
novo s desafios para seu s três filhos, co m o objetivo contempla m prota• gonista s maduros , casais
de procrastina r o m o m e n t o d e deixa r o trono . premi ado s pela sua bondade em recebe r os
Embor a aqu i apareç a explicitamente a vacilação d o necessitado s em casa ou castigados pela m e s qu i nh e z ,
velh o q u e n ã o s e confor- ma, seu valor na trama está animai s m o s t r a n d o q u e a uniã o faz a força ou
su b or di n a d o à luta travada entr e os filhos pel o trono . re ss alt a n d o um a ou outr a virtude . É um
univers o vastíssimo e existe essa vertent e de
Em outr o tip o de relato, o rei se encontr a de sc o n -
contos co m estrutura s fabulares, voltada par a a
tent e c o m o r es ult a d o d a e d u c a ç ã o d e u m
transmissão de valores e a reco mpe ns a da s virtudes.
filho, considera- o preguiçoso , ignorant e ou fraco,
Mas os leitores assíduo s d e conto s folclóricos d o
po r isso, enviará o jovem para um a jornad a de
m u n d o to d o admi• tirão qu e , na maioria da s
aprendizage m ; entretanto , lemo s um a história dess e
histórias, o a m o r - incluindo aqu i o reco nheci me nt o
tip o coloc ando - no s na expectativa da revanche , na qua l
patern o - é o motor, o prêmio ou o desafio da
o filho provará a o pai d o q ua n t o é capaz . Gostamo
trama.
s d e testemu nha r ess e p e r s o n a g e m c a l a n d o a s
dúvida s do pa i tã o espetacularment e q u an t o Este capítul o — assi m c o m o os doi s q u e se
gostaríamo s d e ter impres • sionad o nosso s se• g u e m - será d e d i c a d o ba si ca m e n t e às
próprio s pais , qu e invariavelmen t e sentimo s aventur a s que ocorre m n o território d o amor,
vacilar n a confiança q u e no s depositava m . especialment e àquelas e m qu e u m do s
Salientamos que , em a m b o s os casos , a ênfase c o n s o r t e s n ã o c o r r e s p o n d e à expectativ a d o
está me no s no s dilema s sucessório s o u outro . A feiúra g e r al m e n t e aparece associad a a
pedag ógic o s d o s monarca s e mais na disput a do s o caráter animalesc o d o outro , c o m o nos caso s
filhos pel o tron o ou pela herança . conhe cido s de O Rei Sapo e de A Bela e a Fera.
Q u an t o às filhas mulheres , a ênfase dos
conto s mostra co m o alguma s terã o d e lutar contra a s
cobrança s afetivas po r parte d o pai. q u e lhes exig O Rei Sapo
e u m tip o d e víncul o q u e já não cab e na
relaçã o paterno-filial. O pai p e d e um amo r q u e mais célebr e história de um noiv o
está reservad o par a o futuro e nã o voltad o para o animal e d a transformaçã o d o repulsiv o
passado . Outra s terã o d e enfrentar o desafi o d e e m atraente é co m certeza O Rei Sapo.2
cresce r l ut a n d o contr a sua s pr ó pri a s resistências, Nele, um monarca
sã o as princesa s mi mad as , cujos pa i e enfeitiçacl o d e p e n d e d o a f e t o d e
pretendent e terã o d e privá-las d o s mimo s d a uma princes a para voltar à forma original. Um a
Corte, d a família, lançando-a s n a aventur a a o ca b da s mais clássica s c e n a s e v o c a d a s p e l o s c o n t o
o d a qua l encontrarã o seu príncipe . s d e fadas é justament e a da bela princes a
A s variante s sã o muitas , ma s o beijand o um repulsivo batráqui o , permitindo-lh e o
d e n o m i n a d o r c o m u m é o p o n t o de vista a partir retorn o da metamorfose. A possibilidad e de um
do qua l se narra m tais contos : a juventude . Por isso, s a p o virar príncip e é um bom argument o par a o
n ã o caus a estranhez a fato d e q u e a s aparência s n ã o devem ser impediment o
par a u m a relação . Seguidament e a s

130
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mário Cor s o
e pel a família

mulheres recorre m a ess a história com o


metáfora , quando argume nta m q u e val e a p e n a
investi r e m determinado pretendente , ap o st an d o
mais n o q u e ele se tornará do q u e naquil o q u e
é no presente . Mas vale a leitura do conto , tal
c o m o estabelecid o pelo s irmãos Grimm, par a no s
su rp re e n de r m o s co m um fato importante: a princesa
també m te m lá sua feiúra.
Trata-se da filha mais jovem do rei, c o m o sempre , a
mais bela de toda s as princesas . Nos dias quentes
, ela tinha por hábit o brincar co m sua bolinh a de
o ur o perto de uma fonte, ma s um a ve z deixo u
cair seu precioso objeto na águ a profunda , fazend o o
brinque - do desaparecer. Desesperada , pôs-s e a
chora r c o m o um bebê, aos gritos. Nesse m o m e n t o
surg e um sapo , prometendo alcançar-lhe a cobiçad a
bola, mas some nt e se ela concordar em levá-lo para
a casa dela. Além disso, teria d e lh e aceita r
c o m o c o m p a n h e i r o d e brincadeiras, compartilha r co
m ele seu prat o e admitir sua companhia até na própri
a cama . A jovem concor • dou, mas sem a mínim
a i nt e nç ã o de h o n r a r u m a promessa feita a tã o
desprezíve l criatura - e aqui ela se mostra uma
pesso a be m p o u c o bonita . Depoi s de obter a bola
de volta, ela foge co rr en d o do sapo , ma s ele vai
até o c a ste l o e b a t e à po rt a , e x i g i n d o o
cumprimento da palavra da princes a caçula.
Horrorizada co m a apariçã o cio sapo , a
princes a relata o ocorrido ao pai qu e , em vez de
apoiá-la, lh e exige que faça jus ã promessa . Assim,
tomad a de nojo, é obrigada a admitir o batráqui o
em sua mes a e em sua cama; na hora de dormir,
ela n ã o agüent a mais o assédio dele e raivosa o
atira contra a parede . Ele, então, se transforma
n u m bel o príncip e e ela, num a enamorada
princesa.
E surpreendent e q u e o gost o popula r
recent e tenha se apegad o a um a cen a q u e
simplesment e nã o existe na narrativa clássica do s
irmão s Grimm: a da princesa beijando o sapo . Não
só nossa heroín a jamais se disporia a isso, com o també
m a transformaçã o nã o era provocada po r um at o de
amo r e sim de violência. Na atual versão popular , o
sa p o esclarec e à jove m que ele é um príncip e
enfeitiçad o e, em nom e da perspectiva da
transformação , ela se sacrifica e venc e o nojo,
beijanclo-o. Já nesta narrativa mais antiga, a
princesa se envolv e co m o animal se m ess e
consolo , a aparição do bel o príncip e é um a
surpres a q u e a recompensa pelo s ma u s b o c a d o s
po r q u e passou .
A o s er m o s fisgado s p e l o am or , t e m o s
c o m o conseqüência a saída da casa do s pais para
vivermo s a relação, porém , isso n e m s e m p r e é
pacífico. Po r mais que os conto s insistam q u e o amo r é
um a pr o m e s - sa capaz de re com pensa r pela infância
131

perdidas , partir é mai s fácil par a os heróis


qu e têm madrasta s bruxas , pai s fracos, egoísta
s o u qu e sã o m es q ui n h o s movido s pela fome.
Q u a n d o o lar convida a ficar, sair será um a
o pe ra ç ã o doloros a e brusca, qu e p r e s s u p o r á algu
m tip o d e expulsão , comument e
personificad o po r u m casa ment o impost o
contra o s desejo s da jovem. Na história do Rei
Sapo, o pai da princes a lhe impõ e a
com pan hi a do ser viscoso em seu leito,
sub meten do- a á violência dess e convívio. O g es t o
agressiv o d a jove m está á altura d o
caráte r torturant e da situaçã o em q u e se viu
envolvida, mas t a m b é m é u m gest o dramátic o
d e rompimento , d e revolta contra a autoridad e do
pai e contra as exigências d o sapo . A
indepe ndên c i a nã o p o d e ser construída de
submissão , cresce r é ta m b é m percebe r a
limitação da força e do p o d e r da autoridad e
parental.
A versã o popula r do beijo nã o enfatiza o
ato de rebeldia da princesa . Naquel e caso, a jovem
se dispõ e a um a troca vantajosa: ela faz um
esforço para vence r o nojo e m n o m e d e u m
amo r possível (voltaremos a o tem a da repuls a
mais adiante) . De qualque r maneira, ela se
submete , ma s o fará soment e se isso lhe convier. Um
sacrifício movid o po r um a razão pragmática nã
o é um ato de obediência , é uma troca.
De qualque r maneira, o qu e é conhecid o
com o um beijo originalment e foi escrito co m o um
arremesso, send o assim, n ã o há c o m o suavizar
essa trama. Para ocorrer, u m amo r d e p e n d e d
e qu e u m rompimen t o co m a família de origem
esteja em curso ou consumad o . É necessári o q u e o
a m o r e n t r e pa i e filha te n h a encontra d o
uma nova dimensão .
J á vi m o s e m outra s história s ,
a n t e r i o r m e n t e analisadas , quai s sã o as
condiç õe s propícia s para a separaçã o entr e a
m ã e e os filhos, assim co m o para a identificação
entr e este s e seu s pais. Aqui, q u a n d o cheg a
a vez de a p re n d e r a ama r fora de casa, també m nã
o h á p o uc o s dramas .
Não é se m um a certa agressividad e q u e os
jovens d e a m b o s o s sexo s enfrenta m se u futuro
amor . Uma certa irreverênci a é a marc a da
recém- con quistad a l i b e r d a d e . Ela fará co m
q u e o s amante s nã o s e entregue m u m a o
o ut r o s e m p r e tã o passivam ent e , c o m o um a
princes a a d or m e ci d a e m u m castelo . O j o g o
erótico-agressiv o evidenci a qu e u m pact o
a m o r o s o n ã o é inicialment e pacífico, s ó de p oi
s qu e o sap o s e torno u inconvenient e a o
e x t r e m o e a princes a tot alme nt e intolerant e é q u
e ele s d e s c o b r e m o amor . A primeir a marc a n ã
o é de fascínio m út u o . Antes q u e o amo r o s torn e
s e m p r e tã o repetitivament e belos , ele s terã o q u e
ve n c e r a fera q u e h á d e n tr o d e cad a u m .
Fada s n o D i v ã — P s i c a n á l i s e n a s Hi st ó ri a s Infa nti s
q u e c o m p õ e o quadro : o amor, o sex o e a
violência. Resumind o todo s os termos, é o
amo r - simbolizad o pel o beijo - qu e
À s vezes , para e nte n d e r u m s o n h o o u u m
mito , é preciso inverter alguns cios elemento s em jogo.
Temo s a q u i um a pr in c es a q u e , n u m g e s t o d e
violênci a , atirand o o sa p o n a parede , transforma u
m animal e m u m h o m e m . S e invertermo s algun s
termos , p o d e m o s fazer outra leitura: temo s u m
príncip e q u e , n u m at o d e violência, transforma um
a menin a e m um a mulher . Com o a cen a se passa no
quart o e a sós, é precisament e ali q u e termin a a
paciênci a d a n o ss a pri nc es a , é provável qu e ness
e quart o tenh a s e d a d o a transforma• ção . A primeira
co n ce p ç ã o q u e a s crianças tê m d o ato sexua l associa-s
e a um a c e n a d e algum a forma d e violência,
pode r ou submissão . Por isso, o desenlac e dessa
história nã o lhes soaria estranho .
O beijo entr e a princesa e o s a p o é
um a da s cena s mais clássicas da iconografia do s conto s
de fadas. Acreditamos qu e essa image m é alusiva
ao estranha - ment o mútu o qu e embaraç a nosso s
protagonistas, o n d e a diferença de espécie s ilustra
de forma caricatural a diferença do s sexos. O encontr o
amor os o heterossexua l r o m p e um a seqüê nci a long
a d e a m i z a d e s h o m o s - sexuais qu e aco m panhara
m tod a a infância, q u a n d o se identificar un s co
m os outro s e se imitar mutua - ment e era o
tom.
A descoberta do vínculo amoros o introduz o tema d
a diferença entr e dua s pessoa s q u e s e sente m
muit o concernidas, mas terão de lidar
constantement e co m formas diferentes de encarai" o
mu ndo , de ver um ao outro, assim c o m o conviver co
m o contat o entr e corpo s diferentes. Tud o isso. acoplad o a
uma proximidad e física nunc a antes experimentad a -
po r ser assumidament e erótic a - , co n tri b u i p a r a
o c a r á t e r a g r e s s i v o d o s primeiros amores , pleno s
d e desenco ntro s e encontro s espetaculares , com o no s
conto s d e fadas.
Po r sorte , vivemo s e m u m t e m p o e m
q u e a primeira relação sexual nã o é cercead a po r
tabus, ne m e x t r e m a m e n t e valorizada . Embor a
n ã o seja s e m importância para a vida de cada
um, n ã o é mais o marc o fundamental da vida
adulta da mulher, c o m o fora até be m p o u c o t emp
o atrás - c o m o se p o d e ver a importância da
defloraçâo captad a na cena. Naquel e contexto ,
era e s p e r a d o q u e u m at o tã o ritual, tã o
valorizado , fosse o pe r a r um a transformaçã o
radical. Nesse sentido, é compreensíve l qu e a princesa nã
o seja a mesm a depoi s de compartilhar uma cama co m o
sapo , ela també m se transforma a partir daquel a
noite.3
A substituição da s cenas , da violência pel o
beijo, no s cai tão bem , porqu e de fato há um a
indefinição quant o a o c o m e ç o d e cad a element o
achava não haver nenhum cavalheiro digno dela.
Rejeitava e ridicularizava um depois do outro", ou ainda
"anunciara que se casaria com o primeiro homem que
transforma a violência do sex o em alg o desejável e
fosse capaz de propor-lhe um enigma que
restitui a hu manid ad e do noivo . ela não pudesse decifrar. Porém, se ela adivinhasse, o
homem deveria ser decapitado". Km geral, cabe ao
pretendente dobrar a noiva através de sua esperteza e
As princesas domadas de todos os ajudantes mágicos que conseguir alistar.
Nesses contos, é recorrente também a intervenção
jovem da história O Rei Sapo faz parte de do pai da jovem, pondo fim a seus
uma linhagem de princesas orgulhosas dos caprichos. Um bom exemplo é o caso de O Rei
contos de fadas, cuja representante mais Bico-de-Tordo,4 no qual o pai. irritado com a
popular nasceu da pena do dramaturgo inglês soberba da filha, decreta que ela se casará com o
Shakespeare: Catarina, da peça A Megera Domada. Não se primeiro mendigo que bater á sua porta. Um príncipe
trata de uma contradição, já que ele recolhia histórias do pretendente, que havia sido ridicularizado pela
folclore para inspirar suas personagens e suas tramas. A megera princesa, disfarça-se de mendigo, casa-se com ela e
Catarina não era uma princesa, mas a filha de um rico impõe à jovem uma rotina de trabalho e pobreza, até
burguês, e sua soberba agressiva torna-a um desafio para que ela tenha sofrido o suficiente para mudar seu
o homem que quiser desposá-la. Quando finalmente surge caráter. Tal situação também pode ser
um corajoso candidato, ele utiliza para domar a exemplificada com as palavras de outro
personalidade inconveniente da moça um método príncipe despeitado, personagem de Os Seis
similar ao de muitas histórias de fadas, em que as Criados, também dos Grimm: "sofri tanto por sua
princesas orgulhosas são submetidas a passar trabalho, causa, que achei que também devias sofrer por
necessidades e principalmente são privadas das vestes minha causa".
suntuosas e dos mimos que recebiam de seus pais na
Corte. Essa abordagem é bem diferente daquela
das lânguidas princesas enfeitiçadas, que esperavam
Várias histórias relatadas pelos irmãos Grimm inertes o príncipe chegar, para lhes oferecer
possuem um início quase invariável: "Era uma vez um rei status social,
que possuía uma filha belíssima, mas tão orgulhosa que

132
Di a n a L i c h t e n s t e i n Cors o e Mári o C o r s o

riqueza e segurança . Aqui parec e q u e o início de um a


relação é um duelo , em q u e o h o m e m , se perder , será
decapitado, e a mulher, q u a n d o derrotada , d o m ad a . É
impossível negar a perspectiva social q u e se evidenci a
em tais histórias. São os trâmite s necessário s
par a garantir a submissã o da espos a ao esposo ,
implícita no casamento tradicional. Milênios de
o p r e s s ã o da mulher encontra m aqu i um a b o a
tra d uç ã o . Afinal, reduzir a mulher a seu lugar de
súdita, m e s m o s e n d o rainha ou princesa, seria tarefa
do pai e do marido . As mulheres contemporâne a s
teriam mais motivo s para se identificar com essas
princesa s indômita s do q u e com a inerte Bela
Adormecida . Mas nã o acreditamo s que a
sobrevivência dessa s trama s na nossa cultura
deva-se apena s ao s restos da opressã o vivida
pela s mulheres. A s o b e r b a d a p r i n c e s a q u e
d e v e se r erradicada está mais relacionad a co m
uma forma de infantilidade, personificada tant o n o
chor o desmesu - rado pela bolinha de ou r o
perdid a (u m bri n q ue d o ) quanto na incapacidad e
de mante r um co mpr o miss o social (a promessa
dad a ao sapo) .
Há unia espéci e de pact o entr e o pai e o preten •
dente para colocar limites nessa s menina s
mimadas , assim c o m o e xi st e m histórias , tal
qua l O Duende Amarela,5 de Madam e D'Aulnoy. em
q u e a mã e busc a uma saída para as falhas na
ed u ca ç ã o q u e dispenso u à sua filha. Nesse caso, a
beleza da filha foi tã o elogiada que a jovem passo u a
considera r q u e n e n h u m h o m e m era digno dela. Parec e
q u e , em certo s m o mentos , um a filha porá todo s os
emp ecilho s possíveis ao cas ame nt o a fim de permanece r
na Corte de seu s pais. Nã o estará disposta a sair de bo m
grad o e só o fará q u a n d o surgir um homem muito
especial, capa z de lhe impo r um a sujeição qu e
ante s ningué m conseguiu .
Na vida real, po r sua vez, o rom pi ment o da jovem
com a casa familiar rarament e é pacífico. Não é
nad a incomum a ocorrênci a de um a ou mais cena s de
algu m tipo de violência, express a na elevaçã o do
tom da s vozes nas discussões , no bate r da s portas
, em algu m objeto quebrad o ou arremessado , tal qual o
sapo , c o m o premissas necessária s par a q u e um a
partid a poss a acontecer. As discussõe s entr e pais e
filhos, da s quai s as moças sã o as protagonista s
mais freqüentes , po r serem mai s dada s a
argumento s verbai s e m a i s submetidas a o
m u n d o doméstic o , d e n o t a m o fim d e u m a co r do
, de u m entendiment o n o relativ o a o
funcionamento da vida e do lar.
É precis o q u e o objet o q u e simbolizava o m u n d o
infantil seja jogad o fora, par a q u e a menin a
cresça. Mas s e ela n ã o estive r pronta , chorar á
c o m o u m a criança mimada . Ante s de encontra r se u
príncipe , terá
133
de ser, ainda um a vez, cercead a pela educação
parental. N o meio , entr e o s mo m e nt o s simbolizados
pela perd a da bol a dourad a e o surgiment o do
príncipe, há as cena s de submissão , raiva e
violência. O sapo, ao lh e devolve r o brinquedo ,
já lhe anuncia que, uma vez q u e o perdeu ,
n ã o reencontrar á mais seu m u n d o d o m e s m o
jeito. Ela nega em princípio, mas a vida bate à sua
porta, exigind o o cumpr iment o d o seu curso
d e cresciment o e de separaçã o do s pais.

Beleza versu s feiúra, nojo versu s


atração izem q u e o amo r é cego ,
de certa forma é mesmo . O
enamorament o prov o c a um a
idealizaçã o d o objet o a m a d o . Toda s
sua s
virtude s serã o ressaltada s e seu s
defeitos m i ni m iz a d os . O amo r é Lima
p o d e r o s a lent e q u e distorce para aumenta r o valor
daquel e a q u e m entrega- mo s o co ra ç ã o . O feio
vira bonito , essa é a lição primeira do cont o
O Rei Sapo. Outra , q u e talvez n ã o contenh a
exatament e a mesm a mensagem , mostra que , so b o
sign o do amor. é possível a transformaçã o do
re p ug n an t e e m atraente .
O s e x o é c o n s i d e r a d o p e l a s cr i a n ç a s
c o m o assustador , violent o e principal men t e
nojento . Elas ficam b e m chocada s a o imaginar o u
deduzi r o tip o d e prática a q u e os adulto s se entrega
m na sua intimidade. Provavelmente , a feiúra da s
pe rs o na g e n s dess e cont o a d v e n h a t a m b é m daí ,
d a intimidad e a q u e foram forçados pela
promess a feita ao s a p o pela princesa, d e co me
r n o m e s m o prat o e dormi r n a mesm a cama . A
criança tem um contat o muit o próxim o co m
aquele s q u e a cuidam . Em n o m e da higiene,
eles têm a c e s s o a sua s parte s íntimas ,
f r e q ü e n t e m e n t e compartilha m seu s talhere s e
prat o e deitam-s e co m ela para conversar, para
lhe conta r histórias ou para fazê-la adormecer .
Através da inocência infantil, essa intimidad e fica
a salvo de revelar as tintas erótica s q u e p o d e
assumir. A criança supos tame nt e é um ser fora
d o sexo , po r isso, a intimidad e d e u m
p e q u e n o co m seu s adulto s é um a relaçã o
protegid a po r todo s os tabu s q u e obriga m a
respeita r e cultivar a sua ingenuidad e . Essa
mesm a ingenui dad e teve Chapeu - zinh o Vermelh o
q u a n d o s e entrego u ao s ardis d o lobo , se m
desconfiar da s segunda s intençõe s deste . Em
O Rei Sapo, apesa r de o sa p o a p e na s q u er e r se
livrar do feitiço, o desenlac e amor os o da trama, q u a n d
o a jove m s e descobr e compartilhan d o o quart o
c o m u m bel o jove m p o r q u e m s e apaixona ,
n ã o deix a dúvida s d o caráter adult o assumind o
pel a intimidad e d a dupla .
Fada s n o D i v ã - Psi c a n áli s e n a s Hi st ór i a s Infanti s
dúvidas , aquel a q u e brincav a n a fonte co m sua
bolinh a d e o u r o
O q u e enoja o s p e q u e n o s e m relaçã o à
vida erótica do s grande s é justament e o outr o us o 134
daquil o q u e para eles deveria ser ap e n a s
funcional. Nã o h á dúvida s d e q u e a s crianças n ã o
s e omite m d e sentir e demonstra r um a série d e reaçõe
s prazerosa s associada s a sere m limpadas ,
acariciadas, abraçadas , ma s o tip o d e víncul o
paterno-filial providenci a par a qu e tais
manifestações sejam contida s e , d e preferência,
n ã o explicitem seu caráter erótico . Existem
ocasiõe s e m q u e um a criança diz coisas q u e
deixa m explícito q u e ela está sentind o um praze r
erótico. Os adultos , po r sua vez, descaracteriza m a
situação , a c h a n d o graça e transformand o sua s
palavra s e m a n ed o ta ; p o d e r ã o també m repreendê-
la , assim c o m o evitarão a situaçã o d e o n d e ela
extrai ess e prazer. São o s e x p ed ie nt e s pelo s
quai s o tab u cia inocênci a infantil te m sid o
preservado .
Q u a n d o , n a intimidad e d e u m casal, u m
p õ e comida n a boca d o outro , despe m-s e
m ut u a m e nt e o u deitam-se juntos, todo s aquele s
gestos , q u e outror a faziam parte do s cuidado s
materno s primários, assu• me m outr o significado,
ficando sub ordina do s à erótica da relação. Assim
fazendo , revela m o potencia l erótic o d a primeira
relação, motivo pel o qua l Freud c h a m o u a mã e de
a primeira sedutora .
A sensaçã o d e asc o e noj o associad a a o at
o d e come r ou a outro s m o m e nt o s da vida
cotidiana foi muit o analisad a no s primórdio s d a
psicanálise , po r ser sintoma insistente na histeria
da époc a de Freud . Foi d es d e entã o considerad a o
sinal de q u e há algu m contetkl o inconsciente,
normalmen t e sexual, associad o a um pe n sament o nã o
admitid o na consciência . Algo q u e d á sinais d e
sua existência n a medid a e m q u e temper a co m u
m sentiment o d e asc o outr o pensament o a p a r e n t e m e n t e
inocente , p o r e s s e d e s l o c a m e n t o associa-se a
e m o ç ã o a um nov o objeto, ma s se m um vínculo
d e significado aparente .
A princesa morr e de nojo ao compartilha r
sua intimidade co m aquel e ser viscoso q u e se
insinua a ela de forma tã o impositiva. Parec e
compreensíve l , pois a ningué m ocorreria sentir
ternur a ou a p e g o po r um sapo , q u e aliás tem o
péssim o hábit o de incha r e intumescer , c o m o s o e
oc o rr e r a o s ó r g ã o s se x ua i s q u a n d o excitados .
Nad a mai s distant e d o ca ri n h o infantilóide q u e
outr o bichinh o poss a evocar, d o qua l prové m o
hábit o cios amante s chamarem-s e mutua • ment e d
e gatinho , coelhinho. . . ficando assim ness e espaç
o intermediário entr e o desejo matern o e o sexual. O s a p
o é estrangeir o a t u d o isso, su a presenç a
na intimidad e da princes a n ã o deix a lugar a
volto u do passei o comprometid a co m um
sapo asqueroso . Após o incidente , ela estará fadada à perda
da intimidad e infantil co m os outro s e a um sentimento de
nojo, que chegar á par a avisar que come r e dormir
p o d e m associar-se a outro s prazeres .

A Bela e a Fera
om petind o co m O Rei Sapo, A Bela e a Fera é
um a da s mais lembrada s histórias de noivo
animal. Enquant o a primeira é um típico conto de
fadas, a segund a no s chego u através das
versões romanceadas , embor a originalmente existissem
conto s de fadas co m estrutura similar.
A arquitetur a da história é relativament e simples. Por
um a necessida d e d o pai, um a bela jove m entrega- se a
um c a s a m e n t o de c o n v e n i ê n c i a . O marid o é
assustadoramen t e feio, ma s igualment e rico. Ao chegar á
casa o n d e ela terá de viver c o m seu n o v o consorte,
encontr a nel e um a s ur pr ee n de n t e educ ação , quando
su a únic a e x p ect at i v a er a se r d e v o r a d a . A
jovem desco br e sensibilidad e e gentileza s o b a pel e
de um monstro , e est e se beneficia cio b o m coraçã o
da bel• d a d e nad a orgulhosa . Embor a seja
certament e tam• b é m u m a a l u s ã o a o s c a s a m e n t o s
arr a nj ad o s , que tinha m d e ser enfrentado s pela maio r
part e da s mulhe• res até o triunfo do amo r
romântico , n ã o eleve ser ap e n a s essa a razã o da
sobrevivênci a dess a história até nós . A Bela e a fera
restou c o m o representant e de um a vasta linhage m de
conto s em cjue o a m o r precisa transcende r a s aparência s
animalesca s par a acontecer. O relato dess e cont o de
fadas n ã o foi colhid o da
tradiçã o popula r pelo s Grimm , ne m po r
Perrault, celebrizou-s e na m ã o de dua s da m a s
francesas que produzira m as mais popular e s versõe s da
história, em m e a d o s do sécul o XVIII. Existem
narrativas similares d e m oça s en tr e gu e s a noivo s
animai s e m toda s a s culturas, ma s a mais célebr e
é esta de Jeanne-Marie Leprinc e de B ea u m o n t (e m
1756). Essa versã o é a mais parecid a co m as narrativas
tradicionais d o s contos de fadas. Nela, até a cen a final
da transformaçã o de m on st r o e m h o m e m , Bela
ignor a q u e su a Fera n a verdad e é um bonit o
príncip e enfeitiçado . A maior part e do relato enfoca
o s ur pr e en d en t e convívi o da jove m co m o monstro , e
m q u e ela v ê u m a mo r brotar d e dentr o da s pele s d e
u m se r tã o p o u c o atraente .
Anterior a esta, temo s a t a m b é m bastant e difun•
did a versã o d e Ma da m e d e Villeneuve (e m 1740), u m
relato aind a mai s maneirista q u e o d e Beaumont . Nele, a
j ove m, d e s d e sua c h e g a d a ao c a st e l o, s o n ha
Diana Líchtenstein Corso e Mário Corso
• em outros contos semelhantes, a
trama começa com uma viagem de um pai
insistentemente com um belo príncipe, por viuvo, outrora rico, que perdera seus bens. As
quem imediatamente se apaixona. Ela também descobre irmãs
que a imagem dele está estampada em quadros por todo de Bela não cessam de se queixar dos revezes que a
o castelo, assim como há a voz de uma fada nova vida de trabalho e austeridade lhes impõe. Já a
que lhe sussurra que não se deixe levar pelas jovem parece conformada, sabe da desgraça que
aparências. A jovem passa a crer que o príncipe com se abateu sobre o pai e faz de tudo para melhorar a vida
quem sonha é prisioneiro do monstro nas masmorras do
castelo. Vemos que, nessa versão, ela conta com pistas.
De certa forma, assemelha-se à princesa que beija
o sapo, sabendo antecipadamente do resultado. A
jovem de Villeneuve convive com o monstro,
mas seu coração nunca pertencerá ao animal, ela
vive presa ã fantasia com o belo príncipe, conta com a
possibilidade de sonhar com um casamento baseado na
perfeição dos consortes.
Na maior parte das narrativas em que uma jovem é
entregue a um monstro, ela se surpreenderá
ao encontrar amor ou pelo menos algum tipo de
bem- estar, nem que seja o da riqueza do ambiente,
onde só esperava escravidão ou castigo. O
relato das senhoras francesas certamente é o grande
responsável pela permanência desse conto na memória
do mundo moderno, já que elas traduziram a fórmula
folclórica tradicional, o noivo animal, para as
modalidades e a linguagem dos padrões amorosos
do seu tempo, da mesma forma que Perrault fez, à
sua época, com outras histórias da tradição.
Para estabelecer algumas conexões,
podemos arrolar, entre os parentes próximos de A Bela
e a Fera, o conto norueguês A Leste do Sol, a Oeste da
Lua, em que o noivo é um grande urso branco,
e O Lobo Branco, conto asiático que chega até nós
através da
„- compilação de Andrew Lang. Apenas para mostrar que
lidamos com um território bastante vasto e
pouco propício a estereótipo s , lembram o s a
históri a anteriormente citada, A Gata Branca, que
inverte tanto os termos de Bela quanto os de Fera. Ali nos
deparamos com a vez de uma princesa enfeitiçada
encerrar um jovem príncipe em seu castelo, encantado-o
e fazendo- o enamorar-se dela, apesar de sua forma
animal.

0 preço das flores

P
anto nas versões que comentamos

quanto
de todos com bom humor e muitas lides
domésticas. Seu bem-estar provém do amor
correspondido pelo pai; das irmãs mais velhas
recebia tratamento similar ao recebido por
Cinderela.
Antes de viajar, por um negócio que
esperava lhe proporcionasse a volta da antiga
condição finan• ceira, o pai oferece a cada
filha a possibilidade de encomendar um presente.
As irmãs mais velhas pedem belos vestidos ou jóias,
presentes caros, evocação da opulência que ele não
podia mais lhes oferecer. Bela, sempre
compreensiva, pede apenas uma rosa, um
presente de amor.
Voltando de sua viagem, na qual seus
negócios foram um fracasso, o pai perdeu-se numa
tempestade e chegou a acreditar que havia
encontrado seu fim. Entretanto, exausto, faminto e
molhado, descobre um castelo mágico, onde
encontra calor, uma mesa de iguarias digna de
um rei, roupas secas, mas nenhuma viva alma. Após
comer e dormir, já tendo desistido de agradecer
pessoalmente a seu cortês anfitrião invisível, que
julgava ser uma boa fada, está em condições de
empreender a viagem de volta. Eis que vê a
oportu- nidade de satisfazer o desejo da sua caçula,
já que se depara com um belo canteiro de rosas.
No momento em que colhe a flor, surge o dono do
castelo tomado de fúria, acusando-o de responder á
sua hospitalidade com um roubo. É difícil de
entender tal reação. Já que tudo ali havia se
oferecido para o bem-estar do hóspede, por
que com as rosas seria diferente? Mas estamos
no universo da lógica dos contos de fadas, se uma
transgressão não acontece, não temos conto.
O castelo pertenc e a uma fera de
aspect o repelente e humor condizente com a má
aparência, o monstro exige que o negociante
pague com a vida pelo roubo. Este lhe explica
que a flor era para atender ao desejo de uma de suas
filhas. O monstro oferece- lhe então a possibilidade
de voltar para casa e ver se alguma delas se
candidata a morrer em seu lugar - no relato de
Madame de Villeneuve, a Fera não fala em matar
o mercador, mas que sua vida lhe pertencerá.
Nesses casos, ele aceitará a troca por uma
de suas filhas, mas apenas se ela se propuser
voluntariamente. A óbvia continuação é a
inegociável posição de
Bela de ir no lugar do pai, já que seu pedido
era o que havia causado toda a confusão. A rosa
solicitada se equivale aos rapúncios dos pais de
Rapunzel, que lhes levam a dar uma filha, em troca do
vegetal colhido, a uma bruxa que os ameaça. Vemos
então que, sob a máscara da humildade, Bela
pedira o presente mais precioso, aquele capricho
que levou o pai a se arriscar e que precipita a trama.

135
Fadas n o Div ã — P si c a n á l i s e n a s Hi st ó ri a s I nf a n ti s

O present e q u e ela p e d e é um a prov a de realment e se inicia. A jovem volta para a casa da família,
amor, aliás, mais q u e isso, é parte d o comérci o d e ma s seu coraçã o já n ã o pertenc e ao s seus ;
u m a mo r qu e nã o precisa d e provas ; é mais d o q u e j á ela volta par a junto do pai, ma s agor a está ligada à
te m junt o dele, é um fruto da terra, representant e da vida Fera e sabe do perig o dest e vir a morre r de tristeza se
simple s qu e levam. Já sua s irmãs, ao solicitarem a n ã o retornar n o praz o c o nv en ci o na d o .
restituição da riqueza perdida , mostra m ao pai Em casa, distrai-se. d es c u m p ri n d o o praz o
sua crítica pela situação em qu e foram levadas a que havia c o m b i n a d o co m Fera par a sua estada ,
viver, c o n d e n a m - n o pela penúria , nã o estã o seja pelo praze r de convive r co m se u pai e seu s irmão s
satisfeitas co m o pa i q u e têm . Ao mesm o tempo , a homens, seja. conform e a versão, pelo s ardis da s irmãs
necessidad e de presente s caro s e valiosos denot a duvida invejosas, q u e visavam ao seu atraso par a qu e o monstr o
s a respeito de um amor. Q u a nt o meno s arraigado ele perdesse a paciênci a e a devorasse . Ao c a b o de
for, mais d e p e n d e r á de objetos qu e o provem . algu m tempo, movid a pel a culp a e po r um afeto
Jóia s e r o u p a s r e p r e s e n t a m aqu i a qu e descobrira a ligava a se u esquisit o
c o m p a n h e i r o . Bela volta ao c ast e l o o n d e o
superficialidade do víncul o q u e ligava o pa i ás
e n c o n t r a d e f i n h a n d o . T o m a d a d e tristeza, chora
outra s filhas. Já a flor, q u e Bela pedi u a pe n a s par a
, declar a se u a m o r e su a intençã o de aceitar o
satisfazer o desejo d o pai d e q u e ela t a m b é m
p e d i d o de casa mento , p r o p o r c i o n a n d o assim a s
e n c o m e n d a s s e algo, é similar ao pe di d o q u e condiç õe s par a a q u e br a d o feitiço. Apena s quando
Cinderel a - na versã o do s Grimm - faz ao pai fosse capa z de se r a m a d o , apesa r de su a
q u a n d o ele part e par a u m a viagem: que r o primeiro aparência repulsiva, a Fera poderi a readquiri r a
ram o q u e bate r n o se u chapé u q u a n d o ele e m pr ee n d e r o forma original d e q u e fora privad o po r um a
ca m i n h o d e volta. Cinderel a com o Bela, acima d e bruxa .
tudo . q u e r e m seu s pai s d e volta. Nã o contraditóri a ,
O q u e a p ar e c e inicialmente c o m o u m
m a s c o m p l e m e n t a r a ess a
sacrifício, da r a vida em troca da do pai, p o d e
interpretação , te m o s outr a q u e implic a u m a se r agor a lido c o m o a necessidad e de um a
cert a liberdade lingüística. Provenient e do latim, de/loresco
escolha . C o m o no caso da s princesa s orgulhosa s d e
— a retirada ou perd a da s flores -, c he g o u ás
q u e falávamos acima, tudo indica q u e n ã o é d e b o m
línguas neolatinas com o alusiva á perd a da
grad o q u e um a jove m trocará o amo r de se u pa i pel o
virgindade. Isso talvez no s d ê a pista d e po r q u e
de outr o h o m e m . A aparência monstruos a do
log o a s flores era m proibidas a o pai n o context o d e
consort e revela o q u a nt o ela aind a não po d e ver nel e
u m castelo o n d e t u d o se oferecia a se u bem-estar. O
nad a atraente , ap e n a s assustado r por ser um
h o m e m q u e irá colhe r as flores, qu e deflorará
h o m e m , c o m o o pai, ma s q u e tem , para com
Bela, n ã o dever á ser o pai, apesa r de q u ã o
ela, intençõe s b e m diferentes.
forte seja o a m o r paterno-filial. A interdiçã o
que desencadei a a históri a pod e se r a Os estúdio s Disney produzira m a su a versã o para
interdição a qu e pai e filha estava m submetidos . A Bela e a Fera em d e s e n h o animado. 8 Nela, a
trama foi simplificada, a família de Bela se resu m e a
Uma vez entregu e á Hera, a jovem encontr a seu pai, q u e é a p en a s u m viúv o u m pouc o excêntrico ,
no castel o t u d o a q uil o q u e se u pa i n ã o nã o u m comerciant e falido. Além disso, foi criada
p o d e r i a lh e oferecer. Desd e confortos q u e a façam a figura de u m rival p ar a Fera , s o b a form a
sentir-se cuida• da, co m tod a a seguranç a e o d e u m home m a p ar en te m e nt e atraent e po r fora,
mi m o possíveis, até a diversão, narrad a s e g u n d o ma s feio po r dentro. D e acord o co m a nov a
o s gosto s d a época , c o m direito a espetáculos , sensibilidad e q u e o s homens d e v e m sabe r
bibliotecas, jardins e pássaro s exóticos . Enfim, demonstra r n o amor, introduzid a pelas mulhere s
ela ter á t u d o , m e n o s a almejad a presenç a de ap ó s su a liberdad e conquistada , a Fera é capa z
seu q u eri d o progenitor . A solidã o inicial é de c o m p r e e n d e r os interesse s intelectuais da
c o m p e n s a d a pe l a c o m p a n h i a c a d a ve z m e n o jovem; o outr o é um brutamontes , dispost o a
s repulsiva d e Fera, q u e domin a a s artes d a conversaçã o casar-se par a fazer dela um a doméstic a a se u
e a trata co m respeito . Noite a p ó s noite, o serviço.
monstr o a p e d e em casament o e, co m a maior delicadeza
possível, Bela recusa. Até ess e m o m e nto , ela aind a se C o m o n o cas o do s relatos da s senhora s d o século
encontr a referenciada n o amo r d o pai , e m b o r a XVIII, no de se n h o animado , a figura de Fera se adaptou
c o m e c e a sentir algu m gost o pel a nov a vida. ao s ideais d e h o m e m d e um a época : d e cavalheir o n o
perfeit o d o m í n i o d a s arte s d o a m o r cortês ,
Graça s a o b o m relacionamen t o entr e eles, el e s e transm uto u par a u m h o m e m delicad o e
Fera fica disponíve l par a aceitar o p e d i d o de Bela, inteligente q u e u m a mulhe r livre e intelectualizad a - a
cujo pa i adoeci a de tristeza pel a pe r d a da filha, Bela nesse cas o amav a os livros - esper a a se u
par a visitar a família. Nesse m o m en t o , a relaçã o entr e lado . Já o pai de Bela, ape sa r da s alterações , segu e
o bizarr o casal
c o m o u m persona-

136
Di a n a Li ch t en st e i n Co r s o e Mári o Cor s o
Ma da m e D e Villeneuv e nem seque r m e n ci o n a a
orige m d o e n c a n t a m e n t o , assim c o m o n a maio r
part e da s histórias d e noivo -
gem socialmente desvalorizad o , se n d o ela a únic a qu e o
admira e po r isso seu amo r é tã o nobr e - com o na s
versões tradiciona i s - , p oi s é c a p a z de
a m a r n a adversidade.
Há um parentesc o claro entr e o amo r q u e a jovem
devota ao pai e o q u e destin a à Fera: em
a m b o s os casos, contorna as c o n ve n çõ e s sociais.
No primeiro , não se importa c o m a fortuna q u e o
pai perdeu ; no segundo, a beleza q u e falta à Fera
deix a de lhe fazer caso. Ela mostra capacid ad e
de transferir o m e s m o tipo de vínculo, c o m o se o
a m o r po r um ensinass e a amaro outro. Fera també m
se revela dispost o a espera r que Bela termine o luto po r
um amor, para q u e poss a aceder a o ut r o . N o
inicio , a jo v e m a p e n a s s e nt e saudades; a
seguir, sente-s e bem , ma s te m p e n a d o pai, que
supõ e estar d oe n t e de tristeza po r sua falta. Ainda
terá de voltar para casa, ap en a s para constata r
que seu coraçã o já n ã o pertenci a àquel e lugar, só e nt ã o
está em condiçõe s de viver um nov o amor, n ã o
mais incestuoso. Fera esper a ess e t e m p o d e
a m ad ur e ci • mento. Sua paciência, po r é m n ã o é
infinita, po r isso, está quase morto q u a n d o Bela
retorna .
Na versão Disney, fica mais realçad o o
encanta • mento sofrido po r Fera. A rosa é usad a
c o m o um a espécie d e ampulheta , u m símbol o d o
t e m p o q u e lhe resta para qu e o feitiço seja
q ue br a d o : co m o passa r dos anos, as pétalas caem
, q u a n d o cair a última, el e morrerá sem ter sid o
a m a d o e perder á a ch a n c e de voltará forma
original. Co m ess e recurso , a história se aproxima
mais da s tradicionais narrativas de noivo s animais.
Todo s tê m algu m tip o d e prazo , referent e a o tempo
qu e a jovem terá de convive r co m eles naquel a forma
horripilante; se tal praz o n ã o for respeitado ,
novos revezes e sofrimento s sã o reservado s par
a o casal (voltaremos a ess e assunt o mais adiante)
.
Ainda n o d e s e n h o animado , h á u m relato
q u e precede o desenrola r da história. Conform e a
versão . Fera teve seu coraçã o testad o po r um a fada. qu e ,
n u m a aparência esfarrapada, p e d e abrig o no
castelo, o q u e lhe foi neg ado . For ter sid o
c o n s i d e r a d o egoíst a e incapaz de amar, foi
c o n d e n a d o a ficar s o b um a forma repulsiva até que
um a mulher, apesa r disso, viesse a amá-lo. Aqui é
ele que te m de ap re n d e r a dobra r seu caráter brut o
e e nt en d e r as necessid ade s d o s outros , em outras
palavras, deixa r sua infantilidade par a trás. A
tra di ci o n a l v e r s ã o d e M a d a m e B e a u m o n t
apenas m e n c i o n a q u e u m a fad a m á
c o n d e n o u o príncipe a viver dess a forma até q u
e um a bela moç a consentisse e m desposá-lo ;
137
animal , nã o ficamo s s a b e n d o da s razõe s
d e ta l transformação . A única pista qu e temo s é
q ue , devid o a um a mulhe r mais velha, um a
bruxa, uma fada, as coisas andara m mal, geralment
e porqu e ele nã o soub e a m a r . T e m o s p o u c o s
elementos , ma s p o d e m o s e sp e cu la r , s e
fizermo s u m paralel o co m Bela. S e
considerarmo s q u e a situação do jovem é similar
à de Bela, p o d e m o s pensa r q u e seu feitiço
representaria o q u an t o ele aind a está pres o à mãe .
e ess e t e m p o seria o necessári o para pode r abrir mã
o dess e seu primeiro amor . fundant e para o s
h o m en s .

O Príncipe Querido
xist e um a históri a e m qu e a
o r i g e m d a transformaçã o animal fica
realçada po r ser o aspec t o central da
trama. Trata-se de O
Príncipe Querido, cont o tradicional
francês c o m p i l a d o p o r A n d r e w f a n g . Nele ,
u m b o n d o s o monarc a é testad o po r um a fada
q u e . sim uland o se r u m co elhinh o caçad o po r seu s
cães, s e atira no s braço s d o rei, d e q u e m acab a
r e c e b e n d o cuidados . A fada oferece , em troca
da proteçã o recebida , a realização d e qualque r
desejo , de s d e q u e seja único . Ele p e d e entã o
q u e ela seja guardi ã d a b o n d a d e n o espírito d e
seu filho, con hecid o po r todo s c o m o Príncipe
Querido , pela grandez a d e se u coração .
O pai morr e p ou c o depois , e a fada
presenteia o jovem co m u m anel, qu e lhe causa
do r q u a n d o ele s e revela ma u ou injusto. O idílio
inicial entr e o órfão e o controle da fada termina em
rompimento , o anel é post o fora e o príncip e
revela seu lad o despótic o e cruel, fazendo tod o o
tipo de injustiça qu e estiver a seu alcance. Ele é ma u co
m seu povo , ingrato co m um velh o tutor e violento
co m a mulhe r qu e escolhe u para amar.
A fada já havia dit o ao pa i q u e a
realização de se u p e d i d o d e p e n d e r i a m u i t o d
a c o l a b o r a ç ã o d o príncipe , o q u e n ã o estava
ocorren do . Diante disso, a tutor a tev e d e
recorre r a m é t o d o s mai s drásticos , media nt e
a aplicaçã o de um castigo: "condeno-t e a q u e
sejas c o m o o s animai s cujo c o m p ort a m e nt o imitas.
Pela tua fúria, ten s sid o c o m o um leão e
c o m o um l o b o pel a tua avareza . C o m o um a
serpente , ten s t e revoltad o contr a algué m qu e é
c o m o u m s e g u n d o pai par a ti e, po r teu ma u
caráter, te assemelha s a um touro . Portanto , e
m tu a nov a aparên ci a adotará s o aspect o
deste s animais".
Nã o mais querido , o príncip e ficou co m
cabeç a d e leão , a s aspa s d e touro , o corp o d e
serpent e e o s p é s e a s m ã o s c o m garra s d e lobo .
Q u a s e n ã o d á par a
Fadas n o Div ã — Ps ic a n áli s e n a s His t óri a s Infanti s

imaginar essa síntese. O fato é q u e , de dentr o da nov a extensã o do desej o do s pais. O pa i del e p e d e
forma, ele preciso u domina r a maldad e de su a que a grandez a de se u caráte r p r ov e n h a da magia, ao
alma para i r praticand o ato s d e b o n d a d e . Apó s que a fad a e d u c a d o r a r e s p o n d e q u e n ã o é
salvar o ho m e m qu e o alimentava e maltratava possível, o príncip e terá de trabalha r po r isso.
n u m a espéci e de zoológico para o qual fora A história não é mais q u e o trabalh o de um a
enviado , transformou - s e e m cãozinh o d e col o d a vida par a aprende r com frustrações e d es e ng a n os ,
rainha; a p ó s ajudar um a pessoa co m fome, é afinal, trata-se do trajeto de qualque r um . Esse
pro movid o a p o m b a . Sob essa última forma calvário animal conect a o príncipe c o m a s
animal, encontr a sua ama d a e receb e o afeto dela. princesa s m i m a da s d e q u e falávamos, que
Era o q u e faltava par a a transformaçã o final, em qu e precisara m pagar, co m trabalh o e c o m a
tud o volta a seu lugar e eles reina m felizes para perd a das vestes suntuosas , pel o se u orgulho . Mas há
sempre . um aspecto diferencial: a cond enaç ã o ã perd a da
A condiçã o animal nest e cont o é um a forma condiçã o humana. A animalidad e da aparênci a
de rebaixamento, em q u e um bel o jovem perd e o co rr es p o n d e à pouca
afeto qu e antes provocava no s outros. Ele se comport a h u m a n i d a d e d e se u espírito . O q u e no s
co m o uma criança despótica, o qu e se traduz b e m na s diferencia do s animai s está present e na forma
palavras do irmão de leite do príncipe q u e havia se com o a relação h u m a n a co m o mund o
tornad o seu mau conselheiro mais próximo: "todo tra n sc e n d e a s necessidades imediata s e se revela
aquel e q u e nã o cumprir co m teus desejos dever á desnaturada. Um animal matará par a comer , ma s
paga r po r isso". Nã o deixa de ser uma boa traduçã n ã o sairá par a caçar po r prazer. 0 má xim o q u e
o do narcisismo infantil, tal com o explicitado por p o d e m o s dize r é q u e algun s joven s gatos doméstico s
Ereud em Sobre o Narcisismo.1 0 tortura m sua s presa s ante s do golp e de
Nesse texto, ele relata co m o a criança - q u e ele cham a misericórdia, po r é m isso faz part e de se u
de His majesty lhe baby (Sua majestade, o beb ê treinamento c o m o futuros caçadores , sã o
brincadeira s d e filhote. Q u a s e t u d o q u e o s animai
) - é tratada com o alguém qu e deverá recebe r e m
s fazem tê m urna razão d e ser no sentid o da
vida tud o o qu e foi negad o a seus pais, ne n h u m limite
sobrevivênci a - sua, da cria ou do g r u p o - , é
dever á se interpor entre ela e seus desejos,
um a espéci e d e lógic a na tu ra l . J á o s
ne n h u m a exigência amargará o prazer de sua existência,
h u m a n o s sã o capaze s d e t o d o o tip o d e
tud o cairá em seu s braços com o meno r esforço possível. capricho e irracionalidade , é precis o trabalha r
Esse mecanismo , p e l o qua l o s pai s q u e r e m ve r noss a alma para q u e noss o apetit e d e g o z o nã
su a s frustraçõe s e pendência s solucionadas através o s e torn e irrestrito e perigoso . Sem o control e
da glória do s filhos, está be m ilustrado neste cont o pel de um a ed u ca ç ã o e de uma sociedad e capa z de
o diálogo do pai co m a fada. Q u a n d o ele receb e a pô r limites, som o s o pio r tipo de bich o - afinal nã o
oportunida d e de fazer um pedid o nã o que r algo para existe um altruísmo natural. Podemos encarna r a fera
si, é no príncipe qu e que r ver seu desejo realizado. má po r deleit e e serm o s capaze s de torturar a
O Príncipe Q u er i d o já era um b o m sujeito, pres a até b e m crescidos , n u m praze r que n ã o
po r isso fica difícil de c o m p r e e n d e r p o r q u e o pai foi te m idad e par a acontecer .
pedi r à fada alg o q u e o jove m já tinha .
É essa h u m an id a d e , tã o frágil, q u e é perdid
Atravé s d e s s e e x p e d i e n t e , a s q u a l i d a d e s d o a no conto . O rei considerav a a b o n d a d e o maio r
f il h o , qu e e r a m características de sua bem , por isso, n ã o desejo u alg o par a si, qui s o
personalidade , ficam alienada s com o se ficassem a refinament o do caráte r d e se u filho s e m q u e el
serviço do desej o do pai. Nã o é d e admira r entã o e tivess e d e passar p e l a s d o r e s d a e d u c a ç ã o .
q u e o jove m pass e po r u m pe rí o d o de rebeldia, E d u c a r tra z c o n s i g o a necessida d e d e impo r
necessári o para diferenciar-se dest e pai tã o limites, cercear, nega r prazeres. O s pai s q u e s e
d e v o t a m e n t e d e s p ó t i c o , a p o n t o d e s e faze r ne g a m a realizar essa tarefa constrõe m ferinhas,
representa r po r u m anel q u e feria o príncip e cri at ur a s se m capacidad e de avalia r a s
q u a n d o ele se comportav a mal. Mas esta é um a possibilidade s d a realidad e d e satisfazer sua s
da s formas possívei s d e p e n s a r o s s e u s m a u s exigên - cias, cuja satisfação reivindica m c o m
m o d o s . O u t r a vertent e para aborda r esta q ue st ã o violência. Nisso se transformo u o Príncip e
n o s aproxim a d o s impasse s qu e as famílias tê m vivido Q u e r i d o . Ge ra l m e nt e , a ideologi a desse s pais,
hoje no relativo à imposiçã o d e limites à s crianças. incapaze s d e educar , d e pôr freio a su a própri
Esse príncipe-menino-déspota , c o m o tanto s a e xt en s ã o narcísica, conté m um a idéia
q u e mostra m sua falta d e b o a s maneira s n a rosseaunian a d e q u e , deixad o à própri a sorte,
noss a vid a cotidiana , a p a r e c e n a leitura d e ou c o m p ouc a intervenção , o filho, algu m dia, revelará
Freu d c o m o u m a um a b o a natureza . Infelizmente, n ã o é o q u e acontec
e e , q u a n d o o s pai s s e d ã o conta , o s esforços .
precisa m ser r ed o br a d o s par a u m a correçã o d e ru mo

138
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o C o r s o

Esse cont o possu i elemento s do s conto s de fadas,


mas é praticamente um a fábula moral. De
qualque r modo, revela qu e a pr en d e r a amar, no sentid o
erótico , depende de suporta r as frustrações e de
c o m p r e e n d e r a s necessidade s d o o u t r o . S e u m
filho tive r su a majestade de beb ê atrelada ao
narcisism o de seu s pais e se tiver a missão de
goza r po r eles, pressu põe -s e que deverá crescer
em con diçõe s muit o particulares: deverá recebe r
seu s d o n s po r magia . C o m o isso é impossível,
terminará se n d o u m bichinh o d e estimaçã o para a
satisfação dele s ou um a fera a ser enjaulada.
Nesses casos , g e r a l m e n t e o s p a i s r e p r o d u z e
m o discurso indignad o do Príncipe Q u er i d o em
sua fase despótica: vociferam contr a o m u n d o q u e
imped e seu precioso filho de conquista r o q u e eles
lhe desejam . A Bela e a Fera, graça s a ess a
outr a históri a conexa, pod e ser pensad a tam bé m
c o m o u m cont o d e conquist a d o a m o r e d a
h u m a n i d a d e . Afinal,
também nã o se nasc e h o m e m , torna-s e um .

Notas
1. LANG, Andrew. El Libro Azul de los
Cuentos de
Hadas I. Madrid: Neo Person, 2000.
2. GRIMM, Jaco b & Wilhelm. Contos de fadas.
Belo Horizonte: Villa Rica Editora Reunidas,
1994. No original o título é O Rei Sapo ou
Henrique de Ferro, mas popularmente é referido
apena s com o O Rei Sapo ou ainda com o O
Príncipe Sapo.
3. Freud observa qu e a defloraçâo de uma
mulher constitui-se numa: "injúria narcísica que
decorre da destruição de um órgão" a qual
poderia inclusive atrair sobre o autor de tal ato a
raiva da mulher. "O perigo que assim se levanta
pelo defloramento de uma mulher consiste em
atrair sua hostilidade para si próprio, e o marido em
perspectiva é exatamente a pessoa qu e teria
toda a razã o para evitar tal inimizade."
FREUD, Sigmund. O Tabu da Virgin-
dade. Obra s Completas, vol. XI. Rio de
Janeiro: Imago, 1987. p. 187.
4. GRIMM, Jaco b & Wilhelm. Contos de Fadas. Belo
Elorizonte: Villa Rica Editora Reunidas, 1994.
5. LANG, Andrew . Fl Libro Azul de los Cuentos
de
Hadas 1. Madrid: Neo Person, 2000.
6. LANG, Andrew . Fl Libro Azul de los
Cuentos de hadas I. Madrid: Neo Person. 2000, no
qu e se refere à versão de Madame de
Villeneuve. Já para a de Jeanne-Marie
Leprince de Beaumont ver TATAR, Maria.
Contos de Fadas: Edição Ilustrada & Comen• tada.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
7. Esses dois contos serão examinados no
próximo capítulo.
8. O filme A Rela e a Fera foi lançado pelos
Estúdios Disney em 1991. Essa é a versão
infantil animada. Não confundir com o tilme
homônimo, a obra prima de Jean Cocteau, de
1946. La Belle et Ia Bette.
9. LANG, Andrew . Fl Libro Azul de los
Cuentos de Hadas II. Madrid: Neo Person,
2000. Existe uma versã o e m p o rt u g u ê s :
PIMENTEL, Figueired o . Histórias da Avozinha.
Rio de Janeiro : Livraria Garnier, 1994.
Figueiredo Pimentel foi o primeiro compilador
brasileiro de contos de fadas, mas nem sempre
encontramos seus livros. Em suas antologias, ele
misturou alguns contos brasileiros entre os da
tradição européia
10. "Os pais sentem-se inclinados a suspender, em
favor da criança, o funcionamento de todas as
aquisições culturais que seu próprio narcisismo
foi forçado a respeitar, e a renovar em nome dela
as reivindicações ao s privilégio s d e h á muit o
po r ele s próprio s abandonados. (...) A criança
concretizará os sonhos dourados que os pais jamais
realizaram - o menino se tornará um grande
homem e um herói em lugar do pai, e a
menina se casará com um príncipe como
compensação para sua mãe". In: FREUD,
Sigmund. Sobre o Narcisismo: uma Introdução. Obras
Completas, vol., XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1987, p.
108.

139
Capítulo X
HISTÓRIAS DE AMOR II:
AS METAMORFOSES

A Leste do Sol e a Oeste da Lua, O Carneiro Encantado,


O Lobo Branco, Cupido e Psique, A Pequena Sereia e Hans, o
Ouriço
Transição dos laços afetivos nos primeiros amores - Resistência
dos pais aos novos amores dos filhos - Maturação do casal -
Amantes como estrangeiros entre si - Dificuldades na saída da casa paterna
- Rejeição parental - Revezes da concepção

0 noivo cert o pesar, ma s d e olh o n o q u e traria d e volta


animal o p ã o à mes a par a os outro s filhos, o pai consult a a
o capítul o anterio r tratamo s de filha. Ela e m princípi o n ã o aceita, ma s acab a c e d e n d o
e x e m p l o s d e n o i v o an i ma l , pe l o b e m d e todos . Sempr e há dinheir o
ma s sã o histórias q u e , embor a e n v o l v i d o n e s s e s casamento s . Mas aqu i s e trata d e
pertencent e s a essa classifica• u m dot e à s inversas, ou seja, é o noiv o que compr a
ção , n ã o sã o típicas. Existem a su a noiva a p e s o de ouro , exata ment e o
contos , e m vários folclores, d e contrári o d o casa ment o eu r op e u tradicional , e m
personage n s d o tip o noiv o q u e um a mulhe r casav a tant o mai s fácil e
animal co m um a estrutura mais melho r q u a n t o maio r era se u dote .
parecid a co m o qu e Resignada a se u destino, a menin a parte
vamos co m o urs o e chega m a uma morad a mágica ond e nad a
trabalhar agora. faltava. No escur o da noite, o urs o tira sua pele ,
transforma-se
Em um cont o da tradiçã o norueguesa , compilad o n u m jovem e compartilh a a cam a co m a noiva.
por Peter Christien Asbjornse n e Jorge n Moe, cha mad o A Com o n a maior parte desse s relatos, n ã o temo s aqui
Leste do Sol e a Oeste da Lua,1 temo s um d o s ne n h u m a alusã o a q u e ess e mo ment o seja traumático ou
mais clássicos exe mplo s d e noiv o animal . Nele u m a violento para a jovem. Ao contrário, a forma human a
família muito pobr e é confrontad a co m a noturn a é um alívio para ela, um contrapont o ao animal
propost a de um urso que lhes promet e riquez a se com que m tem de conviver durant e o dia. Além
lhe c e de r e m a filha caçula, um a me nin a muit o bela disso, há um a virada n a expectativa d e u m destin o
, e m casam ento . Co m triste q u e a heroín a
Fadas n o D i v ã — P s i c a n á l i s e n a s Hi st ó ri a s I n f an ti s

esperava, já que , q u a n d o da partida, c o m o ocorr tam , assim c o m o d e sere s mágicos , ness e caso , velhas
e a tantas prometida s a noivos animais, a idéia é s e n h o r a s q u e lh e of er e c e m cavalo s e objeto
enfrentar um sacrifício, incluindo a possibilidade de ser s cuja utilidad e ela descobrir á depois . H á mai s u m
devorad a pelo consorte. elemento muit o interessant e ness a viagem : ningué m a
Co m o em A Bela e a Fera, a moç a acab a sentind o que m ela pergunt a sab e e x ata m e n t e a localizaçã o
muita solidão durant e o s dias q u e passa n o do príncipe, e m b o r a t o d o s t e n h a m u m a idéi a
suntuos o castelo . Sent e falta d a cas a pa te r n a e a p r o x i m a d a d o ca m i n h o o u d e q u e m poder á sabe r
su a triste/ a convenc e o urs o a levá-la até lá par a um a sobr e ele. A única certez a compartilhad a po r
visita. Dessa vez, nã o há um praz o a ser texlos o s interlocutores en contrado s pel o c a m in h
de s ob e de ci d o ; entretanto , o urso a proíb e de falar a o é a de q u e ela é a moça q u e estav a
sós co m a mãe , na verdade , para qu e nã o comentass e destinad a par a o príncip e , po r isso, se dispõe
sua s intimidades . Claro q u e acontec e o proibido , e m a ajudá-la. Movida po r essa únic a indicação
a mã e se revela um a péssim a conselheira . amorosa , ela s e lança a o de sc o n he ci d o .
Sabendo , pel o relat o d a filha, d a pel e qu e ele Uma vez c h e g a n d o ao castel o da madrasta,
retira á noite, a mã e suspeita de q u e o noiv o seja ela precisa tirar se u h o m e m da s mão s da nov a e
um troll 2 e aconselh a a jovem a espiá-lo d or m in d o . horrível noiva: a princes a nariguda . É ness e
Q u a n d o ela tenta ver o noiv o se m a pele , ele perd e m o m e n t o que os presente s recebido s na viage m se
a oportunida d e de ser d es e nc an ta d o e a ab a ndona , apó mostra m úteis, pois negoci a um a maç ã de ouro , um
s referir: pe n t e de our o e uma roca d e o u r o c o m a horrend a
princesa , q u e n ã o parece estar muit o interessad a na
O q u e voc ê fez?, ex cl a m o u . Agora atraiu co m p a n hi a noturn a de seu noivo , sã o o s objeto s
um a maldição sobre nós dois. Se tivesse esperad o d o u r a d o s qu e realment e mobi• lizam seu desejo.
apena s um ano , eu terra sido libertado! l e n h o uma Aproveitand o a situação , a jovem troc a cad a u
madrasta e ela me enfeitiçou de tal mod o qu e sou m dele s p el o privilégio d e passa r uma noite co
urso de dia e home m à noite. Terei qu e deixar você e ir m o príncipe . Mesm o assim, n ã o é fácil realizar o
à procura dela. Ela mora num castelo a leste do sol e a resgate , poi s a noiva, q u e nã o era boba , narcotizava
oeste da lua. Mora lá também uma princesa, com um o príncipe . Apena s na terceira noite, el e é
nariz de três varas de comprimento, e é ela a alertado po r criado s par a q u e n ã o t o m e a poção ,
mulher qu e terei agora qu e desposar. assim poderá ficar a co r da d o para encontra r sua
amad a e planejar um a fuga. Juntos , derrota m os
trolls - pois sua madrasta e a princes a narigud a sim
Vemos ressurgir aqui a questã o do prazo , parec e
era m trolls - e fogem com toda s sua s riquezas .
qu e u m temp o é necessári o par a u m
i n d i v í d u o a m a d u r e c e r e assumi r p u b l i c a m e n t e O praz o q u e a noiva do urs o n ã o s o u b e
sua s relaçõe s í n t i m a s . E m toda s e s s a s respeitar refere-se ao t e m p o de amad ureci me nt o
h i s t ó r i a s , o p r i m e i r o encanta me n t o - o início do necessário para q u e um a relaçã o seja
relacionamen t o sexual do casal - ocorr e em algum a s s u m i d a p u b l i c a m e n t e . Atual me nt e equival e a
a situaçã o de confinamento , de exclusã o social. o p e r í o d o e m q u e o s casais p o d e m experimenta
Afinal, o q u e aborrec e a jovem é ser retirada d e r algum a privacidad e erótica, antes q u e o s laços d e
seu m u n d o d e referências e d o convívi o co m o s seus; u m casa ment o i m p o n h a m à relação desafio s q u e
ela n ã o c o m p o r t a . C o m o vem os , nas velha s
porém , q u a n d o te m a o p ort u ni da d e d e voltar ã casa
histórias, ess e p erí o d o d e latência d e u m amor já
d o s pais, de sc o b r e que sent e falta de se u ama do . A
está presente , provavel me n t e significando algo bem
partir daí, a finalização da trama é imediata,
diferente do eme par a nós . Ainda hoje a
encaminha-s e par a o fim da maldição .
estabilização ele um relacionamen t o reque r t e m p o
No cas o de Bela, nã o fosse pel o brev e descumpri - , paciênci a por part e do s amante s e um a certa cota
m e nt o d o prazo , diríamo s q u e ela fez rapida me nt de sacrifício aliada ã coragem , visand o a ajudar
e o process o d e r o m p i m en t o co m a família d e tant o o noiv o quant o a noiva a ro m p e r com os
origem , assumind o su a nov a situaçã o civil, a de velho s laços amor osos . Se não houve r ess e esforço, o
ser a mulhe r d e alguém . J á o s ama nte s dest a rapa z corr e o risco de adormecer no s braço s ela brux
tradiciona l história noruegues a passa m po r reveze s a possessiv a q u e é su a mãe . Da mesm a forma,
b e m maiore s q u e o s de Bela e Fera. A noiv a o s laços q u e p r e n d e m u m a jovem a o a m o r
precis a viajar par a a q u el e lugar geograficament e de v o t o e p l e n o d e m ú t u o s cu id a d o s q u e ela
improváve l e inacessível. Para essa jornada , professa p o r se u pa i p o d e m voltar a ficar
necessitará d e muita corage m e d o a p oi o d e forças d a fortes.
natureza , c o m o o s vento s q u e a transpor • Existe u m cont o d e Mad am e d'Aulno y q u e
nos mostr a j us ta m e n t e es s e fracasso , em que
os laços

142
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Cors o

amigos acabam prevalecend o . Chama-s e O Carneiro


Encantado3. Temos a mes m a seqüênci a d o s conto s
de noivo animal, com exceçã o de um detalhe : a menin
a é expulsa de casa pel o pai. Miranda, ess e é
o n o m e da heroína, era a m e n o r da s três filhas
e a predileta do pai, porém, ela nã o adulava o
pai c o m o as mais velhas, e ele acaba p e n s a n d o
q u e seu amo r n ã o era correspondido. Um dia a
menin a sonh a q u e o pai lhe alcança um jarro
para lavar as mãos . Ela cont a seu sonho a
ele, qu e o interpret a c o m o um a alusã o à
posição de servilidade frente à filha. Fica irado e
isso é a gota d'água para manda r matá-la. C o m o
acontece u a tantas heroínas, o carrasco te m pi e da d
e e eng an a o
pai, deixando-a fugir.
Na fuga, ela encontr a o Carneir o Encantado , qu e
é um príncipe enfeitiçado . Vive m junto s at é
q u e ocorrem as boda s de um a irmã dela, às quai s
deseja comparecer. Ela vai disfarçada à festa, faz muit o
sucess o e parte misteriosamente. Volta ao rein o do
Carneir o Encantado e e n c o n t r a - o s o f r e n d o m u i t
o p o r su a ausência. Tempos depois , no casament
o seguinte , da outra irmã, volta para a festa. Desta
vez , o pa i tinha obstruído a rota de fuga da
princes a misteriosa, poi s queria conhecê-la. Não
r e c o n h e c e n d o a filha, gentil• mente lhe estend e um
jarro para lavar as mão s a p ó s o banquete. Miranda cai
e m pranto s di z en d o q u e se u sonho se realizou,
e o pai leva um susto, ma s fica muito feliz em
sabe r q u e sua amad a filha estava viva, pois já se
arrepender a de se u tresloucad o gesto . Os dois
reatam o antigo víncul o e el e lh e pro met e seu
reino, uma vez que já estava velho . Enqu ant o isso,
o tempo passa, e o príncip e e n ca nt a d o morr e de tristeza,
pois Miranda tardava a voltar.
Nesse conto, os laços antigo s prevalec e m
sobr e os novos. O reencontr o co m o amo r do pai
foi fatal para o novo laço q u e se iniciara co m o príncip e
encan • tado. Miranda m o m e n t a n e a m e n t e e s qu e c e
de q u e m lhe sustentava afetivamente no p er ío d o em
q u e estava longe do pai, e o futuro c a s a m e n t o
n ã o a c on te c e . Decididamente, nã o se p o d e agrada r a
doi s senhores . As peripécias de A Leste do Sol, a
Oeste da Lua encontram similaridad e n u m c o nt o
da Ásia Menor , presente na compilaçã o de Andre w
Lang. Trata-se de O Lobo Branco,1 uma história q u e
inicia c o m o A Bela e a Fera, já que o pai é a meaçad o e
precisa dar sua caçula querida em troca da vida, ma s
finaliza c o m o a do urso, pois a moça terá de fazer
long a jornad a em busc a do amado perdido. A
variável interessante nest e cont o é a permanente forma
hu man a em q u e o lob o se manté m na intimidade
do casal. Ele s o m e nt e vest e as pele s quando
sae m d e se u castel o par a visitar o s pai s d a
ser m onstru os o viria arrebatá - la. O s pai s ficaram
desco nsolad o s , mas , m e s m o co m
noiva . N a ocasiã o d a s b o d a s d e um a da s
irmãs d a heroína, a mã e intromete-se, tentand o ajudar 143
e atrapalha. Assim q u e descobri u sobr e a s
transformações d o genro , durant e a noite, queimo u
a pel e do lobo, provocan d o seu desaparecimento .
O resto da história é a luta da jovem
apaixonad a pela reconquista dess e amor.
Cruzand o a s trê s histórias , ela s
demonstra m inequívoc o parentesco . Ness e
c o n t o asiático , h á t a m b é m a resistênci a à
uniã o da filha po r part e da m ã e . Sua
intervençã o só dificulta a relação , fazend o c o m
q u e a noiv a d o Lob o Branco , e m u m
cami nh o solitário, co m p ou c a orientaçã o e
algu m a p oi o d o a m b ie nt e , t en h a d e arrebatá-
l o da s m ão s d e outr a p r e t e n d e n t e , co m q u e m
está preste s a s e casar, poi s já acreditav a q u e
ela o havia es q ue ci d o . Além disso , a
monstruosidad e d e Fer a nã o parec e
d i f e r e nt e d aq u el a s d o s o utro s noivo s animais .
Enfim, sã o toda s u m d u e l o d e conq uista s e
pe r da s , e m q u e o a mo r d e um e outr o é post o à
prov a ante s q u e p os s a m sentar - s e lad o a lad o
n o trono , o u seja. assumi r publica • m e n t e a
relação .

Cupido e Psique
s história s p r e c e d e n t e s r e p r o d u z e m
um a estaitura co m u m qu e existe e m várias
versões no s conto s de fadas. Entre elas, temo
s a antiga
história de Cupid o e Psique. 5 qu e no s chego
u através de Apuleio, em O Asno de O u r o 6 — livro
també m con hecid o po r Metamorfoses. Psiqu e era
um a da s três bela s filhas d e u m rei, p or é m
muit o mais bela q u e a s irmãs. As outra s dua s
casara m e Psiqu e n ã o consegui a casamento , poi s
sua belez a era tanta q u e assustava o s
pretende nte s . Sua formosur a fazia todo s
acreditare m q u e ela era um a deusa , po r isso,
com eçara m a lh e leva r o fer e nd a s e m
substituiçã o àq u el a s devida s a Vênus . Q u a n d o
esta ve m a sabe r disso, mand a seu filho
Cupid o par a q u e a vingue : sua pen a seria
fazer c o m q u e P s i q u e s e a p a i x o n a s s e p o r
u m h o m e m desprezíve l . Poré m , C u p i d o n ã o
p ô d e realiza r su a tarefa, já q u e ele m e s m o
ficou fascinado po r Psique . Enq uant o isso, o s
pais. n ã o s a b e n d o o q u e fazer
par a qu e a filha viesse a se casar,
consultara m um oráculo , qu e é u m
intermediári o d e Apoi o - deus , entr e outra s
coisas, da s profecias. Ora, Apoio já sabia d a
pa ix ã o d e Cupido , e junto s faze m u m
plano , a partir do qual , a revelaçã o oracula r diz
ao s pais par a p r e p a r a r e m Psiqu e par a u m
funeral e deixar e m-n a n u m a roch a o n d e u m
Fadas n o Div ã - P si ca n ál is e n a s Hi st ó ri a s Infanti s
tarefas impossíveis,

muito pesar, assim foi feito. Psique , desesperada ,


foi abandonad a n u m ro c he d o à esper a d o monstro
.
Um vento levou Psique pelo s ares e a
deposito u sobre um relvado nu m vale. A princesa
adormece u e quando acordou estava nu m palácio
magnífico de our o e mármore. O palácio era
desabitado, pel o meno s da forma habitual, só vozes lhe
faziam companhia e atendiam a suas necessidades. Q u an d o
entardeceu, ela sentiu uma presença. Esse ser era Cupido;
entretanto, ele advertiu-a de que não poderia vê-lo,
sob pen a de perdê-lo para sempre. No escuro da
noite, vinha compartilhar a cama com Psique, que ,
apesar do estranho casament o e do marido ainda
mais estranho, se sentia feliz. Com o passar do tempo,
sente saudade s de casa e da s irmãs e vontad e de contar
aos pais qu e ná o estava morta, ne m tinha sido consumida
po r u m m onstro , c o nf or m e ela mesm o
acreditava qu e iria acontecer.
Depois d e muita insistência, Cupid o consenti u q u e
ela recebesse a visita da s irmãs, mas estava
temeros o qu e isso poderia ser um perigo para a
relação deles. Quand o suas irmãs soubera m que
tud o ia bem , q u e ela estava feliz e tinha um
marid o muit o rico, foram tomadas d e um a
profunda inveja. Nã o descansara m en q ua n t o n ã o
criaram u m plan o par a e n v e n e n a r a relação.
Soubera m entã o qu e ela nunc a tinha visto o
marido e qu e isso lhe estava vedado .
Sugeriram-lhe que . co m o auxílio de uma lâmpada, o
espiasse durant e seu son o e o matasse co m uma
faca afiada.
Psique acabo u c e d e n d o â idéia da s irmãs,
afinal o orácul o tinha falado n u m monstro , e espio u o
marid o a d o r m e c i d o . O qu e viu foi u m
b e l í ss i m o r a p a z . Emocionad a pela descoberta ,
acabo u dei x a n d o cair um a got a de azeite quent e
da lâmpad a sobr e el e e o despertou . Cupid o
cumpri u sua ameaç a e saiu di ze n d o q u e nã o voltaria
mais. " On d e h á a m o r dev e have r confiança",
foram sua s palavras ante s d e partir. Com o n o cas o
d a Bela Adormecida , Psiqu e cai d e a m or e s pel o
rapaz adormecido , confirmand o q u e é grand e o
pode r d e seduçã o do s amante s n a passividad e d o sono .
Poré m ess e rapa z nã o parec e estar disponíve l par a
tal adoração , Cupid o sente-s e traído.
Abandonada, Psique saiu a anda r pel o mundo , mas
nã o acho u acolhid a e m nenhu m lugar .
Vênu s a atormentava, pois invejava sua beleza e
ainda nã o fora vingada da afronta de ser substituída na s
oferendas. Enfim, comportava-se com o a mais ciumenta
das sogras. Numa manobra desesperada, Psique se oferece
com o serva para Vênus, na esperanç a de aplacar sua
ira. Vênu s a faz passar dias de Borralheira, dando-lh e
tarefas impossíveis, que , diligentemente e co m auxílio
de animais q u e dela se penalizam, cumpre . Num a de suas
um relato mítico. Temo s a clássica seqüênci a em
que ocorr e um a transgressão , depois a partida elos
heróis par a se recuperare m da falta, seguida d e u m
é vencida mais uma vez pela curiosidade, abr e uma caixa qu e final feliz c o m ele s n u m a p osi ç ã o superior
continha o so n o e cai adormecida . Nesse momento, Cupido àquel a d e q u e partiram.
intervém e a desperta. Enfim, Psique passa uma longa
jornada de privações e sofrimentos até qu e Cupido, qu e nã o Cupid o era invisível par a Psique , ma s sua relação
conseguia esquecê-la, ped e a Júpiter que lhe permita devia ser velad a par a a mãe , q u e foi d up lament e traída,
viver co m essa mortal. O Deu s consent e - na afinal el e deveri a destrui r e n ã o ama r su a
esperança de que, entretido co m um a paixão, rival. Na verdade , ningué m sabia dess e amor, ma
Cupido talvez deixasse os hu mano s e ele mesm o mais em s acreditamos q u e era especialmen t e Vênu s q u e m
paz - e a transforma num a imortal. Por fim, Vênus se deveri a ficar na ignorânc ia . Seu filho tinh a
reconcilia co m Psique. m ot iv o s p ar a preve r a t e m pe st a d e ele ciúme s
Seria essa a história inaugura l q u e nos legou e o deseje) ele vinganç a que viriam. O própri o
as outras? Pod e até ser, ma s q u e m nos garant e qu e ela Apoio , fazend o pape l de alcoviteiro, no s dá a
já não seja um a versã o de um a história anterior? É di m e ns ã o de q ua n t o ess e deveri a ser um a mo r
fácil cair num a hierarqui a d e q u e q u a n t o mai s antiga, encob erto , d e q u e Vênu s n ã o aceitaria ele bom
mais verdad eir a , mai s autêntica . E x a m i n a n d o o s grado u m amo r par a o d e u s d o amor .
contos atentament e , vemo s q u e a única hierarqui a
possível é entr e os b e m escritos e os mal escritos;
entr e os que mai s facilment e n o s c ol oc a m em Um amor de outro totem
cenário s e)nde as paixõe s h u m a n a s encontra m vazão ,
e os quue o fazem co m algum a dificuldade. Esse antig os casos ele noiv o animal, Bruno
o contei é muito b e m arquitetado , no s d á tod a a Bettelheim no s diz qu e essa condiçã o de
dime nsã o da s grandes dificuldades ele um a mã e em animalidade de u m do s pretendente s
ver se u filho c o m outra mulhe r q u e lhe super a em é m e t a f ó r i c a d a sexualidade ainda nã o
belez a e juventude . Seu foco central é a belez a dominada , antes de ser
en c on tr a n d o um novo altar. A única coisa que o lapidad a pela maturidad e e pel o amor. Send o
difere do s outro s é o uso de deuses da tradiçã o latina. assim,
A estrutura é a m es m a de um conto de fada e nã o de

144
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mário C o r s o

deparar-se co m um primeiro parceiro erótico equivaleria a


enfrentar a pretens a animalidad e do sexo . Pele-
de- Asno - história analisada no Capítulo VI -, para
pensarmos e m uma p e r s o n a g e m femini na , faria
p a r t e d e s s e raciocínio. Nesse caso, seria a mulhe r q u e
teria de largar a pele animal para retornar à plenitude
feminina.
A interpretaçã o de animalidad e c o m o s e n d o
a sexualidade aind a n ã o domesticad a pel o jovem
casal é irretocável, ma s acreditamo s q u e p o d e have r
outra s sobrepostas. N o univers o social p r é -
m o d e r n o . q u e originou e cultivou essa s histórias,
o casam ent o era uma mudanç a de referenciais,
especialment e par a as mulheres. O matrimôni o tecia
laços, a família da mulhe r perdia um m e m b r o e a do
marid o ganhav a um a filha. E não p o d e m o s esque ce r
q u e se m p r e havia u m d ot e em jogo, o casam ent o
era um a da s formas de partilha de riquezas, alg o q u e
no s conto s está sem pr e presente . De qualque r maneira, a
moç a ingressava em outra família com o um a
estrangeira. Era preciso qu e ela se habituasse a novo
s códigos, costumes, sabore s e cheiros. Cada família é c o m
o um p e q u e n o país, co m linguagem , rituais e gastronomia
próprios. Já qu e mudav a de família, deveria agora ser aceita
num a casa estranha, subordinada a uma sogra ne m
sempr e simpática co m sua nora. O homem era de
certa maneira, metaforicamente, de outr o totem,
pertencia a outra tradição familiar, e a mulhe r
deveria a c o m p a n h a d o . Nã o é d e admira r q u e
essa diferença pud ess e ser vista, de maneira alegórica,
como
seu amado fosse de outra espécie .
Talvez a s cultura s antiga s tivesse m a
m e s m a relação co m o s animai s q u e o s ameríndio s aind
a têm . Eles não fazem a divisão entr e naturez a e
cultura, em que os animais ficam do lad o da natureza ;
eles conce • bem os animais c o m o seres de outra
cultura. Corn o nós temos nossa linguagem , nosso s
hábitos , os animai s também teriam sua linguage m e seu
s hábitos; nó s n ã o os entendemo s e eles n ã o no s
en te n de m , da mesm a forma c o m o n ã o e n t e n d e m o
s outr a língua h u m a n a . Logo, nessa lógica, casar
co m um animal equival e a casar com um
estrangeiro , e os mitos ameríndio s d ã o inúmeros
exe mplo s da s possibilidade s d e casa ment o entre
h o m e m e animal.
Algumas organizaçõe s sociais d e tribos indígena s
mostram de maneir a b e m clara a circulação
regrad a dos c a s a m e n t o s . Q u e m p o d e casa r c o
m q u e m é definido estritamente , d e tal m o d o q u e
q u e m pertenc e a determinad o clã s ó po d e r á casa
r co m algué m d e outro. Isso t u d o está long e d a
noss a realidade , poi s na modernidad e o casa ment
o é u m a eleiçã o aberta , embora, é claro , as
regra s q u e i m p e d e m o incest o estão igualment e
presentes .
145

A p es a r d e hoj e e s c o l h e r m o s c o m o
coração, freqüente men t e ficamos surpreso s a o
constatar q u e determinad a s escolha s amorosa s
traze m o molde da noss a família, ou sã o
evocativo s da forma de ser de a l g u m d e n o s s o
s p ai s . Po r v ez e s , repetimo s seu s m o d e l o s d
e identidad e o u relação ; po r outras, no s
esforçamo s par a escolhe r noss o a m o r muito
distante de tais m odel os , ma s n ã o de q u a l q u e r
forma e sim p r o c u r a n d o seu s antônimos ,
amand o p es so a s culturalment e diversas ou
constituind o família do outro lad o do m u n d o - o qu e
ainda os mantê m na condição d e parâmetros , s ó
q u e á s inversas. Nã o temos nada objetivo a
regrar a escolha, os casa mento s não são
arranjados conform e necessidade s políticas ou
econô• micas, estamo s long e da s interdiçõe s
tribais, mas nã o necessariament e essa liberdad e
no s facilita a vida.
O problem a se equacion a do p o n t o de
vista do q u e , sintomaticamente , s u p o m o s c o m o
igual o u senti• m o s com o est ra n ge ir o .
Referi mo- no s aqu i a uma estrangeiridad e q u e
está long e d e s e restringir a o país d e origem .
Troca nd o e m miúdos , trata-se d o qu e s e s e nt e
c o m o familiar, p o r t a n t o p r o i b i d o , o u c o m o
estranho , p o rta n t o u m territóri o e m q u e a
escolh a amoros a é possível.
Pessoa s da mesm a raça, profissão, cidad e
natal, classe social ou qualque r traço evocativo da
família de origem p o d e m ser sentidas c o m o
interditadas, com o s e fossem d o m e s m o totem.
Não p o d e n d o escolhe r entre o s semelhantes , busca-
se algué m qu e possua qualque r i d e n t i d a d e
d i f e r e nt e par a p o d e r amar . À s vezes ,
necessita-se da certeza de q u e se está escolhend o
fora do lar, de q u e os amado s nã o sã o Lima evocaçã o
direta d o s pai s o u irmãos . C o m o clínicos,
observamo s o s freqüentes casos d e pessoa s q u e s ó
consegue m s e casar e m outr o país, o u co m u m
estrangeiro, o u ainda co m algué m de outra raça
ou cultura, com o única maneira de evitar a
fantasia de incesto. Nesses casos, soment e algué m
estranh o suscita desejo, só co m o príncipe ou a
princesa longínqua o casament o se concretizará.
Dessa forma, m e s m o no s tempo s m o de rn o s ,
no s quai s um a mulhe r n ã o será privad a d e
su a família, n e m obrigad a a ingressar na do
marido , a questã o da diferenç a e m t e r m o s d e
cultur a familiar aind a s e estabelece . O marid o
escolhid o trará par a dentr o da relaçã o seu s
hábito s e excentricidad e s familiares, e el a
i d e m . Sã o n e c e s s a r i a m e n t e d o i s e s t r a n g e i r o s
tentand o estabelece r u m território c o m u m d e
negocia • çõe s diplomática s e fronteiras. A identidad e
do núcle o familiar o u d o casal q u e irá constituir
dem or a e m ser encontra d a e negociada . Talvez ess e
t e m p o d e latência d e q u e falam o s conto s - n o s
quai s o s amante s aind a
Fadas n o Div ã — P si ca n ál is e n a s Hi st ó ri a s Infanti s

são d e espécie s diferent e s e deve m s etotem . Aqui q u e m te m a part e anima l é ela, e a história
ab st e r a o máximo do contat o co m as famílias de orige m é basicament e entã o a de seu sofrimento par a conseguir
- a p on t e um trabalh o de formaçã o de hábito s c o m u n s edeixa r d e ser sereia, c o m o n o rein o d o pai, e tornar-
se c o m o sã o o s d o rein o d o a m a d o , h o m e n s .
código s compartilhado s na q ue l e n o v o n ú cl e o familiar,
origina• do pel o casal. O cont o de Andersen nã o abre e s p a ç o
A animalidad e do consort e presta-s e entã o a um a para negociaçã o . Nas histórias preced entes , a m b o s tê
s o b r e p o s i ç ã o d e difere nç a s e p r o b l e m a s a m seu q u i n h ã o de perda s par a se encontrar . O
s e r e m administrados po r q u e m começ a um a relação noiv o animal passeia pel o m u n d o c o m sua
: a dife• rença de gênero ; a novidad e de , pel a primeira maldição , enqu ant o a jovem tem d e enfrentar
vez, ter tanta intimidade co m outr o sexo ; a diferença um a jornad a d e privação e perigo s para resgatá-lo.
das refe• rências familiares e ou culturais; e, po r último, Neste conto , pel o contrário, o a m a d o n ã o gasta u m
o desej o sexual qu e passa a conquista r u m espaç o d e fio d e cabel o e m troc a daquele amor, ele ne m
exercíci o outrora inédito, talvez aind a xisto c o m o s e d á cont a d e q u e ela é d e outro reino .
primitivo e portant o animal. Além disso, o preç o q u e a sereia tev e de pagar à
É possível qu e o melho r e x e m pl o de brux a pela forma h u m a n a foi sua capacidad e
troca de referências seja o tristíssimo cont o A de falar, q u e a prix-ou da capa cidad e de envolve r o
Pequena Sereia, d e Andersen. Bem meno s feliz qu e n o amado c o m a bela voz. Nã o há c o m o evitar
d e s e n h o musical h o m ô n i m o do s Estúdios Disne y pensa r a voz ta m b é m c o m o o representant e de
(1989), a p e q u e n a sereia original s ó enfrenta se u idioma. Nesse sentido , par a ingressa r e m
dissabore s d o c o m e ç o a o fim. Nessa história, po r
outr a cultura n ã o houve um a síntese possíxel, a
ocasiã o da maioridade , cad a sereia8 tinha direito a vir
mistura de idiomas , a sereia pago u sua ousadi a
espia r o m u n d o do s h o m en s . A heroína escutaxa
co m o mutismo , q u e , po r sua vez, foi a pe n a s
atentament e cad a história da s sua s precedente s em tal
metáfora da mort e q u e viria a seguir. Em última
ritual e muit o esperav a pel o seu. Q u a n d o faz 1 5
anos , xai c o m g r a n d e expectativ a espiona r o instância, o cont o termin a s e n d o um manifesto
rein o do s hu m a n o s . Na ocasião , encontr a um sobr e a impossibilidad e d e ro m p i m e nt o d e
navio em q u e havia um a festa, era o aniversário determi• nada s barreiras, sejam culturais, raciais ou
d e u m príncipe , q u e o celebrav a n o c on v é s . familiares. Não no s estranha qu e o desenh o Disney, em
Um a tempestad e vem para estragar a co m e m o ra ç ã o tempos
e joga o príncipe no mar, imediatament e a sereia o em qu e a tolerância entre os povo s é um ideal
salva e o leva, mais mort o q u e vivo, par a um a social, tenha lhe modificado o final tão radicalmente. No
praia segura . desenho animado , é permitido qu e o pox o do mar
e o da terra façam um casament o intercultural. É
O fascínio pel o outr o rein o ganh a um a dimensã o
o própri o pai da sereia que , xend o a força do
aind a maior, e a sereia se apaixon a pe r di da m e n t e pel o
amo r da filha, consente co m sua partida, m u da n d
príncipe . Não encontr a mais consol o n o rein o d o
o sua forma. Decididamente outros tempos...
pa i e faz um trato co m um a brux a para p o d e r
ser um a h u m a n a , t r o c a n d o a a p a r ê n c i a p o r
u m a d e s u a s virtudes, a voz. Ganh a a forma humana ,
ma s fica m uda . Nessa condição , encontr a o príncip e O filho animal
q u e n ã o a reco • nhec e c o m o sua salxadora, mas ,
d e qualque r mo d o , tom a carinh o po r ela e a ormal me nte , o s conto s d e noiv o anima l
conserv a s e m p r e po r p e i t o c o m o um a amiga o u u são muit o econô mic o s em explica r a
m tip o d e irmã. Desprovid a d a voz, qu e era um do s orige m do e nc a nt a men t o q u e custo u a image
seu s maiore s atrativos, e sofrend o terrivelmente, j á q u m human a ao consorte , a magia n ã o
e a s nova s pe rn a s doía m a o ca• minhar, nã o te m conviv e c o m mui-
c o m o s e fazer e nte n d e r e pass a pel o suplício d e tos p or q uê s . Vagamente , s ab e m o s q u e a
presencia r o casa ment o d o se u a m a d o c o m outr a responsável é um a mulhe r m á q u e lhe rogo u um a
princesa, ta m b é m h u m a n a c o m o ele. maldição . Alguns outro s contos , n o entanto , p o d e
Ela n ã o morre , poi s ficamos s a b e n d o qu e sereias m no s fornece r uma pista. Relataremo s u m destes
virtuosas s e transforma m n u m a espéci e d e anjo .
d a guarda , co m o ela m es m a foi par a o príncipe . Pouc o conhecido , poré m interessante, é o
É um a históri a b e a t a , e m q u e a v i d a e t e r n a conto narrad o pelo s irmãos Grimm, ch a m a d o Hans, o
fica c o m o reco mpens a suficiente par a aquel a qu e Ouriço.9
deixo u t u d o p o r a m o r a u m h o m e m d e outr a Han s é um pe rs o na g e m cuja forma mescla a
dimensão , d e outr o forma hu man a co m a de um ouriço . O detalh e
q u e no s faz conta r essa história é o fato de estar
centrad a na origem d o encantament o : u m desejo express o através d e u m deslize verbal d o pai.

146
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Cors o
tornar-s e deficient e par a o m u n d o

Privado de ter filhos po r um a infertilidacle do casal,


um camponê s se envergonh a de sua condiçã o quand o
vai à cidade comerciar seu s produto s e constata
qu e não possui um a prol e c o m o os outros. Outrora, e
hoje com meno s força, a fertilidade de um
h o m e m era símbolo inequívoc o de sua potência
sexual. Portanto, ser visto sem filhos era o m e s m o qu e
desperta r suspeitas de impotência, um a vergonh a
pública para o h o m e m em questão. O q u e entra em
jogo a partir daí n ã o diz respeito apena s ao desejo
de ser pai. ma s també m ao de se livrar dess e
questionamento .
Por isso, ele exclam a quere r um filho a
qualque r preço, "nem q u e seja um ouriço" . Não se sab e
se Deu s ou o diab o atend e a se u pedido , de qualque r
forma a dita criatura ve m ao m u n d o , tal c o m o
convocad a pel o pai. É óbvi o q u e est e se
arr e pe n d e do q u e disse e relega o estranh o ser a
viver entr e as cinzas, desejand o explicitamente q u e el e
morra. Afinal, se n ã o ter filhos já lhe impunh a um a
má fama, o significado social de um filho
imperfeit o e nt r e os povo s antigo s trazia
evocações aind a mais constrangedoras. 1 0
A vida de Han s n ã o começ a nad a bem , a
mã e não o amament a e o enjeitad o cresc e
c o m o p o d e . Quando atinge certa idade , n ã o t en d o
n e n h u m motivo para ficar, p e d e ao pai q u e lhe dê um
gal o c o m o mei o de transporte, un s porco s par a criar
e uma gaita para tocar. Que r partir para construir
sua própri a vida.
A enunciaçã o de q u e aceitaria um filho a qualque r
preço é feita para ser log o provad a impossível.
Um filho é p e ns a d o com o um troféu, é
co n ce bi d o para tanto. A tarefa da parentalidade , em
condiçõe s normais , é a de cair dess e cavalo. Nã o só
a criança, po r sorte, tem seus defeitos, c o m o ela
n ã o está dispost a a ficar enfeitando a estant e de
ninguém , já q u e ela te m sua própria vida para
cuidar. Isso no cas o de crianças q u e nascem s e m
imperfeiçõe s físicas . Quand o e s s e s acidentes
ocorrem , é possível aceitar um filho deficien- te, mas
ante s será necessári o realizar o luto pel o filho
perfeito qu e n ã o nasceu .
Nesse sentido , o q u e diferencia o nasciment o
de um filho co m proble ma s de um norma l é um a
questã o de tempo , o primeir o já nasc e ouriço ,
n ã o d a n d o chance à idealizaçã o - assassinad a log
o no início da festa. No se g u n d o caso, do b e b
ê perfeitinbo, a desi- lusão p o d e tardar, ma s n ã o
falha.
O s filhos q u e foram, d e algum a forma,
co n de n a • dos a pe r m a ne c e r à image m e
semelhanç a do ideal de perfeição costu ma m paga r
o pr e ç o de su a própri a vida o u d o equilíbrio menta
l par a o cu p a r u m lugar n a estante de troféus d o s
pais. Para ess e tip o de filho, será necessár i o
147
externo , s e n d o incapa z par a o sex o o u amo r (d e
forma a nunc a substituí-los); ou inviável par a certas
ousadias e transgressõe s necessárias para se
independiza r (assim n u n c a o s a b a n d o n a r á ) . É
p a r a d o x a l , m a s o filho idealizad o termin a po r
ser de certa forma deficiente: é aquel e q u e nunc a
cresce .
Hans , o ouriço , n ã o tev e ess e
problema , seu nasciment o n ã o empr esto u um a
image m d e potência a o pai. Enquant o b e b ê
espinh oso , n ã o viveu u m idílio simbiótico co m a mãe
. cujo seio n e m seque r conheceu; portanto , q u a n d o
qui s e preciso u partir, nad a o segu- rava. Mas
há alg o mais de q u e um filho precisa para
segui r adiante . Uma coisa é r o m p e r a bolh
a desse ideal e prova r o gost o amarg o da
imperfeição humana, outra é nunc a ter sid o
idealizado . Isto faz diferença. Tant o q u an t o u m
amo r obsessiv o tem o pode r
de imantar pais e filhos, q u e n ã o consegue m se separar,
um filho p o d e ser retid o junto ao s pais
justamente pel o contrário , pel a falta d e u m lugar
n o amo r deles. Ele persistirá dentr o do núcle o
familiar até se assegurar d e q u e partiu de i xa n d o
sauda des .
Infelizmente é comum , nu m a prol e
numerosa , q u e o filho q u e fica junt o do s pais
na adversidad e e na velhice seja justament e
aquel e qu e foi preterid o n o amor. O s preferidos
parte m tranqüilos, seguro s d e seu lugar na família
e no amo r do s pais, nã o precisam mais conquistá-
los . É c o m o na história bíblica da volta do filho
pródigo : aquel e q u e fica junto do pai nã o
receb e h o m e na ge n s , já o q u e a b an d o n o u a
família é objeto de grande s festas na sua volta.
Q u a n d o o filho q u e sem pr e estev e junto d o pai
reclama d a injustiça, q u e i x a n d o - s e d e q u e o
m e n o s a p e g a d o é o mai s h o m e n a g e a d o , o pai
diz q u e a h o m en a g e m era para o r e t o r n o d e u m
filho q u e , t e n d o sid o pe r di d o , foi finalment e
r e e n c o n t r a d o , e n q u a n t o el e jamais fora perdido
. A realidade , porém , é outra, o filho pródig o
p o d e partir e voltar quanta s veze s quise r e
sem pr e terá um a festa de boas-vindas , e n qu a nt o
o preterid o ficará se m p r e lá, cavand o um lugar
para si na pedr a dura d o coraçã o do s pais.
Já Hans , q u e n ã o tinha motivo s para
ficar, pois era mais do q u e preterido , era um
enjeitado, se interna na escuridã o da floresta, o n d e
leva solitariamente um a vida agradáve l e observ a
sua criação de porco s pros • perar. Uma ve z
tenta voltar, par a levar ao pai o fruto d e se u
trabalho , um a vez q u e su a criação d e porco s
tornara-s e muit o nu m er o s a . Nova me nt e
encontra-s e c o m a rejeição: o pai fica
desagradavelmen t e surpres o d e q u e a abjeta criatura
n ã o tenh a perecid o n a floresta e el e precisa novament
e partir. Em seu desejo , o jove m ouriç o pensar a e m
voltar par a casa n a condiçã o d e
Fadas n o Div ã - Ps ic a n ál is e n a s Hi st ó ri a s Infanti s
rejeição inicial desaparece r á quando for

home m digno , capa z de mostrar o se u sucesso , ma s


o pai lhe lembra q u e el e n ã o passa d e u m porco-espinho ,
tão animal c o m o os bicho s da sua criação.
De volta ao seu hábitat, po r d u a s vezes , el e
te m oportunidad e d e ajudar reis q u e havia m s e
perdid o na floresta e teriam perecid o nela,
incapaze s de sair ou sobreviver. A ambo s faz a
mesm a exigênci a em troca de guiá-los para fora
e salvar-lhes a vida: que r qu e lhe seja dad a a
primeira coisa q u e o s o be ra n o encontrar q u a n d o
chega r e m casa. Ne m é precis o dize r qu e a primeira
coisa q u e vai ao enc ontr o de a m b o s é a filha
caçula, predileta do pai, " feliz co m se u retorno . O
primeir o rei havia feito um contrat o falso,
contand o co m engana r o ouriç o e se m intençã
o de entregar-lhe nada. muito meno s a própria filha.
Q u a n d o Hans aparece para cobrar a promessa, é
recebid o pelos soldados do rei qu e têm instruções
de matá-lo. Pela segunda vez, precisa sobreviver a um
vot o de morte, já qu e seu próprio pai não cessava de se
lamuriar, desejando o fim da criatura monstruosa qu e
seu desejo gerou.
Hans , n o entanto , nã o s e co mp ort a c o m o
u m enjeitado qu e vai emb ora . Na floresta enco ntro
u se u hábitat, o n d e sua condiçã o animal era
natural e o n d e mostrou condiçõe s d e dar a o rei o
q u e ele n ã o tinha: a possibilidad e d e
sobrevive r á hostilidad e d o ambiente . N o
m u n d o h u m a n o , el e n ã o oferece u a o pai aquilo
q u e este desejava, nã o nasce u para prova r a
potênci a paterna : um a vez na floresta, o ouriç o de u
ao rei o q u e est e precisou , po r isso, o jove m
pass a a ter condiçõe s de cobrar. Muito se fala da
dívida q u e u m filho contrai co m seu s pais, po r tud
o q u e fizeram p o r ele , ma s ness a históri a
a p a r e c e m t a m b é m o s direitos conquistado s po r u
m filho q u e , a se u m o d o , cumpr e co m seu s
devere s e te m con diçõe s d e cobra r d a vida seu s
merecido s ganh os .
Ameaçand o os soldados , cas o o rei faltasse
co m sua palavra nova me nte , o ouriç o se faz
respeita r e consegu e q u e a princesa lhe seja dad a
em casament o . Mas, a mo d o de vingança, deixa a
noiva tod a ferida co m seus espinho s e parte
despeitado , para cobrar a promess a a o segund o
rei.
Ju n t o deste , encontr a a s porta s aberta s e
um a jovem, tal qual Bela, dispost a a se sacrificar
em n o m e da palavra do pai. F.ste rei toma- o com
o um filho e n ã o m e d e esforços par a recebe r
b e m a q ue l e q u e o ajudou nu m a hor a difícil.
Nesse caso , a condi çã o de Hans , e n q u a n t o u m a
criatura d a floresta, u m porco - e s p i n h o , serviu a
o rei e m d e t e r m i n a d o m o m e n t o , portant o é c o m o
s e ess a animalidade , a o se r absorvid a c o m o algo útil,
houv ess e se t or n a d o desnecessária . O símbol o da
Mas q u e desej o parenta l é ess e q u e faz do
filho um monstro , um animal encantado ? Na
tradição , um filho co m aparênci a animal, ou c o
neutralizad a pela s boas-v inda s d o pa i substituto ,
m algu m tipo de m o n s t r u o s i d a d e , c os t u m a v a se
o s e g u n d o rei. Na noit e de núpcias , o ouriç o
r castig o di v i n o por algum a forma de sex o
torna-se u m bel o jovem , cuja pel e d e bich o dev e ser
queimada par a encerra r o en c an ta m e nt o . interditado . A infertilidade de um casal é um
revé s biológic o do qua l ningué m tem culpa .
Nos conto s de fadas, a queim a da pel e é
uma f o r m a tradiciona l d e torna r o Porém , q u a n d o ela ocorre , é c o m o u m p é d e
d e s e n c a n t a m e n t o irreversível , no c a s o a n t e ri o r m e n t vent o q u e levanta u m a poeir a q u e n i n g u é m gost
e citado , O Lobo Branco, isso n ã o funciono u a d e encontrar , p o n d o e m evidênci a tod a um a
devid o ao fato de a mãe da jovem ter tentad o o gam a d e conflitos q u e usualmen t e passaria m se m
ritual ante s do prazo , à revelia d o príncip e fazer barulho. Q u a n t o mais rápid o e
en c an ta d o . N o c o n t o d e Hans , su a pele foi imperceptivelment e uma
q uei m a d a no m o m e n t o certo , ele deix a par a trás gestaçã o acontece , m e n o s ficará evidenciad o par a u
sua antiga existência q u e o prendi a ã maldiçã o paterna. m casal a diferença entr e o sex o par a a procriaçã o e
Ness e rein o ser á p l e n a m e n t e h u m a n o e é por prazer. Uma gestaçã o p o d e acontece r po r
feito o sucesso r do trono . acidente, n u m deslize d a contracepçã o , o u n u m
Essa n ã o é a única história em q u e a gênes e context o e m q u e s e está fantasiand o c o m u m
da animalidade é um a maldição do s pais. Um b o m exemplo filho, se m um a clara definição d e q u a n d o será
de maldição, dessa vez materna , é o cont o O Corvo.1 co n ce bi d o . Nesse s casos, engravida r incorpora-s e na
2 s fantasias eróticas d o casal, o desej o po r um filho
Nessa história do s irmãos Grimm, um a m ã e q u e é tênue , qu a s e lúdico . A parte complicad a - um
não agüent a mais um a filha choron a acaba desejando , p o u c o ou até muit o assustadora - chegar á c o m
num m o m e n t o de raiva, qu e ela se torn e um corvo . a confirmaçã o d a gestaçã o o u co m o
Dito e feito, a menin a se transformou em corv o e saiu nasciment o da criança, q u a n d o o casal se torna r
voando pel a janela. Nesse s casos , o s uma família.
de se n ca nt a m e nt o s são trabalhosos, mas possíveis, sã o Q u a n d o a naturez a neg a o u obstru i ess e caminh o
jornada s parecidas às da s jovens noivas do urs o e mais fácil e sutil, o casal terá de gera r a criança, afirman•
do lobo , em q u e é um amo r q u e vai redimir o s d o a força d o se u desejo . Terá d e sub mete r su
enfeitiçados. a vida

148
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Co r s o

sexual ao impéri o da co n ce p ç ã o , t o rn a n d o consciente s


muitas coisas q u e muit o b e m ficavam na s
sombras . Um filho n ã o é um b e m universal ,
desejá-l o é tã o humano co m o questiona r se é
precis o m e s m o tanta abnegação, tanta dedicaçã o
po r algué m qu e , no fim da história, acab a ind o
emb or a e e s co lh e n d o outr o amor qu e nã o o de
seu s pais. Certa part e da s infer- tilidades
inexplicávei s pel a ciênci a médic a sã o
psicogênicas, podend o estar ligadas a um a
suposiçã o inconsciente d e q u e um , o u o s doi s
cônjuges , n ã o seriam capaze s de ser b o n s pais.
Às vezes , a d o çõ e s posteriores ou a reversã o do cas o
revela m infelizmente que as intuições era m verdadeiras .
É b o m lembra r q u e a facilidade para engravida r de
forma algum a que r dizer o oposto : neste s caso s
t a m b é m p o d e se revelar a total falta de p e nd o r par
a a paternid ad e .
O s p r o b l e m a s d e fertilidad e d e s n u d a m
u m a patologia ligada à c o n c e p ç ã o p o r q u e torna m
conscien • tes processos q ue , na fecundação ,
geralment e trans• correm de forma inconsciente .
Associad o ao event o biológico da relaçã o sexual ,
encontra-s e um ma r de dúvidas e e s t r a n h a m e n t o s
. Q u a n d o u m a g e s t a ç ã o acontece muit o rápida
e naturalmente , n ã o há muit o espaço para duvida r
d o parceir o escolhid o , n e m da s próprias capacidade
s para o exercício da parentalidade , nem seque r da
criança, q u e talvez seja difícil de criar o u
portador a d e algu m defeito . N o t ra n sc ur s o d a
gravidez, muitas dessa s dúvida s virão, ma s já é
tarde , não pode m impedi r a chegad a do filho
ao m u n d o . Quand o ela s s e insinua m á
co n sc iê nc i a a n t e s d a concepção , fica mai s clara
a gam a cie neurose s e fantasias qu e
a s s o m b r a m t o d o s o s p r o g e n i l o r e s principiantes.
O pai de Han s qui s um filho par a prova
r sua potência, saiu um monstro ; a mã e da menin a
corv o se desiludiu co m se u b e b ê , qui s q u e ela
fosse m e n o s chata, virou um a ave; a mã e de
Rapunze l qui s um a gravidez co m a mes m a
impaciênci a co m q u e exigiu os rapúncios, ficou só
co m os vegetais. Nos conto s de fadas, cad a vez q u e
os pais explicitam a força de se u desejo sobr e a
co n ce p çã o , alg o acontec e q u e i m pe d e a
paternidad e o u a maternidad e de ocorrere
m normalmente. Na vida real, nã o é assim tã o cert o ne
m tão direto, ma s vale c o m o um alerta.
E cert o q u e par a se ter um filho é
important e que ele seja desejado , ma s ess e vot o també
m sab e ser problemático. Seja qua l for o q u a d r o
da orige m de uma vida , se r o r e s u l t a d o d o
desej o explícit o o u inconsciente de algué m é um a
sina difícil co m a qua l todos temo s q u e lidar. Sempr
e nasce mo s mai s feinho s d o q u e no s fantasiaram,
à s veze s es pi n he n t o s par a
149

m a m a r e mai s c h o r õ e s d o q u e o e s p e r a d o
e n e m se mpr e c h e g a mo s a o m u n d o c o m o
gê n er o desejado . Somo s co nc e bi d o s n u m a
intimidad e erótica d o casal, q u e compartilharem o s
de forma incômod a e conflitiva d u r a n t e n o s s o s
a n o s d e infânci a , a ss i m c o m o a evocare mo
s e m nossa s fantasias q u a n d o crescermos . A
filiação é um a sina necessária. Essas histórias
ex p õ e m caricaturalmente sua face neurótica. O
noivo animal, po r ser u m filho monstruoso ,
evoca qu e n o m o m e n t o de partir par a a vida
adulta, sexualment e independent e e madura,
levaremos conosc o os desejos co m os quais fomos
fabricados. Isso é inevitável, às vezes é possível incinerar
as peles e cavar a própria humanidade, mas sempr e
restará pel o meno s a lembrança de com o tud o
isso começou : d o lobo, d o urso, d o ouriço,
d o corv o o u d o rapúnci o q u e u m dia fomos.
Sair de casa é uma nova existência, é um a
nov a pele . A casa paterna , sempr e tão
idealizada, muitas veze s se mostra asfixiante. Não
sã o raros os filhos q u e estã o s o b o jug o d e
desejos mortíferos po r part e do s pais, q u e n ã o
suporta m o u n ã o e n t e n d e m a s escolha s daq ueles .
A saída de casa, qu e . na verdade , é a saída da s
ex p ec tat i va s pa re n tai s , revela-s e n es s e s caso s
equivalent e à libertação de um a maldição .

Notas
1. TATAR, Maria. Contos de Fadas: Edição Comentada
& Ilustrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
2. Troll é um nom e genéric o utilizado no
folclore escandinavo para seres encantados que
habitam as montanhas ou as florestas. Sua tradução
aproximada seria: espírito malvado, demôni o ou
monstro. Podem adota r várias formas,
existem referências com o send o anões, mas em
outros casos eram vistos como gigantes.
3. LANO, Anclrew. El Libro Azul de los Cuentos
de
Hadas II Madrid: Neo Person, 2000.
4. LANG, Andrevv. El Libro Gris de los Cuentos
de
Hadas. Madrid: Neo Person, 2000.
5. Esta históri a par a os latino s te m
significado s agregados, afinal Cupido é a
personificação do amor, outras vezes do desejo. Seu
estatuto entre os deuse s n ã o é muit o claro ,
algun s o c o nsi d er a m um a divindade menor.
Para os gregos, com nom e de Eros, ele existiu desd
e o começ o do mundo , com o uma e nt id a d e
primitiva e eterna , cuja força nã o se
extingue. Não podemo s esquecer qu e suas
flechas pode m atingir até os deuses. Vênus,
sua mãe nas versões mais conhecidas, é a
deusa relacionada à
Fadas n o D i v ã - P s i c a n á l i s e n a s Hi st ó ri a s Infanti s

beleza e ao amor. Já Psique tem com o sobre a pureza da alma dos pais. Mesmo hoje, em
tradução aproximada "alma". t e m p o s m e n o s religiosos , o s pai s cujos
6. APULEIO, Lúcio. O Asno de Ouro. Rio de filhos a p r e s e n t a m algum a anomali a visível
Janeiro: Edições de Ouro . 1980. precisam combater a idéia de qu e ali estaria
7. ANDERSEN. Hans Christian. Contos de marcada alguma falta por eles cometida. Já
Andersen. Bettelheim observa que:
São Paulo: Paz e Terra, 1988. "a sabedoria psicológica destes conto s é
8. As sereias da Antigüidade eram mulheres até o torso notável: falta de controle sobre as emoçõe s
com o resto do corp o de ave, foram estas por parte dos pais cria uma criança
qu e tentaram Ulisses. No caso, trata-se de um desajeitada. Nos contos de fadas e sonh os ,
ser que habita um reino no fundo do mar, metade a má confor maçã o física com freqüência
mulher e metade peixe, talvez o nom e de represent a um ma u desenvolvimento
pequen a Nereida seria mais adequado , ou ainda psicológico", In: BETTELHEIM, Bruno, A Psicanálise
Ondina, mas ficou como sereia. Na tradição dos Contos de Fadas. São Paulo: Editora Paz e Terra,
européia recente, os seres aquático s encantado s 2001, p . 87.
era m t o d o s dess a forma, metad e h u m a n o co 11. Este expediente, pelo qual o pai será
m caud a de peixe , a figura clássica de um obrigado a prometer que dará a primeira coisa
Tritão. qu e encontrar ao chegar em casa a algum
9. GRIMM, Jacob & Wilhelm. Todos los Cuentos de ser qu e o ameaça, é repetido em vários contos
los Hermanos Grimm. Madrid: Coedição de de fadas. Em muitos deles é a filha caçula qu e
Editorial Ruclolf Stiner, Mandala Ediciones, Editorial corre aos seus braços nessa ocasião, com o
Antroposó- fica, 2000. Este conto nã o consta prova da intensa afeição qu e a liga ao pai.
nos Contos de Grimm - Obra Completa, editadas Não surpreend e qu e se repita essa escolha pel o
em português pela Editora Villa Rica. É uma boa edição, filho mais jovem com o predileto, pois é o que está
mas não sabemos o que os levou a publicar 99 mais distante de abandona r a família, o mais
contos apena s do s aproximadamente 200 contos próximo da criança amada e amante dos pais.
originais, e mesm o assim chamar-se de Obra 12. GRIMM, Jacob & Wilhelm. Todos los Cuentos de
Completa. los Hermanos Grimm. Madrid: Coedição de
10. Criaturas deformadas costumavam ser Editorial Rudolf Steiner , Ma ndal a E d i c i o n e s
associadas com seres demoníacos, o qu e lançava , Editorial Antroposófica. 2000.
uma sombra
150
Capítulo XI
HISTÓRIAS DE AMOR III:
FINAIS INFELIZES

Barba Azul, O Pássaro do Bruxo, Nariz de Prata, e As Três Folhas da


Cobra
Curiosidade feminina - O preço da iniciação sexual das mulheres -
Oposição paterna ao amadurecimento da filha - Ruptura da submissão
e da ingenuidade femininas - Construção da imagem corporal - Caráter
desestruturante das perdas amorosas - Ciúme patológico.

as histórias qu e várias nacionalidades. Para essa análise tomaremos ainda


precedem , analisadas nos Nariz de Prata,2 da tradição italiana, e O Pássaro
dois últimos capítulos, a do Bruxo,3 dos irmãos Grimm, da tradição alemã.
assimetria do casal encontra,
no final do relato, alguma
solução; entretanto, essa sorte Barba Azul
não é regra, o mesmo não
acontece em Barba Azul,1 nem arba Azul é um homem rico e poderoso, nada
nos contos que vamos lhe falta, exceto uma esposa. Pede então em
analisar agora. Existem casamento uma moça de menos posses que
várias veio a conhecer. O matrimônio para ela era
histórias que dão conta de desencontros amorosos, com uma oportunidade de saída do lar, a chance de
maridos cruéis, esposas jovens e curiosas, redundando uma vida financeiramente compensadora. Em Nariz de
num casamento que fracassa. São as tramas em que o Prata, três irmãs são sucessivamente convidadas para
estranhamento entre marido e mulher não trabalhar como criadas, mas para driblar a miséria da sua
encontra resolução, e o laço amoroso não se consolida. família. Já, na história alemã, O Pássaro do Bruxo,
Barba Azul, popularizado por Perrault, que deu tintas três irmãs são inicialmente raptadas, mas, assim que
literárias, ao estilo da época, a uma narrativa folclórica chegam ao cativeiro, são cercadas de todo o tipo de
anterior, pode ser considerado o conto modelo sobre conforto que o dinheiro pode comprar.
esse tema. Trata-se de um tipo de história bastante
difundido, tanto que existem outras muito semelhantes
provenientes de
Fada s n o D i v ã — P s i c a n á l i s e n a s Hi st ór i a s I nf a n ti s
sabã o capa z d e retirar a marca. O q u e ela nã o sabia
era q u e a tal chav e possuí a
Nessas histórias, o início é diferente de
conto s tip o A Bela e a Fera. Bela vai para o
castelo de Fera par a morrer, e n q u a n t o par a essa s
moças , po r mai s i n d i g e s t o q u e seja o
p r e t e n d e n t e , s e c o l o c a a possibilidade de um
casament o de conveniência . Mas o qu e no s levou
a agrupá-las n ã o é apena s o fato de com eçare m
d e m o d o semelhante , é se u desenlace ,
estruturalmente quas e idêntico. Só variam as aparências.
São as posses , ou a v o nt a d e de ir e m b o r a de
casa . q u e fazem as moça s em Barba Azul e
Nariz de Prata relevare m o qu e seu s olho
s vêe m n o pr ete n d en t e : tant o u m ma u a s pe ct o
q u a n t o um a pista d e s u a maldade. Quanto a
o primeir o c o n t o , acrescentava-s e à
desagradáv e l barb a d o heró i sua m á fama.
Sabia-se q u e casara várias veze s se m q u e s e
tivesse notícia d o parad eir o da s e s po s a s anteriores , o
que , c o n v e n h a m o s , n á o é muit o encorajado r par
a a s nova s candidatas . A desconfianç a da s moça s
q u e ele cortejava era tã o g ra n d e qu e preciso u
p r o m o v e r grande s festas, co m muita fartura e
diversão , par a seduzi r algum a delas . Finalment e
h o u v e u m a q u e consegui u suporta r o aspect o
sinistro d o h o m e m d e barb a azul e aceitar se u
pedido.
Depoi s d e c on s u m a d o o casamento , e m qu e tud o
ocorria normalmente , o marid o p a n e e m um a
viagem, deixand o co m a espos a toda s a s chave s
d o castelo. Tud o o q u e ele possuí a ficou ao dispo r
dela, riqueza s inclusive, m e n o s o acess o a u m
c ô m o d o proibido , cuja chav e ele tam bé m lhe
estava confiando . Se ela transgredir, diz ele, ante s
d e embarca r n a carruagem :
"nã o h á nada q u e ná o deva espera r d a minh a
cólera". Até o m o m e n t o dess a ameaça ,
Barba Azul era
u m m a ri d o cujo mai o r defeit o er a su a
a p a r ê n c i a estranha, a jovem nã o parecia ter motivo s
par a temê - lo, já qu e a tratava até co m cert o mimo ,
ma s nad a do q u e ele lhe podi a oferece r a
atraiu tant o q u a n t o o quart o proibido . Se o motiv o
do casament o era o bem - estar financeiro, isso nunc a
lhe faltou, bastava aco • modar-s e nessa nov a
vida. Mas tu d o indica q u e se u verdadeir o fascínio
era a aparênci a maligna e assusta• dor a do marido ,
o mistério q u e sua vida encerrava , p r o d u z i n d o o
m e s m o atrativ o d a cha v e d o q u a r t o interditado.
É co m ess e perigo , co m essa ameaça , q u e ela se
envolve u ao casar.
Ela vacila muito, ma s ced e à sua curiosidade. Ao
entrar no recinto proibido , a jovem encontro u um a cen a
tétrica: as esposa s anteriores degolada s e
pendurada s , feito um açougu e de carn e humana . O
susto fez co m qu e derrubass e a chav e no chão ,
manchando - a co m o sangu e derramado , e n ã o houv e
seqüência de três irmãs que são levadas pelo
estranho pretendente; destas, apenas a última, a caçula,
não sucumbe à sua armadilha. É com o se
o pode r mágic o de denuncia r a transgressão, uma vez
assim houvesse oportunidade para a personagem
suja, nã o podi a ser lavada. Ao voltar, o marid o descobriu qu e
aprender, levando-nos a supor que talvez as três não
ela traíra sua confiança através da manch a na chave e só lhe
restava, então , cumprir o prometido , castigando a co m a sejam mais qu e uma, ou seja. a mesma em
morte . três momentos sucessivos. Essa evolução da
personagem em três tempos permite que ela
O final da história te m um desenrol a r nervoso,
a es p os a é salva pelo s irmão s q u a n d o a lâmina cresça com a experiência. Assim, não ficará
já desci a s o br e se u p e s c o ç o . Essa é a mai s passiva mais rezando com a faca sobre o pescoço, mas
das três heroínas , o m á xi m o q u e ela fez par a se salvar foi fará o necessário para se safar, salvando as anteriores e
pedi r u m t e m p o par a rezar, p o st e r g a n d o assim levando consigo parte do tesouro do sinistro esposo.
por O Bruxo do conto dos Grimm, O Pássaro
1 5 minut o s a hor a d a morte , poi s apostav a do Bruxo, é na verdade um velho raptor, como o
n a possibilida d e d e q u e seu s irmãos , q u e estava m Velho do Saco.4 Ele bate à porta das moças
para chegar, tivessem c h a nc e de salvá-la. Já o temível Barba esmolando e termin a aprisionando-a s em um
Azul foi ve n ci d o e mort o se m gr a n d e resistênci a pelos cest o mágico, levando-as para seu castelo.
irmão s da esposa . Ela ficou se m marido , mas , Embora os inícios das histórias sejam distintos, já
pelo m e n o s , tinh a u m castel o e u m d o t e par a que não se trata aqui de um casament o po r
tenta r u m c a s a m e n t o feliz. interesse, com o ocorre u em Barba Azul, os
destinos das noivas são idênticos no restante da
trama. Quando chega à casa do Bruxo, a moça é a
senhora daquele novo e riquíssimo lar. Como cabe
O Pássaro do Bruxo
a esse tipo de história, o velho homem parte por
s heroínas similares das histórias alemã e uns dias, deixando aos cuidados da futura esposa as
italiana são mais espertas e dão uma virada na chaves da casa, incluindo a do quarto
trama, deixando seus algozes no papel proibido. Junto com o molho de chaves, ele entrega-
de otários. Além disso, nessas histórias, há uma

152
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Co r s o
troco . Já q u e el e as fazia

lhe um ovo, q u e de v er á se r c u i d a d o e
c a r r e g a d o sempre consigo .
Quando a primeira da s irmãs entr a no
recint o proibido, depara-s e co m um a visão terrível: um a
pilha macabra, construíd a pelo s corpo s
esquartejad o s d e todas as moças q u e já havia m caíd o
na cilada. Co m o susto, o ovo cai na poç a de sangue ,
ficando co m um a mancha indelével. Q u a n d o o Brux o
retorna , examin a o ovo, que possui o sinal da
desobediência , e identifica a senha para mata r mai s
essa jovem . Assim ocorr e também com a seguinte
. Apena s a caçula escap a do castigo, quand o cheg
a sua hor a de ser post a à prova , a história muda:
a jovem deixo u o ov o a salvo ante s de abrir o
quart o proibido , lá encontro u sua s irmãs
esquartejadas e colou seu s pedaços , devolvendo -
lhe s a vida, e depoi s as es co n d e u . Fm favor da
idéia de que as três irmãs sã o na verdad e
representaçõ e s da mesma tem-s e o c o m p o r t a m e n t
o da terceira , q u e , mesmo sem se comunica r co m
as outras , ag e c o m o se soubesse o q u e ela s vira
m e q u a i s p r e c a u ç õ e s e providências deveria
tomar.
Ao retornar, o Bruxo ficou content e po r encontra r o
ovo intacto c o m o prov a da obediênci a da
jovem, resolvendo qu e esta seria sua espos a
definitiva. Ela aparentemente aceita o p e d i d o de
c a s a m e n t o e se iniciam os preparativos . Na nov a
condiçã o de futura esposa, ela lhe p e d e par a
envia r para sua família um grande cesto de riquezas ,
q u e o Bruxo deveria carrega r pessoalmente. A jovem
garant e ao noiv o q u e te m um poder mágico co m o
qual tu d o vê, de m o d o que , se ele fraquejar
c o l o c a n d o o c e s t o no c h ã o , el a o
. repreenderá. Aparentement e , el e n ã o lhe neg a
nada . Ela coloca as irmãs no cest o junto co m as
riqueza s e envia o crédulo noiv o para a sua casa
de origem . Por duas vezes, vergad o pel o imens o
peso , o Brux o tenta pousá-lo no chã o par a
descansar .
D e d e n t r o d e s e u e s c o n d e r i j o , el a s
t i n h a m instruções de , cad a vez q u e ele parasse ,
dizer: "estou olhando pela minh a janelinha e vejo
q u e paraste , te ordeno qu e sigas adiante!".
Impressionad o co m o pode r da noiva, o brux o segu
e o trajeto até q u e , s ua d o e cansado, entreg a o
cest o c o n t e n d o as joven s sãs e salvas na casa de
seu s pais. Através da s artimanhas , a jovem faz co m
q u e ele devolva as irmãs da mesm a forma com o
ele as raptou . Mas aind a lhe restava a
necessidade de fazer um pl a n o para sua própri a
fuga. Esta é a q u e melho r faz o pape l de
ridicularizar o noivo. Colocand o um a caveira vestida
de noiva na janela, disfarça-se d e u m bizarr o
pássaro , c o br in d o seu corpo de me l e plumas . Mais
u m a ve z a vinganç a tem cara de zombaria , de
153
carrega r u m ovo , ela s e fantasia d e um a
grand e ave . O q u e ela faz é subverte r as
coisas dentr o da própri a linguage m d o m onstr o
e , po r isso, ele n ã o pe rc e b e e a deix a
escapar .
Ao voltar da casa d o s pais dela, o Baix
o aind a cruza-s e n o ca m in h o co m a moç a
disfarçada d e ave . Sem desconfiar d e nada , el
e convers a co m ela, q u e lhe diz q u e sua
noiva está tod a arrumad a na janela e s p e r a n d o
po r ele, aludind o á risonha caveira deixad a em se u
lugar. Q u a n d o chego u ã casa, ele foi recebid o
pelo s irmão s da s jovens q u e incendiara m a
casa co m o d o n o dentro .

Nariz de Prata
ariz de Pinta, no conto folclórico
italiano, compilado por Ítalo Calvino, é o
Diabo. Ele aparece vestido de preto
com seu estranho nariz de prata, pedindo
a uma pobre lavadeira
que lhe confie uma de suas filhas para trabalhar
como criada em sua casa. Na verdade, como
bem cabe às aparições do demônio, ele foi
conjurado por uma das irmãs, ao exclamar que
preferia partir com o próprio diabo a passar
uma vida de tanta miséria. A história desenrola-
se de forma quase idêntica à de O Pássaro do
Bruxo: as jovens consecutivamente tornam-
se senhoras de imensa riqueza, possuem as
chaves de quartos com maravilhosos tesouros, mas
uma delas, a de um quarto proibido, não deve ser
usada. À medida que vão transgredindo, ele as mata
e volta para buscar mais uma das três irmãs,
alegando para a mãe delas que o trabalho é
muito e necessita de mais ajuda.
Nesse caso, o quarto dos horrores é um
inferno em miniatura, onde as moças padecem numa
fogueira. O objeto do teste também é diferente,
agora ele lhes coloca uma flor no cabelo
enquanto elas dormem. Quand o em contato
com o quarto-inferno, a flor murcha com o
calor e denuncia a transgressão. Como vemos, a
proibição é idêntica nas três histórias, o que muda
é a forma de suplício a que as curiosas
são submetidas, assim como o mecanismo pelo
qual se revela sua desobediência.
Lúcia, a irmã mais jovem, tirou a flor dos
cabelos e colocou-a num vaso, motivo pelo
qual não ficou chamuscada quando abriu a porta
do recinto proibido. Pensando que enfim havia
encontrado uma moça obediente, o Diabo cede
ao pedido dela de levar sacos de roupa para que a
mãe lavasse. Assim, ela faz com que ele transporte
ensacadas tanto as duas irmãs que ela tirou da
fogueira do inferno, quanto a si própria
Fadas no Divã — Psicanálise nas Histórias Infantis

de volta à casa da mãe. Usa o mesmo expediente de jovens são be m modernas , pois tud o indica
dizer que tem o dom mágico de tudo ver, para evitar que arrancaram o dote à força desses maridos, que
que o saco seja aberto e descoberta a trapaça. Cada mais se parecem com pais que as querem
vez que ele pousa o saco no chão, as irmãs ou aprisionar na inocência e na obediência infantil.
ela dizem, lá de dentro: "Estou vendo, estou vendo!" Elas terão que aprender a enganá-los para fugir
No final, com todas sãs e salvas de volta ao de casa, e eles se comportam como bobos, não
lar, basta colocar uma cruz na porta para garantir que lhes ocorre que elas possam ser espertas, que
ele não as importunará mais e usufruir dos tesouros tenham crescido tanto.
roubados por Lúcia da casa do Diabo. Todo amor qu e acaba implica algum
tipo de morte. Entre as moças e esses representantes
dos pais, que as querem reter na ingenuidade,
Um dote roubado não teria por que ser diferente. A moça em O
Pássaro do Bruxo deixa em seu lugar a patética
final é economicamente feliz, e as caveira vestida de noiva e foge. tendo-se apossado de
moças voltam provavelmente bem menos sua vida, levando consigo as riquezas que são as que
ingênuas. Porém, ainda estão solteiras. mais valem, aquelas que conseguiu conquistar
Aqui não há felicidade conjugai, a diferença sozinha. Mas vamos adiante detalhar mais este
entre a noiva percurso.
e o consorte revela-se insuperável. Contrariamente ao
caso de Bela, nessas histórias a monstruosidade
do noivo não tem cura, não há nada que o amor O quarto obscuro
possa fazer, só resta matá-lo ou fugir da relação
fracassada. Como no final da história elas estão mais esde a caixa de Pandora, a curiosidade femi•
espertas e com um bom dote, podemos talvez nina tem o péssimo hábito de abrir lugares
supor que não estejamos falando propriamente de de onde saem ou se revelam maldades. No
casamentos, mas sim de fantasias de libertação. mito grego, Zeus manda uma armadilha para
Provavelmente trata-se de desenvolvimentos os homens, uma arca que contém todos os males. 0
preparatórios para qu e uma jovem possa fazer uma endereço da oferenda é o de Epimeteu, mas
escolha amorosa e sair de casa levando aquelas é sua esposa. Pandora, quem abre a arca. Mesmo
riquezas a que tem direito. advertida do perigo , ela o ignora roída pela
Esses maridos ou noivos mais se parecem com o curiosidade. Libertados por ela, os males se espalham
ogro de João e o Pé de Feijão. Eles são poderosos e pelo mundo, e as conseqüência s só nã o são
assustadores, mas otários. Principalmente no caso do piores porque a esperança é a única que ficou
Bruxo e do Diabo, enganá-los é coisa que essas frágeis retida - Pandora fechou a arca quando se deu conta do
mulheres, assim como fez o pequeno João, fazem com que fizera. Daí vem o ditado: a esperança é a última
facilidade. A riqueza que lhes é roubada parece que resta.5 Esse é um tema recorrente em mitos
ser uma merecida punição para a maldade do e conto s de fadas: as mulheres em geral
adversário, assim como uma justa recompensa seriam mais curiosas, e há uma advertência de
pela bravura em combate das heroínas. que essa curiosidade lhes custa caro, quando não a
Dar um dote significa que o pai, um sua vida.
homem, confia aos cuidados de outro homem Para dar um exemplo bem distante do grego, os
uma mulher incapacitada para ganhar o próprio índios brasileiros tinham um mito em
pão. O dote funciona como uma compensação expansão na época da descoberta: é a história de
pelos gastos que ela causará dali em diante. No Jurupari, um herói civilizador que veio ensinar uma
tempo dos casamentos arranjados, ou de conveniência, série de coisas aos homens. Uma de suas
não se supunha que a mulher fosse somar algo à missões era conseguir uma mulher para o sol.
riqueza da família com empreendimentos e poder, Pois bem, quais os três atributos que essa mulher
isso teria de ser providen• ciado previamente pelo pai deveria ter? Saber guardar um segredo, ter paciência
dela. e não ser curiosa. O sol segue sem parceira
O trabalho feminino era interno à mecânica até hoje, pois Jurupari nunca encontrou tal
de manutenção do lar. Por mais que a mulher lidasse mulher. A questão é saber o que seria tão destrutivo,
de sol a sol como uma besta de carga, parindo, tão ameaçador, para os homens e para a civilização,
criando, alimentando e limpando, isso não era na curiosidade feminina?
visto como trabalho, nem como fonte de poder ou Na tradição judaico-cristã, a reputação da mulher
riqueza. Essas não é muito diferente. É Eva quem provoca a perda do
154
Di a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mário Cors o

paraíso terreno, ao convence r Adã o a cede r à tentaçã o A respost a d o p or q u ê dess a m á fama d e curiosas
de conhece r o sabo r da fruta proibida . Sua inveteradas é difícil, ma s talvez ess e quart o do s horrores
figura confunde-se co m a da serpente , poi s n ã o se sab e poss a no s fornece r pistas. As descriçõe s sã o
q u e m tem a maior culpa, a cobra po r representa r a variadas, ma s é um lugar particular, lá as
tentaçã o ou a mulher po r se deixar cativar po r es p os a s anteriores estã o morta s e vivas, num a espéci e
ela. São dua s faces da mesma moeda , dua s faces de suspensão , pois, e m b o r a esteja m esquartejada s ,
de Eva. Ela deseja ardentemente provar daquil o q u e par a salvá-las basta colar-lhes os me mbros . Em
lh e fora proibido : a árvore do conhecimento , de o n d e Nariz de Prata, o quarto é um a espéci e d e inferno,
prové m a capacidad e de distinguir o Bem do Mal. co m chama s e tudo , mas, q u a n d o a caçul a
O primeir o efeito dess e conhecimento foi se salva sua s irmãs mai s velhas, é só tirá-las do
percebere m nu s e se envergonha • rem, afinal, a
fogo e elas ficam c o m o antes , pronta s para voltar
inocência fora perdida . Depoi s disso ve m a sua
par a casa . É um a estranh a fogueira qu e não
expulsã o do Paraíso e as conseqüências , para
queima , ma s faz sofrer. Tant o em Barba Azai
eles e para su a d e sc en d ên ci a . Somo s herdeiro s
como em O Pássaro do Bruxo há muit o
do pecado de Adão e Eva, po r isso somo s
obrigado s a conhecer a s a gr ur a s d a vid a e sangue . Embora sejam morte s antigas, há um
te r c o m o d e s t i n o irremediável a morte. sangu e q u e nã o seca, o ch ã o cio quart o é um
lago de sangu e o n d e caem os o b j e t o s qu e
Como p o d e m o s ver, o s conto s d e fadas n ã o
ficarã o manchado s po r um a marca
tê m a mulher em melho r cont a q u e o rest o da
irreversível.
cultura, neles també m ela tem um a curiosidad e se m
Há um a história invertida, em q u e é um
possibili• dade de freio e c o m c o n s e q ü ê n c i a s
rapaz q u e profana a porta de um quart o proibido , qu e
funestas . Not e que mesmo as heroína s q u e se
salvam n ã o deixara m de abrir a porta, a pe n a s talvez no s ajude a c o m p r e e n d e r o q u e fascina essa s
so u be r a m en gana r o marido , o que nos leva a curiosas. Neste cont o do s irmãos Grimm, um rei
pensa r q u e é impossível driblar a curiosidade morr e e deixa s e u filho a o s c u i d a d o s d e s e u
feminina. h o m e m cie maio r confiança: João, o Fiel. A
Hoje a c r e d it a m o s q u e a s m u l h e r e s sã o r e c o m e n d a ç ã o cio pai é de qu e ele colocass e tod o o
mai s consistentes e c o m p r o m e t i d a s na s relaçõe s castelo à disposiçã o do jovem, dand o-lh e toda s a s
afetivas, que elas se e nt rega m ao sex o mai s movida s po r chaves , me n o s a d e u m quarto, q u e nã o
amor, que têm po r seu s h o m e n s laço s d e deveria ser abert o so b hipótes e alguma . Não é
a m i z a d e mai s constituídos ou , ainda , q u e d e p o i s precis o ir muit o long e para supo r q u e nad a interessou
d o sex o ficarão mais ligada s a o parceiro . tant o ao jove m q u an t o o tal quart o proibido .
Q u a n t o a o s h o m e n s , pensamos q u e p o d e r i a m Ele n ã o descanso u e n q u a n t o nã o fez J o ã o rompe r
s e e n t r e g a r à s r e l a ç õ e s sexuais se m a m o r e a promess a q u e fizera ao m o ri bu n d o , o bt e n d o
seria m mai s voláteis no s laços que venha m a assim a tal chave . O q u a r t o e m q u e s t ã o n ã o
constitui r a partir do s e x o . A frases acima sã o co nt in h a n e n h u m
o s e n s o c o m u m d o n o s s o t e m p o, " n ã o vamos horror, ma s o retrato de um a princesa bela,
agora analisa r a su a possíve l superficialiclade, o mas tã o bela q u e su a visão faria qualque r u m
i mp o rta n t e é r e s s a l t a r q u e es s a é um a enlouq uece r d e amor. Isso de fato acontec e co m
v i s ã o moderna. Na antigü idad e clássica e at é a o jovem príncipe, e será necessári o q u e J o ã o faça
auror a do s tempos m o d e r n o s , a idéia era b e m o impossível para trazer a beldad e para o reino ,
outra , senã o o oposto: a s mulhere s s e ante s q u e seu jovem sob era n o m o r r e s s e d e a m ore s
en tr eg ar i a m a o s e x o mai s facilmente, seria m . Podemo s també m lembra r a versã o de
mai s lúbricas . O s h o m e n s n ã o teriam muit o Perrault para Pele-de-Asuo - história ana • lisada
recato , ma s ele s seria m mai s c a pa z e s de fazer
no Capítul o VI dest e livro -, em q u e o príncip e
amizade s d ura d o ur a s e certament e manteria m mais a
ad o e c e d e amo r a p ó s ter espiad o a bela princesa
palavra e a fidelidade , n u m sentid o a m p l o . Não
pel o burac o d a fechadura . Escondid a e m seu quarto ,
vale a p e n a , n e m seria d o n o s s o alcanc e pensa r o
ela s e permitia enxerga r o s suntu os o s vestidos q u e
que estaria historicamen t e certo , ma s o s conto s d
e fadas sã o um a relíqui a fóssil d a s narrativa s trouxer a cie se u rein o e se despi a da sujeira e da s pele
h u m a n a s , e seus valores estã o firmado s mai s em crença s s animais q u e lh e ocultava m a beleza . Olha r pel
antiga s d o que m o d e r n a s . A s m u l h e r e s desse s a fechadur a é similar a abrir um a port a proibida , em
co nt o s sã o u m e x e m p l o d e p e s s o a s e m q u e m a m b o s os casos, vê-s e o q u e n ã o s e devia .
n ã o s e p o d e confiar, q u e n ã o o b e d e c e m ao s O q u e esses rapaze s enxergara m é algo
marido s e m e n t e m sempre q u e p o d e m . qu e os faria desejar ardentemen t e um a mulher. Já as
Pandora s d e todo s o s te m po s simplesment e foram
aquela s qu e n ã o aceitaram a interdição à sua
curiosidade, provavel• ment e dirigida ao sabe r sexual.
Entre todo s os mistérios
Fada s n o Di v a - P sic a n ál is e n a s Hi st ór i a s I nf a nt i s
denuncia o fog o da paixão a que se

qu e rodeiam as crianças, e as torna m detetives de seu s


adultos , o q u e mais instiga su a inteligência sã
o os mistérios referentes ao sexo . Afinal, a prática sexual
é a única qu e s e fecha atrás d e portas proibidas, s e escond
e entre as palavras, nã o se deixa ver. Por isso,
su p o m o s q u e , q u a n d o h á u m a q u e s t ã o d e
c o n h e c i m e n t o interditado, se trata do s mistérios do
sexo . Essas jovens mostraram a desobediência , a
infidelidade de q u e as mulhere s sempr e se
incumbiram. O q u e os príncipes fizeram c o m o um
deslize de criança - pedir muito algo qu e lhe foi
negado , espiar pelo burac o da fechadura -, as moças
executa m co m espírito de aventura.
A maior parte do s conto s de fadas retira sua trama
do desrespeit o a um a interdição, algué m faz alg o
q u e nã o devia ter feito, e o resto do t e m p o as
pe rs o na g e n s tenta m conserta r a situação . N o
ca s o d o pr ín ci p e curioso, ele conve nc e o tuto r a
desonra r su a palavra co m o pai dele . No cas o
de Pele-de-Asno, o heró i espia. Nossas heroínas ,
po r sua vez, precisara m d e muito mais coragem ,
pois, ao abrire m a porta, estava m lidand o co m um a
proibiçã o e n un ci a d a po r algué m muito assustador,
nã o tinha m dúvid a d e q u e sua vida estava em jogo
e, m es m o assim, quisera m sabe r o q u e havia lá
dentro .
A história d a h u m a n i d a d e construi u u m
long o currículo d e submissã o feminina. Durant e o s
século s em qu e amargo u a marginalidad e ao po d e r
e ás mais rudimentar e s formas d e liberdad e
social, a m u lh e r desenvolve u várias formas de
clandestinidade . Por isso, a fama de ardilosas,
fofoqueiras, bruxa s capa ze s de influenciar o sujeito
sem qu e ele se dê conta. As práticas sexuai s se m pr e
foram diferentes , e m q u a n t i d a d e e q u a l i d a d e , d
o q u e a hipocrisi a socia l admitia , a s relaçõe s
sempr e foram mais variadas e múltiplas do q u e
su a e x p r e s s ã o legal, m a s c o u b e à s m u l h e r e s
carregar a identidad e q u e se incumbi u dessa s verdade s
escondidas . O h o m e m traía, ma s era a mulhe r
q u e vivia sua vida c o m o prostituta o u c o m o
amante . O s h o m e n s p r o m o v e r a m n ã o p o u c a s
r e v o l u ç õ e s n a história d a hu manid ade , mas sã o elas
q ue , d e s d e Eva, levam a fama de desrespeita r até
o própri o Deus .
A resposta talvez esteja na diferença do conteúd o d
o quart o proibid o par a a m b o s o s sexos . O s
rapaze s passa m a padece r d e u m amo r q u e te m
d e lhe ser c o n ce di d o d e qualq ue r jeito, sofrem
d e u m desej o insatisfeito, e n q u a n t o a s moça s tê m
um a revelaçã o d e sofrimento, sã o confrontada s a o
fato d e u m sangu e q ue , um a vez derra mado ,
n ã o te m c o m o ser limpo , d e um a d an a ç ã o q u e a
s deix a chamus cadas . A marc a indelével sobr e a
chave , o ov o ou a flor é c o m o a fumaça, q u e
entregaram , u m sangu e q u e um a ve z derramad o
é irreversível. Esse sangue-transgressã o q u e deixa marcas é
um símbol o diret o e se m muito s rodeio s da perda d
a virgindade , outr o f e n ô m e n o irreversível.
Depois de ter usad o a chave da porta do
sexo, para uma mulher nã o há caminh o de volta. O detalhe é
qu e as jovens heroínas dessas três histórias abriram o
quarto proibido, ficaram sabend o do qu e as esperava,
m a s e s c a p a r a m a n t e s d o sacrifício , d o corte ,
d a queimadura . A esposa de Barba Azul é salva antes
que seu sangue se unisse ao das outras, assim com o as caçulas
das outras dua s histórias se livram do castigo e salvam as irmãs
mais velhas, qu e voltam para casa intactas. O quarto proibido é
uma revelação, uma ameaça, co m a qual as jovens têm
qu e aprende r a lidar antes da maturidade sexual. No
futuro sucumbirão ao império do desejo, mas nã o co m aquel e
h o m e m autoritário q u e a s que r ingênuas, co m esse m es m o
q u e as compr a co m um bem-estar doméstico, isso nã
o é um marido, é um pai, e um pai monstruoso, qu e
nã o deixa crescer.
A literatura, assim c o m o a memóri a da maior parte da s
famílias, está cheia de referências de histórias de
mul here s marcada s pela su a ousadi a sexual . Todos
c o n h e c e mo s mulhere s q u e tiveram q u e paga r com o
fardo de materniclades solitárias e socialment e conde•
nadas , co m banimentos , exílios, perda s d a condição
e c o n ô m i c a e o u t r o s castigos , pel a o u s a d i a de
se entrega r ao s prazere s da carn e fora de um a
situação aceitável. Para o h o m e m , o amo r ou um desejo
sexual impositiv o n ã o necessariamen t e o retira do
registro infantil, e m q u e seu s pedido s terã o d e ser
atendidos. Já as mulhere s p a g a m o preç o de su a
condiçã o de opressã o social, assim c o m o a iniciação
sexual lhes cobr a um ô n u s físico. Ela implica
r o m p i m e n t o do hímen , sangramento , possibilidad e de
engravidar. Nào há jeito de levar consig o muita s
ilusõe s infantis, a iniciação sexual é um golp e às veze s
efetivo, po r outras traumático , n a imaturidade .
P r o v a v e l m e n t e p o r isso, a s m u l h e r e s sempre
tenha m representa d o essa coragem , essa irreverência,
te nh a m sid o tã o controlada s socialmente , acusada s de tanta
infidelidade. A radicalidad e de sua experiência sexua l
n ã o lhe s d e u muita o p ç ã o . A força feminina, q u e
sem pr e se revelou no s reveze s familiares, nas mães coragem
da vida, n ã o é um a o p ç ã o , é um a sina.
As joven s curiosa s q u e abrira m o quart o proibido nà o
estava m profan and o a regra dad a po r u m marido, ma s
sim p o r um pai . É a casa patern a q u e se mostra tod
a generosa , d e s d e q u e ela n ã o s e c h a m u s q u e cora u
m desej o q u e a levará em b ora , n à o derram e a s gotas de
sa n g u e q u e a ligarão a outr o h o m e m . Um a filha
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Co r s o
m e ca ni s m o q u e move o corp o do filho, essa
image m simplesmen t e não se mont a ou , q u a n d o se
constitui, o faz cheia de
terá todo o bem-esta r do m u n d o , desd e q u e abra mã o
do sexo. É c o m o um cint o de castidad e po st o
pel o pai, cuja chave nã o dev e ser usada ; um corp o
feminino, cujo ovo nã o dev e ser fecundado .
Ao final da história, a jovem tem um dot e
finan• ceiro com o qual p o d e partir. Mas nã o lhe foi
entregue , como eram nos casamento s arranjados qu e
favorecem o pai e privilegiam a passividade feminina.
Só co m a morte do carcereiro, q u e as aprisionava
na inocência infantil, essas jovens, q u e nã o tinha m
autorização para tornarem-se mulheres , conquistara
m se u d o te . q u e simboliza aquilo q u e é
necessário levar consig o para partir. Esse dot e n ã
o é um atestad o de impotênci a feminina, é com
o a heranç a q u e J o ã o arrebato u do ogro -
Capítulo VIII dest e livro. Parte daquil o q u e
levamos conosco , ao partir da casa paterna ,
no s é ofertada, poré m o q u e diz respeit o à
separação , à libertação de um filho terá de ser
arrancad o à força, por mais permissiva q u e a família
seja. A razão é muito simples, partir de casa é uma
separaçã o amorosa , que , como nos ensina a história do s
Grimm, deixa um cadáver na janela e implica algum tipo
de mort e para os pais.

Separações e esquartejamentos
esquartejamen t o d o s corpo s n ã o no s
sur• p r e e n d e . A i m a g e m q u e t e m o s
d e n ó s mesmos , d e n o m i n a d a image m
corporal , é construída, n ã o nasce mo s co
m ela. \ a sua
ausência, surge seu contrapont o , o corp o
esfacelado, despedaçado . Nã o n o s bast a te r
corpo , cabeç a e membros, e eles sere m
fisiologicamente funcionais, é preciso q u e exist a
u m a r e p r e s e n t a ç ã o m en ta l d o conjunto para q u
e saibamo s usá-los. A u ni da d e de uma imagem
corpora l é tecida à força de amor, po r isso
quand o este falta, resta um a sensaçã o de corp o
despedaçado . T e n t a r e m o s a q u i e x pli c a r c o m o
s e conectam os tema s da image m corpora l e do
amor.
N o c a m in h o qu e te m d e se r
ne c es sa ria m e n t e trilhado para a construçã o dess a
image m corporal , há vários percalços possíveis. Entre
eles, sã o significativas tanto a s patologia s
decorrente s d e falta d e u m investimento
amor os o n a orige m d e alguém , po r um a falta de
conexã o entr e o b e b ê e a mãe , q u an t o o efeito
devastador decorrent e d a u m a b a n d o n o posterior.
N o primeiro c a s o , q u a n d o falta u m amo r
m a t e r n o consistente, a q u e l e q u e seria capa z d e
costura r a s partes, colar a superfície e anima r o
o crescimento deixará um

deficiência s o u d ef or m a ç õe s . J á n o s e g u n d 157
o caso , q u a n d o h á um a pe r d a amoros a
importante , po r morte , a b a n d o n o o u traição,
so br e v é m a depressã o , assim c o m o a s
fantasias o u o s atos suicidas.
Uma criança só fica na vertical, só se
equilibra sobr e doi s pé s tã o p e q u e n o s , graças
a algué m q u e a olh a no s olho s e lhe transmit e
segurança . Um b e b ê só terá forças para sustenta r
o p e s o de sua cabeça , par a ficar sentad o se m
despencar , para caminha r se m s e segura r no s
móveis, se lhe for possível ficar literalmente
d e p e n d u r a d o n o olha r d a mãe , d o s pais o u
substitutos. Nossos músculo s s e desenvolv e m
naturalmente , ma s se nega m a funcionar se n ã
o tiver ningué m olhand o , cuida ndo ,
tes te m u n h an d o . 8
Isso é a particularidad e h u m a n a q u e no s
faz tão ricos e complicad o s ao m es m o t e m p o . Um
animalzinh o sairá a n d a n d o assi m q u e sair d e
d e n t r o d o ventr e materno , u m h u m a n o poder á
ser u m inválido, m e s m o q u e se u corp o n ã o
tenh a ne n hu m a limitação física, s i m p l e s m e n t e
porqu e nã o r e ce b e u o u perde u u m
investiment o am oroso .
Perde r o lugar no amo r dos pais,
ab a nd o n a r o castelo o n d e crescemos , significa
juntar o s próprio s pedaç os , colar o própri o corp o
e sair an d a nd o . Implica a p o s s a r m o s - n o s d a q u i l o
q u e r e c e b e m o s , q u e n o s permiti u transformar
u m olhar am oros o e m image m corporal . Para
q u e p o s s a m o s fazer isso, te m o s d e conh ece r
o ca minho . Crescer é ir apropriando-se , cad a vez
mais, daquil o q u e o am o r do s pais no s
ofertou. T e m o s q u e t o m a r t o d o s e s s e s
o l h a r e s q u e n o s constituíram e dissociá-los
da s figuras reais dos pais, torná-los part e d e
noss o acerv o pessoal, passível d e ser levad o
para outra s histórias d e amor, c o m o u m dote
. É po r isso q u e c o m p r e e n d e m o s tão be m porq u e
pe rs o na g e n s de conto s cie fadas fogem
r o u b a n d o as fortunas de ogros , trolls e bruxa s
se m n e n h u m dilema moral, age m c o m o se levasse
m o q u e é se u de direito. Q u a n d o u m filho
cresce, ele precisa separar-s e
dess e amo r q u e lhe foi tã o vital, constitutivo.
Para os pais, é um a perda , afinal fluía entr e eles
e o filho um a corrent e amoros a q u e clava sentid
o á vida de todos , ma s est e último foge
levand o consig o sua pesso a que , po r muit o
te m p o , pertenci a a eles.
O filho nã o ficará totalment e
in de p e nd e nt e de laços am oroso s par a se sentir
integrado , complet o e funcional, ma s q u a n d o
crescid o fará sua s escolhas . Se u desej o
apontar á que m ser á o eleit o par a
com partilha r carênci a s e insegurança s , po r
est e s e a p a i x o n a r á . J u n t o d a s u a famíli a
de origem , a precursor a da s nova s escolha s
amorosa s é sem pr e um a s e p a r a ç ã o , p o r i s s o ,
Fadas n o Div ã - P si ca n á lis e n a s Hi st ór i a s Infa nt i s

inevitável rastro o n d e a s fantasias s ã o d e Infelizes para sempre


m o rt e e d es p ed a ça m e nt o .
Essa é a razão pela qual os adolescente s ada mai s romântic o q u e um amo r que,
ama m obsessivamente neste m o m en t o de transição. sob q u a i s q u e r circunstâncias , e m
Graças a t o d o s esse s vínculo s apaixonados , qualquer condição , triunfasse sobr e os
c o n s e g u e m s e apropriar de um corp o qu e antes percalços da
pertencia a outro s amores . Ser tã o desejad o pel o relação . Os laços q u e rege m o
parceir o amoros o da paixã o adolescent e assegur a casamento hoje sã o ba se a d o s ness e ideal. Mas ele é
a integridad e corporal , com o o olhar matern o fazia relativamente m o d er n o , pois, no s casamento s
quand o o beb ê dava seu s primeiros passos. tradicionais, era melhor s e o a m o r existisse , m a
Costumamo s observar o qua nt o um a pessoa apaixonada s nã o er a um a condição necessária, foi o
mo vi ment o romântic o q u e no s legou tal exigência .
parec e feliz, trabalha de b o m humor, suporta tud o com o
se nad a fosse suficientemente difícil ou ruim para O s c o n t o s d e f a d a s fala m m u i t o d e
derrubá-la. Ela está fortemente sustentada pela ilusão amor, e s p e c i a l m e n t e e n t r e o s p a r e s q u e s e
amorosa, q u e lhe emprest a um a image m corporal u nir ã o para se m p r e . Brun o Bettelheim pensav a -
e, no s parece, co m tod a razã o - q u e a
de incomparável densidade . Enquant o imaginar qu e esse
recorrent e afirmação felizes para sempre. 9 suscitava
amor é perfeito, assim se sentirá.
a idéia de q u e n ã o haveria mai s angústi a de
Mas ne m sempr e o a m o r faz o serviço de
se pa ra ç ã o , seja de qua l laço for. Depoi s do
cola r os membro s espalhados . Barba Azul, Nariz de
difícil trabalh o de a ba n d o na r a casa paterna, é b o m
Prata e o Bruxo quiseram desposar. mas só fizeram pensa r qu e nã o seri a necessári o passar
despedaçar . Isentos d e quaisque r encantos , seque r n ov a m e nt e pela s dore s d e outra partida.
foram capaze s de oferecer a corte gentil de Fera e
Mas justament e estamo s aqu i constatand o
de outro s noivo s animais. Foram incapaze s d e
que n e m só de finais felizes e casame nt o s bem-
remonta r u m corp o c o m amor. ficando apena s
sucedidos vive m os conto s de fada. Na
representan d o a image m d o sex o sem amor, d o coletâne a d o s irmãos Grimm, há um a história
rom pim ent o co m a casa patern a c o m o u m muit o interessant e sobr e um fracasso amoroso ,
esfacelamento . Por mais q u e tenha m raptad o o u t o m a n d o um ca m i n h o diferente do q u e tratamo s
aprisionado , n ã o pudera m ficar co m as moças . na s três histórias anteriores , trata-se de As Três
Fica associada a eles a imagem de um a versã o Folhas da Cobra.10
maligna e possessiva d e u m tipo d e pai tã o recorrent e Vamos ao conto : um a bela princesa , filha de
e m conto s de fadas, aquel e qu e expuls a ou mand a um b o m rei, disse q u e só se casaria se encontrass e
matar a filha q u e n ã o o ama, tant o quant o o u c o m o el e alguém q u e conc ordass e e m aco mpa nhá -l a a o
exige . Esses m a r i d o s fracassado s oferecem , túm ul o caso ela viesse a falecer ante s do marido .
sobr e os p a i s possessivos, pel o meno s um a N e n h u m a mulher poderi a substituí-la, só ela deveria,
vantagem : daq uele s foi possível arrancar um dot e para sempre , será amad a do h o m e m q u e a
condizen t e para fazer depoi s u m b o m casamento . É escolhesse . Ou seja, o futuro marid o deveri a ser
b e m mai s viáve l mata r o u engana r u m marid o enterrad o vivo, junt o co m ela.
ma u d o q u e u m pa i insuportáve l ou violento. F para Um príncip e apaixonad o aceitou o pedido ,
essa representaçã o q u e tais marido s monstruoso s s e e o casament o ocorreu. Nos primeiros anos, tud o
presta m tã o bem . transcorreu b e m e eles foram felizes. Mas quis o
Esses corpo s d e sp e da ç ad o s sã o um a bo a image m destin o que o noiv o viesse a honra r sua
d o q u e resta d e nó s q u a n d o um a apost a palavra, ela morre u antes dele . Tod o o reino sabia
a m or o s a fracassa. Essa condiçã o de estar vivo, ma s da s condiçõe s daquel a união, e o m a ri d o tev e
ficar c o m o m o r t o , d e e s f a c e l a m e n t o d a pr ó p r i a e n t ã o d e se r s e p u l t a d o c o m ela. Resignado,
i m a g e m , é totalment e compatível co m o sentiment o de desce u junto na cripta para espera r a morte. Enqu ant o a
si, restante para aquel e q u e p er d e u u m gr an d e esperav a junt o ao caixã o da falecida,
amor . Ser aban • d o n a d o o u pr et er i d o e m t e rmo um a cobr a entro u na cripta, e el e a corto u
s a m o r o s o s é u m a vivência d e aniquila ment o em três pedaç os . Passad o algu m t e m p o , chego u
pessoa l única , talvez s ó comparáve l a trauma s outr a cobra e, v e n d o a sorte de sua parceira,
oriundo s d e situações-limite q u e envolve m violência. partiu e retornou c o m três folhas . Na p o ss e
Nesse m o m e n t o a vida revela tod a a di mensã o d e su a dessa s folhas, colo u os pe d aç o s da cobr a e a
fragilidade. O s conto s tê m razão , a falta d e amo r ressuscitou . Apó s a partida dos ofídios, o príncipe ,
no s deix a e m cacos . Por sort e essa s moça s q u e a t u d o assistiu, se d e u conta d e q u e era m
mostra m q u e é possível colar o s pe d aç o s . folhas mágica s e tento u usá-la s para restituir a
vida à princesa .
158
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o
Corso

Para sua sorte, de u certo , e ele s voltara m à Corte Infelizmente, o tem a dess e cont o é b e m atual
para a alegria d e t o d o s , ma s alg o havi a e por isso vale um a análise . Freu d n o s lembr a
m u d a d o : inconformada co m o fato de q u e el e d e qu e o mecanism o do c i ú m e " (e o q u e temo s aqui
n ã o havia se resignado a morre r po r ela, agor a é um ciúme futuro, daquel a q u e a substituirá
já n ã o o amav a como antes. Assim q u e tev e q u a n d o ela morrer) funciona da mes m a maneira .
oportu nidad e , matou-o , auxiliada po r u m Um grand e ciumento é mo vid o m e n o s pel o m e d o
amant e qu e ar r a n j a r a . N u m a reviravolta, o d a perd a d e seu objeto d e amo r e mais po r projeçã
criad o do príncipe , a q u e m este havia confiado a o de seu própri o desejo. Trata- se do desej o
guard a da s folhas mágicas, utilizou-as par a ressuscitar inconscient e - ás veze s consciente - de ter
se u amo , qu e acordad o denuncio u a relaçõe s fora d o laç o a m o r o s o q u e está
princesa. O rei, pai da princes a má, q u a n d o vivendo. Aliás essa história com prov a muit o be m
ficou sabendo de tudo , c o n d e n o u a própri a filha a tese, pois foi e x a t a m e n t e a princes a c i u m en t
á morte . Como podemo s ver, o mal foi reparado , ma s a qu e traiu se u marid o e nã o o contrário .
ningué m aqui ficou feliz par a sem pre . Mas nã o precisa tratar-se necessaria me nt e d e um
Mais do qu e um e x e m p l o para mostrar o quant a v o nta d e d e trair, o ciúm e p o d e ser a pe n a s
o o mundo dos conto s de fadas é rico em tramas distintas, um reflexo de vacilações relativas a um a relação .
essa história vale c o m o um a parábol a sobr e a exigência Às vezes , para produzi r conflitos num a relação ,
de amor absoluto . É um tip o de amo r q u e nã o suport a a basta a simple s dúvid a sobr e a possibilidade de se
possibilidade de vir a ser trocad o ou a b a n d o n a d estar melho r co m outra pessoa. O ciument o acusa o outr
o no futuro. Ne ss e s casos , a mort e é o de ter olho s para um terceiro que , na verdade , ele
pr ef erí v e l ã separação. As histórias anteriores , m e s m o inclui na trama.
dest e e d o s doi s capítulos precedentes , tratavam da s Existem muito s mitos e m q u e a cobr a era acusad a
dificuldades e da s vacilações d e toda s a s parte s par d e ter r o u b a d o a imortalidad e q u e o s deuse s
a q u e u m a m o r s e efetive. A princes a d es s a teriam resenhado aos homens - o fato de a
história , a s b r u x a s q u e encantavam príncipes , no cobr a trocar c/e pel e seria o sign o de sua
cas o do s noivo s animais , a mãe bruxa de Rapunzel , regeneraçã o perma nente . Talvez aqui , co m a
toda s acabara m po r descobri r que quem teima em funçã o de trazer o instrument o para vence r a
n ã o aceitar separaçõe s naturais tudo perde. morte , ela seja um ec o dessa s antigas crenças .
Saindo u m p o u c o do s contos , até hoje Especuland o um p o u c o mais, talvez a cobr a se
encon • tramos que m necessite se apoia r em prest e para, nest e caso , representa r a força do sexo , qu
amore s fora de qualquer dúvida. Aliás, as juras de e t a m b é m morr e e se recupera , e é um a
amo r etern o fazem parte de qualque r cen a de seduç ão . poderos a força, aliada de q u e m que r preserva r a
Muitos adolescen • tes tatuam os n o m e s um do vida.
outr o no corpo , com o símbolo d e alg o q u e , d e
preferência , n e m a mort e separará.
Não é d e s e admira r q u e ess a história Notas
te n h a terminado tão mal, poi s semelhant e exigência
amoros a não se apóia na força de um amor, ma s 1. PERRAULT, Charles . Contos de Perrault.. Belo
justament e na sua fraqueza. É po r n ã o ter muita Horizonte: Editora Itatiaia. 1989.
capacida d e de amar, por duvidar de seu própri o amo r 2. CALVINO, Ítalo. Fábulas Italianas. São
q u e algué m faz Lima combinação semelhante . Em Paulo : Companhia das Letras, 1992.
muito s conto s de fadas, uma rainha morr e e 3. GRIMM, Jaco b & Wilhelm. Todos los Cuentos de
deixa atrás de si um s o be ra n o triste, incapaz de los Hermanos Grímm.. Madrid: Coedição Editorial
governar . Já esta princes a prefer e não apostar na Rudolf Steiner, Mandala Ediciones & Editorial
sorte, e se o príncip e n ã o chora r po r ela Antroposófica,
eternamente? Se el e a esquecer ? Po r isso qui s 2000.
a certeza de qu e ele morreria de amo r po r ela. Mas essa 4. O Velho do Saco é um personagem encontrad o
é a questão correta: d e o n d e v e m tanta dúvid a sobr em vários folclores. F. um vilão especializado em
e o amor? Provavelmente da sua própri a capaci dad e raptar crianças ou jovens desobedientes, mas nã
de amar que ela duvida . o neces• s a r i a m e n t e , q u e n u n c a m ai s s ã
Sob o efeito do s ideais românticos , q u e m o a v i s t a d o s . Geralmente fica livre à nossa
aind a não sabe ou n ã o p o d e ama r acab a fazend imaginação definir qual o fim terrível qu e aguarda
o laços e pedidos desesperad o s c o m o o dess a os raptados.
infeliz princesa . 5. Em outras versões, a própria Pandora é a caixa do s
males, ela é a primeira mulher da
humanidade , e Zeus a enviou ao m u n d o com o
presente aos homen s em vingança ao roub o do
fogo por Prometeu. Cada
Fada s n o Di v ã s - Ps ic a n áli s e n a s H is tó ri a s Infanti s

um do s deuse s contribuiu para fazer a precipita-se da insuficiência para a antecipação -


mulher, Hefesto a criou à semelhança das deusas e qu e fabrica para o sujeito, apanhad o no engod o
imortais; dos outros ela recebeu a graça, a beleza, a da identificação espacial, as fantasias qu e se
persuasão, a capacid ad e d e fazer trabalho s sucedera desd e uma imagem despedaçad a do corp o
manuais , ma s Hermes lhe legou a mentira e a até uma forma d e su a tot ali d a d e qu e
falsidade. Epimeteo fora advertido por seu irmão chamaremo s d e ortopédica - e para a
Prometeu a não receber presente dos deuses, mas armadura enfim assumida de uma identidade
este se deixou seduzir pela beleza de Pandora alienante, qu e mareará com sua estrutura rígida
e a tomou por esposa. todo o seu desenvolvimento mental." LACAN,
6. "O lugar comum da psicologia contemporânea - Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
de qu e o home m deseja o sex o e a mulhe 1998, p. 98 e 100. Voltaremos a esse assunto no
r deseja relacionamentos - é a exata inversão das Capítulo XIV, falando da personage m Mônica.
noçõe s do pré-iluminismo que , desde a 9. "Saiba qu e você nunca está abandonado. Esse então é
Antigüidade, ligava a amizade aos homens e a o consolo implícito no final habitual do conto de fadas:
sensualidade ãs mulheres." LAQUER, Thomas . A E viveram felizes para sempre". In
Invenção do Sexo. Rio de Janeiro-. Relume BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos Contos de
Dumarã, 2001, p. 15. Fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001, p. 179.
7. GRIMM, Jaco b & Wilhem. Contos de Grimm . 10. GRIMM. Jaco b & Wilhelm. Todos los Cuentos de
Belo los Hermanos Grimm. Madrid: Coedição Editorial
Horizonte: Villa Rica, 1994. Rudolf Steiner, Mandala Ediciones & Editorial
8. Nas palavras difíceis, mas precisas, de Jacque s Lacan Antroposófica.
a esse respeito lemos: "a forma total do corpo pela 2000.
qual o sujeito antecipa numa miragem a maturação 11. Ver FREUD, Sigmund. Obras Completas, vol. XVIII,
de sua potência só lhe é dada com o Gestalt, isto é, Alguns Mecanismos Neur ótic o s no
numa exterioridacle em que decerto essa Ciúme, na Paranóia e no Homossexualismo.
forma é mais constituinte que constituída (...)" Rio de Janeiro: Imago, 1987.
ou ainda "o estádio do espelho é um drama cujo
impulso interno
160
Capítulo XII
CONSIDERAÇÕES SOBRE O LIVRO:
A PSICANÁLISE DOS CONTOS DE FADAS

r u n o B ett el h ei m n a s c e u e As reflexões q u e se segue m visam a um


m Viena, em 1903, ma s a Segund debate , n ã o co m o pensa ment o de Bettelheim com
a Guerra Mundial levou-o, o um todo, mas co m o livro em si, q u e já é um
junto c o m tanto s outro s clássico, especial• ment e pel o seu ineditismo. Um
judeus , a emigrar para os de seus méritos é a linguage m acessível, qu e
Estados Unidos, o n d e viveu até torno u compreensíveis para o grand e públic o as teses
sua morte , ao s de Bettelheim. Embora visasse basicament e a explicar
8 6 anos . Intelectua l a importância psicológica do s conto s de fadas, de
curioso , i n i ci a l m e n t e s e fato, ele produziu um texto sobr e d e s e n v o l v i m e n t o
dedico u a o estud o d a infantil d e s d e u m p o n t o d e vista psicanalítico,
estética, encontran • n o qua l o s conto s funcionara m c o m o geradore s
do-se mais tard e co m a psicanálise , q u e se d e determinado s assuntos .
tor n o u profissão e bas e de se u pens a mento . Seus Ess a o b r a s u r g i u numa época sedent
interesse s abrangiam e desborda va m o c a m p o a d e infor maç õe s s o b r e c o m o acerta r n a
clínico, escreve u textos s o b r e v á r i o s a s s u n t o s e d u c a ç ã o d a s crianças e, quant o a isso, tem um mérito
e, p r i n c i p a l m e n t e , preciosas reflexões psicanalíticas e um problema . O mérit o é a influênci a da s
sobr e a subjetividade humana em situaçõe s extremas . palavra s do a u t o r na consagraçã o do s conto s d e
Suas elaboraçõe s se alicerçaram tant o n a fadas c o m o recomendávei s par a as crianças .
experiênci a pessoa l e m c a m p o de concentração, Certamente , el e contribui u par a a difusão e a
q ua n t o em sua clínica c o m crianças gravemente utilização dess e tipo de narrativa em escolas infantis, nas
perturbadas . famílias e no s meio s de comunicação . Era
A aposentadori a lh e proporciono u a ( e ainda é ) u m temp o e m qu e s e tinha muito med
o p o r • tunidade par a se debruça r sobr e a língua o d e errar co m as crianças, de traumatizá-las. Por
alem ã e a literatura, dua s velhas conhecidas . A primeira isso, fazia muita diferença oferecer-lhes algo q u e
propicio u uma important e revisão crítica da traduçã o um psicanalista d e tam anh a projeçã o havia
inglesa da obra d e Freud ; a segund a s e a p o n t a d o , d e forma tã o convincente , co m o
traduzi u n o livro A Psicanálise dos Contos de adequado.
Fadas,' qu e c o m e nta re m o s aqui, dedicad o á O problem a te m a mesm a origem do
análise psicanalítica do s conto s de fadas, mérito: a rígida normatizaçã o s o b r e quai s seria
principalment e os da tradiçã o européia . m a s histórias
Fada s n o D i v ã — P s i c a n á l i s e n a s Hi st ó ri a s I nf a nt i s
Quando ess e livro saiu

aconselháveis para as crianças. Esse index informal q u e


Bettelhei m fez corr e o risco de produzi r um
efeito paralisante nas famílias, já encharcada s de
recomenda • çõe s feitas po r outros livros de
orientação . Por m e d o d e e r r r , o s pais s e desautorizam,
privando-se d o contato enriquecedo r co m seus pequenos
. Por certo, esse nã o foi o intuito do autor, ma s
acabo u fazend o cor o ao espírito d e um a époc a e
m q u e te m o s pais e m baixa conta e deixam, então,
o difícil assunt o de com preen de r as crianças na mã o de
técnicos e especialistas.2
Apesar de o livro de Bettelheim, em alguns pontos,
engessar os pais, especialmente numa excessiva valorização
do conto de fada tradicional - po r considerá-lo a
única forma de literatura recomendáve l às crianças
—, el e é muito mais efetivo na recomendaçã o do
seu us o pela s crianças do qu e em paralisar seu s
pais. O sald o é positivo para todos: pais, crianças e
especialment e para o s conto s d e fadas.

A idealização dos contos de fadas


s crianças adora m novidades . Nã o é
muit o difícil d e chega r à ess a
c o n c l u s ã o , bast a convive r co m elas. Tã o
log o u m b ri n q u e d o
surja n o mercado , vã o q u er e r conhecê-lo ,
o m es m o vale par a p ersonag en s , u m nov o
filme, u m nov o game. É cert o qu e corre r atrás da
s novi dade s é um a característica d o noss o t e m p o
e nã o s e restringe à infância, ma s as crianças sã o
aind a mais suscetíveis à ess a d e m a n d a . S e
crescere m n u m a m bi e n t e esti• mulante , serã o
curiosas, poi s su a vida te m necessida d e de fantasia
para apoia r sua s brincadeira s e seu p e n • sament o
mutante . Se possível, buscarã o a fantasia em toda s
as sua s formas-, brinqued os , filmes, games, livros, teatro ,
brincadeir a s c o m o s amigos , pr o g r a m a s d e
televisão, narraçã o d e histórias, etc. Nã o h á u m
mei o privilegiado de c o n s u m o de ficção, e hoje
existe um a multiplicidade d e modalidad e s pela s quai s
elas p o d e m acessar a s histórias q u e lhes interessam .
Os analistas de crianças já sabe m disso há
muito temp o e estã o se mpr e atento s às
novidades , já q u e interessam a seu s pacientes. Um
profissional desse s qu e n ã o esteja minimament e
informad o quant o á s últimas p e r s o n a g e n s oferecida
s pel a mídi a terá u m a cert a dificuldad e par a
entende r a r e s p e it o d o q u e se u p e qu e n o
paciente está falando e quais pedaço s de ficção ele pod e
estar u sa n d o para tecer a sua subjetividade.
A digressã o acim a é import ant e par a
situar o m o m e n t o e m q u e Brun o Bettelheim
escreve u A Psica• nálise dos Contos de Fadas.
atrás da outra. Cabe entã o perguntar: as crianças
dessa époc a nã o falavam dessa s versõe s da s histórias
de fadas co m o psicanalista Bettelheim? O u ainda ,
n o s EUA, e m 1977, j á existia m p e l o m e n o s n ã o m e n c i o n a v a m a s outras personage n s q u e
duas geraçõe s de crianças q u e crescera m d i s p o n d o de invadiam seu cotidiano? E provável q u e sim.
uma infinidade d e histórias (cad a um a c o m u m Mickey foi o nom e de p e r s o n a g e m mais
universo própri o de p er s on a ge n s e cenários ) colocada lembr ad o po r crianças durant e décadas ,
s à sua disposiçã o pela indústria cultural. Em mea do s do desbancado somente , no s ano s 1990, po r Super
século XX, a oferta de ficção par a a infância ga n h o u um Mario, um herói provenient e do s videogames.
fôlego im pressio nant e , e os me i o s de difusã o
Por qu e então , n u m m o m e nt o tão rico e m
també m se ampliaram . C o m o marc o d o cinema ,
novas ofertas de histórias infantis, um psicanalista se
certament e pode• m o s falar n o d e s e n h o a ni m a d o e m
debruçaria sobr e um a relíquia fóssil da s narrativas orais
longa-metragem Branca de Neve e os Sete Anões (1937), tradicionais q u e ficou, no noss o tempo , legada à infância?
q u e lançou as base s d o impéri o Disney. A s revistas A resposta instantânea é simples, essas histórias sã o
e m quadrinhos, q u e nascera m dirigidas a um públic o encantadoras, segue m fazendo-no s pensa r e exerce
juvenil e adulto, g a n h a r a m versõe s infantis e se m um pode r de subjetivaçâo, ou seja, contribue
e x p a n d i r a m . A TV destino u faixas d e horário s m para q u e que m as escute elabore problema s e
especiai s par a a s crianças e o estúdi o Hann a & cresça. Além disso, enquanto certas histórias nasce m
Barbera vivia seu s grande s dias. Bnin o Bettelheim n à o e morrem , os conto s de fadas parece m desafiar o
dialoga co m esse fenômeno tempo . Logo, vale mais a pen a se dedica r a o
cultural. Nada o obriga a fazê-lo, um autor é livre para perm ane nt e q u e a o efêmero.3
escolhe r a fatia da realidade q u e lhe interessa A resposta é coneta , mas algo fica faltando e, só ao
enfocar. Acontec e q u e ess e fenô men o cultural já se términ o da leitura de A Psicanálise dos Contos de
alastrava sobr e o assunt o q u e ele se pr o p ô s a Fadas, torna-se possível formular um a segund a hipótese:
estudar. Então, e n q ua n t o se centrava em Perrault e no s o autor idealizava e superestimava os conto s de fadas,
irmãos Grimm, j á pipoca va m versõe s e m d e s e n h o acreditava q u e eles era m o únic o produt o cultural
a n i m a d o desses conto s no cinema e na IV ou ainda ad e qu a d o para a infância. Nesse livro, sua prioridade era
versõe s alegóricas, e s t r e l a d a s p o r p e r s o n a g e n s d e relançar e valorizar
a l g u m a s série s j á consagradas . Xo cinema , Disney
reinava e produzia um a adaptaçã o cie obra s clássicas

162
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mário Cors o

algo que tinha co m o um grand e legad o cultural,


capaz de exercer uma eficácia benigna inestimável
sobr e o desenvolvimento infantil. É ainda, é
precisei levar em conta a crença do autor de q u e os
conto s de fadas, tal como narrados pelos compiladores
folclóricos do s séculos XVII a XIX, constituem um
produt o acabad o e perfeito. Assim, se a obra-prim a
já existia, compreendemo s a ausência de
referências às adaptaçõe s desses mesmo s contos
para as novas mídias. \ à o há no livro diálogos ou
hipóteses sobr e possíveis sucedâneo s desses conto s no
século XX, tampouc o aparece m reflexões sobre quais
personagens eram importantes para as crianças na
sua época e qual uso elas poderiam estar fazendo
com o que lhes era oferecido.
A Psicanálise dos Contos de Fadas situa-se fora
do tempo de dua s maneiras, sugerind o qu e o
cont o de fada exerce sua missão em qualque r époc a e
do mesm o modo, bem com o desconsiderand o o qu
e as crianças de seu temp o consumia m com o ficção,
nisso incluindo os próprios contos de fadas adaptado s a
novas mídias. Temos então uma reaçã o romântica
e nostálgica em contraposição à cultura de massas
norte-americana, qu e vinha ganhand o corp o no
temp o em qu e Bettelheim viveu e teorizou. No
livro, nã o há uma crítica direta a esse cardápio
cultural norte-americano, ela se revela no silêncio total
em relação ao qu e ocorria nessa época .
Considerando qu e o autor revela qu e sua
valorização dos contos folclóricos é provenie n t e
da reaçã o da s próprias crianças, no s surpreend e qu e
elas. na comuni • cação com ele, nã o incluíssem
outras tramas ficcionais. contemporâneas a o moment o
histórico qu e comparti• lhavam. Trata-se, então , de um
livro sobr e os conto s de fadas tradicionais folclóricos e
sobr e desenvolviment o infantil, em qu e uma coisa
ilustra a outra (o qu e nã o nos parece mal).

0 bom e o mau uso do conto


idealização da forma é aco m panha d a de uma
id ea liz a ç ã o da s fontes . Para
B ett el h ei m . conto s d e fadas sã o som ent e
o s d a tradiçã o folclórica, qu a nt o mais
antigos , tant o mais
ve r da de ir o s e melhore s par a a s
crianças . Mesmo autore s consagrado s c om o Anderse n e
Perrault sào criticados, poi s teriam distorcid o ou
se afastado dos "sentidos corretos" . Os irmão s
Grim m sà o mais considerados, mas també m sã o
criticados por, em certos momentos, n ã o sere m fiéis às
"verdadeiras mensagen s " dos conto s de fadas. Para o
autor, n e n h u m a m u d an ç a é bem-vinda , n e n h u m a
vírgul a d e v e se r alterada .
163

Aparentemente , s é cu l o s d e s a be d or i a
a c u m u l a d o s nesse s conto s teriam de ca nt a d o
num a forma justa e acabada .
Todo s o s autore s posteriore s ao s irmãos
Grimm e algun s d e seu s con te m p o râ n eo s , q u e
ousara m criar ficção infantil, sà o considerad o s
inadequados . Não há n e n h u m a s ó história ,
fora dessa s c o m p i l a ç õ e s folclóricas, q u e
Hettelheim cite e consider e qu e possa ser
subministrad a se m pr o bl e m a s para as
crianças. T o d a s a s r e f e r ê n c ia s a outra s
historia s s ã o par a demonstra r sua s falhas em
da r ao s pe q ue n o s o qu e seria um a plen a
possibilidad e de simbohzacào . Por outr o lado .
Bettelheim acredita q u e o s conto s d e (atlas feriam a
magia de fornecer realment e o qu e a criança
precisaria e seria para essa linguagem simbólica
qu e ela estaria preparada . Essa visão conte m
uma dupla hipótes e cruzada : as crianças
apreenderia m perfeita• ment e a lógica do s conto
s de fadas, porqu e eles sào estruturado s c o m o
men sagen s para elas. Em funçà o disso, as
histórias de fadas qu e no s chegara m pelos
compilador e s confiáveis (qu e sa o poucos ,
segund o o autor ) deveria m ser tratadas co m
muito respeito, nã o s e n d o recomendáve l alterar
nada da trama original.
O autor ilustra um do s possíveis malefícios do
uso inadequad o do s contos de fadas com um
caso clínico qu e acompanhou. 1 Nesse caso, um pai
relatava de mod o livre o cont o de Cinderela para sua
filha. Na sua maneira d e c o n t a r a história , ele s
s e i nc lu í a m e n q u a n t o personagen s e alteravam o
curso da trama: ele a salva\a das garras da madrasta
e juntos viviam aventuras. Pois bem . Bettelheim
acrescenta qu e a menina entende u essa liberdade
narrativa com o uma seduçã o paterna, e isso a levou
à esquizofrenia. Ora. certament e o psicanalista
austríaco nã o acreditou qu e tivesse sido o cont o de
fada narrado livremente q u e prejudicou a criança,
mas sim alguma neuros e familiar qu e fez os pais
ficarem numa posição inadequada, porém, sua forma de
relatar os latos deixou uma brecha aberta paia essa
deduçã o equivocada. Relativo ao quadr o patológico
dessa família, algo deve ter se expressad o na
narrativa do cont o qu e o pai fez. É certo, mas a
história de Cinderela era uma ilustração e nã o o
fato em si.
Se nã o houvesse a narração de contos de fadas, de
qualque r maneira teria se estabelecido uma
patologia. Arriscaríamos dizer qu e talvez até o resultado
fosse pior. porqu e a cena do cont o deve ter
permitido algum grau d e elaboração à menina, pois
sabemo s q u e tud o qu e encontra alguma forma de
representação se torna mais passível de ser
equacionado . O cont o de fada foi apena s a maneira
co m o a família narrou alguns de seus conflitos. Já um
caso clínico relatado dessa forma tendenciosa nos
Fadas n o Div ã — P si ca n ál i s e n a s História s Infa nti s
crianças. Geralment e as

parec e ser uma distorção be m mais perigosa qu e a feita


p o r ess e pai do c o n t o cia Cinderela . Esse
ti p o de interpretação alarmista alimenta nas famílias um a
inibição quant o à possibilidade de se comunicar co m as
crianças, nã o são pouco s os adultos qu e escolhem
a d e d o suas palavras, co m pânic o de
traumatizar os p e q u e n o s . Descrever a psicologia
infantil e conjecturar sobre seu funcionamento
particular devem servir para nos aproximar das crianças, não
para reduzi-las ao convívio co m especia• listas qu e seriam
os únicos a saber o qu e está aconte • cend o com
elas. Pais assim alertados, ao lerem contos de tadas
para uma criança, vão ficar inibidos com o se
tossem mexer num texto sagrado.
A noss o ver. alterações e criaçõe s sã o mais
qu e bem-vindas , ser ã o sempr e um a
oportunidad e d e movimenta r as tantasias q u e
fazem sofrer as crianças e sua s famílias. As
coisas ruins, patológicas , ficam e s c o n d i d a s no s
cantinho s escuro s d a m e n t e , produzind o
angústia, medo , agitação e irritabilidade. Mas. s e
essas fantasias en c on tr ar e m algu m tip o d e
traduçã o na narrativa do adult o e no diálog o
co m a criança, terã o o potencial de oferecer
alívio, cura e auxiliar no cresciment o infantil.
O caso relatado anteriorment e é a p e n a
s o e x e m pl o mais grosseiro, mas existe m outra s
passagen s q u e contra-indicam explicitamente a alteração
de partes do cont o ou . até mes mo , o simple s
fato de deixa r uma história pela metad e para ser
continua d a no outr o dia. Nu m outr o caso.5
Bettelheim cont a a história de um pai q u e . po r
ficar co m sono . paro u a história cie Joã o e Maria
be m n o m o m e n t o e m q u e Jo ã o ficava pres o na
gaiola da bruxa . O autor lamenta qu e a criança tenh a tido
de passar a noite vivend o um a tensã o para a qual nã o
encontro u resolução, coment a como , po r meio da
interrupção, esse pai acabo u dizend o inconscien•
tement e qu e o filho estava ficando pres o á sua mãe . Na
vida desse casal, estava ocorrend o um a separação, send o
qu e a mã e tinha um a posiçã o social e
ec o nô m i c a superior a do pai, o qu e o levava a sentir-se
um pouc o impotente diante da nova situação. Talvez,
o pai, se m saber, tenha dramatizad o sua situação
familiar usand o um cont o de fada interrompido .
Provavelmen t e ele estava tão identificado co m Joã o
quant o seu filho.
A o contrário d o autor, pensamo s qu e nã o s e pode ,
ne m s e dev e passa r regras ao s pais sobr e c o m o utilizar,
supostamen t e a b o m termo , os conto s de fadas.
Mais d o q u e situaçõe s problemáticas , o s caso s
relatado s po r Bettelheim sã o exemplo s d a utilidade d a
narrativa ficcional na com unicaç ã o entr e pai s e
filhos. Sempr e q u e possível será important e q u e s
e b u s q u e compar • tilhar alguma fantasia co m as
escolhida s traduze m os drama s familiares, n e m sempre
sabe mo s quai s a s motivaçõe s o u o s tema s inconscientes eme
est ã o s e n d o a b o r d a d o s , ma s n e m p o r isso o
di ál o g o seria m e n o s útil. T o d o o tip o de fala
ou e n c e n a ç ã o ajuda na elaboraçã o
() pai do cas o acima fez o q u e p ô d e , estava preso a
uma situaçã o e. be m ou mal, avisou ao filho dos
perigo s da bruxa . Talvez este seja até um exempl o do b o
m us o possível do s conto s cie tadas . Ou melhor,
talvez n ã o haja us o b o m ou mau , existe m usos e são
a s cond uta s familiares q u e vã o determin a r d e antemão o
seu caráter. Não existe m regras q u e possa m tornar
a l g o s e g u r o s e a c ri a n ç a c r e s c e n u m
ambiente patogênico : po r outr o lado . um a inibição
quant o ao us o cia ficção p o d e e m p o b re c e r um ambient e
saudável. K m certo momento, Bettelheim cont
a o
interessante caso' d e uma menin a que , t en d o inúmeros
proble ma s familiares, sonhav a em pertence r ã família
cios Rol>iiisoiis Suíços. Ou seja. usava a novela clejohan
NVyss para clevanear a respeit o cie um a família
que enfrentava aclversidacles. ma s vivia coesa , co m
todos c o o p e r a n d o par a o b e m c o m u m d e s s e
núcleo . 0 exem pl o e perfeito para pensa r o us o possível
da ficção na v ida de cad a um . Q u a n d o te mo s um
problema, pinça mo s um a história q u e venh a no s falar
dele, de preferênci a aquel a q u e contenh a um a certa
resolução. Relançamo s na fantasia o q u e no s aflige, mas,
em sua versã o ficcional. o problem a encontr a alguma
saída. Da história dess a meni na . Bettelhei m poderia
concluir qu e a ficção modern a també m p o d e fazer seu
papel. .Mas não, ele insiste em qu e se ela tivesse optado po r
conto s de fadas teria usufruído aind a mais das
possibilidades terapêuticas cie Lima história. Sem falar
qu e é uma conclusão baseada num a suposição! Atinai, o fato
mesm o foi outro, o recurso aos RobinsoJis Suíços havia
se revelado eficaz. Isso só demonstra o quanto o autor
estava afeiTado â idéia cie q u e os conto s de fadas seriam
mais terapêuticos do qu e qualque r outra narrativa. Nisto q u e
o p e ns a m en t o de Bettelheim revela-se
bastant e dinâmic o uma décad a depoi s da obr a
que e st a m o s c o m e n t a n d o , no livro tina Ma1 a para
Sen Filho, ele elogia a eficácia psicológica dess a
mesma trama ficcional:

Q u an d o crianças, essas pessoa s tinham querid o que uni


do s pais lesse a história repetidas vezes, porque
[...1 tinham esperad o subconscientement e qu e ela
transmitisse um importante recad o ao leitor. Para
um a ti n h a si d o A Família Robinsoti;
t e c e n d o fantasias em torn o dessa história, ela
encontrara consol o para sua situação familiar infeliz. O
mesmo
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o Co r s
o
Bettelhei m tinh a u m a visã o d a infânci a q u e

livro também tinha sitio muito significativo para outra


menina, qu e sofria com as repetidas e
prolongada s ausências dos pais [...] só depoi s de
adulta se deu conta de que tinha apo quenta d o os
pais e parentes para lerem A Família Robinson
em voz alta porqu e da tinha esperança de qu e
percebesse m o recado de que as crianças precisam
da presença do s pais.8

Apesa r d i s s o , o e fei t o g e r a l d a o b r a
e d e valorização da s histórias infantis e p e d e a
volta d o s pais ao pé da cama . E o m e s m o efeito q u e
deseja mo s produzir c o m o p r e s e n t e livro , ma s
e v i t a n d o a s restrições de Bettelheim, q u e am arra
m as famílias e os contadores de histórias em geral
num a forma única de se portar diant e da narrativa.

Um tesouro para as crianças...


lém dessa idealização do s conto s e de
seus efeitos, existem alguns erros históricos
quant o à origem do s conto s de fadas qu e
os críticos
de outras áreas na o perdoa m o autor.9 Graças à
sua crença na complementarida d e de pensa m en t
o entre as crianças e as histórias de fadas. Bettelheim
dá a entender qu e tais narrativas foram feitas para elas.
Na verdade, esses conto s eram compartilhado s po r
todos, numa época em qu e seque r o "sentimento de
infância"10 existia. foi s o m e n t e n a m o d e r n i d a d e
qu e ficaram relegados â infância, fato que .
convenhamos , abala a idéia de qu e essas histórias
tenha m sido predestinada s pela civilização para as
crianças. Talvez pudéssem o s dizer que os conto s de
fadas são um resto cultural do passado qu e
encontro u na infância um último refúgio, uma
reserva ecológica qu e os salvou da extinção.
A esse respeito, o auto r cheg a a detinicõe s pueris .
Por exemplo , q u a n d o se refere â forma c o m o os conto s
de fadas teriam sid o oferecido s às crianças,
e n q u a n t o um tesouro q u e a sabedori a da civilização
criara para elas. Numa passagem , q u a n d o se pergunt a
co m o pode • ríamos avaliar se determinad a história
é ou n ã o um conto d e fada, el e sugere , c o m o
m ét o d o , q u e no s perguntemos se ela p o d e ser
vista c o m o um a dádiva de amor1 1 às crianças. Se a
respost a fosse afirmativa, estaríamos entã o diant e d e u
m gen uín o cont o d e fadas. N o e n t e n d i m e n t o d o
autor, p o d e r i a m s e r caracterizadas c o m o conto s
de fadas as histórias qu e contivessem tramas
complexas , ma s co m mensagen s reconfortantes, um
auxílio q u e a cultura ofereceria ao s indivíduos em
formação. E important e a ressalva de que
compreendi a sua complexidade , por isso, nã o
deve mo s confundida s co m narrativas simplórias,
destinada s a um reforço positivo, do tip o de
auto-ajuda infantil. Ele valorizava as histórias de
tramas intrincadas, cheias de drama s e conflitos.
Justament e po r isso defende u co m tanto fervor
essas histórias folclóricas. Algumas das quais sã o be m
fortes q u an t o ao s incidentes e sentimento s qu e
despertam . Porém, ele també m exigiu delas
um final resolutivo (de preferencia feliz), capaz de
alicerçar as elaboraçõe s necessárias para enfrentai"
o desafio do crescimento. Ele insistia em que , pel o
seu caráter ainda frágil, as crianças necessitariam de
uma ficção especial, capa z de lhes inspirar conlianca
na vida. Apoiadas nas jornadas corajosas e
perseverantes das personagens , elas sentiriam qu e no
final uma recompens a viria para que m conseguiss e
seguir adiante (um do s grande s riscos para ele e a
saída regressiva) e pel o caminh o correto.
P o d e m o s até concor da r co m o auto r
sobr e as possívei s ne cessidade s ficcionai s
específicas para a infância, mas convé m nunca
esquecer a ressalva de qu e os contos folclóricos nã o
foram forjados para isso. Antro• pólogo s e
historiadores pode m nos contar mais sobre a trajetória
qu e essas narrativas tiveram para a humanidad e e por
qu e algumas foram send o abandonada s e outras
não. Novas pesquisas sobre seu uso e gênese
devem ainda no s ensinar muito sobre nossas origens,
mas certa• ment e seguirão no s apontand o qu e eles
nao estão na mesma posição de quan d o foram
gestados e difundidos pela narrativa oral. certamente
com o passar do temp o seu uso e sentido foram
se modificando.
Bettelheim acredita q u e , através do contato
com o s c o nt o s d e fadas, p o d e r í a m o s tant o
ec o no m i z a r sofrimentos quant o alicerçar nosso
crescimento. Estamos d e acordo , poré m
constatamo s qu e quant o mai s alternativas
ficcionais forem oferecidas a uma pessoa, mais
instrumentos ela terá para elaborar seus dramas .
També m acreditamos qu e existam tramas mais ricas qu
e outras , disponíve i s a um a mes m a faixa
etária, ma s discordamo s d e q u e apena s o s conto s d e
fadas deteriam todo s os atributos de qu e as
crianças precisam para essa elaboração . De fato,
eles sã o versões lapidadas, resultado de séculos
de relatos e po r isso elevem ser objeto de
particular interesse. Sem dúvida, os conto s de
fadas me re c e m um lugar nobr e na
comunicaçã o co m as crianças, poré m nã o sã o as
únicas histórias qu e lhes p od e m oferecer bon s
efeitos d e subjetivaçào.
E m suma , compreendemo s qu e
B e t t e l h e i m destaqu e a efetividade q u e o recurs
o a determinad a história p o d e ter na vida de
um a criança, pois, dialo• g a n d o s o b r e u m
c o n t o d a tradição , ela terá um a o po rt u ni da d e
d e elabora r algun s do s seu s p e q u e n o s
Fadas n o Div ã — P si ca n ál is e n a s H ist ó ri a s I nf a nt i s
versões antigas e quas e nenhum comentári o sobr e
o grand e
ou grandes drama s inconscientes . Se a história
tiver sido escolhida po r ela ou pelo s seu s pais, melho r
ainda . Se tiver sido inventada , ne m se fala. é
um recurs o ótimo. Mas discordamo s de q u e os
conto s de fadas tradicionais seriam um a espéci e d
e matriz mitológica detentora d e uma etetividad e
inigualável, c a p a / d e produzir efeitos ímpare s de
elaboraçã o do s conflitos infantis. Na leitura de
Bettelheim. esse s conto s teriam u m núcle o d e
significad o imutáve l a o l o n g o d o s séculos, com o
se neles estivesse contida e representad a uma memória
eletiva de fantasias inconscientes , q u e pode m ser
usada s po r q u a l q u e r u m e m q u a l q u e r época ,
significando aproxi mad a men t e a m esm a coisa. Essas
ficções . assim c o m o muitas outras, p o d e m
d e tato oferecer caminho s qu e e n c e n e m a s
paixõe s hu mana s e no s suscite m sentido s q u e
ultrapassa m nossa consciência. Mas elas na o contê m um
a memóri a arquetípica, pois, se esse fosse o caso . a
leitura de seu significado seria unívoca. Ora. os
efeitos de determi • nado s conto s na s criança s sa o
o s mai s variáveis e imprevistos, as histórias de tadas
possue m personagen s e passagens fortes qu e as
cativam vivamente , ma s no seu us o o s efeitos na o sa o
únicos . O s contos , c o m o o s mitos, sao estruturas
geradora s de sentidos , eles não têm um sentido
em si. Apena s determi na do s arranjos facilitam o
recurs o a um a o u outr a fantasi a e m
particular, mas mesm o assim seu us o e
circunstâncias serão percebido s d e variadas maneiras .
Mais q u e nada . elas sao u m grand e cardápio , o n d e
qualque r u m tom a o qu e lhe convé m para
encena r o dram a q u e está vivendo e m u m
determina d o m o m e nt o . Nesse sentido , um simbolismo
lixo e uma interpretaçã o standard do s contos são,
para nos , o pç õ e s descartadas .
Por isso. as interpretaçõe s d o s conto s de
fadas proposta s na primeira part e dest e livro
d e v e m ser encaradas com o um exercício. Não é um a
tentativa de interpretação universal, sa o sínteses,
provenient e s d o estudo da teoria psicanalítica e
principalment e da nossa experiência clínica e de análise
pessoal . Outro s autore s revelarão outras facetas e m
determinad a s histórias o u m e s m o e s c ol h e r ã o
o u t r o s n ú c l e o s narrativo s q u e considerarão mais
interessante s d e s e ocupar .

Contos de fadas ilustrados


preconceito de Bruno Bettelheim para co m as
histórias m o d e r n a s é estendid o ao s
meio s modernos : em seu livro existem várias
páginas
sobre Branca de Neve e suas várias
sucesso qu e foi o desenh o animad o Branca de Neve e os
Sete Anões no cinema. A única menção , em nota de
pé de página, é um a crítica ao fato de tere m
individua• lizado a personalidad e do s anõe s
(Atchim, Dengoso, Zangado , Dunga e outros), o qu e
teria sido um erro, já qu e eles deveriam permanece r
na forma original.12
Se o filme fosse c o m e nt ad o , seria
provavelmente par a demonstra r o recurs o à
ilustração e à imagem c o m o outr o p e ca d o q u e
rond a a narrativa d e histórias par a crianças , Para
Bettelheim . a i m a g e m inibe a imaginação , c o m
o no s diz e m outr o m o m e n t o :

Um cont o de fadas perd e muito de seu


significado pessoal qu a n d o suas figuras e
situações recebem substância, nao através da
imaginação da criança, ma s da de um
ilustrador. Os detalhe s especiais derivados de
sua própria vida particular, com os quais a mente
de um ouvinte retrata a história que lhe
contam ou qu e ouve. tornam a história muito
mais uma experiência pessoal.13

Send o assim, o c o n t o ideal deveri a ser


narrado ou lido e n ã o trazer ilustrações. As tiguras
forneceriam as imagen s q u e a criança deveria
providencia r sozinha a partir da sua própri a
experiência . Se viesse m de fora, el a n ã o faria u
m e s f o r ç o e c o m iss o s u a futura capacidad
e de imaginaçã o poderi a ficar afetada.
Porém , o contra-argument o prové m do
próprio discurso cio autor: se ele diz qu e convé m q u e
a criança mont e a imagem a partir de detalhes
derivados de sua vida, na o seriam esse s t a m b é m
proveniente s cie um acervo de imagens qu e sua
experiência lhe proporcionou' Por qu e um a
ilustração propost a par a determinada circunstância
narrativa - contida em determinad o livro- nã o poderia
ser mais uma das imagens qu e se acrescenta a esse
estoque? Ou vamos entã o reduzir o contato das
crianças apena s ás imagens qu e seus sentidos diretamente
percebere m do mund o real? Existe uma
hierarquia tão d i f e r e n c i a d a e n t r e a s i l u s t r a ç õ e s
proposta s para determinada história e as outras
imagens qu e a criança perceb e em seu cotidiano,
em alguma viagem ou num outdoor
propagand a na rua?
Os cont os tradicionais produzir a m
també m imagen s tradicionais. Por exe mplo , as
ilustrações que Gustav e Dor é realizou par a
Chapeuzinho Vermelho d e Perrault, sã o um a e v oc aç ã
o constante : marcante s e belas , teriam t u d o par a
ser definitivas. Por sorte, a n i n g u é m o c o r r e q u
e u m a crianç a ser á obrigad a a imaginar a
menin a e o lob o tais c o m o el e os desenhou . Brun o
Bettelheim n ã o está sozinho , a crítica à
image m ilustrando histórias é freqüente e de longa data:
Di a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Corso

os quadrinhos, o cinema, as ilustrações de livros do s sentidos, uma familiarização co m certos


de aventura, todos já foram considerado s c o m o algo códigos para entende r qualque r imagem . Ela precisa
q u e afastaria os jovens da leitura, esta sim a maneira fazer parte de uma lógica, articulada co m certo
correta, nobre e verdadeira de recebe r a contexto, senã o nã o comp reendemo s o qu e vemos.
informação . Esses questionamentos quant o ao uso das Uma imagem carrega um a mensage m codificada.
imagens são difusos e plurais, mas se une m num a As histórias em quadrinho s p o d e m ser paradigmá•
suspeita qu e elas seriam uma facilitação qu e inibiria ticas d o q u e estamo s falando. Numa ocasião,
a imaginação e deixaria o leitor preguiçoso. O apoi observa• mo s u m senho r d e um a certa idad e q u e .
o em imagens nã o requereria tanta atenção na embor a leitor a s s í d u o e fluent e e m vária s
trama, através delas entenderíamo s a história pelo línguas , n ã o t e v e o po rt u ni da d e de ler histórias
context o total e provavelment e de uma maneira em quadrinh o s em sua infância. Na referida
superficial. Nem é preciso dizer que , desd e situação, enfrentava o desafio de e nt e nd e r um a
sempre, a televisão está so b alta suspeita, ela encarnaria o publicaçã o q u e sua neta estava lendo e teve
produto final da corrupçã o da s histórias, criaria uma inúmera s dificuldades para se situar na história.
geração indolente qu e nã o precisaria ler ne m imaginar, Não c o m pr ee n d i a o s códigos , nã o consegui a
pois receberia tud o pronto . saber po r o n d e andav a o fio da narrativa e
Claro qu e a exposiçã o demasiad a tias crianças entendi a tud o pela metad e c o m o q u e m ainda na o
á TV é prejudicial. Não é necessári o realizar um é muito familiari• zad o co m um a língua. Ora,
estud o avançado para percebe r q u e aquela s q u e tratava-se d e algué m nã o e d u c a d o dentr o dessa
assistem a um número excessiv o de hora s de televisão forma d e linguagem, segura• ment e se estivesse
geralment e estão sós, e a TV é um a bab á de realment e desafiado aprenderia mais essa língua.
péssima qualidad e . Uma criança viciada em A ilustração e um códig o sobr e outr o
televisão é també m aquel a que nã o receb e código , certas veze s criand o u m terceiro, com o
m u i t o s e s t í m u l o s e te m p o u c a s oportunidades n o caso do s quadri nhos . Contrapô-l a a escrita e uma
d e interlocuc ã o c o m se u s adulto s e pares. falsa questão . C o m o v e m o s n o e x e m p l o , par a
Também nã o é difícil constata r q u e se m p r e qu e ela ler q u a d r i n h o s é p r e c i s o , a l é m d e s a b e r ler.
tiver op ortunida d e de um contat o h u m a n o rico. a domina r u m c ó d i g o particular, expressã o
relação com a televisão se tornará mais seletiva, restrita simbólica dessa nova forma de narrativa, q u e n ã
aos programas e horários de sua escolha . o é mais rica, ne m mais pobre , é diferente.
Mais prejudicial do q u e o supost o malefício Uma boa experiênci a pod e ser, se você é
das imagens é a omissã o patern a q u e a b a n d o n a as adulto , a leitura do s Mangás, quadrinho s de
crianças na frente do aparelh o de TV. Se houve r origem japonesa . O s código s sã o distintos do s
um adult o para dialogar sobr e o q u e ela está assistindo quadrinho s qu e crescemo s lendo , reque r certo temp o
ou propo r outra coisa interessant e , n ã o haveri a ate entend er mo s algo . Por e x e m p l o , um a mesm a
motiv o par a considerai" a l g u m r i s c o i n t r í n s e c persona ge m p o d e aparece r d e formas diferentes ,
o ao mei o d e comunicação. Normalment e é d e p e n d e n d o d e seu estad o de ânimo . Ou seja, a
mais fácil culpa r a TV do que questiona r o n d e image m diz pouc o se nã o temo s chave s d e leitura.
estã o os pais e qual a sua capacidade em Por mais simplórios qu e um seriado
estimular e educa r seu s filhos. infantil ou uma série televisiva possa m ser. eles
O fato é q u e já contamo s co m várias co m p re e n d e m um p e q u e n o univers o d e
geraçõe s expostas a uma carga crescente de informação r e f er ê n c i a s , um a séri e cie personagen s e
veiculada com e por imagens. E mes m o o mais relações entr e eles. Freqüentá-los nã o é uma atitude
apocalíptico do s críticos poder á constata r q u e a passiva, é uma escolha. Mesmo qu e Lima criança
inteligência nã o se ausentou dessa nova safra de ou jovem cresça c o m o um vidiota qu e passe os dias
humano s qu e foram, desd e a primeira infância, na frente do aparelh o de TV. sua atençã o oscilará e
alimentados e educado s dentr o dessa nova modalidade sua fantasia viajará apoiada preferencialmente em umas
de comunicação . personagen s e nã o noutras. Alguns serã o seu s prediletos,
Mudaram algun s meio s d e expressã o (ou melhor, enquant o outros programa s funcionarão com o u m ruído
foram acrescentados), mas nã o no s parec e d e fundo a c o m p a n h a d o co m atençã o difusa. O mesm
constatável qualquer empo br ecime n t o da s capacidade o ocorr e co m a ficção c o m o um todo , ela será
s cognitivas que possa ser atribuído a isso. Até freqüentada e escolhida de acord o co m muitas
porqu e nã o existe imaginário puro , o q u e que r dizer variáveis, da s quai s a image m faz uma bo a parte,
q u e as imagen s sã o estruturadas dentr o de um a acrescenta, mas decidida• m e nt e n ã o determina .
forma simbólica. O olhar não é um a opera çã o
simples, é precis o certa educ açã o
Fada s n o Div ã — P s ic a n ál i s e n a s História s Infanti s
discussã o sobr e a

Estrangeiros à cultura de massas 168


oda um a geraçã o d e pensad ores ,
especial • ment e os qu e emigraram da Europa
na époc a da Guerra , teve grande s
dificuldades co m a
cultur a d e mass a norte-americana ;
c o m Bettelheim não foi diferente. As manifestações
culturais mod erna s - co m o cinema , quadrin ho s e
TV - ficaram classificadas c o m o en tr et en i m en to , 1 4
c o m p r e e n d i d o c o m o algo meno r e, portanto , meno s
formativo qu e a cultura letrada em molde s
tradicionais.
Na época em qu e Hettelheim realizou sua formação e
produçã o intelectual foi criado o conceito de industria
cultural. E.ssa expressã o surgiu no livro
Dialética do Iluminism o (1947) , p ro v e nie n t e da
teorizaç ã o d o s filósofos Horkheime r e A d or n o ,
q u e a p r e s e n t a r a m questõe s lealmente importantes
para reflexão: o qu e aconteceria com a arte, na medida
em qu e ela assumisse a condição de mercadoria? O qu e
aconteceria co m seu público, na medida em qu e ele
se tornasse acima de tud o um consumidor, alguém
qu e poderia e deveria se r m a n i p u l a d o par a q u
e e s co l he s s e os objet os
(incluindo neste caso musicas, filmes, imagens) qu e
o mercad o almejava vender? Com o poderia a arte mante
r sua essência não-produtiva, de contestaçã o e
ousadia, se ela fosse engolida po r esse sistema
comercial? As indagaçõe s daquele s q u e ficaram
conhe cido s c o m o membro s da Escola de Frankfurt
ainda perdura m sem uma resposta definitiva.
Mesmo qu e acreditemo s q u e a dita cultura
de massa constitui um e m p o br ec i m en t o relativo a
um a transmissão cultural mais edificante, é necessário
separar o joio do trigo, ou seja. ne m tud o o q u e
é veiculado pelos meios massivos, misturado co m
alguma forma de geração de lucros, e necessariamente
alienante e indigno de atenção e respeito. Ainda qu e se
tratasse da produçã o artística p u r a m e n t e comercia l
e superficial , se ela encontrou um ec o
significativo no público, seria uma bo a
r e p r e s e n t a n t e d a c ult u r a q u e estari a s e n d o
consumida, entã o já valeria um estudo , uma
pesquisa sobr e a s razoes d e seu impacto. Hoje sabe mo s
q u e n ã o há campanh a publicitária capa z de fazer
o públic o engolir um filme ou programa de
televisão qu e nã o seja de seu agracio. Km certas
ocasiões, o barulh o do lançamento coincide co m a
adequ açã o d o produto , po r outras, as investidas
comerciais fracassam, c a u sa n d o prejuízos milionários
a estúdios e redes.
Não p re te n de m o s entrar n a discussã o d o possível
acert o da expressã o indústria cultural e seu
impact o sobr e a cultura, embor a tenh a sid o um bo m
álibi par a me nos preza r e nã o aprofunda r a
cultura q u e estava s e n d o efetivament e oferecida ao
público. 1 6 Na crítica á cultura infantil, ess e preconceito foi
prática corrente , e o livro de Bettelheim é mais um e x e m p l
o d e s s e tip o de análise . Algun s estudiosos fizeram
uma diferenciaçã o entr e alta e baixa cultura,
privilegiand o o interesse pela s obra s direcionadas a
setore s co m um a boa formaçã o intelectual e dedicando às
manifestaçõe s culturais mais massivas, populares, o u
mesm o medíocres , mai s d e s p r e z o d o que
curiosidade . Para o autor, os conto s de laclas, pela sua
tradiçã o e origem , teriam os quesito s da alta
cultura, co m a vantage m de sere m acessíveis a todos .
Os conto s de taclas nascera m e cresceram entre
os mais humildes e apenas posteriormente se
transformaram em um objeto para us o da Corte, depois d e
e x p ur g a d o s seu s aspecto s m a i s grotesco s e
rebuscad a sua linguagem. .Na medid a em qu e passaram a
d e p e n d e r cad a vez mai s da forma escrita, essas
histórias foram se to r na n d o um a referência mais culta.
Porém, o gost o popula r n ã o as a b an d o no u : adaptações
s i m p l i f i c a d a s , as si m c o m o v e r s õ e s televisivas e
cinematográficas , garantira m a sobrevivênci a dessas
trama s entr e o s q u e n à o tinha m acess o à s
versões clássicas. Exatament e po r isso é problemátic o
ignorar completamen t e as transformaçõe s e as adequaçõe s
que as nova s mídias, assim c o m o as marca s da
passagem do tempo, foram imprimindo nessas histórias.
Hettelheim reflete sobr e a forma de cultura que ele
considera ideal para ser ministrada às crianças e
nào sobr e aquelas qu e de fato alimentam suas
mentes. E com o se ele dissesse: para qu e criar
quadrinhos, novas personagen s de desenho s animados ,
literatura infantil, se já existem os contos de fadas, qu e seriam
manifestações mais benéficas. Porém, creditamos esse tipo
de postura intelectual (na qual ele nà o está sozinho )
mais a um preconceito qu e a um estud o qu e pudess e
alicerçada. Em seu livro, n à o há seque r uma opiniã o
sohre
as histórias em q u e . de fato. seu s paciente s
deviam estar imersos e c o m e n ta nd o . É claro q u e os contos
de fadas eram e segue m s e n d o um a part e importante
da infância de cad a um (noss o livro n à o é outra
coisa q u e um incentiv o a isso), ma s a q ue st ã o é
qu e as crianças os usa m junto co m uma infinidade
de outras histórias. Podemo s inclusive dizer q u e eles
representam hoje uma parcela meno r do interesse delas. Nào
adianta s a b e r m o s tud o sobr e Cbapeuzínbo
Vermelho, se d et er m i na d a crianç a quise r falar
so b r e o Chapolin Colorado! A idéia q u e o livro
de Hettelheim passa é d e q u e essa s outra s e
atuai s história s n ã o seriam a d e q u a d a s para a s
crianças, o u aind a q u e elas nem seque r sà o digna s
d e sere m examinadas .
Di a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o
Co r s o
(limitadas po r u m a g r a n d e restriçã o perceptiv a
ou

Um psicanalista nã o dev e entrar em consideraçõe s


sobre qual seria a melho r ficção para seu s
pacientes . Afinal, se eles evoca m determina d a
obra . é p or q u e lhes é importante . Para nós .
val e aquil o qu e está produzindo efeitos de
subjetivação. se seria mais ou menos a p r o p r i a d o
import a menos . D e q u a l q u e r maneira, nem se
quiséssemo s conseguiríamo s modificar o gosto e as
escolha s culturais de nosso s pacientes . E claro que
temos nossas opiniõe s e nã o é difícil percebe r que
existem tramas mais ricas, q u e oferece m melhore s
possibilidades de encena r fantasias e desafiam mais
a inteligência das crianças. Além disso, també m p o d e m o s
aproveitar oport unida d e s para comenta r histórias qu
e acreditamos possa m servir em determin a d o
m o m e nt o , mas isso só funcionará se a narrativa estiver em
sintonia com o universo temátic o de d et er m i na d o
paciente .
Corno ne m sem pr e a s crianças segue m
nossa s indicações, temo s de ter a humildad e de seguir as
delas. Se alguma história faz sucesso, é porqu e diz
algo do momento qu e estã o vivend o e da
sociedad e co m a qual estão fadadas a conviver. Na
pesquisa e na clínica, nosso desafio é entende r o qu e
reverbera nelas, entre os produtos qu e a mídia
oferece, e nã o tentar aponta r qual seria a forma ideal
de transmissão da cultura.
Saindo d o co n su lt óri o , n a vida familiar,
ess a posição se modifica: aqui é enriquecedor a a
atitud e de aliar o i n t e r e s s e p e l a s p e r s o n a g e n s
e tr a m a s escolhidas pela criança á oferta de
filmes, programa s televisivos, livros e obra s de
arte selecionada s pel o gosto dos pais. Através dess
e expedie nte , cad a gr u p o familiar pod e constituir
um nich o cultural distinto e envolvente para seu s
me mbr os .
fog o no início do livro, Bettelhei m enunci
a a seguinte opiniã o categórica :

a maioria das crianças - tanto as normais com


o as anormais, e em todos os níveis cie inteligência -
acha o conto cie fada folclórico mais satisfatório
do que todas as outras histórias infantis.18

O autor diz apoia r essa afirmação exclusivament e


em sua experiênci a c o m crianças . Respeitamo s
sua vasta prática na clínica infantil, ma s na noss a
experiên • cia e entendiment o , pel o m e n o s no s dias de
hoje. isso não procede . As crianças n ã o fazem um a
hierarquia e uma diferença muit o nítida entr e as
histórias q u e lhes são oferecidas, transitam entr e toda s
elas co m bastant e liberdade e muit a si nc eri d ad e ,
s e gosta m d e alg o aderem sem restrições, se nã o
gostam , as a b a n d o n a m sem c e r i m ô n i a . Fora a s
gravemente perturbadas
169
cognitiva), elas se deixa m levar tant o po r
narrativas nova s q u an t o pela s antigas q u e lhes
forem apresen • tadas. Soment e algum tipo de
desco nexã o vai ser capa z d e impedi r q u e elas
exerça m sua curiosidad e perant e a pluralidad e
da ficção a q u e tiverem acesso .
Q u a n d o um a criança tiver de fixar sua s
prefe• rências, seu gost o será influenciado pelo s
pais, pel o mei o (seu s pares , colega s e
amigos ) e pela olerta dominant e da mídia.
Acreditamos qu e as crianças atuam positivamente mais
na fixação de novo s produto s do qu e na
manutençã o das formas clássicas. São os pais, os
avós e os professores qu e introduzem os contos
de fadas. E a geraçã o do s responsávei s pelos
cuidado s e e d u c a ç ã o d a s c r i a n ç a s q u e s e
i n c u m b e d e s s a manutenção , afinal essas
histórias são uma linguagem c o m u m entr e a s
gerações , corn o cada époc a possui uma safra
de ficcões próprias. os contos de fadas são Lima
possibilidade de compartilhar algo em termos de
fantasia, esse é um do s segredo s de sua
sobrevivência. Os conto s ne m sempr e chega m
até as crianças
atravé s d e relato oral. e m família, a o p é d
a cama . Infelizmente, sã o pouca s crianças qu e
conta m com a figura de algum adult o
narrador. Os conto s acaba m chegand o a elas cias
formas mais diversas, muitas vezes, cab e á TV ou
ao s filmes apresenta r a versão q u e a família
compartilhará . Mas. m es m o qu e nã o possa m
conta r co m uma narrativa adulta em casa. os conto
s de fadas mais pop ular e s sã o histórias q u e
em geral os adultos sabe m (toda o u e m parte), d e
m o d o qu e pode m tecer uma linha de continuidad e entre
as gerações. Uma avó. por exemplo , pod e na o saber
nada sobre o desenh o a ni m a d o q u e o net o assiste
na TV, mas conseguir á mante r uma conversa
com ele sobr e João e Maria. O m e s m o vale para
todo s os adultos (parentes, amigos da lamília e
profissionais) qu e nã o estão em contato com
crianças perm anent em ent e , mas po d e m evocar
essas referências de sua própria infância para se
comunica r co m elas. Provavelmente por isso.
coub e ao cont o cie fadas a função de ser
representant e da tradição em termo s de
fantasias, e Bettelheim lhes atribuiu tanta
(merecida ) nobreza . Porém, isso nã o dev e
obscurece r nossa atençã o para as nova s formas e
tramas qu e foram s e desenvolven d o para us o do s
peque nos .
Os conto s cie fadas foram recolhidos , em
grand e parte, so b a influência do moviment o
romântico . Na medid a e m que , d e fato, o h o me
m aban do nav a pass o a passei a tradição , surgiu
um moviment o dedicad o a revalorizar a s raízes qu
e estava m s e n d o deixada s para trás. Nã o há dúvid a
de q u e é interessant e alimenta r a infância co m o
rico acerv o de fantasias q u e o passad o no s legou ,
ma s sempr e é b o m frisar q u e os conto s de
Fadas n o Div ã — Ps ic a n áli s e n a s História s Infanti s
o s conto s d e fadas c u m p r e m par a a infância
a mesm a função de certo s clássicos par a os

fadas nunc a foram de fato considera do s infantis ante


s da mod ernida d e .

Novidade versu s tradição


ssistidos num a tela, cont ado s ou lidos,
os contos de fadas tem aceitação garantida
co m as crianças de forma quas e universal, mas
seu
sucesso na o e muito diferente do s obtidos por
outras narrativas contemporâneas . Não há um
apeg o maior das crianças pelos conto s de fadas,
co m o nã o e constatável qu e só eles falariam ao
mais profundo da alma infantil. Conc orda mos ,
então , co m Bettelhei m quant o ao pes o da
influência das narrativas ficcionais sobre a vida dos
pequenos , mas na o estamos de acord o com o argumento
de qu e só os contos de fadas façam a função a d e q u a d a
d e lhes fornece r e l e m e n t o s para fantasiar e
ajudar a equaciona r suas problemáticas. E ainda,
para desesper o do s puristas, constatamo s qu e
algumas obras da literatura infantil e infanto-juvenil
dos séculos XIX e XX, e ate mesm o produtos da mal-
afamada indústria cultural, pode m suprir com a mesma
intensidade a função qu e os contos de fadas
desempenham. 1 9
Bruno Bettelheim supô s q u e a permanênci a
do s conto s de fadas seria explicável apena s pel o
qu e há em seu interior: o indiscutível potencial
de evocaçã o d e questõe s humana s complexa s qu e
eles possuem . Não discordamos disso, a analise de alguns
desses contos realizada neste livro só confirma essa
hipótese , mas nã o ê uma justificativa completa para
sua permanência . A q u e s t ã o d a l o n g e v i d a d e
tle ss a s hi s t ó r i a s
folclóricas leva-nos á hipótes e de q u e a ficção
infantil
(e provavelment e a adulta ta mbé m ) teria parte s móvei s e
fixas. Por um lado. seria um cardápi o em per man ent e
transformação, adaptando-.se ao s novo s tempos ,
tra• z e n d o histórias q u e retrate m o s no v o s
desafios tle crescer nu m m u n d o q u e na o pára tle no
s surpreender . For outr o lado, haveria a part e fixa,
q u e é um a aliada para qu e as geraçõe s se
referenciem uma s na s outras , para q u e o s mais
velho s ajude m o s mai s n o v o s a supera r medos ,
impasse s e sofrimentos.
A língua passa po r processo s parecidos ,
embor a n ã o sofra transfor maç õ e s tã o vertiginosas
. H á u m gigantesc o núcle o comum , já q u e a língua
q u e se fala n ã o se modifica radicalment e de Lima
geraçã o para a outra. Mas h á també m u m
vocabulári o própri o par a cada época , u m m o d o
tle construçã o d e frases, u m estilo específico d e
cad a te m p o . Nas histórias, ocorr e algo parecido ,
falência das tradiçé)es. sempr e sentimos um a certa
dificuldade em concorda r totalment e co m essa posição,
já qu e há tanta tradição sen d o mantida. K a arte
adultos . A maio r part e da s pessoa s q u e n ã o esteja em
parec e ser um impor• tant e ei x o dess a
estad o de miséria absoluta , tampouc o pass e po r algum tip o
so br e vi vê n ci a . Nã o deix a d e ser surpreendent e
drástico de isolamento , já ouvi u falar em Gulliver,
Drácula, Frankenstein . Rei Arthur, Romeu e a conservaçã o do s conto s de fadas no context o
Julieta. l a m b e m n a o sã o p o u c o s o s q u e sã o bastant e d a historia human a q u e tud o sucateia.
íntimos de Robinso n Crusoe , Do m Q ui x ot e , Lolita, Inicialmente, esses contos , hoje conhecido s
Dorian Gray, Tom Sawyer ou do s Irmão s Karamazov. como de fadas, faziam part e da tradição oral e era m
Como se vê. precisamo s falar um a linguage m c o m u m escutados po r todo s qu e estivessem ao seu
também na ficção e n ã o só qu a nt o ao conjunt o cias alcance, nã o havia público-alvo diferenciado.
palavras. Com o melho r definiu Contard o Calligaris: Naquele s tempos , crianças e r a m a p e n a s h u m a n o
s d e pequen o port e e não merecia m
Nos. modernos , precisamos sempre de boas histórias. pois co n si de ra ç õ e s especiais , faziam parte do grup o
temos pouc o em comum . As aspirações que qu e se acotovelava para escutar algum narrador. Este
compartilhamos (e qu e compõe m nossa cultura) não último seria tanto melhor quant o sua voz dominasse a
constitue m um código , ne m valem um livro platéia de gent e cansada do trabalho, necessitada de
de normas. Elas vivem e se transmitem pelas histórias co m as quais poderi a se distrair e fantasiar. Os
histórias das quais gostamos - especialmente por conto s eram entã o narrativas orais, q u e foram recolhidas
aquelas que são contadas para e por todos.2 0 pelo s compiladore s (Basile, os irmãos Grimm, Perrault,
J a k o b s , e o u t r o s ) n a c o n d i ç ã o d e resto s
Para a infância, os conto s de fadas culturais, folclóricos, de um temp o e uma tradição qu e se
representam uma condiçã o qu e a ficção conté m co m o esvaíam, e, ao traduzir essas narrativas para um a nov a
um todo: a de ser uma vasta biblioteca de histódas qu e forma (os livros), eles terminara m po r reinventá-las. De
passam de pa i par a filho, g a r a n t i n d o u m a c e r v o objeto de diversã o da corte e alívio par a
c o m u m d e personagen s qu e demonstra m esperanças , cam pon ese s exaustos, os livros de Contos folclóricos
fraquezas e medos , enfim, capaze s de encarna r todo s os foram se tornando , cada vez mais, produto s destinado
sentimentos hu mano s imagináveis. Q u a n d o se fala na s às crianças.

170
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o Cors o

Já Andersen apresento u outra postura :


fabricou seus contos de fadas diretament e para as crianças,
assim como tantos autore s q u e vieram depois .
C o m pr e en d ê - las como destinatárias dessa s histórias
eqüival e a torná- las guardiãs privilegiadas do resto de
magia qu e resol• vemos carregar para dentr o de Lima
sociedad e moder • na, hipoteticament e fundad a na
razã o e na ciência. Com elas. ficaram os restos
folclóricos, de q u a n d o os camponeses misturavam
histórias de amo r e aventur a com expediente s
sobrenaturais .
Muitas teorias com parara m a evoluçã o da
inteli• gência de cada indivídu o co m a trajetória da
sabedori a humana e n qu a nt o espécie . E n q ua n t o
crianças, pensa • ríamos c o m o os antigos , para os
quai s aquil o q u e e incompreensível n ã o seria
objet o d e investiga ç ã o científica, mas sim revestid o
po r alguma crenç a mágica que lhe emprestari a
sentido , nada se questionari a de uma maneira
racional e t u d o se explicaria magica - mente.
Send o assim, o s h o m e n s q u a n d o p e q u e n o s
reproduziriam a evoluçã o hu mana , ind o do
mágic o ao científico..21 Su p u se m o s e n t ã o q u e seu s
p e q u e n o s cérebros precisa m da s fadas e n q u a n t o na
o conseguis • sem a p r e e n d e r a s r a z õ e s q u e
m o v e m o m u n d o , supostamente compreensível ,
q u e o s adulto s habitam . Esse paralelo da infância com o
primitivo é incorreto
por onde se pegue . Na verdade, as crianças associam as
explicações mágicas co m rudimento s de
investigação científica. Crianças tecem hipóteses,
testam, muda m de premissa e pesquisam com o precoces
cientistas. Quant o aos adultos, nã o se pod e dizer
qu e suas inteligências sejam objetivas e racionais, nã
o há que m nã o carregue pelo resto da vida alguma
forma de pensament o mágico, que aparece, por
exemplo , nas superstições e na reli• giosidade. Por
outro lado. estudo s sérios das culturas dos povos
ditos primitivos mostram-nos um conheci• mento de
mu nd o e categorias lógicas surpreendentes.2 2
Com a construç ã o do sentimento de
infância, tornou-se necessária a separaçã o de fatias de
imaginário a serem oferecidas às recém-valorizada s
crianças. A partir de então , determinad o s assunto s
foram conside • rados impróprio s para os men ore s e
desinteressante s para os maiores. Época s da vida
diferenciada s exige m para si diversos tipos de
ficção, assim c o m o foram separando-se os tipos de
cultura a sere m consu mi d o s pelos nobre s e pel o
p ov o . pelo s ricos e pelo s pobres . Enfim, a cultur a
a n t e s dirigid a par a t o d o s foi se especializando.
Tã o p r e o c u p a d o s co m a formaçã o da s crianças, os
adulto s sentiram necessida d e de abastecê - las com
trecho s do imaginário mágic o da tradiçã o da
cultura popular , de algum a forma intuía m q u e
tais relatos seriam úteis.
romanc e d á cont a d a noss a dimensã o
neurótic a corriqueira . Noss a questã o é sabe
r c o m o essa
Uma ficção mais
complexa para as 171
crianças de hoje
pesa r da per manê nc i a dessa s antigas
nar• rativas, a modernidad e troux e
problema s e temáticas qu e na o encontra
m ec o no s temas
d a tradição . C o m o vimos, alguma s
tramas antigas pode m ser utilizadas pelas crianças de
hoje com o lonte s d e d e v an ei o , auxiliare s d e
um a elaboração , particularmente a s qu e p o d e m
evocar tema s relativos ao amo r e ao núcle o familiar.
Este último ainda encontra uma representaçã o
possível e n q ua nt o família real (pai• rei, màe-rainha
ou madrasta, filho-príncipe ou princesa). A s análise s
qu e realizamo s no s capítulo s anteriore s
d e m o n s t r a m q u e o s c o n t o s d e fada s tê m
g r a n d e potencial para retratar a passage m da criança
do interior da família para a vida adulta, na qual
encontrará abrigo no s braços d e outr o tipo d e amor.
Constatamos també m q u e o s c o n t o s d e fada s
sã o um a bo a font e par a e q u a c i o n a r o tem
a d a c o n s t r u ç ã o d a i d e n t i d a d e masculina e
feminina, da identificação com os pais e das
diliculdades próprias da époc a da juventude.
A visã o qu e possuímo s d e no s
mesmos , n o entanto , foi se t or n an d o mais
complexa , houv e um refiname nt o d a
compreensã o qu e temo s d a noss a
subjetividade . A a ut o -o b se rv ac ã o e um hábit
o qu e cresce u co m o individualismo, o qual
permitiu co m q u e no s c o m p r e e n d ê s s e m o s c o m o
únicos . Graças a isso, a ficção tornou-s e mais
sofisticada, da n d o conta da trajetória pessoal e
do s conflitos de personagen s q u e sã o ímpare s
e estã o long e d e sere m estereótipo s c o m o até
então. 2 1 Essas nova s tramas dera m corp o a
mudança s n o gêner o literário , dand o
ori g e m a o romance , qu e seria um relato
autêntico das verdadeiras experiências individuai s . 2
4

A tendênci a d o romanc e modern o


t a m b é m envolve u as histórias infantis:"" as
persona gen s pas• sara m a ter vida interior, a
sere m pessoa s divididas, contraditórias, enfim,
gent e atrapalhad a q u e na o sab e be m d e o n d e vem
ne m o q u e que r e tem uma estranh a co mpulsã o a
chafurdar num a angústia difusa. Temo s agora
pe rs o na g e n s q u e sofrem d e medo s absurdos ,
vivem um a vida sem sentid o ou tende m a se perpetua
r em determinado s equívocos , Enfim, o
r o m a n c e comport a o anti-herói , aqu el e personage
m q u e n ã o é b o m n e m mau , ma s faz o
q u e n ã o d e v e ( al g u n s r e m o e m seu s erros ,
outro s ne m o s percebem) , n ã o co n se g u e
atingir seu s objetivos e seguida me nt e and a mei o
se m rum o n e m propósit o . Entre outra s coisas, o
Fadas n o Div ã - P si ca n ál is e n a s H ist ó ri a s Infanti s

complexidad e é entendid a pela s crianças e q u e efeitos Inclusive um personage m aparentemen t e simples,


ela produz . c o m o o eterna ment e infantil Peter Pan, p o d e
Seguindo as diretrizes do pensamento de Bettelheim. revelar sofisticada s c o m p l i c a ç õ e s psicológica s . O
podemo s pensar q u e na o seria adequad o livro de B a r r i e suger e um a orige m
compartilhar com as crianças uma visão complicada e n e u r ó t i c a p a r a sua dete rmina çã o em dete r o
realista do ser h u m a n o . Para ele, elas precisaria crescimento , ela teria sido provenient e do
m tle m e n s a g e n s positivas, histórias das quais despeit o po r um supo st o abandono materno ,
possa m depree nde r qu e o mund o e um lugar chei o tle q u a n d o ele ganh a u m irmão .
desafios, perigos o até, ma s em última instância seria U m e x e m p l o m ai s a n t i g o p o d e n o s
segur o e os problema s teriam uma solução. A idéia ajudar: Pinocchio . persona g e m de Carlo Collodi.
é qu e um universo de dúvida s não c o m e m as As desven• turas tio b o n e c o de madeira sa o de
crianças, pois colocariam em risco suas parcas e mal fazer inveja aos irmão s Baudelai r e ante s
estruturadas certezas. m e n c i o n a d o s . São piores, p o r q u e n ã o d e p e n d e
A primeir a vista, essa s preocupaçõe s m s o m e n t e d a malvadez a d e outro s personagens
faze m sentido . Parec e recomendáve l nã o , elas sã o precipitada s pela teimosia de Pinocchi o em
escolhe r o ca minh o e as companhias erradas . Apesar
a p r e s e n t a r á s crianças dimensõe s qu e elas na o
disso, a história foi cresc end o porque as crianças
estariam preparada s para compreende r ou qu e
italianas, leitoras tio suple ment o tle jornal q u e o
amplificariam um des a mpar o qu e já é suficientemente
originou , inundava m a r e d a ç ã o de cartas
grande . Mas a questã o e sabe r se as crianças pensa m o
pe di n d o mais. Mais desgraças . O final feliz neste
m e s m o ou em q u e m o m e n t o elas começam a caso de m o r a tant o a chega r qu e na o
precisar justament e do contrário? neutraliza a longa jornada de pr eo c u pa ç õ e s do
O exempl o de um livro qu e vem fazend o sucess o leitor co m o rumo do pe r so n ag e m .
talvez possa ilustrar esse question a ment o . Trata-se
Mas vamo s examina r um a paixã o em
de Desventuras em Serie," uma obra compost a de
capítulos q u e atingiu os be m p e q u e n o s . No Brasil,
vários volumes em qu e se narra a historia de três entr e 1997 e
órfãos, os irmãos Baudelaire . Eses herói s sã o 2 00 1 , foi transmitid a um a telenovel a
infelizes, estã o desprotegido s e a merc ê da infantil l a c ri m ó g e n a . q u e foi um s u c e s s o de
maldad e do m u n d o . A história é pur o sofrimento, e audiênci a e possibilitou a vend a de tod a a
o autor n ã o que r engan a r ninguém, traz uma classe de bugigangas. Tratava-s e de Chiquititras.27
advertênci a impress a na cap a de qu e na o adianta q u e é a história tle um o r f a n a t o e tle se u s
espera r finais felizes: se algo p o d e dar errado, h a b i t a n t e s . S e n d o t o d o s eles a b a n d o n a d o s p o
isso ocorrerá. Seus leitores típicos nã o sa o o s be m r s u a s famílias , e n c o n t r a v a m n a solidariedad e
p e q u e n o s , mas o s p u b e r e s o u a s criança s mútu a e na tle un s pou co s adulto s algum c o n s o l o ,
maiores, q u e estã o na bord a tia infância, ma s pequen o diant e tia s com plicaçõe s
q u e r e n d o sair dela. De qualque r forma, q ue m freqüenta pessoai s q u e enfrentav am , assi m c o m o o
a família Haudelaire está em busca tle historias qu e passe próprio destin o tia instituição, q u e era seu únic o
m um a idéia tle qu e o m u n d o na o é um lugar abrigo, vivia em constant e perigo . A presenç a tle
seguro , ne m cálido e nem sempr e as coisas m o m e nt o s pueris e tle algun s finais felizes esparso s e
termina m da melho r forma. parciais, principal• ment e ao fim tle cad a ano , n ã
O próprio Harr y Potter , d e q u e no s o exclui ess e programa infantil da dinâmic a q u e
o c u p a r e m o s mais adiante, termina cada um tle seu s é própri a tias telenovelas. Nestas, os malvado s
extenso s livros com vitórias temporária s sobr e um reina m absoluto s durant e uma centen a e meia
conglo m era d o de personagen s mau s muito tle capítulos , e n q u a n t o o triunfo das pers ona gen s
simpáticas ao públic o surg e soment e no último,
poder osos , o q u e p o d e m o s considerar com o um
co m o uma redenção . Antes tarde d o qu e nunca, ma s é
final feliz. Porém , sua felicidade é muito parcial, já
inegável q u e é na desgraç a q u e os telespecta•
q u e ele se perpetu a num a orfandad e sem tréguas. Seus
dore s se deleitam .
únicos parentes , q u e detê m sua tutela e com que m
dev e passar as férias, odeia m-no , e as aventuras O detalhe é qu e a audiência dessa novela
sempr e iniciam na casa deles, o n d e o menin o brux o tem infantil era compost a de crianças (a maioria
o estatut o de um pária. Além disso, ele é um meninas) desde a pré-escol a at é o fim do
personagem complexo, pois. desde sua chegada à primário , c o m as menores c o m p o n d o a grand e
escola tle bruxaria de Hogwarts , paira a dúvid a massa. A trilha sonora de Cbiquititas é de cortar o coração
sobr e se ele vai ter um destin o q u e se inclina para o be e, durant e os ano s de seu sucesso, tocava em todas as
m ou para o mal. Ele escolh e o primeir o caminho , festas de crianças brasileiras, com direito a cor o e
emb or a o segundo o assombre constantemente. coreografia. Uma das músicas-chave tinha o seguinte
texto:

172
Di a n a Li c h t e n s t e i n Cor s o e Mário Cors o
as

Não me diga mentirinhas, dói demais. Eu já sei que


estou sozinha sem meus pais, eles foram, pra
bem longe, esqueceram que eu nasci, me
deixaram, sem carinho, por aqui |...|.

Muitos pais a époc a ficavam pasmos .


Queria m saber com o seu s filhos, crianças co m
famílias e pais vivos, completament e distantes da
realidad e da novela, tinham tanta empatia co m
órfãos sofredores .
A título de último exemplo , pode mo s citar a expe •
riência de uma cena traumática qu e em geral é
assistida pelos bem pequenos : a morte da mãe do
cerc o beb ê Bambi. Embora pertença a um velho
desenh o animad o de Walt Disney, lançado em 1942,
as crianças contem• porâneas seguem send o
apresentada s a esse clássico, como se ele fizesse
parte do acen o imprescindivel da infância.
Inesquecível, esse episódio trágico é relatado por
muitos com o uma experiência inaugural, em termos de
ficção, com a morte e o desamparo .
A maior parte dessas narrativas lacrimosas
serve mais a quem que r sair da infância, mas, com o
vimos, os pequenos també m consome m suas porções
de tristeza. De qualquer maneira, isso també m nos
leva á hipótese de que provavelmente as crianças na o
suportam tão mal assim a s história s co m
conteúdo s depressivo s e angustiantes e ainda
com uma suspensã o ela resolução por um temp o
bastante prolongado .
Quanto ao s mais crescidos, o fato de qu e os heróis
destinados a essa faixa etária sejam
freqüentemen t e órfãos c o r r e s p o n d e b e m á solidã
o c o m a qua l as crianças sente m q u e precisa m
enfrentar o m u n d o para sair da infância. For mais
q u e te n h a m um a família estruturada, disposta a
ac o m p an h á- l o s no s desafios que os espera m ao
crescer, na hor a de d e s e m p e n h a r suas tarefas
(escolares , esportivas, de circulação social e
geográfica), de busca r o afeto de seu s amigo
s e negociar co m seu s professore s estarã o
invariavelment e sós, o apoi o ficou em casa.
Aliás é importante qu e ocorra assim, pois as famí•
lias em qu e as crianças contemporânea s crescem, quant o
mais estruturada s forem, mais d e di ca d a s ao s
filhos costumam ser. Os pais com pensa m suas incertezas
(pois em geral nã o acreditam qu e a sabedoria dos mais
velhos é a luz no caminh o do s jovens) co m uma postura
aten• ciosa e exigente. O resultado, embor a muito
amoroso , e sufocante. Por isso, torna-se fundamental
essa forma branda e ficcionul de parricídio. qu e é
a escolha de heróis órfãos para se identificar.
Além do s tema s do sofrimento e da solidão, temo s
as questõe s relativas â co mpl exidad e da alma humana . A
psicanálise foi a primeir a disciplina a admiti r
complicaçõe s decorrente s da divisão do sujeito
com o s e n d o algo normal: somo s cindido s entr e
uma parte noss a q u e c o n he ce m o s (conscient e )
e outra qu e se es c o n d e de nó s (o
inconsciente) , ma s qu e se revela constantement e ,
num a obsessã o de espalha r pistas tle sua existência
até ser levada em conta . Para a literatura, o fato de qu
e somo s seres dividido s já e uma verdade
indiscutível, afinal, nã o é de hoje q u e ela cria
persona• gen s contraditórias, co mpo sta s d e um a
colage m d e identificações qu e nem sempr e pr od uz e m
uma síntese. P r o v a v e l m e n t e o p e r s o n a g e m m a i
s fam oso , uma caricatura dessa concepção ,
representativ o desse s lados incom unicá ve i s da
personalidad e - um sociave l e adequad o e
outr o selvagem e indômit o - e o romanc e Dr. Jekill
and Mr. Hyde ( O medico e o mons/ro), de R. L.
Stevenson, publicad o em 1885, quand o a
psicaná• lise mal engatinhava .
Ora. se for mesmo inevitável conviver com
uma divisão psíquica, cm qu e mo m e n t o da vida
seria bom qu e ela no s fosse apresentada?
Talvez seja isso q u e algumas crianças buscam
nas narrativas modernas . Os contos tle fatias
trazem personagen s unidimensionais,2 8 send o qu e
as complicações ficam po r conta da trama,
combinand o personagen s simples dentr o tle
histórias ricas. Para dar conta tlessa necessária sofisticação
tia ficção, foram surgindo histórias qu e conta m co m
personagen s mais complexas, aquelas qu e exemplificam
qu e é possível ser corajoso, mas ter fobias, ser bom ,
mas sentir inveja, querer fazer a coisa certa, mas estragar
tudo . ser vingativo, ter dificuldade tle controlar a raiva.
De qualque r maneira vale a pena interrogar se essas
questõe s trazidas pelas narrativa s moderna s
c o n s e g u i r i a m tr az e r c o n fo rt o psíquico, mas num
sentido mais ampl o q u e o utilizado em A
Psicanálise dos Contos de Fadas.
Para Bettelheim, só determinada s histórias poderã
o ser classificadas enquant o genuí no s conto s de
fatias, categoria na qual não cabem seque r algun s
tradicionais contos folclóricos ou clássicos
literários c o m o os de Antlersen. De acordo com
esse rigoroso critério, serão considerados contos de
fadas soment e os relatos breves, qu e têm final feliz
e uma estrutura maniqueísta . qu e projete os
diferentes aspectos da personalidad e da criança em
figuras diversas e organize o be m e o mal em pólos
opostos. Essa classificação decorr e da c o m pr ee n s ã
o de qu e elas estariam se afogando em uma espéci e
tle caos interior , lidand o co m sentimento s
a m b i v a l e n t e s demasiado pesados de suportar. Um b o
m e velh o cont o tle fada atuaria então com o uma
estrutura q u e ordenaria essa confusão, ao mesmo temp o
qu e asseguraria â criança qu e seus sentimentos hostis
p o d e m ser administrado s e direcionados de forma
não-destrutiva.
Fadas n o Div ã — P si ca n ál i s e n a s História s Infanti s
os q u e nã o chegara m lá (a grand e

Apesa r disso , Bettelhei m critica d u r a m e n t e


a s tentativas de construir uma ficção simplória
dirigida às crianças, do tipo q u e ele chamo u de
histórias fora de perigo: 2 9 Segund o ele, alguma s narrativas
mo dernas , escritas para crianças pequena s , evitam tema s
essenciais e desmer ece m a riqueza psicológica de
seu público . Dentr o d a mesm a lógica, elogia n
o c o nt o d e fada f o l c l ó r i c o su a capacidad e
de c o l o c a r d i l e m a s existenciais de forma breve ,
sistemática e categórica, n ã o p o u p a n d o a criança
, n e m d e s m e r e c e n d o su a complexidad e psíquica.
Deduzimo s entã o q u e a trama dev e ser mais
sofisticada, c o m o complicado s são os conflitos qu e
afetam as crianças, mas as perso nage n s deve m ser
simples, agind o c o m o separadoras . capaze s de
oferecer uma estruturaçã o na qual a subjetividade
infantil possa se apoia r para cresce r em
segurança . Paia os conto s de fadas, esse raciocínio
funciona, ma s transpô-lo para as histórias moder na s traz
mais proble • mas d o qu e ajuda.
Tomemos , por exemplo , um anti-herói tal qual
o personage m central do s quadri nho s norte-
americano s Pea nuts , o fracassad o Charlie Brown ,
o u u m urs o tolinho, c o m o Winnie-the-Pooh . O s
conto s d e fadas trazem personagen s qu e
inicialmente p o d e m até ser considerada s boba s e
fracassadas, ma s no final sempr e se transformam em
vencedoras . Com Charlie Brow n isso nunc a
acontece , ele vai ter de ap re n d e r a segui r vivend o
d e derrota e m derrota, e n q u a n t o Poo h segu e par a
s e m p r e co m seu s p e n s a m e n t o s c o m i c a m e n t e
equivocados , alinal ursos d e pelúcia nã o crescem .
Pelo m e n o s Pooh segu e s e n d o aceito,
m e s m o fazendo b o b ag e n s e talvez graça s a elas,
ma s Charlie Brovvn nã o receb e muito consolo .
Q u e m sab e um a criança, cuja percepçã o de sua
vida seja a de q u e n ã o consegu e dar certo, qu e
encar a co m m e d o o s desafios q u e s e descortina m
pela frente, en c o nt r a ali um a possibilidade de
na o se sentir tã o única? Talvez nele s ela possa ver
qu e haja algum sentid o e certa dignidad e em seguir
levand o a vida. co m seu s desafios às veze s tã o
desiinportantes q ua n t o intransponíveis, sem
necessidad e ou oportu nida d e de matar um dragã
o e conquista r uma princesa. Ou seja. ela p o d e
sentir q u e seguirá send o amad a e tend o u m lugar,
apesa r d e n ã o consegui r fazer as coisas direito e de n ã
o ser um herói. A questã o e q u e na o d e p e n d e
som ent e do final
feliz para qu e uma história pass e um a m e ns a ge
m de segurança . Compartilha r as própria s
limitações com. as personagen s també m produz,
efeitos calmantes , o m u n d o passa a se r m e n o s
exigente . É precis o sonha r co m a possibilidad e d e
ser u m herói, ma s é b o m q u e haja um plan o B para
que , at ua n d o com o um classificador,
restabeleceria a orde m elo m u n d o , c o n d u z i n d o
para um a solução do conflito e aliviand o a
maioria de nós) . As histórias m o d er n a s deixa m as duas pistas
angústia da criança.
de p o u s o aberta s par a a identificação.
A maioria do s conto s de fadas n ã o oportuniza um meio- Isso funcion a p o r q u e sabe r s ob r e o qu
termo , só existe um final: o triunfo do herói. e nos aflige alivia o sofrimento . Por e x e m p l o , um a
Digamos que . enquant o o cont o de fadas atua no sentido de do r tísica s e torn a b e m m e n o s as s u s t a d o r a
ordena r melho r o cao s interior da criança, de longe as elepoi s q u e u m médic o explic a p o r q u e está
eloendo , e , s e n d o então m e n o s enigmática , fica
narrativas moderna s as prepara m mais para os desafios da vida.
mais fácil ele suportá-la . Tornar a situaçã o psíquic a ela
Não necessariament e para a vida adulta, mas oferece m
criança co m p re e ns ív e l , mesmo qu e
instrumento s para começa r a lidar com as fr us tr aç õ e s
aproxi maiiva m ent e , o u pel o m e n o s circunscrevê- la.
a d v i n d a s d a s r e l a ç õ e s h u m a n a s , que começa m seria c o m o explica r um a dor.
muito cedo . Se os conto s de fadas têm servido de apoi o para
Os conto s de fadas sã o resultad o ele um a comhi-
elaborar conflitos decorrente s das relações familiares, as
natória muit o variada d e e l e m e n t o s fixos, ma s
histórias m o d e r n a s d ã o cont a disso e també m do qu e
extre• m a m en t e ricos q u a n d o articulados, c o m o u m
no s esper a cio lado de fora do ninho. De qualque r
caleidos• c ó p i o ele p e d r a s p r e c i o s a s , l a p i d a d a s
maneira , é forte o argument o de atravé s ele século s ele narrativas . E m p r e s t a n d o
Bettelheim q u e estabelec e uma contraposiçã o entre a ess a riqueza à criança , o c o n t o a ajuda na
estrutura simple s da s pers onage n s de conto s de fadas, os compreensã o de suas gr a nd e s e pequena s
quai s auxiliam a orde na r o cao s reinante , e o caráter problemática s , a partir elo mo• m e n t o e m q u e
d e s e s t r u t u r a n t e d o s s e n t i m e n t o s infantis ; entr e o ele oferec e a p oi o s imaginário s para a e la b or aç ã o
desenvolvimen t o resolutivo elas trama s desse s contos e ele d et er m in a d a situação .
a solidã o e desesperanç a q u e tantas veze s invadem a
cen a da infância." V. c o m o se os conto s oferecessem gav eta Poré m , n ã o p o d e m o s jamai s e s q u e c e r
s e es t a n t e s ond e toss e possíve l organizar cjue a crianç a te m seei pr ó pr i o sistem a
eleme nto s q u e . deixaelos á própri a sorte, voariam a ciassifieatório. Seu p e n s a m e n t o é com o um
esm o pel o recinto do p en sa m e n t o , se m C[ue sequer c ô m o d o cjue es t á e m p er m a n e n t e estad o d e
tivéssemo s c o n diç õ e s d e observa r d e q u e natureza reforma, poi s nova s vivências
era feita aquel a bagunça . O cont o seria essa estrutura

174
Di a n a Li c ht e ns te i n Co r s o e Mári o C o r s o
e a conside -

e conhecimentos desequilibra m se u sistema de pensa •


mento, revoluciona m sua lógica, e, a cad a nov a etapa ,
uma nova organizaçã o ressurgir á . Essa
est r ut ur a dialogará com a do conto , se apoiar á
nela, ma s é a síntese própri a a cad a criança ,
específic a d a q u e l e momento, qu e produzir á o eleit o
calmante . Para tanto , a estrutura da narrativa ,
a n t e s cie se r simple s ou complexa, terá de ser
oportu na .
Na primeira part e do livro, q u e aqui se
encerra . ilustramos uma série de conflitos h u m a n o s
através de contos de fadas e, a cad a trama,
fomos associan d o certos dramas. Os conto s cie fadas
clássicos no s dera m oportunidade de descreve r o quant o
crescer no s desafia a lidar com sentimento s nad a fáceis,
c o m o o m e d o da morte (a própria e do s pais), a ameaç a
de desintegraçã o resultante da fantasia de ser
engolfado s pela mãe . as mágoas pelas s e d u ç õ e s
fracassada s e o sofriment o decorrente d o
ro m p i m en t o necessári o para escolhe r um amor fora
de casa. A cada história, fomos consta • tando qu e
o proble m a trazia em se u boj o algum a solução,
mas isso n ã o é legível assim a p en a s p o r q u e se
trata de conto s de tadas . q u e seria m os
único s capazes de oferecer certas soluções . Eles sã
o ap e n a s ótimas historias qu e usamo s de
diferentes formas há séculos. A saída nã o está neles ,
está em nós . É própri o do humano procura r saídas par a
os sofrimentos, e até o s mais joven s tê m algu m
a o r d e m , m e s m o o n d e pareceria imperar o caos .
As histórias de ficção sã o co m o estruturas
co m as quais é possível dialogar: as vidas da s
persona gen s podem nos servir tant o para retratar
a forma c o m o administramo s a n o s s a p r ó p r i a ,
q u a n t o pa r a s e contrapor e questiona r o sistema
q u e inventamos . Por isso, as personage n s n ã o
precisa m ser tão unívocas . mesmo par a o s
p e q u e n o s . E v i d e n t e m e n t e qu e é preciso propo r
trama s qu e sejam viáveis, em termo s degrau de
dificuldade, para o m o m e n t o cognitivo da criança,
p o r é m iss o est á l i g a d o a o p r o c e s s o d e
desenvolviment o d a su a inteligên ci a , nã o
n e c e s • sariamente c o m u m c a o s i n t e r i o r q u e
d e v a se r anestesiado ou solucionado .

Um pouco de história
ettelhei m é a c u s a d o de fazer um a
leitura psicológica se m levar em cont a a
história, ou seja, faz uma análise atemporal
, c o m o se os
conto s de fadas sempr e dese mpe nhass e m
a mesma funçã o par a u m p ú b l ic o similar
e v o c a n d o sentidos padrões . Entendemo s a crítica
de Mircea Eliade de serem uma dessacralização do
s mitos —, ma s a ques tã o da origem nã o respond
e o p o r q u ê da sobrevivência desse s contos . Se eles
ramo s pertinente . V. uni problema o autor nã o
provê m m e s m o de ritos arcaicos, alguns do s quai s s ó
ter se d a d o conta de q u e o público-alvo foi
reconstruímo s po r suposiçõe s antropo • lógicas,
m u d an d o , mas uma coisa temo s de perguntar aos
graças a um p o u c o de material arqueológic o e à
críticos de Bettelheim: a qual períod o histórico
com paraçã o co m ritos em outro s povos , justamente po
deveríamo s no s ater?
r sere m vivências h á muit o a ba n d on a da s , po r
Não é difícil prova r q u e algun s desse s
qu e esse s restos ainda seriam lembrados ?
conto s já existe m h á vários séculos , d e v e m o s
Por outr o lado. é possível q u e esse s ritos tivessem
entã o procura r nele s mito s diluídos , o u
d ur a d o milênios e, po r isso, m ar ca d o
talvez resto s d e ritos da s sociedade s neolíticas?
fortement e a experiênci a huma na , ma s um a vez q u e
Ou ainda, seria melho r privilegiar o pape l qu e
desaparecer a m a s pretensa s condiçõe s qu e teriam criad
ele s d e s e m p e n h a r a m n a Antigüidad e clássica
o esse s contos , e se passara m inúmera s gerações ,
o u entã o n o medievo? O u de v e m o s atenta r
s e n d o qu e já nã o temo s uma idéia do q u e
para quai s marca s a soci edad e q u e o s pô s n
realment e foi ab a n do n ad o , po r qu e teriam s e
o papel , durant e o lluminism o e depoi s no
mantid o eco s dessa s manifestações primordiais? Em
mo vi ment o româ • ntico , o s teria i m p re g n ad o ?
outra s palavras, o q u e esses conto s evoca m para
O u seja. esse s c o n t o s atravessaram de z en a s
q u e o s p o v o s o s sigam lembrand o muito d e p o i s d e
de século s e várias torma s de organizaçã o
tere m sid o esquecida s a s possívei s
social. Qua l dela s teria sido mais impor • tante
experiências qu e os teriam criado? O mínim o qu e pode •
na sua constituição? Estariam todo s esses m o m e n • tos
mo s p e n s a r é q u e ele s e st ã o d e s c o l a d o s d
representado s no s contos , tais quai s estratiticaçôes
e um a significação original, ma s isso n ã o no s
geológica s d e várias eras? O u q u e m sab e o s
ajuda muito, afinal, o q u e eles passara m a dizer? E
conto s a co m p a n ha r a m toda s essa s sociedade s
ainda , c o m o se de u essa passagem? Nã o é difícil
justament e po r seu s elemento s ahistóricos?
criticar a postur a anti- histórica; o fato é que
Ora , p o d e se r cert o q u e o s conto s
t a m p o u c o os historiador e s p o d e m no s ajudar
sejam, n a origem, uma espécie de decantad o de
muito , j á q u e existe m muita s ques • tões n ã o
antigos ritos com o que r Propp.3 1 Acreditamos q u e
respondida s sobr e a difusão e a antigüida d e do s
bebera m també m e m outras fontes - no sentid o
conto s folclóricos.

175
Fadas n o Div ã - P si ca n á lis e n a s História s Infant i s
a ressurreição . Ora , quando

Talvez nã o .seja o cas o de contrapo r o


significado q u e os conto s teriam graça s á sua
origem , ou seja, a constelaçã o de ritos e mitos
q u e os criou, portant o uma abor dage m histórica
(a o estilo cie Propp) , e um a explicaçã o q u e s e
baseass e a p e n a s no s e l e m e n t o s psicológicos q u e
sã o capaze s d e aind a desperta r e m nó s (n o
sentid o d o trabalh o d e Bettelheim). Q u e m sab e
a saída seja um estud o interdisciplinar em q u e
amba s tendência s possa m ser levadas em consideração .
l'm a clã cont a tia origem, emb or a n ã o forneça
um a explicaçã o razoável para sua permanência .
Por outr o lado, as hipótese s psicológicas fornecidas
pela outra esclarece m boa parte do s c on te ú d o s e
atribue m a sua permanênci a através da s geraçõe s á
sua eficácia, ma s estã o longe de resolver todo s os
enigma s que. o cont o coloca. Ainda nã o contamo s
co m u m auto r co m um a erudiçã o nas dua s ponta s qu e
se dispusess e a construir uma possível síntese.
Infelizmente Bettelheim nã o foi influenciado por
Propp . t a m p ou c o Prop p de u ouvido s a psi ca nál is e ,
ma s enquant o iss o nã o a c o n t e c e p o de m o s
fazer modelo s aproximativos .
Provavelment e o s conto s iniciaram po r tere m
s e incumbid o d e questõe s importante s n a
m a n ute n ç ã o da cultura de um certo m o m e n t o
histórico e se manti• veram a o long o d o t emp o pela
mesm a razão d e dizer algo . ma s na o
necessariament e foram o s m e s m o s conteúd o s
iniciais qu e se mantiveram . Vamos toma r um
exe mpl o o n d e isso possa ficar mais claro: a questã o d a
fragmentaçã o corporal muitas veze s retomad a no s
contos . Em Barba Azul encontra mo s algo q u e
p o d e se r um a representaçã o típica d e
e s f a c el a m e n t o e reconstruçã o d o corpo . Mas
utilizamos ess e e x e m p l o apena s por ser o mais
conhe cido . Esse conto , c o m o analisamos
anteriormente , tem parentesco s q u e p o d e m ser
buscado s em vários folclores, além de n ã o ser
o únic o tipo de narrativa em qu e isso aparece . Nos conto s
qu e trazem essa questão , algué m é p u ni d o e seu castigo é
a morte e o esquartejament o . Q u a n d o os castigado s
sã o resgatados , eles sã o colado s e voltam á
situaçã o inicial, c o m o se tivessem renascid o e,
geralmente , se m maiore s explicaçõe s de c o m o essa
mágica se deu .
Prop p analisa esse event o c o m o u m resto d e ritos
de passage m o n d e se morria simbolicamente , o
rito deixava marcas corporais ou pel o meno s incluía
alguma aca o sobr e o corpo , c o m o u m suplício
temporári o . Terminad o o ritual, ganhava-s e um a
nov a existência, ás veze s inclusive um nov o n o m
e e certament e um nov o status social. Co m o o rito
incluía a idéia de um a morte , a cio sujeito anterior ao
rito, vivia-se de algum a maneira esse fim. O corp o
cortad o e r e m o nt a d o signi• ficava a mort e e depoi s
reconhece r c o m o um tod o e nã o c o m o pedaços.
Isso graças ao fato de termo s tido um a função
materna q u e no s espelhou . Portanto e possível qu e
os ritos q u e dava m cont a disso desaparecera m , teriam esse corpo de s pe d aç a d o - aceitando-s e a idéia
ficado os contos . Mas milênio s se passaram , por que de qu e original• ment e provenh a de um rito - só se
ess e c o n t e ú d o s ob r e u m c o r p o d e s p e d a ç a d o teria conservo u por seguir dizend o algo a cada um de
razõe s par a se r lembrado ? O q u e el e p o d e dizer para nós, mas qu e talvez não tenh a sido seu
q u e seja dign o de continua r s e n d o discursad o entre significado primeiro.
um a geraçã o e outra?
A psicologia e a psicanálise já demonstraram que a Se originalment e o rito foi co m p o st o a
idéia qu e temo s do noss o corp o nã o se apreende tão fácil. partir da experiênci a intuitiva de qu e é precis o monta r
Uma serie de patologias no s dera m as pistas para pensa r qu um corpo para viver já é uma especula ção . Talvez nã o
e a estruturaçã o da image m corporal não é natural, houvesse, no rito inicial, um a q ue st ã o sobr e a
pois ela nã o ocorr e na falta de certos arranjos q u e montage m do corpo , ou fosse totalment e
deve m aparece r na hora certa para o bebê. Ou seja, secundária , se n d o apenas um do s elem ento s q u e
todo s no s um dia montamos noss o corpo, nossa serviam de oposiçã o entre o vivo e o morto ,
experiência primeira é de um corp o fragmentado. mort e e ressurreição , q u e seriam o f o c o da
questã o e m caus a naquel e mo mento .
Isso na o é metafórico, basta observar a forma como um
Normalmente , para grand e irritação de
recém-nascid o se surpreend e co m os movimentos do
antropólogos, h i s t o r i a d o r e s e f o l c l o r is t a s , os
própri o corpo , com o se fossem fatos externos, já qu e
p s i c a n a l i s t a s ou psicólogo s diriam q u e é a
in de p e nd e m de seu desejo. Não significa que um b e b ê
partir dess a vivência de construç ã o d o corpo , qu e
tenh a um a visã o d o se u c o r p o c o m o algo
todo s nó s experimentamos, q u e se teria criad o o
fragmentado, já qu e nessa époc a isso é um fato,
rito, ou pel o m enos , de onde foram retirado s seu
não um a idéia . P o s t er i o r m e n t e , q u a n d o já temo s
s ele mentos . Ou seja, essa interpre• t a ç ã o banaliz a
uma imagem corporal e o controle sobr e nossos movimentos,
a e x p e r i ê n c i a ritual, reduzindo- a a simple s
p o d e m o s imaginar, retroativamente, c o m o fragmentado
reflexos psicológico s de c o nt e úd o s subjetivos
aquel e corp o qu e possuíamo s e qu e nã o atendia ao
deformados . Dá par a e nt en d e r a exasperaçã o
co m a n d o central de nossa vontade . No moment o inicial,
causada ciiante dess a onipotênci a província do
apena s apoiado s nu m olhar externo , somo s capazes de no s
c a m p o psi.

176
Di a n a Lichtenstei n Cors o e Mári o C o r s o
m alg o q u e lembra a morad a do s mortos, pois lá existem
esqueleto s
As interpretações q u e atribue m um caráter arque -
típico aos simbolismos utilizados po r ritos e
conto s seguem pelo mesm o camin h o q u e estamo s
criticando, de psicologização antropocêntrica . A
princípi o essa noção é uma idéia tentadora , pensaríamo s
q u e existiria uma espécie de simbolism o elementa r
e primordial que formaria um substrat o inconscient e
compartilha d o por toda a humanidade . Os ditos
arquétipo s seriam signos arcaicos e inaugurais, cujo
sentid o seria intuitivo, evidente por si m es m o entã o - se é
q u e isso é possível. Esse significado formaria um códig o
que , po r sua forca e possibilidade de simbolizacáo .
no s acomp anhar i a ao longo da história. É um a idéia
sedutora , q u e resolve, num primeiro momento , o impass
e entr e o vivido pri• mevo e a atualidade . Seriam
entã o esse s elemento s - chaves que com bina do s fariam
a difusão desse s conto s presentes em inúmera s
culturas , e é isso o q u e se transmitiria de
geraçã o a geração . E.sse edifício cai quando
fornece sua s interpretações , geralment e elas
redundam e m generalizaçõ e s q u e significam
q u a s e tudo e seu oposto . Os ditos arquétipo s acaba m
s e n d o noções tão a m pl a s q u e s e t o rn a m vaga s
e p o u c o elucidam sobr e o s eleme nto s q u e estã o
e m jogo.
Nossa idéia é entã o qu e a eficácia atual do s conto s
folclóricos em nossa subjetividade n ã o retire sua
força necessariamente do q u e teria sido sua
constelaçã o de sentido inaugural, ma s em sentido
s outro s q u e ela possa evocar no m o m e n t o
present e de sua narrativa. Afinal, nas tramas desse s
contos , estã o misturado s ricos cacos de significação, tud o
q u e é própri o do imaginário humano lá esta
representad o ou facilmente p o d e ser conseguido co
m sua justaposição : paixões , monstros . morte,
amores , traições, a b a n d o n o s , ou seja, e um
material qu e facilmente se presta para monta r sentidos .
Mas vamo s a outr o ex e m p l o q u e p o d e ser
útil para delinearmo s ess e m o d el o provisório.
Inúmero s contos ou mitos no s falam de um a
passage m pel o interior de um ser monstruos o -
c o m o em Pinocchio
-. nos quais, depoi s de sair de dentr o dele , o
herói não é mais o mes mo : geralment e está mais sábi o
e às vezes, estranhament e , pe r d e o s cabelos .
Prop p no s aponta uma série d e exemplo s e m
sociedade s o n d e ritos semelhante s ainda existem ou
foram recentement e abandonados, ap re s en ta n d o
co nt e ú d o s similares ao s contos. Nesses ritos, os mais
diverso s animai s gigante s
- g er al m e n t e c o n s t r u ç õ e s rústicas , o u seja .
u m a estrutura alegórica - p o d e m servir de monstr
o e vã o dar abrigo a u m a temp orad a a ser passad a pel
o neófito em sua barriga. Aquele s q u e deve m passa r
um t e m p o dentro d es s e luga r simbólic o e n c o n tr a
177
ou fantasmas, e ás vezes há pistas de um
en c on tr o co m os ancestrais. Pois bem, conclui ele,
esse s c o nt o s sã o restos d e antigos ritos d e
passagem. Send o assim, outra vez a mort e e
simbólica: morre a criança par a nasce r o
adulto , e os antepassado s representam , de
algum a forma , a tradição qu e é recebida po r
aq u el e q u e está s e n d o iniciado. É bastante provável
q u e assim seja. mas po r qu e esses restos teriam sid o
preserva do s po r tant o t e m p o se os ritos em si
mes mo s já n à o n o s dize m nada?
Ora , todo s no s passamo s um a
temporad a n o ventr e de um ser. naquel e
momento , be m maior. Na ficção, porém , a o
contrário d e q u a n d o fomos gestados . temo s uma
atitude mais ativa: agora os herói s sae m po r
si próprio s dessa barriga, eles c o n s e g u e m
livrar- s e da s e n t r a n h a s d o monstr o co m a
su a forç a o u inteligência. Na ficção,
transformamo s o passiv o em ativo e buscamo s
a vida. A ideia de um a es p éc i e de mort e nas
entranha s pod e permanecer , e m b o r a agora os
co nt e ú d o s se voltem para o nascimento , poi s pod
e ser uma forma d e pensa r o estatut o d e
q u e m n à o nasceu , afinal, embor a nà o seja um
mort o q u e m vai nascer, e um não-vivo, ou um
vivo invisível.
Pode mo s nà o saber po r q u e u m p o v o
tev e u m ritual o n d e a passage m de um status a
outr o dev e ser ac o m p a nh a d a d e u m simulacro d
e renasci mento . Mas nã o é tã o difícil explicar
por qu e algun s co nt e ú d o s , capaze s de ajudar
na simbolizacá o da passage m pel o interior d e
outr o corpo , tenha m p e r m a n e c i d o . Atinai e uma
questã o nà o só para as crianças, já q u e saímo s
todo s da s entranha s d e uma gigante .
O contrário talvez nà o seja verdadeiro , o rito
n à o necessariament e foi m o n t a d o assim para
simboliza r a q u est ã o d a noss a origem , ma s
po r se r u m rito d e passagem , simbolizand o
um segundo nascimento, n à o é impensáve l qu e
cie tenh a ele ment o s alegórico s d o noss o
primeir o nascimento . Então, q u a n d o enfraque •
cera m o s sentido s relacionado s a o ritual, esse s
conto s p o d e m ter se mantido , pois fariam ec o em
no s através d o q u e ante s era a p e n a s u m resto,
uma decora çã o d a cena , mas de algum a forma
ligada a ela.
Por outr o lado, p o d e haver conto s e m
q u e isso nà o m uda . a orige m e a permanênc i
a se elevem ao s m e s m o s motivos . Boa part e
da s análise s d e P ro p p baseiam-s e n o estud o d e
ritos d e passagem , e n q u a n t o a sociedad e
m o d er n a é praticament e desritualizada. Nosso
cresciment o n ã o é balizad o po r evento s q u e
ma rq ue m se m equívoc o um a passagem .
P o r é m seguimo s crescendo , digamo s q u e temo s
aind a mais etapa s d o qu e antes , po r isso é natural qu
e u m discurs o sobr e o crescimento , q u e fale
sobr e c o m o passa r d e
Fadas n o Div ã — P si c a n áli s e n a s H is tó ri a s Infanti s
do imaginário entr e as crianças é o q u e
possibilita sua utilização com o se fosse um
brinquedo . Se um a menin a diz para a outra:
uma etapa a outra, sobr e sentir-se de fora e depoi s ser
"seremo s princesas, eu qu er o ser a
aceito num a sociedade , é noss o feijão-com-arroz
do s drama s subjetivos. A sociedad e q u e no s
transmitiu os conto s era aind a ritualizada . ma s j
á n ã o usav a o s mesmo s ritos q u e teria m d a d o
orige m ao s contos , poré m os tema s ainda era m os
mesmos , a angústia de deixar de ser e reinventar-se
em um outr o estágio, e esse segue s e n d o u m dram a
h u m a n o atemporal . Essas história s s e m a nti v er a m
po r ajuda r a e l a b o r a r o s mesmo s sentidos qu e
possivelment e as fizeram existir. Outr o e x e m p l o
desse s conto s q u e p o d e m ter
p e r m a n e c i d o similares, q u a n t o ao s c o n t e ú d o s
q u e despertam e os qu e os fundaram, p o d e ser o
daquele s relativos aos enlaces amorosos : em muitos
deles, antes do final feliz temos um casament o qu e vai ser
a condiçã o dess a felicidade, f u n d a r um a família,
d o lad o d o homem , e muda r de família, do lado
da mulhe r (nu m arranjo tradicional) , sã o quest õe s
q u e atravessara m todo s esses séculos e segue m
se n d o desafios.
Embor a os conto s sejam em si estruturas se m um
sentid o próprio , intrínseco, seguira m existindo ,
pois continua m possibilitand o arranjos q u e têm algo
a no s dizer , n ã o n e c e s s a r i a m e n t e a m e s m a
cois a q u e o r i g i n a l m e n t e podiam significar ,
mas f o r n e c e m e le m e nt o s par a um a nov a
significação . Q u a n t o á s antigas histórias, po r veze
s a s d es m o n ta m o s n o t o d o e reaproveitamo s a p en a
s os tijolos, po r outra s usa mo s uma pared e inteira
q u e agora ganh a u m nov o lugar. S a b e m o s que
o estatuto científico dessas
especulações e frágil, mas com o disse Cario
Ginzburg: A orientação quantitativa e
antiantropocêntrica das ciências da natureza a
partir de Galileu colocou as
ciências humana s nu m desagradáve l dilema:
o u assumir um estatuto científico frágil para
chegar a resultados relevantes, ou assumir um estatuto
científico forte para chegar a resultados de pouca
relevância.J3 2

Opta mo s entã o po r

ousar. A eficácia
psicológica das histórias
infantis
m a das prováveis vantagen s do s conto s
d e fadas folclóricos sobr e as outras
formas de ficção , deve-s e à
u n i v e r s a l i d a d e d e su a
difusão. O compartilhament o de trecho s
Bela Adormecida": a amiga p o d e responder : "e eu a
Cinderela"; e entã o a brincadeira p o d e começar sem
maiore s esclarecimentos . O m e s m o efeito pode ser
obtid o co m personagen s de um d es e n h o animado que
todas as crianças estejam assistindo. O imaginário infantil
abastece-s e de histórias, traços de personalidade de
personagen s e cenários proveniente s da ficção, que são
utilizado s conju nta ment e c o m o b o n e c a s , carrinhos,
bicho s de pelúci a ou super-herói s de plástico.
São elemento s disponíveis para um a combinaç ã o que, esta
sim, será o instrument o de elaboraçã o da criança.
Bettelhei m te m razã o q u a n d o diz:

a criança necessita muito particularmente que lhe sejam


dadas sugestões em forma simbólica sobre a forma
como ela pode lidar com estas questões (os problemas
existenciais) e crescer a salvo para a maturidade.33

Dentro dessa ótica, ele faz sua definição de conto de


fada a partir do pont o de vista do s possíveis efeitos
terapêuticos qu e a trama tenha potencial de gerar, em
detriment o do tipo específico de estrutura narrativa.
Seriam conto s de fadas, então , aquela s histórias que
possue m final resolutivo, as qu e encaminha m as coisas para
um patama r superio r de co mpree ns ã o e elabo• ração.
O cont o de fada é um relato breve , um pequeno drama em
qu e as coisas se complica m bastante, mas possui um
final o n d e tud o se ajeita. Q u e m escuta a história e
entra na trama encontr a um a solução e não fica
d e p e n d u r a d o na angústia.
Nas palavras d e Bettelheim:

O cont o de fada é terapêutico porqu e o


paciente encontra sua própria solução através da
contemplação do qu e a história parec e implicar
acerca de seus
34
conflitos internos neste moment o da vida.

Ou ainda:

A forma e a estrutura dos contos de fadas


sugerem imagen s â criança co m as quai s
estrutura r seus devaneios.3 5

Ness e s e n t i d o , el e frisa a especificidad e e


a individualidad e da elaboraçã o de cad a um como
o q u e p r od u z efeito terapêutico , n ã o a história em
si. Em princípi o isso faz sentido , um a vez q u e ,
apoiados nessa s histórias, os conflitos p o d e m ser
vistos como se fossem de fora.
Graça s a isso, os proble m a s se equaciona m e se
t o r n a m mai s fácei s d e enfrenta r . Po r o u t r o
lado, precisamo s ressaltar, dentr o do própri o argument o do
Di a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Cors
o

autor, a importância cio pape l d a qu e l e q u e escuta , sã o um instrumento, conforme forem usados,


lê ou assiste a história c o m o coleto r cie eleme nto s pode m servir para regressão também . Bettelheim
co m os quais fará um a receita específica, e esta transmite-nos a idéia de qu e o cont o opera na criança um
sim terá um efeito terapêutico. Através dessa ênfase, apoi o correto, b a s t a n d o h a v e r o feliz e n c o n t r o
p o d e r e m o s ampliara crença ness e potencia l da ficção entr e o s d o i s , desd enhan d o um pouc o o
para outro s territórios além do s conto s folclóricos. moment o de vida em qu e a criança está c com o
Dessa forma, estaremos ciando crédit o às escolha s seus pais estão lidando com ela.
q u e as crianças fazem dentro do vasto cardápi o Existe um recurso em psicanálise qu e
imaginári o q u e lhes e disponível nos dias de hoje. evitamos usar e só o fazemos q u a n d o não resta
Bettelheim no s ensina sobr e o potencial outra solução. Freud o chamava de construções em
desse s contos para traduzirem o qu e se passa análise.3 6 Ele ocorre q u a n d o fornecemo s um a
conosco , mas que ainda nà o encontro u uma forma, interpretaçã o par a u m paciente, embor a nà o
uma expressã o adequada, por isso convé m usá-los estejamos completamen t e seguros q u e ela correspond a
para apoiar nossas fantasias ainda sem rosto, ma s à verdad e histórica.3 7 Trata-se de oferecer ao
estamo s inclinados a pensar que isso nà o ocorr e paciente uma estrutura o n d e acomoda r as suas
de forma tao simples e direta. Acreditamos qu e a lembranças, que , por vezes, se lhe apresent a m
dita soluçã o també m vai, de certa forma, a postriori, com o roupa girand o na máquina de lavar. Caiamos uma
definir o esboç o do problema . Muitas vezes, o q u e espéci e de varal, ond e se pod e d e pe n d ur a r peca
sentimo s e indefinido, e uma angústia, um solriment o por peca e assim dar um sentido à carência de
difuso. Uma história p o d e nos emprestar um sentid o significação da história do paciente, fazemos assim
q u e a princípi o não é nosso , mas dá um contorn o ao uma espéci e de piótes e histórica provisória.
noss o sofrimento. Nesse caso , não seria uma verdad e do Na seqüência de unia análise, o pacient e trocará
sujeito qu e se elabora através da trama ficcional. mas po r a orde m d a s p e ç a s muita s v ez e s , tirar a
um temp o funcionaria c o m o se fosse. Ou seja, um cont o alguma s e acrescentará outras, a construção e
de fada p o d e no s empresta r um sentido, sem q u e haja apena s uma corda, um apoi o do qual partir e em geral
um a correspondênci a co m será a ba n do n a d o ou superado. Com os empréstimos de
um problema real. fantasias qu e tomamo s dos conto s de fadas e da
Por exemplo , u m a criança, q u e esteja s e sentind o fiecao infantil, ocorr e algo semelhante : eles tanto
distante dos pais. p o d e acha r no cont o de pode m simples me n t e traduzir nossos sofrimentos
Cinderela uma idéia qu e defina sua angústia: íntimos, co m o da r um a forma e uma inclinação a
acreditar qu e ela está só e a b a nd o n a d a p or q u e algo que nà o estava bem-definido. Nesse sentido,
seria a filha preterida, pensar qu e eles prefere m eles ajudam na construção da subjetividade: por um lado.
os outro s filhos e, a partir disso, fantasiar uma traduzindo o inconsciente em imagens acessíveis e co m
hipótes e sobr e seu sofrimento, quando na verdad e isso aumentand o noss o contat o co m as fantasias
o q u e ela equaci on o u foi també m um problema . ocultas e, de certo modo, sugerindo pauta s para
Na prática , esse s pai s p o d e m esta r distantes nossas aflições, e ainda fornecendo pecas de encaix e para
també m do s outro s filhos, ou seja, nà o existiria essa nossa subjetividade em formação.
hierarquia de afeto. Digamo s q u e o casal parental esteja Urn lugar o n d e isso funciona claramente
envolvid o co m alguma doenç a na família, da são as cantigas de ninar..38 Nesse caso . observamo s
qual a criança nà o que r se o cupa r p o r q u e a faz sofrer, com o elas oferece m um e leme nt o fantasioso q u e
então esse drama de rejeição amoros a lhe ve m a calhar. chega na hora certa para qu e o b e b ê possa
Essa colagem entr e o mal-estar e a interpretaçã o alcança r a tranqüilidade necessári a para dormir.
q u e a criança propô s p o d e dura r un s dias. o u meses , Nossa tradiçã o cultural nos ensina , contra tod o
p o d e ser esqueci d a o u aind a marca r su a bo m sens o consciente , a embalar as crianças
p e r s o n a l i d a d e criando um a certeza d e menos-valia e v o c a n d o figuras gerador a s de medo . as quai s a
e m relaçã o ao s irmãos. Claro, isso vai d e p e n d e r de prio r i pensaríamo s q u e serve m mais para tirar o son
q ua n t o e de c o m o o meio familiar reagiria à sua o do q u e para produzi-lo . A Cuca, o Bicho-Papào e o
en c en aç ã o de rejeitada. De qualque r maneira, ess e Boi-da-Cara-Preta sã o con vocad o s para ajudar a
ex e m p l o hipotétic o só serve para frisar o fato de q u e fazer a transiçã o da vigília ao so n o c
a ficção nà o necessariament e vai traduzir incrivelmente isso funciona.
corretament e os sentimento s da criança.
N o moment o e m qu e algué m mais
Nesse aspecto , no s distanciamo s u m p o u c o precisa d e paz . par a p o d e r relaxar , ab ri m o s a
d e Bettelheim. o s c o n t o s d e fadas n ã o serve m port a par a o s monstros , po r quê? O q u e faz os
neces • sariamente de recurso apena s para o b e b ê s sofrerem antes d e d o r m i r é u m a a n g ú s t i
crescimento, eles a se m contornos , su a subjetividade é aind a
muit o incipiente para dar conta
Fadas n o Div a — Psi c a n áli s e n a s H ist ó ri a s I nf a nt i s
material par a

das sensaçõe s corporais , d o mal-estar difuso


diant e da mãe qu e se ausent a e retorna se m qu e
ele tenh a controle sobr e isso. Q u a n d o lhe fornecemo s
um objeto fóbico. algué m a que m temer, fazemos o
b e b ê da r um passo, aind a qu e falso, ma s
e x t r e m a m e n t e útil n a direção da diminuiçã o cio
sofrimento, através de um primórclio de elaboração
. Transformamo s a angústia em fobia: se eu sei
qu e algo me ameaça , entã o poss o me proteger,
logo a minha mã e p o d e me ajudar, log o esse
a c o n c h e g o qu e ela me dá e bom , logo o bich
o medo nh o n ã o é a minha mãe .
Fm resumo , a relação dua l ganh a um
terceiro e l e m e n t o , q u e p e r m i t e p ô r limite s n
a p e r i g o s a onipotênci a da mãe. O forneciment o
de um objet o fóbico é um encaixe numa
subjetividade simples q u e precisa de ajuda. E ao
mes m o te m p o falso e muito verdadeir o para uni
bebê , q u e . no final da s contas, acabo u dormindo .
Nao e algo própri o d o b e b ê , porqu e foi a m ã e qu e
cantou sobr e o monstr o e n ã o foi a i m a g i na ç ã o
del e q u e o evocou , ma s pass a a se r
propriedad e dele na medida em qu e a cançã o da
mã e funciona, se não fosse adequa do , ele nã o
adormeceri a embalad o nessa música.
Talvez os parágrafos acima possa m causa r
um mal-esta r e m q u e m n ã o est á familiarizad o
co m a psicanálise, afinal estamo s acostumados ,
pel o m en o s no sens o comu m atual, a acreditar q u e
a verdad e está dentr o d o sujeito. Com o entã o alterar u
m destin o co m pautas estrangeiras a um a
subjetividade?
Convivei" é interpreta r os outros , educar ,
mais ainda. Os pais, por exemplo , talvez nã o percebam ,
mas estão sempr e de alguma forma interpretando seu s
filhos. Fac e á fragilidad e d a c r i a n ç a e a o
fat o d e q u e inicialmente ela nã o fala ou se expressa
com dificuldade, é preciso inferir suas vontade s e
temores . Em função disso, os pais avaliam o qu e
está ocorrend o co m suas crianças a partir de seus
humore s e de seu compor • ta mento , atribuind o
significado s q u e á s veze s sã o corretos , ma s
muita s v ez e s sã o i n a d e q u a d o s . D e q u a l q u e r
maneira , precisa m fazer isso. poi s dess a
interpretação virá a assistência de qu e o filho necessita.
O ensaio e erro na interpretação do q u e se passa
co m as crianças é própri o do crescimento, felizes são os
q u e erram menos . Afinal, a subjetividade human a
é feita també m de ruas sem saída, com o um map a q u e
incluísse o s caminho s errados, e m qu e nó s mesmo s
entramo s e muitos roteiros equivocado s q u e no s
foram sugeridos. Um sujeito é balizad o pel o desejei
de seu s pais,
pelo s valores d o mei o o n d e nasceu , pel o espírito
d e um a época . Não existe um sujeito interior
apriori, ele se forma t o m a n d o e m pr e sta d o de fora o
se construir. Nã o existe um eg o pré-
desenvolvimento c o m o se fosse um a se ment e da
verdad e do que vai se r o sujeit o a d u l t o . P o r
isso , é p o ssí v e l tomar e m pr es ta d o p ed a ç o s de
ficção par a construir-se, de qualque r forma vamo s
arrecada r elem ento s de algum lugar. O m e s m o vale
para sugestõe s de pauta que a ficção possa no s
fornecer, cena s ou erradas elas acabam s e n d o efetivas, poi
s t a m b é m é dela s q u e vamos retirar o material para no
s constituir. De qualque r maneira, convé m ressaltar
q u e os estímulo s fiecionais não se i m p õ e m c o m o
estruturantes . po r mais qu e os meios de
com unica ç ã o possa m insistir. A criança e o adulto
escolhem , coletam , d e s p e d a ç a m e corrompem , ao seu
bel-prazer, as fantasias q u e sã o oferecidas , até
que elas s e adapte m á s sua s necessidade s .

Notas
1. Título do original em inglês: The Uses of Enchantment:
the Meaning and Importance of Fairy Tales.
2. Esse fenômeno de intimiclamento das famílias
foi teorizado por Christopher Lasch em Refúgio
num Mundo sem Coração . A Família:
Santuário ou Instituição Sitiada? Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1991.
3. É extraordinário o número de personagens e histórias que
o século XX criou para o consum o infantil e qu
e em pouco s anos desapareceram. Nosso estudo nos
colocou em contato com uma gama ainda mais vasta
do qu e imaginávamos. Dá uma angústia tentar
ap re e nd e r certas lógicas interna s d e
pequenos universos fiecionais. que serão logo mais
descartados pelas crianças, mas esse é um ônu s inevitável
a quem queira trabalhar com elas. Se você
pensa em se dedica r á psicoterapi a de
criança s e nã o tem paciência para entender
algo sobre, por exemplo, Os pokémons, ou algum
similar ou sucedâne o deles, p r o v e n i e n t e do r ei n
o do s animes (desenho s animados japoneses),
talvez seja de repensar a sua escolha. Não é
possível, nem necessário, assistir a TV todos os
dias, mas alguma conexã o com essas produçõe s é
imprescindível.
4. BETTEI.HEIM, Bruno. A Psicanálise dos Contos de
Fadas. São Paulo: Paz e Terra. 2001. Ver nota
na página 158.
5. Ibidem, p. 186.
6. Ibidem, p. 163.
7. Para aqueles cuja infância transcorreu na década de
1960-1970, com o nós, houve uma família Robinson
qu e também ocupo u para muitos o lugar de núcleo
familiar idealizado: a retratada no seriado
norte-
Diana Lichtenstein Corso e Mário Co r s o
cultural, ao aspira r à

americano de televisão Perdidos no Espaço. Era uma


família perdida, com o os suíços, mas em cujo
seio todo o mund o gostaria de se encontrar.
Talvez ela fosse inclusive superio r à família
Robinso n na mensagem de segurança, pois havia
um personagem que só criava problemas, o Dr.
Smith, e nem por isso era expulso da família.
8. BETTELHEIM. Bruno. Uma Vida para Sem Filho, Rio
de Janeiro: Campus. 1990. p. 139.
9. Especialmente Robert Darnton, no livro O
Grande
Massacre de Gatos. Rio de Janeiro: Editora
Graal,
1988. No capítulo: Histórias que os
Camponeses Contam: O Significado de Mamãe Ganso.
Este artigo é um tios ataques mais duros à falta de
perspectiva histórica do livro de Bettelheim.
10. Referimo-nos à valorização da criança com o
um tesouro para sua família, da sua criação com o
uma tarefa nobre e da possibilidade de compreende r
suas incapacidades com o específicas de uma
etapa da vida e não como incompetências. Sobre esse
assunto, sugerimos ao leitor o imprescindível
História Social da Criança e da Família, de Philippe
Aries. Rio de Janeiro: Zahar Editores. 1981.
responsáve l pela pesquisa e difusão deste termo.
11. BETTELHEIM. Bruno. A Psicanálise dos Contos
de
Fadas. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 35.
12. "Estes acréscimos prejudiciais aos contos de
fadas. que aparentemente aumentam o interesse
humano, podem na verdade destruí-los, pois
tornam difícil captar o significado profundo e correto
da história". In: BETTELHEIM, Bruno. .1
Psicanálise dos Contos de Fadas. São Paulo: Paz e
Terra. 2001. p. 249.
13. Ibidem. p. 76.
14. "A etimologia da palavra entretenimento, de origem
latina, vem de inter (entre) e tenere (ter). |...|
Os conceitos referem-se sempre às origens
latinas da palavra e incorpora m a idéia de
'ter entre". O entretenimento nos leva cada vez.
mais para dentro dele e de nós mesmos. Se a
arte nos oferecia o ékstasis, qu e em grego significa
'deixar qu e saiamos d e n ó s m e s m o s ' , talvez,
pa r a no s da r um a perspectiva, o
entretenimento, ao contrário, oferece seu oposto que
é a negação dessa perspectiva". In: TRIGO, Luiz
Gonzaga Godói. Entretenimento: ama Crítica
Aberta. São Paulo: Editora Senac, 2003. p.

15. "Os defensores da expressã o 'cultura de


massa' querem dar a entender qu e se trata de
algo como uma cultura surgindo espontaneamente
das próprias massas. Para Adorno, que diverge
frontalmente dessa interpretação , a indústria
integração vertical de seus consumidores, não apenas
adapta seus produtos ao consumo tias massas, mas
em larga medida determina o próprio consumo". In:
HORKHEIMER, Max e ADORNO, Theodor.
'fartos Escolhidos. São Paulo: Nova Cultural.
1989. (Os Pensadores). IX.
16. "O que. ao contrário, se censura ao apocalíptico é o
tato de jamais tentar, realmente , um estud o
concreto dos produtos e tias maneiras pelas quais
são eles. na verdade, consumidos. O apocalíptico
nã o s ó redu z o s c o ns u m id or e s àquel e
tetiche indiferenciatl o q u e e o ho me m- mass a
mas — enquant o o acusa de reduzir todo produto
artístico, até o mais válido, a puro tetiche - reduz, ele
próprio, a tetiche o produto de massa. E ao invés de
analisá- lo. caso por caso, para lazer dele
emergirem as características estruturais, nega- o
em bloco". In: ECO, Umberto . Apocalipticos
e integrados. São Paulo. Perspectiva. 1979. p.
19
17. Esta e uma regra bem discutível, mas
constatamos que quanto mais desestruturada for uma
criança, mais ela vai usar as personagens caricaturais e
descartáveis d a mídia , a s d e fácil d i g e s t à o
e d e m e n o r complexidade. Esse e o caso tio
personagem de um seriad o cômic o mexicano ,
muit o difundid o na América Latina, u m
heró i trapalhã o c h a m a d o Chapoli n C o l o r a d o .
J u s t a m e n t e , n o s s o pape l enquant o analistas e
não fazer nenhuma hierarquia do possível valor
cultural das escolhas dos pacientes e sim estar
atentos a como eles usam e articulam tais
personagens.
1S. BETTELHEIM. Bruno. A Psicanálise dos Contos de
Fadas. Sào Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 14.
19. Na segund a parte dest e livro, dedica mo- no
s à análise de algumas dessas novas tramas, particular•
mente as qu e marcaram época na primeira metade
do século XX.
20. In: CALITGARIS, Contardo. Terra de Ninguem. São
Paulo: Publifolha. 2004, p. 136.
21. Esta era a opinião de toda a escola
antropológica evolucionista durante muitos anos. Os
antropólogos abando nar a m a idéia há tempos ,
mas o senso comu m a conservou, inclusive
alguns psicanalistas caíram nessa cilada, e ela
impregna certas teorias da psicologia do
desenvolvimento até hoje.
22. "Não voltamos , c o n t u d o , à tes e vulga r
(aliás admissível, na perspectiva estreita em que se
coloca), segundo a qual a magia seria uma modalidade
tímida e balbuciante de ciência: pois nos
privaríamos de todo s os meios de co mpree nde r
o pensament o mágico se pretendêssemos reduzi-lo a
um momento
Fadas no Divã — Psicanális e na s História s Infanti s
canal brasileiro SBT.

ou uma etapa da evolução técnica e científica.


Mais como uma sombra que antecipa seu
corpo, ela é. num sentido, completa com o
ele, tão acabada e coerente em sua
imaterialidade, quanto o ser sólido por ela
simplesmente precedido . O pensament o mágico
não e uma estréia, um começo, um esboço, parte
de um todo ainda nao realizado; forma um
sistema bem articulado: independentemente ,
neste ponto, desse outro sistema qu e constituirá a
ciência, exceto quanto á analogia formal qu e os
aproxima e qu e faz do primeiro uma espéci e
de expressã o metafórica do segundo . Em
lugar, pois, de opo r magia e ciência, melhor seria
coloca-las em paralelo,
com o dua s formas d e conhe cim ent o ,
desiguai s quanto aos resultados teóricos e práticos
(pois, sob este ponto de vista, e verdade qu e a
ciência se sai melhor que a magia, se bem que a
magia preforme a ciência, no sentido qu e
triunfe também algumas vezes), mas nao pelo
gênero de operações mentais, qu e amba s supõem
, e qu e diferem meno s e m natureza que
em funcao dos tipos de fenômeno a qu e se
aplicam". In: LEVI-STRAUSS, Claude. O
Pensamento Selvagem. São Paulo: Editora
Nacional
e Editora da I NP. 1970, p. 33.
23. "Assim com o há uma coerênci a básica
entr e a natureza nao realista das formas literárias dos
gregos, sua posição moral altamente social ou
cívica e sua preferência filosófica pelo universal,
assim também o romance modern o está
intimamente associado, por um lado, á epistemologia
realista da era moderna e. por outro, ao
individualismo de sua estrutura social. Nas
esferas literária, filosófica e social, o enfoque
clássico no ideal, no universal e no coletivo deslocou-
s e por complet o e ocup a o modern o
campo de visào sobretudo o particular
isolado, o sentid o a p r e e n d i d o direta ment e e
o indivídu o autônomo". In: WATT, Ian. A.
Ascensão do Romance. São Paulo: Companhia das
Letras. 1990, p. 57.
24. Ibidem, p. 27.

25. Esta e a tese que desenvolveremos na segunda parte


deste livro, analisando histeírias do século XX.
26. SNICKET, Lemony. Mau Começo (vol. I), A
Sala dos Répteis (vol. 2), O Lago das
Sanguessugas (vol.
3). Serraria Baixo Astral (vol. 4). Inferno no
Colégio Interno (vo\. 5) e outros. São Paulo:
Companhia das Letras, publicados a partir de 2001.
27. A idéia original de Chquititas foi do canal
argentino Telefé, criada em 1993. O e n o r m
e sucess o do programa chamou a atenção do
32. In: GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblema ,
Sinais: Morfologia e história. São Paulo:
Companhia das Letras. 1989.
que passou a produzi-la em 1997. A série durou 33. BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos Contos
700 capítulos, que iam ao ar durante o período letivo, ao longo de
de três anos. Fadas. Sao Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 15.
3 1. Ibidem. p. 33.
28. A complexidade das tramas nesse gênero literário será
33. Ibidem, p. 10.
sempre fornecida pela situação criada, nào por uma
ambigüidad e da personagem . Ela pode até passar por 30. FREUD, Sigmund. Construções em Análise
transformações, descobrirá a coragem, a capacidade de amar (I937). Obras Completas. Vol XXIII. Rio de Janeiro:
ou alguma força que desconhe• cia ter, mas isto só ocorrerá lmago,
porqu e recebeu alguma oportunidad e em uma aventura ou 1987.
através da ajuda de algum auxiliar mágico, nunca por um 37. Como a escuta analítica ocorre em
processo interno. transferência, é provável qu e as palavras do analista
provenham do próprio acervo do paciente,
29. BE'ITTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos Contos de apena s avançam um pouc o dentro de sua
Fadas. São Paulo: Paz eTerra . 2001. p. 15 mesma lógica. Além disso, é desejável qu e o
30. "Ela (a criança) , co m o todo s nos , está a todo profissional tenha uma extensa análise pessoal
moment o num tumulto de sentimentos contradi- e supervisione regularmente seu trabalho, de
tórios. Mas e n q u a n t o os adulto s aprenderam a mod o a nã o invadir o discurso do p a c i e n t e
i n t e g r á- l o s . a crianç a é e s m a g a d a po r estas co m colocaçõe s improcedente s e
ambivalências dentro de si mesma. Experimenta a mistura provenientes de sua própria subjetividade.
de amor e ódio. desejo e med o dentro de si mesma com o
38. Existe um excelent e livro psicanalítico
um caos incompreensível". Ibidem. p. 91 .
sobr e as canções de ninar ond e i.sso está
31 . PROPP, Vladmir As Raízes Históricas do Conto mais explicitado, trata-se de O Acalanto e o Horror, de
Maravilhoso. São Paulo: Martins Pontes, 1997. Nesse livro o Ana Lúcia Cavani Jorge, publicado pela Editora
autor exaustivamente tenta provar essa idéia quant o a origem Escuta, cm 1988.
ritual de muitos contos.

182
Segunda
Parte
- HISTÓRIAS CONTEMPORÂNEAS -
a apoia r e elaborar seus conflitos íntimos, essas
histórias estão longe

té aqui . este livro foi dedica d o


ás histórias clássicas de origem
folclórica, salvo um a qu e outra
q u e tev e tanta aceitaçã o
junto d a s cri a nç a s q u e s e
t o r n o u parte da tradição . També
m até est e p o n t o , e s t i v e m o
s mai s próximo s de
Bettelheim. seja p o r q u e
partilhamos certas
interpretações o u porqu e a s questionamos .
Agora gostaríamos d e partir d es d e o n d e Brun o
bettelhei m parou, f a z e n d o u m a p e r g u n t a q u e
el e n ã o fez: existiriam conto s de fadas modernos
?
De certa forma, essa questã o é um a
contradiçã o em termos, já q u e o n o m e contos de
fadas serve para designar trama s centenárias ,
fantasias antigas , mas mutantes e ainda úteis.
Talvez seria melho r indagar d e o ut r a forma :
e x i s t e m h i s t ó r i a s m o d e r n a s e contemporâneas
capaze s de estimula r a imaginação das crianças e
de ser-lhes tã o úteis c o m o os conto s de fadas foram e
continua m sendo ? Em outra s palavras, existem
candidato s c o nt e m p or ân e o s para compartilhar o lugar
q u e o cont o de fadas já ocupa ?
Ao long o de nossa experiência e do s estudo s qu e
realizamos, temo s observad o que , embor a as
crianças sigam u s a n d o os co nt o s tradicionai s par
de ser as únicas qu e elas sabe m de cor, lembram
suas p e r s o n a g e n s , relêem , pede m qu e lhe s
s e j a m repetidament e contadas, q u e passe m mais uma
vez o filme ou assistem à TV, enfim, nã o sã o as únicas a
qu e se apegam . Muitas histórias nova s as têm cativado.
Nossa cultura, n o entanto , n ã o di s p õ e d e u
m nov o term o qu e design e essa s narrativas
m o d e r n a s . Talve z e m funçã o d e su a
heterogeneidade , seja impossível e desnecessári o
englobá-la s nu m a categori a qualquer . D e qualque r
maneira, elas nã o sã o a m esm a coisa q u e o s seu s
precursores , o s conto s d e fadas folclóricos. Inclusive
porqu e a moder nida d e apresent a questõe s diferente s
daquela s d e nosso s antepassados . Para da r algun s
exemplos , p o d e m o s evocar Pinacchio, Harry Potter,
Peter Pan e Winnie-the-Pooh.
Embor a Pinocchi o possa ser associad o a certos
persona gen s da tradição , q u e sã o filhos inúteis, tolos
e d ã o p r e o c u p a ç õ e s ao s seu s pais, c o m o pensa r u
m persona ge m q u e foge da escola? A escola para
todo s
(e nossa s dificuldades para co m ela) é um a conquist
a recente , portanto , essa s ó p o d e ser um a temática
nã o tradicional n o c a m p o d a ficção. É o q u e dizer d e
um a história, c o m o Harry Potter, cujo cenári o central é
um a escola! Pete r Pa n n ã o q u e r crescer, isso
t a m b é m é inédito n o terren o da s fadas, alguma s
histórias falam de dificuldades e sofrimento s de ir
adiant e na vida, ma s n e n h u m a fala d e p e r s o n a g e n
s q u e s e aterra m
Fadas n o Div ã — P s i c a n á l i s e n a s História s Infa nti s
segund a parte do livro. Qua nt o à s mais recentes ,
temo s d e da r t e m p o a o t e m p o : afinal,

o b s t i n a d a m e n t e à infância . P o o h p e n s a c o m o
a s crianças be m peq uenas , sua graça prové m dess a
lógica r u d i m e n t a r , porém , no s conto s d a
t r a d i ç ã o a s personagen s sa o se mpr e crianças maiore s
q u e j á anda m sozin ha s n a floresta, joven s o u
adultos . E m e s m o q u a n d o os protagonista s sa o
crianças, a maio r part e da s histórias trata de c o m
o sair da infância. Só hoje, co m a extrema
valorização dess e m o m e n t o da vida, já n ã o e xi si e
um a urgênci a e m sair. fo r isso . u m
personage m c o m o Pooh, q u e represent a um a
infância protegida e interminável, faz sentido .
Dentr o d es s e raciocínio , um a q u e s t ã o s e
faz p r e s e n t e : q u a i s seria m a s história s infanti
s mai s importantes criadas pos-conto s de fadas? Quai s
histórias atuais teriam potencial para ajudar as crianças
em seu s processo s subjetivos? A arte enfocad a na
infância te m crescido exponencialmen t e nas ultimas
décadas , e fica difícil escolhe r entr e o g ra n d e a c e n o
q u e a literatura, o cinema e a TV têm oferecido . Por
isso. optam o s po r partir d e u m critério be m
d e m a r c a d o : e s c o l h e mo s narrativas qu e tiveram cert
o sucess o junt o às crianças e nã o as qu e nos
parece m mais ricas.
Ness e p o n t o , a g lo b ali z aç ã o n o s ajuda ,
poi s c o n s e g u i m o s a c o m p a n h a r pe l o m e n o s a s
g r a n d e s c o rr en t e s d e interes s e d o p ú b l i c o
infantil. Consi • deramo s qu e isso e pel o meno s
um a garantia d e q u e essas histórias têm algo a
dizer às crianças. Insistimos na idéia de q u e , em
termo s de ficção infantil, ou be m elas gostam ou o
projeto não vai adiante . Um sucess o ness e ca m p o e
um encontr o feliz entr e q u e m tem algo a dizer, sab e
fazê-lo de uma forma interessante, e as
necessidades desse público qu e é
s a b i d a m e n t e exigente , já q u e se distrai co m a maior
facilidade. Além disso, ne m toda s as boa s histórias e
as belas imagen s têm a o p ort u ni da d e de
encontra r se u público . Por exemplo , o mega
sucess o Hiarry Potter só existiu pela teimosia de sua
autora, J.K. Rovvling, q u e tev e seu livro recusad
o po r várias editoras . Um c â n o n e da s p r o d u ç õ e
s mais importante s d a cultur a dirigida à s
crianças nã o está definitivament e estabelecid o ,
ma s acreditamo s que , se algum dia for feito, as
histórias qu e escolhemo s irão certament e estar be m no
ranking. Q ua n t o ao s conto s d e fadas, um a certa
escolh a
darwinia n a j á havia d e c a n t a d o a s história s q u
e s e t o r n a r a m cl ás si ca s , m a s e m r e l a ç ã o à s
h i s t ó ri a s m o d er n a s aind a n a o p o d e m o s aplicar
ess e critério. Dessas, alguma s continua m s e n d o
lembrada s muit o além de seu te m p o de origem ,
pela a d e q u a ç ã o da sua fórmula, pela genialidad e da
trama. Esse é o cas o da s histórias mais antigas da
que m garant e qu e Harry Potter. qu e hoje
qualquer crianç a sab e q u e m é . amanh ã ser á
lembrado ? O u n i v e r s o de O Mágico de Oz, q u e
Fran k Baum escreveu , tev e no s EUA a m e s m a
força q u e Rovvling tem agor a co m seu bruxinho . ma s se
n ã o fosse o filme da Metro talvez, n e n h u m a criança
de hoje soubesse q u e m é Doroth y Gal e d o Kansas.
Enfim. certas histórias e personag en s sobrevivem se u
t e m p o , vã o ao s p o u c o s s a i n d o d a literatura e
en tr an d o na fala popular . Afinal, q u e m n ã o conhece
o nariz do mentiros o Pinocchi o ou nã o sab e qu e Peter Pan
nã o suporta crescer, às vezes sem m e s m o conhecer a historia
original? E.sse é outr o critério q u e no s parece importante ,
o pta m o s entã o po r ficçòes q u e desborda- ram de sua s
histórias para a cultura, em q u e ou uma persona ge m
ou um cert o mot e entra na linguagem cotidiana.
P.ssa é, para nós , a certeza de uma genuína contribuiçã
o para seu t e m p o . Por e xe m p l o , no Brasil p o d e m o s
c h a m a r um a crianç a sujinh a d e Cascào
(embor a co m significado preexistente , hoje ele passa
pel o personage m de Mauríci o d e Sousa) ,
uma comilona , de Magali: ou um dislálico de Cebolinha;
e, se os outro s no s en te n de m , é p or q u e estamo s
diante de algo q u e faz um diálog o marcant e co m a
cultura d e seu t e m p o .
Mesmo assim, alguma seleçã o teve de ser feita: às veze s
es co l he m o s certa trama em funçã o da maior
familiaridade (po r termo s sido atravessados por essa
ficção, que r na vida privada, que r na clínica), ou pela
facilidade de abrangê-la teoricament e (alguns universos
mágico s sa o mais simple s e en t ã o mais
didáticos). Ta mbé m ho uv e situações em q u e recuamo s
diante das dificuldad e s p r o v e n i e n t e s d a vastidã o d o
material
(especialment e no cas o do s super-heróis). De qualquer
forma, acreditamo s qu e a amostrage m é significativa e
convidamo s os colegas para qu e aceitem os desafios
de interpretar as histórias qu e julguem importantes e
qu e nã o estão contemplada s neste volume. Afinal, existe um
bo m nú mer o de personagen s e histórias qu e pedem maio r
est u d o a respeit o de sua influência sobre as
subjetividades em formação.
E m toda s as hi st ór ia s dest a segund a
parte, partimo s da leitura d o s originais, ma s nã o desprezamos
as versõe s posteriores . Afinal , e s s a s narrativa
s costuma m se r apropriada s po r outro s
escritores, ilustraclores, editores , adaptada s para teatr o e
cinema. Muitas vezes , é o cruza ment o de dua s
versõe s que realment e imortaliza e export a par a
nova s paragens um a história. Por e xe m p l o , c o m o
co m e nt a m o s acima, s e m o filme da Metro , O
Mágico de Oz seria ura f en ô m e n o local e de
m e n o r importância . Ou ainda,
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o
Corso

mesmo uma fábula co m forca própria , c o m o


PeterPan, deve aos Estúdios Disney um p o u c o de se
u sucesso . Como nosso objetivo foi privilegiar a
variedade , abrangendo o maio r n ú m e r o de
história s possível , fomos obrigados a estuda r a pe n a s
parcialment e certos universos m á g i c o s . P o r
e x e m p l o , o c u p a m o - n o s basicamente da história
funda dor a q u a n d o analisamo s o mundo Mágico de Oz
ou a história de Harry Potter, a vastidão e a
riquez a de ss e s universo s ficcionais pediriam um
livro c o m o este só para conta r todo s os detalhes de
suas tramas. Já co m a Turm a da Mônica o que
aconteceu foi um a imersão , tant o a qu e tivemo s
quando pequenos , q ua n t o mais recentemente , q u a n d o
nossas filhas atravessaram sua infância a c o m p a n h a d a s
dessas aventuras.
Algumas personagen s do s quadrinho s
fora m motivo de paixão adolescent e para nó s e as
pessoa s da nossa geração. Por isso mesmo , jamais
defendería • mos a tese de qu e Mafalda, Charlie
Brovvn ou Calvin são personagens da cultura
infantil. Há crianças q u e lêem Mafalda por indicaçã
o do s pais e até se identi• ficam com seu estilo
crítico, ma s certament e n ã o enten -
de m d a missa a m e t a d e . Q u a n t o a o
m u n d o d o s Peanuts. temo s o cachorrinh o Snoopy ,
q u e se incumb e de fazer a intermediaçã o entr e os
p e q u e n o s e grande s leitores das tiras. Calvin, po r
sua vez, é tã o sarcástico a respeit o da infância
e da família, q u e é precis o ter atingid o n o
mínim o a p u b e r d a d e para c o m p r e e n d e r seu
p on t o de vista. Eles são personage n s crianças para a
delícia do s crescidos , q u e deposita m nele s o
melho r de sua curiosidade , irreverência e
perspicácia. Essas persona g e n s crianças, habitante
s d o rein o d o humor , funcionam co m o u m
revelado r da s agrura s d o m u n d o m o d e r n o ,
neurótic o e caótic o q u e construímos . D e
qualque r maneira , vale aqui perguntar-s e po r q u e
é à voz da s crianças q u e atribuímo s essa sabedori a
crítica? Graça s â atualidad e da s quest õe s
trazidas pelas
pe rs o na g e n s q u e c on v oc a m o s , nesta segund a
part e do livro foi possível transcende r o
territeírio do cres• ciment o e do s reveze s do amo
r e da identificação q u e polarizaram a primeira. No
qu e se segue , o leitor encon • trará uma análise da s
peculiaridade s da infância con • tem porâ nea , do
tipo de família e de escola q u e consti• tuímos .

185
Capítulo XIII
A LÓGICA DA INFÂNCIA EM
PROSA E VERSO

Winnie-the-Pooh
Investiment o familiar na e duc aç ã o das criança s - Valor social da infância
m oder n a A lógica d o pe n s a m e n t o infantil: animismo . egoc entrismo ,
pe n s a m e n t o mágico , c o m pr e e n s ã o literal da linguage m - A importânci a do
diálog o co m as crianças - Amig o imaginári o

Poetry and hum s aren't things wich you


get, they'r e things wich get
you. And all you can do
is to go wher e they can find
you."1

innie-the-Poo h e as sua s histó• popularidad e , s e n d o hoje um elos personage m


rias sã o um a important e repre • mais rentáveis d o impéri o Disney.
sentaçã o do s encanto s e Mesmo antes do primeiro livro ele Pooh.
pro • blema s cia infância Milne e seu urso já haviam se consagrad o por
m o d er n a . É um a história escrita meio ele uma coletânea de poesias, publicada em 1924,
em 1926. po r Alan Alexande r chamada Quan- do Éramos Muito Jovens. Pooh foi um
Milne. um r e c o n h e c i d o p oe t a fenômen o ele mídia praticamente desd e o começo , ele
britânico , q u e j á fazia surgiu, com o nome ele Edwar d Bear, num a poesia
sucess o co m o públic o intitulada Teddy Bear. Na época ele seu lançamento, os
infantil. O s direito s livros ele Milne dominaram as listas de best sellers
autorais foram c o m pr a d o s po r Walt Disney (o primeir o britânicas por vários anos, e o sucesso deles n ã o
desenho a n i m a d o saiu em 1966), e na s sua s p o d e ser dissociado do trabalho de Ernest Shepard,
m ã o s Pooh conquistou , no m u n d o , o sucess o q u e ilustrador qu e deu forma a Pooh.
já tinha na esfera da língua inglesa. Nã o de m o r o u H o j e , impulsionad a pela divulgaçã o elos desenho s
muit o par a que o ursinh o se igualass e ao dos Estúdios Disney, a figura de Poo h é uma
pr ó pr i o Mickey em image m
Fada s n o Div ã — P s i c a n á l i s e n a s História s Infa nti s

qu e s e estende , epidêmica , sobr e u m n ú m e r o As ilustrações segue m o m e s m o caminh o de um


incontá• vel de objetos infantis e inclusive apoi o concreto . Shepar d realizou seu s desenho s basea•
adolescentes . Essa disseminaçã o se dev e a um forte do nu m lugar real: a casa de c a m p o do s
e m p e n h o comercial , é certo, mas a escolha do produt o Milne, em Cotchford, próxim a a Ashdow n Forest.
atend e ao s capricho s d o público . A cara d e Pooh , Não apenas o ambient e foi fielmente retratado ,
estampad a po r todo s o s lados , p o d e ser u m bo ta m b é m o menino e seu s bri n q ue d o s verdadeiro s
m retrat o d a idealizaçã o d a infânci a inspiraram os desenhos, c o m o já havia ocorrid o
contemporâne a e d o grand e valo r qu e co m os escritos do pai.
r e c e n t e m e n t e atr i bu í m o s a es s e p e r í o d o d a Esse lastro de realidad e da história rende u muitos
vida . I m a g i n a m o s a s criança s com o um a dissabore s ao seu protagonista, tant o maiore s à medida
e s p é c i e d e bichinho s de pelúcia animados , inocente q u e ele foi crescen d o e se d a n d o cont a de seu
s e graciosos , a q ue m q u e r e m o s oferecer u m m u n d o papel. Christophe r Robin Milne se m p r e foi discreto,
protegido , feito de fantasia e p e q u e n o s mimos . deixando b e m claro q u e a infância retratada na
c o m o o do ursinho . s histórias de Poo h era uma criação literária de
Pooh não e apena s com o uma criança, ele funciona seu pai e que ele n a o se reconheci a nela.
com o um tradutor e divulgador da lógica infantil. Ho uv e m e s m o uma época em q u e se revoltou,
Ele pens a c o m o uma criança p e q u e n a , e sua s declarand o qu e seu pai não era um pai
historias explicitam seu m o d o de raciocínio. Além verdadeiramen t e dedica do . De sua s palavras ficava
disso, está sempre cantando, comand o para si a impressã o de q u e a figura do pai, o narrador
mesm o o q u e está ac o nt ec e n d o e e nc o ntr a n d o do s contos , era tã o distante da realidad e quant o
nas músicas conforto e soluções para os seus a do m e ni n o era da sua personalida d e literária.
problemas . Essa can tarolanç a também é um Era talvez uma tentativa dese sperad a de esclarece r o
mecanismo infantil revelado: a infância precisa de público de q u e ali havia apena s personagens , tão
muita voz. ela precisa falar e escutar as coisas para ficcionais quanto um urso de pelúcia falante.
entendê-las. Seus esforços foram inúteis, durant e toda a
Acreditamos q u e a popularida d e de Poo h é entã o vida tev e de suporta r a tietage m do público ,
mai s d o q u e u m f e n ô m e n o m e r c a d o l ó g i c o ávido por conh ece r o verdadeir o Christophe r
b e m planejado. Consumimo s esse personage m pela sua Robin. O mesmo destin o tiveram seu s
fun• ç ã o d e r e p r es e n t a n t e idealiza d o t a nt o d a b r i n q u e d o s de infância, foram adquirido s po r uma
infância c o n t e m p o r â n e a , q u a n t o d o q u e s u p o m o s verdadeira fortuna e fizeram turnês durant e ano s pelo
q u e ela s precisam recebe r d o seu ambiente : muita s Estado s Unido s e Inglaterra.
atençã o sobr e seu m o d o de ver as coisas, um a Associar algum a v er da d e a um text o ou um
escut a q u e auxilie a encontra r soluçõe s para suas filme é fonte de um prosp er o gê n er o literário: as
pr e oc u pa ç õ e s e muito di álogo , t u d o isso par a biografias e os romance s históricos. O apel o à
evita r q u e s e p e r ca m e m raciocínios circulares e experiência real so a forte, c o m o se a licçáo n ã
hipótese s mirabolante s sobr e o m u n d o qu e as o tivesse tant o valor, c o m p a r a d a a alg o
rodeia. realment e ocorrido . Um relato realist a
funcionari a e n t ã o c o m o um a matriz mais
confiável de experiênci a e ensina mento s .
Uma história real Qualque r um qu e tenh a passad o pela experiência
de narrar um trech o de sua vida para outr o é capaz
O encanto das palavras de Milne e das imagens de percebe r qu e o relato se transforma num a peç a de
de Shepard tem mais um responsável: um ficção: certa s parte s d o oc o rri d o sã o
menino chamado Christopher Robin Milne, privilegiadas , outras convenientemen t e esquecida s
filho do escritor, cuja infância serviu de apoio ou minimizadas, assim co m o tod o o to m da
para esta criação. Milne contou histórias envolvend o narrativa será o q u e convier a que m conta o
o nom e real de seu filho e de seu urso de pelúcia, Winnie- conto . O contrario é verdadeiro , a lite• ratura
the-Pooh . O brinqued o foi batizad o co m ess e será tant o m el h o r q u a n t o mai s contive r dos
n o m e em hom ena ge m a uma ursa domesticad a do aspecto s mais recôndito s da alma do seu autor, trata-
zoológic o de Londres: era a mascot e de um se de um a verdad e qu e se imiscui entr e as
palavras, por mais qu e a personage m e o cenári o
regimento , qu e a havia trazido do Canadá. Por
sejam totalmente diversos do vivido po r q u e m
ocasiã o da partida do s soldado s para o front,
escreve . Temo s assim a ficção o n d e se supõ e
Winni e tev e de ir mora r no zoológico. Em função
estar a realidade, e a verdade o n d e se esper a
de sua docilidade, ela era a maior atração do lugar, já
encontra r apena s ficção. Mas o público, c o m o b e m
q u e era possível chega r pert o e tocá-la, e o filho constato u o p o b r e Christopher Robin, não gosta
de Milne era um de seu s admiradores .
de sabe r disso.

188
Di a n a Lic h te n st ei n Cors o e Mário Co r s o
mundo.

Retrato e moldura da nova infância


curiosidade do publico relativa à vida do filho
d e Milne d e v e u - s e a o fato d e q u e
ele s representaram a infância com o achamo
s qu e deve ser. Essa relação pai-Hlho, tão
próximos,
compartilhando o mesm o mund o imaginário,
construí• do pelo pai com os elementos da infância
do filho e a partir de seus interesses, esta be m na
medida do qu e se espera qu e ocorr a num a bo a
família. Na história . Christopher Robin habitava
um m u n d o aconchegante , cercado de brinquedos e
estímulos adequados . Ocupar- se das crianças é hoje uma
necessidade cultural imperiosa, já que é assim, qu e bo m
seria se houvesse també m nessa empresa um caminho
seguro para a felicidade do filho e a garantia de sucesso do
relacionamento familiar. Coub e a Christopher Robin, o
verdadeiro, lembrar qu e nã o e tão simples assim, qu
e po r mais dedicad o qu e um pai
.seja, o que se passa de pai para filho é permead o també m
por neuroses e conflitos.
A compreens ã o da especificidad e da infância, ou
seja, de qu e os pequeno s têm um
fu n ci on a m e nt o particular e necessidade s especiais , não
e muit o antiga na história humana . Foi soment e a
partir sécul o XVII que começaram a se registrar
escritos e práticas q u e retratavam alguma
pr e oc u pa ç ã o moral e pedagógic a com o cuidad o e
a e d uc aç ã o da s crianças. È precis o ler a história
social da infância, tal c o m o relatada pel o historiador
francês Philipp e Aries..2 para crer o q ua n t o é recente
a c o m pr e en s ã o da especificidade do funcio• namento
mental da s crianças, assim c o m o as práticas
educativas condizente s co m ess e m o d o d e pensar.
Seres hu mano s nasce m fracos, incapazes para
a vicia independente. Diferentemente de alguns
animais. chegamos ao m u n d o física e mentalment e
inválidos. Os bichos conta m co m um aparat o de
capacidade s e ou instintos ca p az e s de sustentá -lo s
m i n i m a m e n t e quando nascem. Nós nã o somo s capazes ne
m de segurar o peso da nossa própria cabeça. No intelecto,
a mesma lentidão se reproduz, subjetivamente somo s com o
bebê s marsupiais. Mesmo do lado de fora, precisamo s
ainda. por um bo m período , ser abrigado s em
uma bolsa. estar acoplado s ao s braços, ouvir a
voz e recebe r o carinho da mã e ou substitutos,
de o n d e tiramos um mínimo d e c on f ort o .
C o n v é m s e m p r e le m b r a r a s pesquisas do
psicanalista René Spitz,3 qu e constato u que um
beb ê p o d e chega r inclusive a morrer se nã o for
objeto de alguma manifestação amorosa. Na ausência dessa
espéci e de bolsa afetiva, se nã o for important e
para alguém , el e n ã o se desen volver á e s e q u e
r se alimentará, p er ec e n d o po r falta de lugar no
189
Essa com plicaç ã o é també m berç o da
riqueza subjetiva h u ma n a . Na mesma medida
em qu e fomos p e r d e n d o capacid ade s doada s
pela natureza, foram se refinand o nossa
inteligência e sensibilidade. Quas e tu d o em nó s se
subordin a a um processo mental, fruto de q u e resta
pouc o do automatismo biológico, bastante r e du zi d o
às funçõe s vegetativas. Por isso. para os
h u m a n o s cresce r e lento e trabalhoso.
Só muito tardiamente a nossa sociedade passou
a levar em conta q u ã o demorad o é o processo
cha mad o infância. Inclusive ele foi se tornando
mais extens o na medid a em q u e foi recebend o espaço
para se expressar. Nas socie dade s pré-modernas ,
as crianças crescia m compartilhand o o trabalho e a
promiscuidade doméstica. a p uberdad e era sinal de
maturidade sexual, dali para a frente, casa r e
procriar já eram Lima realidade . Aos poucos ,
foi se instalando a necessidade de diferenciar a
vida do s adultos e das crianças, assim c o m o de
lhes dar o te m p o e os estímulos qu e elas
requeria m para sua evolução . Foi preciso admitir
que , além de lento, o cresciment o da s crianças
implica muito investiment o por p a n e dos adultos,
criar passou a eqüivaler a educar . A o ocupar-se
das crianças, fora m sendo
descoberta s suas necessidades especiais, assim
c o m o o fato de qu e seu pensament o funeionava com
uma lógica particular. Uma das primeiras
manifestações a partir da s quais foi constatad o esse
sentimento de infancia foi o encantament o do s
adultos com as gracinhas das crianças. Ariès pesquiso u
escritos (diários, cartas) de senhora s abastadas qu
e se revelaram, para os historiadores sociais, boa fonte
para a reconstituicao da vida cotidiana do
passado. Elas passaram a incluir em sua correspondênci
a o relato das peculiaridade s (ditos, gestos ou
crenças) de filhos e neto s co m o s en d o objeto
de admiraçã o e encanto , algo dign o de ser
com entad o . O fascínio co m as crianças tornou-s e
um valor social a ser exibido , ganho u status
de prestígio. Chego u a pont o de algun s
moralistas da époc a escrevere m textos de
repugnânci a a essa atitude, qu e para eles fazia
do s p e q u e n o s algo com o macaquinho s da Corte.
É a partir do moment o em q u e criança deixa de
ser um adulto em miniatura, send o objeto de
uma atenção especial, qu e passa a ser socialmente
valorizada a tarefa de se ocupa r delas. Mais qu e
isso, essa etapa da vida passou, cada vez mais, a ser
considerada com o a formação de uma pessoa, fonte
de todas as virtudes, capacidades e traumas qu e ela
terá na vida adulta. O processo qu e se segue e qu e
chega nos dias atuais, resulta num a hipervalo- rizaçâo da
infância. A criança é considerada com o uma
semente , na qual é necessário colocar dentr o tud o o
qu e vai germinar depois . Foi aumentand o a
ocupaçã o e a
Fada s n o Divã— P s i c a n á l i s e n a s História s Infanti s
e permitira m interessar-se pel o jeito q u e
seu filho pensav a e falava. Provavelment e
a infância
pr e oc u pa ç ã o da socieda d e co m a elabora çã o
dess e moment o inicial, a começa r qu e ela deverá ser
mantida em um lugar protegido, ond e possam ser 190
controladas as variáveis de sua formação.
O s escrito s par a criança s n ã o era m
n e n h u m a novidad e em 1926, a própria língua
inglesa já havia, ante s de Milne, d a d o orige m
a Alice no País das Maravilhas (por Levvis Carrol.
1865). O Pequeno Lorde
(po r Frances Burnet, 1886). PeterPan (po r J.M.
Barrie,
1911), As Aventuras de Peter Rabbit(por Beatrix
Potter,
1902), só para citar alguns . Esses foram autore s
q u e dera m origem á literatura infantil, levand o
em cont a sua necessidad e d e misturar magia a o p e q u e n
o m u n d o familiar e cotidian o qu e constitui sua
realidade . É pro • vável, no entanto , qu e o sucess o de
Pooh e Christopher Robin tenha ocorrid o po r ser uma
da s narrativas pio • neiras, além disso, muito
acertada , dess a nov a con • cepçã o da primeira
infância. A especificidad e de Milne é a de ser mais
qu e um text o literário: é um tratad o pedagógi c o
intuitivo.
Milne não fala maravilhas da s crianças, ne m
lhes oferece um lugar incrível c o m o a Terra do
Nunca de Peter Pan. Embora tud o ocorra num a
floresta encan • tada, o m u n d o d e sua s perso nage n s é
p e q u e n o , c o m o o da s crianças q u e o lêem ou
assistem. Se as crianças e seu s pais têm escolhido , no
s últimos q u a s e 80 anos , Pooli para se divertir, se
dev e ao mérit o de o escritor narra r as histórias
de nt r o da lógica menta l infantil, descobrind o a
orige m d e seu s equívocos , co m graça e respeito.
As histórias de Milne até pode m ser
edificantes, moralistas, mas essa nã o é sua essência.
Anos depois , esse m o d o de pensa r ganho u um a traduçã
o teé)rica, é a postur a pedagógic a declutível d o s
en si n a m en t o s d o genebrin o Jea n Piaget. Com o dizia
Freud, em assunto s psicológicos, a literatura tem a
capacidad e de antecipar conhecimentos , ela constata
realidades internas muito antes qu e qualque r tipo
de ciência possa descreve r e explicá-las . C o m o a
s crianças , o urs o entend e a s metáforas
literalmente, sua relação co m a língua é de
freqüente desentendimen t o e confund e o real
com o imaginário.
Q u e m m el h o r tradu z ess a lógica infantil
é o própri o Pooli, na o o menino . A
autenticidad e dess a criança retratada n o ursinh o
provavelmen t e p o u c o te m a ver co m Christophe r
Robin, cuja realidad e é um a cilada. Pooli é
provavelment e o retrato da sensibilidade de um poet a
remetid o às sua s memória s mais remotas . Fora m estas
q u e s e despertara m q u a n d o ele s e torno u pai, elas lh
q u e aparec e tão b e m retratada nas histórias de Pooh é mais a
de Alan Alexande r Milne. Send o um poeta, ele eleve ter
sido , de s d e muit o p e q u e n o , um observador atent o da s
palavras e seu s efeitos.
Hoje Wínnie-lhe-Pooh dev e sua popularidade aos filme s
da Disney , ma s o text o origina l deve ser
recuperado . Nas telas, um p o u c o da magia das palavras de
Milne se perde , embor a deva mo s admitir que a Disney
fez um trabalh o be m coerent e com a versão original.
Para os paíse s q u e precisa m de tradução, talvez seja
o cas o de um conselh o q u e o psicanalista h ú ngar o Sando
r Perenezi de u ao s psicanalistas de todo o m u n d o : o livro A
Interpretação dos Sonbos de Freud, deveri a ser reescrito em
cad a língua, pois cada uma te m um simbolism o
p r ó p r i o e jogo s de palavras intraduzíveis q u e fazem
sua riqueza . Talvez a saída seja q u e cad a língua encontr e
o seu Milne para brincar c o m as palavra s n u m jog o tal
q u e as crianças se r e c o n h e ç a m . D e q u a l q u e r forma ,
m e s m o com a barreira da língua, o Urso Poo h segu e
com o um bom c o m p an h ei r o para fazer as crianças
pensarem .

As aventuras e os amigos de Pooh


O ursinho Pooh não tem grandes aventuras, a s
histórias s ã o d e u m a simplicidade
surpreendente. Ele tem objetivos muito
simples, como comer muito mel. se divertir
cantaroland o e estar próxim o da s pessoa s de que gosta, c o m o
C h r i s t o p h e r R o b i n e o s a n i m a i s d e sua
vizinhança . Suas histórias têm c o m o po n t o de partida
p e q u e n o s p r o b l e m a s d o cotidiano : u m amigo que
precisa de ajuda, a ocasiã o em q u e come u tanto que
ficou entalad o na porta, a chegad a de um novo bicho na
floresta ou as travessuras qu e um ou outr o aprontam. A maior
fonte de inspiração das tramas são seus
eq uí v o c o s de linguagem , sua inoce nt e e distorcida
concepçã o de mundo , assim com o a vivência assustadora dos
sonho s ou o fato de tomar palavras e expressões ao pé da letra:
dramazinhos de gent e pequena , respeitadas as grande s
dimensõe s qu e pode m assumir nessa época da vicia. Mais
importante qu e as aventuras é a forma da sua narrativa: é
dirigida âs crianças menore s e escrita na língua em qu e elas
pensam .
A título de exe mpl o inicial: em certa ocasião Pooh e seu
amig o Piglet decidira m fazer um tour de visitas ao s
amigos . Nã o lhe s parece u nad a estranh o incluirá casa do
própri o Poo h no roteiro, c o m o se fosse mais um amig o
par a se visitar. Q u a n d o lá chegaram , o texto é construíd o
assim:
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o Cors
o
em sua melancolia . C o m o nunc a se entusiasma c o m
o q u e está a c o n t e c e n d o , d e t é m o
Eles foram primeiro à casa de Pooh, por sorte
Pooh estava em casa exatamente quand o eles
chegaram, por isso ele os convidou para entrar e
lhes ofereceu alguma coisa.4

O leitor terá impuls o de ler nova me nt e ,


a c h a n d o que entende u errado . Mas não , o text o é
assim. Poo h visita a si m e s m o e se s u rp re e n d e q u e
estava em casa quando ele m es m o chego u lá. É outra
forma da lógica, similar à q u a n d o se pergunt a para uma
criança quanto s irmãos ela tem, invariavelment e ela vai
contar-s e entr e eles.
Em outra ocasião , Poo h vai procura r o
amig o em sua casa. mas este havia saído; a porta esta\ a
aberta e a casa vazia. O texto , po r sua vez. narra
que :

Quanto mais ele olhava lá dentro, mais Piglet


não estava lá.5

Essas sã o p e q u e n a s amostra s d e u m estilo


d e escrita em qu e a graça literária é tirada do s
p e q u e n o s absurdos poéticos , q u e sã o o s m es m o s
q u e comete m seguidamente as crianças de noss o
convívio.
Voltando aos nossos heróis, Pooh é um
urso de pelúcia qu e pertence ao menin o Christopher
Robin. Nas histórias, c o n t r a c e n a m c o m ele s outro
s animai s d e brinquedo: o porquinh o Piglet (Leitão ou
Bacorinho6 ). o burrinho Eeyore (Bisonho ou Ió), a canguru
fêmea Kanga. seu filho Roo e um tigre (Tigrão).
Além disso, há dois animais de verdade, um coelh o
(Abel) e uma coruja.
Piglet é p e q u e n o e medroso , mas um amig o muito
leal d o urso . Sua s história s retrata m um a
relaçã o assombrada e t e m e r o s a c o m o m u n d o
e c o m as palavras. Seu m o d o de expressã o é muit o
peculiar, de quem é facilmente impressionável :
ador a adjetivos, logo os incorpora ao s no m e s . No
livro bo a parte de suas talas tem maiúscula s na maio
r parte elas palavras. Ele é crédul o e se assusta
facilmente , fazend o um contraponto co m Pooh ,
cujas pr e oc u pa ç õ e s sã o mais hedonistas: bolar modo
s de co me r e se divertir e tud o isso com muita
cantoria. Esses objetivos q u e m ove m o urso são
vividos de forma imperiosa. Ele é impetuos o é cabeçudo
e impõ e a o p e q u e n o amig o aventura s q u e sua alma
caseira nã o considerari a recomendáveis .
Eeyore , o burrinho , é melancólico ,
freqüente • mente s e desanima , pe rd e- s e e m
q u e s t i o n a m e n t o s inúteis e precisa ser ajudado . A
palavra q u e o caracte • riza é gloom, q u e q u e r dizer
desâni mo , estar acabru - nhado, lugar sombrio .
T u d o nel e é gloomy. Mas há alguma sabedori a
privilégio d e ver a s coisa s d e fora. Seguidament e
n ã o embarc a na s bo b ag e n s q u e o s outro s inventam ,
ap e n a s o s a c o m pa n h a m u r m u r a n d o sua visão da s
coisas, q u e pouca s veze s algué m escuta . Aliás,
ele jamais esper a q u e algué m o faça. Nunc a se julga
di g n o de atençã o e se p e d e algo para si, po r
ex e m pl o , em certa ocasiã o e m q u e pedi u ajuda
p or q u e sua casa havia sumido , diz q u e está
p r e o c u p a d o p o r q u e o s outro s vã o s e chatea r a
o s e dare m cont a q u e el e está p a ss an d o frio.
Diga-se de passagem , ele ficou se m casa
porqu e o Poo h havia chegad o á errada
conclusã o q u e ele nã o tinha o n d e morar.
Q u e r e n d o fazer um a surpres a a o burrinho . Po o
h desmonto u a casa q u e ele já habitava, julgand o
q u e era u m mont e d e gravetos . Por sorte, o s
pedaço s de sua antiga casa toram usado s na construçã o
da nova, e Eeyor e teve ond e se abrigar. As
vezes , a ajuda do s amigo s é providencial, c o m
o q u a n d o lh e conseguir a m u m nov o rab o d e
corda, ma s normal • ment e eles mais o
atrapalham , por não e nt en d er e m o qu e o
burrinh o realment e necessita.
Ao contrário de Pooh e Christopher Robin.
cuja lógica se impõ e ao m u n d o e orquestra as
aventuras, Eeyor e é a melancolia associada á
solidão de algué m qu e pensa qu e sua voz nã o
é objeto de interesse po r parte do s outros. Não que
r dizer qu e ele nao seja amad o pelos amigos, o c e d o
é q u e ele nã o e compreendi d o po r eles. O etern o
desencontr o entre suas necessidades e a ajuda do s
amigo s serve para demonstra r que as crianças
q ue re m outr o tip o d e atenção , qu e nã o s e
restringe a um cuidad o objetivo, q u e só a escuta
atenta e depoi s o diálogo p o d e m oferecer.
O Tigrã o é outr a versã o de criança . Assim
com o Roo, o c a n g u r u z i n h o , ele s faze m trav
essuras , sã o alegres , agitado s e t a m b é m precisa m
d e algu m cuida • do . A palavra q u e o defin e é
bounce, algué m vigoro • so, saltador. Ele é o
c o n t r a p o n t o da tristeza do bur • rinho , é a
própri a image m da mania : fala alto, é pre •
tensioso , estouvado , de rr u ba , q u e b r a e esmag a
t u d o e m volta co m seu s m o vi m e nt o s bruscos . Jamai s
escut a até o fim o qu e lhe dize m e.
principal ment e , pula sem parar. Ele encarn a essa
agitaçã o q u e a s criança s ficam q u a n d o estã o
nervosas , co m s o n o o u t e n t a n d o c h a m a r a
atenção , q u a n d o p a r e c e m ter mola s n o lugar do s
pé s e sã o p e q u e n o s furacõe s q u e deixa m
u m rastro d e d e s o r d e m po r o n d e passam . Sua
co n d ut a é f on t e d e t r a n s t o r n o p a r a todos ,
ma s ger a u m de se s pe r o particular n o c o e l h o
Abel, q u e te m um a cas a o r g a n i z a d a , u m a
h o r t a q u e é u m p r i m o r e pr e oc u pa ç õ e s d e
gent e gr a n de . Abel é q u e m reclam a e faz o pape l
do estraga prazeres , ma s é Tigrã o q u e m revel a o
lado incôm o d o das crianças, c o m suas
Fada s n o D i v ã — P s i c a n á l i s e n a s Hi st ór i a s Infanti s

presença s alterand o a or d e m d o m u n d o regrad o lece, arrepen de-s e de sua s chatice s e relaxa um pouco
d o s adultos . co m as criancices do s outros . Ele é o adulto
O personage m do tigre é praticamente o que as criança s tê m e m casa, q u e nã o está se m p r e
mesm o qu e Roo. ambo s saltadores, tanto qu e às vezes disponível para elas, tem pr e oc u pa ç õ e s q u e elas
vive aos cuidados de don a Kanga, com o se fosse nã o compreen• d e m e tenta se escapa r dos constante s
seu filho mais v e l h o . O canguruzinh o faz pedido s infantis, A coruja t a m b é m faz um g ê n e r o
t r a v e s s u r a s d e form a totalmente inocente, se mete em adulto, brinda
situações perigosas sem ter a mínima noçã o do qu e fez, ne m os a migo s co m um a sabedori a ridícula e
durante, ne m depois. Numa história ele caiu na água, quas e dispensável, ma s ele s jamais deixa m de consultá-la .
se afogou e depoi s ficou perguntand o para todos, Na verdade é um adult o fora de órbita , to d o s o
eufórico, se viram com o ele nadava bem. Já Tigrão respeita m mas não est á mai s c o n e c t a d o no
não é assim bobinho , ele se dá conta do s estragos qu e m u n d o real . É um avô b o n a c h ã o q u e vive de
provoca, embor a na o consiga se conter. Alterna sua s lembra nça s e tudo o que q u e r e um públic o
momento s de euforia co m outros em qu e compreend e para contá-las . freqüentemente, se p e r d e no mei o
o quant o ele incomoda e julga qu e nunca mais de sua s interminávei s histórias que ni n gu é m
será amad o por alguém. entende . Além disso , usa um vocabulário
Corn o o Tigrao , m e s m o a mai s salient e empolad o qu e visa a i m pr es si o n a r os
das crianças consegu e olhar de fora a cen a da sua outros cora sua sapiência . Por outr o lado , t a m bé
bagunç a e temer pelos seus eleitos. Aliás seu objetivo é m nã o escuta o q u e os outro s personag e n s têm para
produzi r efeitos, poi s c o m o o tigre , sua s lhe dizer. A coruja é talvez um re pr es e nt an t e da velh a
p r e o c u p a ç õ e s s e centra m no amo r e na atençã o geraçã o que ainda n ã o tinha o hábit o de escuta r
q u e é capa z de gerar. Seu lema seria: "falem mal as crianças .
de mim, ma s nã o falem de outra coisa". Aquilo qu Já c h a m a m o s a atençã o para a ausência feminina
e Roo faz, inocentemente , po r se r apena s ness e p e q u e n o univers o de m enino s (co m a
pequeno , n o Tigrã o mostra-s e mai s exceção da don a Kanga. todo s os perso nagen s sã o
com plicad o , el e tem l á sua s intenções : a s masculinos). Nã o parec e have r n e n h u m a intençã o
criança s apronta m confusõe s c o m o uma forma d e
misógina nisso, a p e na s os bicho s sã o extensõe s
diálog o co m os outros , toda aca o sua está na
da personalidade de Christophe r Robin, e ele é um
expectativa de um a reação . Se algum desse s
m e ni n o . Na faixa etária q u e mais se identifica co
persona ge n s existe na alma da s crianças, este é o
Tigraã, pois, m e s m o q u e sejam muit o peq uenas , m essa s personagen s pouco se import a se eles
be b ê s d e colo, sua s molec agen s sã o feitas d e olh o sã o m e ni n o ou menina , há ainda um a certa
n o adulto , á esper a e m o c i o n a d a d e provoca r o indiferenciaçã o sexual. Don a Kanga é uma m ã e
previsível "não". n u t r i d o r a , c o m o t o d a s , m a s s e u cuidad o s e
restringe q u a s e qu e totalment e a Roo. O
As funções adulta s sã o representada s po r
Tigrão é o únic o q u e se beneficia de seu zelo
don a Kanga . um a mã e clássica, d o n a d e um a
se m ser seu filho. Q u a n t o a Poo h alimenta-s e de mel,
paciênci a infinita, pel o coelh o Abel, q u e é um
qu e necessita
ranzinza, e pela Coruja, u m a v ô caricatural . A
ser trabalhosamen t e tirado da s abelhas . Essa
m a m ã e c a n g u r u ê amoros a e isso é tudo , um
relação do ursinh o co m o se u únic o alimento , assim
persona ge m coadjuvant e apenas , o texto de Milne
como as aventura s necessária s para obtê-lo , é um a
é mais centrad o na relaçã o pai-filho, praticament e
espécie de coraçã o da trama, po r isso m erec e
nã o há presenç a feminina no univers o de Milne.
alguma s conside• rações . O ambient e o n d e
O coelh o Abel trabalha em sua horta, tem uma
Christophe r e seu s animais vivem - um protegid o
casa arrumad a e sempr e está tentand o mante r alguma
quart o e um a imaginária floresta segura (contrapont o
orde m n o cant o d a floresta qu e ele habita.
de toda s as florestas cheias de perigo s da s
També m é o mais egoísta, tenta reprimir as
histórias infantis tradicionais) - nos faz pensa r
características mais anárquica s d e seu s amigos ,
n u m lugar q u e n t e e protegid o , portanto de
n ã o lida be m co m as novidade s e organiza co mplô s
cert a form a m a t e r n o . A c o n t e c e q u e iss o
contra un s e outros . Enfim ele guard a em si as
é uma dedução , p or q u e mãe s m es m o quas e n ã o
parte s mais chatas da s pessoa s crescidas (com o o
comparecem na s histórias do Pooh , ne m m e s m o
define Milne: Coelho, cuja vida é feita de Coisas
par a oferecer o alimento . O leite do noss o urs o
Importantes, assim co m maiúsculas) . Na verdade , ele
é o mel, ele é um insaciáv e l g l u t ã o mas ,
personifica o adult o o c u pa d o , pressionad o po r tarefas e
d i f e r e n t e m e n t e d o s bebês, a p e n a s d e m el ,
responsabilidades , q u e n ã o te m paciênci a c o m
d e s c r it o com o m a r a v il h o s o , mas perigoso ,
a s co nf u s õe s q u e a s crianças armam . N o fim da
pr o du zi d o pela s abelha s q u e ne m sempre estã o
s contas , ele s e m p r e a m o -
disposta s a fornece r a substânci a preciosa. Muito pel o
contrário , n ã o p o u p a m esforços par a perseguir o urs o ladrão , q u e vive t o m a n d o sust o delas .

192
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o C o r s
o

Apesa r d a s p o u c a s a l u s õ e s a o f e m i n i n o
, o pequeno paraíso protegi d o de Christophe r
Robin e Pooh parece ter a marca de um lugar
construíd o e cuidado pelas zelosas mão s de algum a
excelent e mãe : as casas do s animai s sã o
q ue nti n h as , a r r u m a d a s e cômodas: eles convida m
un s ao s outro s par a lanche s quando se visitam.
Co m o filhos muit o be m treinados , eles cuidam de
se agasalha r q u a n d o têm frio e vã o para a cama
á noite sem q u e ningué m tenh a qu e ralhar. Acreditamos
qu e ess e m u n d o doméstic o o r d e n a d o seja também uma
representaçã o matern a internalizada, em torno tia qual
nã o se fazem maiore s drama s e conflitos. Mas há um
território o n d e as coisas nã o funcionam com essa
eficiência: o do mel. Mais qu e uma comida, e objeto de
cobiça do Pooh. Para piorar as coisas, seu
abastecimento de mel está sempr e se esgotando , ele
é um guloso descontrolad o qu e com e tud o o qu e tem na
despensa e ainda sai por aí devorand o o estoqu e
do s outros. Engord a at é ficar en ta la d o na porta ,
e su a generosidade desapare c e q u a n d o o assunt o é
mel. Os delírios e medo s do Poo h estã o
relacionado s a q u e alguém (um terrível
Efallante,8 po r e xe m p l o ) venh a comer seu mel. É aí
qu e aparece m as falhas materna s e
os conflitos co m a dadivosa genitora.
Dona Kanga é a única figura matern a
concret a que aparec e na história . Ela é m ã e
de um filho pequeno, Roo, que . ao contrário do s
amigos, n ã o cuida de si com a autonomi a de q u e m está
crescido . Ela faz seguidamente o pape l clássico da s mães .
corrend o atrás dos filhos co m um a colher , um
agasalho , ou co m recomendações q u e ele s n ã o
escutam . Q u a n t o ao s outros, terão de enfrenta r
o m u n d o se m tod a ess a generosidade. As
abelha s representa m para Poo h a hostilidade q u e
surg e a partir de en tã o . A relaçã o complicada
entr e a gula insaciável de Poo h e o egoísm o militante
da s abelha s ilustra as di fi c u l d a d e s qu e
esperam aquele s qu e atingem algum a
indepe ndên ci a . mas ainda se s en t e m faminto s
da d i s p o n i b i li d a d e acolhedora do seio perdido .
Muitas crianças desenvolve m relaçõe s
bastant e ambivalentes co m a comida . As abelha s qu e
sae m em enxame atrás de Poo h mostra m o lad o
perigos o do alimento. Apena s ess e aspect o seria capa z
de explicar por qu e a s criança s tê m p â n i c o d e
e x p e r i m e n t a r alimentos diferente s e ficam muit o
de s or ga ni z ad a s quando se lhes obriga a comer .
Fias cuida m do q u e entra e sai de seu corp o c o m o
obsessivo s guarda s de fronteiras e n ã o estã o muit o
disposta s a ousa r n u m território q u e até en t ã o
polarizav a as troca s co m a mãe e os adulto s em
geral. São c o m o um jovem país, cioso de seu s
recém-estabelecido s limites territoriais,
c o m p r e e n d a q u e o q u e ocorr e n o s s o n h o s é
um registro diferente daquil o que de fato
acontece , é alg o q u e s ó s e pass a e m su a
temeroso s de q u e a ingestã o de algum a imaginação .
novidad e ou de quantia s indesejadas vá modificar
a forma e o caráter d e se u c or p o e pessoa .
C o m o a s crianças acredita m q u e tud o o q u e 193
se inger e passa a fazer parl e e altera a naturez a
da q ue l e q u e come , tod o cuidad o é p o u c o .

A lógica do pensamento infantil


G raças aos detalhados estudos de Jean
Piaget, hoje o pensamento infantil
não é compreen- dido como
incompleto, simplório, em suma,
como se a infância rimasse com
ignorância.
Sabemo s q u e a s crianças têm sua s hipótese s
absurdas , ma s que , a seu m o d o d ã o conta
, d e u m problema ; além disso, sua
c o n c e p ç ã o d e m u n d o te m um a lógica diferente
e é co m p le x a m en t e estruturada .
Pessoa s b e m p e q u e n a s , d a q u e l a s q u
e recém - co meçara m a conta r sua vida em ano s
e n ã o em meses , costu ma m funcionar conform e o
princípi o d e q u e seu s pensamento s e açõe s são o
moto r de tud o o qu e ocorr e a o se u redor . O
resultad o p o d e pa re c e r bizarr o e divertido,
ma s e a pe n a s um a criança funcionand o co m u m
raciocínio egocêntrico . Qual que r uni qu e
convive u co m crianças e as escuto u falar
sab e q u e elas acha m qu e são causadora s d e
vários fenômenos , por exemplo , q u e a lua se
moviment a para acompanh á-las .
Testemunhamos seguidament e a
dificuldade do s p e q u e n o s e m diferencia r o
mund o inanimad o d o animado , qu e se
traduz pelo fato de pensarem qu e os objetos
são com o eles, també m sentem e têm vida.
Por isso. é procedent e q u e peça m licença para
uma cadeira qu e está obstruind o seu caminho ,
esperand o qu e ela se arrede. També m nã o
somo s bobo s e cuidamos quan d o vamo s
menciona r algo qu e a s assuste o u
impressione, porqu e para elas as palavras nunca
são em vão, sempr e trazem seu objeto à vida.
Falar da baix a é com o se ela estivesse entre
nó s - o q u e torna sua realidade be m mais
mágica -, da mesma forma com o uma criança
nã o se cansará de buscar um cavalo alado ou
um unicórnio na paisagem se o mencionarmo s
durante uma viagem, afinal se a palavra existe,
a coisa existe.
Por último, vale lembra r a e n o r m e
dificuldade q u e temo s para consola r um a
criança q u e desperto u apavorad a po r um
pesadelo . Isso se dev e ao fato de que ela
o vive c o m o se tivesse realment e acontecido
, é precis o q u e sejamos muit o convincente s
para q u e ela acredit e q u e era a p e n a s u m
so n h o , par a qu e ela, c o m o t e m p o ,
Fada s n o Div ã — P s i c a n á l i s e n a s História s Infanti s
é a realidade qu e está errada e nã o a sua
lógica, po r isso. adaptarão sua percepçã o ao seu
pensamento . Apenas se
Temos entã o um a confusã o d e registros,
o n d e ainda se misturam o an i m a d o co m o
inanimado , o real co m o abstrat o e o intern o
co m o externo . Isso ger a um a c o m p r e e n s ã o d
o m u n d o particular , q u e divert e e impres sion a
a q u e l e s q u e c on vi v e m co m crianças, já q u e se
trata de dialogar co m uma visão q u e parec e
distorcida e m relaçã o à nossa. Jea n Piaget diria qu
e se trata de : "um espírito q u e nã o distingu e ou
q u e distingue mal o eu do m u n d o exterior,
tud o participa e tud o p o d e agir sobr e tudo".9 Ou aind
a que :
"não sab e distinguir a aparênci a de exterioridad
e do sonh o da própria exterioridade". "
De nad a adiant a dize r ã crianç a q u e
ela está errada, q u e dev e ver o m u n d o d o noss o
jeito. Ensina r os be m p e q u e n o s é uma tarefa
socrátíca, passa po r levar a lógica dele s até o n d e ela
se torna problemátic a e, co m isso. nas palavras
de Piaget, desequilibrá-la s d e sua s certezas .
D e v e m o s a p r e n d e r a faze r a s pergunta s certas,
a confrontá-los co m desafios qu e lhes ajudem a
c o m p r e e n d e r as coisas de outra maneira . Não
adianta dizer q u e a lua n ã o tem vida. Em primeir o lugar,
precisaremo s e nte n d e r o q u e eles supõe m : se a lua
os ac o m p a n h a é p o rq u e está interessada neles: se
acha m qu e a lua pensa, sent e e tem intenções, é porqu e
funcionam assim. Ora. c o m o ess e tão important e
astro nã o seria igual a eles?
Em certa história. Poo h resolve q u e é
hora de viver uma aventura sozinho . Munid o de
uma trouxa, resolve entã o explora r os limites de
seu território e conhece r o m u n d o d o outr o lad o
d a colina. Q u a n d o finalment e cheg a a o t o p o ,
el e s e distrai co m um a borbolet a e acaba
d e s c e n d o pel o m e s m o lad o e m q u e subiu , e m bo r a
siga a cr ed ita n d o esta r e n t r a n d o e m território
desco nhecid o . Q u a n d o começ a a encontra r as
paisagen s familiares e seu s amigos , se s ur pr ee n d e
co m o fato de qu e o outr o lad o seja tã o igual
ao seu. Ne m o e n c o n t r o co m o s amigo s o
d e m o v e dess a certeza, fala com eles c o m o se
fossem o Abel do outro lado e o Tigrão do outro
lado. Fala co m tal convicçã o qu e os convenc e de
qu e ele é um Pooh do outro lado. Com isso reina
a confusão , poi s aquil o q u e é um reencontr o
co m o lugar de o n d e saiu é vivido c o m o
s e fosse uma duplicação , c o m o s e houvess e d o
outr o lado d o morr o u m m u n d o e m e s pelh o co m o
lad o e m qu e ele costum a viver. São necessária s muitas
e muita s coincidência s para desfazer a premiss a
inicial de q u e ele estaria do outr o lad o e n ã o
em casa.
Qua nd o as crianças põe m uma premissa na cabeça,
p o u c o import a a contradiçã o co m a realidade ,
respeitarmos a sofisticação dessa coleção de absurdos e
conseguirmo s interrogá-la desd e o interior de sua lógica,
teremo s chanc e de despertar a curiosidade da
criança para nossa dita sabedoria científica e adulta. Se esse
diá• logo co m a criança nã o acontecer, ela igualmente fará o
processo de confrontar a realidade cio mu nd o com suas
hipóteses, mas será de m o d o silencioso e solitário.

O poder mágico das palavras


Certa ocasião, Pooh resolve pegar mel das
abelhas . Ciente de q u e nã o seria uma missão
fácil, resolv e ir fantasiad o de nuvem
de c h u v a par a e n g a n á - l a s . Seu disfarce
foi
besuntar-s e de lama e manter-s e p e n d u r a d o num balão azul
de gás , co m o qua l tentava chega r á colméia.
Q u a n d o cheg a pert o da colméia , pe rc e b e que
elas estã o desconfiada s de q u e el e m e s m o parece
mais um urso sujo q u e uma nuve m de c h i n a . Decide
entào conve nce r os insetos co m uma música de
nuvem e co m as palavras de seu amig o Christopher. Este
deveria dizer: "Ping, ping, ping, parece que está
chovendo"; e n q u a n t o ele - a nuvem - cantaria: "Como
é doce ser uma nuvem, flutuando no céu azul..."
É uma pen a q u e as abelha s nã o tenha m
muita sensibilidad e poética . Poo h preciso u fugir
sem mel n e n h u m : m e s m o assim, ele nã o admit e qu e seu
plano estapafúrdio fracassou, preferind o mentir-se qu e aquela
colméia e de abelha s erradas , que , s e n d o assim, elas
deve m fazer o tipo errad o de mel. Ora, ningué m quer
um mel errado , n ã o é verdade? Esse tip o de enrolarão é
muit o c o m u m na s criança s p e q u e n a s , que , para
diversã o do s adultos , dão as desculpa s mais
furadas para algo q u e nã o conseguira m (afirmações
do tipo: hoje nã o poss o sabe r o q u e os animai s p e ns a m
porque me u pode r está de scansan do ) .
O interessant e nest e cas o é a aproximaçã o entre a
palavra e a coisa, de tal forma q u e . se eu resolvo me
fantasiar de nuvem , é mais necessária minh a
própria convicçã o do qu e a minh a provável
aparência . Isso faz e c o nas crianças e graça no s
adulto s porqu e no passad o també m p e ns á va m o s d e
uma maneira muito semelhante . Nas palavra s de
Piaget: "o pensament o é
11
, de tal forma que "ac on siderad o ligado ao objeto"
coisa abrang e se u no me , a título de caráter intrínseco,
aind a q u e i n v i s í v e l " 1 2 , d e tal m o d o q u e se algo
tem u m n o m e , qu e r dize r q u e el e existe! Trocan d
o e m miúdos : se foi dito, log o existe.
P o o h e s e u s a m i g o s t ê m m u i t o m e d o dos
Heffalumps, criaturas grandes , c o m ed o r a s de mel, que
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mário Cors
o

os desenhos cie Sheparcl sugere m ser parecida s


co m elefantes (provavelment e porqu e a
p a l a v r a so a parecido a elephants). O detalh e é q u e
nunc a ningué m viu um desse s m onstro s q u e
a p a r e c e m a p e n a s em sonho. Chnstophe r Robin.
Poo h e Piglet me n te m un s para os outros q u e já
encontrara m um . ma s n e n h u m deles duvida cie
q u e possa m cie lato existir, afinal, fala-se deles...
As crianças elevem acha r q u e as metáforas,
mas também a língua c o m o um todo , sa o
invençõe s cio demônio, Conform e o lugar o n d e
estejam colocadas , as palavras m u d a m de sentido ,
po r vezes, a mesm a palavra designa coisas be m
distintas e. ao contrário, palavras be m diferentes
p o d e m quere r dizer a mesm a coisa. Além disso, há
aquela s q u e soa m c o m o uma coisa e, na verdade
, q u e r e m dizer alg o q u e nã o tem nada a ver.
Por exe mplo , a palavra truculento, q u e por ter a
seqüênci a /entoem seu interior p o d e parece r um
adjetivo qu e qualifica algué m mais suav e do q u e
seu significado poss a sugerir. Se um a crianç a
n a o compreende a totalidad e da palavra, ela se
apegar a a o pedacinh o q u e s a b e . c o m o la z e m
t a m b é m o s adultos q u an d o se iniciam em um a nov a
língua, muitas vezes acertando , outra s caind o em
um a da s tanta s ciladas qu e a linguage m contém .
\acla c o m o o s poeta s para fazer arte c o
m o s assombros q u e a língu a n o s p r o d u z
desd e m u i t o pequenos. Por isso, frisamos a
importânci a de Alilne ser antes um poet a do q u e um
escritor cie ficção. Poetas e crianças têm o hábit o
(o u a necessidad e ) cie ficar tocando as palavras
co m o se fossem corda s de um instrumento, para
ver c o m o vibram.
Piglet sofre muito co m o vento , ele é muit o
leve e o vento é um de seu s grande s inimigos. Mas ha
um a história qu e gira em torn o de ser um dia de
ventania: a windy day Km portuguê s perd e o
sentido , mas a questão é a semelhanç a
tônic a entre wednesday
(quarta-feira) e windy clay (di a ventoso) .
Noutr a ocasião. C h n s t o p h e r R ob i n li d e r a um
a g r a n d e expedição em busca do Pé)lo \ o r t e . Q u a n d o
já estavam a caminho, ele se dá conta q u e n ã o
sab e c o m o e o Pólo Norte , p o r t a n t o n ã o o
reconhecer á q u a n d o chegarem lá. Ponderand o
junt o co m o Coelh o - já que a m b o s m e n t e m
q u e s a b i a m c o m o era . m a s esqueceram -, eles
chega m à conclus ã o de q u e o Pólo Norte é um post e
encravad o no c h ã o . Por quê ? Porqu e em inglês a
m e s m a palavr a pole design a "pólo " e
"poste". Não c o m p r e e n d e n d o em absolut o o q u e
um pólo possa ser, é necessári o para um a criança
pensa r num poste cad a vez q u e ess e extrem o do
m u n d o é mencionado...
195

C m e x e m p l o e m portug uê s talvez ajude:


uma menin a co m 3 ano s s e agraciou d o sapat o d
e salto d e sua mãe , o calçou e o chamo u de
sapato de lombinba
(par a da r cont a d o desníve l d o sapato) .
Informada d e qu e aquel e objeto se chamav a sapato
de salto, ela ficou aind a mais admirad a e
comentou : "como alguém pode saltar usando
isso'?.
Acreditamo s q u e o leitor estará neste
m o m e n t o e v o c a n d o uma coleçã o de historias
semelhante s a esta. Pias provê m do fato de q u e
para uma criança isso é mais cio qu e um
trocadilho, é uma co m preens ã o literal. A palavra será
relerenciacla ao objeto ou aca o de sua vivência qu e
se associar a ela. fica entã o difícil entende r o s sentido
s figurados.
A linguagem já é uma coleção de
arbitrariedades co m as quais somo s obrigados a nos
conformar, nã o há motivo para o objeto quadrado
, de superfície plana, erguido sobre quatro patas,
utilizado para apoiar objetos, chamar-se de mesa. tanto
qu e també m atend e pelo nom e cie lah/e. tarola. azlale
muitos outros. V. uma convençã o com a qual
somo s obrigado s a no s conformar. Nao estranha
qu e as crianças procurem alguma transparência entre o
objeto e a palavra, com o na linguagem rudimentar infantil
- (/ud-auá( pato), ait-auicachorro), /;/-/;/(veículos em
geral), ond e pelo meno s os seres e os objetos
são designado s pelo som qu e emitem.
Apó s a p r e n d e r e m a talar de acord o co m o códig
o da sua língua, as criança s aind a terã o de
ap re n d e r q u e alguma s palavras m u d a m d e
significado conform e o contexto : as malditas
metáforas. Afinal, e precis o aguça r o ouvid o e
espicha r o cérebr o para compre en • de r que ,
apesa r d e m a m ã e dizer q u e está morrendo de
fome. ela nã o irá para o céu . Deve ser po r isso
qu e o ursinh o Poo h s e queix a tant o d a
dificuldad e d e pensar, lutand o contra a
necessidad e imperiosa de se distrair co m qualque r
borbolet a o u folhinha q u e pass e v o a n d o . J á
qu e sã o problema s tã o difí ce i s d e
solucionar , m el h o r s e o c u p a r d e outr a coisa
mai s compreensíve l .
Caso na o dê para se distrair, a criança
tentará estabelecei ' um a léigica rudimenta r
d e n t r o d a arbi• trariedade d a língua, o n d e s e
estabeleceriam conexõe s mais palpáveis entr e os nome
s e suas propriedades . As personagen s de Milne passa
m constantement e por esses constrangimento s e mal-
entendidos . Cada vez. qu e isso acontec e co m o urso,
o menin o comenta carinhosamente silly o/d bear
(velh o urs o b o b o) , c o m o q u e m diz. o quant o
o ama apesa r e talvez po r sua inocência.
Graças a Poo h e Christopher Robin, o
p e q u e n o q u e escuta a história CHI assiste ao
d e s e n h o animad o poder á ver, co m o se estivesse cie
fora, esses incidentes
Fadas n o Div a — Psic an áli s e n a s Históri a s Infanti s
suas pequena s verdades , se o menin o diz. qu e
é assim, o adult o até questiona , ma s nà o lh e
imp e d e d e viver co m sua s f o r m u l a ç õ e s . De
tão evocativos cio q u e acontec e na sua vida. É
fato , o s n o m e s d a s coi s a s s ã o
uma espécie de catarse, jã que , qu an d o ocorrera m co m
ele, certamente foi seu o pape l de b o b o da corte.
Para a criança. Christopher é o bobinho , send o qu e
para este é Fooh qu e nà o compre en d e a s coisas,
assim c o m o para a maior parte da s personagen s ainda
resta Roo. lá no final cia linha, com o o menorzinh o
de todos .

A relação das coisas e


das pessoas com seus
nomes
um
HZJiQ primeiro momento , o ursinh o d e
pelúcia
-S »É "•< s e chamav a r.dward Bear, ma s se u
d o n o Kt-XJ!» mudo u seu nom e para Winnie-ther-
Pooh . O nom e "Pooh" originalment e pertenci a a
um
cisn e q u e Chri sto ph e r Robi n tinha , c o n f o r m e
a s palavras de Milne:

Quand o este cisne disse adeus, nós ficamos com este


nome para nós. pensávamos qu e cie nào o
quisesse mais.

Winnie. com o dissemos, era o nom e da ursa


do zô o britânico qu e pai e filho costumava m visitar. Embora
nà o tenha conseguid o explicar o qu e qtieria
dizer a palavra //jerlqu e mais parec e pertence r a
uma espéci e de vocabulário privado de criança),
conform e Milne. Christopher Robin deixou be m
claras as razões de seu uso. Segund o o menino ,
graças à essa palavra, apesa r de Vrtnuh'SLT um
nom e co m evocaçõe s femininas, ele se torno u
possível para designar um urso macho .
Seguidamente , as famílias incorpora m palavra s
à sua rotina q u e sa o criaçã o d e seu s me mbro s
mai s j o v e n s . Normalmente, a c h u p e t a e se u
o b j e t o transicional (brinqued o o u pa n o utilizado po r
cia para se acalma r e adormecer ) terã o um no m e qu e a
criança inventou, com o "bu", "nana". O me s m o se
aplica ao s avós, à s babá s e a outra s pessoa s q u
e o s cerquem . Nào é estranh o q u e algu m me mb r o
da família termin e a d ot a n d o o apelid o q u e algu m
p e q u e n o inventou , send o identificado po r cie pel
o resto d a vida. pel o me n o s na intimidade do
lar. ('orn o o iberóo filho de Milne, às vezes, temo
s de privilegiar o sentid o qu e a criança atribui a
uma palavra, ind ep en d ente me n t e de quanta s
evocaçõe s possa m no s ocorrer.
Unia da s genialidade s dess e relato é
consegui r mostrar a lógica infantil respeitada em
imprimirá um a marca. Por exemplo , um a menin a
co m seu s 1 ano s recebe u um urs o cie pelúcia e
deu-lh e o n o m e de "Colar". Fora lhe sugerid o qu e
convenções , combinações . Se Poo h era o nom e de um talvez ficasse melho r chamá-l o de "Polar", qu e seria um
cisne de estimação de Christopher Robin qu e foi embora, se n o m e condizent e a um tipo de urso. ao q u e ela
el e e seu pai achara m q u e a av e nà o estaria mais esclarece u qu e era de fato "Colar", porqu e ele teria
quer en d o usar o nome , tend o ficado vago, não os pêlo s do pescoç o diferentes. Na verdade, o
havia impediment o para q u e fosse destinad o para o pêl o do pescoç o do urs o era absolutament e
urso. igual ao do resto do brinquedo , ma s a no me açã o é
O interessant e dess a história sobr e a origem do um arbítrio a q u e a criança tem direito. Nesse
n o m e cio ursinh o resid e no fato de a palavra se mostrar com caso, ela fez uma soluçã o de compromiss o entr e a
o um a entidad e concreta , qu e p o d e ser preenchida po r sugestã o e sua própria escolhia, alterand o apena s um
seres distintos e e c o m o se existisse mesm o sem eles a letra.
. Já é um a e v o l u ç ã o , se c o m p a r a d o com um
mo me n t o precedente , em q ue . para as crianças, E assim qu e fazem os pais quand o
os nome s e os objeto s sã o um a coisa só . Nesse escolhe m o n o m e d e seu s filhos: algué m s e cham
caso, a d en o mina ç ã o Pooh só serviria para o cisne e a assim porque assim decidiram : me s m o q u e
deveria desaparece r co m cie. Qu a n d o u m mesm o nom e sigam algum a tradição d e família o u escolha m u m
pode da r abrig o a seres tã o diferentes, parec e qu e as palavras n o m e d e moda . cies sempre terã o tido razõe s para
co meç a m a assumi r a flexibilidade q u e elas de escolhe r um a e nã o qualquer outr a palavra para
tato têm . já q u e p o d e m designa r diferente s coisas e designa r seu filho. As pré-escolas tê m po r habit
mudar d e significado conform e sua posição . o envia r par a cas a u m questionári o pe din d o
ao s pais q u e explique m a s razõe s dessa opção. Nào
O ato de batizar um brinqu e d o ou um import a se o n o m e do filho tenh a sid o escolhido
bichinho cie estimaçã o permit e ã criança viver a nu m catál o g o de significado s de nome s
experiência de ser um criador da língua. A partir do infantis; origine-s e d e u m palpite d o irmãozinh o
moment o em q u e ela decidi u assim, tal objet o será qu e o s pais acatara m ou da sugestã o do médic o
designad o por tal n o m e p orq u e ela qui s assim. Por qu e fez o parto; provenh a d a Bíblia, d e u m a
vezes , ela utiliza um n o m e já disponível , ma s q u e novel a d e TV, d e u m ídol o Pop ; ou seja o
a partir de então nomear á tal criatura po r vontad e n o m e de um herói, cientista ou
da criança, ela o corromper á a se u mod o .

196
Di a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s
o

divindade mitológica, sempr e haver á um a história. provavelmen t e Tresspasser s Will, apelid o cie William
A criança qu e batiza se arbitra, c o m o seu s pais, a ser (com o s e o n o m e e m portuguê s d o av ô fosse, digamos :
um criador da língua. Felipe Intruso).
Vias a n o m e a ç ã o o p o r t u n i z a outr a form a
d e diálogo com a quest ã o tia linguagem : o
s o b r e n o m e ressalta um aspect o de inflexibilidade Um amigo imaginário
da língua, já que este ne m os pais tiveram o
direito de escolher. Geralmente, os so b re n o m e s sã os conto s de fadas tradicionais, os feitiços
o palavras se m signi• ficado compreensível , ou pel o ":»:••' b e n i g n o s p r o v ê m d e sere s m á g i c o s q u e
m e n o s fora de contexto , mesmo qu e designe m >:,/•' . . o f e r e c e m ao h e r ói o b j e t o s
profissões , lugare s o u qualidades, sã o palavras encantados. Seguidament e, e ss a ajud a
tora do lugar. Ferreiro, l.eite, Machado, Guerra, sobrenatural
Oliveira, Coelho , a pe n a s para de • signar os qu e têm provê m de animais, mas ela costuma estar
significados na nossa língua, q u a n d o transformados e eqüitativa- m e n t e distribuíd a entr e fadas, ancia s
m n o m e s d e família a b a n d o n a m o sentido qu e boas , a n õ e s . d ue n d e s e animais cie várias
lhes atribui o dicionário. l.'m m e m b r o cia família espécies . Os animais cios conto s cie fadas falam a
Ferreiro nã o se sentirá obrigad o a seguir tal
mesm a língua do s homens . assim , c o m o s e
profissão, n e m n e c e s s a r i a m e n t e ela fará p ar t e
foss e nat u ra l . J a m a i s o heró i s e surpreend e
cia tradição de ofícios dess e grupo , é a p en a s um a
co m esse dom . normalment e ag e com o s e fosse a
palavra que recorta um conjunt o de indivíduo s
coisa mais normal do mun do . Fies també m estão
ligados po r laços de sangu e e co n v en ç õ e s sociais.
entrosados com os desafios humanos , costuma m guardar
Numa da s histórias de Pooh , há um a algum tipo cie sabedoria e muitos têm função de ensinar.
incrível descrição sobr e a s contusõe s infantis Mas h á u m tip o d e anima l mágic o q u e n a o mor a
relativa s a o patronímico. O narrado r cia história (qu no m u n d o da s fadas. Fie habita o quart o ou
e se s u p õ e ser o próprio Milne), a qu e m o menin o a casa cie q u a l q u e r criança . Sua magia consist e
p e d e qu e cont e uma história par a seu urso sobr e
em falar, em s e movimentar , e m ser u m d o s mais
ele própri o (o urso), comenta qu e ele viria sol) o
fieis c o m p a n h e i • ros d e se u d o n o . Sao bicho s d e
nome de Mr. Sauders. O menino que r sabe r o q u
pelúcia o u b o ne c o s , ma s n ã o sã o objeto s
e significa isso de viver sob um nome, ao q u e o
quaisquer . Trata-se cia escolh a de um objet o
narrado r re s po n d e de forma be m concreta: "ele tinha
o n o m e escrito sobr e o marc o cia porta, em letras preferido , q u a s e um allerego tia criança. O bi c h o
douradas" , e qu e ele vivia abaix o deste . Da mesma falant e e se u d o n o sa o faces d a m es m a
categoria é o diálog o sobr e o n o m e cie família m o e da , c o m o se o bich o se incumbiss e cie um a
de Piglet. q u e se considerav a d es ce n de n t e de part e cia personalidad e tia criança . Certa s
Tresspassers W.... coisa s q u e a crianç a q u e r dize r o u pensar , ma s
n a o assum e c o m o próprias , sã o atribuída s a se u
Muitas vezes, ler para crianças p e q u e n a s inclui o
necessário recurs o ás figuras, há vários m o m e nt o s objet o predileto . For e x e m p l o , el a p o d e d i z e
em que elas pede m par a ver, quand o r qu e se u urs o uúo está gostando nada
a c o n t e c e alg o importante na história, surg e um a disso, quand o ocorr e algum a coisa q u e l h e
nov a persona ge m ou elas perde m o fio da meada . d e s a g r a d a , ma s nã o q u e r admitir . F.sse
Nesse caso, a figura ajuda a conta r a história: b r i n q u e d o é diferent e d e uni objet o transicional
aparec e entã o o d e s e n h o de um pedaç o q u e b r a d o (q u e explicare mo s melho r no s capítulo s seguintes ,
cie um a antiga placa pregad a próxima á casa de o qua l e um representa nt e materno) , aqui se
Figlet. o n d e se lê: Trespasser s \X'.... portanto esse é o trata de um a ex te ns ã o imaginária tia própri a
n o m e so b o qual o po r qu in h o vivia. Traduzindo par a criança .
o português , o n o br e an te p as sa d o do leitão se Atravé s tless e ti p o cie anima l d e
chamari a algo c o m o "Intrusos F..." (nã o sabemos pelúci a o u b o n e c o (embor a bichinho s d e verdade ,
as letras faltantes. ma s provavelment e seria: co m o u m cão . possa m d e s e m p e n h a r e m parte ess e
Intrusos Fora). Quand o Christophe r Robin papel) , a criança p o d e li d a r c o m aspecto s
pergunto u ao leitão o q u e isso significa, ele r e sp o n d e u m a i s antigo s d e su a personalida d e - mais
q u e era o nome de seu avô, e q u e ess e n o m e está regressivos, diríamo s em termo s psicológicos .
na família há muito temp o . O m e n i n o argu mento u Geralmente , o bichinh o é mais inocent e d o q u e
q u e algué m nã o pode chamar-s e Intruso s F. Ao q u e o seu d o n o , d e m o d o q u e este s e p o d e coloca r
leitão r e s p o n d e u que pod e sim, p o r q u e ess e era o t o m o s e fosse se u adulto , cuidando-o ,
n o m e de seu avô ,
protegenclo-o, s a b e n d o mais q u e ele, dando-lh e
ordens .
A criança e se u b r i n q u e d o tê m um a
relação de amigos , ma s ta mb é m est e é um
irmã o mais m o ç o e u m filho; é u m coringa ,
s e prest a par a múltipl a s
Fada s n o D i v a — P s i c a n á l i s e n a s H is tó ri a s Infa nti s
emparia co m o narrado r também .

funções. Alguns p o d e m ganha r uma densidad e especial e


encarna r u m amig o imaginário . Temo s
m a i s recentement e , no s quadrin ho s , o cas o de
Ca/riu and I/obbcs (con hec id o no Brasil com o
Calvin e Haroldo), um m enin o com seu tigre de
pelúcia, qu e é um amig o imaginário. F bo m
lembra r q u e o amig o imaginári o na o necessita d e
u m apoi o real.
Seguidamente , encontramo s na s
p u b l i c a ç õ e s dirigidas a pais artigos sobr e o dito "amigo
imaginário". Ide seria um personage m inexistent e
q u e a criança mencion a c o m o s e estivesse sempr e a o
seu lado . narra suas peripécia s e opiniões , assim
c o m o as visões q u e tem del e co m convicçã o e
apreço . F um fantasma de uso privativo de
determina d a criança. Porém, de forma alguma ele é
temível, o amig o imaginário faz jus ao seu nome .
e amigável, sua presenç a é sempr e muito bem-
vinda. F.lc e descrito c o m o uma apariçã o freqüente na
vida tias crianças , s e n d o q u e o objetivo desse
s artigos é tranqüiliza r a família: se u filho n ã
o está maluco , confundi r a realidad e co m a
imaginaç ã o é normal. Ocorre que . clinicamente
falando, o fenô men o d o amigo imaginário é muito
m e n o s freqüent e d o q u e a sua popularida d e no s
faria julgar.
Muitas vezes, a família brinca junto, outra s
ne m fica s a b e n d o d a existênci a d e s s e se r
i ma gi n ári o . Normalmente , a m e nç ã o a esse
persona ge m fica mais na memé>ria d o s familiares
do q u e na nostalgia cio adult o qu e o t e \ e . N o cas
o d e Pooh . podería mo s dizer qu e foi o relato de Milne
qu e elevo u o urs o de pelúcia de ("hristopher Robin ao
grau cie amig o imaginário de seu filho. Ide seria entã o
um filho imaginário de Milne. A primeira história de
Poo h começ a assim:

Aqui está o t rso Hcluardo. descend o as escadas agora.


buinp, bunip. bump . vem batend o sua cabeça, atrás
de Christopher Robin. Fsta é, até ond e ele
sabe. a única maneira de descer, mas às vezes ele
sente que talvez tenha outr o jeito, se ao meno
s os b u m p s parassem e ele pudesse pensar no
assunto. H então ele pensa qu e talvez nã o
tenh a outr o jeito. De qualquer maneira, ele está
aqui embaixo, pronto para ser apresentado a vocês.
Winnie-thc-Pooh.

N o qu e s e segue , o menin o p e d e a o
narrado r q u e cont e um a história para o urso,
tratando- o assim com o se ele fosse vivo e tivesse
vontade s q u e precisa m ser traduzida s para o adult o
q u e nã o tem a condiçã o d e e n t e n d ê - l o . P o r é m ,
n o p a r á g r a f o a nt eri o r , j á tínhamo s acess o a o
pe n sa m e n t o cie Pooh , q u e parec e ter bastant e
Lm amig o imaginário c o m o o Poo h é
possível q u a n d o a família o admit e c o m o d u p l o da
criança, aceita incluí-lo e de algum a forma se
comunica r com ele . ne m q u e seja e v o c a n d o - o na
convers a com a criança. F. um pass o além da
fantasia corriqueira de acredita r q u e o s br i nq u ed o s
te nh a m vida enquanto a criança na o vê.1 ' poi s
q u a n d o a família incorpora a perso nage m , o q u e era
fantasia se torn a uma brinca• deira. O amig o
imaginário é uma forma de a criança se referir a
coisa s sua s c o m o se fossem totalmente externas ,
('orn o faria um adult o q u e narra um a história cie sua
própria vivência c o m o se nã o tivesse ocorrido co m ele,
cont a na terceira pessoa , atribuind o os leitos a um
protagonista cie mentira.
0 amig o imaginário é uma duplicaç ã o da criança
qu e se institui, ganh a nom e e slatits de
existência, alg o c o m o um g ê m e o fantasma. A
vantage m é que através del e p o d e m ser vistas
situaçõe s e sentimentos c o m o se estivessem de fora,
c o m o ("hristopher Robin vê as i n ge n ui da d e s de
Pooh , se u sillv old bear. 0 narrado r n ã o precisa
chama r a atençã o do leitor sobre os aspecto s cômico s da
criança, eles sã o insignificantes d o lad o da s d o ursinho .
q u e é u m duplo , disponível par a ilustrá-las se m q u e
ningué m s e ofenda .
Q u a n d o uma família aceita qu e sua criança inclua
um fantasma na cen a dispõe-s e a fantasiar co m ela.
e isso na o é patológic o , e cie certa forma
lúdico. A popularidad e de relatos e analises dess e
recurso ao amig o imaginário , serve , p r o v a v e l m e n t e ,
para nos tranqüilizar a respeito do aspect o
fantasmagórico que p o d e assumir a imaginação infantil
e a fronteira muito tênu e qu e nela separa o real do
imaginário. Aliás, uma da s fronteiras mais delicadas da
clínica co m crianças p e qu e n a s está em percebe r q u a n d o
elas estão delirando e q ua n d o estão brincando . O amigo
imaginário é fantasia qu e beira um delírio, mas é
culturalment e aceitável, passageiro e provavelment e
útil.
1 ! m e x e m p l o de duplicaçã o mais simplificado e
mai s comu m é atribui r seu s feito s a
o u t r o s . Seguidamente , falamos coisas sérias co m um a
criança c o m o se n ã o lhe dissesse m respeito . Fia
no s conta evento s importante s c o m o s e tivesse m
ocorrid o com um a perso nage m da brincadeira, um
amigo , um irmão ou o cachorro . Fmbor a saibamo s qu e ela
é o verdadeiro protagonista , n ã o vamo s desmascará-la .
Será para ela u m pr az e r escuta r noss a o p i n i ã o
s o b r e o evento, acreditand o q u e no s e n ga n o u e se m
se ser obrigada a sentir-se concernid a co m o qu e dizemos .
Se no nosso e nt e n di m e nt o se u amig o foi ma u a o bate r
n u m colega po r caus a d e u m b r i n q u e d o o u q u e se u
cachorr o foi
Dian a Lichtenstei n Cors o e Mário Cors o

doido cie entrar naquel e terren o o n d e havia


algu m perigo, ela concordar á co m seriedade , c o m
o se n ã o tivesse sido ela mesm a q u e m fez a
aventura . Esse é um recurso clássico a um d up l o q u
e serve de apoi o a uma comunicação que , na sua forma
direta, seria difícil ou constrangedora.
Graças a alguns ano s de atenção ás peculiaridades
ás crianças, alguma saheclorias popular se
acumulou . hoje sabemos qu e a infância tem aspectos
francamente delirantes. A invocação do dupl o cie
Christopher Robin através de Pooh, sua construção
literária com o amigo imaginário e sua cons agraç ã o
no gost o do públic o testemunham uma simpatia
pública pelos recursos de imaginação e fantasia qu
e fazem parte cia infância de todos nós.
A magia sempr e estev e present e na s
narrativas dirigida ás crianças, os conto s cie fada
sã o pródigo s nisso, mas a magia de Milne é be m
particular. Kla está mais próxima da criança, pois trabalha
co m a sua lógica e explora a s minúcia s d o
desenvolviment o d a linguagem. Suas histó>rias
falam m e n o s da s fantasias das crianças em si e
mais de c o m o estas surge m e operam, e é disso qu
e ele retira seu encant o duradouro .

Notas
1. MILNF, A. A. Tbe Complete Ta/es <>/'\\iiune-tbe-Poob.
\e\ v York: Dutton Chilclrens Books, 199-1. p.
311
("Poesia e Cantigas não são coisas que você pegue,
elas e que te pegam. Tud o o qu e você tem cie fazer e
estar ond e elas possam te encontrar"). A palavra
bitm ê uma onomatopéi a do ruído das
abelhas, eqüivale a quand o cantarolamos uma
música com os lábios fechados ou talvez, às
cantigas infantis ou de ninar que embalam ao som de
palavras qu e vão se tornando murmúrios. K assim
qu e o urso Pooh classifica as músicas qu e ele
faz com suas poesias.
199
F c o m o se ele ruminass e para si
própri o uma narrativa em verso s sobr e
a situaçã o qu e está vivendo.
2. ARIFS. Philippe. História Social da
Criança e da Família. Rio cie Janeiro: Zahar
Hditores, 1981. Na mesma linha de
investigação, recomendamo s o livro cie
Flisabet h Badinter. .Cm Amor
Conquistado. publicado pela Fditora Nova
Fronteira, em 1983.
3. SPITZ, Rene. O Primeiro Ano de Vida da
Criança.
São Paulo: Martins Pontes. 1983.
•i. MILNE A. A. lhe Complete Talesof\X'innie-Ibc-l>oob.
New York: Dutton ChiklreiVs Books, 199-1. p. 29-1
s. Ibiclem, p. IO-,
ú. Os nome s entr e parêntese s sa o os da
traduçã o brasileira: ás vezes, pode m
divergir daqueles que po r ventur a o leitor
co n he ç a , pois a traduçã o brasileira nã o é
homogênea .
~. Ibiclem. p. 29 i.
8. Pfallantes (em inglês I leffaltimps) sao
monstro s temidos pedas personagen s desta
histénia. Nenhuma delas jamais viu um, mas
todos sonha m freqüen• temente com edes. Ate
já foram organizadas caçadas na tentativa
(frustrada) cie prender um deles e salvar o mel
qu e ameaçam roubar.
9. PIAGEL. lean . .1 Representação do Mundo
na
Criança. F.d. Recorcl. Rio cie Janeiro: 1981. p. 12"".
10. Ibiclem p.
9i . I 1.
Ibiclem p. ""-(.
12. ibiclem p. 03.
13. MILNF, A. A. TbeComplete•Talesof\\innw-
thed'oob. New York: Dutton ChildrenN
Books. 199-t. Intro- duetion.
1-t. Fssa histé)ria sobre a condição animada (mesmo
que secreta) cios brinquedos deu origem ao
filme 'Toy Slory, que é uma versão moderna cia
mesma fantasia cio conto As Flores da
/Jeqnena Ida. de Anclersen. Nesse caso, as
protagonistas eram flores colhidas por uma
menina.
Capítulo XIV
UM POR TODO S E TODO S EM UM*

A Turma da
Mônica
Revolta contra o poder da mae - Onipotência mágica
infantil - Agressividade nas crianças pequenas - Hstáclio do
Fspeiho - Capacidade de estar só - Objeto transicional - Fobias
inlantis -
Construção primordial do Fli - Voracidade e recusa do alimento nas crianças

s histórias em quadrinh o s te m uma ou dua s características, e toda a aca o


da Turma da Mônica sã o gira ao redo r disso.
onipre • sente s entr e as Para q u e m n ã o sabe . a s personagen s centrais sa o
crianças brasi• leiras e já Mônica, Cebolinha , \lagal i e Cascao . Mônica tem
estã o fazend o sua segun d a um a força d e s c o m u n a l , ma s 11:10 a usa par a o
geraçã o d e leitores: o s pais mal. F.la carrega sempr e u m coelh o d e pelúcia chamad
q u e hoje c o m pr a m a s revistas o Sansáo, q u e . segurad o pela s orelha s e lançado ,
par a seu s filhos leram Mônica se torn a sua p r i n c i p a l arm a contr a o s
q u a n d o crianças. Não há um menino s qu e tant o a incomoda m po r nã o
a idad e definida para se aceitarem sua liderança. Cebolinha é u m garot o
familiarizar com sua s histórias, pode-s e começa r esperto , ma s n a o consegu e talar o s erres . Embora nã
b e m cedo. Muitas crianças firmam a alfabetização o deix e d e considera r Mônica sua amiga. que r
justamente nesses quadrinho s e, po r muito s anos , derrotá-la a t o d o o custo, poi s tem um a
sua s persona • gens vão acompanhá-las . Já par a os idéia fixa d e q u e o m u n d o está a o revés, co m
adulto s qu e nã o os leram quand o crianças, p o d e um a menin a m a n d a n d o no s meninos . Magali é a
parece r aborrecido , afinal, as personagen s sã o melho r amiga de Mônica e só pens a em comer, é um a
muit o simples, cad a um a gulosa sem limites.

'Este capítulo, de tornia reduzida, com o nome "O Knigma da Mônica", foi publicado em 7 cie junho de 2003, no (-adorno de Cultura do
jornal Zero Hora, de Porto Alegre, RS, por ocasião dos -K) anos da personagem Mônica.
Fadas n o Div a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infanti s
amig o qu e faz da rival seu moinh o de vento,
participa do plan o mei o a contragosto, saben d
o q u e irá apanha r no final.
Por último, mas nã o men o s importante , vem
Caseào, q u e vive em função cie sua fobia cie água .
razã o pela qual é um sujinho. Todo s têm a mesm a
idade . 6 ou ~ anos . aind a na o va o a eseola e
vivem o cotidian o co m u m cias crianças urbanas ,
co m Limas pincelada s de magia aqui e ali: essa.
entretanto , n ã o é a tônica do s enredos .
Os quadrinho s começara m a ser desenhados ,
em
1960. por Maurício de Sousa, e foram tiras cie jornal
ate ganharem revistas próprias a partir de 19~0. Desde
então, arregimentaram uma legião de leitores, são
motivo cie parque s temáticos, brinquedo s e garotos-
propaganda de uma inlinidade de produto s e
campanhas . Se é ceito qu e as crianças têm grande
empatia por essas persona• gens, qual ê o segredo? O qu
e da infância elas represen• tam para se fazerem
merecedora s de tantos fãs?
Acreditamos q u e encarna m facetas c o m u n s
a s crianças, mas separada s em personagens . F.
c o m o se vário s as p ect o s p r e s e n t e s n a infância
p a s s e a s s e m dissociados, permitindo-lhe s contempla r e
elabora r um de cada vez. Se juntássemo s todo s nu m
só. faria mais sentido : entretanto , faremos nossa
análise dess a turm a o b e d e c e n d o a mesm a divisão cio
autor, ciando a cad a um o lugar qu e sua
especificidade requer.

Cebolinha: a guerra dos sexos


---. .. ebolinha parec e ser o intelectual da
turma, é o qu e pensa e arquiteta plano s
mirabolantes.
-., " poré m na o consegu e falar direito, já qu e
está completament e incapacitado d e
pronuncia r
os erres, substituindo-os pela letra "L". Seu defeito
de fala é u m c o n t r a t e m p o e x t r e m a m e n t e c o m u
m n o process o cia aquisiçã o da linguagem :
graça s a isso. embor a seja um menin o ligado às
coisas da turma, do bairro, do mundo , fala com o uma
criança pequena . Ide realiza uma luta quixotesca
para vencer a supremacia da torça física de Môniea.
sua atividade central é bolar um plan o infalível e
se apossa r cio coelh o de pelúcia da menina, qu e
ele julga ser a fonte cio pode r qu e ela detém .
Apesar cio e m p e n h o , se m p r e fracassa, seu s
esforços parece m ridículos e seu s plano s sã o delirantes
com o os cio cavalheiro espanhol . Caseào é seu Sancho
Pança, mas difere cio gord o ajudante de Quixote, porqu e se
mostra se m p r e mei o distraíd o e é geralm ent e
o responsável p e l o s fra casso s cias e m p r e i t a d a s
d e Cebolinha. Caseào nã o tem um a grand e
preocu paç ã o em derrotar Môniea. Seduzid o pel o
de qualq ue r me nino . Todo s os h o m e n s começam
sua carreira a merc ê de um a mulhe r mais forte: a
màe. Os meninos , tã o senhore s de si. sã o
Apesa r de se r c o n s t a n t e m e n t e traíd o por sua educado s para respeitar, logo de início, a um a
l i n g u a g e m , q u e o d e s v a l o r i z a , a inteligênci a do mulher, cuja força é desco mu nal men t e maior qu e a
Cebolinh a é voltada para derrota r sua rival. Suas ações sã o deles. Por mais espertos q u e tente m ser para fazer
sem pr e um a afirmação viril q u e nunc a consegue frente à desproporçã o de taman hos , sua bela
alcança r o alvo. De certa forma, é o mais maduro por lábia cie p o u c o lhes vale quando uma mà e que r
ser o mais perseverant e em sua missã o de Sísifo de qu e algo seja feito. Nos quadrinhos,
derrota r um a mulhe r para se afirmar c o m o homem.
(.ebolinh a arquiteta plano s geniais para derrotar
Pod e nã o da r certo , ma s el e é aq u el e qu e não com espertez a a forca de Môniea. c o m o já
se cansa de tentar, e talvez essa seja a garanüa de fizeram Davi contra Golias. Polegar e J o ã o do Pé
sua afirmação c o m o m enin o .
de Feijào contra seu s ogros . F o contrapont o
I m p o u c o cio ne x o do per sonag e m de Cebolinha s e possível, a inteligência c o n tr a a forca br u ta .
explic a pe l a personage m da Môniea , ambos F.ssa é a ar m a secret a que Cebolinh a se mpr e
coacljuvam para realçar a especificidad e um do outro. Fia tenta coloca r em seu s planos para derrota r a
é a atraçã o principal, já q u e o m u n d o de Maurício de Môniea.
Sousa é de certa forma feminista. Nele, a mulher
Nao bastasse a Cebolinha sua fala
continu a sua disput a pel o e sp a ç o q u e lhe foi negado
problemática, lhe falta p o u c o para ser considerad o
po r tantos séculos. Môniea faz a leitura de qu e é preciso vence r
careca. Inclusive vem daí a origem de seu nome :
n o própri o território do s h o m e ns , ao s sopapos, embor a
ele tem apenas um p e q u e n o tufo de cabelo s em
Magali lhe lembr e q u e lucraria send o mais feminina.
formato da s folhas verdes da cebola . Realmente, seu
Môniea ta m b é m gosta de se arrumar, de brincar de
s atributos viris ainda estào longe de crescer, ele
casinha e p o d e até se interessar por alguns m e n i n o s ,
é Sansào antes de lhe crescerem os cabelos .
co m aquel e amo r c o n t e m p l a t i v o das primeiras
Aliás, Sansà o é ex at a m e nt e o nome do coelh o
descobertas : entretanto , co m os meninos da turma e
de pelúcia de Môniea, qu e ela mima com o uma
principalment e co m seu inimigo número um. a relaçã o
boneca , ma s é sua principal arm a contra eis
é sempr e bélica.
meninos. Por isso, q u a n d o Cebolinha fala em
() em bat e cie Cebolinh a em busca de supremacia é o derrotar Môniea,

202
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s
o
levam-na para dormir no berç o qu a n d o estava
muito
."se trata cie lhe tirar esse coelh o e fazer nó s em
suas orelhas.1 com o se assim ela fosse perde r a
força, tal qual o Sansào cios mitos, q u a n d o teve
sua cabeleira cortada por Dalila. Na poss e dess e
coelho-cabelo , ele subjugaria o pode r feminino e
seria o dono da rua ou da lua, para usar suas
palavras.
Fstamos sugerindo qu e a luta inglória cie Cebolinha
contra Mônica seja també m a das crianças em geral contra sua
màe. Afinal elas nã o se entregam de tão bo m grad o à
supremacia de pode r da mãe. submissão que . para os
meninos, é ainda mais constrangedora, ('orno a
trama de quase todas as histórias da-se a partir de uma
questã o entre pares, pod e ser difícil entende r nossa
tese de qu e Mônica possa representa r algu m aspect
o da mãe . F igualmente difícil imaginar alguém
chamand o a mamã e de baixinha, golditcha c dcutuça.
c o m o cebolinh a faz. mas certamente é o q u e
muitas crianças, em certos momentos, gostariam de
dizer às suas mães. Insistimos, no entanto, em qu e essas
personagen s são todas parciais e múltiplas, oferecend o
espelho s a variadas posiçõe s identiticatórias. De
qualque r maneira, acreditamos qu e Mônica se presta
para dramatizar ludicamente a màe nessa luta cio menin o
contra o pode r materno; embor a lhe falte a
autoridade, ela tem a força e o sex o da màe.
Hntretanto, é bo m salientar q u e essa
dona da rua não parec e usufruir de um g o z o
particular pel o seu poder. Isso se da mesm o é na cabeç a
de Cebolinha. ele sim teria ess e goz o de domíni o
q u e projeta em sua rival. Mônica. c o m o uma
màe . mand a e pronto . Nào se question a ne m sent e
um glamou r especia l pel o seu pretenso reinado ,
ap e n a s administra os humore s dos que estã o so b
sua jurisdição e aind a os proteg e de perigos
maiores .

Mônica: a sansona
jpõàx».. ;\ 0 p e q u e n a e ta o p o d e r o s a .
Mônic a é
£8 | S í eloqüent e tant o cia identificação da
criança fciilí co m o p o d e r do s adultos , q u an t
o cia oni• potênci a mágic a própri a cia
infância. Xos primeiros anos , o pai e a mà e sã o
toclo-poderosos ; de seus gestos, prové m t u d o o
q u e cheg a à criança. F não há só os pais na vida de
um a criança, q u e costum a
ser rodeada de vários adultos , há ta m b é m aquele s qu e
nào são a m a m ã e ne m o papai , ma s q u e
estã o na verdade a subs tituí-lo s n o e x e r c í ci o
d a s f u nç õ e s materna e paterna .
Os adultos, entretanto, p o d e m parece r maus. Eles
colocam a criança em lugares indesejados, por exemplo ,
maiore s ficaram incrédulas , mas u m p e q u e n i n o
d e 3 ou 4 a n o s se divertiu fazend o música co m
se u corpo .
be m no colo ou nà o lhe alcançam algo qu e
ela quer. Mas també m sabe m ser bons ,
permitem qu e a criança veja o m u n d o d e
cima q u a n d o a p e g a m n o colo , oferecem-
lhe alimentos, alcançam coisas. Lana mera ação deles
permite qu e um brinqued o venha roaudoth estante
até as mãos do bebê . qu e havia demonstrad o
interesse no objeto através do olhar, de um gesto ou
de um grito. Ao b e b ê . isso parec e algum tipo
cie magia qu e
p o d e ser realizada po r ele o u pelo s adultos;
ele nà o faz muita diferença entr e o benefício
qu e prové m do gest o do s adulto s qu e o
cuida m e o q u e foi causad o po r seu grito ou
po r um gest o q u e fez. Nao pouca s v e z e s , o
s b e b ê s cria m rituai s m á gi co s , c o m o s e
balançare m para sere m erguidos , mas na o lhes
é be m claro se foram erguido s p or q u e
seduzira m a ma mã e co m a macaquic e o u pel o
p od e r d e seu gest o mágico . Seu ser ainda está
misturad o co m o do s adultos, be m c o m o o s
atos deste s co m o ambient e e m q u e a s açõe s
acontecem , as causaliclacles estã o aind a po r se
definir. Por isso, terã o cie se balança r muit o
sozinho s para c o nc lu ír e m q u e o ritual s ó
funcion a n a trent e d e adultos ; depoi s aind a
será precis o e nte n d e r q u e está e m pode r
de st e s decidi r c o r r e s p o n d e r o u n à o a o
pedido . O s adultos , então , serã o
s e d u z i d o s o u subjugado s à bas e de gritos
e lagrimas, expedie n t e q u e o b e b ê nà o
demorar á em aprende r a utilizar.
Cebolinh a é um me nin o qu e já perceb
e q u e a mà e tem ess e pode r e nà o está
contente . Para isso (e so ment e isso). Mônica
encarn a a ma mãe . Mas .Mônica é muit o mais.
també m é aquel a criança qu e se sent e
poderos a pelo s gesto s mágicos . Sente qu e pocle
levitar objetos , a p o n t a n d o para eles. e voar
invocand o os deuse s do balanço . Assim, seu
pode r é ilimitado, nà o h á e m q u e m n à o possa
bater.
O b e b ê na o extrai seu presu mid o pode r
ap e n a s da ignorância da causalidade , ele sab e qu e
sua pesso a é um objeto valioso de possessà o e
dign o de cuidad o p a r a s e u s p a i s . Fi e n à o
ter á e m a b s o l u t o u m a consciênci a disso ,
ma s sentira u m poder , q u e está r e p r e s e n t a d
o po r Mônica . Fia é o filho no p l e n o
exercíci o d e u m sentiment o d e realeza, q u e
eman a d a v a l o r i z a ç ã o d a crianç a n a
família , j á q u e , p o r menorzinh a q u e seja.
polarizará a s atençõe s .
Certa vez. nu m program a d e pega dinha s
norte - a m e r i c a n o / a propost a era fazer a
música-ambient e d e u m su p er m er c a d o tocar
conform e o s moviment o s d e determinad a pessoa ,
sincronizand o o s acorde s co m seu s movimento s e
co m isso deixá-la desconcertad a . A maio r part
e d o s adulto s n à o p e rc eb e u , a s crianças
Fada s n o Div a — P si ca n ál is e n a s História s Infa nti s

Caminhav a mais rápid o e acelerava o ritmo da música, um espelho : a criança tem q u e q u er e r se


ele parava e ela parava, ia para a frente ou par a olhar nele," Km suma , d e p e n d e de um enco ntr o par a o
trás, orquestrando-a , c o m o se fosse banal q u e a qual ambos os lados tê m de contribuir, ma s q u e
música- a m b i e n t e d o estabeleciment o infelizmente nem s e m p r e o c o r r e . Poré m , q u a n d o
acompanhass e se u s movimentos . Afinal, na o e es s e processo d e construçã o de uma image m
norma l q u e o m u n d o gire em funcao dele? Por corporal ainda é incipiente, a criança p o d e sentir q u e
isso. Mônica é proprietária do coelh o Sansao e o sua image m se dilui sempre q u e o olha r se ausenta
usa para bate r no s inimigos, ma s su a força n a o : se mamãe não está. eu nâosei se existo. Por isso. o
prové m d o cabel o c o m o n o lendári o herói, psicanalista inglês D. Vi'. Winnicott valoriza tant o a
prové m de ser pequena , amad a e de ter adulto s a capacidade de estar só." denotativa de uma consciênci a
seu serviço. de si q u e se está libertand o da neces• sidad e da
Aliada a esse poder, esta sua agressividade. Mônica presenç a real cie um adulto .
resolve quas e Iodos os problema s na bas e da Mas n ã o é a p e n a s a s o l i d ã o q u e
força, a sopapo s e cocihadas . K muito co m u m que , ameaça os principiantes na tarela de ser alguém, o
em certos mo mento s cruciais de sua vida. as contato cornos outros també m gera confusão. Outro s
crianças façam a demarcaçã o de seu território pessoal a humano s podem també m ameaça r essa identidade
socos e dentadas , com o faria um animalzinho acuado . K tão verdinha, e aqui voltamos á pancadaria de
époc a de delimitar espaço s e de sentir-se confuso quant o a Mônica. Afinal, como saber ond e termin o eu e
eles. As crianças peq uena s tornam-s e agressivas começa m os outros? Se a primeira experiência de
q u a n d o algo ameaç a seu império , princip alm en t e sermo s nó s mesmo s é tão alienante. já qu e nos
n ov o s príncipes . Ksse território pod e ser uma descobrimo s no outro, evidentement e que será difícil
dúvida sobr e que m sã o e o quant o sao amadas ,
estabelece r esses limites. Q u a n d o uma criança
seja porqu e nasceu um irmão, os pais viajaram, s
peque n a acusa outra de algo qu e cia mesm a fez. muitas
e separara m o u en co ntr ar a m n o v o s parceiros,
vezes nã o está mentindo . Provavelmente, cia
mudo u a professora da sala ou simplesment e porqu e
está se confundind o co m a outra, já qu e be m lhe
estão crescend o e acha m qu e deixand o d e ser nen ê
convém que cia fique depositária do qu e nã o que r
na o tento ve/.. Na duvida, elas batem e assim.
q u a n d o a reaca o do outr o se faz audível, sabe m assumir. Os tapas e as m o r d id a s entr e os
qu e existem e qu e sua presenç a faz diferença, p e q u e n o s na s creches são conflitos em geral
algo c o m o balo. /qt;o existo. p r o v e n i e n t e s dess a urgência na afirmação do
"eu", p eq u en a s escaramuça s de fronteira. Mônica foi
Km certa ocasião, uma menina cie 3 para 4
inspirada em uma das filhas de Maurício,
ano s desenho u uma imagem de sua mã e grávida (o
quand o cia tinha 1 anos. Km uma revista
qu e era um fato em sua vida), anunciand o qu e era
comemorativa do s SO ano s da personagem , e possível
ela mesm a o nen ê qu e estava na barriga. O desenh
ver uma foto da menina àquela época , abraçada a seu
o consistia em um a cabeç a co m d u a s perna s
coelh o de pelúcia de estimação, e e admirável a
palitos . Q u a n d o lhe perguntaram o nd e ela estava, já
sabedoria desse pai de fazê-la acompanhar-s e do
qu e nã o havia barriga n o desenho , aponto u o s
brinqued o em sua entrada para os quadrinhos . I'ma
grande s olho s qu e colocara na mãe e disse: aqui. Nao
fralda, um bich o de pelúcia ou boneca, um
há melhor síntese do processo, descrit o p el o
pedaç o de roupa, um travesseiro, quando se é
psicanalis t a francê s J a c q u e s I.acan, enquant o
assim pequeno , sào freqüentemente companheiros
estádio cio espelho.' Kle explica o tato de qu e a
inseparáveis. Ksse e o tipo de objeto qu e
imagem corporal tia criança na o e concebid a de dentr o
Winnicott chamo u cie objeto trausiciouai.'
para fora, resultante de algum tipo de autoconhecimento .
ela é operad a de fora para dentro , provenient e do olhar Trata-se de um objeto q u e a criança
qu e a ma e ou substituta possa lhe oferecer. Por isso. reivindica s e m p r e q u e vai dormir , se sent e
o corpinh o da criança nasc e da barriga, mas seu frágil, doente ou desafiada. Q u a n d o ele aparece ,
"eu". sua imagem corporal, e parid o pelo s olho s já é um momento de certa independência , poi s a
da mãe . Ób vi o q u e n ã o e q u a l q u e r olhar , el e presenç a real da mãe pode ser substituída po r esse
te m d e se r expressivo do qua nt o essa criança representante da função materna. Com esse objeto será
significa e de tud o o qu e é esperad o dela. executad o um ritual qu e consiste em colocá-lo em
determinada posição, cheirá-lo, esfregá- lo em alguma
O olhar matern o qu e liga toda s as parte s do corp o e parte do corpo , enfim, as variáveis sào infinitas,
as entreg a para qu e a criança mo nt e um a mas a função é sempr e a de executar por si
imagem , qu e reconhecer á c o m o se n d o seu "eu". mes m o o qu e outrora tinha de ser realizado por
funciona c o m o outro. A imperiosa necessidad e da presenç a dess e
determinado objeto indica qu e a criança ainda nã o
internalizou aquele
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o C o r s
o

atributo. Hmbora ela já possa dormir sozinha, o


objeto transicional nã o poder á ser substituíd o po r
n e n h u m outro, e nenhum a mã e é louca a pont o de sair
de casa sem ele. O beb ê ainda crê qu e a função
materna está contida ness e objet o qu e
represent a um a z o n a intermediária, um a
e s p é c i e d e c o r d ã o u m bi li c a l simbólico do qual
de p en d e .
O objeto transicional é considerad o a
/mineira possessão de nào-eii. Kle é diferente cia sueca o
de d e d o ou do bico. O primeiro faz parte do corp o da
criança, enquanto o segu nd o é um substituto
portátil cio bico do seio. O calor do objeto
transicional está em ser externo ao corp o do tilho
e da mãe . Fie é um último elo c, ao mesm o tempo ,
a primeira independência , ele representa o vínculo ,
ma s n ã o o e n c a r n a . Talve z poderíamos dizer qu
e ele é també m um iiào-iiós.
Aliás é c o m u m q u e a criança, além de
na o se separar, nã o permit a q u e ess e tip o d e
objet o seja lavado, o qu e o descaracterizaria do s
atributos co m que ela o revestiu, ou seja, as sujeirinhas e
os cheirinho s que o convívi o co m el e (ora m lhe
a c r e s c e n t a n d o . Mônica é t o t a l m e n t e i n s e p a r á v e l
cie s e u c o e l h o encardiclo de pelúcia e alguma s
de sua s histórias se iniciam co m confusõe s
a r m a d a s p e l o fat o cie o coelhinho ter sid o
post o para lavar. Mônica respon • sabiliza Cebolinha
pel o sumico . ou seja. algué m acaba apanhando pela
separaçã o e pel o lavado . V. e isto qu e Cebolinha laz:
som e co m o coelh o e o altera, ciando nós em
suas orelhas .
Maurício tr an s po rt o u par a a p e r s o n a g e m
u m atributo típico cie crianças p e qu e na s , permitind o
qu e ele assimile ess e papel . Toda s as personagen s da
turma trazem questõe s cia primeira infância, junto
a outro s conflitos característicos de m o m e nt o s
posteriore s da vida de criança s já socializadas . 1
'ma p e r s o n a g e m , muitas vezes, costum a parece r mais
velha q u e a époc a da vida cia criança q u e está
r e p r e s e n t a n d o . Isso é co m p re en sí v el , e m f u n ç ã
o d e q u e o t e m p o d e elaboração é posterior ao
de vivência. Q u a n d o estamo s dentro de um a
sit ua ç ã o n ã o a p e r c e b e m o s , só a visualizamo s
d e t or a . A s hi st óri a s d a turm a sã o
ambientadas nu m m u n d o de crianças maiore s e tratam
cie muitas coisas q u e estas vivem, hábitos , jogos, tipos
de gente, desafios. K dess a forma qu e a
persona ge m angaria empati a e identificação junto
de seu público , que é majoritariamente de idad e
escolar. Porém , junto disso, essas histórias op er a m
co m quest õe s própria s de quand o se era menor ,
possibilitand o a elaboraç ã o d e aspecto s d e u m
pa ss a d o recente , mas q u e reque r algum tipo de
tradução .
objeto de seu pavor. Para Cascão, qualq ue r ping o
d á g u a é ameaça ,

Cascão: o sujismundo
i • asca o e um lobico . ou seja, tem 205
m e d o de
' alg o muit o específico e vive p e n d e n t e
de
'- sua aparição . Mapeia o m u n d o
conform e a presenç a o u a ausênci a
d o objet o d e se u
pavor, no caso . a água . Isso qualque r criança
entende , e a solidariedad e co m Cascão é
imediata. Ter m e d o é uma coisa séria para os
p e q u e n o s , e é bo m ver q u e na o sã o o s
único s co m m ed o s inexplicáveis.
Não há criança sem um objeto lobic o
ainda q u e transitório . O tip o mais c o m u m sã
o aquele s q u e a criança tem oportunidad e s
variadas d e encontrar: co m o um palhaço , um
cachorr o ou o Papai Noel. O objeto fóbico
ajuda a estipula r os espaços , p o d e m o s dizer
q u e ele atua com o um referencial, um
parâmetro , a partir do qual a criança mapei a
de te r mi n a d o lugar, assim c o m o articula tais
espaço s co m uma certa lei, identificando o n d e
pod e e o n d e na o p o d e ir. Q u a n d o um a
criança p eq u e n a tem m e d o d e palhaç o o u
d o Papai Noel, p o d e m o s observa r seu s
movimento s d e vai-e-vem m e d i n d o o território
co m o olha r no p o n t o fixo de seu terror.
F.ntao. estabelec e a distância ideal d e s d e o n d e
poder; ! observa r detidamente , e co m
verdadeir o fascínio, o seu objet o lobic o e, ao
m e s m o tem po , se sentir segura, f az e n d o assim, ela
estabelece u um es p aç o lísico e sua s leis de
trânsito, po r exemplo , concluind o : "poss o m e
aproxima r 1 metro s q u e ele na o me fará
nada".
O s objetos fóbicos sã o representante s
paternos . A função patern a e a fábrica de o n d e
vêm os //í/oqu e sa o utilizados po r todo s os adulto s e
lembra m à criança d e q u e ne m tud o n o m u n d o
está a o seu dispo r e ne m tud o o q u e ela faz
satisfaz a todos . Porem, ne m sempr e te mo s a
sorte cie conta r co m um Papai Noel. co m um
palhaç o ou co m zoofobia s (a mais clássica e
o m e d o d e c a c h o r r o ) , epie s ã o m e d o s t a o
b e m s i t u a d o s , portant o tã o fáceis cie evitar. As
vezes, a fobia assu m e u m a form a ma i s
difusa , m a i s sofrida , p o r e s t a r espalhada ,
se m contorn o s definidos. Assim, é o m e d o cie
escur o e de água . O escur o e a água
estã o po r todo s os lados, sem pr e c o m p are c e m
em nossa vida e sã o um a fonte inesgotável cie
sustos.
I ma criança p e q u e n a q u e tinha intensa
tobia ã água . ao crescer, explico u q u e seu
maior temo r era o ralo da banheira , poi s tinha
certeza de qu e seria sugad a p o r el e .
Evidentemente , ess a explicaçã o é um a
elaboraçã o posterior, poi s ã époc a da fobia tant o
fazia se havia ralo ou n ã o na água , q u e era o
Fadas n o Div a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infanti s
da chuva . Evitando essas dua s possibilidades ,
n ã o há do
embor a nunc a tenh a ficado claro o qu e aconteceri a se
ele se molhasse . De qualque r maneira, essa
image m d o ralo d a banheir a vale pela
explicaç ã o q u e no s proporcion a para o s m ed o s
difusos: eles envolve m uma idéia d e sermo s
engolidos , d e no s diluirmos .
Esses medo s infantis normai s sã o d a
mesm a índol e da q uel e s sentid o s po r pessoa s
q u e n ã o consegue m sair cie casa. freqüentar lugares
co m muita gent e ou estar em algu m lugar o n d e
fiquem long e cia saída. Sao conseqüênci a s cie uma
dificuldade cie definir o n d e estã o seu s c o n t o r n o s ,
o n d e termin a o e u e começ a o oi tiro.
Q u a n d o tiramos a roup a cie um recém-
nascid o para banhá-lo . e freqüent e q u e ele
grite c o m o u m desesperado . Sua vivênci a
correspond e ã d e te r p e r d i d o a pele . o
ú ni c o referencia l q u e tinh a n o m u n d o . A roup a
era seu parâmetro , o únic o lugar q u e conheci a para
se encostar; licar sem ela, eqüival e a cair no
vácuo . As fobias de águ a geralm ent e estã o
ligadas a icleia de se- mesclar e se afogar nessa
coisa mole. maior e perigosa q u e e a água . Ta mbé
m é um a fantasia de perde r os contornos , de
deixa r de ser.
listamos falando cias fantasias de um bebê ,
cuja construçã o do eg o e algo muito precios o e
recente . Q u a n d o u m início d e separaçã o d a mã e
(o u d e q u e m cumpr a essa função) estabelec e os
primeiros contorno s de uma individuacão , a primeira
silhueta daquil o q u e chamaremo s de eu. tud o e ameaç
a para essas fronteiras tão inseguras, que . po r essa
razão, serã o defendida s co m bravura. I 'ma cias
formas de demarca r limites e se besuntanclo de
comida , de fezes ou cie sujeira da pracinha .
Trata-se d e pichar o s muro s daquil o qu e
co m p re e n de m o s ser noss o território. Nesses casos, ser
limpo, lavado, é ficar privad o dess a identidade ,
dess a pele qu e se pichou , se tatuou . qu e foi apropriad a
co m o qu e havia ao alcance . Cascào defend e essa
primeira delimitação cie si. no caso , a sujeira. Seu
tema aind a é estabelecer o s contorno s d o própri o
corpo .
Q u a n d o uma criança escolh e u m objeto
fóbico. o cachorro , po r exe mplo , ela está se
organizad o para circular nu m espaç o fora do lar. V.
precis o sair de casa para encontra r o cachorro , sabe r
atrás de quai s portõe s e muro s ele se esconde , ser
surpreendi d o po r ele num a virada d e esquina , enfim,
ess e é u m m u n d o chei o d e riscos . Assim, q u a n d o
s e eleg e u m objet o fóbico. el e funciona com o um
sistema de defesa e cie estruturação . O personage m d e
Cascão conse gu e transformar um a fobia mais
primitiva, muit o mais assustadora , em algo previsível
e passível de ser evitado . A água o ameaç a
basicament e cie dua s formas: através cio b a n h o e
q u e temer. Isso n ã o deix a de ser um a bo a dica
para o s p e q u e n o s assust adiços : é b e m m e l h o r
quando s ab e m o s o n d e mora o perigo .
Cascã o faz da sujeira uni a verdad eir a
marca registrada. Sua presenç a é anuncia d a e notada
pelo cheir o ruim. el e irrita a família e os amiguinho s
cora ess e fedor, ma s ele s nad a p o d e m fazer a
não ser reclamar. Toda s as tentativas de fazê-lo tomar
banho sã o vencida s pel o seu propósit o de jamais se
molhar. Km sua s histórias, a criança se sent e xingada das
tantas veze s q u e foi violentamen t e privad a de seu
revesti• mento , de seu cheiro , aquel e construíd o co m
trabalho e e m a n aç õ e s cio seu corpo .
A parte mais chata da e d uc aç ã o certamente está
relacionad a co m a limpeza, e muita s crianças fazem
ali sua s oposicòes . O adult o peg a a criança,
esfrega, e n xá g u a e. po r mais pat in h o s de borrach a
que se po n h a na banheira , é impossível n ã o se
ver que a criança se sent e pe q u e n a á merc ê da q ue l e
gigante de mão s tão fortes. (.) hábit o cie higien e é rotina
infalível: o b a n h o sem pr e virá. a cara se m p r e será
esfregada para sere m retirado s os restos de comida , a
mão da criança será posta em baix o cfágua para
tirar aquela pap a cie banan a q u e estava s e n d o amassad a
com tanto prazer. A dificuldade co m os hábito s de
higiene é a insurreiçã o contra ess e poder . De cert o
m o d o , Cascào encarn a o protest o contra essas regras.
A propixsito. convé m lembrar que , para muitas
crianças, as fezes sã o a forma de ocupa r o
ambiente co m seu cheiro, c o m o faz Cascão. Soment e
algumas se re b el a m e foge m à troc a de fraldas,
par a melhor aproveitar o contat o co m seu s dejetos; ma
s todas elas são igualmente mal-cheirosas q u a n d o estão
passeando co m suas fraldas sujas. A criança també m
perturba o ambient e com assuntos ligados às suas fezes: as
diarréias e gaze s do recém-nascid o sã o uma forma
de opinar sobr e o aliment o recebido , de informar
sobr e algum mal-estar; prisões cie ventre costuma m lembrar
que elas nã o são //;;; lubo de entra e sai. elas p od e m
reter, por razõe s objetivas ou subjetivas, Lima grand e
quantidade de fezes. Depois da retençã o prolongada , a
criança pode brindar sua família co m o acontecimen t o
de grandes derramações . q u e se mpr e sã o motivo de
comentários e confusões. Com o vemos , a sujeira da
criança é uma forma cie expressão , cie diálog o co m sua
família, e ela nã o entend e qu e seu s presentes , seu s
tesouros, sejam tratados c o m o lixo. Cascào nunc a entrega
sua sujeira e está sempr e a lembrar qu e o lixo pod e ser
nobre .
S e n d o sujinho , Cascào , o u q u a l q u e r criança,
c o n s e g u e n ã o ficar n o luga r d o q u e r i d i n h o
bebê cheiros o cia m a m ã e . Esse a s p e c t o repulsiv o
que a
Dia n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s
o
qualque r
* quantidad e e se m conseqüências .
Ela decodifica tu d o através d a fome, qu al qu e r
sujeira promov e p o d e ser um es c u d o eficaz
situaçã o ou imagem p o d e ser traduzid a em comida .
contra o apaixonamento da m àe . K ela q u e o limpa e
Sua visão
enfeita, é de sua escolha a roup a e p e n t e a d o
q u e o filho vai usar e na o convé m q u e ele
estragu e sua obra-prima . Já a sujeira, além de
ser da autoria da criança, é o inverso do q u e ela
faz. a súmul a do q u e ela desgosta . Nao há ideal q u
e resista a uma bo a cam ad a cie lama. Além disso,
o s p e q u e n o s gosta m d e ser amados , adoram ser
atirados para cima, abraçados e
aconchegados, mas detestam excessos
a f e ti v o s provenientes d a q u e l e s co m q u e m n ã o
c o n s t r ó e m alguma e m p a d a . Fies foge m d e
pe ss o a s q u e lhes apertam as bochecha s , os
pega m no col o a forca e exaltam verbalmente
(falando alto) como s a o bonitinhos. Isso e
um a prov a de q u e criança s sa o carentes, mas na
o sà o tão ingênuas . Afeto e bom . mas apresentado cie
forma tã o barulhent a ou intrusiva as constrange,
reduzindo-a s ã condiçã o de bibelô , objeto de
admiração passiva. Via de regra q u e m se relaciona
assim co m as crianças nã o esta dispost o a
escuta r o que elas têm a dizer ou a observá-la s
para decifrar o que dizem seu s gestos . Q u e m
exclama alto co m o são lindinhas geralment e n ã o
que r p a p o co m elas. Send o assim, se forem
fedorentinhas , ou até mei o antipáticas, evitarão a
p r o d u ç ã o dess e eleito . H po r essa razã o que
elas ficam mu da s q u a n d o a mã e lhe orden a q u e
respondam a uma pergunt a em públic o (seu
no me . idade), elas se nega m a sere m aprese ntad a s
co m o um
bichinho amestrad o .
D e cert a forma , h á u m a m e n s a g e m cie
q u e . quando crescer, Cascão terá cie abrir mã o dessa
sujeira. Fina criança fedorenta e tolerável, mas um adult
o não . Quem nos dá esta clica é Capitã o Feio. um
supervilá o que quer sujar o m u n d o todo . torna-l o
um lugar feio e poluído. Fie teria tud o para ser o
herói do Cascão, mas nã o é. Ao contrário , a
Turm a cia Mônica está sempre enfrentand o e
derrotand o ess e sujáo fedorento . Aliás, é b o a a
l e m b r a n ç a de Mauríci o de q u e a sujeirinha cias
crianças é bo b a ge m , mas a porcaria qu e os adultos
fazem, destruind o e poluind o seu ambiente . é caso de
polícia.

Magali: o mundo é uma melancia


"IJWW ' agali é representant e de um a oralidad e
sem
," / - regras, depositári a de um a fantasia de
que
se
S «.' i p o d e co me r qualque r coisa e m
207
de mund o se assemelh a á alguma s
obra s cie Arcimboldo - pintor renascentista
italiano q u e c o m p õ e sua s imagen s co m legume s
o u trutas , entr e outro s elemento s d a natureza .
Seus quadros , xistos d e longe , representam u m rosto
hu mano , mas, q u a n d o chega mo s perto ,
constatamos , po r ex e m p lo , q u e o nariz é
um pepin o ou uma berinjela, os olho s sa o feitos de
vagens , os lábios de cerejas. Fssa imagem compost
a de objetos comestíVeis pocle ser x ista com o uma
alegoria cio quadr o perceptivo da criança be m
peque na , cujo pensa m ent o assim se organiza: "se
nã o sei o q u e me aflige, dev e ser fome. se desejo
algo. eleve ser para comer". () únic o sofrimento,
qu e vez po r outra preocup a Magali. e a do r cie
barriga; embor a sua gula - proporciona l ao ta manh o
de sua truta predileta, a melancia -, em geral,
n a o lhe custa muito caro.
De certa forma, ela encarn a um poder : o de
come r irrestritamente ate dizima r q u a l q u e r
estoque . C o m o uma nuve m d e gafanhotos , na o h á
restaurant e o u casa q u e ela nã o esvazie, e é
diss o q u e eman a sua veia cômica . S a be m o s
q u e , po r m el h o r q u e seja no s s o ap et it e ,
jamai s c o m e m o s t a n t o q u a n t o a m a m ã e
gostaria. Mães costuma m pô r no prat o aquel e
algo a mais, cie tal forma q u e o filho nunc a
consiga come r tud o e sempr e fique em falta.
Diante disso, o apetite cie Magali e uma
vingança . T u d o o q u e a mã e possa oferecer ao
filho sem pr e será insuficiente, sua clespensa ficará
pe q ue n a diant e cia fom e de Magali. Assim,
a insuficiência, q u e se m p r e estava d o lado d
o apetit e do filho, fica agora relegad a ã mãe
, pois ela nunc a c o ns eg u e cozinha i e m
q u a n t i d a d e suficiente. Aliás, na \ ida do s filhos
ess e m o m e n t o sempr e chega: na adolescência ,
sã o todo s Magalis, juntam-s e co m o s amigos
para pô r a mã e no d e s e s p e r o da insuficiência.
Magali é a prova cie q u e , d e s d e p e q u e n o s ,
os filhos sonha m com essa rexanche .
Hxiste um personage m secundário ,
Duclu. um p o u c o m a i s j o v e m q u e o s d a
turma , qu e é o contrapont o de Magali.
Duclu vive em uma espéci e de grev e de
fome . par a ede tod a a comid a é tuna
ameaça . O mot e de sua s histórias é o
de se s pe r o cie sua mã e q u e r e n d o q u e ele se
alimente . Duclu faz um tipo mei o anoréxico . aquel
e q u e s ó existe paia recusar o assédi o da mãe ,
frustrar seu s desejos , vomitar sua s exigências.
Temo s nel e mais um p er so n ag e m qu e é um
traço cie personalidade .
Certa anorexi a faz part e da primeira
infância e nã o s e constitui e m n e n h u m tip o d e
patologi a grave. s Logo a criança de s co b r e q u e
te m p o d e r d e alterar seu s adulto s q u a n d o n ã o
c o m e o q u e lh e oferece m e passa a usar ess e
expediente . No primeir o p eríod o de
Fada s n o Div a — P s i c a n á l i s e n a s H is tó ri a s Infa nti s
crianças n ã o deixarã o de abordá-la. Claro q u e
o ambient e desse s qua drinh o s é religioso -
basicament e cristão: te mo s o céu . o inferno, a
vida, e m função d e sen cresciment o acelerado ,
u m b e b ê ingere uma quantida d e grand e d e idéia da transmigraçã o da s alma s (idéia
alimento , s e levad o em conta q u ã o p e q u e n o ele espírita de
é. Ao final dess e período , lá pel o se g u n d o a n o de
vida, passará a come r p ro p or ci o nal m e n t e a se u
t a m a n h o , p ort a nt o m uit o menos . Hsse m o m e nt o
nor mal men t e produ z crises na mae . qu e se sent e
recusad a junto co m o aliment o q u e o filho deixa de
ingerir. () raciocínio é simples: se o filho c o m e
tudo , significa qu e ela te m par a da r
correspond e ao qu e ele deseja; se sobra , há alg o
dela q u e el e n a o quer . q u e vai par a o lixo .
Por isso . normalment e a s mãe s engor da m
c o m e n d o o s restos deixado s pelo s seu s filhos,
elas reincorpora m aquel a parte de si q u e haviam
oferecido , mas qu e ningué m quis comer. Já Magali
usa outr o método , o de lembra r á mã e q u e esla
nunc a conseguir á oferece r o suficiente.

Crianças filósofas
••"• '•"' gama de perso nage n s de Maurício é
muit o
... • mais vasta que o pequeno grupo
q u e já
. . :. comentamos . Seu sucess o també m se
dev e a uma variada galeria de
persona gen s q u e
e v o c a m o u tr o tip o d e q u e s t õ e s , a s q u ai s
n a o s e restringem ao s percalço s do crescimento . 1
lá a turma d o Chic o Bento , arquétip o d o
n o s s o i n t e r i o r a n o esperto , um Pedr o Malasarte
mais jovem, diluíd o e adocicado . Temo s o Biclu.
um cachorr o q u e se p r o p õ e q u e s t õ e s e x i s t e n c i a i s .
Mas é s o b r e a t u r m a d o Penadinho . qu e têm
corage m de falar da morte , a qual també m é uma
personage m - Dona Morte - q u e é important e
se dete r um p o u c o mais.
As crianças, q u a n d o deixada s ã própri a
sorte, po d e m nã o chega r a n e n h u m a concl usã o
filosófica brilhante, mas. sem duvida, se formulam as
pergunta s certas . A inibica o d o m u n d o a d u l t o
s o b r e certo s assuntos as Ia/ recuar ou silenciar, e
existe um cert o c o n s e n s o cie q u e a mort e n ã o
seria a ss u n t o par a crianças. Por sorte. Maurício
n a o compartilh a dess e tabu. Criou uma u m
persona ge m d e m e s m o nome . cuja versã o cm
quadrin ho s c or re s po n d e á represen • tação clássica
qu e temo s dela: Don a Morte é vestida d e n e g r o ,
carreg a um a foic e e ve m a qualque r
mo me nto , sem piedade , no s buscar.
Embora existam formas religiosas cie
minimizar o impact o do limite da vicia, a mort e
apresent a se m p r e a questã o da tinitude, e as
origem , ma s já b e m brasileira), ele ment o s qu e fazem
da tinitud e algo m e n o s radical. De qualque r forma,
Don a Morte c o m p a r e c e ao s q u a d r i n h o s para fazer
pensa r sobr e isso q u e ocorre , a todo s os momentos,
em toda s as famílias e so b r e o q u e se comenta
o mínim o indispensável .
H gr a n d e o n ú m e r o de famílias em qu e não se
fala da mort e para as crianças. Mesm o diant e de mortes náo-
traumáticas . c o m o a cie algué m muit o velho ou há
long o t e m p o do e nt e , cujo fim era esperado, os
adulto s nad a falam para os p e q u e n o s sobr e
aquilo q u e já sabiam, mas cochicha m ostensivament e ao redor
deles . Os adultos , muitas vezes, projetam nas crianças sua
impossibilidad e cie aborda r o problema , deixando- as
solitárias para elabora r a tristeza de uma ausência
sentida. A be m da verdade , projetamo s na s crianças
uma condiçã o de ignorância q u e almejaríamos ter, que bo m
seria se fôssemos p o u p a d o s de sabe r da existência cie tud o
o q u e é ruim.
A morte retratada po r Maurício sempr e chega com su a
inclemênci a costumeir a e encontr a a resistência p o r
pa rt e da vítima , q u e foge . a e n g a n a e pede
prorrogação : sã o raros os q u e se entrega m de bom
grado . De um jeito ou de outro , cda acab a po r cumprir seu
objetivo, mas talvez esteja també m para nos lembrar cie q u e
[iodemo s viver s a b e n d o de sua existência e g a nh an d o
dela a cad a dia.
Muitas vezes, correm-s e grande s riscos provenien• te s
da ignorânci a da m ort e . J o v e n s seguidamente
s u c u m b e m em acide nte s frutos cia onipotênci a do
comigo nâo vai acontecer nada. A mort e está
sempre á espreita, nã o existe essa de coipo fechado;
levá-la em cont a é a melho r forma cie evitá-la. Por isso.
nàoé ma u negóci o tocar ness e assunt o co m as crianças, que
aliás pensa m nisso e em outro s assunto s cabeludos -
c o m o sex o - co m muitíssimo mais freqüência do que
qualque r adult o poss a imaginar.
O ut r o desse s assunto s polêmic o s é a loucura.
Nas histórias cio Cebolinha . existe um personage m que a
encarnaria , aliás seu n o m e é Pouco, para nã o deixar
dúvidas . Fie é a represe ntaçã o idealizada da loucura
e m consonânci a c o m noss a época , resultad o d e anos d
e trabalh o dos m o v i m e n t o s d e a b e r t u r a dos
manicômio s , visand o a valorizar esse s sofredores e
encontra r um a representaçã o mais digna para a psicose. Na
c o n c e p ç ã o an ti psi q ui át ric a , m u i t o p o p u l a r na orige
m dess e moviment o , o louc o habitaria um mundo co m
outra lógica, seria feliz a se u m o d o e estaria de b e m
co m sua excentricidad e (o q u e infelizmente não é b e m
assim). C o m o a o p ç ã o de Maurício é nã o elidir assuntos ,
talvez se u p e r s o n a g e m seja a representação
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mário Cors
o
p e n d o r para a fantasia, outra fonte par a o
fantástico p ro v é m de

possível da loucura dentr o do univers o do s quadrin ho s


para crianças daquel a idade . Inclusive n ã o
sabe mo s se ele represent a ap e n a s a loucura . Seu
interlocutor preferencial é Cebolinha , q u e já vimos
demonstr a certa inteligência e um a subjetividade
mais elaborada .
A s hi st óri a s d o L o uc o sã o pur o
iioii-scnsc. possuem uma linguage m onírica, mostra
m absurdo s de todos os tipos. Boa parte é construíd
a co m chistes oriundos da linguage m levada ao pé
da letra, em q u e chover canivet e é mesm o
ch o v e r canivete , n ã o há metáfora. Q u e m te m
al gu m a familiarida d e c o m a linguagem do s sonho s
ou do s delírios sab e qu e é assim mesmo qu e eles
funcionam , trata-se da imaginarizacã o do simbólico,
ou seja, da construç ã o cie imagen s a partir da
literalidade da s palavras. T u d o o q u e o Louco diz se
materializa, criand o situações absurdas . Seguida• mente,
a interpretaçã o d o s so n h o s em um a analis e
segue o caminh o contrário , basta traduzir as
imagen s em palavras e a mensage m onírica se
revela.
Os sonheis interrogam, os pesadelo s assusta m
e ambos levanta m questõe s co m seu s absurdos .
Nã o é necessário freqüentar um consultóri o de
psicanalista; basta observarmos , á mesa do café da
manhã , q u e . ao despertar, estamo s intrigado s c o m
nosso s s o n h o s e seguidamente busca mo s um a
interlocuçá o q u e ajude a resolver a charad a onírica.
Sabemo s q u e se trata de uma lógica q u e precisa,
c o m o um código , decifração e interpretação e agimo s
c o m o q u e m acredita q u e falar sobre isso é o caminho . H
foi po r isso q u e a psicanálise passou a se o cu p a r do s
sonh os .
As crianças també m se interessam po r seus sonho s e
ainda nã o desenvolvera m o preconceit o
científico, que geralmente distancia os adultos deles.
Muitas vezes. se recusam a dormir co m m e d o de q u e o
monstr o com que sonharam volte, porqu e o terren o do
onírico demor a a ficar claramente separad o cio desperto.
Inclusive depoi s de crescidos, ainda muitas vezes temo s
sonhos , cie um a vividez tal q u e teme mo s tere m
realment e acontecido . Mas, aquil o q u e para o
adult o e ocasional , ocorr e freqüentemente na
infância, de tal forma qu e os terrores noturnos q u e
ap ar e ce m insistentement e durant e o s primeiros
ano s de vida sã o resultado dessa sensaçã o de
realidade do sonho . Por isso é compreensíve l para
elas que os delírios do louco, qu e sã o c o m o
sonhos , tomem conta da realidade. K tud o muito absurdo ,
co m o no País das Maravilhas de Alice, mas , dentr o da
lógica infantil, encontr a certa viabilidade.
Além disso, as crianças costumeiramen t e
entre • gam-se a fantasias bizarras, p o v o a d a s de vôos ,
animai s estranhos e aventuras . Nã o bastass e ess e
209
quandoje v am os adulto s a sério em certas brincadeiras:
po r exemplo , a idéia d e q u e p o d e nascer um a
melancia na barriga de q u e m engol e as sementes . O
pensament o do s p e q u e n o s fica balanç ado , e eles
imaginam cie fato essa gestaçã o vegetal, um a
barriga e n o r m e com uma melanci a dentro .
Provavelment e , o Louco dê conta dess a lógica
n ã o s ó d o s s o n h o s , ma s cias fantasias diurna s
tamb ém . Lm muito s aspectos , o Louco faz o
pape l daquel a inge nuida d e infantil qu e leva a
com• p r e e n d e r as situaçõe s e as falas de forma
engraçada , tal c o m o imaginar q u e toda s as receitas
culinárias levam sopa e chá entr e seu s ingredientes ,
já q u e menciona m colher e s d e sop a o u chá
c o m o medida .
(") Louco, ao se incumbir da ingenuidad e
e dos absurdo s do pen same nt o infantil, faz o
contrapont o que reserva a Cebolinha um espaç o
de maturidade que os outro s personagen s nã o têm.
Cebolinha é o mais velho da turma, representant e do
olhar de Maurício cie Sousa sobr e sua própria
infância: foi o primeiro a ser criado e de u n o m e
ás tiras qu e precedera m os gibis por quase um a
década . O Louco e o Cebolinha representa m para as
crianças a possibilidade cie ver de tora as
bizarrices cie sua infância, co m o consol o de que .
mes m o send o aind a crianças , já deixara m cie
ser tolinha s (nisso o expedien t e é o m e s m o qu
e un e Christopher Kobin a se u urs o d e
pelúci a falante , o Pooh , d e qu e no s
oc u pa m o s n o capítulo anterior).

Um cachorro que é um portal mágico


f+;""rVii loqui nh o é o cachorr o do Cebolinha.
mas
" " x"t b e m poderi a ser do Louco. Lsse
cachorr o
£•- f*í verde , cuja representaçã o é a de um
tufo de pêl o ambulante , se m olho s ne
m focinho, é
antes de tud o um enigma, ningué m sab e o n d e
está a cabeça ne m o n d e está o rabo. O própri
o sex o dess e animal fantástico já foi motivo de
dúvida: só sabe mo s qu e é mach o porqu e corr e
atrás cie cadelas. Lie tem o porte de um cachorr o
médi o completamen t e peluclo. e existem histórias e
m q u e é com post o s ó d e pêlo, co m o se fosse um
novelo . Q u a n d o e puxad o um fio, ele se desfia
todo : enrolanclo-o, restará um novel o e nada de
cachorr o embaixo , [-'loquinho é etéreo , mas nã o só
isso, ele é uma espéci e de burac o negr o de baixa
gravidade. O s objeto s q u e caíre m d e nt r o del e
p o d e m ficar lá, perdido s po r muito tempo . Ele
parec e uma porta para outra dimensão , um a
dimensã o interior mágica o n d e t u d o cab e e o n d e
o tama nh o n ã o é problema .
O q u e é peluclo, enigmático , imateríal e
janela para um a dimensã o interior? As fantasias
principais de
Fada s n o Div a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infa nti s
propriedade de se r infinitos quanto ao

incorporação d e qu e temo s no s oc u pa d o nessas análises


são, sem dúvida, orais, mas nã o sã o as únicas qu
e as crianças fazem. Afinal, os bebê s nã o sae m
pela boca - apesa r de seguidament e as crianças se
explicare m o mistério d o nasciment o lançand o mã o do s
recursos q u e conhecem , com o o percurs o do
alimento.
Mais c e d o o u mai s tarde , elas d e s c o b r e m
o u aprende m qu e as crianças são concebida s
(entram) e paridas (saem) pela vagina. A vagina nã o é
um órgão, e um orifício. O fato de suas parede s e
arredores estarem cobertos de sensores por ond e esse
burac o se positiva nã o a exime de ser um espaç o
vazio, passível cie ser preenchido. Ou seja, a vagiria
pod e ser concebida com o etérea, com o o Floquinho, o
qual, em sua parte visível é coberto de pêlos; assim com o
o órgão sexual feminino é um orifício com bordas peludas.
Se a vagina é um burac o peludo, Floquinho é um
pelud o buraco.
O parto é um enigm a até para as
mulheres . A elasticidade da vagina. assim c o m o toda a
reaco mo da - çã o óssea qu e permit e a saída d e u m
b e b ê tão grand e po r u m espaç o ta o p e q u e n o , e
u m f e n ô m e n o q u e beira o inacreditável. Mais um
p o n t o par a essa noss a associação, tão estranha ,
entr e Floquinh o e o interior d o corp o materno .
Para Floquinho , t a m a n h o nã o é problema , em
mais de uma história a turm a já entro u no cachorr
o para fugir da s coelh ada s de Mônica. e nã o
consta qu e ficaram apertados . \ á o deix a cie ser
tão espant os o q ua n t o Lima gestaçã o gemelar,
princi• palment e d e trigêmeo s o u mais.
N o papel d e a d v o g a d o d o diabo , e contra
nó s mesmos , percebe mo s q u e essa hipótes e
enfraquec e a o constatarm o s q u e ge ra l m en t e a s
re pr es e nta ç õ e s evocativas da s entranha s d a progenitor a
costu ma m ser aco mpan ha da s de uma versã o
terrorífica. A fantasia qu e melho r a traduz é a
de ter sid o enterrad o vivo. Fm princípio, nã o é
agradável pensa r q u e p o de ría m o s ser engolido s
novament e pel o monstr o q u e já fez o favor de
no s expulsar. Afinal, entra r nu m corp o é uma
incorporação, é fundir-se ness e ser maior. Isso costum a
vir ac o m p a nh a d o de terror e angústia, pois p e rdemo
s os limites da nossa própria pessoa . Se n ã o
sabe mo s mais o n d e termin a o eu e ond e
c o m e ç a o o utr o , evidentement e pouc o no s resta d
e um a identidad e d e qu e possamo s reivindicar.
Porém, Floquinh o nã o é nad a disso, n ã o
evoca medo ; ningué m tem pânic o d e n ã o sair l á
d e dentro , mais dia me no s dia, tud o q u e entra
sai. T a m p o u c o gera objetos, ele n ã o tem essa
capacidad e , a p e n a s o s retém involuntariamente . Fie
n ã o s e assemelh a ao s saco s mágico s d o s c o nto
s d e fadas . Em bor a este s possua m a
pessoa s desaparece m e surgem , sã o
igualmente fascinantes, o q u e leva os pais de be b ê s
deambulantes â exaustão , pois estes abrirã o e
co nt e ú d o , c o m o o cachorr o de Cebolinha , geralmente sã o fecharã o portas de recintos e armários milhares de
mai s g e n e r o s o s , d ã o a o se u d o n o incontáveis vezes, se n d o qu e muitas veze s deixa m os d e d o s no
riqueza s po r sere m geradores . caminho . Essa curiosidade pel o dentr o e fora. assim
Fm c o m p e n s a ç ã o . Floquinh o é fonte de mistério, c o m o a q u est ã o do qu e cabe e do qu e nã o cabe , é um a
talvez, po r ser mais um f en ô m e n o q u e um personagem. Seu obsessã o q u e faz cias crianças bagunceira s
d o n o cheg a po r veze s até a duvida r de que ele seja profissionais. Não no s surpreend e então qu e
d e tat o u m c a c h o r r o . Cert a o c a s i ã o , alguém Floquinh o possa també m ser um a forma de brincar co m
desafiou Cebolinh a a prova r q u e aquil o era um cachor• ro esse s assuntos , tã o lúdico q ua n t o u m b o m armário d e
m e s m o . O assunt o ficaria soluciona d o fazendo-o latir, panelas .
mas o satad o miou... Fogo foi descobert o que o miad o Floquinh o oportuniz a um exercício tranqüilo
vinha de um gat o q u e estava perdid o em seu interior. da fantasia de entrar e sair de um corp o ou
Por fim. Floquinh o latiu. Mas co m ele é assim, n ã o se sab recinto, de aparece r e desaparecer . F fundamental
e be m o sexo , o n d e é a cabeç a e qual éo lad o do q u e fique claro qu e ele nã o é exatament e uma
rabo , enfim, só se p o d e supor, deduzir com representaçã o do órgão feminino, apena s evoca algumas
dificuldade seu s atributos. Diante de tantas conjecturas, parec da s suas possibilidades lógicas, considerand o o
e q u e ess e personage m no s c o nd u z outra vez a pens a pensa me nt o infantil, é claro.
r no s mistérios do sexo , em particular o sexo
leminin o q u e costum a ser c o n ce bi d o c o m o ausência.
As crianças p e q u e n a s sempr e tê m assunto com
Elogios e críticas
bolsas, buracos , gaveta s e armários . Q u a n d o menos
espera mos , elas tiram tu d o lá de dentr o e, não raro, fTjSj-j©. univers o de Maurício é muit o maio r que os
entra m lá; além disso, cada um a tem , em sua «1 I Ã 3 í p er so n a ge n s analisados , exa mina m o s
casa, seu s buraco s lavoritos para se esconder . Lugares como aqui ffcwjáj o q u e c o n s i d e r a m o s a s li n h a s
u m armári o d e panela s sã o u m p ar q u e d e diversões, d e força principais . Mas há um caminh o abert o
pois esse s utensílios sã o barulhentos , brilhosos e ainda c a b e para
m u n s n o s o ut ro s . Portas , p o r o n d e coisas e

210
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o C o r s
o
is linhas de forç a aminho abert o par a

ebolinha. geralment e ! . sistematizar a contribuiçã o educativ a de Maurício na


:u dono incontáveis ) cultura brasileira. Sobr e isso há muit o a dize r e elogiar: por
o é fonte de mistério, ] exemplo, existe m po u c o s autore s infantis q u e d ã o tanto
que um personagem , espaç o para a ecologia . Em sua s histórias, há uma
i duvidar de q u e representaçã o muito simpática do índio brasileiro, n o Papa
eleí Capi m . A d e q u a d o o u n ã o (n a n o s s a percepção,
•ta ocasião, a l g u é m sim), ele entra no noss o imaginário c o m o um dado a
' iquilo era um cachor- pensar. Enfim, um rastreament o exaustivo , visando a
lucionado fazendo-o valorizar a abrangênci a e a relevância cio trabalho de
oi descoberto q u e o Maurício em nossa cultura seria bem-vindo . Tomara qu e nã o
tava perdido em seu d e m o r e tant o para ser divulgado , quanto de m o r a m o s
Mas com ele é assim, a para teorizar sobr e a importânci a da obra de Monteir o
cabeça e qua l é o Lobato . Foi precis o q u e se u trabalho envelhecesse ,
supor, deduzi r co m para q u e come çasse m a sair estudos reveland o o
de tantas conjecturas, q u a n t o el e no s legou.
; conduz outra ve z a A principal crítica q u e no s ocorr e fazer a Maurício éo fato
m particular o sex de ele deixar uma important e faceta da infância, ávida escolar,
o s o b a responsabilidad e a pe n a s tio Chico Bento. Chico é um
)ido como ausência , persona ge m rural b e m co mple xo , que tem toda um a vida e
ire têm assunt o co um s e m -n ú m e r o de aventura s para dar conta e aind a tem q u e
m se d e s e m p e n h a r c o m o aluno esforçado.
"ios. Quand o meno s
A Turma da Mônica propriament e dita nã o vai â
dentro e, nã o raro,
escola, o qu e a distancia em termo s de realidad e do
i tem. em sua
grosso de seu público , q u e está em idad e escolar. Ou
casa, Dnder. Lugares
co m o xirque de seja, a maioria do s leitores de Maurício nã o tem seu
diversões , os. cotidiano n arr a d o nessa s histórias . Fies e n c o n t r a m
brilhosos e aind a por material para elabora r sua s fantasias antigas, ma s nã o
ond e coisa s e m. seus problema s atuais. Essa omissã o n ã o é qualquer . já
são i g u a l m e n t e que a escolarizaçâo se impõ e hoje de s d e muito cedo .
bebês deambulant e s Provavelmente, essa diferença correspond e muito
fecharão porta s de mais a uma transformação social. A infância retratada
es. sendo qu e muitas por Maurício é a sua própria e a de suas três primeiras
lio. Essa curiosidad e filhas, transcorrida nu m temp o em qu e se brincava com a turma
questão d o q u e cab e da rua e a escola era apena s uma parte do dia. A violência urbana
) que faz das crianças empurro u as crianças para uma escola• rizaçâo precoce e
)S surpreende entã o prolongou a permanência do s peque • nos em atividades
una forma de brincar pedagógica s (esportivas, artísticas, recreativas). Portanto,
nto um bo m armári o embor a aqui constatemos um certo envelhecimento da trama,
acreditamos qu e os leitores fazem as devidas transposições
entre a turma do bairro do Limoeiro e a da escola.
cercício tranqüilo da Tanto famílias c o m o escolas procura m criar para as
orpo ou recinto, crianças um a bolh a de proteçã o de tud o o q u e noss o mundo
de jntal que fique tem de sofrimento e maldade . Co m o Bairro do Limoeiro nã o
claro resentação do é diferente. O espaç o de seguranç a dess e mundo é o núcle o
órgã o s suas familiar, toda s as personage n s tê m pai, mãe e um a
possibilidades ito cas a c o m p a z . A únic a font e de sofrimento para essas
infantil, é claro. famílias é a dificuldade financeira, ninguém é rico e alguns,
c o m o a família do Cascâo e do Cebolinha, precisa m
lutar bastante . Porém , esse s

muito maior q u e os
, examinamos aqu i
]
sem pr e s e reno vando , portanto , e m extinção , co
m a se n sa ç ã o d e q u e j á nasce mo s s e n d o
u m m o d e l o s u p e r a d o e se m encaix e n o
contratempo s só pape l qu e espera m d e nós . A sua
empr esta m uma modernidad e e a ilusão de construir-s e
tinta bucólica de s o z i n h o , se m referênci a s p a r e n t ai s . aliás
vicia simples, n e m d a genética ele aceita herança , po r ser
nad a é insolúvel vegetariano .
n e m irreversível
ou realment e As personagen s da Turma da Mônica.
duro . mesm o habitam o bain o do Limoeiro, um lugar antigo,
situaçê)es c o m o ond e tud o se ajeita e pod e ser tratado co m leveza.
o desemprego , Com certeza é um espaç o assim qu e lutamos
o u a separaçã o para construir para nossas crianças.
do s pais, sã o Infelizmente, um dia todo s crescem e
apresentada s co viram Horácio. Restrita a esse universo
m leveza, graças â aconchegante, a ticcao de Maurício cumpr e sua
comicidad e e função, mas nã o cobr e a gama de neces•
ao afeto das sidade s das crianças. Estas, finda a
personagen s infância, busca m consumi r histórias qu e
entr e si. retratem sua vida de lutas no m u n d o
externo, muito além do bairro do Limoeiro.
O únic o
persona ge m Assim, sobra e s pa ç o para programa s e
órfão é 1 publica- cê>es q u e ofereça m histerias sobr e o
lorácio - figura s problema s q u e as crianças têm na escola
principal de e na vida fora de casa e a televisão tem s
tiras co m e incumbid o co m muit o boa qualidad e dessa
algun s outro s temática. Com o exemplo , citamos o canal infantil
dinossauros . F Xickelodeo n CIA" a c a b o de origem norte-
um a situaçã o americana) , q u e veicul a trê s programa s
irreversível , qu e c o n s i d e r a m o s inte ressante s : í)oii(>.
q u e faz d e l e criad o po r Jeff J e n k e n s ; Iley. Aruold!. de
. para • Craig Bartlett: e As To/d by (iiiiger, Csup o
doxalmente , o Gabor . Esses sã o algun s entr e outros , a p en a s
mais m o d e r n o d e para citar q u e existe muit o e s pa ç o entr e o
todo s o s públic o infantil para consumi r histórias q u e
persona gen s d o en f oq u e m d e frente algun s d e seu s problema
Maurício . s cotidianos .
Florácio é u m N o ram o da s revistas, a publicaçã o
tiranossaur o criada pel a Disney italiana, chamad a
pequeno . W.I.T.C.H., abr e es p a ç o par a o s conflitos da s
vegetarian o e m e ni n a s p ú b e r e s . N a verdade , ess a série
pacifico (ou apost a n o s doi s c a m in h o s , elas p o s s u e m
seja. a pura um a faceta mágic a e outr a c o m p o r t a n d o
contradição) , o m u n d o da s meni na s co m u n s , c o m seu s
nascid o de um proble ma s lie m concretos .
ov o a b a n d o n a d
o ao sol. F,
um sujeito tor a
2
de época, de
1
lugar , a
1
própri a imag e
m d o d es a m pa r
o e da
solidão, ide e
o q u e mais se
parec e c o m o s
seres h u m a n o s
d e hoje :
somo s tã o se
m referências
c o m o Horácio .
perdido s nu m
lugar q u e está
Fada s n o Div a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infa nti s

A s criança s q u e r e m u m p o u c o cie tudo , tant o consol o 2. Trata-se Candid Camera, um tradicional


q u a n t o desafio, o impo rtant e é a varieda de . programa de 'IV, qu e iniciou no rádio em
Aliás, c o m o teremo s o p o r t u n i d a d e d e tratar mai s 1947. Ele capta reaçõe s de gent e c o m u m
adiant e nest e livro, o e n c a n t o d o s livros de em situações bizarras artificialmente criadas.
Harry Potter. escrito pel a inglesa J.K. Rowling . 3- Hsse p o n t o de vista, norma l na infância,
p r o v é m justam ent e da e x p lor a ç ã o dest e filão q u e pode aparecer de forma patológica na vida
mistura o mágic o e arcaic o c o m o cotidian o adulta, é a paranóia, quand o outra vez alguém se
m o d e r n o d a s crianças , t e n d o t a m b é m u m sente o centro mundo . Afinal, graças a qu e está send
ambiente escolar como c e n á r i o preferencial . o perseguido, o paranóico se considera importante,
objeto central de uma grande conspiração
cósmica.
Enfim •i. LACAN, Jacques. Escritos. Ver O Estádio do
Espelho Como Eormador da Eiaiçcio do Eu. Rio
f3°«f 8 s pers<magens da Turma da Mônica de de janeiro: Jorge Zahar Editor. 1998.
certa Wx, |»i , forma sã o toda s deso bediente s : =>. \VI\MCOTT , I). W. Da Pedialria ã Psicanálise.
Mônica n ã o i L á ^ l f atcrule aos pedido s d e na o bater Rio de J a n e i r o : Francisc o Alves, 1993, p.
no s amigos : T3 . Tal capacidad e se expressa pela
"*" Cebolinha nã o se cura de sua obsessã possibilidade de o beb ê brincar na presença
o po r derrotar a don a da rua; Magali n ã o pára de da mãe (ou substituta), mas abstraindo-a,
comer ; e Cascâo nã o toma ba n h o . O dia e m q u absorto em seus assuntos, para s ó depoi s
e ele s o b e d e • cerem acaba a história. Sua p o d e r ficar s o z i n h o se m med o d e
intransigência demonstr a q u e a infância na o é desaparecer .
curável , n e m domesticável , o únic o m o d o d e 6. VVIXNICOTT, I). W. Realidad y Juego. Ver
passa r pelo s se u s r e ve z e s e mal - entendido s e Objetos Eransicionaiesy Fenômenos
vivendo-o s e sofrend o sua s c o ns eq ü ê n • cias, pois Eransicionaies. Buenos Aires: Gedisa. 1982.
é co m elas q u e se cresce . Nessa s horas , nada "\ Ibidem. p. 18.
co m o aliados liecionais, per sonag en s q u e sirvam com o 8. Não estamo s nos referindo aqui aos
metátora s d o q u e s e sente , ma s n ã o s e sab e q u e se transtornos alimentares conhecido s com o
sente . Sua missão é durar, persistir sempr e idênticos a anorexia nervosa e b ul i mi a . A c r e d it a m o s
si mesmos , e n c e n a n d o o m e s m o roteiro, e n q u a n t p o d e r utiliza r o termo
o uma geraçã o apó s a outra passa po r eles. "anorexia" para explicar qu e a criança
recusa o aliment o por razõe s mera me nt e
subjetivas, que nada tem a ver com as
Notas necessidade s de nutrição, é uma alusã o ao
recurs o de equaciona r as coisas através do
1. l'ma colega, Eda Tavares, sugeriu aqui outra come r ou nã o comer. Para as crianças, a
linha de raciocínio qu e nos parece interessante. alimentação, tão central na rotina de sua
Há um significativo número de relatos cie irmãos que vida, acumula a função de representar o vínculo
atacam de alguma forma as bonecas da irmã. com a mãe . Compreendem o s qu e faz parte do
Cortam os cabelos, as decepam . enfim, um transcurso normal de uma infância qu e uma
sem-númer o de po ss ib ili d ad e s , ma s c e r t a me n t criança passe por período s em qu e se recusa a
e é u m a t a q u e deslocado â própria irmã, à ingerir boa parte do s alimentos e vomita o qu e
se sentir forçada a comer.
sua pessoa ou a seus poderes femininos. Afinal,
as boneca s são sempre 9. O própri o Maurício de Sousa num a
"filhas", qu e coloca as irmãs com o detentoras entrevista declarou qu e o Cebolinha o
da capacidade de gerarem vida com o a mamãe. representa de certa forma. Ver Zero Hora, em
7
de junh o de 2003.
212
Capítulo XV
ERRAR É HUMANO

.S

Pinocchio
A formaçã o moral tias criança s - Importânci a da experiênci a - Ncnro.sc
inlaniil - O p e s o da s expectativa s parentai s - Construç ã o cia identida d e
parcnta l -
Conto s de fadas m o de r n o - Internalixacà o tias regra s - Significado tias
mentiras - Defesa contr a a alienaçã o - Metáforas do
renasciment o

Uma antifábula foram as crianças q u e gostara m tia historia e


pedira m su a c o n t i n u a ç ã o . Ante s disso , Collocli
íj&PISSp^iP^ii ; m b o r a hoj e c o n h e ç a m o s conquistar a algu m r ec o n he ci m e nt o co m a traduçã o
A s mW i d p Q mMfi forma de um livro, do s conto s d e fadas do francês Charles Perrault para o
essa his- J K anKa> S H ! tória foi escrita italiano. Collocli tinh a t a m b é m algum a influencia
c o m o u m ro- pe d ag ó gi c a , poi s escrever a livros didático s e se
interessava po r questõe s educacionai s .
De qualque r maneira, essa história e seu
perso• nage m principal conseguiram forte penetraçã o na
cultura, pouco s lhe sã o indiferentes, mas temo s dúvida
Roma, concebido s lentament e se ele é tão amad o quant o conhecido . Muitos quere
por Cario C o l l o d i / ao long o cie um a escrita m distância de Pinocchio, inclusive da versão
várias vezes interrompida ; retomad a q u a n d o o Disney, mais suave qu e a original. Isso nã o é
auto r estava pr es si o na d o pela s carta s do s devid o á inconsistência da o b r a . talve z seja
p e q u e n o s l e i t o r e s exigindo a c o n t i n u a ç ã o d a s e l o q ü e n t e d e s e u s m é r it o s . N o depoiment o de
av e nt ur a s d o b o n e c o 1 algumas pessoas qu e conhece m a história, mas nã o
(dizem q u e t a m b é m p e l a s dí vi d a s q u e e r a m gostam dela, percebemo s qu e essa rejeição se deve à
tã o insistentes q u a n t o a s c r i a n ç a s ) . D e cert a empatia co m o sofrimento decorrente da desorde m psíquic
forma , poderíamos dize r q u e ess e marionet e já a d o personage m . Pinocchi o prod u z um a
nasce u c o m seus cordõe s m a ni p ul ad o s pe l o se u identificação direto e forte, provocand o angústia em certos
público , afinal
Fada s n o Div a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infanti s
com o o cu id a d o co m a s tentaçõe s
pr o ve ni e nt e s da s má s
leitore s q u e s e e m o c i o n a m i n t e n s a m e n t e c o m
a s trapalhadas sem fim tio herói.
O texto cie Pinocchio, cujo estilo merec e Lima visita a
o original , é inclassificável . Kmbor a à s v e z e s
s e aproxim e tle um cont o cie fadas e tenha
elemento s cio romanc e moderno , ele lembra Lima
fábula ao avesso. Cada confusão armada pel o bonec o e
cercada de moral: ele é avisado antes de fazê-la.
aconselhad o a desistir e sujeito a recriminacoes,
geralment e po r algum animal qu e lhe enuncia trases
cie sabedoria e bo m senso , mas Pinocchi o insiste e
erra sistematicament e ; p o u c o a pouco , são as
intenções moralizantes qu e ficam com o as grande s
derrotada s da história. Pinocchi o sempr e faz pouc
o caso da sabedoria qu e lhe ê oferecida e cai em
qualque r cilada qu e encontra no caminho . De fato.
ele só aprend e com a experiência, cie nacla adiantam as
aclmoestacoes do s mais velho s e cios sábios,
ele só saberá separar o joio do trigo errando , errand o
muito e errand o mais uma vez, ate a exasperaçã o cio
leitor.
A a po st a pedagógic a cias fábula s era
n u m a divulgação facilitada do s bon s princípios, que . po
r essa via, ilustrado s co m situaçõe s simple s
e n v o l v e n d o animais, poderiam ser compreendid o s e
incorporado s por aquele s a que m se necessitava
educar. Conforme a intenção de l.a Fontaine, tratava-se
de construir o sistema moral do s seres humanos , enquant o
eram ainda crianças, através d e fábulas. \ a s suas
palavras:

convém que as crianças se alimentem cie fábulas ao


mesmo tempo que sugam o leite: compete às
amas proporcioná-las. pois não há outro meio de
acostumar desde cedo à sabedoria e à virtude. Km vez
de sermos obrigado s a corrigir nosso s hábitos,
melho r será conseguir torná-los bons enquant o
são indiferentes ao bem ou ao mal. < )ra, que método
poderá contribuir mais utilmente para isso cio que
estas fábulas? '

Pois bem . o texto de Collodi p o d e ser


també m uma resposta a essa posição cio escritor francês,
pois as crianças definitivamente na o sã o muito
receptivas às intenções educativas gratuitas fora de
sua experiência concreta. A simpatia angariada por
Pinocchio dev e algo à sua posição teimosa,
demonstran d o qu e cada um fará seu caminh o
individual n o sentid o d a construçã o d o julgamento
moral. Cada um processará custosament e dentr o
de si os princípios da cultura em qu e cresce,
realizando uma síntese própria através cie uma
história acidentada e singular.
O respeit o ao s pais, a conquist a de um
lugar ao sol através do trabalh o e nã o da esperteza , assim
co m p a n hi a s , sã o assunto s insistentes ness a história.
F m c o n t r a p o n t o a tai s p o s i ç õ e s , o b o n e c o
opta sistematicament e po r péssimo s conselheiro s e
aceita convite s q u e o levam ao ma u cami nho . A
razão das más escolha s deve-se . muitas vezes , à
necessidade de aceitaçã o po r part e cios outro s
garotos . Pinocchio, c o m o qualque r outr o menino , nã o
que r ser visto como u m almofadinh a obediente .
Q u a n t o a o trabalho, pon der a q u e talvez os garoto s
vaclios. assim como os fora-da-lei. tenha m um m o d o de
vida mais interessante para lhe oferecer. \o pé>lo
o po st o a essas tentações, e s t ã o seu s pais.
representado s p o r G e p e t t o (seu criador), a Fada
Azul (um a espéci e de madrinha ) e os animai s conselheiro s
(dentr e eles Grilo Falante, o mais destacad o ) q u e tenta m
poupar-lh e ess e desvio.
Apar ente ment e , seria melho r para todo s se os
joven s n ã o pe rd es s e m t e m p o co m seu s equívocos,
cas o se conve ncesse m cie entrad a q u e nã o há
outro jeito, q u e o mau caminh o é atraent e a curto
prazo, ma s o ne ro s o a long o prazo . Se os jovens nã o
desper• diçasse m t e m p o co m amizade s a pa re nt e m e nt e
pouco construtivas, amore s impossíveis, divertimento s
inúteis e fazend o resistência ao inevitável caminh o do
esforço, ciariam meno s trabalh o ao seu m u n d o e
tornariam-se ad ulto s robóticos , obediente s e
trabalhad or e s mais rapidament e . Mas e cios desvios ,
do desperdíci o e da contestaçã o q u e prové m a
riqueza cultural da nossa espécie . \ á o somo s formigas o
u abelhas , noss o mundo nã o e um a colméia co m um
lugar social estabelecido, nossa natureza nã o oferec e
um caminh o simples, só no s dá algun s instrumento s
para viver. (.) sonh o do p e d a g o g o Irance s d e v e
se r r e d i m e n s i o n a d o , não adianta some nt e ensina r
bem . é precis o respeitar o t e m p o d o e d u c a n d o /
Apesar de a historia se assemelha r muit o a uma
fábula, diferentement e do q u e acontec e ness e tipo de
narrativa, o herói se mpr e é p e r d o a d o e te m sucessivas
o p o r t u n i d a d e s d e tenta r acertar; outr a condiçã o d e
antifálml a p r o v é m d o fato d e q u e o b o n e c o
está e m p e n h a d o em prova r q u e nã o e nt en d e u a lição. Além
disso, ao contrári o cio q u e ocorr e co m Pinocchio, nas
fábulas rarament e aquel e q u e erra te m oportunidad e
de ser alertad o sobr e as possíveis conseqüênci a s de
seu ato. re ce b e n d o um a chanc e cie evitá-lo; geralmente o
en si n a m en t o (a moral da história) c o m pa re c e após a
punição . Por último, p o d erí a m o s dizer que , no fim da
s contas , a história cie Collodi, apesa r de desdenhar d a
mecâ nic a da s fábulas , transforma -s e nu ma , e m
f u n ç ã o cie q u e s u a t r a m a s e d i r e c i o n a p ar a
u m e ns in a m e nt o moral, e m q u e Pinocchi o finalmente
s e encaix a n o b o m camin ho .
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Cors o

A história de Pinocchio
e a n z a r u m a
jS^i sinops e dess a novel a é
sem pr e um desafio, justament e po r ter
sid o escrita c o m o u m folhetim, se m
grande s pretensõe s a uma futura unidad e
textual. Personagen s
morrem e reaparecem , nã o há um fio de continuidad e ,
eo autor termina a história várias vezes, po r isso.
este trabalho é aproximativ o . Só o fazemo s para
q u e o leitor relembre minimament e a trama e possa
raciocinar conosco. Além disso, um relato brev e
priva a história da magia do text o original, q u e
é realment e muit o encantador. Xo estilo em q u e
toi escrito, no h u m o r dos d i á l o g o s , est á a
r i q u e z a q u e c a t i v o u s e u s contemporâneos.
Tudo começ a co m um pedaç o ele macieira falante,
nào ficamos sabe nd o po r qu e essa macieira era mágica,
só que foi ciada ao artesã o Gepett o po r um
amigo . Com o material mágico, Gepett o esculpiu um
bonec o , que antes mesm o de ficar pront o já se
comportav a mal. Enquanto aind a era um p e d a ç o
ele pau . consegui u induzir uma briga entr e Gepett o
e seu amigo, fazendo o b s e r v a ç õ e s jocosa s
sobr e um ou outr o q u e desembocaram num
a pancadaria.
O s on h o de Gepett o era fazer um a
marionet e perfeita, com muitos dote s artísticos, qu e viesse
a torná- lo famoso e be m de vida. Infelizmente, o
c o m e ç o n ã o poderia ser mais desastroso , o b o n e c o
fugiu, provoco u mais d e s e n t e n d i m e n t o s na rua,
e G e p e t t o a c a b o u injustamente pres o po r sua
causa .
A dedicaçã o elo pai nã o encontro u contrapartid
a no filho. Gepett o várias veze s abriu mã o de sua s coisas
para dar conforto e futuro a Pinocchio , mas
tud o o que ele recebe u foi a p en a s ingratidão.
Pinocchi o n ã o conseguia fazer nad a q u e u m
bo m menin o faria, começando po r sua
incapacidad e de ir ã escola: seu fascínio era pel o
m u n d o e log o saiu em busc a de aventuras.
Junt o co m as primeiras manifestações cie
mau s modos do boneco , surgiu o Grilo falante, seu
primeiro conselheiro, o qua l s e apresento u n o moment o
e m q u e Pinocchio se encontrav a sozinh o em casa.
ap ó s ter causado a prisão cie Gepetto . Tend o a
função de ser uma e s p é c i e d e c o n s c i ê n c i a , o
Gril o o a d ve rt i a insistentement e d a s e n r a s c a d a s
e m qu e estav a s e metendo, mas foi mal
recebid o e termino u martelado contra a parede .
A primeira aventur a foi o contat o co m sua
ver• dadeira turma : Pinocchi o vende u a
cartilh a q u e Gepetto havia lhe d a d o para ir à
escola e co m p r o u uma entrad a par a o teatro de
marionetes . O d o n o do
215

teatro, u m h o m e m c h a m a d o Come-Fogo , era u m


tirano q u e abusav a dess e p e q u e n o m u n d o ele
bonecos , o s q u a i s era m com o escravo s
s e u s . Aqu i surgi u a o p ort u ni da d e para q u e
se revelasse uma outra face ele Pinocchio ,
pois , n u m a atitud e corajosa, acabo u salvand o
um b o n e c o ele ser que imado . Através dessa
dem onstraçã o d e heroísmo , toco u o coraçã o d e Come
- Fogo . q u e lhe presente o u uma s moeda s cie our
o para q u e as levasse a seu pai.
Na poss e ele sua p eq u e n a fortuna,
comportou-s e c o m o um fanfarrão e otário,
atraind o a ganânci a de um a d u pl a de
trapaceiros : a rapos a e o gato . Os malandro
s lhe con vencera m a ir a um lugar qu e diziam ser
mágico , o n d e a s m oeda s poderia m ser
plantada s para q u e crescesse , elo dia para a
noite, uma árvor e d e m o e d a s d e ouro . Assim o
s gatuno s roubara m seu dinheiro , perse guind o- o
num a verdadeira caçada . Ao alcançá-lo , po r se r
ele madeira , seu s inimigo s n ã o conseguira m
esfaqueá-lo, portant o resolveram entorcá - lo. Por
sorte, ele encontro u a primeira versã o da Fada
Azul - c o m o um a menin a ele cabelo s azuis,
mas era um a fada cio b o s q u e -. qu e o
retirou ela árvor e e cuido u d e sua
convalescença . Claro que , co m essa benfeitora.
ele tam bé m nã o se porto u be m e foi ele cert
o m o d o ingrato e desob edient e .
T u d o iss o a c o n t e c e u nu m rein o co
m s u a s peculiaridades , entr e as (piais a cie ter
chegad o a um a cidad e o n d e o crime era ser
otário, motivo pel o qual amargo u quatr o mese s
d e cadeia , exatament e po r ter sid o ludibriado .
Apó s su a saída ela cadeia , a sort e t a m b é m
n à o lhe ajudou : entro u num a propriedad e
para come r uma s uvas e acabo u pres o num a
armadilha para fuinhas. O proprietári o elo lugar o
acorrento u e o fez servir ele cachorr o para
protege r seu galinheiro. Dessa vez. houv e mais
um a o po rt u ni da d e para qu e s e mostrass e o bo m
caráte r de Pinocchio . As fuinhas t e nt ar a m
corrompê-l o com o faziam c o m o antig o
cachorro , ma s ele nã o entro u n o p a p o e a s
denunciou ; e, graças à sua fidelidade, foi solto.
R et o m a n d o su a jornada , s o u b e q u e o
pai lhe estava pr o c ura n d o . Seguiu e m sua busc a
ma s acabo u e nc o ntr a n d o nova me nt e a Fada
Azul, na aldeia elas Abelhas Laboriosas. O n o m e
n à o é à toa, já q u e todo s trabalha m nest e lugar e
clão sermõe s a Pinocchi o q u e nã o trabalha. Mas
enfim Pinocchio e a fada estão juntos, e ele faz
juras de q u e vai emendar -se , p r o m e t e n d o q u e
agor a sim seria u m m e n i n o direito. Tais promessa s
realment e dura m po r u m t e m p o : ele fato ele
suporto u a escola e a hostilidad e d o s colegas ;
entretanto , po r influência destes , acabo u saind o
d o b o m ca minh o e met endo-s e e m confusõe s
outra vez.
Fada s n o D i v a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infa nti s
h á u m p e da ç o de madeir a mágica. A vida
prové m da força
Mais um a vez, a Fada Azul o acolh e e
escut a suas súplicas e promessa s cie se emendar .
Pinocchi o retom a a vida. vai be m na escola e está
preste s a virar u m menin o d e verdade , co m festa
marcad a inclusive, q u a n d o se lança na última
grand e aventura : imigra, junto co m um colega,
para um m u n d o fantástico, a
'ferra do s Brinquedos , u m lugar o n d e nã o existe escola
e n ã o se trabalha. F.les só nã o sabia m cio
preç o cia estada: seriam transformado s e m burro s
para sere m vendido s co m o animais d e carga.
No início, até q u e Pinocchi o nã o teve um trabalh o
tão ruim c o m o o s outro s burrinhos . Foi c o m p r a d o po r
um circo. mas . q u a n d o tere um a pata, é v e n di d o
par a qu e lhe tirassem o couro . Q u a n d o se u
n o v o d o n o resolve afogá-lo no mar, os peixe s
co m e m a carn e e fica o b on e c o cie pau original
q u e havia po r baixo . Raivoso po r ver seu cour o
sumir, o d o n o de Pinocchi o que r vendê-l o entã o
co m o lenha : o b o n e c o s e lança ao mar para fugir e
e engolid o po r um tubarã o gigante . Q u i s o d e s t i n o
qu e nessa mesma barriga
encontrass e Gepetto . qu e já estava sobrevivend o
po r doi s a n o s no interio r d o c o r p o d o
t u b a r ã o . Co m audácia, Pinocchi o conse gu e tirar o
pai da barriga do monstr o e, com o é bo m nada do
r po r ser de madeira , o leva até a praia. Mas
Gepett o está muit o mal. sua temporad a no ventre
do tubarã o o debilitou alé m cia conta, e agora é
Pinocchi o q u e m te m cie cuidá-lo .
Pinocchi o trabalha noite e dia para dar de co me
r a o pa i e , n o s s e r õ e s , r et o m a s e u s e s t u d os
. Par a completa r sua provação , tem notícias de
q u e a Fada Azul está doente . Manda para ela o
p o u c o dinheir o q u e tinha para auxiliar na sua
recuperaç ã o e resolve trabalhar ainda mais para
pode r sustenta r també m a sua querid a protetora.
Num a noite sonh a q u e a Fada vem dizer qu e lhe
perdo a da s molecagen s já feitas e qu e q u e m
cuida do s pais merec e se m p r e louvo r e afeto.
Q u a n d o de s pe rt a , d e s c o b r e q u e havi a sid o
transformad o nu m menin o d e verdade ; toda a
caban a rústica estava melhorada ; e seti pai estava sã o e
voltava a e nta l ha r m a dei ra . Além di ss o , n o s
se u s b o l s o s e n c o n t r o u , e m ve z d o s -tO vi ntén
s d e c o b r e q u e emprestar a á Fada Azul, 40
m o e d a s de ouro . Olho u para o b o n e c o q u e fora,
agora encosta d o nu m canto , se m vida, e disse:

Como eu era ridículo, quand o era boneco! F


como estou contente de ter-me tornado um rapazinho
direito.

A versã o em d e s e n h o a ni m a d o feita p o r
Walt Disney" troux e um a m u d an ç a importante : n ã o
fez um filme sobr e Pinocchio , muit o tiel á
obra de Collocli; nã o foi um sucess o de
bilheteria, mas é um b o m filme. Talvez nã o
do desej o de Gepett o de ter um filho, que , somada ao b o m tenh a e m p o l g a d o o público po r ser excessivament e
caráte r dess e h o m e m , sensibiliza a Fada Azul, fiel ao original, fazend o poucas concess õe s ao s novo
dand o-lh e ess e dom . s tem pos .
Dessa forma, Pinocchio de Disney lembra a lenda
cie Pigmaliao. Nesta, o rei de Chipre esculpiu a
estátua de uma mulher, enamoranclo-se de sua obra.
Com seu forte anseio por conviver com a amada, comove u a Repetir o erro é humano
deusa Afrodite. qu e de u á estátua o d o m cia vida. Para Gepetto,
na versão Disney, o desejo peremptóri o é por ver seu g r a l ostuma-s eo stuma-s dizee r dize q ureq u
"errae r "erra ér 1é h u m a n o , insistir
bonec o transformado nu m filho e que m se comove é
no e
uma fada. A diferença entre a história da mulher estátua e I Wa* ^ n u i Ta' cfrase:
" °alterar e : o s s i c ; i n ; l alistas poderiam
P
cio m e n i n o b o n e c o resid e em q u e , no caso de $&>~s*$ "é própri o do h u m a n o
Pinocchio. o do m mágico requer uma prova da parte de que m insistir no s mes mo s erros". Na verdad e
o recebeu, de merecer esse lugar no coração de seu isso pode
criador e sé) entã o a dádiva seria permanente . se r um a cias definiçõe s d a n e u r o s e , u m
caminho equivo cad o q u e nã o conse gui mo s recusar.
No resto, o d e s e n h o a ni m a d o é bastant e fiel a
F essa é a atitude sistemática de Pinocchio , já qu e
Collocli no espírito, pois, s en d o um a versã o resumida,
ele nã o erra unia, ma s sim várias vezes , e s e mpr e
muitas liberdade s foram tomadas . O clímax de Disney
do m es m o jeito, c o m um a insistênci a irritante .
o c o r r e a p ó s P i n o c c h i o te r m o s t r a d o c o r a g e m
e d e s p r e n d i m e n t o , salvand o o pai do ventr e de O b o n e c o é, nesse comportament o , mais h u m a n o
uma baleia gigante, e a fada entã o o transforma em menino. impossível, então , desde s e m p r e u m m e n i n o d e
Aqui n ã o há a re de n ç ã o via trabalho , ma s po r v e r d a d e . Pr o v av el m e nt e , Pinocchi o seria m e s m o
meio d o amo r a o pai. T a m b é m nã o h á t e m p o para u m b o n e c o , cas o s e compor• tass e c o m o u m a
crescer, é e n q u a n t o m e n i n o q u e ele resolv e se u marionet e manipulável . Mas seu caráter
drama, ao contrári o da história de Collocli, em q u e voluntarios o e rebelde , alternand o repetidos erro
a jornada é cie m e ni n o a h o m e m . s co m ataque s de remo rs o e culpa , faz del e
Fm 2003, Roberto Benigni. c o m o ator e diretor, uma

216
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o

contradição p e r m a n e n t e , tã o h u m a n o , assi m t r o ç a v a d e t o d o s e p r i n c i p a l m e n t e cie


c o m o todos nós. G e p e t t o , c h a m an d o - o d e Polentina, apelid o q u e muito
Afinal, temo s o péssim o hábit o cie fracassar o irritava. Pinocchi o ga n h o u ess e n o m e ante s d a
ali onde o sucess o é previsível, desejar o q u e é primeira
proibido , tentar ser o q u e n ã o se esper a de nó s e nã o cinzelada :
consegui r desempenhar o pape l q u e no s foi
reservado . Enfim, olhando com mais cuidado , Quer o chamá-lo de Pinocchio,s este nom e lhe
verificamos q u e som o s todos errados. Kxatamente dará sorte. Conheci uma família inteira de
po r se r m o s a m a d o s pelo s pais, precisamos no s Pinocchios: Pinocchio o pai, Pinocchia a mã e
diferenciar de sua s expectativas , livrando-nos cie ser e Pinocchios as crianças, e todos passavam
ap e n a s marionete s presa s pela s cordas dess e bem. O mais rico deles pedia esmola.''
desej o alheio . Até gostaríamo s de ser mais
obediente s e merece r o ap re ç o deles , fazer o Qua l seria a sorte q u e traria ao b o n e c o
que esperam cie nós . ma s q u a n d o assim no s carrega r ess e n o m e cie deserdados , Ge p et t o n ã o
com por • tamos, s e n t i m o s c o m o s e t i v é s s e m o s no s explicou . Talvez ela assinale uma assimetria entr e o
perdid o a individualidade, o sens o de q u e m criador c o m o todo-pocleroso . diant e d a tosca
somos . criatura q u e estav a esculpindo . Mas seu s podere s
Quand o somo s obediente s tornamo- n ã o foram muit o longe . Terminad o o nariz, esse nã o
n o s personagens do s o n h o parental . em vez cie parav a cie crescer; a boca , l o g o depoi s cie
fazer cia vida uma trama orientad a pela s nossa s c i n z e l a d a , e x p r e s s o u - s e r i n d o e trocand o de seu
expectativas . Por outro lado, q u a n d o renega mo s a criador; q u a n d o m a n d a d a calar a boca . a criatura boto
heranç a cultural e os desejos cios nosso s pais. u a língua para fora; a primeira atitud e da s
mergulhamo s no nada , imperando a desorganizaç ã o recém-fabricadas mão s foi arranca r a peruc a de
psíquica. Somos, então , o delicado equilíbrio entr e nã o Gepetto . Collodi escreve:
encarna r o qu e espera m de nós, mas levand o em cont a
exata ment e isso. Enfim, resta-nos a possibilidad e de Aquela atitude insolente e provocador a .
um a vida q u e é balizada por desejo s a l h e i o s , o Gepett o tornou-se triste e melancédico com o
s quai s recusamo s o u n ã o conseguimos nunca estivem antes na vida e virando-se para
satisfazer. Pinocchio disse:
Por mais desagra dáve l qu e isto poss a
soar. é necessário dizer q u e a paternidad e é o s onh "Pilho maroto! Ainda não está pronto e já
o de fazer de alguém a marionet e do s próprio s sonhos , faltas ao respeito com seu pai! Istoé mau, meu filho,
e n q u a n t o a tarefa do filho é insubordinar-s e a ess e muito mau!" E enxugou uma lagrima.
papel , c o m o faz Pinocchio. Infelizmente, é um Ainda restavam por ta/er as perna s e os pés.
motiv o egoísta q u e move o aparente ment e altruísta
at o de procriar: po r outro lado, felizmente, p or q u Quand o Gepetto terminou de fazer os pés.
e se m essa ilusão o ser humano estari a e xt in t o . recebeu um pontapé no nariz.
Esse a n s ei o é cl a r a m e n t e expresso nas palavras
Eu mereço", disse consigo mesmo. "Tinha qu e pensar
de Gepetto :
nisso antes. Agora é tarde".

Pensei em construir para mini um belo bonec o Assim qu e seus pé s ficaram prontos , o
cie macieira, porém terá qu e ser um bonec o b o n e c o saiu e m desabalad a corrida pela s ruas,
maravilhoso, que saiba dançar, esgrimir e ciar saltos
c o m G e pet t o atrás sem conseguir alcançá-lo.
mortais. Quer o rociar o mund o com tal boneco ,
Q u a n d o finalmente , c o m ajuda d e u m gu ar d a ,
para ganhar para mim o pão e o vinho.
foi a p a n h a d o , o p o v o começo u a murmurar qu e o
velh o maltrataria o b oneco , d e m o d o qu e que m
O velh o artesã o projet a n o b o n e c o t o d a
acaba pres o é G e pe tt o .
s a s qualidades cjue um filho o be d ie nt e deveri a
Pinocchio ficou só em casa, passand o fome e, ainda
ter: seria maravilhoso e principalment e teri a
por cima, teve seus pés queimado s no braseiro, q uand o
virtude s q u e reverteriam par a o praze r e
tentava se esquentar. Gepetto voltou e deu-lh e de comer,
benefício de se u criador. Depois d o bonec o
entregando-lh e sua própri a refeição . Poré m , s ó
nascido, Gepett o lh e d e di ca r á sacrifícios e
lhe reconstruiu os pés mediante a promess a cie
experimentar á o p e s o da responsabilidad e que trouxe
q u e n ã o voltaria a fugir. Inicialmente o pa i
par a sua vida. Na história de Collodi. o sonho
d u v i d o u de se u propósito de ser um bo m menino ,
do filho maravilhos o e útil n ã o cheg a n e m at é o
te m e n d o q u e estivesse
final de su a fabricação. O toc o de madeir a falante já
Fadas n o Div a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infa nti s
suficiente

mentindo. As intenções cie Pinocchio, com o se vê, eram 218


das melhores, expressas nas seguintes palavras:

Mas eu nào sou como os outros rapazes! Ku


sou o melhor cie todos e sempre digo a verdade.
Prometo, papai, qu e irei aprende r um ofício e
qu e serei o consolo e o sustento da sua velhice.

Gepett o chamo u o b o n e c o d e lilho d es d e q u


e o construiu , mas essa foi a primeira vez
q u e est e o chamo u de papai . Incentivad o po r ess e
diálogo , o pai vende u o únic o agasalh o q u e tinha
(estava n e va n d o ) par a c o m p r a r um a cartilha co
m a qua l Pi n oc c hi o pudess e ir à escola.
O crescimento de Pinocchio e tumultuad o
pela sua i n a d e q u a ç ã o , po r isso . se r v e c o m o
metáfor a privilegiada da .subjetividade moderna , em
qu e cada u m termin a po r cinzeia r su a própri a
h u m a n i d a d e . Pinocchio tem também elemento s de um
cont o cie fadas, visto qu e sao ajudantes mágicos e
situações fantásticas as qu e clao oportunidad e para
qu e a aventura ocorra, mas um cont o de fadas
moderno , po r incluir a constant e afirmação da
especificidade da trajetória do herói e cie com o cie
e o resultado de sua história.
Nesse sentido , o folhetim de Collodi p o d e
ser també m pensad o com o s e fosse u m romance , tal com
o c o m p re e nd i d o po r lan Watt. Segu nd o ess e
autor, as c a r a c t e r í s t i c a s d o r o m a n c e s á o a s
seguintes : a especificidade da trajetória do herói
será determinant e de seu com porta me nt o , os detalhe
s cia vicia particular d e u m pe rs o na g e m passa m
a ser interessante s po r sere m marcas de sua
impariclacle, a busca da verdad e passa a ser vista
e n q u a n t o uma questã o individual e o mot e da
aventur a será um a espéci e de fracasso ou
rompiment o com a tradição. Cirandes romances , com o O
Vermelho e o .Xe^ro, cie Sthenclal, Matlame
Borary, cie Flaubert, ou Ana Karcnina, de Tolstoi,
se baseia m em fracassos do s seus protagonistas, no
funcionament o neurótic o q u e lhe s faz cair e m
r e p e ti d a s ciladas , impedindo-o s de cumpri r o
pape l social esperado .
As Arenturas de Pinocchio pode m entã o
se r classificadas c o m o u m p e q u e n o romanc e para
crianças, em qu e tud o o qu e o herói queria era
ser um b o m menino , mas é o pape l qu e ele
m e n o s d e s e m p e n h a . A riqueza cie um en re d o e
o valor do p er so n ag e m provê m dessa trajetória de
erros, afinal, se ele tivesse ido à escola até
aprende r um ofício e trabalha r c o m o u m rapaz
obedient e , n ã o haveria história para contar. A s
peripéci a s cie Pinocchi o su g er e m q u e u m b o m
h o m e m precisa , d e certa forma, te r sid o u m
filho levado, pois só aquel e eme tev e a corage m
par a contesta r o desígni o paterno , par a experimental
outro s caminho s e falhar, teria angaria d o a sabeclorii|
necessária para crescer.

Olá, mundo cruel


_tS-;; +tt eguinclo o rum o cia história, vemo s Pinocch
" "»"*"$ arrependid o cia primeira fuga. chei o de boas
*jC, u intenções , p r e t e n d e n d o ir ã escola e pla•
nejand o p ar a s i o melho r do s
futuros. Estudaria e aprenderi a um ofício co m o qual
pudesse compra r um agasalh o luxuos o para Gepetto .
capaz de compensa r o sacrifício qu e este fizera po r ele. Mas
nào foi muito longe. Sua primeira atitude foi v e n d e r a cartilha
para pagar uma entrada no teatro de marionetes.
Nesse p e q u e n o circo, o n d e as marionete s são
e s c r a v i z a d a s e s e c o m p o r t a m e x a t a m e n t e como
Gep ett o havia s o n h a d o para o seu b o n e c o . Pinocchio
vai se diferenciar, m o s t r a n d o q u ã o h u m a n o é. Foi
recepcio na d o c o m o u m irmã o pelo s outro s bonecos,
mas feito prisioneiro pel o despótic o Come-Fogo . Sua
entrad a coincidiu co m o impass e cio diretor, qu e estava
dispost o a sacrificar um de seu s atores , ou seja queimar um
b o n e c o , poi s lh e faltava lenh a par a assa r um
carneiro . Nesse m o m e nt o , Pinocchi o teve seu primeiro gest
o de grandeza , oferecenclo-se para ser incinerado no
lugar de um irmão . Come-Fog o se comove u com essa
atitude altruísta e soltou-o , dand o-lh e moeda s de o u r o
par a leva r a se u pai . Collocli d á diferentes
oportu nidad e s para seu herói: n ã o ap e n a s tentações
q u e lhe revela m a fraqueza, ma s també m desafios em qu
e possa demonstr a r sua s boa s qualidades . Esta é a
primeira c h an c e q u e ele tem d e ser recompensado
po r um a atitude não-egoísta .
Come-Fog o e o pa i ogro . a mai s
primitiva representaçã o de pai. Fie era rei dess e p e q u e n o
mundo de bonec os , s o be ra n o sobr e a vida e a mort e
de seus e s c r a v o s e . c o m o p o d e m o s d e m o n s t r a r ,
também canibal - se considerarmo s a humanidade do
s bone• cos. Afinal, um carneir o estava s e n d o assado ,
mas era um d o s b o n e c o s eme seria o combustível ,
ou seja, para co me r um, outr o ta mbé m deveria morrer. Há
um deslizamen t o entr e o ser assad o e c o m i d o e
o ser c o ns u m i d o pela s chamas , sã o doi s sacrifícios
juntos. Além disso, se atentarmo s ao nome , Come-Fog
o (no italiano Maneia/oco), p o d e m o s supo r q u e ele
comeria o b o n e c o q u ei m an d o- o . O ogr o gosta de
carne , mas c o m o esse s b o n e c o s s ã o d e m a d ei ra ,
par a serem dev orados , s ó servind o d e lenha , co mido s
metaforica• m en t e pel o Co me-Fogo . Mas ess e pai-ogr
o termina
D i a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o
Co r s o
açã o n ob r e e piedosa, capa z de angaria r ajuda e
pe r dã o .
comovendo-se co m a atitude de Pinocchi o e
també m faz a sua apost a nele , co m m o e d a s de
o ur o .
A conquista da condiçã o de menin o de carn
e e osso é um long o e tortuoso caminho , nã o é
algo qu e só acontece no final, co m o simples toq u
e da varinha da fada. Fsse episódi o no teatro de
marionete s é a primeira ascensã o do bo n e c o a
um nível cie humani • dade. O ogro eleva-o ã categoria
de um filho qu e orgulha o pai, por isso, envia moeda s
para q u e ele entregu e a Gepetto, co m o se fosse uma
mensage m qu e informava do valor qu e demonstrou .
Por mei o da corage m cie enfrentar o o gr o . de
impe di r o sacrifício do out r o boneco, Pinocchio
deixa de ser marionete , mostra-se livre, sem d on o .
nã o pod e ser derortulo. porqu e nã o e um tios
b on ec o s de sua pr o pri e d ad e . De qualque r forma,
vale a lição de qu e é perigos o ficar ã merc ê de
um dono, hoje ele te cuida, aman h ã te devora... "
O início, par a pai e filho, é mar cad o po r
uma reivindicação d e satisfações narcisistas: G e pe tt o
q ue r circo, pão e vinho ; Pinocchi o q u e r diversã o
em vez de trabalho. Rapidament e , o velh o
a p r e n d e r á q u e , se quer o filho e s t u d a n d o , terá de
de m o n str a r se r el e também capa z de algu m
sacrifício, po r isso, v en d e u seu casaco. O
b o n e c o , no teatr o de C o m e - F o g o . livrou-se cie
ser a n u l a d o e escravizado , m o s tr a n d o um amor
ao próxim o maio r do q u e a si m e s m o . O
prêmio d e m o e d a s repres ent a o g a n h o q u e s e
p o d e conquistar na vida q u a n d o se está dispost o
a algu m sacrifício. Defende-s e aqu i um a trajetória
individual , em qtie o sujeito é livre para escolhe r
um destin o (e escolher errad o ta m b é m ) , ma s u m
c a m i n h o q u e dev e ser feito co m corage m e
trabalho . Mais cie um a vez ele será aprisionad o e
solto. \a maio r part e da s vezes , a fuga só será possível
graça s a algum a atitud e corret a que ele teve
anteriorment e . Na história, há um diálog o da vida com
os ato s do b o n e c o . Os co n se lh o s n ã o funcionam,
ma s a vida julga e c o n d e n a , po r isso, é
preciso te r b o n s a n t e c e d e n t e s p a r a merecei
" a liberdade.
Infelizmente, Pinocchi o nã o foi muito long e co
m a s moeda s q u e g a n h o u d e C o m e - F o g o .
p oi s foi enganado inúmera s veze s pel a rapos a
e pel o gato . que lhe pr o m et i a m maneira s
a b s u r d a s d e g a n h a r dinheiro fácil a partir cie
sua s m o e d a s e o roubam . Esse circuito se repet e
mais de um a vez. ao long o do livro: Pinocchio sai
chei o de b o n s propósitos , cvôu ã tentação d e
proposta s d e praze r o u d e dinheir o fácil, é
enganado, castigad o po r isso e desilud e seu
pai, deixando-o na miséria e pe r de n do - s e dele .
Depoi s de feita a bobagem , cabe-lh e realizar algum a
A cad a escorregad a cio trilho do bem , o
b o n e c o e n c o n t r a figura s q u e lh e o f e r e c e m
e n s i n a m e n t o s morais. O primeir o dele s é o
co n he ci d o Grilo Falante, q u e aparec e várias veze s
a o long o d a história, ma s h á tam bé m u m metr o
branco , u m papagaio , u m vaga- lume , um
burrinh o e uma marmot a q u e lhe cláo lições. I 'm
grup o cie animais, diretament e c o nv o ca d o do rein o
cias fábulas, comp arec e para transformar as
trapalhada s e m lições. Alguns tenta m avisar,
ciando conselho s q u e Pinocchi o s ó c o m p r e e n d e
depoi s cie n ã o ter seguido . Outro s c o m p ar ec e m
para da r a sentenç a e explicar o n d e toi q u e
el e errou , muitas vezes , oferecendo-lh e a voz de
sua experiência , a título de moral cia história. F
interessant e observa r q u e pai e filho apren •
d e m ao m es m o tem po . C om o vimos, o projeto
inicial cie Gepett o nã o é ter um filho para
passar o trabalh o d e educá-lo ; ele q ue r u m
b o n e c o para viver d e sua s momice s e levar uma
vida fácil. Seu discurs o de rodar o m u n d o co m
ele e ganha r co m isso o p ã o e o vinh o e
similar a o d e Pinocchi o ante s d e cair n o
m u n d o para ap re n d e r errando :

Se eu ficar, vai acontecer comigo o que


acontece com as outras crianças, ou seja. vão me
mandar para a escola e queira ou não eu
terei que estudar |...| divirto-me muito mais a
perseguir borboletas, trepar nas árvores e apanha
r passarinhos no ninho.
"Qual seria se u ofício?" Pergunta o Grilo a uni
Pinocchio qu e responde, cheio de certe/a:
"Comer, beber, divertir-me e vagabundear cie
manhã ã noite".

Gepett o sucumb e a o me sm o circuito d e


Pinocchio. pois tenta uma paternidad e fácil, para logo
se arrepende r e descobrir qu e será necessário
muito sacrifício para fazer-se dign o de ser cuidad o
na velhice pel o seu filho. Pai e filho percorre m
um long o caminh o de provaçõe s para conclui r
q u e esse s papéi s n ã o nasce m co m a
criatura , sã o resultad o d e u m long o
t r a b a l h o d e construção subjetiva qu e toma toda a
duraçã o da infância e da juventude . Ao final destas, co
m Pinocchio já m o ç o trabalhado r e Gepett o velh o e
doente , ambo s se fazem merecedore s do s títulos
de pai e filho.IJ

Educação: um trabalho de equipe


ÍS^SÍ ° l ° n 8 ° c ' a história, p o d e m o s observa r q u
e
£"•'* r ? . pai e filho sã o confrontado s co m u m m u n d o
^/gAA educador , tal qua l se queix a o bon eco :
Fadas n o Di v a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infa nti s
voz à dur a e

Como somos azarados nós, pobres os meninos. Todo


mund o nos repreende, todo mund o nos censura, todos
nos dã o conselhos. Se deixássemos por conta
deles, todos poriam na cabeça que são nossos pais e
nossos professores.

A função patern a na o é um privilégio do pai,


ela está em cada circunstância cerceadora , em cad a
castigo qu e a \ ida impõe , em cad a ensina ment o
pel o qual se a pr e n d e errando . A primeira representaçã
o d e Ge pett o é de um velh o tolgazao . mas q u e .
ao se torna r pai, perceb e o tama nh o da tarefa e
a ela se entreg a co m certo arrependiment o . Sua
jornada será de impotência , j á q u e nã o c o n se g u e
ser e sc ut a d o pel o irreverent e boneco , seus esforços
e sacrifícios serã o desperdiçado s até o pont o em qu e
finalmente enfrentará a miséria e a d o e n ç a . O
c a m i n h o de a r t e s ã o a pa i mo str a a diferença
entr e o cinzelar um corp o e o trabalh o de
construir uma alma. F um a boa metáfora cia
distância qu e separa o procriado r daq uel e q u e
de se m p e n ha r á a dura tarefa de verdadeiramen t e se
torna r pai.
O dram a de Pinocchi o prové m de sua
incapaci• dad e d e escutar o s sábios conselho s qu e
lhe teriam p o u p a d o tantas escolha s erradas . De
fato, na pressa de esculpi-lo. Gepett o esquece u de
fazer-lhe as orelhas, talvez p o r q u e s o u b e s s e q u e
n ã o i a usá-la s m u i t o m e s m o . O cert o e q u e
es s e esqueciment o é u m simbolism o q ua s e
literal tia surde z cabe ça -dur a d o b o ne c o . Com o
contraponto , p o d e m o s lembrar q u e o primeiro sinal
da sua metamorfos e em burr o tenh a sido justamente o
crescimento de um palm o de orelhas. Não por acaso,
essa tentação - o País do s brinqued o s - foi a última ã
qual ele sucumbiu , depoi s a pr e nd e u a ouvir a voz cie
sua consciência .
Após essa derradeir a aventura , Pinocchi o
n ã o receber á mais conselho s . Tã o firme é sua
determi • naçã o interna de cuida r do velh o e da
fada doentes , qu e só toma atitudes a d e q u a d a s e
louváveis. Depoi s de recebe r o par de orelhas ,
finalmente a p r e n d e a ouvir, mas agora já e a voz
cie um a sabedori a interior eme ele escuta. O Grilo
Falante, essa encarnaçã o de sua consciên cia , já
n ã o se faz mai s neces sári o , o conselh o já n ã o
é o u vi d o c o m o alg o vind o de fora, mas de dentro .
Fazer a coisa certa agora deixo u de ter u m caráter
alienante .
A falta de orelhas , q u a n d o era um b o n e c o infantil
e irresponsável, demarc a q u e as palavras de sabedori a
deve m ser enunciadas , po r vários adultos , e repetidas ,
inúmera s vezes, para a s crianças q u e s e
co m p o rt a m sistematicament e c o m o surdas . Graça s a
isso, os pais, parente s e professore s empresta m sua
d e s e s p e r a n t e taref a d e e d u c a r . P r o v a v e l m e n t e , a
ausênci a de orelha s está d e m o n s t r a n d o també m que
as crianças se fazem de surda s p o r q u e estã o cansadas
de escuta r demais . Pinocchi o te m razão , o mund o é
um e d u c a d o r sistemático , e. a cad a m o m e n t o , há
algué m e n si na n d o algum a coisa, tal c o m o os animais
q u e aparece m em toda s as cena s para enuncia r a moral da
história. F impossível e n tã o par a as crianças ficar
e s c u t a n d o t u d o . l ' m a ve z e n c e r r a d a a infância
e iniciada a adolescênci a , nã o sã o necessário s
tantos discurso s para guiar a vida, já se tê m idéias próprias e
uma bússol a mínim a para anda r pel o m u n d o .
A construçã o da paternida d e é um process o que cab
e ta m b é m para a mãe . representa d a nessa história pel a
Fada Azul. Sua primeira figuração é a de uma
menin a bon dos a cie cabelo s azuis, qu e se oferece para ajudar
Pinocchi o na condiçã o de irmâzinha . Apesar de
jovem, ela o salva da doença , ensinad o - o a engolir o
remédi o amargo , assim c o m o a n ã o mentir, já que se
o fizer, lhe crescerá o nariz. Infelizmente, Pinocchio a
desilude , p er de n d o- s e atrás de promessa s de vida
fácil e levando- a a morre r de desgost o .
A partir daí, ela ressuscitará em vários momentos para
ajudá-lo e dar mais lições, sobr e a importância da
paciênci a e do trabalho . No s e g u n d o encontro, so b
a forma cie um a mulhe r q u e o faz trabalhar em vez
cie mendiga r alimento , passa a ser considerada um a
mãe . Diz a fada:

Deixou-me menina e agora me reencontra como


mulher: tanto qu e poderia servir-lhe de mãe.

A g ra n d e missã o dess a mulhe r é demonstra r sua


capacida d e cie perdão . Fia terá m o m e n t o s caracterís•
ticos da necessári a rudez a educativa , c o m o quando
deixo u o b o n e c o gritand o po r aliment o e agasalho
um a noite inteira, co m o pé magicamen t e colado à
porta q u e havia chutado , e m puniçã o pela impaciência e
pela falta de mo dos . Mas esse s se mpr e alternarão co
m outro s episódio s e m q u e ela amolece , perdoa,
cuida e repar a o víncul o abalad o pela asperez a que a
colocaçã o d e limites requer .
G e pet t o tam bé m , várias vezes , demonstrar á sua
ca p aci d a d e d e p e r d ã o a o long o d a história,
ambos sabe m q u e se a p r e n d e errando . Mas é a
fada quem negoci a diretament e c o m Pinocchio , a ela
cab e dar mais chances , mais oportu nidad e s . K um a
espéci e de tripé : o s a n i m a i s d ã o o s c o n s e l h o s ,
e n u n c i a m o s princípios , tal c o m o na s fábulas; Gep ett
o oferece os elemento s práticos necessário s par a
com eça r a vida, assim c o m o o lugar de filho qu e o b on ec o
está sempre
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mário Cors o

tentando merecer ; po r último , a fada, q u e


p a r e c e gerenciar tod o o processei. Ela tem em
sua s mão s a administração d o trabalh o educativo ,
decid e a s dose s de apoio e corretivos próprio s para o
m o m e n t o , assim como comp arec e a cad a vez co m
o disfarce e o tip o de assistência necessários .
Realmente , a criaçã o de um filho é um trabalh o de
eq ui p e .

0 nariz e a mentira
íp'- ' Liando e v o c a m o s Pinocc hio , o se u
nariz iií"' expansível e retrátil é
indissociável de sua IV*, * figura. A partir do
conheciment o popula r de psicanálise, espera-se q u e
façamos a inevitável
referência a esse c o m o um a metáfora grosseira do pênis.
cujas manifestações exibicionistas deve m ser cerceada s
pela sociedade, mediant e a ameaç a de castração .
V. certamente uma leitura possível, mas simples
demais . Não podemo s esquece r qu e o nariz cresce
q u a n d o o boneco mente. No livro, a fada explica ao
bonec o qu e existem dois tipos de mentira: as de perna
s curtas e as de nariz comprido , as del e seriam do
segund o tipo. As pernas curtas nunc a alcançariam seu
objetivo, e o nariz comprido denunciaria a farsa.
Mais do q u e no s dedicar mo s a ess e pretens o falo
facial, é necessári o en te n d e r o caráte r dessa s mentiras .
Para o poeta Mário Quintana , "a mentira é um a verdad e
que esquece u de acontecer" , ou seja, ela é
inverídica quanto a o fato, mas verdadeir a q ua n t o a
o desej o q u e venha a expressar. Ao mentir,
ocultamo s algum a falha ou ostentamos algu m falso
valor, é um ato de proteção .
0 autor da mentir a preserva , tentand o
e n g a n a r o interlocutor, a integridad e de um ideal,
ocultand o os pontos discor dant e s entr e a situaçã
o real e a q u e acredita qu e deveria ter ocorrido
. Nesse sentido , po r estranho qu e possa parecer,
mentir é um at o de amo r a o interlocutor, a q u e m
d e algum a forma s e q u e r impressionar.
Há aind a outr a leitura possível da mentira: a
cie marcar a separaçã o entr e o pensament o do adult o e
a subjetividad e d a criança . O s pequeno s
s u p õ e m inúmeros p o d e r e s no s seu s adulto s e
certament e a telepatia está entr e eles, nã o raro
eles acredita m q u e seus pensa mento s possa m ser
escutados. Por exemplo , para um a crianç a qu e
vívenci e u m s e n t i m e n t o d e continuidade entr e ela
e sua mãe , ter a experiênci a de lhe di z e r um a
m e n t i r a e n ã o s e r d e s c o b e r t a é fundamental.
A p o s s i b il i d a d e d e c o nt a r p e q u e n a s lorotas e
ludibriar o adult o é um at o de indepen dênci a , de
percebe r a limitação dess e em controlá-lo . A fada
221

lembra a o b o n e c o q u e sua s mentira s serã o


visíveis, ma s é e n q u a n t o expressã o d e seu s
desejos qu e isso ocorre . O nariz c o m p r i d o
revela a pujança de sua v o n t a d e , mostrand o
i n d i r et a m e n t e q u ã o marcant e ness a história ê a
força da s tentações .
Q u a s e toda s a s mentira s d e Pinocchi o visavam
a oculta r sua s falhas, ma s para isso bastaria
dizer q u e elas têm perna s curtas, n ã o tend o condiçõe s
d e impres• siona r o interlocutor. Porém , as mentiras
de Pinocchio se denunciam , são descoberta s pela
ostentação daquel e imens o nariz, q u e nã o passa
seque r pela porta. Nesse as p ec t o , talvez
p o d e r í a m o s pensa r nu m a metáfora penian a para
o gigantesc o nariz, no sentid o do quant o a ereçã o d o
m e m b r o masculin o nã o mente , reveland o um desej
o sexual qu e ele dificilmente poder á ocultar. De
certa forma, boa part e da s mentiras é de
nariz com prido , p or q u e elas seguidament e denota
m algum desej o q u e n ã o s e realizou, mas q u e
encontro u n a enunci aç ã o da mentira uma
representaçã o possível.
Pinocchio nã o resiste a nenhum a excitação, isto
é o qu e aparec e ao long o do livro, cada vez qu
e algum prazer surge na sua frente, ele nã o
posterga, embarca s e m pr e . Por q u e co m a sua
excitaca o sexual seria diferente? O desej o
sexual e o únic o velad o nessa história, em qu e
o herói sucumb e ã cobiça, á preguiça, a gula e a
outros pecadilhos. Mas se trata de um relato para
crianças, naquel a fase em q u e se faz de conta qu e elas
nã o têm sexo . entã o nã o se tala no assunto. Hsse
desejo, q u e é latente, mas n ã o ausente , reaparec e com
o ess e nariz erétil. Aliás, os menino s pouc o sabe m o
qu e fazer co m a ereçã o q u a n d o ela surge, até qu e
aprenda m a usá-la na experiência da masturbacáo,
será fonte de tanta confusão c o m o o nariz gigante
do boneco .
Pinocchi o tem um a força vital gigantesca,
qu e serv e para o be m ou para o mal. F co
m a mesm a energia q u e ele se joga a um
projeto de transgressão , qu ant o a um de salvação. Pie
sempr e se atira de cabeça. Po r isso , é c o r r e t o
l e m b r a r q u e u m ve m s e m p r e a c o m p a n h a d o d
o outro , a s realizações , assim c o m o a s tentações
, sã o movida s po r u m desej o q u e s e impõe . A evocaçã
o do p er so n ag e m é indissociável dess e nariz q u e
cresce , p o r q u e sua história é a d e algué m
q u e n ã o s e deixo u cercea r e m sua s vonta de s
pela con • vençã o educativa . Termino u
a p r e n d e n do , ma s á sua m od a e de p oi s d e ter
caíd o e m tentaçã o inúmera s vezes . De certa
forma, a negociaçã o necessária entr e o desej o e
a interdiçã o é o eix o dess a trama.
Existe u m cont o d e fada q u e p o d e no s
auxilia- no s a pensa r a questã o da mentira em
outra direção . A história chama-s e A Filha de
Nossa Senhora1, e faz part e d a compilaçã o d o s
irmão s Grimm . Nessa, um a
Fada s n o Div a — P si ca n ál is e n a s História s Infa nti s
O c o n t o citad o mostra a derrota da moça ,
vencid a pel a necessida d e
meni na , Filha d e pai s p a u p é r r i m o s , g a n h o u
c o m o madrinh a nad a m e n o s q u e Nossa Senhora .
A santa levou a afilhada para o céu e lhe
fornece u tudo , do bo m e do melhor. Certa ocasião ,
q u a n d o a menin a já estava com 1-t anos , Nossa
Senhor a teve de se ausenta r e lhe confiou as chave s
da s porta s do céu , mas co m uma condição : ela
poderi a ir a o n d e quisesse , poré m estava-lhe vedad
o o acess o a determinad a porta . K claro q u e a
curiosidad e vence u a menin a e ela abriu a p o r t a . O
lu g a r proibid o encerrav a a S a ntí ss i m a
Trindade , em toda a sua luminosidade , e ela
tento u tocar o brilho, ficando co m o d e d o d o ur a d o . Os
efeitos cio brilho eram perma nent e s e nã o
adiantav a tentar lavar a marca de sua falta.1,
Q u a n d o Nossa Se n ho r a voltou , p e r g u n t o u
à menin a se ela a havia o b e d e c i d o , ma s ela
mentiu , negand o sua transgressão . A madrinh a
sabia q u e ela estava mentindo , po r isso lhe
retirou o privilégio de estar no céu e també m lhe
fez perde r a fala.
Na sua misericórdia, Nossa Senhor a a cad a
tant o voltava e dava outra chanc e ii afilhada,
pe r gu nt a n d o outra v e / se ela havia violad o o
quarto , mas a moc a tornava a mentir sempre . Km sua
vicia terrena, ela teve uni filh o co m u m
príncipe . Na ocasiã o d e s s e nascimento , a
madrinh a no v a m e nt e apa rece u e lhe disse q u e . se
nã o admitisse a mentira, levaria a criança. Pois bem . a
moc a n o v a m e n t e n e g o u - s e a dize r a verdade , e
Nossa Senhora realment e a levou. No a n o seguinte ,
o episódi o se repetiu e a madrinh a a deixo u sem
seu segu nd o filho, oc or r en d o o m e s m o depoi s
co m o terceiro.
l' m dia. Nossa Senhor a levou a afilhada
para o céu para mostrar-lhe os três filhos qu e
perdera , disse qu e os devolveria se ela admitisse a
verdade , poré m a moca declarou mais uma vez qu e
n ã o abrira a porta. Q u a n d o voltou á terra, um a
fogueira esperav a po r el a . p o i s er a a c u s a d a
d e le r m a t a d o o s filho s desaparecidos . Soment
e ali. no m o m e n t o de morrer, a jovem quis confessar e
finalmente admitiu q u e mentira. Nesse m o mento .
Nossa Senhor a interveio e a salvou, devol vend o-lh e
os filhos e a felicidade perdida . O cont o traz
uma moralidad e cristã de sborda nt e , temo s o triunfo
da confissão, algo muit o car o a essa religião. Mas isso
nã o invalida o eix o principal da trama: um a
mentira q u e nã o p o d e ser desfeita, m es m o qu e mantê
- la custe muito caro .
A questã o é a mesm a qu e Pinocchi o no s sugere .
Por q u e essa s personagen s m e n t e m tanto ,
m e s m o sabend o qu e j á ning ué m acredita neles ,
q u e n ã o h á mai s sentid o a p a r e n t e n a mentira?
menina, ate n d en d o aos desejos dela. a filha se alienaria,
reduzida a um satélite cie sua éirbita. sem vida própria.
Claro que a diferenciação pela mentira ou pela
compulsóri a de confissão, e ainda dize m qu e os contos de transgressão, sendo um mau filho, nã o é uma da s
fadas têm final feliz... A única certeza qu e temosé de melhore s saídas para o impasse, porém , ás vezes, é
q u e o b o n e c o e a afilhad a de Nossa Senhora o q u e acaba acontecendo. De qualque r forma é bo
estava m precisand o mentir, isso lhes era vital e estava ' m lembrar qu e nem sempre confrontar os
acima d e qualq ue r coisa. pinóquio s co m suas mentiras produz um bo m
O q u e está em jogo n ã o é mais a questão resultado . A melho r saída, aind a q u e difícil, é
da verdade , mas a da alienação. Dizend o de outro modo: discutir co m o p e q u e n o mentiros o sobr e o qu e ele está
a vitória do adulto implica a morte imaginária da criança, pois afirmando, pe rc e be n d o o problem a de forma mais
esta sent e qu e só existe e nq u a nt o a sua palavra rica d o qu e enxerga r apena s dua s possibilidades,
valer. K c o m o se o destin o tivesse armad o uma cilada, na verdadeiro ou falso, certo ou errado . Trata-se de
medida em qu e se viram pilhado s na compulsão de construir buscar a verdade q u e se oculta na mentira.
uma mentira qu e nã o engan a ninguém. Mas mantê-la
torna-se uma birra, nã o há mais como voltar atrás,
apena s mentind o seguirão existindo. A mocinha do cont o
so resolve dobrar-se qu a n d o estava para morrer e nã o tinha A redenção pelo trabalho
mais nada a perder.
u
Nessa história, a distância q u e separa a madrinha da ívS^&X ' n m a grand e travessura d e Pinocchi o ocorre
afilhada , e n t r e um a m e n i n a a d o t a d a pela sua « ;•; ;/'' q u a n d o ele está preste s a ser declarad o
um
condiçã o miserável e Nossa Senhora, a mais poderosa
da s mulheres , e hiperbólica , ma s é justamente &'À'^ m en i n o d e verdade . Finalmente , havia
con•
esse aspecto , q u a s e caricatural, de valorizaçã o do
seguid o freqüenta r a escola, e a festa
lugar materno , qu e torna essa narrativa perfeita para para c o m e m or a r sua conquist a já estava arranjada,
repre• sentar co m o filhos p e q u e n o s se sente m diante da mãe.
pois a fada havia considerad o seu c o m p o rta m e n t o
Ora. c o m o nã o ser engolfad o pela magnitude
satisfatório e lhe concederi a ess e d o m . Mas
dessa mulher? Com o fazer para ser algué m destacad o dessa a q u a n d o a história parecia ter chegad o ao seu final
que m devemo s tudo ? Send o um a bo a
feliz, surge a derradeira

222
Di a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Cors o

tentação so b a forma cie um a propost a mirabolante , ir madeir a d e se u c or p o d e marionete . Parece


para um país onde : qu e o encontr o co m a morte , uma consciênci a da
finitude, a n o s s a mais radical experiência d
não tem escolas , ne m p ro te ss or e s , ne m e f r a gi l i d a d e , oportuniz a u m cresciment o para o
livros. Naquele país abençoad o nunca se estuda. As noss o personage m
quintas- feiras não tem escola, e a semana é composta (situaçã o idêntica á da afilhada de Nossa Senhora) .
de seis quintas-feiras e um domingo. As férias Após essa morte , há um renascimento ,
de outon o começam no primeiro de janeiro e depoi s de ter se perdid o de Gepett o e ter cometid
terminam em trinta c um de dezembro. o todo s os erro s possíveis, Pinocchi o retorna ao pai.
Vai encontrá- lo dentr o da barriga de um monstro . No
O País do s Brinquedos , c o m o era c h a m a d o livro de Collocli e um tubarã o gigante, no filme da
ess e lugar tão divertido, angariava muito s adeptos , Disnev. uma baleia,
e uma carroça já chei a de m e n i n o s passav a 'laut o faz. o important e é qu e será necessário sair desse
pel o m u n d o recolhendo os novo s imigrantes. P corp o imenso , através d e u m segund o nascimento.
claro q u e noss o herói embarca em mais Lima O s clois já nã o são os mesmos . Gepett o está mais
velho e finalmente Pinocchio está sábio. Hscapam juntos,
enrascada .
graças ã corage m d e Pinocchio , d o gigantesc o
Dessa vez é um amigo , Pavio. sobr e o qual ele já
ventre qu e o s aprisionava . Depoi s disso, o filho
fora alertado tratar-se de um a má c o m p a n h i a ,
trabalha dur o para mante r ess e pai d o e n t e e
q u e convida Pinocchio. Depoi s d e u m t e m p o d e
fraco, q u e já nã o possui mais nada . e so entã
grand e farra nesse nov o m u n d o , vem a inevitável conta . o é qu e o bonec o se humaniza . Xo livro, ele
Todo s os menino s foram t r a n s f o r m a d o s em terá de enfrentar uma jornada dupla , poi s a
b urr o s , e o cocheiro qu e os conduzir a a ess e país de fada ta m b é m está fraca e d oe n t e e cab e a
fantasia agora os trás cie volta ao m u n d o real. par a Pinocchi o cuida r dela também .
sere m vendi do s como bestas de carga.1 ,
Pm a pergunt a impoe-s e sobr e o
A alegoria n ã o poderi a ser mais direta:
significado d e u m monstr o q u e possui u m
aquele s que nao estudare m vã o viver do trabalh o braçal.
espaç o suficientemente g r a n d e par a abrigá-lo s
tant o mais que foi escrito num a époc a em q u e as d u r a n t e u m t e m p o , afinal G ep et t o sobreviv e
jornada s de trabalho era m de l i a 12 hora s diárias, as clois ano s nesse ventre. Conside• rand o essa
condiç õe s insalubres e o salário miserável. Os gestação e esse renascimento, é possível evoca r
operário s era m quase tão maltratado s qu a nt o os uma representaç ã o primitiva d o corp o matern o qu e
animai s de trabalho . Com Pinocchio n ã o foi diferente, tud o contém .
el e fica transformad o em burro durant e um temp o e A gravidez e o parto sa o enigmas para os peque •
passa mau s boca dos . Só nesse m o m e n t o ele se dá nos, mas para os maiore s també m pocle ser cie
cont a da impossibilidad e da vida fácil. Até agora uma significação difícil o lato cie já termo s habitado e
ele buscav a uma saída, uni mundo m á g i c o e saído das entranha s da mãe . A metáfora do
m a r a v i l h o s o e m q u e n u n c a s e trabalhasse e renascimento é muito usada para situar tod o o recomeço
o n d e se m p r e haveria fartura. . Para renascer, t a m b é m e necessári o ter morrid o
O episódi o cio País do s Brinquedo s antes , recomeça r significa q u e algo acabou . Nesse
mostra-s e como uma fábula cruel, defensor a caso, o qu e terminou foi a infância de Pinocchio,
incondiciona l cia necessidade d o est u d o e d o s e. junto co m ela, a ilusão de qu e a vida poderi a
perigo s d e um a vida desconiprometida. Não é fácil transcorrer sem esforços. Crescer e admitir qu e temo s de
dizer a uma criança qu e seu luturo está na s sua s no s ocupa r de tarefas e desafios qu e ningué m p o d e
mãos , q u e o porvir d e p e n d e de com o ela esteja executa r o u vencer po r nós. Não é sem queixa s qu e
administran d o seu s esforços no presente. Collocli, no s despren de mo s d a proteçã o nutriz e aconchegant e
através dess a última tentação , nã o deixa espaç o a do ventre materno .
dúvidas , se m o esforço cio esttid o e do trabalho nã o Tant o no s mitos q u an t o no s rituais d e
há saídas. passagem , existe a idéia de entra r e sair de um
Pinocchio deixa de ser um burr o no context o lugar en c an ta d o ligado ao m u n d o d o s mortos.1 " O
de• mais um episódi o trágico: seu nov o clono tenta important e é q u e a passage m marca um a virada n
matá- lo afogado no ma r para usar o se u couro o destino , q u e m sai nã o é mais o mes mo , po r
, poi s el e havia q u e b r a d o a pata e n ã o podi a isso, a idéia de renascer, e este s e g u n d o
trabalhar. Qua l nao é sua surpresa , ao tirar o nasciment o traz a s roup agen s d o primeiro: se r
burric o do ma r e vê-lo retransformado e m b o n e c o , ex p ul s o d e s a m p a r a d o des s e ventre , à merc ê d
j á q u e o s peixe s havia m lhe devorad o as carne s e ameaça s e perigos . O s ritos d e passage m
funcionam assim, c o m o s e o h o m e m necessitass e
e só sobrar a a estrutura de
passa r po r u m estági o de mort e par a pode r
reviver c o m u m n o v o
Fada s n o Div a — P s i c a n á l i s e n a s His t ór i a s I n f a nt i s

estatuto . Dessa maneira , a t e m p or a d a no ventr e educar, po r isso, o inevitável desfech o moral. De


cio tubarã o p o d e representa r u m rito q u e marc a a certa forma, parec e qu e ser um bo m menin o é só um a
entrad a d e Pinocchi o n a maioridade . questão d e tempo.. . depoi s d e muitas cabeçadas , é
Ou seja, depoi s de ter se to rn a d o um burrinh claro!
o - num a coroacã o a o avess o d e um a trajetória d e
erro s - po r quere r viver sem esforços; de ter perdid
o seu pai e arrancá-lo da s entranha s d e u m tubarã o
e após , da s garras d a morte; d e trabalhar
Notas
ar d ua m e nt e par a con • seguir o dinheir o necessári o 1. COLLODI. Cario. As Aventuras de Piuóc/uio.
para salvar a vida de sua mã e tada, ele conquisto Tradu• ção de Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret,
u o direito de ser h u m a n o . Kssa trajetória nã o 2002. As citações qu e faremos a seguir são
deixa maiore s dúvida s a respeit o d o qu e s e encerra: desse livro. Recomendam o s també m as ediçõe
na o e sua tempor ad a c o m o b o n e c o , mas sim sua vida s das editoras Iluminuras (trad. Gabnella
de criança. Rinaldi, 2002) e Com• panhia das Letras (trad.
Entre o Pinocchi o criança qu e armo u as inúmera s Marina Colasanti. 2002).
travessuras e recebe u os corretivo s necessário s 2. Pseudônim o do florentino Cario Lorenzini (1820-
e o b o ne c o trabalhado r q u e cuido u d e seu s pais, 1890). Collodi é uma referência à cidade de
mu dara m també m estes, além dele . Enquant o era origem de sua mãe.
m fortes, foi possível exigir-lhes sacrifícios e pe r dã o , 3. No original e hurattino, palavra qu e
q u a n d o ficam mais fracos nã o restou outra saída: foi serve para fantoche ou marionete, ou seja,
precis o ser forte para carregá-los. Collodi termin a po boneco s de mani• pular, ("orno ele ganha vida
r no s conta r q u e um a vida d e p r a z e r e s é um e anda sem cordões, encontramos nas traduções
a ilusã o infantil, q u e i n e v i t a v e l m e n t e p e r d e m o a palavra "boneco", mas é bom lembrar que
s q u a n d o f i c a m o s s e m fiadores. sem garantias, originalmente ele é um boneco para ser
ne m lastro. Para n ã o ficar á deriva, é precis o manobrado .
ancora r n o trabalho , n o princípi o d e dar para t. LA FONTAINF. Jean. fábulas. Lisboa; Publicações
receber, na forca do s valores pessoais .
Kuropa América. I9H9, p. 20.
Pinocchio e um a história sobr e a dificuldade 5. O psicanalista Winnicott. referindo-se â adolescência,
de transmitir a sabedori a acumula d a pela experiênci a fez um a bel a defes a do aspect o
do s pais aos filhos. l'm a da s lições de moral da positiv o das dificuldades e incompreensões
história nos revela qu e na o se a p r e n d e fora da pmprias dessa época, tanto para o indivíduo, como
experiência , e m b o r a o s adulto s necessite m para a sociedade: "A imaturidade é uma parte
in sis ti r sobr e a importância d e seu s importante da adolescência. I-Ta contem as
ensina me nto s . K u m retrato d o desesper o do s
características mais fascinantes do pensamento
pais, v e n d o o s filhos c o m ete r e m o s mesmos
criativo. Sentimentos novos e desconhe• cidos,
erros q u e eles n o passado , acreditand o na s
idéias para um mod o de vida diferente. A
mesmas ilusões, e é isso q u e os impulsion a a
sociedaele precisa ser chacoalhada pelas
um a pedagogia q u e insista nessa possibilidade da
preven çã o moral. Por outr o lado, na o há outr o aspirações de seus membros não-responsáveis". In:
recurso , é precis o zelar pelo s mais jovens e ensina r WINNICOTT. Donald. W. Tudo Começa em Casa. São
um a série de coisa s que , infelizmente, a maioria Paulo: Martins Fontes. 1989, p. 120.
só c o m p r e e n d e r á depoi s d e certas experiências . 6. Os Estúdios Disney fizeram sua versão ele Pinocchio
em 19-tO. Hsse filme foi muito importante
Junt o co m Peter Pan. esta é um a da s
para a popularização da história.
primeiras histórias o n d e se question a o m u n d o
". Fxiste uma fábula ele L.sopo na qual, ela
adulto , já há n e s s a s o b r a s u m a pont a d o
desprestígi o eme a maturidad e hoje ve m mesma forma, que m ganho u o do m teve ele provar
largament e assu mindo . Nã o s e trata ap e n a s d e nã o que era merecedor , mas o desfech o é
crescer, ma s d e nã o acreditar q u e ser adult o seja diferente . Nessa história, unia gata era
grand e coisa e, c on v e nh a m o s , é uma tese b e m apaixonada por um humano. Ela tanto implorou a
revolucionária para a épo ca . Afroelite, qu e esta lhe concedeu a graça de
Acima de tudo . As Aventuras de Pinóqiiio é transformá-la em mulher. Tud o ia bem até que
um a narrativa sobr e uma neuros e infantil e nisso guard a deusa resolveu testá-la, queria saber se o seu
a sua relevância, ficando em segun d o plan o o fato de caráter também havia mudado . Para tanto, fez
ser um romance, ou um a novela moralista. O b o ne c o te m um rato atravessar o seu caminhe), e ela, esquecendo-
razão, s e somo s crianças, o m u n d o nã o abr e se sua nova forma, atirou-se sobre a caça. Em função
m ã o d e no s elesse gesto, Afroelite julgou qu e ela nã o
merecia ser humana e a devolveu à sua condição
felina.
Dian a Lichtenstein Corso e Mário Cors o

8. Pinocchio quer dizer pinhão, semente de pinheiro, O efeito do beb ê acaba revelando o que
ou pinha. Sementes geralmente estão ligadas ã idéia cada um tem de melhor e faz deles um
da vida em formação e ainda ã ressurreição, pois a grupo. Até aquele personagem qu e faz o papel cie
casca rompe e a semente morre para qu e a um traidor e queria o fim do beb ê
planta possa nascer. Especialment e a pinha , e (representando o éidio ao recém- nascido)
o con e formado de eseamas. na Antigüidade acaba mudand o de lado.
clássica eram símbolos da fertilidade e da 13- GRIMM, Jaco b & Wilhelm. 'iodos ios Citentus de
vida. Dessa forma. Pinocchio fica ligado a uma los IlermauosGrimm. Maclricl: Cocclicão Editorial
idéia de potencial, de poder tornar-se grande, Ruclolf Steiner, Manclala Ecliciones >S: Editorial
mas ainda terá de brotar, de mostrar-se a qu e Antroposófica.
veio. 2000.
9. A seqüência do texto permite especular um pouc o l i . O leitor terá observado a coincidência cio inicio dessa
alem sobre a possível origem do nom e histéma com algumas passagens tios contos
Pinocchio. Imediatamente após nomeá-lo. Gepetto lhe que analisamos no Capítulo XI. os quais
esculpe- os olhos e estes parecem interrogá-lo. o qu e incluíam a custódia das chaves de um quarto
o leva a afirmar: "Olhos de Macieira, que lauto proibido c a marca indelével cia transgressão.
me olhais? Porem, não há nenhum motivo para alinhar esta
(Occhiacci di legno. perché mi guetrdate?) histéma com aquelas, pois o eixo é outro. E mais uma
Afinal, temos oechio (olho) e leí>no (macieira ou ocasião para que possamos recordar que os
no caso. pinho). São olhos fixos, com o uma contos tradicionais são como um caleidoscópio,
pergunta que insiste. Acreditamos qu e é como se esse em qu e os mesmo s elemento s se combinam,
olhar similar colocasse a questão: "o qu e queres de lormando histé)rias muito diversas.
mim?", mas invertida. Afinal o qu e quer 1T. Em uma das mais antigas histé>rias sobre
Gepeto fazendo esse boneco, nos parece ser a metamor• fose. O Asuo de Ouro. de Apuleio.
questão. também temos o personagem principal tend o uma
10. WATT, Ian. .1 Ascensão do Romance. São vida animal sob a forma cie um asno. As
Paulo: Companhia cias Letras, 1990. interpretações clássicas cias aventuras cie Lúcio
11. Esta fantasia de ser devorado retorna no final menciona m o castigo por ter metido-se com a
cio livro. Antes de ter sido engolido pelo tubarão magia. Acreditamos que já é uma leitura cristã, de
gigante. Pinocchio foi pescado, e o pescador qualque r forma e possível qu e tenha inspirado
queria tritá-lo e comê-lo de qualquer maneira. Collodi.
Dessa vez. é um animal amigo, um cachorro 16. Yladimir Propp, analisando as representações sobre
qu e ele salvara de se afogar, qu e vem em sua a floresta encantad a do s conto s de fadas e
ajuda. seus monstros, assim fala sobr e os ritos de passagem.-
12. A ficção moderna, tanto a infantil com o a "A morte e a ressurreição eram provocadas por
adulta, tem insistido na idéia de qu e um pai é um ações que representavam a deglutição das
eleito a posteríorí da vinda de um filho. \ ã o se crianças por um animal monstruoso qu e a
nasceria pai. tornar-se-ia pai por forca dos encantos devorava. Era com o se o animal a engolisse e ela,
cio bebê . ou porque a presença cie uma criança apó s uma permanência menos ou mais longa no
e os cuidados que ela inspira sã o capaze s estômago deste, era cuspida de volta ou vomitada
cie acorda r um pai adormecido qu e tod o o - ou seja, retornava. Para a realização desse
home m carregaria dentro cie si. Na versão rito construíam-se às vezes casas ou cubanas
infantil, podemo s destacar o filme de animação A Era especiais, com a forma de um animal e com uma
do Gelo (2002), em que um grupo cie animais, todos porta representand o a bocarra". In: PROPP, Vladimir.
machos, por um acaso cie destino acaba tend o cie As Raízes Históricas do Couto Mararilhoso. São
se incumbir de um beb ê humano . Paulo: Martins Pontes, 1997 . p. S-t.
>

Capítulo XVI
CRESCER OU NÃO
CRESCER

Peter Pan e
Wendy
Relatividade das pautas de crescimento - Desejo de crescer - Infância como paraíso -
A mãe ideal tios filhos - O filho ideal das nines - O papel da mãe na construção da paternidade
- Aspectos reais e simbólicos da função materna - Nostalgia dos cuidados maternos -
Natureza dos diversos tipos de fantasia - Crianças despóticas -- O olhar dos outros como espelho
e do q u e façam.
J.M. Barrie nasce u em 1860 e foi um
a criança franzina, co m parca s possibilidade s d
o nc eb i d o pel o escocê s Jame
e convive r co m meninos da sua idade , po r isso,
s Matthew Barrie, Peter Pan.
encontro u na literatura e na fantasia um lugar par a
o m e ni n o q u e nã o queria
viver e se expressar. Cres•
cres• cer, consagro u-s e
atravé s cio livro Peter Pan e
VCeiifiy.' escri• to em 1911. O
eixo cia narrativa
e
Çj^l"^"^'jSl «-lelineado pel o vínculo entr
e
*S^S!tJÊÈ^sS9 esse s doi s personagens,
e a história em si é um a
redençã o
para as boa s mães . Na contra mã o de todo s os
relatos de bruxas q u e se incu mbe m do lad o
amea çado r cio papel matern o nas histórias infantis da
tradição, esta é dedicada à s boa s mães . q u e conta
m histórias, zelam pelo son o tranqüil o do s filhos
e nunc a se ma goa m com eles, i n d e p e n d e n t e m e n t
cido , segui u a cr e d i t a n d o n a lieca o c o m o
consolo , decidin d o ser escritor. Após trabalha r c o m o
jornalista, e s t r e o u co m pequeno s escrito s sobr
e l u g a r e s imaginários e teve grand e sucesso . Na
vida familiar, porém , sua trajetória n ã o teve a
mesm a linearidade . Co m a idad e de 6 ano s apenas ,
enfrentou a perd a de seu irmã o mais velho , o q u e
acarreto u para sua mã e u m g ra n d e períod o d e
depressã o . N a idad e adulta, nã o teve a sorte cie ter
filhos, po r isso, afeiçoou-se a cinc o irmão s - George .
Michael, Jack, Nico e Peter - q u e conhece u n u m
pa r q u e q u e costumav a freqüentar, travou amizad e c o m
as crianças e passo u a conviver co m elas. Km 1909,
seu s querido s menino s tornaram - se órfãos, p er d e n d o no
curt o praz o cie dois ano s o pai e a mãe , doente s de
câncer. O escritor, q u e já estava separado , assumi u a
tutela informal do s menino s da família Davies,
formand o po r essa via indireta a família q u e a vida
inicialmente havia negado-lhe . Infelizmente, j á e m 1915
a G u e r r a l h e a r r e b a t o u uni d e s e u s
Fada s n o Div a - P s i c a n á l i s e n a s História s Infa nt i s
sid o represe ntada s p e l o m e s m o ator, dando a

prediletos e, em 1921, o outr o mais próxi m o


morre u a f o g a d o /
Das fantasias compartilhada s co m essa s crianças,
brotaram os primórdio s da história de Peter Pan, àquel a
ép o c a , s o b a forma d e um a história par a
adultos , posteriorment e transformada e m peca . Fsse
cont o d e fadas chego u até nó s difundid o
principalment e através da versã o de Walt Disney em
d e s e n h o a ni m a d o ( 19^3>• Nesse desen ho , porem , a
figura de Peter Pan foi trans• formada e exaltada,
enfocand o maciçament e a trama n o contrapont o
entr e o te m p o imóvel d o m u n d o d e Peter Pan
e a vida real da s outra s crianças, q u e se
resignam a crescer. Além disso, o perso nage m original
de Peter Pan descrito po r Barrie é muito mais
infantil, despótic o e narcisista q u e o de Disnev.
A versã o animad a faz del e um tip o de
adult o infantilizado. mas ainda capaz de cuidar da s
crianças qu e se envolvem com sua personalidad e
magnética. No livro nã o é be m assim, o personage m é
um me nin o igualmente fascinante, quas e adolescente ,
mas co m a subjetividade egocêntric a cie um a
criança p e q u e n a . Sendo assim. Pan está muito mais
pr e oc u pa d o em ser amad o e obedecid o do qu e
em cuidar e liderar co m sabedoria seu p e qu e n o
bando . Fie tem poderes , c o m o o de voar. por
exemplo , os quais funcionam simples• m e n t e e m
funçã o d e q u e Pete r acredit a n e l e s e
literalmente habita o interior cie sua fantasia: um a
ilha chamad a Terra do Nunca. Lá. ele é rei e senhor,
todo s sã o seus súditos, inclusive seu s inimigos,
q u e vivem para odiá-lo, liderados pel o lendário
Capitão (lancho . Peter coabita co m u m gr u p o d e
seis meninos ,
cha mado s d e Meninos Perdidos , para q u e m
funciona com o um misto de pai, irmã o mais velh
o e líder de ba n d o . Mas n ã o s e esper e q u e ele
governe , ele brinca o tem p o tod o e, c o m o ali a
brincadeir a n ã o é faz-de- conta, às vezes, morre-s e
disso. Seu c o m a n d o sobr e o band o d e menino s
perdido s segu e o m e s m o m o de l o ditatorial e
sanguinári o d o Capitã o G a n c h o co m seu s marujos,
os quai s pagava m co m a vida qualq ue r falha o u
desob ediênci a , assim t a m b é m era m p u n i d o s o s
menino s qu e cometesse m o equívoc o d e crescer.
Km 2003. foi produzid a um a versã o filmada
da história q u e é bastant e fiel ao livro de Barrie.
O filme se ch a m a si m p l e s m e n t e Peter Pau. mai
s um a ve z Wend y é e x p ur ga d a d o título.
Felizmente , essa versã o aproveit a a poesi a d o
texto , incluind o seu s t o q u e s de a b su r d o e
comicidade , e resgata a importânc i a da história de
amo r infantil entr e Peter e Wendy . A grand e n o vi d a d e
dess a filmagem, dirigida p o r P.J. H o ga n , está
no fato de a figura do pai e a do Capitã o G a n c h o tere m
pist a d e um a interpretaçã o q u e estabelec e
certa equivalê nci a en tr e esse s p e r s o n a g e n s , co m a
qual c o n c o r d a m o s .
Km toda s as versões, a história começ a no cenário da
amoros a e atrapalhad a família Darling, constituída de
um pai caricaturalmente sério, um a mã e dedicada, a
primogênita Wendy \ qu e é quas e mocinh a e seus dois
irmàozinhos, Joã o e Miguel, s e n d o este último pouco
mais qu e um bebê . O cuidad o da s crianças é repartido
entr e a mã e e um tipo peculiar de babá : uma cadela da
raça Sao Bernardo , chamad a Naná. Essa casa de classe
média , se m q u e seu s habitant e s percebam ,
é regularment e visitada pel o menin o mágico e irreverente
Peter Pan. qu e ve m vo and o da Terra do Nunca
para escutar as histórias contada s pela Senhora Darling, para
depoi s pode r narrá-las ao s Meninos Perdidos.
Fncontramo s Wend y na eminênci a de crescer, é
dela o olha r crítico pel o qua l c o m p r e e n d e m o s
seus pais e observamo s o mais importante , sua identificação
co m a mãe . Barrie evidenci a a eminênci a dess e cresci•
mento , na medid a em q u e coloca Wend y a
fantasiar, di v a ga n d o n o escur o com o um a
adolescent e . Seus so n h o s materializam-se na forma do
estranh o príncipe trajado cie d u e n d e , a c o m p a n h a d o
de um a minúscula fada ciument a chamad a Sininho .
Essa fadinha pensa e explicita alguma s coisas q u e n ã o
ca b e m n o raciocínio infantil de Peter Pan e q u e .
para Wendy , sã o desejos inconfessos . Desd e o
primeir o encontro , Sininho já perceb e q u e o
envolvimen t o entr e Peter Pan e Wendy nã o tem nad a de
infantil, é um assunt o amoroso , por isso, seu ciúm e
ve m ã tona .
Peter Pan era. c o m o já dissemos , um
freqüen• tado r clandestin o da família Darling. ma s um
acidente fez co m q u e ele perdess e sua sombr a
durant e uma dessa s visitas e, para resgatá-la, entra
no quart o das crianças. A jovem Wend y o
surpreen de , mas não se surpreende , poi s ele já
fazia part e de sua s fantasias, compartilhada s em
conversa s co m a mãe . As duas já cochichava m sobr e
Peter Pan, u m jovem q u e parece viver acima de tud
o na fantasia da s joven s mulheres. Q u a n d o W e n d y
fica s a b e n d o o m o t i v o das
freqüente s visitas de Peter à sua casa, surg e a oportu•
nidad e para q u e el e a convid e a fazer o pape l de mãe e
conta r histórias ao s Menino s Perdidos . Seus dois
irmão s viajam junto po r exigênci a dela, q u e os acorda
par a levá-los ; eles , p o r su a vez , s e
entusiasmam , seduzido s po r um a terra na qua l
encontrarã o piratas e índios. Já ela que r ver as sereia s e as
fadas, mas , acima d e tudo , que r brinca r d e m a m ãe . O s
três irmão s voam par a a Terra do Nunc a graça s a
um feitiço q u e Peter Pan pr o m o v e . Esp alhand o so br
e ele s u m pouc o d e
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mário Cors o
um tema m o d e r n o . As sociedade s tradicionais tinha m

pó de fada, torna-s e possível q u e o desej o de voa r


se transforme e m r ea li da d e . Aliás, n ã o s ó essa
, ma s inúmeras fantasias infantis agor a deixarã o o
território do faz-de-conta para sere m vividas c o m o um a
espéci e de sonho, do qual nã o p o d e m o s acorda r e
t a m p o u c o sabemos q u e estamo s s o n h a n d o .
A temporada na ilha da fantasia se encerra q u a n d o a
menina constata qu e seus irmãos haviam se esquecid o de
sua verdadeira mãe . e a brincadeira estava ficando
séria demais. Na volta, os desesperado s pais
recebe m não só seus filhos, ma s també m os Meninos
Perdidos, que a c h a m n o s e i o d e s s a a c o l h e d o r
a famíli a a possibilidade de crescer. Todos meno
s um: Peter Pan, que depois da vitória sobre seu rival, o
Capitão Gancho , assume o leme do navio pirata,
leva as crianças para casa, retorna e fica morand o na
Terra do Nunca. A cada tanto, ele volta para buscar -
por uma temporad a - a filha , a neta , e assim
po r diante , d e um a s e n h o r a chamada Wendy,
para q u e m o te mp o nã o parou .
Peter Pan é acima de tud o um mágico q u e
mud a o caráter da fantasia: o conte úd o é o mesm o
qu e faz parte de brincadeiras e devaneio s da s
crianças, mas seu lugar sim fica diferente . Na
Terra do Nu nca , paradoxalmente, embor a nã o se
cresça tamp ouc o se brinca - ou pel o menos , nã o da
mesm a maneira com o fazem as crianças em situações
cotidianas -, os assunto s infantis são tratados co m
seriedad e de gent e grande . Por exemplo, as lutas
nessa ilha da fantasia n ã o sã o o mesmo qu e brigar co
m piratas e índios no quarto, co m espadas de madeira.
Lá isso é verdadeirament e perigos o e, embora nenhum a
personage m central morra durant e a história, um qu e
outr o figurante é sacrificado. Além disso, certos caso s
sã o contado s para deixar be m claro que nesse lugar
n ã o estamo s para brincadeiras , ou melhor, qu e ali
brincadeira é coisa séria.

As dificuldades em crescer

f "M lguns conto s m o d e r n o s para crianças já vêm

tf., co m bula. Este é um do s casos, pois a simples


ia,^&,*| m e n ç ã o d o n o m e d e P e t e r Pa n
é hoj e sinônim o d a dificuldade e m crescer.
Vários
autores, querend o populariza r seu s
a r g u m e n t o s psicológicos, falam da Síndrome de
Peter Pan' para englobar tod a a gam a de dificuldades
de crescimento.^ Está bem, ma s seria simplóri o
pensa r q u e Peter Pan seja só isso, e, se fosse o caso ,
valeria t a m b é m indaga r de que cresciment o estamo s
falando .
Crescer e n q u a n t o u m proble m a é essencialment e
pauta s d e cresciment o bem-definidas , o u ainda
rituais q u e marcava m a passage m do t e m p o ,
pelo s quais o g ru p o social regulava a sucessã o
da s etapa s da vida, se m marge m de negociação .
Co m a modernidade , o cresciment o passo u a
ser compreendid o com o uma matur açã o
psicolcigica, cujos indicador e s sã o mera• ment e
subjetivos, já q u e o corp o e a idad e nã o neces•
sariament e definem a etap a da vida em qu e
se está. Q u a n d o muito , a sociedad e exig e um a
performance
(com o a ss u m i r publicament e u m
rel ac i on a m e nt o a m o r o s o o u trabalhar) , ma s n ã o
diz q u a n d o alguém está pronto , e sabem o s
vagament e o q u e principia e o q u e encerr a determinad
a etapa . A ausênci a de critérios objetivos é tã o
grand e q u e uma pesso a p o d e até ter filhos,
trabalha r muito , ganha r be m e aind a ser consi•
derad a infantil po r sua família ou amigos , assim
com o algué m p o d e s e passa r po r adolescente , s ó
porqu e é namoracleiro. embor a já tenh a mais cie
-t(); po r outr o lado . é possível q u e um indivídu o
seja visto c o m o um adult o se m jamais ter seque r
beijado o u se m nunc a ter trabalh ado . Knfim.
n e n h u m a paut a garant e q u e algué m o c u p e u m
lugar social d e adult o q u e seja inquestioná vel .
A psicologia tem valorizado o tema do amadureci •
ment o c o m o um a meta a ser alcançad a e se
utiliza do rótulo de ref>ressiro para desqualificar tud o
aquil o qu e evoc a um m o m e n t o da vida qu e já
devia ter sid o superado . Na falta de parâmetro s
sociais, criamos vagas definiçõ e s psicológica s , e m
q u e a d e p e n d ê n c i a , a dificuldade d e suporta r a
s frustrações, o s sentimento s egoístas, a
dificuldade de control e da raiva e muitos outro s
estado s psíquico s sã o indesejáveis dentr o d a dit
a condiçã o a d u lt a , send o considerado s
resto s infantis, portant o aspecto s regressivos.
A idad e adulta é e nt ã o c o m pr ee n di d a c o m o
um a époc a de b o m sens o e equilíbrio mental .
A be m da verdade , a dita maturidad e nã o
existe d e u m m o d o taxativo , poi s car re g a m o s
c o n o s c o resto s d a noss a infância e adolescênci a
pela vida afora. Ksses restos, e n q u a n t o memória s
n ã o elaboradas , aind a falam e m nós , p r o d u z e m
sintoma s e estã o n a g ê ne s e do s desejos mai s
importantes . K n a condiçã o d e passageiro s
clandestino s - q u e d e tant o e m tant o s e
organiza m em moti m e m u d a m o curs o da
emb arcaçã o - q u e a criança e o jove m q u e
fomo s viajam pela vida afora, ou seja,
en tr an h a d o s e escondi d o s nu m sujeito dito
crescid o e a m a d ur ec i d o .
Barrie te m o mérit o d e n ã o se r simplista,
par a el e n ã o h á u m a idealizaçã o d a infância
com o um a fase d e pur a criatividad e e
c a n d u r a . Po r e x e m p l o , el e afirma q u e par a
p o d e r voa r - ú n i c o m e i o d e

229
Fadas n o Di v a - P s i c a n á l i s e n a s His t ór i a s Infa nt i s

transpor t e par a a Terra cio Nunc a - é precis q u e n ã o to m e a s atitude s necessária s par a


o se r alegre, inocente e sem coração,
crescer e aparecer , ser p e q u e n o na s histórias da
reconhecend o q u e h á um a maldad e egoíst a tradição não te m valor algum , a p e n a s c o m o
própri a d a infância. Q u a n t o ao s adultos , o s q u e co nt ra p o nt o a uma g r a n d e e compensador a
crescera m e a m a d u r e c e r a m sà o a p re se nt a d o s c om o
corage m ou astúcia. Não existe m conto s
aq u el e s q u e , d e tant o lidar c o m a s chatices d a folclóricos cujo tem a seja a obstinada resistência
vida, acabara m to r na n do - s e gent e se m graça . Temo a crescer, m e s m o p o r q u e isso nã o fazia sentid
s d e concorda r co m o auto r q u e a m b o s s e n õ e s o n a sociedad e tradicional.
sao verdadeiros . Soment e as mães , obrigada s a um maior convívio
A grand e novidad e da historia de Peter co m a infância de seu s filhos, p o d e m ter alguma
Pan é compreendei" o crescimento com o algo qu e notícia sobr e as fantasias destes , ma s n e n h u m a
de p en d e do desejo da criança de permitir isso acontecer. As poder á nem querer á ir até ess e m u n d o imaginário .
exigências sociais de estudar, namorar, trabalhar, casar Send o mãe. ela já pertenc e a outr o planeta , alheia
e ter filhos, assim com o o imperioso ritmo do corp até da criança que ela própri a foi. A infância
o qu e impõ e a maturação tísica, aqui de nada valeriam, retratada po r Barrie, quando conclui, deixa o sujeito
diante do desejo d a criança, qu e poderi a s us pe nd e privad o do acess o a algo que viveu. K be m
r o u continua r o processo ao seu comando . Nesse lembrad o q u e uma cortina de esqueci• m e n t o
sentido, nã o é estranho qu e a história seja caracterizada separ a o adult o cia criança , poi s trata-se de
a partir desse aspecto, poi s se trata de um pont o época s cia vida q u e possue m funcionamento s psíquicos
de vista surpreendent e e o p o r t u n o para diferentes, os quai s p o u c o se com unica m entre si.
os
t e m p o s atuais , e niss o resid e a genialidade desse Os único s adulto s da Terra do Nunc a sã o os
enred o e a ra/.ao cie sua difusão. fabricados pela imaginaçã o cias crianças, sà o
() herói de Barrie e diferente de outro s p e q u e n o s ameaçadore s e fazem part e cia aventura .
do s conto s clássicos, com o Polegar, e m funçã o d e q u e O autor lembra q u e abandonai" a infância
el e n a o e a p e n a s u m m i ú d o as tu ci o s o e implica um a p e r d a d e i d e n t i d a d e . L c o m o s
valente , mostrand o qu e taman h o n a o e d oc u m e nt o . e tivéssemos emigrad o e. para habitar um a nova terra,
Peter testa seu pode r principalment e contra a tivéssemos de aceitar esquece r tud o sobr e língua,
irremissível pas • sagem do tempo , e criança por costumes, cheiros e sabore s de noss a terra natal.
escolh a e nã o c o m o um percalço qu e o temp o Acessar a idade adulta cobra o preç o cia amnésia
curará ou c o m o um a falta cie tamanh o qu e terá da infância. Ksquecemos de com o procedíamo s em
de ser c o m p e ns a da . Peter Pan e Pinocchi o sa o o s relação às fantasias, do modo infantil de
primeiro s p e r s o n a g e n s q u e v ê m questiona r o co m p re e n d e r o m und o , da língua qu e faláva• mos , com o
\ al o r d e ser adulto . Nascid o 3 0 a n o s depois , o se isso tud o nunca tivesse sido nosso. Alguns adultos
herói cie Barrie parec e ter realizad o o s o n h o cio p od e m aprende r a falar co m as crianças, quando sào
b on e c o italiano. pais. avós. professores, psicólogos e outros que se
A Terra cio Nunca é um lugar fantástico c o m ocupa m delas, mas funcionarão com o bon s falantes de
o o País do s Brinquedos, mas dessa terra nã o é um a língua estrangeira, nunc a co m o os nativos
preciso sair transformado nu m burr o cie carga. Livre cios dela q u e um dia foram.
moralismos qu e transbordavam na obra de Collocli, Outrora , a infância foi a pe n a s associada a
o m u n d o de fantasia de Barrie ouso u representa r as suas i n c o m pe tê n cia s : crianç a era a q ue l a q u e
fantasias infantis tanto em seus aspecto s irreverentes, ainda não a p r e n d e r a isto ou aquilo , ma s
quant o pueris e assustadores , assim c o m o explora felizment e havia a possibilidad e de cura. O
r a idealizaçã o da infância enquant o um períod o surgiment o do sentimento de infância, tal c o m o
de riqueza imaginária, livre da s amarras da s retratad o po r Philippe Aries," trouxe consig o um a
responsabilidade s adultas. valorizaçã o social cias características da infância,
Peter Pan tez sucess o justament e po r trazer agor a encarada s c o m o positivas: o que antes era
tã o enfaticament e essa que stã o ao s conto s infantis, ignorânci a agor a p o d e ser visto c o m o inocência; o qu e
o n d e ela estava ausent e ou sugerid a a p en a s era incapacidad e assum e a categoria cie potencial, a
lateralmente . Agora a resistência a cresce r ganho u criança passa a valer pel o q u e o adult o pod e
um n o m e e um rosto. A infância, ante s um a fazer dela . e sua ed u ca ç ã o é um a realização, n ã o
etap a a ser vencid a o q ua n t o ante s para q u e a mais um fardo. Porém , mai s d o q u e u m encant
vida começasse , g a nh o u o estatuto de t e m p o o pela s mara• vilhas do psiquis m o infantil, o
privilegiado e feliz e co m e ç o u a angariar adeptos adult o vê nelas um caminhei par a c o m pe n sa r sua s
, até o p o n t o a q u e ch eg a m o s hoje, q u a n d o frustrações, realizar seus desejos. Por e x e m pl o , se
consideramo s qu e crescer é perde r u m paraíso. Nã o h á um a criança for mimada e preguiçosa , é possível
n e n h u m a pe rs o na g e m d o s conto s d e fadas q u e tenh a sid o colocad a nesse
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Co r s
o
temporári o e fugaz.

papel por um adult o q u e que r ver nela a c o m p e n s a ç ã o


pelas agruras q u e sofreu q u a n d o criança; se
revelar- se uma virtuose, muitas vezes, seu s d o n s
estarã o a serviço de co mp en sa r a mediocrida d e de
seu s pais. Peter Pan nã o se recusa a cresce r a p e n a s
p o r q u e ser criança é bom , na verdade , ele se neg
a a realizar esses papéis todos . K c o m o um b e b ê
q u e a p r e n d e a dizer não e prazerosamen t e descobr
e q u e tem p o d e r para pôr um limite no assédi o e na s
d e m a n d a s de q u e é objeto, dizend o "não" a tud o q u e se
lhe for solicitado. Por isso, a Terra do Nunca p o d e ser
ta m b é m o refúgio dos que não quere m ser médicos ,
advogados , modelos , corredores de Fórmul a 1.
artistas ou joga dor e s de futebol famosos, do s q u e
se recusa m a e m p r e e n d e r a
corrida pela realização do s so n h o s do s pais.
A recusa em crescer é uma jogada de dupla
face: por um lado, implica a recusa em atende r a todas
essas expectativas: por outro, possibilita com qu e se
mantenh a consigo o p o d e r de ser um e t e r n o
potencial . Pela indefinição de seu destino, as crianças
carregam a fantasia de tudo o qu e poderã o realizar, afinal,
se ne m tentaram ainda, conclui-se qu e també m elas
nunca fracassaram.
Certos j o ve n s p r o l o n g a m i n d e f i n i d a m e n t e
a adolescência porqu e se recusa m a fazer
escolha s e tentar. Fscolher é perde r as outra s opçõe s
q u e n ã o se quis, enquant o tentar é descobri r q u e só
conse gui mo s em parte. Km a m b o s os casos, se
pe r d e a ilusão do todo. Assim, os q u e se resigna m
a cresce r tam bé m se conformam ã sua futura
mediocridade ; po r mais q u e façam, serão fadados
a ser mais um do s adulto s q u e ficam deve nd o
diant e de t u d o o q u e poderia m ter sido na vida.
No noss o tem po , cresce r está associad o a perder,
n ã o há mais tant o prestígi o na co n di ç ã o adulta.
Não é se m razão, então , q u e hoje os filhos têm tanta
dificuldade de prescindi r do abrig o da casa do s
pais. invertendo a tendênci a da s década s
anteriores , em que sair de cas a era a g r a n d e
met a d o s a d o • lescentes, sinal inequívo c o da
conquist a de um a fatia de liberdade.
Por último, a Terra do Nunc a represent a també m
a angústia d o s q u e n ã o c o n s e g u e m crescer ,
é a lembrança de q u e a infância dev e ser
passageira e se não o for poder á funcionar c o m
o um pe sa d el o do qual nã o conse gui mo s
acordar. Peter Pan n ã o é um menino, ele é a
essênci a da fantasia, po r isso, n ã o te m memória ne m
pr e oc u pa ç õe s ; já os Menino s Perdido s sim são
crianças, eme passa m n ã o p o uc o s reveze s em sua
vida na ilha e, po r isso, a a b a n d o n a m de b o
m grado assim q u e r e c e b e m o convit e de
Wendy . As crianças Darling usufrue m e exalta m a
magia própri a da infância, ma s em se u caráter
pais q u e planeja a a d o ç ã o d e todo s esse s irmãos

Elogio à mãe
r&Éf* vot o de etern a infância de Peter tem no
livro
,__.}_ um a explicação , digamo s psicológica,
qu e
*„",, "• faz. parece r a possibilidad e de
congela r o t e m p o alg o na o ta o
opciona l assim. Peter
Pan narra dua s versõe s d e sua história, q u e
n ã o sã o n e c e s s a r i a m e n t e co nt ra d it óri a s , mai s
p a r e c e m se r comple m ent are s . Nu m primeir o
m o m e nt o , ele cont a q u e . s e n d o aind a u m
b e b ê . escuto u d e seu s pais o s projetos d o q u
e eles esperava m q u e ele s e tornass e q u a n d o
crescesse . Por negar-s e a seguir ess e plano ,
teria fugido para um parque , o n d e ficou
vivend o co m as fadas, qu e finalmente o
levaram para a Terra do Nunca . Na segund a
versão , ele explica po r q u e trata co m tanta
obsessão , mágo a e ceticism o o tem a da mãe
. a p o n t o de proibir os Menino s Perdido s de
falar sobr e o assunto : de fato ele teria partido ,
conform e o relato anterior, ma s decidi u voltar,
sa u do s o daquil o q u e a b a n d o n a r a . O problem a
é q u e ness a ocasiã o n ã o encontro u sua
janela aberta, e s p e r a n d o po r ele. Pela janela
fechada, viu um nov o b e b ê em sua cama .
demonstrand o qu e a mã e o havi a
esquecid o e substituíd o . A partir daí,
ressentido , ele decid e n ã o cresce r mais e volta
para sua terra imaginária.
A mãe . na visão idealizada de Barrie, nã o
deveria conserva r má goa s d e seu s filhos, t u d
o suportari a e principalment e seria algué m qu
e nunc a m udass e d e posição : sua janela teria
de estar sempr e aberta para q u e o s filho s
v o l t a s s e m q u a n d o q u i s e s s e m , n ã o import and
o o qu a nt o eles a tivessem feito sofrer co m sua
ausênci a e a b a n d o n o . Fssa é a mã e q u e Peter
Pan queri a e nã o teve .
K interessant e notar essa aborda ge m
psicológica d o persona ge m , considera nd o q u e s
e travava d e u m livro escrito q u a n d o o sécul o
XX e a psicanálise era m aind a jovens . Ksse
p e n d o r para a infância se m fim já nasc e
atribuíd o a drama s d o núcle o familiar, c o m o s
e nã o houvess e muitas dúvida s para Barrie d e q u e
somo s resultad o de c o m o construímo s a
narrativa da história de nossa filiação.
As crianças Darling têm certeza de q u e a
janela dela s nunc a estará fechada ,
independentement e d e eme tenha m sid o
egoístas a p o n t o de fugir e fazer os pais
passare m po r tã o mau s bocados , po r isso,
voltam e sabe m cjue n ã o ficarão sós. Wend y
vai â 'ferra do Nunc a par a repara r o vazi o d e mã
e q u e havia naquel e m u n d o , graças a isso, ao s
pouc os , os Menino s Perdido s vã o se en c ontrad o e
termina m po r se soma r à família Darling. A
menin a está tã o tranqüila da acolhid a de seu s
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o Co r s
o
u m a i n va so r a e q u e P et e r havi a ordenado q u e
a matassem . Eles e nt ã o atiram flechas contra a
menin a q u e chegav a v oa n d o . Infelizmente, acertam o
menina a realizaçã o na fantasia dess a regia brincadeir a
alvo, mas , po r sorte, ela milagrosament e é salva po r
de boneca s q u e Wend y fez na Terra do Nunca .
Talvez melhor d o q u e n e n h u m h o m e m , este menin o u m objet o q u e g a n h o u d e Peter.
sab e d o que as mulhere s gostariam: cie se
perpetua r no pape l da mã e da criança p e q u e n a ,
sentir-se objeto d aq u el e amor q u e se u beb ê
lh e s d e d i c a , d e se r e t e r n a s possuidoras dess e
rosad o e valioso bem . O devanei o da menin a
sobr e a mulhe r q u e ela será inclui est e objeto
mágico : o b e b ê . Peter brinca co m Wend y no
duplo pape l d e papa i e filhinho. s e n d o a o
m e s m o tempo aquel e q u e a faz ser mà c e o
filho qu e n à o a abandonar á nunca . Nesse
sentido , el e é o h o m e m perfeito, co m q u e m tod
a a menin a sonh ou , logo . u m menino assim p o d e
representa r o mais perfeito objet o de desejo,
destinatári o do valioso beijo, dess a caixinha que guard a
o maio r segred o feminino.
A Sra. Da iii n g c o n v i d o u Pete r Pa n par a
se r adotado junto ao s Menino s Perdidos , ma s ele
recuso u mediante o fato de q u e ela lhe garantiu
q u e o faria estudar e mais tard e trabalhar: "Não quer o
ser h o m e m , seria horrível se um dia eu acordass e
e descobriss e que tinha barba" . Q u a n d o garant e
q u e n ã o ficará lá para crescer, ele se torn a essa
criança etern a e leva consigo o beijo secret o
c o m o troféu . O p r ê m i o é recebido ã con diçã o
d e q u e ele continu e s e n d o um a fantasia q u e
habita o s o n h o da s mulheres .

Wendy enamorada
Ç, J-m,. éte r Pan precipita um sentiment o
amor os o
;!?; ' _: bastant e erotizad o n à o so ment e cm
Wendy .
';•!• ,*•'• ma s t a m b é m na s fadas e sereias (qu e
vivem a s turra s c o m a atua l es c ol hi d a
p o r se u
coração) , poré m se comport a cont o um
b o b à o , totalmente inocent e e desconcertad o
diant e d e s s e element o q u e el e p a r e c e i gn orar
, e m b o r a s ai b a administrar a seu favor. Acima
de tudo . ele se deixa amar e, em troca, oferec e
sua ingen uidad e e a magia que provê m de sua
infância imortal.
Exist e u m a c e n a q u e . s e a lermo s
c o m o s e interpreta um s o n h o , mostra co m clareza
a di mensã o amorosa d o casa l p ri nc ip a l . Q u a n d
o e s t ã o t o d o s chegando à Terra do Nunca , Sininho,
morta de ciúmes , põe e m prática u m pl a n o par a
livrar-se d e Wendy . Enganando os Menino s
Perdidos , ela os faz acreditar que We n d y er a
233
A flecha eme a derrubo u acerto u um pingent
e de b o l o t a d e c a r v a l h o q u e ela trazi a
p e n d u r a d o n o pescoço , o qua l havia sid o trocad
o po r u m deda l co m Peter . A tr o c a p o d e
p a r e c e r e s t r a n h a , m a s t u d o com eço u co m u
m mal-entendido : deveria ter havid o uma troca
de beijos, poré m Peter n ã o sabia o qu e era um
beijo. Por isso. q u a n d o ela lhe ofereceu um
beijo, nu m gest o d e grand e ousadi a para uma
menina , ele reagiu fechand o os olho s e
e s t e n d e n d o a mã o aberta, na expectativ a de qu e
ali fosse dep ositad o o qu e que r q u e foss e qu
e el a estav a denominand o beijo.
Desconcertad a pel a ingenuidad e d o
menino , ela coloco u ali seu p e q u e n o dedal .
Em retribuição, Peter lhe de u u m d e seu s
botões , uma bolota d e carvalho, c h a m a n d o - o
ta m b é m de beijo. De certa forma, essa bolota
de carvalh o era entã o um beijo ganhado.
Apesar de nà o ter sido ferida pela flechada, já
qu e acabo u send o salva pela bolota de
carvalho, ela caiu co m o morta. Na tradição
ocidental. Cupid o (deu s do amo r para os
romanos ) acabou send o representad o por crianças
flechando os candidatos ao iclílio. Além disso.
em inglês existe a expressã o "cair de amores"
(tofali in lore). qu e significa apaixonar-se (em
português temos o mesm o sentido).
Entre Peter Pan e Wend y encontra-s e tud o
aquil o q u e u m amo r herd a d o víncul o primordial
co m a mã e e o us o erótic o q u e é possível
lazer disso. Embora brinqu e m alternadamen t e de
ma e e filho e de papai e ma mãe , n à o h á
dúvid a d e q u e foram flechados po r u m amo r
d e outr o tipo. Essa multiplicidade d e papéi s
reservad a a Peter Pan é decorrent e da
diversidad e de fantasias a q u e um a menin a
recorre para imaginar a mulhe r q u e ela será: uma
mulhe r q u e que r u m h o m e m a se u l a d o q u e
a proteja , ma s q u e t a m b é m seja d e p e n d e n t
e dela . q u e lhe d ê filhos, o s quai s deve m
realizar seu s son hos , ma s de tal forma q u e
nunc a a a b a n d o n e m , alé m de muita s
outra s f u n ç õ e s contraditórias entr e si. Peter Pan
consegu e se desdobra r e m quas e toda s elas.
entã o n à o admira q u e termin e impacientando-s e
co m a s mulheres .

As fadas da Terra do Nunca


>*H»P|ll s fadas sã o figura onipresent e nessa história,
e as
«T i l S ' recolhe m as crianças e as
levam para a à ^ Í A / l Terra do Nunca . Lá
de certa forma zelam po r elas. É co m a
fada Sininho q u e Peter
Pa n fica q u a n d o s e separ a d e Wend y n o
final d a história, é co m ela q u e ele cheg a
q u a n d o a aventur a começa . As fadas estã o
sem pr e pert o de Peter Pan,
Fadas n o Div a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infa nti s
até crescer, d es d e q u e ela

sem consultá-los. Eles, po r sua vez, apó s um a


curta vacilaçáo po r parte cio racional e objetivo Sr.
Darling, t e r m i n a m r e c e b e n d o - o s , f a z e n d o jus a
o adjetiv o querido qu e é o s o b r e n o m e da
família.
O s Menino s Perdido s ta m bé m tem sua
história: sã o originalment e crianças q u e a s babá s
deixara m cair d o ca rri n h o s e m s e da r conta . S
e a p ó s set e dia s ningué m os reivindica, eles
sã o levado s pelas fadas para a Terra tio Nunca,
portanto , sã o t a m b é m crianças a b a n d o n a d a s pela s
mãe s o u substitutas , b e b ê s q u e uma mulhe r
perde u e na o foi buscar. Não há menina s lá. pois.
conform e lVter, elas seriam muit o esperta s e nã o
cairiam elo carrinho .
Parece qu e as meninas têm algo diferente a
fazer com suas dúvidas sobre a consistência do amor
materno, elas pode m se identificar a ele. Wéndy traz
o papel da mãe dentro de si. Ao longo da
permanênci a na ilha da fantasia, seus irmãos se esquece m
da Sra. Darling. a pont o de Miguel, o menorzinho . estar
convicto de qu e Wéndy é sua mãe; a menina, no entanto,
nã o sofre dessa amnésia, passa falando da mã e para
as chancas, marcand o seu lugar de substituta. Ocu pand
o esse papel com abnegação, ela se ocupa o temp o tod o
dentr o de casa, administrando alimentos, remédios,
cerzindo roupa s e exercend o junto d a q u e l a s c r i a n ç a s
a s d u a s tar ef a s p r i n c i p a i s d a maternidade: a
rotina (qu e compreend e a administração do sono . da
alimentação e cia higiene) e o respeito ao pai. A tal
pont o essa Iiistória ressalta a condiçã o da mã e com o
rainha cio lar. que . na ocasião em qu e Wéndy cai
de sa c or d a d a n a ilha. n u m a c h e ga d a dramática ,
o s Meninos Perdidos constróem uma casa em torn o
dela. Dessa forma, a mã e representa o própri o centro,
o eixo em torno do qual gira o m u n d o doméstico.
Porem , se Wencly, seu s irmão s e os
Menino s Perdido s c resgatado s estã o o c u p a d o s
em exaltar a dignidad e d o amo r materno . Peter tem
outro s recado s a transmitir. Tem o discurs o
q uei x o s o de q u e m foi a b a n d o n a d o na infância
(embor a tenh a sido ele q u e partiu). Apesar disso,
tem lugar garantid o n o coraçã o d e toda s a s mulheres ,
pois será sem pr e u m menin inh o em busca da mãe . Para
ele. as mãe s elevem ficar se mpr e disponíveis , embor a
ele saiba q u e o preç o a paga r para ter um a
morad a p er m a ne n t e n o coraçã o d e um a mã e seria
o de nunc a crescer.
Na casinha de Wencly na Terra do Nunca ,
ela im pô s q u e u m d o s m e n i n o s deveri a se r u
m b e b ê p o r q u e toda a casa tem que ler um bebê.
Por isso, ela obrigav a seu irmã o mais moç o a dormi r
e m u m berço , apesa r de seu s protesto s de qu e el e
já era grand e e poderi a dormi r co m os outros .
Dessa forma, fica claro qu e o s outro s filhos p o d e m
beijo cia Sra. Darling. O beijo q u e ningué m
ganho u e que ele consegui u co m tod a
facilidade".
mant enh a pel o m e n o s um em seu s braço s a quem , na
F.sse g e s t o n o s a p r o x i m a d a tes e d e
lógica de Peter. seu verdadeir o amo r seria dirigido.
que o verdadeir o amo r da mâ e é c o m o ess e
beijo guardado, destinad o par a a qu e l e filho q u e
se resign e a nunca crescer. Nisso ele é o filho mais
A Sra. Darling devoto , pois, ao longo da s gerações , ele voltará a
visitar a filha de Wéndy, sua neta. bisneta e
Iff-^&i, Sra. Darling tinha no cantinh o de seu sorriso
toda s as sucessoras , fazendo de toda s elas sua s
um beijo guardado , qu e nunca ninguém tivera
"mães".
à.„ v . . ' o privilégio de receber, ne m seu marido, nem
Logo no início do livro, a Sra. Darling sonha com
seu s três filhos. Nas palavras de Barrie:
Peter Pan: "sonho u q u e a Terra do Nunca estava
bem pert o e q u e um estranh o meni no , vind o de
Sua cabeça romântica era como aquelas caixinhas,
um a d e n t r o cia o u t r a , q u e s ã o fabricada s lá, entrou n o quarto . Não ficou co m m e d o
n o enigmático Oriente: por mais qu e você as retire lá de dele , poi s pensou q u e já o havia visto no rosto
dentro, sempre sobra mais uma. V. sua boca delicada e de muitas mulheres que nã o tê m filhos. Talvez se
zombeteira guardava um beijo qu e Wéndy nunca poss a encontrá-l o também n o rosto d e alguma s
consegui u ganhar, embor a ele estivesse ali, bem mães" .
visível no canto direito... O Sr. Darling C o m o vemos , Pan é aind a mai s do qu e
conseguiu que ela lhe desse tudo. a não ser a o filho ete r na m e n t e devoto , ele é o filho
caixinha mais secreta e o beijo no canto da boca. idealizado, aquele co m q u e m as mulhere s sonha m ,
po r isso, ele aparece par a materializa r su a
Q u a n d o ela c on h e c e Peter, fica fascinada, como bri n ca d ei r a d e faz-de-conta, realizand o o s o n h o
toda s as fêmeas, sejam elas fadas, sereias, ou mulheres, po r típico da s meninas .
seu cativante sorriso "Peter aind a conservava seu Q u a n d o o filho n ã o cresce , a m â e nunc a
primeir o sorris o de cientes de leite". - No fim morre; para Peter, toda s sã o a mesma , um a
da história, a Sra. Darling entrego u a ele seu única e perene image m idealizada da mãe . Ele
cobiçado tesouro . "Peter foi embor a vo a nd o . Levou junto o proporcion a a cada

232
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mari o Co r s
o
e n ã o te m c o n e x ã o n e n h u m a co m o universo
infantil, enquant o a mã e está totalmente voltada
a Peter Pan num a devoç ão : "era um a don a de
casa leal demai s para permitir qualque r reclamaçã o
contr a o pai. 'O seu pai é q u e sabe' , vivia repetindo ,
qualque r que fosse sua opiniã o pessoal" .
A Sra. Darling deixa seu s filhos po r un s m o m e nt o s
para co m p a re c e r a um a festa co m se u marido ,
graça s à essa ausênci a e ao lato de q u e o sr.
Darling havia amarrado Naná. impedindo- a d e protege r
a s crias c o m o um animal faria, os três terã o sua
aventura , p o d e r ã o viajar para a ilha de sua s fantasias e
voltar, decidido s a crescer. A maternidad e h u m a n a
é feita de ausências , de brecha s - també m
favorecidas po r ess e envolvi• mento co m u m home
m - , e m q u e a criança construirá a própria versã o
de sua história, q u a n d o sua fantasia moldará a
persona ge m do q u e ela que r ser.
A mã e de janela aberta , et er n a m e nt e
disposta a ver no filho aqu el e objet o de amo r qu e
seu b e b ê foi outrora, existe para sempr e na
fantasia de todo s os adultos. Kla representar á
um afet o irrestrito qu e o adulto buscar á
in uti l m en t e n o amor . ma s . cas o o encontrar,
fugirá apavor ad o e nã o se m motivo . l' m amor
assim trará junt o um a face terrífica. atinai ele
estará outra vez sentindo-s e c o m o um objeto, indefes o
como u m b e b ê . Essa o p e r a ç ã o , porem , é
s e m p r e incompleta, poi s dentr o d e tod o adult o mor a u
m Peter Pan, o l h a n d o d e fora d a janel a ag or
a fe c ha d a e denunciando o a b a n d o n o a q u e foi
submetido .
Peter Pan també m representa a porçã o da nostalgia
dos cuidados maternos, com o se ali estivesse
alguma forma de amo r incondicional, qu e fica aderida á
memória do adulto. Talvez aí é qu e entra a personage m
de Naná. essa babá qu e dedica às crianças uma
fidelidade canina e uma paciência de que m nã o tem
outro interesse no mundo. Assim c o m o as fadas
representava m a mã e internalizada das crianças
pequenas . Naná é a mã e em seu aspecto de
dedicaçã o real e prática. A ocupaçã o obsessiva e
persistente co m os pequ eno s é um fato e uma
necessidade, por isso. toda a mã e é també m uma
Naná. Por outro lado, toda a mã e é també m uma traidora,
que vai ao baile com o marido em vez de
cuidar do s filhos. Para sorte deles, se nã o tosse
assim, seriam os filhos que jamais iriam a lugar algum.
Existe um a babá mágica e inesquecível: a do filme
Maiy Poppins, q u e é o invers o de Naná. poi s
ela se incumbe do aspect o emociona l e mais
simbólico da maternidade. Poppin s é afetiva,
educadora , oferecend o fantasias e limites, sempr e na
medida certa. Ela chega numa famíli a par a
ocupar-s e d e d u a s c r i a n ç a s desorientadas pela
ausência subjetiva do s pais. O pai é ocupadíssimo
da s crianças, ela encarnav a uma função. Com os
pais de verdad e acontec e o mesmo : executa m o seu
trabalho de criar e educa r os filhos e sua
para o m u n d o externo, já qu e é uma militante
função se esvazia.
feminista dedicada à campanh a pelo voto das
mulheres.
A suposiçã o d e q u e um a mã e q u e
pens a sobr e m u n d o e que r mais pode r para
ela e para seu sex o n ã o p o d e r i a c ui d a r
b e m d a s sua s criança s é u m paradigm a d
o p e n s a m e n t o conservad o r d a virada d o sécul
o XIX para o XX, isso seria o sulicient e
para c o l o c a r e s s a o b r a n a lista n e g r a
cio m o v i m e n t o feminista. Porém , é de Mary
Poppin s o centr o da s atenções , a outra (a
mãe ) soment e existe para criar um co ntrapo nto
, um fundo de ausência qu e ressalta a presenç a
dess a figura matern a mágica qu e toda s as
crianças quere m ter e as mulhere s quere m
ser. Além disso. Mary Poppin s é irreverente e livre,
ne m a súplica da s crianças a faz ficar q u a n d o
ela decid e partir. Tem amigo s h o m e n s e and a
pela cidad e sem inibições. nã o é u m a m u l h e r
su b m is s a e caseir a q u e viria par a
c o m p e n s a r a característic a m u n d a n a d a
m ã e . Seu co nt ra p o n t o é co m um a mã e
desconectad a d o s filhos, e n q u a n t o ela sim teria
a chav e do m u n d o intantil e o p o d e r de
reconstituir o fio da família. De qualque r
torma . a s dua s sã o mulhere s qu e possue m
interesses além do lar. ou seja. as crianças qu e
se acostume m a ser criadas po r mulhere s co m
horizonte s mais largos. A história de Mary
Poppin s trata meno s cia falta
d e amo r pelo s filho s e mai s d a
n e c e s s i d a d e cie c o m p r e e n d e r a especificida d
e d o p e n s a m e n t o da s crianças: para criá-las
e iniciá-las no noss o m u nd o , temo s d e i r
buscá-las n o m u n d o delas. A babá qu e
compartilh a o univers o mágic o intantil
lembra Peter Pan . na medid a em qu e
brinc a co m s e ri e d a d e e materializa as
fantasias. Por outr o lado. o trio formad o po r
Poppin s e os dois irmãos lazem inúmero s passeios,
est a be le ce n d o c o n e x õ e s entr e o m u n d o
mágic o d a infância e o ambient e racional do
trabalh o do pai. A bab á mágic a o s c o n d u z
ness e trajeto, d e saída d a reclusã o doméstic
a inicial, e m q u e s ó brilhavam o s encanto s
materno s (representad o s pela personalidad e
magnética da própria Mary Poppins) , para a
descobert a d e interesse s no s parques , no s tipos
populares , assim c o m o n o mund o d e
negócio s d o pai. cujo víncul o co m os filhos
també m é enfocad o po r ela.
N a vida d e todo s nós . essa transiçã o
acontec e imperceptivelment e e a mã e costuma
ser a mestra-de- cerimônias. Q u a n d o a tarefa
está pronta, aquela babá feiticeira p o d e partir, vai
para ningué m sab e onde . afinal t a m p o u c o sabemo s
d e o n d e ela veio . P op p i n s vai embor a
porque , mais d o qu e u m personage m n a vida
Fada s n o D i v a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infanti s

ela s sã o um a e m a n a ç ã o d o fascíni o d a s As babás


criança s p e qu e na s , seu encant o é gerad o po r
elas: " Q u an d o um b e b ê ri pela primeira vez, nasc #y»fjf( história de Barrie traz um a precisã o
e uma fada". psicoló- I" *ft gica ímpar, q u e consiste em
A vida de Sininho fica po r um fio em determinad o separa r a função
m o m e nt o , e 1'eter a salva solicitando q u e as ..''•'. !k materna , e n q u a n t o um a o pe ra ç ã o
crianças de todo s os lugares, a q u e m tinha acess o psíquica, cia mulhe r qu e a d e s e m p e n h a . O
através de seu s sonhos , batesse m palma s para móvel para
demonstr a r q u e acreditava m em fadas, portant o as ess e discerniment o é a figura cie Naná, a cadela-
fadas nasce m co m o primeir o sorris o da s criança bahá. Kla nã o conta histórias, a pe n a s zela: nã o
s e se m antê m vivas e n q u a n t o elas acreditare m compartilha as fantasias cie Wendy. a p en a s tenta
em sua existência. Assim c o m o a Terra cio Nunca impedi r que as crianças fujam para a Terra cio Nunca:
e o ierrité>rio oníric o m a p e a d o pela fantasia infantil, a nã o deixa marcas de sua subjetividade no s filhos,
fada e a versã o cia mã e q u e essa mesm a ap e n a s oper a a função matern a e m sua ac e pç ã o
fantasia moldou . Wenclv foi ã essa terra mágica
prática.
brincai" de mãe . mas lá as fadas sã o as mãe s de verdade ,
Km c on di ç õ e s norm ais , um a bab á será
qu e nã o estã o cie faz-de-conta, assim c o m o os
talvez lembrad a através cie um cenário , um hábit o
menino s foram brincar de aventura , ma s Peter é a
ou sabor compartilhad o co m ela. mas nã o
aventura cie verdade , q u e nã o termina nunca . As fadas
produzir á o mesmo tipo de marca q u e a voz. o
são a ma e qu e as crianças têm q u a n d o ainda na o sabe m
gest o e até os silêncios da mã e imprime m na
qu e têm. n o te m p o e m q u e elas era m felizes
construçã o da personalidad e da criança p e q u e n a .
e na o sabiam, por isso. a lacla nasc e co m o
Mais do q u e substituir a mãe , a babá é um a extensã o
sorriso, co m a satisfação da criança.
dela, já q u e cada mã e escolh e o tipo d e bab á
A fada de Barrie representa a mã e qu e q u e seu inconscient e determin a : portanto, ela
satisfaz ã criança, qu e sab e fazê-la sorrir, po r is.so. terá o jeito, o estilo e a aparênci a q u e convier
ela faz parte do a c e n o da Terra do Nunca. Mas o à mulhe r q u e a contratou . Só q u a n d o um a
autor na o é d a d o a simplificações, incluiu nessas mãe está subjetivament e ausente , um a bab á pocle
personagen s toda s as ambigüidade s qu e fizeram co exercer um pape l mais determinant e .
m qu e ele situasse esse m u n d o de fantasia nu m l a n a bab á q u e n ã o tosse human a seria
territémo limítrofe entre o son h o e o pesadelo : as fadas alguém cuj a personalidad e nã o obstruiri a
sã o ciumentas, possessivas e ate m es m o capaze s de j a m a i s essa determinaçã o , de cuida r a p en a s de
maklades . Sininho nã o vacila na emboscad a qu e forma prática ao serviç o de outr a mulher , a
armo u para tentar matar Wenclv. ne m se sente qua l se incumbiria da mater nida d e no sentid o
muito culpad a q u a n d o 1'eter a p u n e por isso. simbólico . A separaçã o entre a ma e (Sra.
"Peter as achava terrivelment e chatas : viviam Darling) e a cuiclaclora (Naná ) ilustra o fato d e
se intrometen d o em sua vida e às veze s o aborrecia m q u e a m a t e r n i d a d e s e apoi a n o s cuidados
de tal m o d o qu e o obrigava m a lhes dar um a boa materno s primários, mas n ã o se esgota neles.
surra". A fada ness e cas o e a mã e cie q u e a O pai cia família n ã o possuí a um bo m
criança p eq u e n a clispòe dentr o de si. 1 in:i mã e relaciona• m e n t o c o m Naná , p o r q u e m n ã o
internalizada a q u e m pocle satisfazer, a p o nt o de se considerava respeitado , ele nã o cansava de
ser destinatária daqu el e beijo especial, e a q u e m denuncia r qu e ela era e x c e s s i v a , t r a t a n d o s e u s
pocle até puni r q u a n d o ela n ã o está send o filho s com o s e fossem cachorrinhos . Georg e
obedie nt e ao s seu s desejos infantis. Crescer e Darling tem razão, a maternidade h u m a n a e diferente
percebe r q u e . po r mais maravilhoso s q u e da animal, justament e no que ela t r a n s c e n d e o s
sejamos, nã o recebere mo s nunc a aquel e beijo, é sabe c u i d a d o s d e higiene , alimentação e s e g u r a n ç a .
r q u e nã o abriremo s aquel a última caixinha, q u e a A m a t e r n i d a d e h u m a n a se tradu z em palavras,
mã e nã o é altruísta em seu s desígnio s e n ã o no com partilha men t o de fantasias e frustra• ções ,
temo s po d e r sobr e ela. Ao contrário , ela no s ma s també m em intermedia r a relação com o
retém junto a si cie forma despótic a e egoísta. pai da s crianças. Além de p od e r conta r e cantar
Crescer é també m descobri r q u e , a cad a dia q u e para as crianças, a mã e h u ma n a atua c o m o
vivemos , no s distanciamo s mai s dessa mirage m qu e intermediária entr e elas e o pai e faz is.so
é o a m o r perfeito entr e o b e b ê e sua mãe . m e s m o se m saber, na medid a e m q u e s e
nascid o do seu primeir o sorriso. A fada é um a envolv e co m ele, demonstrando afeto e interess e
mã e s o b medida , d e u m tip o q u e s ó poderi a ser pela s sua s opiniões .
m e s m o um a fantasia infantil.
Wendy, assim c o m o sua mãe , tinha esse
aspecto da funçã o matern a muit o claro , tant o
q ue , em sua tem porad a na Terra do Nunca , transformava o respeito

234
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mari o Co rs o

d e q u e gostamo s d e entrar, ma s d á m e d o n ã o Wencly, J o ã o e Miguel ficaram na pont a do s


p od e r sair. Sabe mo s ser seu s autores , ma s a pé s em ple n o ar para ver a ilha pela primeira
obr a pa re c e c o n s e r v a r c e r t a autonomi a da vez. e o e ng ra ç a d o é q u e a reconh ecer a m de
noss a v o n t a d e . Exatamente nessa dubiedad e imediat o e, até o m e d o toma r cont a deles , saudaram-
reside a particularidade d a o b r a : fica c l a r o q u e na , n ã o c om o algo qu e havia m so nh a d o durant e muit o
o m u n d o m á g i c o e xi st e independentement e de qu t e m p o e q u e afinal avistavam, ma s c o m o um a velha
e os irmãos o visitem ou não . F.le é um lugar, digamos , amiga qu e iam visitar na s férias.
concreto , mas seu s contorno s são ditados pela Q u a n d o e s c u t a m o s a fala d e criança s
imaginação das crianças. Portanto, o mund o m á gi c muit o p e q u e n a s , se g ui da m en t e n o s confun di mo s
o é a o m e s m o t e m p o d e p e n d e n t e e autônomo sobr e o estatuto do qu e elas dizem, pois ficamos
da criança q u e fantasia co m ele. na dúvida se elas acreditam ou nã o na fantasia
Nu m livro c o m o A História sem Fim. de qu e estão descre• vendo . Mas uma coisa parec e ser
Michael Ende,'s e n c o n t r a m o s ess e m e s m o tip o d e decisiva: a fantasia dá para parar, ás vezes, até clã
interaçã o entre a história e o m e ni n o . O m u n d o de trabalh o puxa r o freio, mas ela pára. Para Peter Pan a
Fantasia e a vicia da Imperatriz Criança d e p e n d e m de qu fantasia é um delírio, ela nào pára nunca , e ele nã o sai
e o menin o Bastian acredit e nele s para continuar e m jamais da fantasia porque ele é sua essência, a ilha
existindo . Sua imaginação sustenta e moviment a o heró i é uma extensã o cie seu persona• gem , t u d o gira
q u e irá livrar o reino mágic o de Fantasia de ser devorad o em t o r n o dele . Para as crianças cie verdade , é
pel o Nada. Porém, emb o r a o m e ni n o visite fundamental saber qu e se pod e sair. que nã o
Fantasia através da leitura de um livro mágico , ao estão prisioneiros, eis mais uma precisão de Barrie:
s p o uc o s sua vida e a trama da q ue l e livro se
confu nde m de tal forma em que as aventura s A 'Ferra cio Nunca sempre se tornava meio escura
impressa s o envolve m totalmente . Ele havia e assustadora na hora de dormir. Campos
recente ment e perdid o sua mãe . cuja mort e nào inexplorados surgiam e se espalhavam pela ilha.
pôd e evitar, ma s a da Imperatriz sim eslava em percorridos por sombra s negras. O rugid o da s
suas mãos . Para tal fim. Bastian se encontr a totalment e
feras ficava muito diferente. V. principalmente
identificado co m o jove m herói da trama do livro
se perdia a certeza da vitória . Ainda be m
q u e estava lendo : um órfão da tribo de caçadore s de
qu e a s criança s tinham a s lampadinhas
búfalos Peles-Verdes, c h a m a d o Atreiú. Fsse jove m
acesas na cabeceira. I...1 Naquela época a Terra cio
caçado r conta co m a ajuda de vários p er so n ag e n s
mágico s (u m dragão, um centaur o e outros) , no s Nunca era faz-de-conta mesmo, mas agora era de
quai s Bastian vê representado o apoi o q u e seu verdade, sem lampadinhas acesas e com uma
pai. co n su m i d o pela tristeza do luto. estava lhe escuridão cada vez maior.
n e g a n d o . O m u n d o cie Fantasia possu i t u d o o
q u e o m elancóli c o m e n i n o precisa, ma s ta m b é m Aco m pan ha r Pan foi um a experiência de
está t o m a d o da mesm a tristeza abissal qu e ameaç a viver a fantasi a n a fronteir a e m qu e a
transformar seu lar n u m lugar vazio, num Nada. Tal com o realidad e a me a ç a desaparecer . Nu m outr o trecho ,
no cas o da Terra do Nunca , este mundo mágic o conté e relatado com o ele, c o m su a lideranç a
m os s on h o s e os pesadelo s cias crianças e clespótica e infantil, po r veze s decidia q u e
funcion a c o m o u m e s p e l h o d o q u e o s comove determinad a refeição seria apena s d e faz- de-conta .
e m d ete r m in a d o m o m e n t o . Por obediênci a devida , todo s fingiam come r se m
reclamações , m e s m o q u e estivessem com fome d
F b o m esclarece r q u e a 'Ferra do Nunca era
e v er da d e ma s s ó Peter Pan s e sentia
um a ilha, poré m as criança s a encontrara m n ã o
realment e satisfeito , d i z e m q u e inclusiv e er a
graça s ao inexistente sens o de orientaçã o de Peter
Pan. já q u e este voava á deriva, n ort e a d o a pe n a s c a p a z at é d e e n g o r d a r c o m ess e tip o d e
pel o seu sens o de busca de diversão . O gr u p o alimento . O s Menino s Perdido s n ã o sã o
chego u lá p o r q u e a ilha també m estava p r o c u r a n d o m e m b r o s permanent e s d a fantasia, nà o tê m a
po r eles. Nã o há c o m o errar o caminh o para a Terra capacidad e d e s e alimentar d e sonho s com o Pan. nã o
do Nunca , poi s se n ã o acertamos o rumo , ela sã o part e dela . sã o crianças qu e estã o l á po r falta de
no s localizará. C o m o to do s a c o n he ce m , poi s ter par a o n d e ir, já q u e n e n h u m a família
el a prové m de um a f a n t a s i a compartilhada, e s p e r a v a p o r elas . N o final, sa o libertada s
c o m o o s m u n d o s i n v e n t a d o s n a s brincadeiras d e s s e desp otism o po r Wencly e seu s irmãos, qu e
entr e pare s e irmãos, cad a coisa imaginada agora tinha os levam consig o par a sere m a do ta d o s pela
um suport e real. família Darling.
No livro, a angústia da família q u e esper a
e se d es es p er a pel a ausênci a dos filhos é u
m elemento
Fada s n o Div a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infanti s

Restarão depois , ligados po r laços afetivos, de carinho, s u s p e n d e , m a s p e r m a n e c e p r e s e n t e . E c o m


d e preservaçã o d a memória , d e mútu a assistência o nos s o nh o s e m q u e s a b e m o s estar s o n h a n d o
co m os filhos, ma s de certa forma aposentados . . Tanto a s fantasias q u e c o st u m a m o s elabora r
e m determinada fase da vida, q u ant o as brincadeira s a
q u e a criança se apeg a em d ete r m in a d o período , sã o
O mundo do faz-de-conta vividas co m o uma possessã o pessoal , u m território
d o qual desenhamos o m a p a , mas , quand o
,»*.*>:-•».*_ éte r l'an é diferente do s me nino s viajamo s par a lã, estamos entregue s ã sua
perdidos . trama. Kmbora saibamo s q u e é irreal, q u a n d o
'"]• '. * "(3 q u e o diferenciava do s outro s entramo s na noss a Terra do Nunca, estamos
meni no s sujeitos a sua s leis. Pis a descriçã o tle Barrie
• "^ - era q u e eles sabiam q u e se tratava para a Terra tio Nunca , q u e muit o b e m
de faz- de-co nta , e n q u a n t o par a Pete r poderi a ser uma definição poética da especificidad e
fantasia e da fantasia tle cada um tle nós , temo s um a c e n o
realidade era m exatament e a mesm a coisa". Ou melhor, co m u m , mas com ele tecemo s u m e n r e d o q u e
ele é a realização da fantasia da s outra s crianças. no s é particular:
('ab e uma distinção sobr e qual fantasia
estamo s falando, n o cas o doi s tipos s e apresentam : A Terra tio Nunca sempre é mais ou meno s uma ilha.
aquel a qu e aparec e so b a forma do sonh o diurn o e a qu e com manchas coloridas aqui e ali e recifes tle coral,
se realiza atr a v é s d a a t i v i d a d e d e b r i n c a r d a s um vistoso navio ao longe. índios e tocas
c r i a n ç a s . N a primeira , t e m o s um a cen a e m solitárias, gnomo s qu e em geral são alfaiates,
q u e q u e m fantasia protagoniza , c o m o nu m filme e
grutas banhadas por um rio, príncipes com seis
m q u e somo s diretore s e atores, cena s de qu e desejamo s
irmãos mais velhos, unia cabana quase caindo e
participar. Conquista s a m o r o s a s o u pr of is si on ai s ,
uma velhinha com nariz atlunco. I...1 As Terras tio
v i n g a n ç a s p e s s o a i s e p r o j e ç õ e s d e futur o sa o
Nunca variam muito. A de João . por exemplo,
materia l corrent e d e s s e s roteiros. O s so n h o s
diurno s sã o m o vi m e nt a d o s po r um a tentativa d e tinha uma lagoa com flamingos qu e a
encena r desejos q u e admitimo s (o u não ) ter. A sobrevoavam e nos quais ele atirava, enquanto a tle
figura de Peter Pan. q u e . ante s de entra r na história, já Miguel, qu e era muito p e q u e n o , tinha um
apareci a no s devaneio s de Wendy, faz part e dess e tip o flamingo co m lagoa s qu e o sobrevoavam .
de fantasia. Seu personage m era invocad o ao João morava num barco emborcado na areia: Miguel,
serviço tia fantasia tle projeçã o tia mulhe r q u e numa tenda tle índio: Wéntlv, numa cabana tle folhas
ela gostaria de se tornar. Pssa atividade imaginativa muito bem costuradas. Joã o não tinha amigos; Miguel
permit e um estatut o tle relaçã o co m o inconscient e tinha amigos ã noite: Wentlv tinha um lobinho tle
mediant e o qua l o sujeito potl e vivenciar um a estimação qu e havia sitio abandona d o pelos pais.
saída para seu s conflitos e um a realização tle seu
s desejos, ma s n ã o necessita se co mpro m ete r co m a Através tlessa primeira descrição , fica nítido
parte mais complicad a e inadmissível deles . que a Terra tio Nunca é o es p aç o construíd o
O brinqu ed o tias crianças tem a mesm a liberdade : pela fantasia tle cad a criança, q u e b e m p o d e
brincand o é possível vingar-se tia autoridad e tios pais. variar conforme a i d a de , o s e x o e o a c e n o
derrota r o rival do m e s m o sex o e. etlipicamente . tle cad a uma , mas tem eleme nto s em c o m u m ,
ser escol hid o pel o pai o u pela mã e para tle um imaginário comparti• lhad o pela s crianças
namorar , ser p o d e r o s o e co m isso v e n c e r a s tle de te r mi n a d o lugar e época, q u e permit e
limitaçõe s tle se r p e q u e n i n o e incapa z para a inclusive q u e brinque m entr e si. A história tle Barrie
vida. e muit o mais. Uma criança potl e ergue r as te m r i q u e z a s p e c u l i a r e s , ela tenta uma precisã
mãos , coloca r uma cap a e rocir po r toda a casa. o tio caráte r dess e lugar mágic o qu e outros
assim c o m o dar tiros co m seu d e d o e fingir qu e é um textos dirigidos á infância deixa m sem esclarecimentos.
cachorro , ma s se tentar atirar-se pela janela, Na maio r part e d o s livros infantis, os mundos
estrangulai' u m amig o o u urinar n u m poste , mágicos existem e pronto , se nã o os
estamo s fora tio rein o segur o tias brincadeiras , o encontramos é porqu e n ã o sabe mo s as palavras
q u e er a lúdic o tornou-s e d e li r a n t e . Um a mágicas ou nã o fomos os escolhido s para penetrá-
pr er ro g ati v a important e do território da fantasia é a los . Outro s preferem nos deixar na dubie dad e de
consciênci a de sua irrealidade . se foi um sonho , como Alice
O funcionament o psíquic o própri o d e 110 País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Há os
q u a n d o b r i n c a m o s é p a r e c i d o c o m o e st a d o casos e m q u e s e cai nele s po r acidente , co m o
e m q u e n o s e n t r e g a m o s a o s s o n h o s d i u r n o s : n o Mundo Mágico de Oz, de qu e no s
a realida d e se oc u pa re m o s no capítulo seguinte. A fantasia expost a
no livro de Barrie é do tipo

236
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o
Co r s o
papéi s um para o outro, n ã o fica claro o que o filho ganh
a e sim o q u e ele perde .
delicada, q u a n d o se torna r necessári o q u e a
criança saiba a r e s p e i t o d e al g o trist e o u
difícil q u e est á afetando a vida familiar ou
pública . Por ex e m pl o , se houver um a guerra , um a
c o m o ç ã o social, a mort e de alguém ciuerido. o
d e s e m p r e g o de algu m do s pais. a criança p o d e e
dev e ser informada do ocorrid o e de que isso
está afetand o sua gente , ma s n ã o s e es p er e dela
q u e seja um apoio , ela tem o direito a ser frágil e
exigir ser a mpara da . Se ante s de um a viage m cie avião,
uma criança p e q u e n a quise r de seu s pais a certeza
cie que ele nã o vai cair, cabe-lhe s dar a ela um a
confiança que eles próprio s n ã o têm . K precis o ser
gr a n d e para haver-se co m a angustia decorrent e cia
consciênci a de que o destin o muitas veze s n ã o
avisa... Claro q u e um dia os pais sae m cie seu lugar de
super-heróis . q u a n d o termina a infância, ma s é
precis o espera r o m o m en t o . Com o idealizamos a
infância c o m o um paraíso e
as crianças c o m o sere s b o n s q u e a vida aind a
n ã o estragou, se') poderíamo s esperar um festival de
bond ad e e criatividade se elas tivessem mais poder. A
experiência clínica só confirma o contrário, e a literatura
nã o tem se revelado mais esperançosa . Vide o livro
O Senhor das Moscas, cie William Colding. qu e conta a
história de um gaipo de jovens náufragos isolados num a
ilha. Km suas tentativas de se organizar, constróem um
inferno, no qual as criança s e n c a r n a m a figura
caricatura l cio pio r despotismo nazifascista. Qu an d o as
crianças licam sem a mediação de um adulto, impera a
lei do mais forte.
Até a c h e g a d a d e Wencly . o s m e n i n o
s s e submetiam ao s capricho s de Peter po r medo
. já q u e ele lhes impunh a castigos físicos e at é â morte ,
q u a n d o o desobedeciam. Além disso, eram ligados e
submisso s a ele por recei o ao s perigo s dess e m u n d o
paradisíaco - hostil. afinal ele era um líder nato .
brav o guerreir o e sem dúvida o mais a d a p t a d o ao
lugar.

0 pai pirata
SjHHSI ai vez Peter Pan sé) vá crescer q u a n d o perde r
um a briga para o Capitão Gancho , mas. com o
"OMÍ vimos, nã o foi dessa vez. Qualque r menin o
passa po r uma fase de briga co m o pai. afinal
é este qu e vem dizer o qu e o filho pod e e o qu e
nã o pode. Ele é a figura da lei e apren de r a
submeter-s e à lei é uma tarefa da s mais árduas . Embora
nã o se cresça sem receber limites, p o d e se dizer
qu e ningué m se entrega de b o m grad o às
exigências civilizatórias. Por isso, nessa époc a
inaugural, q u a n d o pai e filho estã o encenando seu s
239

O pai é visto pel o b e b ê c o m o um


usurpador , ele invad e o navi o o n d e mã e e filho
balança m acalentado s pela s o n d a s da sua mútu a
admiraçã o e rouba todo s os seu s tesouros . Grande ,
forte, b a r b u d o e mal-cheiroso . seqüestra- a para a
s violentas aventura s d o sexo . Q u e p o d e ver ela
ness e h o m e m ásper o e rude , se tem este maci o e
suav e objet o cie desej o a seu dispor? Porem. se
n ã o renunciar á presenç a eterna da máe , uma criança
nã o crescerá, se nã o houve r o vazio
produzid o po r algum a ausênci a materna , nã o há
possibilidade de vir a desejar qual que r coisa qu e
seja. A separaçã o da mã e é libertadora, ma s na
noss a cultura a vemo s c o m o um reinad o perdid o
e é aqui q u e o pirata - ou qualque r outra lac
e imaginária qu e o pai venha a ter - entra. O
pirata é maligno porqu e vem a nos tirar cio seio-
paraíso. A figura do Pirata p o d e muit o b e m
substituir a do pai, poi s t a m b é m se presta â
contusã o entr e impo r a sua lei e n ã o se
submete r a ela. pa re ce n d o q u e está acima dela . qu
e é sua encarnacão .
O pirata é um pai primordial, brutal,
despótico . acima d o b e m e d o mal. Nã o
p o d e m o s esquece r q u e esta história e de orige
m inglesa e um do s herói s nacionai s
britânicos. Sir Erancis Drake. começo u seu s dias
c o m o pirata. A Inglaterra domino u os mare s c o m o
p ou c o s e essa foi a chav e para manute nç ã o
de seu império . Se os capitãe s era m os herói s dess
e territé)rio ime ns o e hostil q u e sã o os mares ,
os piratas, mitica- ment e falando, sã o ainda mais
fantásticos dentr o dess e referencial imaginário. Os
piratas sa o os representante s da aventur a e da
busc a e possessã o de tes o ur o s . E.xistiam
inclusive os piratas co m ca rias de corso, ou
seja. co m autorizaçã o do rei par a pilhar,
um pirata legalizad o d e certa forma. T u d o
isso abr e cami nh o para a idealização dess e
aventureir o individualista e corajoso, q u e corr e o
m u n d o inteiro, c o m o herói típico d o s século s XVII.
XYIII e XIX. ma s q u e impregn a nossa imaginaçã o até
hoje.
Se o mund o mo dern o idealizou o
conquistador, certamente no pirata está sua
figura fmnceps, pois ele chega para se apropriar, sua
forca está acima cia lei. impõe- se c o m o uma lei
maior: ele é um líder incontestável e cruel co m
seus súditos. Se Peter crescer, será um pirata, atinai,
é assim qu e ele conceb e os adultos e. aliás, já é
assim qu e se comporta para com seus companheiros.
O filme Hook. a volta do Capitão (rancho
(1991. dirigido po r Spielberg), mostra co m o seria
Peter Pan se tivesse decidido crescer. I lavia se
tornad o um home m insensível, u m ve r da d ei r o
pirata d o m u n d o da s finanças . Eoi necessária
uma nova temporad a na Terra do Nunca para qu e ele
reencontrasse a dos e de infância perdida qu e
era imprescindível para ser pai.
Fada s n o D i v a — P s i c a n á l i s e n a s Hi st ór i a s Infanti s
par a ser mais exato , p o d e produzi r u m efeito
contrári o d o e s pe ra d o . Dentr o d e um a família, o s
lugares sã o muit o di fe re n te s , é e x t r a o r d i n á r i o
important e e decisiv o para q u e as crianças voltem, é a
q u e na m o d e r n i d a d e
certeza da c o n e x ã o co m o m u n d o real. Peter Pan
fica irritado q u an d o , ao avistar a Terra do Nunca, as
crianças reage m co m familiaridade, mas sab e q u e o
m e d o log o chegará , o q u e o alegra, dev olvendo-lh e a
supremaci a sobr e ess e território escuro . Mais d o
q u e u m convit e lúdico, a Terra do Nunca tem uma
important e dimensã o de pesadel o , e a figura de
Pan faz parte dela. c o m o no País da s Maravilhas a
brincadeira ganh a vida própria e assum e ton s grotescos .
Brincai' de pirata é divertido, mas morre r disso n ã o
estava no s planos . Fxatament e po r isso. o vínculo
co m a família cu m p r e essa função d e r es g a t e .
Pai a a s criança s Darling . é p os sí v e l
desembarc a r na terra da fantasia, mas sem queima r
os navios n o porto .
Ao long o do convívio . Peter e Wend v chega m
a se chamai" de mii/ba ivlbci e meu querido,
ma s a brincadeira chega a tal p o nt o cie
veracidad e q u e ele fica angustiad o e p e d e à
menin a a confirmaçã o de qu e eles sa o pais d e
faz-de-conta mes mo , a o q u e ela r e s p o n d e q u e
sim, s e el e qu is e r assim . Esse é o princípio
d o fim. q u a n d o Peter precisa s e pergunta r se
realment e ainda estã o brincand o , é a hora em q u
e a brincadeira se esgotou . Fstava ficando realista demais
, po r isso. Wend y dec id e retornar , le va n d o
toda s a s criança s co m ela para entregá-la s ao s
cu id a d o s d a verdadeira mãe .
Mais uma vez temo s a person age m de
Wend y c o m o eixo . tant o q u e seu s irmão s até s e
es q ue c e m d e sua mãe , já q u e fazem part e da
brincadeira da irmã no pape l de mamãe . Mas a
menin a tem sempr e present e qu e está imitando, nunc
a sai da dime nsã o faz-de-conta, po r isso. é dela a
decisã o de voltar e levar t o d o s consigo , ele
suspen de r a brincadeira . Se Peter Pan é a encarnaça o
da fantasia e Wendy represent a a criança q u e a
produz , a 'ferra do Nunca é a prova de q u e
sonh os , pesadelo s e fantasias sã o feitos na
mes m a fábrica, estar nu m ou noutr o é mais uma
questã o de posiçã o cio q u e da trama da fantasia
em si.

As crianças no poder
fnws^f^ ara sorte de todos , a democraci a
enquanto
£> \ *• um valor tem pr os p er a d o e difunde-se
pel o
-\ ,..* m u n d o . Seus reflexos està o em tod a a
part e e c h e g a r a m ã família, ma s um a
pretens a
igualdad e dentr o d e casa. n a criação do s filhos,
te nh a m o s de no s lembra r disso, ou seja. do óbvio: as
geraçõe s n ã o està o n o m es m o plano , e o s mais velhos tê m
algu ma s coisa s a ensina r a a q ue l e s q u e estào
c h e g a n d o na vida.
O qu e vemo s hoje na criação do s filhos é qu e ou os
pais toma m as rédea s e governa m (sem despotismo) sua
família, ou be m a tirania da s crianças ganha espaço. A
ausênci a de hierarqui a no lar n ã o r e d u n d a cm
democracia, ne m em anarquia, ela gera um autoritarismo
invertido. Fssa nov ela é exempla r para demonstrar o
qu e pod e ser o domíni o exercido por crianças e o quanto ele
pod e ser mais brutal qu e o do adulto. Verificamos que .
quand o a infância dita as leis, o autoritarismo revela- se cie
uma intolerância sem limites, tal qual Peter Pan. qu e
exerc e seu pode r c o m o um rei absolutista. matando se m d ó
que m queir a c o n t r a r i á- l o . A violênci a é
diretament e proporciona l ã impotênci a e à falta cie
legitimidad e de q u e m está no m a n d o , po r isso.
as crianças termina m s e n d o tão ditatoriais q ua n d o
têm algum poder, co m o co mpe nsaç ã o pela sua
fragilidade e falta cie prepar o para decisões .
Os pais c o nt e m p or ân e o s , salvo exceções , nào se se n t e
m suficientement e calcado s par a su a tarefa
educativ a e tenta m compartilha r sua s decisõe s com os mais
jovens. O resultad o ne m sempr e é o melhor, a idéia
soa bo a em tempo s de igualdad e e questiona• me nt
o da s hierarquias , ma s o q u e vemo s na prática é q u e .
seguida m en t e so b ess e discurso, os mais velhos se
exime m da s sua s responsabilidades , da árdua tarefa d e
educa r o s mais jovens.
Antigamente, a maturidad e supunh a uma aura de
sa be d or i a e era u m a e s p é ci e de font e natural
de autoridade . Nào se trata de sermo s nostálgicos: não há
nada de extraordinário q u e tenhamo s perdid o quanto a
esse supost o saber absolut o atribuído ao s mais velhos,
principalment e no exercício ditatorial do pai-patrào. do
patriarca cujos d e s m a n d o s tanto s destino s destruiu.
Porem, uma vez p o da d o s os excessos, a longo prazo,
há mais benefícios em conta r com pais qu e se resignem a
carregar o fardo de seu cargo, m es m o qu e errem em certos
pontos , do qu e ser criado pelo s qu e se nivelam com os
filhos. Ser pai às vezes é suportar segurar o leme.
mes m o nà o sabe nd o be m para ond e se vai. Furtar- se cie
capitanea r o navio, su c u m bi n d o ao medo do risco e
da incerteza da jornada, nã o só dificulta encontrar o rum o
certo, c o m o deixa as crianças desnecessaria• ment e
inseguras e angustiadas.
Uma coisa é escuta r as crianças, levar em conta
seu s m e d o s e dificuldades, outra é compartilhar com
elas os nosso s m e d o s e dificuldades. Isso só deve ser
feito em circunstâncias muit o especiais, de forma muito
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o Co r s
o
inaugurai s d e diálogo d e u m ser h u m a n o no s
primeiro s três mese s
Talvez um relato paralel o poss a no s ajudar.
Na tradição alemã, existe a história de um rapaz q u e vend
e sua sombra ao diabo , aliás outr o Peter, ma s o n o m e
e o tema da sombr a sã o o únic o pont o de contat o entr
e essas dua s narrativas. F.ssa p eq u e n a novel a
chama-se : A História Maravilhosa de Peter
Scblemibl.'" é de Adelbert von Chamisso e tem uma
estrutura cjue lembra um conto maravilhoso , embor a
seja considerad a um a versão para crianças ela lenda
de Fausto.
Peter Sclilemihl nã o vend e a alma c o m o
Fausto, ele vende a sombra , mas, co m o ficamos
sa be n d o mais tarde, era se') um a armadilh a do
di a b o para d e po i s chantageá-lo e obrigá-lo a trocá-
la po r sua alma. coisa que ele nã o faz, embor a
muit o sofra pela perd a da sombra. Sclilemihl achava
cjue podia viver sem sombr a ou pelo meno s cjue o
saco mágico cjue recebera cio diabo em troca dela, de
o n d e podia tirar tcxlas as moe da s de ouro qu e quisesse,
seria uma boa co mpe nsaç ã o pela sua falta. Triste engano ,
ningué m o aceitava se m sombra, eele passou a levar uma
vida de enjeitado. A lembrança é válida para pensarmo s
a respeito cia sombra perdid a que o noss o Peter vem
busca r no quart o cias crianças. Na história alemã, a
sombr a é retirada co m uma tesoura q u e a corta
rent e ao s pés . No n os s o caso . é Wendy cjue a
costura no s pé s de Peter, pois este se revela
incapaz de fazê-lo. A questã o é o qu e represent a
esse dupl o cjue é nossa sombra?
A sombr a no s a c o m p a n h a , atravé s dela a
luz marca noss a silhuet a , p a r e c e brinca r c o m
n o s s o s contorno s c o m o q u a n d o v a m o s a u m
a cas a d e espelhos m a l uc o s . Não h á crianç a
q u e nã o t en h a tentado pisa r n a su a sombra ,
n e m adult o cjue n ã o tenha tentad o subjugá-la .
fazendo- a da r forma ãs sua s macaquices. f or m a n d o
bicho s e caricatura s co m as mãos par a diverti r
o s p e q u e n o s . Mais o u m e n o s obediente , el a
t e s t e m u n h a c o m s e u s c o n t o r n o s bruxuleantes,
u m a existênci a cjue b u s c a m o s d es es p e • radamente ver
confirmad a atravé s d e to d o s o s e x p e • dientes
possíveis .
Passar de sa p er ce bi d o é um a forma de
inexistên• cia, por isso, repetida ment e consultamo s
o espelho , na vã tentativa de captura r a image m
cjue os olho s dos outros vêem , n o e s pe l h o
procura mo s no s ver d e fora. Fssa o p era ç ã o só
funciona p or q u e , no início, os olhos ávido s d o
b e b ê q u e u m dia fomo s descobrira m no olhar da
m à e e do s adulto s um a fonte privilegiada de diálogo
e respostas .
O psicanalista René e Spitz, em sua descriçã o
do primeiro a n o de vida, ressaltou o q u a n t o o
sorriso voluntário d o b e b ê . um a da s forma s
de vida, se dirige a um pa r de olhos . F a
presenç a de u m rosto d e adulto , d o m i n a d o pelo s
seu s dois grande s olhos , cjue inaugur a essa
conversa, em cjue o b e b ê se p e r c e b e o l h a d o ,
sorri e receb e e m troc a so n or a s
manifestaçõe s d o efeito c a us a d o po r sua pessoa. "
Sou visto, log o existo. Nesse s casos, a sombra
funcionaria c o m o um espelh o cjue pod
e s i m b o l i c a m e n t e testem unh a r cjue existimos
para os outros .
O personage m do cont o alemã o termina po r
viver em isolament o absoluto , discriminad o
pela sua falta cie sombra . Porém , p o de m o s pensa
r o contrário : a falta de sombr a já é resultad o
de seu isolamento , já cjue n e m a luz se
dign a a lhe espelha r seu s contornos . Perdid o
d e sua sombra . Peter Pan certament e precisa d
e um a màe . cjue simbolize esse s dois grande
s olho s capaze s de testem unha r sua existência.1 "
Voltando para buscá-l a n o quart o da s crianças
Darling, ess e lugar o n d e uma mà e conta
histórias e zela pel o son o do s filhos , sai u
d e l á m a i s d o q u e c o m su a s o m b r a
devida me nt e costurad a ao s seu s pés . levou
consig o uma mà e para todo s o s menino s
que . c o m o ele. s e perdera m dess e do m cjue
só ela p o d e ciar: o cie ter uma imagem .
Wend y era uma ma e de faz-de-conta, mas ,
c o m o vimos , isso na o lazia diferença para
Peter Pan...

Notas
1. BARRIF. James Matthew. Peter Pau e
Wendy. São Paulo: Companhia das I.etrinhas,
2002. As citações qu e taremos a seguir de'
alguns trechos cio livro são dest a ediçã o
muit o bem-feita , cuja traduçã o
cuidadosa e de Hildcgard Feist.
2. Fm 2005, estreou um filme enfocando a
relação de J.M. Harrie com os meninos da família
Davics e com a màe deles. Sylvia. O filme
é Pm Busca da Terra do .Xuiica, com
direção de Marc Forster e que foi inspirado
na peça teatral 'lhe Man \\'b<> Was Peter
Pan. escrita por Allen Knee.
3. Acredita-se' que este nom e tenha sido inventado
por Barrie. Kle é originário tia amizade do
escritor com uma criança, chamada Margareth.
cjue tinha a anos quand o eles se conheceram.
Fia costumava chamá- l o de m y friendy.
ma s com o n ã o c o n s e g u i a pronunciar o
r, terminava pronunciand o a palavra de tal
forma cjue soava fwendy ou wendy. Há quem
cont e qu e ela gostava de dizer qu e ele
era seu fwendy-wendy. Margareth morreu com
a idade de 6 anos , mas se eternizo u no
nom e da heroína da história mais
importante da carreira de Barrie.
Fada s n o D i v a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infanti s
ainda por um único privilégio: antes de
esfriar para sempre , queri a ver Peter
com ete r um a falta d e educação .
O pirata clássico s e m pr e tem um olh o de vidro e
um a pern a de pau , alé m cia su a cara de
mau . Ele pago u co m parte s de seu corp o o preç 240
o cia vida q u e leva. po r isso, ele é, de certa forma,
limitado. No noss o caso . ess e g a nch o qu e lhe dá o nom e
é o representant e da castração de noss o amável capitão ,
já q u e ele. c o m o adult o q u e é , tev e d e paga r
algum a coisa. Provavel• mente , na imaginaçã o cie
Peter, ser adult o é perde i algo precios o q u e fica
simbolizad o c o m o uma part e cio corpo , mais um a
razã o para n ã o crescer.
Embora o grande adversário de Ganch o seja
Peter Pan. seu maior med o era o crocodilo qu e já
comera sua mão. Talvez esse també m seja o m e d o de
Peter. afinal o qu e significa esse crocodilo qu e faz
tic-tac permanen • t e m e n t e ? S a b e m o s qu e el e
e n g o l i u u m r e l ó g i o , simbolicamente ele mes m o
p o d e ser u m relógio, o u melhor, o tempo , afinal
é ele que m com e a carne cie todos os qu e ficam
velhos. Xa verdade . Peter Pan ainda nã o o teme. pois
seu voto pela infância o coloca, por enquanto, fora
da jurisdição desse implacável perseguidor. Ou melhor, o
voto pela infância nã o seria també m para manter esse
crocodilo-tempo" afastado? Por isso. para provocar
Gancho , em plen o duel o Pan faz questã o de
afirmar: "Eu sou a juventude , sou a alegria,
sou um passarinho qu e acabou de sair do ovo".
Com certeza, que m sempr e sai derrotad o diante a Peter
Pan é o tempo .
'"Havia em Peter alguma coisa qu e
enlouquec i a o co m a n d an t e tios piratas: era a
arrogância". G a n c h o nutria uma secreta admiraçã o
pel o seu jovem inimigo,
"aquel e fedelh o orgulhos o e atrevido" ,
p a r e c i a congrega r e m s i p od er e s equivalente s ao s
dele , se m jamais ter pag a d o o preç o q u e custo u
ao pirata. De fato, se t o d o o pirata carrega em seu
co r p o as marca s da s batalhas qu e travou, termin a
pr o va n d o q u e ne m ele está acima da lei. afinal,
p o d e até d e s o b e d e c e r continuament e , mas lhe
custará algo: o s p e da ç o s d e seu corp o qu e entreg a
c o m o castigo po r seu s peca dos . Além disso, o pirata
de Barrie tem seu s refinamentos :

Ele havia estudado num famoso colégio interno,


cujas tradições ainda levava consigo, como se
fossem trajes, acima de tudo continuava apaixonado pela
boa educação.

O duel o final, em q u e Peter finalmente


venc e Gancho , parec e uma legítima luta de
cavalheiros , poi s nela mais vale a honr a do q u e a
espada :

(Gancho) Já nã o tinha vontade de viver, mas ansiava


Peter, n u m gest o magnífico, convido u o adversá• rio
a pega r a espad a caída. G a n c h o aceitou o convite
imediatamente , e m b o r a tivesse a trágica impressã o de q u
e s e u i n i m i g o e s t a v a d a n d o m o s t r a s d e boa
educaç ão . Até ess e m o m e n t o , ele pensav a qu e
tinha d e f r o n t a d o - s e co m um demônio , poré m
agor a o assaltaram suspeita s mais sombrias .
Q u a n d o estava n o parapeito , o lh a n d o po r cima
do o m b r o de Peter q u e pairava no ar, ele o
convidou co m um gest o a lhe da r um po nt a p é .
Assim Peter o chuto u e m vez d e esfaqueá-lo .
Finalment e Gancho recebe u o privilégio q u e tant o
desejava . "Mal-edu• cado1 ", gritou zombeteir o e tod o
content e se entregou a o crocodilo . Assim morre u Jaim e
Gan cho .
Parad oxal ment e , o pirata morr e co m a
vitória moral , mostrando-s e mais homem q u e o
rapaz, no sentido de ser capa z de um sucess o socialmente
regrado e reconhecido , so b a forma da boa educação,
por isso. morr e heroicamente . Peter nã o cresce, porqu e
prefere a escaramuç a às regras, para tant o se
manté m num universo paralelo, a Terra cio Nunca, o n d
e send o tudo faz-de-conta, nada é para valer.
Gancho , o maior cie todo s os piratas, é um nobre
adversário. Sua obsessã o para derrotar Pan é um duelo d
e p o de r . G a n h a r seria da r limites a o ditatorial
e endiabraclo menino . Peter pod e brincar à vontade, mas
os piratas, assim com o os Peles-Vermelha, travam lutas
sangrentas para impor regras e mostrar qu e a vida pode ser
perigosa e curta para que m nã o reconhece seus limites. No fim
da s contas , é um pirata q u e Pan se torna,
a s s u m i n d o o c o m a n d o cio navi o herd a o lugar
de G a n c h o , d e m o n s t r a n d o q u e . de algum a forma,
ele se mpr e foi seu pai. E claro q u e co m Peter Pan nada é
par a valer, tod a a a ve nt u r a é t ã o intens a
quanto
passageira, e ele n ã o guard a memóri a de nada. Muitos •; ano
s depois , q u a n d o aparec e para visitar Wently que ] já
se encontr a co m sua filha J a n e em idade de viver í
aventura s na 'ferra do Nunca, o m e n i n o nã o se lembra j
seque r q u e m era G a n ch o . Sem dúvida , a memória,
essa particula r forma cie registr o da passagem do
tempo , é privilégio do s q u e crescem .
j

A Sombra
]
SySflpf á um ele m e n t o interessant e no começo da -j
''•MJ%% história, c l u c resta enigmático : como e por
j íllaSBtf ^ u e P e t e r ' ) a n P e r ( J e u s u a sombra? É n
o 1 encalç o del a q u e ele volta e é surpreendido 1
po r Wendy , q u e o ajuda a pregá-la outra vez em seu 1
corpo , costurando- a no s p é s d e Peter.
1
Capítulo XVII
O PAI ILUSIONISTA

0
Vida. São Paulo: 'N, .

O Mágico de
Oz
O novo conto de fadas - Yicissiludes da função paterna a partir da modernidade
- O pai idealizado da primeira inlância - Reconhecimento da fragilidade do
pai -
A construção da autonomia - Busca tia autorização dos pais para crescer

Mágico c/c Oz foi um


d o s conto s d e fadas
mo derno s d e maior sucess o
d e públic o d o século XX,
ciadas as dimensõe s d o mu n do
, comparáve l ã che • gada
de Hany Pottci; quas e um
século depois . Considerand o os
contos de fadas com o variações
sobr e estruturas básicas,
ess e
clássico norte-americano poderi a ser um bo m exempl
o a sobrevivência do gêner o do s conto s
maravilhosos, i que muitos elemento s do s
r e l at o s folclóric o s
'tradicionais p o d e m se r e n c o n t r a d o s nele . H á um a
\ heroína criança realizando um a jornada de cresciment o
l que inclui perigos, do s quais ela se safa graças ao auxílio
ide expedientes e seres mágicos, co m q u e m faz aliança
|«m conseqüência de sua bo a índole. Há ainda quatr o
Ibruxas (duas boas, dua s más), objetos mágicos, outras
|dimensões das quais se entra e se sai, animais falantes,
Fada s n o D i v a - P s i c a n á l i s e n a s História s Infa nt i s

•4. Por exemplo, o livro The Peter Pan Syndrome: 8. ENDE. Michael. A História sem Fim. São
Men Who 1 lave Never Grown Up, cie Dan Kiley. Paulo: Martins Fontes/ Editorial Presença, 1985.
publicado em 1983. Publicada originalmente em f9 7 9 , a história
T. A cultura busca palavras para descrever o foi filmada em
fenômeno da dificuldade cie crescer contemporânea. Por 1984, com título homônimo .
exemplo, temos os Á7'íY////.v(cTiancadulto), adultos que 9. A personificação do temp o é atribuída a Cronos, a
consomem produtos culturais infantis: os .Xesters. filhos orige m dess a conexã o de v e- s e
que não saem cia casa dos pais (do ninho, literalmente); originalmente apena s a um jogo de palavras
ou os hoomerang kids (porque vão e voltam). homofônicas cm greg o entre a palavra
Existem, c cada vez mais, adultos qu e nã o se "tempo" e o deu s da raça do s titãs, mas
resignaram à necessária independência que a acabo u p er m a ne c en d o , na nossa tradição
passagem do tempo impõe. Na falta de uma cultural, uma associação entre o tempo e um
elaboração mais precisa, tomamos emprestado da deu s devorador.
literatura nomes que nos ajudem, por isso. Peter 10. CHAMISSO, Adelbert Yon. A História
Pan é tão usado para falar das dificuldades de Maravilhosa de Peter Schlemihl. São Paulo:
amadurecimento. Estação Liberdade,
(). AKIFS. Philippe. /listaria Social da Criança 2003
e da 11. SPITZ, René. O Primeiro Ano de Vida. São
Família. Rio cie Janeiro: /alia r Kditores. 1981. Paulo: Martins Fontes. 1983. p. 91.
-
. Mary Pop]>ins e uma novela de Pamela L. 12. A respeito desse assunto, é possível
Travers publicada em 193-t. Em 196-4. saiu o filme aprofundar-se no texto: O papel de espelho da meie e
feito pelos Estúdios Disney. da família no desenvolvimento da criança, no
livro Realidade e Jogo. de D.W. Winnícott.
242
Fada s n o D i v a - P s i c a n á l i s e n a s História s Infa nt i s

O Mágico de Oz1 é um pont o de Essa segund a parceria teve seu ápic e na produção
partida , o primeir o volum e dess a história, q u e s e do próxim o livro: O Mágico de Oz, o qual
celebrizo u e m dua s linguagens : em livros, durant e 40 continha nada meno s do qu e 150 ilustrações, cujas
anos , e depoi s no cinema . Hoje em dia essa imagens foram seguida s posteriorment e no cinema.
história é muit o mais popula r e m forma d e Convenhamo s que esse é um nú mer o generos o até para
filme. Porém , tant o n a versã o cinematográfica, nosso s tempo s de inflação imagética. Portanto, desd e
q ua n t o c o m o livro, p o uc o s c o n h e c e m mais d e u m seu nascimento, 0
volum e d a série. Será a o episódi o mais divulgado Mágico d e O z est á marcad o po r um
, o primeir o e inaugural, q u e no s ateremo s n a c a s a m e n t o inseparável co m a imagem, prenunci o
análise q u e s e segue . da consagração cie sua versã o cinematográfica, já
Essa obr a deve-s e a um h o m e m se m qu e hoje pouco s o conh ece m através da fonte
tradiçã o literária. I.vman Frank Baum, nascid o em escrita. Dizem inclusive os comentaristas qu e Frank
1856. q u e cresce u cercad o d e mimo s n o sei o Baum. o autor, nã o era muito bem-visto pela crítica,
d e um a família abastada , enriquecid a pela a mesm a qu e derramava laudas de elogios ao
exploraçã o d e petróleo . Porém, essa riqueza ilustrador \X'.\X. Denslow."
familiar nã o duro u muito. I.vman pa s s o u a vida O Mágico de Oz te v e um a primeir a
adult a l u t a n d o p o r e st a b e l e c e r u m negócio, sem versão cinematográfica de p ou c o s recursos, feita
grande s sucessos e com várias bancarrotas, até encontra r pel o próprio a u t o r , ma s s e consagr o u e m
aquela qu e seria sua identidad e definitiva: autor cie 1939 . quand o foi transformado num a grand e
literatura infantil. produçã o em filme da Metro GolcKvyn Mayer, dirigido po r
Durant e 20 anos . Baum escreve u 15 volume s Victor Fleming: um musical estrelad o po r uma jovem
da série. Até o fim da vida, em 1919, ele o cu p o u o chamad a Jud y Garland no pape l de Dorothy. O
carg o de Historiador Real de Oz. deno min açã o sucess o alcançad o no s indica que essa história
assumida para demarca r qu e o m u n d o mágic o organiza os elemento s da tradição num arranj o
havia transcendid o seu controle , tornando-s e ele c o n v e n i e n t e â so c i e d a d e d o t e m p o que a
própri o u m p er so n a ge m de sua criação. Após a sua c o n s a g r o u , o u seja , c o m b i n a a s v e l h a s e
morte, a incumbênci a de seguir adiant e ficou ao s boas personagen s do cont o de fadas nu m
cuidado s de outra escritora: Ruth Plumly T h o m ps o n , argumento que respond e ao s anseios cia infância
q u e produzi u u m volum e po r ano , até 1939. do século XX. Sua difusão també m reforça o debat e
A saúd e frágil de Baum. contra a qual lutou sobr e uma nova forma de transmissão, em qu e o
tod a a vida, obrigou- o a uma infância mais cinema aparec e posicionado e n qu a nt o narrado r
introspectiva. próxima do s livros, do s conto s de privilegiado, cumprind o o papel de preservar uma
fadas e marcad a pel a imagi naçã o . Porem , el e trama, tal qual os narradore s orais faziam co m os conto s
acreditav a qu e devi a oferece r à s criança s da tradição. O Mágico de Oz já fora um sucess o
história s mai s p a r e ci d a s c o m sonho s d o qu e co editorial, mas foi esse musical em tecnicolor qu e
m pesadelo s qu e lhe inspiravam o s conto s cie fadas lhe garantiu a perenidade .
tradicionais. Antes do primeir o volum e de Oz. Baum
escreve u uma peç a teatral de sucesso , ma s foi
mesm o com o contado r d e história s par a A viagem à Oz
criança s qu e el e s e consagrou . Seu s
fil h o s o inaugurara m nessa atividade, ma s n ã o pira|ã filme n ã o se res um e a reproduzi r a história,
som ent e eles. t a m b é m a s criança s d e su a '^'ípjKr ele dá um a volta a mais no texto,
cidad e o solicitava m constantemente , que r na transfbr- Í ^ Í - Í Í m a n d o a aç ã o toda . ocorrid
sua loja ou m e s m o na rua. q u a n d o o parava m a n o mundo
par a q u e lhe s e m pr e sta s s e u m p ou c o de sua
" mágic o de Oz . n u m s o n h o da
fantasia, sentado s no mei o fio da calçada. Seu primeir o
protagonista Dorothy . Apesa r de seu s recurso s
livro de sucess o na área conto u co m a parceri a
cinematográficos, hoje considerad o s rudimentares ,
d o tradicion a l ilustrado r n o r t e - a m e r i c a n o Maxfield
o filme baseado no cont o de fadas de Bau m
Parrish e nela aparec e uma menin a cham ad a
Dorothy . Mas foi junt o de outr o ilustrador, continu a circulando, sendo en c on tr a d o e assistido
William Denslow , q u e Baum publicou , em 1899, repetida s veze s po r crianças qu e lhe confirmam
um livro cie conto s infantis chamad o Father o acert o do arranjo.
Goose, His Book (na esteira de se u título A história te m um es q u e m a na verdad e
anterior: Motber Goose in prose, de 1897), q u e se pouco com plexo , o q u e facilita sua assimilação. Sob
torno u o mais ven did o na área . esse eixo simples, é m ontad a um a constelaçã o de
personagens b e m consistente s co m um a fineza Kansas co m seus tios
psicológica ímpar. Doroth y vive n u m a fazend a do

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Di a n a Li c ht e n st ei n Co r s o e Mári o Co r s o

Henry e Emma, n u m local descrito c o m o árido,


se m vegetação, se m cores , d e terra gretada , o n d
e até a s pessoas perdia m o rubo r e o brilho .
O p o u c o q u e ficava d e p é n a cinzenta paisage m era
a m e a ç a d o pelo s constantes tornados , c o m o o q u e s e
abate u sobr e eles no início da narrativa. A menin a
se atrasa par a entra r no abrigo subterrâneo , junto co m
sua tia, po r ter corrido para resgata r Totó . se u
c a c h o r r i n h o d e estimaçã o . Quando vai se protege
r já é tard e e voa pelo s ares, com casa e tudo .
N o filme, ante s d o torna do . Doroth y te m u m
dia difícil, p o i s e n q u a n t o clava u m p a s s e i o ,
o se u cachorrinh o Tot ó acab a m o r d e n d o a
m ul h e r mai s antipática d a cidade , tã o
p o d e r o s a q u a n t o mal - humorada. A tal senhor a vai
à casa cios tios para pedi r a puniçã o do cachorrinh o
e vera municia co m uma autorização d o d el e ga d o
d a cidad e para levá-lo c o m ela. Seus tios, emb or
a n ã o goste m da idéia de ver a sobrinha perde r
Totó, n ã o c o ns e gu e m força par a se opor e n ã o
encontra m outra saída se n ã o a resignaçã o pela
perda . Felizment e , o a ni m al zi n h o se livra da
mulher malvad a e volta para sua dona . Para
manter - se junto dele , Doroth y resolve fugir.
Simplesment e sai de casa, num a fuga se m maio r
planejamento , ma s n ã o vai muito longe . Nu m
lugar próxim o da fazenda de seus tios encontra-s e
co m u m mágic o d e araque . u m charlatão simpátic o
q u e a trata de um m o d o be m pater• na! e a aconselha ,
indiretamente , a voltar par a casa. Nesse m o m e n t o ,
intervé m o inesperad o : q u a n d o entra em casa, um
tor n a d o cheg a tã o rápid o q u e ela n ã o consegue
entra r no abrigo , e a casa. a menin a e o
cachorrinho sã o levado s pelo s ventos .
O filme dá a e nt e n de r (posteriorment e ) q u e
ela desmaia e começ a um sonho , em qu e o m u n d o mágic
o de Oz vai ser c o m o o País da s Maravilhas de
Alice, uni território onírico, ('orn o recurs o
cinematográfic o para marcar os contraste s entr e o
m u n d o real e cinza eo deslumbrant e e colorid o m u n d
o de Oz . a primeira e a última part e ( q u a n d o ela
retorn a ao Kansas ) foram feitas em pret o e branco ,
e n q u a n t o a aventur a mesm a teve o colorid o b e m
marcado .
Já no livro, Dorothy realment e voa para o m u n d o
mágico de Oz . Da versã o impress a para a
filmada, encontramos um refinament o no roteiro.
O livro só realça a falta de brilho do m u n d o de o n d e
ela provém , enquanto o filme lança um a série de
personagen s q u e fazem parte da vida real de Doroth
y no Kansas. co m o os três empr ega do s da fazenda e
o mágic o falsário, os quais vão empresta r suas imagen s
e palavras ás figuras centrais d o s o n h o q u e s e
segue . O filme te m um a concepção b e m
freudiana do trabalh o onírico, já q u e
d e certos don s qu e acreditam q u e o Mágico poss a
lhes atribuir. São um Espantalho,

nel e o s restos diurno s vã o s e organizar nu


m s on h o para revelar o qu e se pensa e o qu e 245
se deseja.
Depoi s de ser carregada pelo s ares, sua
aterrisa- gem , co m casa e tudo , vai ser na terra
do s Munchkins. Ess e é u m do s tanto s
p o v o s cio local , c a d a u m identificado po r
um a cor. O q u e ela n ã o sab e é q u e a casa
caiu em cima de uma bruxa malvada, esmagando
- a. Os habitantes, po r sua vez, ficaram tã o
gratos po r tere m sido libertados do jugo
maligno daquel a bruxa q u e Doroth y nã o
consegui u convenc e r ningué m d e qu e nã o
fora um ato intencional seu qu e a matara, e,
po r ess e feito, ganh a fama cie muito
poderosa . Fica sabend o també m q u e existem
mais bruxas, uma para cada pont o cardeal, dua s
boas . dua s más. A morta foi a Bruxa Malvada do
Leste, mas sua irmã. a Bruxa Malvada do Oeste ,
segu e viva e agora está cie olh o na menina
para vingar-se. Por sorte Dorothy també m
encontr a a Bruxa Boa do Norte, qu e havia
sido chamad a pelos Munchkin s para
recepciona r a poderos a forasteira, e esta lhe
oferece alguma proteção: no filme tal proteçã o é
um pouc o abstrata, a Bruxa Boa a acompanha ,
com o uma espéci e de anjo cia guarda, e
intervém em casos extremo s de perigo ou
enrascada: no livro, ela dá um beijo na testa
de Dorothy. t o m o uma marca de afeto visível
q u e a torna sua protegida, infundindo respeito e
temo r e m q u e m queira maltratá-la.
A lont e de p o d e r da bruxa morta,
um par de sapatinh o s d e rubi ( n o livro sapatinho s
d e prata), acaba ficando co m Dorothy .
presentead o pela Bruxa Boa, ma s ela nã o sab e
c o m o usá-los, apena s o s coloca no s pé s po r
achá-lo s bonito s e resistentes. De qualque r
m o d o . m e s m o co m a boa recepçã o do s
Munchkins e o apoi o da bruxa boa , a heroín a está
tã o sozinha c o m o se sentia no Kansas. F. é
curioso, pois, embor a essa terra seja um
lugar tã o fantástico c o m o ela sonho u q u e
poderi a existir apena s no fim do arco-íris,1 Dorothy
n ã o c o ns e g u e pensa r e m outra coisa a nã o ser
n o seu desej o de retorna r para a cinzenta e
triste fazenda de o n d e veio: entretanto , n ã o
sab e c o m o voltar.
O s Munchkin s estã o muit o agradecidos ,
ma s sã o incapaze s de ajudá-la. o m e s m o ocorr
e co m a Bruxa Boa do Norte, q u e n ã o sab e
o n d e fica o Kansas, po r isso lhe sugere m
procura r o Mágico de Oz, na Cidade Esmeralda, o
qua l seria muit o p od er o s o e entã o poderia enviá-la
d e volta par a casa. Co m o parec e q u e todo s
os camin ho s leva m a essa cidade , bastaria
seguir um a estrada de tijolos amarelo s para
chega r até lã.
Na p er e g r i n a ç ã o at é a Cidad e
Esmeralda , ela encontr a três amigos, e eles
resolvem acompanhá-la , pois sã o todo s carente s
Fada s n o D i v a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infanti s

qu e gostaria de ter cérebro ; um Ho me m de Lata. o Mágic o parti u pa r a s e m p r e , d e i x a n d o o


qu e queria um coracáo ; e um Leão que , sábio
contrariand o a natureza, nã o teria coragem . Fnquant Espantalh o n o c o m a n d o d a Cidad e Esmeralda.
o o qu e os reún e é um pedid o ao Mágico para Condenad a a ficar, Dorothy ainda p ô d e
estarem á altura cie suas expectativas. Dorothy que r ver seu amig o Ho me m de Lata assumir o govern o do
apena s voltar para casa. Pelo jeito, a condiçã o para pov o dos Winkies. e o Leão Covarde tornar-se rei do s
lazer p a n e do grup o é saber o qu e mais se deseja, animais de uma floresta, finalmente , a outra Bruxa
basead o na falta mais premente . Boa lhe revela qu e o pod e r de voltar está no s
Curiosamente , log o pe r ce b e m o s q u e nas sapato s de prata (ou rubi) qu e estava calcand o
várias dificuldade s dess a jornada , o n d e enfrenta m desd e o começo , bastando bater os calcanhare s e
t o d o o tipo ck' perigo s e revezes , cada um vai dizer para a on d e que r ir. Dorothy despediu-s e chorand
mostrand o q u e sua melho r qualidad e é exatament e a o e . q u a n d o chego u a o Kansas. encontr o u uma
virtude q u e que r pedi r ao mágico . O grup o e salvo pelo casa nova. ma s seu m u n d o original permaneci a
s plano s geniais d o supostament e descerebrad o idêntico a si mesmo . A única mudanç a era em seu
espantalho , pel a dedicaçã o amoros a do Home m cie interior, nã o era mais a menina qu e partira.
Lata se m coraçã o e pela corage m do Leão Covarde .
A última a dispo r de se u d o m e p r e c i s a m e n t e
D o r o t h v . q u e s o m e n t e descobr e no fim cia história O grande e poderoso papai
q u e a magia po r q u e passo u tod o o temp o buscand o
estev e se mpr e co m ela. i Í7.4» t araclo.xalmente. essa falta d e magia d o mago
O s quatr o amigo s sa o muit o b e m tratado s ,' • r\ é o m o m e n t o mais mágico , o p o n t o de
n a Cidade Esmeralda, mas mal recebido s pel o virada I- da trama. Os conto s de fadas
Mágico de Oz. Kle quas e nã o os ouvi' , está mais sã o pródigos em representa r o qu a nt o o pai
p r e o c u p a d o em amedrontá-lo s e condicion a sua p o d e pouco
ajuda a uma missã o quas e impossível: derrota r a diant e do p o d e r da mãe . mas O. Mág ico de Oz empresta
outra Bruxa Malvada (d o Oeste ) q u e segu e viva. d e n s i d a d e psicológic a a ess e aspecto . K o
O g r u p o sab e d a dificuldade, mas se lança assim assunto principal da viage m de Doroth y é
m e s m o para enfrentar a bruxa , afinal acreditava m espera r soluções proveniente s d o mágico , ma s
q u e seria o mei o de obte r o q u e queriam . descobri r q u e ela mesma terá de derrota r a brux a
Knfrentam u m percurs o chei o d e perigos , a o n d e e encontra r o caminh o de volta. No princípi o ela
mais uma vez cada um do s amigo s vai prova nd o se u nã o que r nad a para si, somente voltai para casa,
valor : sa o q u a s e d e s t r u í d o s pel a b r ux a , m a s
t a m p o u c o sab e do p od e r qu e tem e o atribui ao s
Dorothv descobr e casualment e seu pont o fraco, a água, e
outros . No final, acabar á m at an d o a bruxa co m as
a mata.
própria s mãos , tã o diferente da forma inocente co m
J á q u e triunfaram, voltam a o m a g o para a qual liquidou a primeira, e voltará através cia
reclamar a ajuda qu e fora condiciona d a ao extermíni o forca de seu propósito , sem carona s mágicas ou
da bruxa . Este os receb e mal outra vez e tenta reais. Na medid a em qu e a criança encontr a dentro
livrar-se dele s - mas já sab emo s qu e ess e gr u p o na o de
desiste facilmente. Para seu grand e espanto , acaba m
si forca s par a enfrenta r s e u s desafios , ela
de sc o br in d o q u e o mágic o e uma farsa e sua
parece descobri r q u e o p o de r do pai é um a farsa. A
pretens a magia é a pe n a s ilusionismo. O Cirande e
passagem da crença de q u e o pai é onipote nt e para a
Poderos o Mágico de Oz é na verdade , c o m o veio
descoberta de q u e ele é h u m a n o , portant o frágil
a dize r Dorothv . um grande e terrível imposto);
q u e tem uma fachada de po d e r real. ma s ele e falível. passa po r uma temp orad a de queixa s e
m e s m o n ã o te m p o d e r mágic o n e n h u m . indignação , seja ela consci ent e ou inconscient e .
Km Dorothy , a queixa ap arec e so b a forma do
Desmascarado , o Mágico de Oz conta sua história.
vot o de voltar. Fia vive sua aventur a repetindo ,
Relata c o m o foi para r lá po r acas o e desperto u
d e tant o e m tanto , q u e gostaria de ir para casa.
a fé ingênu a daquel e p o v o co m seu s truques . Desd e
então , descobri u q u e poderi a fazê-los felizes portant o reclama nd o de estar ali. Quer retorna r ao
g ov er n an d o - o s e tornou-s e prisioneir o de sua estad o inicial, no qual n ã o havia tantos desafios.
mentira . Aproveitand o a vontad e de partir de A figura da heroín a q u e liquidou a Bruxa
Dorothv , p ro p õe - s e a ir co m ela. n o mes m o balã o Malvada co m sua casa voador a é um espelh o no
e m q u e chegou . Mas n a hora d e subir no balão , Totó) qtial ela n ã o se r e c o n h e c e , no m á x i m o admit e
pulo u de seu col o e saiu c o rre n d o atrás d e u m gato . ser uma menin a responsáve l po r um cachorrin h o
Para capturá-lo , sua don a deixo u d e embarcar , travesso. Já a i ndi g na ç ã o a s s u m e um a form a
p e r d e n d o a viagem . D e q ual q u e r maneira . cie acusação . Denuncia-s e a farsa do Mágico, se m
percebe r que ele n ã o fizera mais do q u e fingir ser
tu d o aquil o que se e s p e r a v a dele . Foi a pedid o do povo da Cidade

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Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o Co rs o
Covard e n ã o r ec e be r a m n e n h u m dom, seguira m
s e n d o o s m e s m o s d e q u a n d o ela o s

KEsmeralda qu e ele b a n c o u o go v er n an t e
milagroso ,
!' assim como parece u ter o p o d e r q u e o grup o esperav a t
dele. Como vemos , os h u m a n o s p ar ec e m entra r
na l autonomia inicialment e caminhand o de
costas:
• avançam, mas só tê m olho s par a o q u e estã o pe rd e nd o .
Mais dia, meno s dia, toda a criança terá de se dar conta
de que seu pai n ã o é todo-poderoso . aliás n ã o é nada
poderoso, existem forças maiores qu e o pai. No
filme, elas são representada s pela a lei do xerife e pela
mulher influente - p or q u e era rica -, portador
a do mandato qu e orden a entregar-lhe o cachorro .
Doroth y sai de casa q u an d o seu tio se revela nul o para
protege r a ela e seu cãozinh o e retorna q u a n d o
reconhec e e assimila de alguma forma essa
fraqueza. No livro, o desamparo de Dor oth y é
mai s v ag o . ressalta-s e a melancolia do ambient e
e a falta de cuidad o do s tios para com ela:
q u a n d o c o m eç a o t o r n a d o , o tio se preocupa
c o m o s a n i m a i s , e n q u a n t o tia Kmm a
providencia a própria segurança . Esse descas o co
m a vida da sobrinha contrasta co m a dedicaçã o dela a
Totó.
por cuja salvação é capa z de arriscar a vida.
A novidad e dessa história, relativa á posiçã o
do pai nas narrativa s tradicionai s , é a
m o d u l a ç ã o , a explicação ciada ã sua fraqueza .
Em geral, o pai é fraco e omisso diant e do s
p od er e s da bruxa e ponto . Aqui ele pod e enfim
retrucar, falar da tarefa impossível que lhe é imposta e
q u e h u m a n o algu m está á altura da onipotência qu
e se esper a da posiçã o paterna . O pai dessa
história p o d e explica r os cami nho s pelo s quais
algué m aceita tal funçã o e su a c o n d i ç ã o de
impostura. A paternidad e é imposta e impostor a
ao mesmo te mpo . O difícil para o filho
c o m p r e e n d e r é que, dessa consciênci a da fragilidade
paterna , nasc e a condição para encontra r em si
própri o os recurso s necessários para viver.
O Mágico cie Oz n ã o tem podere s sobr e as bruxas,
ele sab e q u e n ã o p o d e v e n c ê - l a s p o r q u e
é u m impostor. O interessant e é q u e . d e s d e essa
posiçã o de mentiroso, ele vai concentra r o maio r
p od e r daquel e mundo. Nos conto s de fadas
provenient e s da tradição, a impotênci a d o pa i
serv e c o m o c o n t r a p o n t o a o s perigosos po d er e s
cia mã e (o u substituta), e n q u a n t o na história cie
Baum, apesa r da sua condiçã o de falsário. a figura patern
a segu e organiza n d o a cena . Além de perceber
c o m q u a n t o s t r u q u e s s e faz o p o d e r d o
Mágico, a jornad a de Doroth y assiste à
transformaçã o d e seu s a m i g o s , cie fraco s e
q u e i x o s o s d e s u a s carências, em indivíduo s apto s
a se supera r q u a n d o a situação o exigia. No final,
o Espantalho , o H o m e m de Lata e o Leão
encontrou , ma s estava m p re pa ra d o s a colocar-se
num a posiçã o paterna , própri a de q u e m zela e
decid e pelo s outros . Eoi isso q u e a pr e nd er a m
cuidand o d a menin a e un s do s outros .
Enq uant o Doroth y e seu s amigo s vã o
busca nd o as soluçõe s milagrosas do Mágico e
se desiludindo , d e sc o br e m dentr o d e s i o q u
e esperava m q u e este lhe s desse , assim c o m
o q u e d e se u maio r defeit o pr o v é m a sua
gr a n d e capacidad e . Se o Mágico fingisse lhes
atribuir os d o n s em vez de obrigá-los a
enfrentar a bruxa, eles jamais saberia m q u e o desej
o é anim ad o pela busc a do q u e no s falta e o qu e
no s mo v e na vida é o desejo . Ao desmascara r
os truque s do Mágico, eles n a verdad e
desco bre m qu e do s defeitos p o d e m nasce r a s
melhore s qualidade s .
Por isso. Doroth y precisa caminha r tant o
até ter condiçã o de utilizar a magia q u e estava a
seu s pés . só poder á ser poderos a c o m o a s
senhora s bruxa s boa s q u a n d o tive r
a m a d u r e c i d o o s ufi ci e n t e p a r a s e identificar
co m elas. Ou seja. os instrumento s mágicos e m
s i n ã o serv e m , s e a p e r s o n a g e m n a o
estive r preparad a para usá-los. E nesse s detalhes qu e
O Músico de Oz de mon str a o q u e separ a um
cont o de tadas m o d e r n o cio tradicional. Embora
encontremo s bruxa s e outra s magias, nessa versã o
atual do maravilhoso, o eix o passa pela
construçã o subjetiva da personagem . feita a
partir da experiênci a de vida. sem auxílio da
magia. De certa forma, essa história conté m uma
crítica a si mesma : estamo s no território da
magia, mas ela n ã o tem soluçõe s diretas para
resolver o problem a da heroína . H á u m
desenc ant o co m a magia dentr o d o seu própri
o terreno .
O Grand e e Poderos o Mágico de Oz é conscient
e cie n ã o estar à altura de seu pode r e recorre a
truque s d e ilusionismo para mantê-lo ; n o entanto
, o n d e s e v ê impostur a dev e se ver a humildad e e
a sabedori a dess e perso nage m . Se Dorothy , ao ver
sua casa despenc a d a sobr e a bruxa , tivesse
assumid o a função de poderos a feiticeira qu e o pov
o Munchki n lhe atribuía, ela estaria fazend o c o m o
ele, aceitand o o carg o qu e estava sendo - lhe
imposto , a coro a q u e colocara m n a cabeç a
d o mágic o e a árdu a tarefa de reinar. A menin a se
escap a dess e desígnio , ma s nã o o homem , que , a o
assumi-lo, s e en c arr e g a cie cui d a r d a q u e l e
povo . Co m esta s palavras ele narra sua
chegada :

Achei-me no meio de um povo que, vendo-me


descer das nuvens nu m balão, pensou qu e eu
era mágico. Claro qu e deixei qu e pensassem
assim, porqu e eles tinham med o de mim e me
prometeram fazer tudo o qu e eu quisesse. Só para
me divertir e manter a boa
Fada s n o Div a - P s i c a n á l i s e n a s História s Infa nti s
e carrega r

gente ocupada, ordenei qu e construíssem esta cidade e


meu palácio. Kntào pensei que, como a região era
tão verde e bela, eu a chamaria de Cidade Esmeralda. E.
para fazer com qu e o nom e se adequasse melhor, pu s
óculos em toda a gent e de forma qu e tud
o parecesse' verde. Logo qu e o palácio foi
construído, isolei-me e não me deixei mais ver por
ninguém.

Acuado pel o pes o do papel qu e lhe foi incumbid o


ocupar, o Mágico padec e da consciência de qu e e
uma farsa, mas paga o preço . Exatamente essa e a
tarefa de um pai: é um home m que . por ocasião
cio nascimento de um filho, aceita cumprir um papel qu e
sab e ser acima de suas forcas. O filho espera del e
nada meno s do qu e proteçã o absoluta, sabedoria
irrestrita e herança infinita. O ho me m nã o tem nada
disso, mas cria o lilho co m o se tivesse. Quando , por
exemplo , antes de adormecer, o filho lhe pergunta se
ele garante qu e nada vai acontecer. qu e ninguém vai
morrer, o pai lhe respond e qu e sim. O p e q ue n o dorm
e tranqüilo , ma s o pai fica a c or da d o espreitando
a escuridão, sabend o q u e do s desígnios da morte e do
acaso e muito difícil se safar.
Nosso te m p o e mais conscient e de qu e ser pai
é da r o q u e nã o se tem e explica r o q u e nã o se sabe .
ou seja. e ca r r e g a r u m fard o bastant e
pesado . Essa condiçã o d e narrar a s dificuldades d e
o c u p a r a posiçã o patern a é outra qualidad e cio cont o
de fadas de Baum . Ainda na s (sábias ) palavra s d o
Mágico d e ()z :

Com o poss o deixar de ser um impostor. se


tod o mund o fica me pedind o que faca coisas
qu e Iodos sabem ser impossíveis?

Existe ainda outra passage m interessante , q u a n d o


Dorothv desco br e a farsa e o reprova :

Acho que você e um homem muito mau!

A o qu e ele responde :

Oh, nã o minha cara. \' a verdade sou um


home m muito bom: mas tenh o qu e admitir qu e sou
um mau mágico.

A força das bruxas


JjJPSfSl e encarna r o pape l de governa nt e e
mágic o
*'"\.s*^|if' p od e r o s o já é difícil, o trabalh o se complic a
'4S'^M na companhia da mulher. El a
sim é possuidor a d o p o d e r fantástico d
um a criança em seu ventre , de produzi r em setis seios o
fluido q u e manté m seu filho vivo, de marcar seu
p e q u e n o c or p o co m as mão s e a voz, d a n d o forma
e c o n t e ú d o ã inerm e criatura q u e nasce . Nenhu m
elo físico garant e a ligação da criança co m o pai, por
isso se diz q u e o pai é c o m o se fosse se mpr e
adotivo, m e s m o q u a n d o h á u m laço d e sangu e
garantido.
A paternida d e é uma atribuiçã o aceita por
um h o m e m , e n q u a n t o a mulher, q u e compartilh a um filho
co m ele . oscila entr e d u a s posições.- a de
reconhecer o pode r do pai e fazer o filho
acreditar nisso, mas ta mbé m a de dar pistas da sua
inconsistência. Ela em parte se ilude da mesm a forma
q u e a criança e tenta dormi r tranqüila, certa de q u e a
mort e e o perigo nào virão, ma s já é um a adulta q u e
descobri u q u e o pai é um ilusionista e ta m b é m é
tarefa sua ir d a n d o pistas para o filho de q u e Papai
Noel n à o existe. O Mágico d e O z lamenta-s e n o
livro d e ter muit o m e d o das bruxas , q u e sabia
sere m realment e capaze s de fazer en ca n ta m e nt o s ,
ma s possivelmen t e o q u e ele mais temia era ser
des mascara d o po r elas.
Instalar um lugar patern o em um a criança é uma
tarefa da qual a mã e é articuladora. po r isso, ela precisa po r
veze s acreditar na legitimidad e do pode r do pai.
p o r q u e muito s sã o os perigo s q u e espreita m os seres
h u m a n o s principiante s e lhes faz falta algum a garantia. Em
te m p o s antigos. Deu s era ess e pai todo-poderoso, hoje
temo s de anda r pela estrada de tijolos amarelos até
encontra r em n ó s mes mo s a força necessária para
supera r o desa mpar o (Dorothv) . a necessidad e cio amor
( H o m e m de Lata), a ignorância (Espantalho ) e o medo
(I.eao Covarde) . Enq uant o n ã o temo s condiçõe s de
admitir o q u an t o estamo s sós, o pai aceita a impostura, e a
brux a finge q u e se sub met e a ele . De certa maneira ela e
mágica, poi s també m faz o pai ao s olho s crédulos da
criança.

Espantalho, a sabedoria humilde


SÈ^Si ornados , o s três amigo s d e Doroth v congre-
'^K^Hl r & a n l o s atributo s necessário s a o
exercício f f e y j f d a funçã o p a t er n a : dribla r a
ignorância,
•_. .*«*. conscient e de q u e há coisas q u e o conheci•
m e n t o n ã o a b a r c a : se r d e d i c a d o , m a s n à o
basta s o m e nt e trabalhar, t a m b é m é precis o prove r a
família subjetivament e ; d e m o n s t r a r um a corage m qu
e seja c o m o um forte rugido , capa z de calar o própri o
medo. O e sp a nt al h o represent a a part e intelectual.
É
en c on tr a d o po r Doroth y pr es o num a estaca e quando
ela liberta seu corp o de efêmera palha , ele já dá provas
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o

de qu e se u p e n s a m e n t o é perspicaz . Desd e o primeir o


diálogo, el e mostr a que . so b um a
a u t o p r o c l a ma d a ignorância, na verdad e reside um a
sagaz ironia. Apó s escutar da menin a q u e o q u e
ela mai s desejava era voltar par a su a terra, q u e
afirmava ser feia. triste e cinzenta, ele afirma:

Sorte do Kansas qu e vocês têm cérebro. Se a cabeça


de vocês fosse feita de palha com o a minha,
todos vocês iriam morar em lugares lindos e ninguém
viveria no Kansas.

Através dess a observaçã o sarcástica, ele tradu z


o impasse inicial, o leitor realment e se pergunt a o porqu ê
dessa deter minaç ã o pr e m e nt e d e voltar, sem
seque r ter explorad o o explicitament e bel o lugar q u e
recebe u D or o th y . Assi m , a o long o d a
jornada , s e m p r e lembrando q u e n à o te m
cérebro , o Espantal h o vai boland o o s pla n o s
inteligente s q u e s ol uc io n a m o s obstáculos q u e o
g r u p o eleve transpor . Ele represent a a sabedoria em
sua forma pura , descarnada , já q u e o corpo dess e
pe rs o na g e m é d e s m a n c h a d o e reconsti• tuído e m
vária s p a s s a g e n s d a história , el e e p u r o
pensamento. S e cad a u m do s c o m p a n hei r o s d e viagem
da menin a é um a face desejável do pai. o
espantalh o certamente é o papai sabe tudo.
F fundamenta l estabelece r q u e esse s personagen s
desenvolve m sua s qualidade s graça s a o
p o d e r invocante d a aventur a liderada po r Dorothy .
Antes d a chegada del a . o h o m e m d e palh a s ó
servi a par a espantar o s corvo s d a plantação ,
us a n d o trapo s d o fazendeiro, um a desprezíve l
image m d e alg o q u e n e m sequer era um h o m e m .
Na c o m p a n h i a da meni na , torna-se um sábio , poi s
o pai só é t u d o aciuilo q u a n d o posto a s e n i ç o da
tarefa de d e s e m p e n h a r a funçã o paterna.
Gradat h amente , o Espantalh o vai acreditand o em
sua inteligência e no final se autoriza a ficar
reinand o sobre o p o v o cia Cidad e Esmeralda,
n o m e a d o p e l o Mágico par a ser se u substituto .
Diferentement e d o Mágico, o Espantalh o n à o
precis a se esconder , el e não é um a farsa, já q u e ,
ao long o da estrad a de tijolos amarelos, el e a p r e n d e u
c o m q u a nt a ignorânci a s e fabrica um a sabedoria
. Durant e a jornada , Doroth y vai propician d o a
construçã o do q u e se esper a de um pai. Esse
process o mostr a a funçã o patern a com o
resultado de um a construção , em q u e a mã e e o
filho fazem su a part e par a q u e o pa i poss a
tornar-s e tal.
Um machado a serviço de Dorothy
fpSçgj o livro, o H o m e m de Lata conta
melho r sua í j M ç história : el e era u m
h o m e m norm al , u m Bjffjgl lenhado r
Munchkin, q u e sonhava em construir uma casa para
pode r pedir em casament o a
jovem qu e amava. Sua amad a vivia co m
uma velha, para q u e m trabalhava, e a referida
senhor a n à o estava disposta a abrir mã o de sua
serva, po r isso. pediu à bruxa qu e dess e cab o no
lenhado r e em suas pretensões. A Bruxa Malvada
enfeitiçou seu machad o que . em vez de árvores,
passou a mutilar pa n e s de seu dono . Apesar disso,
ele nã o desiste e vai substituindo seus membro s
po r peça s d e lata, até q u e ele tod o s e tornasse
metálico. Essa transformação foi send o suportável:
"meu corp o brilhava ao sol. e eu me orgulhava
muito dele", explica. Mas o qu e mais lhe dói é nã o ter
ficado co m seu coração, pois sem ele esquecer a
qu e queria se casar. Por essa vontad e de voltar
a amar. gostaria entã o de pedir um coraçã o d e
volta a o Mágico.
O H o m e m de Lata vivia sozinh o num a
caban a na floresta e cert o dia enferrujou.
Com o nà o p ô d e alcança r o óle o lubrificante qu
e mantinh a sua s juntas e m funcionamento ,
ficou p a r a l i s a d o , c o m o u m a estátua, po r long
o t e m p o até qu e Dorothy. qu e passava po r ali,
escutass e seu chama do . Ele é fabril, forte e
eficiente c o m o o lenhado r qu e lhe deu
origem, mas lhe falta, n o entanto , uma paixã
o e m nom e d e qu e cortar sua s árvores , po r
isso termino u estático sem ter para ond e ir.
Doroth y lhe devolv e os motivos para viver, e
ess e é o óle o qu e lubrifica suas juntas. Com o
sói acontece r ness a história, n o process o d e
busca r algo , na v er d a d e já se o conquistou ,
ap e n a s ainda n à o se sab e disso. (.) Ho me m de
Lata providencia os i n s t r u m e n t o s , c o n s t r ó i a s
ponte s e o s ar te fat o s necessário s para a
sobrevivência d o grupo , ele p õ e seu machad o a
serviço da donzel a Dorothy, que , com o acontecia co
m sua noiva Munchkin, lhe aciona o desejo de se
movimentar . No livro, fica mais clara a
secura cio tio da menina . Provavelmente , na
árida terra do Kansas, trabalhava-se mecanicamente
, sem uma paixão q u e d ê razã o ao s mo vim ent o
Ao fim da história, o p o v o liberto do
jugo da Bruxa Malvada d o Oest e p e d e a o
Ho me m d e Lata par a governá-los . A e x e m p l o
de seu colega de palha, el e assum e o lugar
paterno , q u e agora tem coragem de ocupar ,
já q u e possu i a paixã o necessária para
conduzi r se u m ac h a d o .

249
Fadas n o Div a — P s i c a n á l i s e n a s H is tó ri a s Infa nti s

A coragem dos v e n e n o s o q u e é , s e fund e n u m símbol o d o a to d a s essas questt


medrosos perigo atribuíd o à s mulheres . Costumamo s també m si e se r vista
comparar como
í-^pu^, I.eào Covard e é o mais óbvi o do s guardiõe o tufo de pêlo s da virilha da s mulhere s a uma aranha.' A casa para a <
s Seguind o essa inclinação da mitologia'' e tia linguagem fazentla cinzenta
."'.,,.; de Dorothy. Fie deveria ser d
o mais
^"_.,'. respeitável do s animais, inatacável e
popular , p o d e r í a m o s p e n s a r q u e o Leão q u e ela quer de
sobe - Covard e vc
nino . r e p o u s a n d o n o t o p o d a cadei a
reconquist a seu rein o q u a n d o enfrenta e venc e famos a poesia de
ali• uma (
mentar. Porém, o leão dessa história duvida tia mulhe r devoradora . um animal preto , pe l u d o e lament a a
sua cheio infância:
posiçã o e o motiv o tles.se sentiment o é q u e ele tle dentes . A supremaci a tle um pai dev e se fazer valer da auror a da
nã o cons egu e s e acha r ta o onipotent e c o m o nã o so ment e sobr e o s pe q u en o s , q u e s e minli:
deveria, ele tem m e d o . Km sua s palavras: submetem pela fragilidade, també m o pai precisa q u e o s ano s
se sobrepo r à não i d ea liz a d a
infânci
m u l h e r , a m ã e , p a r a q u e a cr i a n ç a p o s s a acontece u , pois
Naturalmente, totlos os animais tia floresta esperam que te r a tranqüilidad e tle n ã o ser devorad a po r ela. Além os h u m a n o são
eu seja corajoso, porque em Ioda a parte o leão é o rei disso, terá tle prova r q u e n ã o sucumbir á a o m e d o cheios Visto tle
tios animais. Aprendi que se eu rugisse muito suscitado pelas fantasias derivadas da supost a castração fora. ser t protegid o
forte, totlos os vjventes se assustariam e fugiriam feminina. O leão q u e n ã o duvida tle sua condiçã o
e ser con
tle mim. Toda a \e z que encontro um homem, tenho para o
pe rc e be m o s que b
medo dele. Mas eu sempre solto meu rugitlo e carg o proced e com o u m rei qu e govern
a por determinaç ã o divina. Fora tlessa forma tle par a equaciona
ele foge o mais depressa possível. Se os
instituição nu m cargo, toda s as outra s torna m o pode r um i capacida d e física,
elefantes, tigres e LUSOS
atributo i
tant a proteção e oi
quisessem me enfrentar, eu teria fugido, tle tão covarde provisório , q u e reque r n egociaç õ e s co m o s
súditos
a s criança s
que sou: mas logo que ouvem meu rugitlo eles fogem ou uma imposiçã o autoritária. Q u e tem p od e r teve sente
tle
conquistá-l o e fará muit o esforço para mantê-lo Sofremo s um
e claro que os deixo irem embora. reta
. O
Leão Covard e sab e tlisso e poder á reinar, nã o amnési a da origem
O Leão consegu e produzi r efeitos tle tlominância. como um monarca , ma s c o m o um presidente . O da carochinh a
pai hoje t a m b é m te m tle vence r eleiçõe s qu o ut r o s sobre o
ma s isso nã o o imped e tle sentir m ed o , pois sab e q u e .
d e n t r o tle casa. no

se o oposito r reagisse, seria ele q u e m sairia n e n h u m des potism o será admitido , a paternidad e Dorothy
correndo . Por isso. resolve pedir ao Mágico coragem : terá tle ser sábia e respeitar limites, os seus . os do s est; co r e sem
"tle forma q u e poss a me torna r tle fato o Rei tios outros e tio se u cargo , n ã o bast a rugi r e afeto, n ai n d a é
Animais, c o m o a m ed ro n ta r , é depende r
necessári o sabe r governar pr áti c a o
ampan
iod os me chamam". Hle percebe que .
aparências
edes
n u n c i a r que
e n g a n a m e tem e ser d e sv e nd a d o , seu
sentiment o e Kmma . qu e
supòf
tle insuficiência para o cargo . No entanto , tal ausência . Ela
qual acont ec e co m seu s dois amigos , o Leão nã o Não há lugar como nosso que p r e s s u p õ e ,
cessa tle
lar mas
da r d e m o nst ra ç õ e s tle sua valentia, até q u e deixara m que o fi
no fim
p o d e admitir q u e nã o é tia ausência tio m e d o q u e H«*BKj m O Mágico t/cOz. há uma viage m d o s tios
ela inespera- arriscou
é feita. A corage m consiste em lutar contra o Íj['Pí$w c ' a e <> ansei o tle voltar para casa, s e m p r e faz por
m e d o a cad a nov o desafio. mas o jKkjâll percurso mesmo e a ;
p o s s i b i l i d a d e tle t e m p o tod o um c
No livro, o Leão volta a ser o rei tia selva. cresciment o tia heroína . Doroth y volta u m a órfã.
Num a para parece
da s florestas qu e eles atravessam para encontra r a Bruxa o Kansas. ma s está m u d ad a . Apre nde u e cresce u no
O herói ór
Boa do Norte, encontra m os animai s tio local acuados , percurso . O filme no s permit e vislumbrar m o d er n a , acredita
melho r a
so b a ameaç a tle um monstr o terrível, parecid o idéia de q u e a jornad a é na ve rd a d e um r e s p o n d e ao s
co m percurso i
uma aranh a gigantesca, tio t a m an h o tle um interior, tle auto-conhecim ent o , afinal tud o teria m o d e r n o . A idéi;
elefante, sido
co m um a e n o r m e boc a cheia tle dentes . F.Ia só um sonho , um a vivência p ur a m en t e e s t a r só no
havia subjetiva. mui
inclusive d e v or a d o outro s leões ante s dele , poré Doroth y n ã o se tleixa seduzi r muit o t e m p o tendênci a
m o noss o herói a venc e u sa n d o u m p o u c o tle por outro s lugares, ela que r m e s m o retorna r a o conte importânci a
estratégia. Se fosse destemido , teria tido o m e s m o Kansas. No m u n d o o n d e sua fantasia a leva, ela dos o s órfãos .
destin o tios protagoniza e A qt
antecessores , ma s o m e d o o tornara esperto , a tem tle r es p o nd e r sobr e seu s desejos e potleres . dimensão
ponto Logo trágica
tle c o m p r e e n d e r q u e q u e m parec e invencível e m sua c h eg a d a fica clar o q u e ela te m d e conse qüên ci a de
dev e querer
ter um p o n t o fraco, graças a isso escolh e o algum a coisa, se u gru po , q u e percorr e a uti li da d e : se
melho r jeito e m o m e n t o tle matá-la. Após essa estrada tle tijolo s a m a r e l o s , é c o n s t i t u í d o p o r nâ filiaçã o e
prova , aquel e grup o d e animai s lhe p e d e q u e a q u e l e s que m ar ch a m e m n o m e d e u m p e dido , uma d e v e d o r e s
aceite governá-los . u m desejo . D e entrad a ta m b é m lhe pergu nta m da r nosso s
A aranha, por ser t e ce d o r a, um se ela é um a bruxa pod e rosa , leia-se, se ela já é um
pais e qt
a t r i b u t o g e r a l m e n t e fe m i n in o , e c o m o ani ma l a mulher , ela responde
l; admiti r e
predador e pagar.'

250

I
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o Co r s
o

d o p eri g o a todas essa s questõe s negan do-s e a desejar alg o par a si e


n c o m p ar a r ser vista c o m o poderosa , ela só que r voltar.
ma a ra n h a. ' A casa par a a qual Doroth y qu e r retorna r n ã o é a
linguage m o fazenda cinzent a de o n d e seu vô o partiu, o Kansas
C o v a r d e venc que ela q u e r de volta é a infância perdida . Há um a
e u m a id o famosa poesi a de Casimiro de Abreu, q u e idealiza e
e c he i o j lamenta a infância: "Ai q u e sa u d ad e s q u e eu tenho ,
fazer vale r da aurora da minh a vida. tia minha infância querida ,
submetem que os a n o s n ã o traze m mai s |...|". A pr an te a d a e
sobrepo r à idealizad a infânci a p e r d i d a provavelment e nunc a
oss a t e r a aconteceu, poi s o s ano s d e formaçã o d e u m sujeito
Além disso , humano sã o cheio s de pesadelos , fragilidade e sujeição. Visto de
Jo suscitad o fora. ser criança é se divertir brincando , estar protegido e
ser co n d uzi d o po r alguém : visto de dentro , percebemo s q u e
I o feminina.
brincar, mais d o q u e u m lazer, serve para eciuaciona r
lição par a o
clesalio s qu e supera m n o s s a capacidade física,
verna por e
intelectual e emocional . Além disso, tanta proteçã o e
instituição u m
orientaçã o é proporciona l ao q u an t o a s criança s
atribut o o s sentem-s e desamparada s e p e r d i d a s . Sofremos um
súdito s oder recalqu e da infância, um a espéci e da amnésia da
tev e d e origem , c o m p e ns a d a po r alguma s histerias da carochinh a
mantê-lo . O q u e co nt a m o s a nó s próprio s e ao s outros sobr e o
r, nã o c o m o noss o passado .
O pai hoj e r
Doroth y está d e s c o n t e n t e d e se u m u n d o se m
o de casa,
cor e se m afeto, ma s n ã o está pront a par a partir, poi s
rnidad e ter á is
ainda é d e p e n d e n t e dele , e m b o r a n ã o lhe ofereça na
do s o u t r o s
prática o a m p a r o q u e ela g e s ti o n a : s ó c o n s e g u e
ne d ro nt a r , é enunciar q u e deseja n o v a m e n t e voltar par a sua tia
Emma, q u e s u p õ e estará muit o p r e o c u p a d a p o r sua
ausência. Fia qu e r voltar ao c ui d a d o q u e a infância
pressup õe , m a s eme n a prátic a n ã o teve , j á q u e
deixaram eme o furacão a levass e pelo s ares . N e n h u m dos
tios arrisco u a vida par a resgatá-l a c o m o ela
•'em inespera - sempre faz po r se u cachorrinho . a q u e m dedic a o
casa, m a s o tempo t o d o u m c ui d a d o m a t e r n o d e eme ela própria ,
bilidade de uma órfã, p a r e c e carecer .
thy volta p a r a O her ó i c')rfâo é u m a d a s m a r c a s ela ficçã
e cresce u n o o moderna, acreditamo s c|ue se u apareci men t o e difusão
ar m e l h o r a u respond e ao s ideai s d e autonomi a elo s u j e i t o
m percurso moderno . A idéia é a ele fazer-se po r si m e s m o , ele
ud o teria s i d estar s ó n o m u n d o . N o t e r r e n o ela fantasia , ess a
o subjetiva. tendênci a c o n t e m p o r â n e a d e u luga r â c r e s c e n t e
íto t e m p o p o r importância elos herói s d es ga rr ad o s elas sua s origens , os
ar ao Kansas . órfãos . A q u e s t ã o ela orfandael e coloc a num a
protagoniz a e dimensão trágica a solidã o q u e tant o sentim o s c o m o
poderes . Log o conseqüênci a dess a posição . N o e nt a nt o , ela te m su a
em de q u e r e utilidade: s e n ã o a d m i t i m o s a influênci a ele u m a
r a estracia de filiação e u m a o r i g e m , e v i t a m o s a c o n d i ç ã o d e
aqueles que deved ore s d a h e r a n ç a inevitáve l q u e t e m o s c o m
m desejo . De nossos pai s e eme n e m s e m p r e es ta m o s disposto s a
é um a b r u x a admitir e pagar.''
ela r e s p o n d e
funçã o patern a e materna . 251
Já falamos elo pai, ma s agora
precisamo s no s o c u p a r ele c o m o
Bruxas a grisalha tia Kmma foi
boas e substituída po r um ejuarteto ele bruxas . A
más primeira c|ue aparec e já cheg a morta, Dorothy
despe nco u co m sua casa em cima dela,
m matando- a acidentalmente .
J á q u e estamo s nu m territc')rio onírico,
O valem sua s regras, as casas em sonho s
z geralment e simbolizam o prciprio corpo . H
ess e corpo-cas a q u e mata a primeira bruxa .
h P od e m o s pensa r essa qued a e m dua s
á vertentes interligadas: a primeira c o m o o
descart e ele um corp o infantil q u e já nã o
u serve mais e e dispensad o c o m o um
m casulo, po r n a o comporta r mais o ta m a n h o ele
seu d o n o : na sec|üência. já q u e o corp o
l infantil q u e está s e n d o s up e ra d o ceder á espaç o
e a um corp o ele mulher, é possíve l supo r
e c|ue a cas a voador a simboliz a a juventud
j e qu e derrota o corp o velh o da bruxa. Afinal,
u geralment e é n o mome nt o e m qu e
e o s a t r i b u t o s femininos elas menina s brotam .
c|ue suas mãe s p o d e m sentir-se atropeladas ,
e co m o ness e caso . Km inúmero s conto s de
l fadas, ess e é o m o m e n t o em q u e a filha te m ele
e partir, poi s n ã o há possibilidad e de se viver
so b o m e s m o teto o n d e já reina outra
p mulher.
e A s e gu n d a brux a ( m e s m o s e n d o
r ele naturez a distinta, no cas o boa . conserv a
s o no m e ele bruxa) faz função ele anjo ela
o guarda , so b a forma ele um beijo m á g i c o
n ou ele apariçõe s esporádica s e zela
a pel a integridad e física ele Dorothy. Dá-lhe o
g sapat o mágico, mas nã o explica c o m o usá-lo.
e ensina o caminho , mas n ã o a leva até lá. Knfim.
n oferece os instrumentos, assim c o m o um a mã e
ajuda a criança a construir seu corpo , a falar,
s caminha r e brincar, sem pode r determina r muito
além do s primeiro s passos . As dua s bruxa s
p boa s sã o libertadoras; a má escraviza, aprisiona,
a imped e Dorothy de cresce r e partir.
r A baix a malvada ejue deve ser enfrentada é
a similar â de Branca de Neve e ele outras
princesas: ela sabe do pode r ela jovem, perceb
d e nela a mulher em qu e irá se tornar e
a tenta impedir a transformação, retendo-a na
infância, nu m temp o em qu e esta se sujeitava a seu
r poder. Na verdade , o pode r da bruxa se beneficia
ela ignorância ele Dorothy a respeito ela
c capacidad e ele os sapatinhos de prata (ou rubi)
o de realizar magicamente seu desejo. Por isso,
n diz: " Posso escravizá-la porqu e ela nã o
t sabe com o usar sua força". Mas, po r esse
mesm o motivei, a teme, já qu e a jornada da
a menina é a de descobrir seu poder, assumir qu e
ela te m os mesmo s atributos mágicos, no sentido de
e qu e amba s são a mesma coisa: mulheres.
l
a
Fada s n o Div a — P s i c a n á l i s e n a s H is tó ri a s Infanti s

O destin o de tod a a brux a é ser derrotad a ment a mo s d e s e m p e n h a r a p er s on a g e m q u e


pel a princesa, uma jovem q u e receb e o s p od er e s gostaría• mo s de ser. Dessa s viagen s fantásticas nunc a
q u e o s a n o s t e r m i n a r ã o p o r retirar cia velha : voltamos exatament e iguais, poi s nela s tivemo s um a
o p o d e r d a sedução , o de gera r um a vida, o visão: a de n o s s o s mai s prezado s desejos .
de instituir um pai para seu filho. Portanto, D o r o t h y começ a q u e r e n d o voltar atrás, para u m
escravizá-la é para r o tem po , mantê-la ignorant e d e t e m p o o n d e nã o era necessári o dizer q u e m era
seu crescent e poder , sujeitada e passiva c o m o uma ne m o q u e queria, em que era insignificante c o m
criança. A bruxa só morr e p or q u e nã o pod e coexistir co o um a criança, nu m t e m p o em q u e os
m a heroína depoi s q u e ela cresce, ela é a mã e na protagonista s sã o sempr e os outro s e a nós
sua dimensã o retentiva e. do fim de seu s poderes cab e a pe n a s observar. No final, sua aterrissagem certa•
, s ó p o d e s e lamentar: ment e se dará mais adiante , num a realidad e na
qual no s entrega m as tintas, co m as quai s faremos a
Sempre fui má, mas nunca pensei qu e uma garotinha pintura q u e dará brilho, formas e core s â vida q u e
como você poderia me derreter e acabar com minhas passaremos a ter. Isso é crescer, ma s tal c o m o
más acoes. Dorothy. só nos entre ga mo s â essa tarefa q u a n d o
toda s as resistências tore m vencidas .
Paradoxalment e Dorothy encontr a nessa
bruxa, de certa forma, uma aliada, já qu e ela tenta
submetê-la. na mesma medida cm qu e a menina que r parar Notas
o tempo . Afinal, ê a última do grup o a se convence r
de qu e nã o adianta pedir aos outro s qu e façam po r 1. BAEM. Prank L. O Mágico de Oz. São Paulo: Ática,
ela aquilo de que , infelizmente, terá de se 2003.
incumbir pessoalmente . Os seus três amigos já 2. Conforme mencionad o no prefácio de Mário
estavam pronto s para lidar co m seu s desafios , Vilela â edição brasileira dessa história, a qual
q u a n d o Dorot y vai a o e n c o n t r o d a segund a infelizmente não contém as ilustrações originais
Bruxa boa , ainda, portand o o m e s m o pedid o de de Denslow.
sempre : que r voltar a uma infância idealizada, o n d e 3. A fantasia de Dorothy, que imagina um lugar
fica esperand o q u e algué m a proteja (co m o ela faz co m ideal, em contraponto â sua vida triste, é
seu câozinho ) e de o n d e n ã o fosse necessário mais uma das criações da versão cinematográfica.
partir. F.mbora enfrente corajosamente uma série de Esse ensejo de Dorothy se expressa na célebre
perigos, assim co m o seus amigos, ela é a única qu e nã o música Orer lhe Raiiibou: cantada por Judy
perceb e o quant o cresceu co m isso. é preciso qu e a última Garland.
bruxa lhe confira uma espéci e de autorizaçã o i. Aqui temos uma pista para analisar o grande número
para partir, dizendo-lh e qu e p o d e voltar, mas pelo s de fobias a aranhas. Pode ser um terror derivado da
próprio s pés, a partir da própria magia. Ou seja, a castração feminina, send o a aranha
magia nessa história está aos nosso s pés, na medida em representação do pretenso é)rgão faltante.
qu e assumimo s qu e eles no s levem aond e queiramos .
5. Para os gregos, a aranha descende de Aracne. célebre
O s rapaze s d o gr u p o tiveram d e ouvir a tecelã que ousou dizer qu e seus bordados
be n ç ã o d o pai-mágic o para s e assumi r e m sua s seriam melhores qu e os da deusa Atena. que , além
qualidade s . Doroth y busca també m um a autorizaçã o de suas qualidad e intelectuais e guerreiras ,
q u e ve m d e algué m do seu mesm o sex o para ser Lima também era deusa das tecelâs e bordadeiras.
mulher, poi s é a máe-brux a q u e tem de deixá-la partir Como castigo pela ousadia, foi transformada em
dess e m u n d o de fantasia para voltar para a dura e aranha e até hoje segue tecendo .
cinzenta realidade . De fato. Dorothy terá de 6. Desenvolvemos mais sobre essa idéia no
retornar, ma s n ã o para trás. para um a infância capítulo
triste e desa mpar ad a de órfã: ela terá q u e voltar XY1II sobre Harry Potter. um dos tantos heróis órfãos.
para a realidade , t e n d o a pr e nd i d o uma lição muito 1 Iarry é órfão e passa toda a sua história
preciosa e m nosso s te mpo s d e idealizaçã o d a tentando achar e encaixar as peças da história de sua
autonomi a : nunc a esper e do s outro s o q u e voc origem, qu e se apresenta de forma persecutória e
ê m e s m o p o d e lazer. fantasma• górica.
Para todo s os hu m a n o s , a fantasia é um ~. Na linguage m popular , diz-se q u e o corp
território o n d e tr ei n a m o s , é u m a vida virtual, o é a morada da alma, pois é nesse sentido qu e
o n d e e xp er i • tomamos, e os sonho s trazem freqüentemente essa
associação.
252
Capítulo XVIII
UMA ESCOLA MÁGICA*

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Paulo: Àtica,
^%*

Harry
Potter
Kxpansão do papel da escola na socialização - Negação do passado e obsessão pelo luuiro -
Romance lamiliar ilo neurótico - Atitude crítica dos adolescentes - Devaneios adolescentes
-
1'uberdade - Importância dos segredos - Cisão da figura paterna -
Adolescência como ideal social - Papel das referências culturais no
crescimento -
A magia na literatura intanto-juvenil - Dificuldades com a histê>ria familiar

0 fenômeno de seu b ru xi n h o . o qua l amargo u cert o


ostracism o ante s de ser descobert o po r seu
o investigar o significado público . Foram mais uma vez as crianças,
de li a m " Potter. abre-s e uma inicialmente num a divulgaçã o boc a a boc a
por • ta para estuda r a vida e o (repetind o um fenô men o q u e já ocorrera co m outro s
pen • sa ment o da s crianças d e clássicos c o m o Pinocchi o e Peter Pan), q u e
noss o t e m p o . A história dess e fizera m d o s livros d es s a a ut o r a u m s u c e s s
suces • s o começ a n o terren o mundial .
o literá• rio, depoi s passa a Desd e a publicaçã o de Ikirry Potter c a
uma série filmada, transformad Pedra Filosofal em 1997 (n o Brasil, 1999). o
a a seguir e m um a grand lançament o de cad a v o l u m e d a série , muito s
e gama de dele s b e m grossos , provoco u histerias de Oriente a
Ocidente, transformando
produtos infantis. A autor a J o a n n e K. Row ling é Rowling num a espéci e de pop star. Por todo s os
uma inglesa que , ante s desse s títulos, n ã o existia no lados chegaram críticas e comentários, e o qu e mais se
cenári o das letras. Foi co m muita dificuldade q u e marcava era a surpresa de qu e as crianças da
consegui u o apoio de um a pccjuena editora para virada do século XXI tinham revelado-se leitores
lançar a história
vorazes. Harry Potter
'Este capítulo foi publicado, numa versão resumida, no Caderno de Cultura do jornal Zero Hora de Pono Alegre/RS, em 22 de novembro
'• de 2003, com o título: "Anatomia de Harry Potter".
Fada s n o Div a — P s i c a n á l i s e n a s His t ór i a s Infanti s

acabo u dem onstran d o qu e a geraçã o do joystick do q u e a simples partilha entr e o b e m e o


nã o tem problema s co m a letra impressa, faltava mesm o mal: os t e m a s d a a m b i ç ã o , d o e g o í s m o , d a
era um a ficção q u e oferecess e alg o n a medid a covardi a (que assombra m inclusive a ment e do s
d e sen imaginário. Para o espant o de todos , bons) , assim como o caminh o tortuos o qu e condu z a o
contradizend o a profecia de q u e a letra escrita bem . sã o recorrentes. D a m esm a forma, o s herói
estav a destinad a ã e x t i n ç ã o , d e s c o b r i u - s e q u e s nã o sã o simplesmente obediente s ou
o p r o b l e m a n ã o s e relacionava ao livro enquant o transgressivos. eles se mostram sempre co m
meio . mas sim e n q ua n t o lacuna temática. Juntament e opiniõe s em relação às leis da escola e do
co m os livros cie Rowling. houv e uma proliferação de sen m undo , escolhe m entre obedece r ou nao .
títulos, com meno r aceitação, mas com a magia c o m por vezes, são forçados a driblar as norma s e
o carro-chefe e um grup o de crianças ou jovens seguidament e pagam car o po r seus a t o s /
aventureiros com o protagonista. Esses títulos mistura m V. preciso descon hec e r totalment e os
mistério , encantamento s e dr a m a s psicológicos meandros do fenômen o para pensa r qu e seus leitores o
típicos dessa época . Km síntese, p o d e m o s dizer qu e escolheram apena s graças à publicidade ou à
Potter é herói de uma n o \ a safra de feiticeiros.1 benevolência da mídia. Não s e pod e esquece r qu e nã
A partir do a n o 2001. os livros tornaram-s e filmes e o houv e uma campanha publicitária prévia q u e
re pr o du zi r a m o mesm o esquem a cie su a tivesse alçad o esse s livros à c o n d i ç ã o d e
ve rs ã o e sc rit a , d e u m lançament o anua l objeto s d e consum o desejáveis . O s
a n s i o s a m e n t e esperado . Os fãs, o personage m e responsáveis iniciais pela escolha e difusão
os atore s cresce m juntos d esd e então . A saga tev e foram os leitores. Depoi s ele constatad o o imens
seu p o n t o de partida q u a n d o o herói aniversaria o impacto de público, o mercad o acordo u e
11 anos . A partir dess a data. cada an o troux e u absorveu o fenômeno, entã o vieram os brinquedos ,
m nov o livro, a c o m p a n h a n d o a passage m do os filmes e os produtos co m a marca da série.
menin o feiticeiro pela puberclacle e o início da Os fatos são esses, sé) nos cabe tentar compreendê-los
adolescência . Além do s leitores já conquis • tados , . Mais do qu e desconfiar e buscar as razõe s em
outro s mais jovens vã o s e engajand o assim q u e a complêxs mercadológicos , sé> podemos supo r qu e a
infância começ a a da r s e u s primeiro s sinai s autora foi feliz em juntar nu m livro vários interesses
d e esgota ment o . caros às crianças contemporâneas . Nesse caso, a melho r
Harry Potter revelou uma massa de crianças pergunta a fazer refere-se à natureza cios temas e à
lei• forma com o se articulam. Esse é o nosso objetivo
toras, cujos número s foram exaustivament e valorizados neste capítulo, mas antes um p e q u e n o resumo da obra
(quanta s páginas, traduções, exemplares ) e. apesa r se faz necessário para que m nã o conhec e minimamente a
cia m á vontad e d e algun s críticos, acreditamo s qu e pode trama.
m ser atribuídos às qualidade s literárias da obra.
Com o nã o é nossa especialidade , ape na s p o d emo s
dizer o óbvio: sã o be m escritos e nã o cae m num a
da s ciladas mai s c o m u n s , a d e tratar a s criança A história
s c o m o m e n o s exigentes em termo s de literatura, •» \5T r arry é filho de um casal de bruxo s corajosos
já qu e esses livros contê m p er s on a ge n s complexa s
,*. 4. Í e virtuoso s par a as arte s da magia,
e viradas surpreen • dentes . O m u n d o do s bruxo s que
é uma realidade paralela à nossa, d an d o margem ••>'«5o"- havia m se constituíd o em inimigos do vilão
entã o a tod o um universo de fantasias, criado para Lorcl Yoldemort e seu s seguidores . O motivo
uso exclusivo da trama. Outro s autore s já fizeram ela discórdia entr e o grup o ao qual pertencia m os pais
isso e ne m sem pr e obtivera m os m e s m o s de Harry e Yoldemort encontra-s e no cern e
resultados , afinal, criar di m e ns õ e s mágica s
cie uma d i s p u t a política . C o m o r e p r e s e n t a n t e
alternativas á nossa realidade é lugar-comum na literatura
da s trevas, Yoldemort lidera um a acirrada luta
para essa idade.
pel o domínio do m u n d o do s bruxos , para impo r
Rowling é um a escritora idealista, ela faz mais sua s modalidades de funcionament o : autoritárias,
do qu e proporciona r boa s dose s de magia e aventura beligerante s e capazes de qualque r mei o q u e seja
para contrastar co m a triste e chata realidade da necessári o para seus fins. Em g r a n d e s l i n h a s , o s
vida: seu s heróis també m encarna m ideais d o i s g r u p o s r e p r o d u z e m a s polarizaç õe s entr e
subjetivos precioso s para essa geraçã o de crianças. A o d e m o cr áti c o e o totalitário, o pacifista e o
grand e luta dess e herói é pela própria sobrevivência, mas bélico, o justo e o perverso . Além disso, o g ru p o
també m é contra certa form a d e racismo, qu e
de Yoldemort defendi a a discriminação dos bruxo
discrimina aquele s b ai x o s qu e nã o seriam puro-sangue.
s q u e fossem nascido s de famílias de trouxas,
Fm seus livros, há mais divisões
q u e é a d e n o m i n a ç ã o do s não-bruxos . A própria Lílian,
254
Di a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s
o
se u s político s (inclusiv e o s corruptos), sua história.
O m u n d o paralel o d o s br u x o s está destinad o nã o som ent
e ao s q u e j á n a sc e m nele ,
mãe de Harry, tinh a essa origem , já q u e era possível a
pessoas nascida s trouxa s revelare m o d o m da baixaria .
Voldemort não é a p e n as uma espécie d
e feiticeiro nazista, el e é um a e n c a r n a ç ã o mai s
vaga do mal, "o lad o n e g r o da força". Seu p o d e r
maléfic o é tào assustad o r n o m u n d o d o s br u x o s q u
e eles ne m sequer m en ci o na m -l h e o n o m e ,
dizendo apenas o
"você-sabe-quem" , e t o d o s sa b e m q u e m é . O s
q u e escolhem segui-l o e s p a l h a m e m se u redo r
t o d o s o s tipos de per versidade : assassinato ,
injustiça, enfim, o s e x pe di en t e s necessário s n u m a
disput a d e poder , quando se está dispost o a
jogar sujo.
Q u a n d o Harry er a u m b e b ê . s e u s pai s
foram assassinado s p o r Voldemort . Lá p el o
q u a r t o livro, ficamos s a b e n d o q u e o objetivo seria nã o
o assassinat o dos pais, ma s de Harry. Haveria
uma profecia q u e dizia q u e ambo s nã o poderia m viver
a o m e s m o tempo , mas, c o m o tu d o nessa saga. tal
informaçã o é um a pec a a ser encaixad a a long o
prazo . O feitiço virou contra o feiticeiro, e, mediant
e a presenç a dess e b e b ê . cujos pais morrera m
tentand o proteger. Voldemort sucumbiu . Dessa
experiência , resta em Harry um a cicatriz na testa, e ainda
essa história fez de Harry um herói em se u
mundo, muit o ante s q u e o m e ni n o tivesse consciênci a
de seu poder .
Após o assassinat o do s pais e o ataqu e a
Harry. Voldemort ficou tã o fraco q u e praticament
e sumiu : em várias ocasiões , el e tent a
reaparecer , seja pes • soalmente o u através d e seu s
seguidores . D e qualque r maneira, nã o restam
muita s dúvida s d e q u e aquel e ser maligno q u e r
termina r o q u e com eço u , e a vida d e Harry
co rr e c o n s t a n t e p e ri g o . Além disso , el e
permanecerá para se m p r e ligad o àquel e q u e
marco u tào tristemente seu destino, já q u e . mediant e a
presenç a de Voldemort, sua cicatriz dói c o m o um
aviso.
Nos livros d e Rowling, h á doi s m u n d o s
para • lelos qu e funciona m colados , ma s
dissociados . Po r um lado, temo s a vida
convenciona l do s ironxas. q u e somos nós . Por mais
desagradáve l q u e seja. ess e term o reflete o desprez o co m
o qual os bruxo s encara m todo s aqueles q u e vivem
ignorante s d a magia q u e existe a o seu redor. Os
trouxa s nad a sabe m do s bruxos , embor a estes,
dislarçadamente , estariam entr e nós .
A L on dr e s d o s t r o u x a s é a c i d a d e rea
l q u e conhecemos, p or é m ela te m passagens , sé)
conhe cida s pelos iniciados , q u e a c o ne ct a m co m
o m u n d o d o s baixos. Estes funciona m c o m o um a
sociedad e secreta, ou melhor, c o m o um a ci da d e
secreta . Eles tê m sua s cidades, su a s escolas ,
fascinante, co m criaturas mágicas, e depara-s e co
m

també m s e ex il a m e m se u interio r
a q u e l e s q u e , m e s m o t e n d o nascido s trouxas , 255
revelare m d o n s para a magia . Ness e caso . o
jove m troux a q u e for d o t a d o dessa s capacidad e
s receber á u m dia, a o completa r
1 1 anos , um a carta c o n v i d a n d o - o par a
estuda r e m Hogwart s (o u e m outr a escol a d e
magia) . O s bruxo s se m p r e p e r c e b e m q u a n d o
algué m revela sensibilidade para a magia, m e s m o
q u a n d o está fora de seu m u n d o . Toda s essa s
informaçõe s n a o sã o entregue s d e
form a clar a em nenhu m mo me nt o do
s liv r os . A c o m p a n h a m o s Harry em sua
ignorânci a inicial a respeit o d e tud o e . junto co
m ele, vamo s descobrin d o ao s poucos , m ont a n d o
u m quebra-cabeç a cujas peça s estã o espalhada s
ao long o cios livros. Este é mais um d o s
motivo s par a espera r cad a nov o volume ,
pois, alé m da s nova s e e m p ol ga nt e s
aventura s d e Harry par a s e salvar da s armadilha s
d e Voldemort, esperamo s po r mais revelações .
Sempr e descobrimo s algo mais sobr e a história
d o s pais de Harry e seu s contemporâ • neos , sobr
e Hogwart s e o m u n d o do s bruxos .
Han y cresceu com o um trouxa e.
portanto, nada sabi a s o b r e magia , t a m p o u c o
s o b r e se u p a s s a d o . Decididos a afastar o beb ê
de sua precoc e tragédia, os professores da
Escola cie Magia e Bruxaria Hogwarts, à qual
seu s pais eram ligados, decidiram qu e ele crescesse
longe de tud o isso. O menin o viveu até os 11 ano s
junto à irmã da mãe, entre uma família de
trouxas qu e nã o tinha nenhum a relação nem
simpatia com a realidade paralela na qual a mã
e de Harrv havia decidido viver.
O s tios d e Harry sa o d o pior tip o d
e trouxas : consumistas. medíocres , egoístas e
preconceituosos . Na casa. vive també m um primo da
mesma idade de Harry. um menin o mi ma d o e
implicante. capa z de tod o o tipo d e grosseria .
Co m seu s tios, Harry vive c o m o u m
enjeitaclo. jamais receb e uma palavra gentil, e
obrigad o a de s e m pe n h a r tarefas domestica s cias
quais seu primo é p o u p a d o , alé m disso , se u
quart o e um cubícul o embaix o da escada . Os
tios contaram-lhe qu e seus pais haviam morrid o nu m
acident e automobilístico, portanto el e nad a
compreend e a respeit o do s estranho s
fenômeno s qu e ocorre m em sua presença. Na
condiçã o d e jovem bruxo , ele produ z fenômeno s
mágicos mesm o nã o intencionalmente,
principalmente movidos por raiva ou desespero , sã o
pe q ue n a s e inconscientes vinganças diante da s
injustiças qu e sofre constantemente .
Co m seu aniversário de 11 anos . chega
a carta de conv ocaç ã o para ir estuda r em
Hogwarts . A partir daí a vida de Harry torna-s e um
a longa e lenta jornada r u m o à s necessária s
explicaçõe s par a sua estranh a condição . N a
escola, encontr a u m m u n d o maravilhos o e
Fada s n o Div a — P s i c a n á l i s e n a s Hi st ó ri a s Infanti s
e as incô mo da s mudança s qu e a adolescênci
a i mp õe ao
a possibilidad e de aprende r feitiços e
aprofundar-s e na s ciências ocultas. Essa escola é
mais do q u e um colégio, c o m o o q u e Harry
freqüentava ante s do s onz e anos . e o lugar o n d e
ocorr e a iniciação do s jovens bruxos , nu m ciclo qu
e vai cios 1 1 ao s 17 anos .
Hogwarts organiza-se em quatro casasS ou
grupos qu e acolhem os estudantes e os classificam
de acord o com sua índole. Essas casas disputam entre
si ao longo de tod o o an o letivo, e os méritos ou
as faltas de seus membro s incidem sobre a pontuaçã
o da casa com o um todo. Assim, cada ato cie
bravura ou justiça de Harry e seus amigos traz p< intos
para suas casas, mas as constantes transgressões ao
regulamento qu e são levados a cometer tiram pontos.
Q u an d o chega m á escola, os novatos são submetidos
ao (liafxm Sckioi; um chapé u falante, que . colocado
sobre a cabeça do aluno, analisa seu caráter e decreta
a qual casa deve pertencer.
\ o encontr o cie Harry co m o Chapé u
Seletor. constatamo s d e imediat o q u e o assunt o d o
b e m e d o mal nà o é tratad o de forma tã o simple s
em Hogwarts , poi s o Chapé u suger e q u e ele
poderi a ser u m grand e brux o se entrass e para a
Sonserina, a casa do s ávido s po r poder , cujo
representan t e mais famos o é precisa• m e n t e
Yoldemort . Nu m diálog o travad o d e n t r o cio
pe n sa m e n t o de Harry. o menin o se o p õ e á essa
idéia, forcand o o Chapé u a um a segund a escolha: ele é
entã o destinad o para a Grinfiné>ria, a casa do s
corajosos e ousa dos . É lá qu e se consolid a a
amizad e co m Ronny Wêaslev e ll er m i o n e Granger.
seu s constante s com • panheir o s cie aventuras .
Estes representa m a versã o infantil de seu s pais.
pois Hermi on e é uma menin a trouxa, muit o
estudios a e excelent e feiticeira, c o m o sua mãe .
e n q u a n t o Ronny pertenc e a um a tradicional família
d e bruxos , um a família nu meros a d e ge n t e
pobr e e visceralment e comprometi d a co m a
justiça e o lado bo m da magia.
Ao long o do s cinc o livros publicado s até o
a n o de 2001, a c o m pa n ha - s e o cresciment o de Harry.
assim co m o seu aprimor a m ent o e n q u a n t o u m brux o
valente, obstinad o e melancólic o . O m u n d o e a
cabeç a de Harry vã o se tor na n d o cacla vez mais
sombrios , e as person a gen s cad a vez mais
ambíguas . Ao long o da trama, ele precisa desvenda r
secretas histórias passada s de traições, sacrifícios
pessoai s e disputa s políticas. O m u n d o d o s bruxo s
n ã o cess a d e su r p r e e n d e r c o m figuras mágica s
c o m o centauros , dragões , lobisome n s e hipogrifos;
po r outr o lado . o s vilões vã o ficand o cad a ve z
mais psicológicos .
A cacla volume , o co mba t e co m as trevas vai
se misturand o mais co m os pesadelo s , a d e pr es s ã o
herói . A cad a pass o da saga, mais se mescla o
terror extern o co m o intern o de Potter. afinal ele
tem uma baga ge m triste de lembranças , um a vida
solitária de órfão. Sua reaçã o é a revolta, e esta o mov e
a reparar o mal q u e lhe foi feito. Sua compulsiv a
curiosidade é u m a p e l o q u e faz co m qu e o
acompanhemo s n o desvelament o dess e mund o
e n i g m á t i c o e d a sua história cheia de segredos . As
histórias de Harry e do m u n d o do s bruxo s
entrelaçam-s e de tal forma que sua vida termin a
s e n d o um a espéci e de eix o em torno cio qual se decid e
o destin o de todos .

Escola da vida
iÇ5$?fl principal mérit o de Rowling foi situar esse
| ^%S • u n i v e r s o m á g i c o d e n t r o da pri meir a e
;
SSJÍ3 Principa l e x pe r iê n c i a socia l d a vida
das crianças de hoje: a escola. A
escolaridade
par a as criança s c o n t e mp o r â n e a s se inaugur
a p r a t i c a m e n t e junt o c o m su a c a p a c i d a d e d e
falar, q u a n d o n ã o a n t e s . ' Hora d a e s c o l a , o
universo doméstic o é extrema me nt e reduzido : papai ,
mamãe, co m sorte algu m irmã o e. co m mais sorte ainda,
avós, lios e um q u e outr o primo .
Nossa realidad e familiar está diferente cia forma•
çã o tradicional. As geraçõe s estã o mais separadas, a
família diminuiu , temo s meno s ir m ã o s e
primos, c r e s c e m o s l o n g e d e avcxs o u tios , o u
e n t ã o mais distantes física e afetivamente cio qu e antes. Até
mesmo a vizinhan ç a já foi mai s p r e s e n te , ess e
espaç o de convívi o t a m b é m pe r d e u a vez par a a
mobilidade g e o g r á f i c a d a s famílias . Alé m d i s s o ,
a vid a em apartamento s e a reclusã o em casa
estã o justificadas pela violência da rua. Enfim, o
individualismo reina c o m o ideologia e as condiçõe s
práticas nã o favorecem sua diluição. A vida confina-se
nu m núcle o familiar reduzido , dentr o d e casamento s
passageiros .
Premida po r essas circunstâncias, a escola garante certa
estabilidad e e abriga o cern e da vida social das
crianças, tant o q u e o s primeiro s ano s sã o considerados de
socialização. E important e ressaltar essa diferença, poi
s o projeto inicial da escola era a pe n a s destinado à
transmissã o do s c o nh e ci m e nt o s formais. Hoje, suas
funçõe s s e ampliaram , n o sentid o d e comporta r todo
o m u n d o tora de casa para os pe quenos . Ali eles apren• derã o
a dividir, respeitar, espera r a vez e conquistar seu
espaço .
Excetuand o o cas o daquele s q u e vivem em condi• çõe s
de miséria, em nossa sociedad e todo s os privilégios qu e um a
família pu d e r ter, po r m enore s qu e sejam,
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o
opositore s (d a Sonserina), apont a para os diversos
caminho s q u e essa
serão da s crianças. Na escola, um a criança
descobrirá que é a pe n a s mais uma . Com a professora
do berçário o u d o j ar di m , viver á a e x p e r i ê n c i
a da s família s numerosas, o n d e n a o havia
praticament e uma mã e para cada filho. As instituições
escolares têm sofrido os eleitos dessas expectativas
familiares q u e passaram a absorver, professores e
diretore s se cansa m de ter cie colocar limites em
crianças mimada s e sem pr e pa r o para o convívio
social, resultad o dess e nov o quadro .
Roa parte da s aventura s de Harry e seu s
amigos centra-se na escola. Há um a dupl a cisão
do m u n d o entre o dentr o e o tora tia escola, entr
e o m u n d o do s bruxos e o do s trouxas. O m u n d o
mágico possui outros cenários além da escola, mas
são secundário s para a trama. F.mbora n ã o tenh a mo s
mais o hábito do s colégios internos, hoje a s escola s
forma m u m univers o q u e transcende o horário de
aulas. Na escola, os p e q u e n o s farão s u a s primeira s
amizades , ali c o m p a r t i l h a r ã o hábitos, modas ,
leituras e musicas q u e os trouxa s do s seus pais.
po r mais qu e se esforcem, pouc o poderã o
partilhar. O pai q u e tentar mostrar-se um iniciado
no mundo do s filhos, s e n d o mais adolescent e o u
criancáo que os próprios , parasitand o os amigos e
o lazer do s filhos, estará privando-o s dessa separaçã
o de mundos , do seu espaç o pessoal de socialização,
qu e e precios o para a construçã o da personalidade .
Hogwart s é mais q u e uma instituição de
ensino : por ser um lugar de iniciação, é uma
escola de vida. Por isso, é justament e na cont a
dessa e x pa ns ã o do papel da escol a q u e a
identificaçã o se insere . As questões atinente s a o
en si n o tradicional aparece m s o b a forma do s exames ,
da dedicaç ã o de I iermion e ao s livros e da s
tantas veze s q u e sua sabedori a salva a situação ,
m a s is s o n a o é a q u e s t ã o c e n t r a l . O
aperfeiçoamento subjetivo e mora l do s aluno s
ocorr e no confronto co m a personalida d e do s
professores : as personagens cresce m am parada s n a
sabedori a muita s vezes enigmátic a d o direto r
D u m b l e d o r e , n a justa rigidez d a p r o f e s s o r a
Mi n e r v a , na h u m a n i d a d e brincalhona d e
Hagrid. l a m b e m h á o s protessore s implicantes.
aletados , carreiristas, neurótico s e malucos . A sabedoria
q u e se vai obte r em Hogwarts é a
necessária par a atravessa r a cris e a d ol es ce nt e :
um passado maq uiad o de fantasias mágicas, algun s
truques , uma visã o m ui t o crítica d o s ad ul to s ,
um a relaçã o ambígua co m os limites e. principalmente ,
a curiosidad e de descobrir sobr e tud o aquil o qu e for
segredo."
A divisão em casas, assim c o m o o confronto
do s vários m o d o s de encara r a vida. mais demarc ad o
entr e os heróis (o s da casa Grifinória) e seu s
formação p o d e tomar. Lembremo-no s de qu e o Chapéu
Seletor estava dispost o a indicar para Harry a casa
do s anivistas. ou seja, os feiticeiros do mal també m se
iniciam em Hogwarts . A instituição dá os meios ,
propõ e as regras, ma s os fins d e p e n d e m de cada um.
Os conflitos político s e x t e r n o s s e r e p r o d u z e m n
a escola , poi s Yoldemort e seus seguidore s foram
derrotados, mas nã o destruídos, e o pode r está co m os
justos, mas a ameaça é constante . Na vida cotidiana de
Hany . a ameaça qu e destruiu sua família e encarnad a
pel o seu inimigo Draco Malfoy, líder da Sonserina.
filho de I.ucius Malfoy. um confess o militante do
jogo sujo, assim co m o rico e influente no m u n d o
do s bruxos . F.nfim. quant o mais se conhec e Hogwarts.
percebe-s e qu e mais se parece com a vida do qu e co m a
escola, a questã o e que . tanto no m u n d o do s bruxo s
quant o no nosso, a escola e a vida po r muitos ano s
se eqüivalem.

Velhos sábios
fpsppí ; og w a rt s t a m b é m fornec e uma
resposta a É & % outra questã o qu e muito
tem pesad o sobre i | S f á » ' o s o n i ' M X ) S ( ' o s m ; h s
jovens: a inversão d o lugar da sabedoria . Na
sociedad e contempo •
rânea , os adulto s e a tradiçã o qu e eles
encarna m parece m ter p o u c o a ensina r para
uma geraçã o de joven s cujas ousadias ,
irreverências e modismo s sã o exaltado s â exaust ã
o e repetido s pelos mais velhos.
Numa sociedad e tradicional, o passad o é a
fonte do saber, a vida se organiza a partir da
manutençã o e d o respeit o a o previament e
estabelecido. Mas desd e q u e imvncâo e rcrolitçcio
passaram a ser palavras de ordem , isso se inverteu,
e o passad o no s parece sempre encolhid o diant e da s
maravilhas qu e n o tuturo seremos capaze s de criar
em termo s de tecnologia, ciência e
co m p o rt a m en t o . F.ssa e uma realidade a ser
encarada se m nostalgias. atinai, na s sociedade s
tradicionais, o pes o da tradiçã o oprimia a vida
com toda a sorte de rituais e crendices , apesa r
de qu e confortava com a certeza d e um a verdade
, q u e descansava n o passado, no s antigo s escritos,
no s velhos.
No m u n d o de Rowling. se acredita na
tradição, os joven s p o d e m ter a ousadi a própria da
sua idade, o q u e é bem-vindo , ma s eles
demonstra m consciência cia necessidad e de apren de
r um a sabedoria ancestral, representad a po r
professore s velhos, qu e estào muito long e de ser
vistos c o m o gagá s ou obsoletos. Essa valorizaçã o
cio p as sa d o n ã o se encontr a somente na
organiza çã o tradiciona l d a escola , ma s també m
n o c a l d o d e cultur a i m a gi ná ri a e m q u e s e
banha o
Fada s n o Di v a — P s i c a n á l i s e n a s His t ór i a s Infanti s

a m bi en t e . Tal c o m o e m Tolkien, " con voca-s e i m p o n h a m respeit o para q u e possa m ser levado s gent e
um a em consum:
e n o r m e coleçã o de figuras da mitologia e cont a e, após , superá-los . É c o m o da r um salto, incapaz de qu;
ficção da para
tradição ocidental , para um extraordinári o tanto , é precis o um a bas e par a impulsionar , e gent e pobre d'
meetingie esta
um a g ra n d e salada ) no s c orr e d or e s e arredore d e p e n d e d o am adure ci me n t o assumid o e seu s pais
s da orgulhoso fora
escola. Você já penso u em ter o refeitório cie seu s pais, avós e professores. Convenhamos , é difícil lut a n d o por
invadid o po r u m Iroll. encontra r unicórnio s n o hoje encontra r gost o e orgulh o em ser mais velh o e se t poderes .
b os q u e , ter u m Ning
gigant e po r amig o e lutar contra cãe s de três apresenta r c o m o algué m q u e tem alg o a dizer. Ereud c<
cabeças , lobisomens , serpente s e aranha s gigantes , Resumindo , é mais fácil come ça r um a Romance
voar nu m adoles• Fam
hipogrifo e criar dragõe s de cênci a se m q u e esta esteja carregad a da filho. Ao contr
estimação? responsa•
A mitologia comparec e c o m o uma sabedoria bilidad e de ser o aug e da vida em termo s de gozo . ou preservaçã o
do c
passado , a mais indomesticada da s produ çõe s culturais, ainda de aponta r as tendência s para o n d e vamo s toclos. infância,'
dess
algo qu e segu e a o m e s m o t e m p o fascinand o e A idealização cia adolescênci a e n q u a n t o fase pu herdade
no s desafiando sobr e seu sentido. O esoterism o áurea c um fardo para os jovens. dei q u e
conte mpo • enfeitiça c
râ n e o dificilmente p o d e ser explicad o po r um m e nt e se
a s ó vertente, mas essa revalorização da mitologia enxi h u m a n a
(e ness e frágil
caso uma mistura de referências) parec e ir para a mesm a Órfão, mas nobre q u e só será
direção: uma crítica tanto espontâne a quant o ei inicia
ingênua â pretensã o totalizante qu e a ciência no s ários autore s têm a p o n t a d o um a naquele Boa
vende . estrutura similar â Ciih/erela em Harry part
Confiar no passad o c o m o fonte de sabedori Potter, afinal re sp o n d e aos r
a é u m alívio, poi s par a o s mai s joven s ê ^•J#*ÍS e e
' v > v e nu m b ur ac o e m b ai x o d a d e pais .
assustador escada, mas
percebe r qu e seu s adulto s espera m e n q u a n t o suport a se r maltratad o por acredita que pi
dele s o conhe ci ment o qu e deveria m oferecer-lhes. seu primo , q u e ganh a tu d o e principalment e um p o u c o importa
O s adulto s de hoje têm deixad o seu s filhos lugar no coraçã o do s pais. Nã o é errado , mas é um a seria a auto-ed
de sa m p a ra d o s . Eles saída muito
produzira m uma espéci e d e com binaçã o d e simple s para da r conta da comple xida d e desta as próprias ma
ne g aç ã o trama.
d o passad o co m obsessã o pel o futuro: vivem tentand o Além disso, para alicerçar ess e esque ma , só haveria o Poucos n
s e desconecta r d a própria origem e , a o m e s m o t e m p o início cie Ciuderela em c o m u m entr e amba s fantasia de
, histórias, ur
nutre m uma intensa expectativa d e uma ielicidad e pois . em Harry Potter. nã o há o event o do nasce r e
que reconheci• creso
o f ut u r o p o s s a o f e r e c e r . O p a s s a d o é ment o po r um olha r extern o am oros o qu e o ou prescindir
p a r a se r esquecido , o futuro e uma promess a de restitua, via casamento , â condiçã o nobr e anterior. Já qu e c n ã o cresce
gozo . traçar u m p a r a l e l o é u m a b o a f o r m a d e soz
Mimelizados co m a juventud e do s filhos, os au xi li a r n a co m p re e ns ã o , p r o p o m o s a utilização h u m an id a d e ?
pais hoj e n ã o p o d e m funciona r c o m o um a de um esquema f r e u d i a n o , qu e conté m ess a sociedad e de u
reserv a cie sabedori a qu e os auxilie a interpretar mesm a fantasia d e enjeitaclo, ma s co m outr o nosso
seu s impasses , pois ter vivido s u p õ e (ou deveria final. individu
se supor ) q u e se apren de u algo co m os erro s e Uma das fontes de empatia dessa história
os acerto s cometidos . pode
Eles quere m ver seu s filhos livres da sua conselho s o u limites serve m d e p ar â m etr o . pais
influência, c o m o s e esta fosse se r u m fard o O jove m p o d e at é esc olhe r contrariar e contem
m ui t o difícil d e carregar, esquecem-s e d e q u e seu s transgredir, mas os usará c o m o referência. Os porâneo
s não se conforma m aser compreendid a a partir de uma fantasia típica Um lugar
que
1 reucl denomino u de "Romance familiar do Neurótico'? p lP&"f#£
Nessa fantasia, imaginamo s sermo s filhos owlir j& > V "
adotivos, porqu e na verdad e pertenceríamo s a uma n:1
°~'
família em algum aspect o melho r do qu e aquela na qual
deriv
crescemos. Com isso. demonstramo s qu e nosso s pais
não estão à
'&ÀA
viver o t e m p o q u e lhes foi reservado , co m as limitações altura cio q u e sonhamos , qu e no s ama m pouco ou mal patet:
q u e esl e te m . E s p e r a m d e s e u s h e r d e i r o s e. em se u lugar, c o n vo ca m o s , em devaneios , "trouxa'
n ã o a s u c e s s ã o , ma s a font e d a j u v e n t u d e , outra família idealizada, seja de um amigo, cie uma deixa palavra
imita m su a obra de inventa
adolescência , ne g a m q u e a tendênci a natural é ficção ou aind a criada p u r a m e n t e na fantasia. um hábito adole
ser Esse
transcendi d o po r eles. Co m o mal admite m ser d e recurso ainda se presta para no s isentar de culpa relativa a ap o d o s nada ca
uma g e r a ç ã o a nt eri o r , t a m p o u c o s u p o r t a m o q u a l q u e r fantasi a e d í p i c a p e n d e n t e , afinal, Tornar-se
próprio se
passado , pois encara r seu s velho s e admitir-lhes alguma estivermos desejand o ou odiand o os progenitores. tanto ideais , de
prefe
sabedoria , lembr a q u e u m dia serã o c o m o faz, já q u e eles nã o seriam nosso s pais. caricatural da fa
eles.
Uma sociedad e precisa de velhos, mitos, monstro s e Harry acreditava q u e seu s pais morreram os joven s têm
d e regras q u e possa m ser respeitadas , ma s t a m b é num a c i d e n t e e p r o v a v e l m e n t e n ã o seria m ;
m diferentes q u e parece m
t
burladas. Os jovens necessitam de adultos daquel a família de trouxa s em q u e fora criado. mento e
que Uma curtos

258
D i a n a Li c h t e n s t e i n Cors o e Mário Co r s
o
criado . Uma

evados e m gent e consumista , interesseira e materialista, portant o


salto, par a incapa z d e qualque r tipo d e altruísmo o u imaginação ,
lar, e est a gent e p o b r e d e espírito. E m Hogwarts . descobri u q u e
orgulh os o seus pais foram bruxo s importantes , q u e morrera m
IOS, é difícil lut a n d o p o r el e e q u e j á nascer a b e m d o t a d o
velh o e se d e poderes . Ningué m desejaria coisa melhor.
izer. Freu d considerav a q u e de v an e a r co m ess e
n a a d ol es - Romanc e familiar nà o significa um a deslealdad e d o
re sp o ns a - e filho. Ao contrário , essa fantasia estaria ao serviço cia
gozo , ou pr es er v aç ã o d a q u e l e s pai s magnífico s d a primeir a
mos todos . infância," dess a image m q u e será perdid a q u a n d o a
ise áure a p ub er d a d e desfizer o efeito cio filtro mágic o amo ros o
é que enfeitiça os p e q u e n o s . Na p u be rd a d e , inevitavel•
ment e s e enxerga , c o m o n u m despertar, a condiçã o
human a frágil e defeituosa do s pais. nu m proc ess o
que só será elaborad o na adolescência , mas q u e se
inicia na q ue l e m o m e nt o .
Boa p ar t e d o s he ró i s m o d e r n o s e órfã. isso
a estrutur a respond e ao s nosso s ideais. Q u e r e m o s ser ortàos . nã o d e
olter, afinal pais . ma s d e referên cias . O h o m e m m o d e r n o
d a e sc a da , acredita q u e p o d e fazer-se po r s i mes mo , q u e o b e i r o
pouc o importa. Q u a n t o à ed ucação , a mais important e seria a
Io p o r s e u
auto-ed ucaçào . a construçã o da identidad e co m as própria s
m lugar no
mãos .
saída m u i t o
Pouco s mitos no s sã o tã o caro s hoje q ua n t o a
lesta trama ,
fantasia d e um a g er aç ã o e s p o n t â n e a , q u e significa
ó haveri a o
nascer e cresce r se m estar inserido num a genealogi a
as histórias,
ou prescindi r dela para ser q u e m se é. Afinal, Tarzan
reconh eci -
não cresc e sozinh o na selva e. apesa r disso manté m a
; o restitua, h u m an id a d e ? R o b i n s o n C r u s o é n à o refund a um a
á q u e traça r sociedade d e u m s ó homem ? São projeçõe s míticas d o
uxilia r na nosso individualism o exac erbado .
m esquem a
a n t a si a cie

istória p o d e Um lugar para os pré-adolescentes


i típica q u e
£.í\ 5 .. owling criou um neologismo para definir os
Neurótico".
J$"*,. ' náo-bruxos - imi^le. palavra provavelmente í
),s ad ot i vo s ,
*-.*;. • derivad a cie nuif>. q u e significa simplório ,
i família em
pateta, ingênuo . A traduçã o brasileira para
1 crescemos ,
trouxa deixa de fora um sentido possível enquant o
nà o estã o à
palavra inventada, corrompida.1 O neologism o evoca
->uco ou ma l
um hábito adolescente de ter vocabulário próprio e alguns apoclos
neios, outr a
nada carinhosos para definir os mais velhos.
ima obr a d
Tornar-s e adult o passa t a m b é m po r encolhe r o s
e ntasia. Ess
ideais, d e preferênci a sem ter q u e chega r a o extrem o
e
caricatural da família medíocr e do s tios de Harry. Todo s os
•ulpa relativa
jovens tê m acusaçõe s dess e g ê ne r o ao s seu s pais, que
, afinal ,
parece m ter s e t o rn a d o m e s q u i n h o s d e pensa • mento
se aitores, tant
e curto s de objetivos.
o

rrera m n u m
1 diferentes
otários, ingênuo s coloca-nos n o c e r n e d o
funcionament o adolescente . O s ad ult o s
pensa m tud o saber cio sistema qu e habitam,
A afinal sáo eles qu e o movimentam, eles têm o
palavra
"trouxa" controle do dinheiro, do s bens , da autoridade ,
é similar eles trabalham e já passaram alguma s vezes
ao pela experiência da escolha amorosa. Os
atualmen jovens sã o cheios cie intenções e tê-las é
te sinal de q u e se está próxim o cios seus
popula r
ideais. Q u e m tenciona idealiza, qu e m idealiza
"otário " ( q u
e há que r mais do qu e o medíocr e p r e s e n t e
al gu m a s of er ec e , q u e r t r a n s c e n d e r . Essa p osi ç ã o
d é c a d a s era p r e d i s p õ e a um a atitud e d e apreciaçã o
"careta" o u critica do s adultos, pais, substitutos e adjacências.
"quadr Os adultos estão vivend o a vida em seu m o m e n t o
ado") , mais serio e produtivo, os jovens estão planejando a
co m o sua e. para tanto, observam cuidados a e
qual detidament e o qu e nà o vao quere r repetir.
os
jovens 'frouxa s e patetas , ao s olho s
definem pretensioso s do s adolescentes , os adultos
algué m parece m ter perdid o o sens o crítico e
qu e é seriam incapaze s de se percebe r no pape l
tolo, ridículo qu e as vezes lazem na vicia.
qu e nà Qualque r hábito, estilo ou mania torna-se natural
o para que m se acostumou a viver co m ele. A vida
conseg vai delineand o alguns sintomas co m os quais
u e organizamo s essa estrutura mínima cie nossa
inserir- identidade, qu e os psicanalistas chama m de "ego".
se O adolescent e passa o eg o do adulto no
correta raio X. que r lhe ver a estrutura, a ossatura
ment e qu e o sustenta, tenta co mpre ende r além do
na qu e as aparências mostram. Por isso. muitas
vida vezes, os jovens parece m mais espertos,
ou no porqu e o pact o deles com seus sintomas ainda
grupo , está em negociaçã o e seu s ideais estão a flor da
qu e pele. enqua nt o para os mai s velho s o
na o ac or d o está leito e só será questiona d o
perceb e em momento s de crise da conjugalidade, do
as trabalho, do envelheciment o e do luto.
sutileza A p u b e r d a d e é o princípi o de tud o
s, ne m isso. poré m sem as facilidades da
tem o adolescência , na qual existe a possibilidad e
jogo de refúgio (ou ate m es m o cio exílio) no s laços
de fraternos e amoro sos . A história cie Potter,
corp o qu e inicia co m a p u b e r d a d e , oferec e ao s
necessá leitores dess a faixa etária um bem-vind o
ri o contat o co m uma versã o ficcional do romanc e
para familiar. Nunca será tão necessário o recurs o a
saber outra família, poi s a própri a jamais será tã o
se insuportável .
colocar Aquele s q u e tê m m e d o d a crise
n o adolescent e é p o r q u e n ã o prestara m atençã o a o
sistema. q u e s e process a po r
\ a
verdade
,
pensa r 2
o s 5
nao- 9
bruxo s
com o
tolos,
trouxas,
Fada s n o D i v a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infa nti s

trás do silêncio e da irritabilidade do púber . Fie n ã o s e conceb e co m um a identidad e pessoal


está c o n d e n a d o a viver b a s i c a m e n t e e m família, capaz d e se r protagonist a convince nt e d e u m
c o m o q u a n d o er a criança , .só q u e agor a de v an e i o mais maduro . Fntre a infância e a
e n x e r g a c o m o insuportávei s muitas situaçõe s q u e adolescência, passamos po r um períod o em qu e estamo
ante s era m banais . Ficará nervos o co m a voz do s s perdend o a capacidade de brincar e ainda
país. a presenç a do s ir m ã o s e o s c o s t u m e s d a p r e n d e n d o a organizar fantasias mais c o m pl e xa s ,
a família. Nã o te m um a identidad e constituída , po r isso. r ec or re m o s a am bo s os recursos, mas
já q u e lhe falta a liberdad e mínima para nenhu m deles está disponível de forma plena. Fntre
circular e definir os c o nt or n o s de sua s escolha s um e outro , a puberda d e encontra-s e numa fronteira
pessoais . Sua modalidad e d e com unica ç ã o co m difícil, pois nessa faixa etária ainda não se
desenvolve u a estrutura psíquica necessária para
seu s pare s esta em process o cie modificação: as
bancar a cena do s próprio s desejos, qu e
tentativas de brincai" se esvaziam, o hábit o de conversa r é
propiciaria a plena capacidad e de clevanear.
rudimenta r e está em construção , po r isso. se perde m e m
extenso s e delalhistas relatos d e situaçõe s banais . Fará pode r elabora r o tipo de fantasia de qu
Brincar para a criança e fantasiar para o adoles • e se constituem os devaneio s do s jovens, qu e significa
atingir a capacidad e de se imaginar passeand o co m a
cent e sa o recurso s cie elaboraçã o pelo s quai s o sujeito
roupagem de um luturo idealizado, é premissa que . no
entra em contat o co m seu s ideais e conflitos de
pensamento adolescente , os adultos sejam
uma forma lev e e se m m a i o r e s c o m p r o m i s s o s .
submetido s ao processo de criticas e avaliação q u e
Nã o e necessário arcar co m a s conseqüência s d o q u e
descrevíamo s acima. Se os devaneio s tivessem com
s e vive nessas cenas, pois brincand o ou d evanean d o está
o trama uma mera repetição do qu e foi a vida e
tácito qu e se está fora da realidade . Na
as escolhas do s pais, ninguém teria n e n h u m plan o
brincadeira , está se vivendo a personage m cie uma
ne m sonh o para tecer. For mais que terminemo s
trama, ê c o m o participar de uma ficção da qual se e auto
repetind o muita coisa, ou me sm o utilizando nossa origem
r e ator. ê uma fantasia vivida, mas com a
com o referência, é necessário, em primeiro lugar,
possibilidad e de sair da cena . Nas fantasias, qu e
pensar-se c o m o diferenciado do s qu e no s deram a
encontra m sua forma mais acabad a na adolescência
vicia, essa é a função cia crítica do adolescent e
, e possí\'el se imaginar protagonista de uma
aos seu s pais. São nessas críticas qu e se separa
trama na qual a personage m somo s nó s mesmos ,
o joio do trigo, o eu da p e r s o n a l i d a d e d o s
mas jamais uma dificuldade obstruirá a realização dess e
pais . Porém , na puberd a de . pais. professores ou
sonho .
seu s substitutos ainda são muito presentes .
1'ma jovem obes a pod e se imaginar
finalmente em linha para conquista r todo s os rapazes , sem I logvvarts é um lugar externo , as famílias deixam
precisar coloca r e m q u e s t ã o c o m o e p o r q u e os aluno s no trem, e eles chega m â escola
cultiva seu s q ui li nh o s a mais . sozinhos, no m í n i m o t e m p o r a r i a m e n t e órfãos , já
I m jove m
d i s p e r s i v o p o d e se imaginar u m magnat a d o q u e é um colégi o interno . Fsse espaç o é ideal
vi de o g a m e . se m qu e lh e ocorra para se respirar aliviado do ambient e familiar,
quant a
informática e admi nistra ç ã o terá pelei m en o s enquanto s e está vivend o dentr o
de aprendei- .
Na fantasia, o a c es s o ao desse s livros.
i nc o n sci e n t e e
possíve l c o m o n a brincadeira , mas . emborNão adianta a sociedad e impo r uma
a o personage m seja o própri o sonhador , ele nã o precociclade â fase pubertária , oferecend o a esse
se sent e completament e implicado, sab e q u e ê outra s p se u d o jovens pauta s de conduta , vestuário e lazer
cen a q u e nã o a real. adolescentes , isso nã o passa de um a farsa. Nesses
F claro qu e viver
totalment e entregu e a esse recurso e paralisante. casos, o hábito não faz o m o n g e , ap e n a s aplac
ningué m agüent a o abis m o qu e separa o ideal da a a angústia parental de a c o m p a n h a r um a etap
realidade . a q u e e plen a de lágrimas e silêncios. Trata-se
cie uma saída maníaca, com o resposta a uma fase q u
Soment e n a juventude , q u a n d o s e vive
e é de tristeza. Afinal, para ganhar o m u n d o ,
aind a muit o em p e n s a m e n t o e o sujeito se
tem de se ter perdid o o lar da infância.
acredit a em treinamento, é possível fantasiar tanto .
Depoi s q u e o jogo da vicia começ a para valer, os Nessa fase pubertária . uma extens a
devaneio s sã o fontes d e satisfação , m a s t a m b é m camada de silêncio recobr e os sentimento s e
d e m uit a fr u str aç ã o . Infelizmente, já se sab e co m acontecimento s da vida. Fsses jovenzinho s calam
quanto s pau s se faz um a canoa, entã o fica difícil sobr e o q u e na verdade n ã o sabe m dizer direito.
sonha r co m transatlânticos e anda r d e barquinho . Fntre os amigo s da mesma idade , p r i n c i p a l m e n t
e e nt r e a s m e n i n a s , ma s não exclusivamente ,
O púbe r ainda nã o cons egu e imaginar para si um
o segredei é o móve l e o maio r tesouro da s relações .
cenário muito diferente do doméstico . Além disso ainda
Amigo s g u a r d a m s e g r e d o entr e s i a
D i a n a Li c h t e n s t e i n Co rs o e Mári o C o r s
o
A saga n ã o terminou , and a pe l o quint o volum e
e seguirá, ma s várias pistas no s indica m um ca m i n h
o plen o de referências â mitologia britânica e t a h e z seja
respeito d e am ore s q u e sentem , ma s q u e jamais
um a reediçã o d e algun s aspecto s desse s
terã o a corage m necessári a par a pô r e m
m i t o s , principalment e no relativo às peculiaridade s da
prática; amiga s c o m p a r t i l h a m ó d i o s e m á g o a s
relativa s a o u t r a s meninas po r q u e m s e sentiram filiação.
depreciadas .
Nos grupo s dess a idade , corr e u m rio subterrâne o
de segredinho s qu e . de vez em q u a n d o , brotam ,
e o coletivo se aliment a dess a circulaçã o de
ninharia s e mal-entendidos . Além disso, é
important e ocultar do s olhos e ouvido s d o s pais o
q u e está ac o nt ec e n d o em seus corpo s e mentes , poi s
faz muit o p o u c o qu e ainda eram crianças e mal
sabe m c o m o aparece r publica• mente d o jeito q u e
estã o ficando . Segredos , rubore s e risinho s sã o a s
m a nif e sta ç õ e s p o s s í \ e i s par a um a sexualidad e q u
e tom a d e assalto essa s q u as e crianças tào
desprep aradas .
E m últim a i n stâ n ci a , o s púbere s s e
s e n t e m portadores de seus p eq u e n o s segredos
exatamente na época em qu e muitos mistérios do s
adultos se tornam acessíveis. Depois de tanta
ignorância e teorias sexuais infantis, eles finalmente
descobre m (e comenta m un s com os outros) o qu
e os adultos fazem na intimidade erótica. Sendo
assim, veremo s nessas mesma s obras que . feiticeiros ou
crianças comuns , os protagonistas sempr e serão algum
tipo de detetive, e toda a trama deverá conter algum
mistério a ser revelado. Fm Hogwarts. com o na
puberdade, o segred o tem muito significado, nã o e â toa
que o importante Ministério da Magia do m u n d o
do s bruxos tem c om o sua principal atribuição a
preservação dessa sociedad e mágica oculta do s
trouxas.

Acerto de contas com o pai


p s » ! antasiar outra filiação també m permit e
que
M -"Ri; O jovem bu s q u e figuras de
identificação no
•íStLlii/fíi mun<
- l ° e x t e r n o a o lar. P o r e m , s e
é o m o m e n t o de olha r o núcle o familiar de
fora.
també m é a q ue l e e m q u e o jove m descobrir a
q u e carrega em si as marca s de sua origem . Mesm o
estand o com seu s interesse s voltado s par a fora de
casa. terá d e fazer algu m ajuste d e conta s c o m
sua tradição , religião e g ru p o étnico . O fato de
H a r n ser órtã o nã o o livra de dar conta de o n d e veio. e
essa é um a questã o posta para todo s nós : que m sã o
nosso s pais e o q u e ele s n o s legara m ? li m a
n o v e l a c o m e s s e n ú c l e o temático sempr e terá
sucess o garantido .
inocent e e outr o ma u e a r d i l o s o , responsáve l
pela mort e do primeir o.

Es p ec u la n d o u m p o u c o , p od er ía m o s pensa r
q u e a orige m de Harry seria c o m o a do Rei
Arthur, q u e teve, de certa forma, doi s pais.
Arthur foi e n g e n d r a d o a partir de um a figura
cie pai tendida .
A hisrória é a seguinte : Arthur era filho
da bel a Igraine, casada co m Gorlois. Duqu e cie
Tintagel. Ocorr e q u e o rei 1'ther Pendrago n era
ap ai x o na d o po r Igraine e. co m a ajuda do mag o
Merlin. se fez enfeitiçar para assumir a forma
de (íorlois. Com essa image m falsa, e n g a n o u
a d u q u e s a Igraine , q u e acreditav a esta r
encontrando-s e co m seu m a n d o , e dessa uniã o
resultou Arthur. Afinal cie q u e m el e é filho?
Para a mãe . a image m d o h o m e m qu e a
tecundo u era d e seu legítimo e desejad o marido ;
mediant e o feitiço, no entanto , a alma era de
outro . De q u e m é ess e corp o q u e gero u
Arthur? De certa forma ele e filho do inimigo,
do rival
([ue logo em seguid a veio a ser o
responsáve l pela mort e do marid o da mãe .
Co m o Potter. o futuro rei Arthur t a m b é m
cresce u órlào . poi s loi levad o p o r Merlin
para ser criad o em outra casa. ignorant e da sua
origem , co m forma de garantir sua boa
formação.
Hércules , o heró i da mitologia clássica,
també m tinha um a origem semelhante : sua
m a r Alcmena foi enga nad a po r Zeus . co m o
m e s m o estratagema, num a noite em q u e o marido .
Anfitrião, estava fora. Anfitrião volto u na man h ã
seguint e e enge ndr o u nela mais um filho.
Assim, ela acabo u te n d o uma gravidez
dupla , s e n d o q u e cad a b e b ê tinha um pai
diferente. Graças a isso. Hércule s tem um mei o
irmã o g ê m e o mortal, um pai terren o e um pai
celeste.
A princípio, Harry tem apena s um pai. Tiago
Potter. mas co m o está sempr e às voltas co m
seu inimigo, o assassin o d e se u s pais , est e
ex er c e um a pr es e n ç a constante , c o m o uma
sombra qu e o envolve. Vários indícios no s
mostram qu e Harry carrega consigo tantas coisas
do inimigo quant o de seu pai. Usa o mes m o tipo de
varinha de Yoldemort. é ofidioglota (fala a linguagem
da s cobras ) c o m o os de sua estirpe e. po r
pouco , o Chapé u Seletor nã o o destina para a
casa Sonserina. â qual pertence u seu
perseguidor. O feitiço destinad o a matá-lo,
q u a n d o ainda era bebê , impregnou- o com as
características de q u e m o lançou, e assim
noss o herói fica marcad o co m algumas qualidade s
de Yoldemort. A cicatriz na testa, qu e o identifica
tanto quant o seu nome , é o resto dessa operaçã o de
batism o de fogo. De sangu e ou não , os dois sã o
pais. pois legam marcas indeléveis em sua
história.
Na saga de Potter equacionam-s e e
u n e m doi s aspecto s complementares : temo s a
duplicaçã o da figura do pai, entr e um q u e é b o m e
Fada s n o D i v a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infanti s
nest e cas o artificial) d e q u e s e necessita para
crescer. Afinal, ao partirmos, precisamo s mais d o
q u e reminiscência s infantis, temo s d e levar
Acrescenta-s e aind a a colocaç á o dest e outr o
perso • co n os c o u m acerv o d e referências culturais
nage m patern o n a figura d o vilão. " co m a s quai s organizamo s um a identidad e
Para utilizar uma referência mais recente , própria .
basta evoca r a saga cinematográfica, escrita e
dirigida po r
(ieorg e Lucas, Guerra nas listre/as. 'Lambem
ness a história, o maio r inimig o do heró i
resulta ser se u p r ó p ri o e i g n o r a d o pai ( n u m
c o m b a t e final entr e ambos , ficamos sabend o qu e o
jovem l.uke Skywalker é. na verdade , filho de
Darth Yader, o vilão).
Por mais est ra n h o q u e pareça , t a m b é m
ness e aspecto , o herói de Rowling abr e um
cami nh o para identificações co m a vida de seu s
leitores. Afinal, um do s aspecto s da filiação na o e
lidar co m identificações qu e na o escolhemos , mas qu e
constatamo s ter h er d a d o de nosso s pais? I larrv pod e ama r
a seu pai sem reservas, poi s tod o ó di o fica
canalizad o par a Yoldemort . O m u n d o e p e q u e n o
para 1 larrv e Yoldemort. Lssa briga só terá fim com
a mort e de um . poi s os dois estã o e s p e l h a d o s
ness e ó d i o m ú t u o . Odia r faz part e cio conjunto
confuso d e e m o ç õ e s q u e dedica mo s a noss o pai.
atinai ele c o rival pel o amo r da ma e e po r
isso n ã o ve m nad a mal a idéia cie eli m i ná -l o
. Se lh e dedicamo s esses sentimento s na o muito
nobres , nad a mais natural q u e p e n s e m o s q u e ele
que r o mes mo : livrar-se cio filho na primeira
o po rt u ni da d e . Portanto, s e p u d e r m o s livrar n o s s o
pai d o pes o dess a rixa. e sc o lh e n d o c o m o
inimigo um vilão paterno, estaremo s isento s cia culp
a pelo s m a u s s e nti m e n to s dirigido s àquel e q u e
no s gero u e protegeu .

Mundos mágicos
ada mais c o m u m na infância q u e habitar
os m u n d o s mágico s q u e a literatura
oferece .
.,%, Ger alm ent e esse s m u n d o s constitue m
u m acerv o q u e se levará junto através da
adoles •
cência e talvez para o resto da vida. Yide o seu
mais meritório e popula r representante : a saga
O Senhor dos Anéis, de Tolkien.
Tolkien criou u m m u n d o d e ho m e n s e
rapazes , o n d e o s de s afi o s d a c o r a g e m e d o
c r e s c i m e n t o a c o n t e c e m n u m luga r marcaclameni e
diferent e d o cotidian o cios leitores e q u e beb e
seu s c o m p o n e n t e s imaginários na mitologia européia . A
o pe ra ç ã o de seu s livros é bem-feit a porqu e
pe r mi t e o trânsit o pel a tradiçã o (aind a q u e
O Senhor dos Anéis deu origem a um a brincadeira
adolescent e : os Role-Playing Games (RPG), ond e
se dramatiza m lutas e p r oe z a s n u m cenári o chei o
d e p e r s o n a g e n s inspirada s ness e imaginário . Pntr e
u m gr u p o d e iniciados n o conh eci men t o d a saga,
vivem- se aventura s e lutas semelhant e s ás cia Terra
Média. Gom o se vê. o m u n d o mágic o é tant o um
bo m livro, q ua n t o um lugar para brincar.1"
Rowling consegui u repetir essa proeza , levando
em cont a q u e hoje se cresc e mais cedo . Seus
livros sa o para um públic o mais jovem qu e os de
Tolkien
(geralment e lido na adolescência) . As personagen s dela s ã o
púberes. u m a faixa etári a q u e s e a mpliou ,
periclitante entr e um a infância q u e nã o se resigna
a termina r e q u e tem seu território invadid o po r
uma série de pauta s de condut a e vivências
adolescentes. A adolescência hoje é mais qu e uma
faixa etária,
e u m ideal social . Nã o h á a du lt o q u e n ã o
queira conservar o corpo , o entusiasm o sexual e a
possibi• lidade de escolha s do s 20 anos . Isso faz cia
juventude um fenômen o q u e penetra na infância enqu ant o
grande expectativa. Por isso. as crianças sã o convidada
s a se vestir e a consumi r objetos culturais próprio s
desse temp o qu e está po r vir. e as famílias tanto
valorizam quant o aplaude m tais iniciativas.
Independentement e disso, a puberdacle já marca
presença , enquant o essa fase em qu e a infância declina,
para horror de um sujeito q u e ainda é minúscul o para
freqüentar o mund o lá fora. mas qu e começ a a se
incomoda r co m seus pais e n qu a nt o eles ainda reinam
absolutos sobr e sua vicia. Atentos aos brotos cia
adolescência qu e nasciam
na sua criança, os adultos elevaram a puberdacle
(ou pré-aclolescência com o costumam chamar) ao slatits
de uma etapa da vida qu e dev e ser levada em conta, com o
qual as crianças de 9 a 12 ano s sei tiveram a ganhar. Lm de
seus bon s lucros é Harry Potter. qu e importa todos os
benefícios do imaginário á maneira de Tolkien para seu
momento , tend o gent e cie sua idade com o protagonista.
Além disso, esse s universo s mágico s para uso
do s adolescent e s e p ú be re s representa m um
espaço de realização possível para uma nostalgia
mítica, algo q u e no s permitisse acess o a um a
sabedori a vinda do passad o e Lima supost a co n e x ã o
co m nossa s raízes. Grescemo s sem muit o contat o co
m as geraçõe s que no s precedera m e sem nota r a
continuida d e qu e existe entr e o qu e somo s e a história do s
nosso s antepassados. Isso n ã o é exclusiv o dess a
geração , outra s já não se r e c o n h e c e r a m na tradiçã o
e na religião do s pais e escolhera m crença s
alternativas.
A religião n ã o vive grande s dias, os
fundamen- talistas sim. e isso é mais um indício da crise das
religiões
Di a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Co r s o
lugar de origem. Mas c o m o n ã o p o d e m o s ficar
se m
d o q u e d e u m avanç o da s crenças. S ó pela
força d o fanatismo e obscurantism o é possível,
atualmente , uma religião ganha r adeptos . Conto hoje
esta cad a vez mais difícil acreditar em qualque r coisa, a
magia p o d e entrar no imaginário infantil no lugar
de.ssa religião perdida . Afinal, é um a magia pela outra, e
a magia tem vantagens, é u m substitut o qu e
ap r ox i m a a s cultura s p o r se r universalista. qualque
r criança, das mais variadas origens culturais, pod e
experimenta r nela a nostalgia de uma religião qu e
já nã o lhe serve mais.
A outra vantagem da magia é nunca ter sido
um pensament o dominante , sempr e esteve ã margem, nã o
e responsabilizada po r no s legar uma herança difícil,
ela sempre foi um conhecimen t o subterrâne o recusad o pel
o eslciblisbmeiil, a adversária eterna das religiões.
Com o nunc a foi u m sistem a d e p e n s a m e n t o
totalizad o e coerente, pod e ser moldad o hoje ao
noss o bel-prazer. Na verdade, qu a n d o falamos magia,
estamos colocand o no mesm o caldeirão conhecimento s
antigos estruturados, como a astrologia ou a
alquimia e tod o um conjunto disperso de mitologias
e superstições medievais, enfim, tudo qu e é prê-
científico. Kste e o saber de Hogwarts, um
renascimento âo m u n d o anterior â ciência moderna .
Entre a ciência e a religião, a autora encontra um a terceira
via: o medievo , q u a n d o as dua s eram confundidas.
Na medida em q u e a magia é um conjunt o de
práticas objetivas, pelas quais é possível dominar e
produzir os efeitos no desconhecido , ela se
apresenta com o uma forma ad e q ua d a de
religiosidade para nossa cultura pragmática e co m
a tendênci a a instrumentalizar os saberes, afinal
ela nos tira da passividade da religião.1, P o d e m o s
arriscar ainda outra hipótese , q u e seria
a generalizaç ã o d e u m f e n ô m e n o verificável
clini• camente e m certo s jovens: existe nele s um
a gr a n d e dificuldade e m estuda r a história h u m a n a ,
poi s co n h e • cê-la fere tant o sua sensibilidade , quant o
seu narcisis- mo. Toma r e m p re sta d o u m univers o mágic
o passadista significa alg o c o m o "eu n ã o t e n h o
nad a a ver co m todos esse s fatos
c o n s t r a n g e d o r e s d a historia d o s homen s e n ã o
q u e r o sabe r mais nad a a respeito". A história
h u m a n a e , par a usa r um a metáfor a velha ,
porém precisa, um rio de sangue . F.la no s traz
mais motivos d e vergonh a q u e d e orgulho .
Esses joven s resistente s ã históri a
g e r a l m e n t e possuem u m ganch o específico po r
o n d e sã o pegos , particularidades obscura s e
sofridas da vida de seu s antepassados estão
engajadas em sua recusa, tais c o m o escravidão,
genocídio s diverso s ( c o m o culpado s o u vítimas);
além disso, é difícil també m enfrentar q u e seu s avós
migraram porqu e era m un s morto s d e fome n o
história , entã o al g u n s j o v e n s usa m a
ficção par a preenche r a real história da qual .
queiramo s ou não , somo s o resultado. Nã o se trata
de um delírio, mas de fantasias sobr e u m passad o
h u m a n o meno s cruel, mais heróic o ou mais
distante de nós. Claro qu e elas são c o m o um a
prótes e malfeita, ma s pode m pr ee n ch e r
temporariament e uma busca pel o passado .

A sociedade em Hogwarts
- <£»•»?•» prim o trouxa de Harry e um menin o obeso ,
ft J** mi m a d o e desleal, o qual . junt o co m
sua
-^ .*• , família, permit e a Rowling um a ácida
crítica a o individualismo e ã
sociedade de
consu mo . Seu lugar em casa é a caricatura do
majestoso e ilimitado e s p a ç o q u e a s famílias
c o n t e m p o r â n e a s mais favorecidas têm reservad o a
seu s filhos.
Outr a crítica da qua l o br u xi n h o e
porta-vo z encontra-s e no co nt e ú d o voltado para
a questã o da tolerância. As várias procedência s do s
bruxos se prestam para levantar questõe s raciais, e nisso
I larry e definitivo: o herói é intolerante para com os
intolerantes. Defende q u e todo s o s bruxo s sa o iguais,
independentement e d a c o nd iç ã o d e seu s
nascimentos : s e seu s pais seriam bruxo s puro-
sangu e o u não , p o u c o importa. J á sua opiniã o
sobr e os trouxa s e benévola. sao un s otários,
mas nã o deve mo s odiá-los ou destruí-los.
Os X-Man. herói s mutante s do s
quadrinho s de autori a d e Stan Lee. d e b a t e m -
s e co m a s m e s m a s que stões : deve m devolver
a hostilidade da qual são alvo po r sere m
diferentes? Nessas histórias, o elitismo é mai s
de sc ar a d o , ele s sa o d e tat o superiore s ao s
outros , pois . enquant o mutantes .
desenvolvera m capacidade s qu e o s torna m
mai s dotado s qu e o s h o m e n s co muns .
Provavelmente , essa superioridad e sobr e o s outro s
h u m an o s , qu e o s podere s empresta m ao s mutantes .
serve c o m o co mpe nsaç ã o pelos intensos sofrimentos
qu e esse s mesmo s don s lhes impingem, ta n t o
p r o v e n i e n t e s d a e x c l u s ã o social, c o m o da s
dificuldades de control e dessa s forcas. Por outro
lado. os mutante s fazem a ligação com um aspect o cie
Potter q u e dev e se r ressaltado : o do m mágico
se revela de tal forma par a seu portado r q u e se
impõ e a ele co m o algo q u e dev e ser controlado , cujo
us o prático depe nd e de um a iniciação e de certa
força para dominá-lo. E difícil imaginar melho r
metáfora para as "mutações" e os fenô meno s q u e
aco mete m o corp o e a mente das c r i a n ç a s
quand o chega m ã puberdade : desd e o
cresciment o de pêlo s e volumes , ã saída de líquidos
e sangu e d e seu s órgão s genitais, à s
transformações d a
Fada s n o D i v a - P s i c a n á l i s e n a s História s Infa nt i s
saga q u e fornece um bo m índice. O trech o
é o seguinte : Harry Potter, em mei o a sua s
an d an ç a s pel o castelo tle Hogwart s
voz. ao s calore s e rubores . Ilaja magia para (era d e s e espera r q u e essa escola fosse
domina r tanta mutação . sediad a n u m
Com o cm toda a ficção qu e se apoia em
nossa historia passada . Marry Potter carrega traços
de uma nostalgia do m u n d o do ancién redime, qu e
parece uma sociedade mais fácil de decodificar, em qu e
que m é bo m é bom . que m é nobr e o e desd e sempre.
l;m (iiienii nas Estrelas, po r exemplo , reúnem-s e as
dua s pontas : o passado e o futuro. Para tanto, se
projeta uma tecnologia avançada dentro de um cosm o de
relações sociais pratica• mente feudais. Nao estamos em
um terreno novo. quas e nã o há cont o de fatias sem
reis. rainhas, príncipes e princesas, mas nos contos
tle fadas o aspecto social ná o e tão relevante quant o nessas
c< instruções pseudomíticas. Afinal, naquele s cenários,
a sociedad e na o importa, e apena s pan o de fundo, os
reis estão a ser\ iço tle projetar os pais engrandecido s tia
primeira infância.
\ e s s a s histórias de mitos artificiais, utiliza-se
um uni vers o tle fácil compreensão , se m
n u a n c e s . D e q u a l q u e r fo r m a , e interessant e
qu e s o c i e d a d e s democráticas, em qu e a
mobilidade social e a tônica, forjem histórias nas
quais o qu e vale e o nascimento . Embora a
história tle Rowling milite em prol tle qu e o berç o
nã o faz o bruxo , há a revelação tle um do m
inat o q u e diferenci a a q ue l e s q u e nasce m entr
e o s trouxas, mas sao apto s a lidar co m as
torças ocultas.
\ â o tleixa tle ser algum tipo tle determinism o de origem.
P ar ec e q u e a s s o c i e d a d e s aristocrática s
náo
perderam seu fascínio. O próprio Potter nasceu
bom . embora lute com algumas ambigüidades, jamais
supomo s q u e ele vai muda r tle lado. Ele apena s busca
aperfeiçoar- se. mas ele já está pre-pronto. basta a
escola e umas avent ura s e m q u e o s d o n s j á
h e r d a d o s possa m s e desenvolver. Esse e o aspecto
mais fraco e conservador da aventura, mas c bo m
levarmos em conta qu e c uma obra para que m mal saiu
tia infância, e o alcance político delas talvez na o vá mais
longe tio qu e isso.

A psicologia de Rowling
ifsnrç*- ao é tia nossa, alçada discutir o valor literário
» í 6g*"- da a u t o r a , e n q u a n t o p s i c a n a l i s t a s

»- \& & p o d e m o s julgar a q ual i da d e de um a
obr a
íiarr ** * ' • V , , , -
• ,
pel a p r o f u n d i d a d e psicológic a q u e ela
e capa z tle atingir e sobr e c o m o ela oferece
e s q u e m a s q u e c ol oq u e m as criança s a pensar. Quant o
a isso. há um a passage m do primeir o livro cia
castelo maravilhoso) , desc obr e num a sala determinado
objeto , q u e depoi s ficamos s a b e n d o tratar-se tle uni
espelh o mágico , d e n o m i n a d o Espelho de Ojesed.
Potter corria pela escola, fugitivo tle alguma das
peripécia s q u e tinha a pr o nt a d o e ocult o po r uma capa q u e
o tornava invisível. Q u a n d o entro u nu m aposento, uma sala
tle aula a b an d o na d a , de parou-s e com um objeto qu e
parecia discordar tio contexto: um majestoso espelh o tle
moldur a dourada . Ainda invisível, ele viu o reflexo de
sua image m e tle uma s de z pessoas , que log o conclu i
se re m s e u s pai s a c o m p a n h a d o s dos parente s bruxo s
tle linhagem paterna , tle qu e m crescera afastado, aquel a
família qu e perde u co m a morte tle seu s pais. De
dentr o tio espelho , uma mulher, sua mae . lhe
a b a n a \ a simpaticamenl e . Triste, constatou qu e "Ida e os
outro s so existiam no espelho" . E correu para chama r seu
amig o Ronv. q u e viu n o espelho uma cen a
totalment e diferente: estava refletido seu futuro c o m o
chefe tios monitore s e capitã o tio time tle quadribo l
tle Hogwarts .
Entalhado no alto tia moldura tio espelh o lia-se:
"Não mostro seu rosto, mas o desejo em seu coração",
estava escrito tle trás para a frente, para ser lido
num espelho, assim co m o Ojesed é a palavra "desejo"
escrita ao contrário. Objetos mágicos costumam ser instrumentos
para ajudar o herói a vencer um desafio ou atingir um
objetivo, tláo poderes . Mas com os espelho s é diferente, eles
sempr e revelam algum tipo tle verdade. Às vezes ele e
um dupl o qu e no s surpreend e em pleno ato de
observar nossa alma. O fato de Harry encontrar-se com o
espelh o pela primeira vez q u a n d o estava invisível
ressalta qu e o reflexo na o será tia casca, mas tia essência
imaterial tio herói. Esse tipo tle espelho , com o o da
bruxa de Branca de Neve. permite acesso a uma verdade qu e
está inalcançãvel para o sujeito. O espelh o faz com as
personagens o mesm o qu e com a palavra ojesed-desejo. tlesinv
erte, para qu e aquilo qu e já estava escrito pudesse ser lido. só
dependi a de ser decifrado.
Q u a n d o o m e st r e Du m bleclor e descobri u os
menino s fascinados com as imagens qu e o espelho lhes
oferecia, esclareceu: ele "mostra-nos natla menos tio que os
desejos mais íntimos, mais desesperatlos de nossos
corações". E nesses detalhes qu e a riqueza tio texto de
Rowling se mostra, ness e caso, oferece às crianças um
objeto mágico para apresentar o qu e se oculta de forma mais
enigmática na nossa alma, os nossos desejos. Nisso a
psicanálise está de acord o co m a autora, é neles que
reside nossa verdad e interior, o maior segred o de cada um
sào os desejos qu e se desnuda m quand o as aparências s e
t o r n a m i n v i sí v e i s . Is s o é o q u e podería m o s
compreende r co m o u m espelh o mágico psicanalítico.
Di a n a Li c h t e n s t e i n Cor s o e Mário Co r s
o
Han y é um herói melancólico , a perd a do s
pais é incontornável , e ele, de tant o em tanto , se
Han y é movid o pela busca de compreende r abat e
sua origem e de encontrar lugar num a linhagem, já seu
amigo Rony, oriund o de uma família de muitos
rapazes, todo s lutando po r u m lugar a o sol n o
m u n d o do s baixos , precisa vencer. O qu e ambo s vêem
é a tarefa concluída, é o reflexo do ideal qu e se constrói a
partir de um desejo. Kowling parec e saber qu e tod o o
desejo tem uma fantasia qu e o representa, e esta
qu e encontramo s em nossos devaneio s de sucess o
ou vingança, é esta qu e move o sujeito em
determinad a direção . O espelh o lembra q u e a
escol a é a me s ma , os desafio s e as aventuras
tamb ém , ma s cad a pers onage m tem um a tarefa
distinta na gincana da vida. K essa tarefa, inscrita nos
mais secretos esconderijos da mente , o verdadeir o
motor q u e leva o sujeito adiante . Ao m e s m o tempo ,
o espelho paralisava os heróis, pois ficavam
fascinados com a miragem do seu desejo e na o
se movia m no terreno concret o para consegui-lo.
O espelh o teve cie ser removid o para devolver nosso s
protagonistas a acào . Outr o exempl o psicológico
interessante é a con•
cepção d e depressã o qu e encontramo s e m uma d e
suas criaturas. C) monstro mais aterrador do universo
potteriano é, até agora, a figura do Dementador. Os
Dementadore s são os guardas da Prisão de A/.kaban. qu
e comparece m à escola caçand o um prisioneiro fugitivo, e
suas presenças passam a ameaçar també m os alunos. Mies
são um perigo principalmente para Hany. qu e se
revela mais sensível que os outros á sua aura
maléfica.
Fies parece m parentes do s Xazgul. descritos em O
Senhor dos Alieis, qu e també m são espectros qu e
trazem o mal pela sua simples presença . Os
Dementador e s roubam a forca vital, sugam as boa s
lembranças. Depois de encontrar um deles, uma
pessoa se sente com o se nunca mais fosse ser feliz
na vida. Ser influenciado po r eles assemelha-se a viver
nu m pesadel o do qual nã o se consegue acordar. Mas é
preciso esclarecer qu e eles nã o oferecem um conteúd o qu e
nos taça sofrer, apena s criam o clima para qu e fiquemos
reduzidos a nossa pior face. Os De me ntador e s
corporificam Lima novidad e no
mundo do s monstros . O terror psicológic o já é c o m u m
nos quadrinhos , cujos heróis seguidament e s u c u m b e m
sob o p es o de seu s pesadelo s , e. na literatura, sempr
e foi uma matéria-prim a preciosa . Mas agor a
estamo s falando de sere s terríficos qu e se
populariza m entre- os mais joven s e p o d e m ser
usado s po r eles c o m o a cara conte mporâ ne a d o
m e d o . Até agora, q u as e todo s os monstro s conhecido
s mach uca m , cortam , clecepam, engolem e mata m
sua s vítimas, sã o diferentes deste s cuja arm a é a
tristeza.
s m u nd o s mágicos do s conto s d e fadas, ond e tud o
é reversível, inclusive a morte . O
pel o pe s o d o passado . Por isso. q u a n d o o s
Dementa • dore s ron da m Hogwarts . ele é o mais
afetado, a p o n t o de desmaia r na presenç a
deles. Afinal, o herói tem p ou c a s defesa s
contra esses sugadore s d e boa s lem• branças ,
sua s recordaçõe s boa s sao exíguas. O fato é
q u e temo s um a excelent e imagem d a
depressão , tão consistente , principalment e para
um públic o jovem, q u a nt o o melho r livro de
psiquiatria.
Para sintetizar: a depr essã o e uma
tristeza q u e no s engolfa, q u a n d o o s laços
afetivos (nossa s boa s le mbra nças ) q u e no s
segura m c o m o nu m a teia s e desfazem . Kntáo
sobreve m o vazio e caimo s no chão . Os
psicanalistas n ã o teriam muito a objetar a
Kowling, é claro q u e acreditamo s qu e em
geral o dementa do r está na nossa própria
trincheira, ou seja. q u e a maio r fonte de do r
p r o \ é m de nó s mesmos . A arte é um a forma
prévia de sabedoria , escreve-s e so b forma
de literatura aquil o qu e sabemo s d e forma
intuitiva, nã o teé)rica. Hoje ne m as crianças
ignoram os perigo s da tristeza. Melhor assim,
c o n h e c e n d o o s contorno s d o monstr o fica
mais fácil combaté-io .
l : m a da s pr eo c up a çõ e s recorrente s do s
críticos dessa s ficcòes indaga se estes m u nd o s
mágicos nã o induze m um bovarism o nas crianças.
Ou seja. o temo r de q u e a fantasia atrapalh e a
assimilação da realidade po r facilitar o escap e
da criança, por preenche r sua cabeç a co m
sonh os , po r lazê-la habitai" mun do s imagi• nários .
Acreditamo s q u e e uma p r e o c u p a ç ã o co m
p o u c o fundamento : as crianças, fora as
gravement e perturbadas , sabe m a diferença entr e
a ficção e a rea• lidade , ou . n u m nível mai s
simples , distingue m a brincadeira da realidade .
Nao e necessário ficção, ne m fantasia, para a criança
ir a outr o mun do , basta começa r a brincar co m
qualque r pe da ç o de macieira ou pedrinh a q u e
encontr e n o caminho .
De q u a l q u e r forma, essa e um a
p r e o c u p a ç ã o desnecessária quant o a Kowling, já
qu e o seu universo é de uma magia com me no
r alcance inclusive qu e a do s conto s de fadas.
Para esta autora, a magia existe, mas ela nã o
p o d e tudo , e a maior parte das conquistas tem cie
ser feita co m muito esforço, se nã o fosse assim, os
protagonistas na o estariam numa escola, por exemplo .
l : m a prova dessa s boa s dose s d e realidad e
q u e s e misturam á fantasia nesse s livros é a
recorrência da morte, a qual. com o no noss o m undo ,
nã o tem conserto. Um do s eixos da trama é a
assimilação dolorosa
da mort e do s pais de H an y e nã o há magia
capaz de ciar jeito nisso,1 ' ele terá de sofrer,
conformar-se e ainda encontr a r forças par a segui
r vivendo . Ora , isso no s distancia e m muito do
Fada s n o Div a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infanti s
alimentand o
a s t u a n c a s b r a s i l ei r a s c o m f ol cl o re s
alheios. O
u n i v e r s o d e Ro wlin g n ã o p o u p a a s criança s engi a t a d o e q u e o s conto s d e fadas traze m todo s
d o s inevitáveis sofrimentos advindo s do esse s
crescimento . As personagens , co m o costuma
acontece r co m o s adoles • centes, se machuca m
muito, e isso nã o acontec e sem dor, ne m sem
conseqüência . \ a enfermaria d e Hogvvarts. u m ferimento
grave p o d e até ser reparad o com poçõe s mágicas, mas
o doent e passará po r um tratamento sem muita
anestesia e co m remédio s be m amargos.
Há mais um exempl o interessante da
psicologia d e Rowling . u m pouc o mai s
i n c l i n a d o p a r a a antropologia. O arquiinimigo de
llarry. c o m o vimos, e Yoldemort. mas ningué m fala
seu no me . apena s dizem
"rocê-scibe-queni" c todo s sabe m de q u e m se trata.
Hssa atitude supersticiosa e motivada pel o medo .
pois falar seu nom e nã o e de bo m agouro . A
autora retoma um uso . o u melhor, um a evitaçá o
q u e era c o mu m e m tempo s passados, quant o a
pronunciar o no m e do diabo. Acreditava-se que . caso
talássemos seu nome . ele se sentiria convocado .
Ainda hoje os dicionários conservam uma quantidad e
incrível de circunv olucbe s qu e eram feitas para
evitar dizer o nom e do "coisa-ruim". Claro qu e nã o
necessariament e a s crianças sabe m disso, mas com o
todo s já passamo s po r uma fase infantil em qu e
acreditávamos na magia da s palavras, somo s
sensíveis ainda, já qu e temo s uma matriz
supersticiosa a esse respeit o q u e basta sabe r
convocar. \ o lunclo. ainda acreditamos qu e as
palavras têm um pode r sobr e as coisas e vice-versa,
com o se uma ligação mágica existisse entr e a palavra e
a coisa.1" A autora soub e desperta r uma certa
magia qu e ainda no s habita.
1-ntim. sa o e x e m p l o s ilustrativos. O livro
está rechead o de situações com o essas, para cada
aventura
(e elas são be m emocionantes ) ha tuna
contrapartida psicológica. As personagen s de Rowling
participam de lutas, correrias e sustos, com o nu m bo m
filme de ação. mas nã o são po r isso personagen s
plana s ou práticas, sempr e há a hora da duvida, do
impasse ou da ressaca psicológica. Certamente o
leitor q u e conheç a o texto d e liarrv Potter
poder á evoca r outra s c o n e x õ e s o u exemplo s
similares ou melhore s qu e os qu e convocamo s para
ilustrar essa qualidad e do texto.

Um castelo no coração do Brasil


gjfpiX| ana s críticas locais a llarry Potter dize m
q u e mW$B ele seria exótic o ã cultura
brasileira, essas f&^ém histórias d e bruxo s n ã o
utilizam eleme nto s da noss a tradiçã o e estaríamo s
brux o em formaçã o e co m problema s tle
identidade, ma s um cios p o m o s a ressaltar e a
valorização do pa ss a d o . O vilão dess a série é
elementos , agora criticados, e ningué m se posiciona um empresári o da construç ã o civil (Douto r
contra . Mas, principalmente , essa crítica desconhec e Abobrinh a ) q u e que r destruir o castelo em n o m e
um fenômen o chamad o Castelo Rá-Tim-líum, tio progress o e do lucro que um arranha-cé u lhe
uma séri e de TV (dirigid a p o r Ca o H a m b ur g er . na proporcionaria . Outra vez o novo e o velh o se
TV Cultura, d e São Paulo ) q u e . graça s a o seu enfrentam , s en d o q u e a tradição nessa série
sucesso, originou filmes e um a série de livros. Ficou sem pr e vence , e a m o d er ni da d e é ridicularizada
no ar nas T\ s F.ducativ as durant e ano s na décad a de 1990, como na caricatural família de trouxa s de Potter.
sendo visto e revist o po r tod a um a g e r a ç ã o d e
crianças brasileiras. Ganh o u vários prêmio s internacionais, Mas a s crítica s q u e s e g u e m n es s a
além d o recon heci men t o local, q u e n ã o prové m tle direção, diferenciand o o imaginári o autenticamen t
outra fonte q u e o entusiasm o da s crianças, responsávei s pela e local do estrangeiro , n ã o no s esclarece m o q u e
consagraçã o pública cie um programa , q u e passava seria uma ficção mágica nacional . P o d e m o s ter
fora d o circuit o ch a m ati v o e óbvi o da s sauda de s tle Monteiro Lobato e q u e m n ã o tem? O
emissoras comerciais. K qual era o mot e central dess e fato é q u e ele foi capaz de coloca r o centr o mágic o tio
programa? Tratava-se cie um castel o mágic o situad o Brasil no interior, na zona rural. No Sítio tio Pica-
em pleno centr o cie São Paulo . O hem i principal era Pau Amarelo , os estrangeiros c o m o Hércules, o
Nino. nada meno s q u e um aprendi z tle feiticeiro, um Cat o Félix, Peter Pan e o Pequeno Polegar só
menin o tle podia m comparece r se passasse m pelo crivo rigoros o e
500 anos . o q u e para um brux o n a o é muita coisa. exigent e da bonec a Kmília ou tia memória culta
A trama do Castelo Rá-Tim-Bum era mais simples, da av ó Don a Benta. De qualq ue r maneira, nào
poi s o program a tinha c o m o p ú bli to -a l v o crianças deixa tle chama r a atençã o q u e Lobato tenh a recorrido
men ore s q u e os leitores tle Rowling. A histé>ria é uma a essa legião estrangeira de persona gen s para
plataform a o n d e sã o inserido s q u a d r o s paralelos e colorir sua s aventura s rurais. Sabemo s q u e ess e
variados , s e m p r e b u s c a n d o a e d u c a ç ã o n o sentido recurso nào se torno u necessári o po r falta tle
amplo , d es d e ensina r a conta r até noç õe s tle higiene monstro s e seres m á gi c o s autenticament e
pessoal . De qu alque r forma, a historia guarda algumas nacionais," ' c o m o o saci-
semelhança s co m o brux o inglês. Nin o també m é um

266
Di a n a Li c ht e nst e i n C o r s o e Mári o
Co r s o
leitor uma visão fantasista da vicia, típica da
infância, ofere•
pererê, q u e ele explor a tã o bem . O s gregos ,
norte - americanos e e u r o p e u s q u e visitam o sítio
o fazem p o r q u e ne m Lobat o ne m a s
c r i a n ç a s p o s s u e m fronteiras, sã o onívoro s e tod
a a ficção q u e seja cie qualidade é bem-vind a
em sua s terras.
O Brasil m u d o u de lugar, a cidad e é agor a
noss a realidade. C o m o qua lque r País. somo s Iruto
d e uma fusão cultural, n ã o existe autoctonia .
so m o s o resul• tado d e um a confluência q u e nã o
terminou . Influên• cias externa s se g u e m m o l d a n d o
noss o País. e nt ã o po r que devería mo s fixar-nos
nu m moment o particula r dessa identidad e
mutante? Nino. o heró i do castelo, embora nascid
o aqui . é de uma família q u e ve m de outro
país . r e p r e s e n t a n d o to d o s o s imigrante s q u e
fizeram o Brasil e, ness e caso . São Paul o (n ã o é à
toa que ele tem um n o m e q u e soa italiano). As
crianças identificam-se co m Nino . poi s ele é com o quas
e todas : urbano, d e sc en d e nt e d e imigrantes q u e
trouxera m sua cultura e esperança s par a este País.
Acreditamos q u e a primeira pergunt a q u e
deve • mos fazer a um a obr a de ficção infantil é o
q u a n t o ela e m p re s t a às criança s elemento s
par a qu e s u a imaginação e inteligência sejam
estimulada s e n ã o qual país de orige m const a em seu
passaporte . De qualque r forma. Nin o é a p ro v a
q u e Harr y Potte r o u a lg o parecido be m poderi a
ter nascid o no Brasil.

Notas
1. Contemporâne o ao sucesso de Potter. houve
outra epidemia bruxesca (especialmente entre as
meni• nas). Trata-se de uma série de revistas
chamada W.I.T.C.H. (originalme n t e criada s
pela Disne y italiana, espalharam sua influência
pelo resto do mundo) , qu e retratava em
quadrinhos os revezes de um grup o de cinco
feiticeiras pré-aclolescentes. Assim com o no s
livros de Kovvling, para essas mocinhas, as
descobertas relativas ao mund o mágico se mesclavam
com os impasses próprios da idade, como as
transformações físicas, os primeiros amores, o mau
humo r em casa e o tema do s segredos. A
partir de 200S, as bruxinhas tornaram-se
também desenh o animad o de TV.
2. "A fantasia potteriana nos oferece, com uma mão, o
prato da bruxaria e do misticismo, e com a
outra nos dá uma dose forte (e crítica) da realidade
atual. A série não arranca o leitor do solo firme da
realidade para conduzi-lo ao reino da fantasia, mas
quase ao contrário - a história compartilha com o
responsabilidades, realmente tal ato pod e representar
uma espécie de abandon o num momen• to crítico.
Em termos do jogo, ou do jogo da vida,
cendo-lhe um caminho seguro para transitar
dela para a dura vida do mund o teen". In: FISCI
IF.R. Luís Augusto. Os Sele Segredos de Ilany 267
Potter. Revista Superinteressaule. Fcl. Abril. n.
196. janeiro de 2004.
3. "Hogvvarts está dividida em quatr o
Casas, qu e t u n c i o n a m com o equipes :
I.uta-lufa, Corvinal, Sonserina e Gritinória. Os
nomes originais guardam conteúdo s qu e a
tradução nã o tinha com o manter: Huftleput traz
a palavra bit//, 'acesso de cé>lera': em Ravenclavv.
lemo s rareu. 'corvo", e clavv, garra':
Slytherin começ a com sly. 'astuto' ,
fingido": e Giyffindor pod e ser associado ao
grito, animal com asas de águia e corp o de
leão que protegia um tesouro . Aliás, em
quas e tod o o nom e a autora embute um
segredo a ser desvendado", ldem.
-l. Consideramos a fase pré-escolar como escola,
afinal, ela sé) é pré no nome. V. a escola para aquela
fase da vida. e mesmo as creches possuem
hoje uma forte inclinação pedagé>gica. c seu
modelo cie funcionamento é a escola ou uma
preparação para ela.
5. Numa leitura psicanalítica de Ilany Potter.
Alfredo Jerusalinsky e F.da Tavares tecem uma visão
elogiosa e interessante cie I Iogvvarts: "l"ma
escola que . em lugar cie ensinar os princípios do
positivismo técnico, transmita os modo s e as
vicissitudes do laço social. Que. em lugar de
preencher todos os buracos, deixe espaço e
mistério suficiente para o surgimento da
curiosidade. Que permita a dúvida, a vacilacão e
ate
0 absurdo para dar âs crianças a chance de
responder de um mod o singular, com o
mestres criadores e protagonistas ativos. Que
ensine como e quais os efeitos de nossa
imaginação sobre a realidade, nos fazendo
responsáveis dessas conseqüências, embora elas
escapem ao nosso controle". "Harry Potter e
a Magia cia Vida". Caderno cie Cultura, /on/rt/ Zero
Hora.
1 cie dezembro de 2000.
6. Fstamos referindo-nos ã trilogia O Senhor dos
Anéis. cie J.R.R. Tolkien. qu e tem extensas
comunidades de fãs. deu origem a jogos e
embalou as fantasias de mais de uma geração.
O surgimento recente dos filmes reacendeu a
paixão por esse mund o mágico e suas
personagens. A 'ferra Média cie Tolkien é
morada dos devaneios de um público
jovem, mas mais velho do qu e os leitores de
Kovvling.
~\ VCinnicott. em um belo texto chamad o A
Imaturi• dade do Adolescente, escrito em 1968.
comenta esta tendência, qu e pelo jeito não é
de hoje: "quando, com o fruto de uma
política deliberada, os adultos transferem
Fadas n o Diva - Psicanális e n a s História s Infantis
Rio ele Ja ne ir o : C o nt r a p ont o . 2004 . p. 105.

v o c ê abdic a j u s t a m e n t e q u a n d o o a d ol e s c e n t e
vai t e mata r (el e s e refer e à s u p e r a ç ã o d o s pais) .
Al gu é m fica feliz? Se m d ú vi d a , o a d o l e s c e n t e n ã o
Fica: é el e q u e a gor a s e t or n o u o e s ta bl is hm e n t .
Tod a ati vi da d e i m a g i na t i v a , t o d o o i m p u l s o d
e imaturidad e s e p e r de m . A rebeliã o nã o
faz m a i s s e n t i d o , e o a d o l e s c e n t e q u e ga n h a
o j o g o m ui t o de pr e s s a lo g o é a p a n h a d o e m su a
própr i a ar m a dil h a ; te m q u e s e t o r n a r d i t a d o r ,
te m que fica r a g u a r d a n d o s e r a s s as sina d o —
se r m or t o n a o p o r u m a n o v a g e r a ç ã o ele s e u s
próprio s f i l ho s , ma s po r irmãos. " In:
WIWICOTT . 1). \\\ . 'indo Começa em Casa.
Sã o Paulo : Martin s Fonte s . 1989. p. 125
8. "A i m a g i n a ç ã o da cria nç a e n t r e g a - s e ã taref
a de libertar-se d o s pai s q u e de s c e r a m e m su a
estima , e d e substituí-lo s po r outr o s , e m gera l d e
u m a pos iç ã o social mai s elevada. " In: FR1T I).
Sigmunel. Romances
1'amiliarcs. O br a s C om pleta s , voi . IX. p. 2-ta. Rio
de
Janeir o : l m a g o Kditora. 1 9 8 - .
9. " \ a ve r d a d e , t o d o e s s e esfor ç o par a substitui r o
pai ve r da de i r o p o r u m q u e lh e e .superio r n a d a
ma i s e d o q u e a e x p r e s s ã o d a s a u d a d e q u e a
crianç a te m tio s dia s felizes d o pas sad o , q u a n d o o pai
lhe pareci a o mai s n o b r e elos h o m e n s e a m ã e
a mai s linda e a má v e l da s m ul her es . " . kleiii , p .
2a0 .
10. O s tradut or e s brasileiro s d o livro d e Samdja.
Angel a Ramalh o Viana e Antôni o Monteir o Guimarãe s ,
faze m outr a pr opos t a d e t r a duç ã o par a o t e r m
o miigí>lc. s uger e m q u e : " o t e r m o inglê s e
pr o va ve l m e n t e u m a de f or m a ç ã o ele mugger . q u e
significa 'agressor' , e te m de s s e m o d o c on ot a ç õ e s
b e m m e n o s br a nd a s q u e a e xpr e s sã o (trouxa )
escolhid a pel a tr a duç ã o brasileira". In: SMADJA.
Isabelle . Ilarry Pol/er: as Razoes do Sucesso. Rio
de J ane ir o : C ont r a po nt o . 20(M. p. 9.
11. Isabelle Samdja e nr i q u e c e aind a mai s esta
que s t ã o , m e n c i o n a n d o a surpreendent e
m u l t i pl i c a ç ã o d a s figuras p a t e r na s , n a o a p e n a s
num a divisã o m a ni - queista . m a s atravé s d e
vária s figuras: "Tiag o Potter. D u m bl e d or e , Sirius
Black. I lagrid. I.upin. S na p e e o pr ó p r i o
Voldemort.. . H s u r p r e e e n d e n t e q u e ta nt a s pe s soa
s reivi ndi que m a p a t e r n i da d e d e Harr v Potter. ou
o pa pe l ele um pai ou ele um protetor . Que se nt i d
o atribuir a ess e e s ti l ha ca m e n t o elas figuras
paterna s ? Além ele permiti r explica r a ambivalênci
a ele senti • m e n t o s e x p e r i m e n t a d o s p o r u m lilh o
e m relaçã o a o p a i , ess a divisã o decert o
tradu z a s d i f e r e n t e s e xper iê nci a s q u e u m a
crianç a poele ter d o valo r d e se u pai.". In:
SAMDJA, Isabelle . Ilany Potter- asRazòes do Sucesso.
12. Os jogo s ele RPG tra nsce nder a m ao imaginári o ela Terra Média
e hoje há variante s ele toelo o tipo , desele os cie franc a
i ns pi r a ç ã o e m T ol ki e n . c o m o Dungeons c - Dragons.
at é out r o s m u n d o s a i n d a mai s sombrios, habita d o s
p o r vampiros , l obi s om e n s e outr o s tipos de c o nde na d o . Para
sabe r mais , ver: RODRIGIFS . Sônia. Roleplayíng Carne e
a Pedagogia da Imaginação no Brasil. Rio ele Janeir o :
Hertrand Brasil. 2001 .
13. A magi a guar d a c o m a religiã o o fascínio e o respeito pel o
de s c o n he c i d o , e l e va d o ã c o n d i ç ã o d e entidade, m a s
compartilh a c o m a ciênci a a objetividad e com a qua l
enfrent a ess a ignorância : "A essênci a ela magia e a
d o m i n a ç ã o elos p o d e r e s supra-sensívei s , escreveu Prazer , ao
p a s s o q u e a e s s ê nc i a ela religião e o a b a n d o n o ,
a entre g a de si, o o b s é q u i o , a submissão á su a
s ober a n a vo nt a d e . As religiõe s monoteístas - j udaís m o ,
cristianis m o e islã - leva m isso ao pé da letra. Na o e
à toa q u e a palavr a 'íshlam ' que r dizer justa me n t e
s ubm i s s ã o' . A religião , noutra s palavras, é o conj unt o
ele' pratica s q u e n o s permite m motivar o s s e r e s s upr a -
s e n s í v e i s . d o t a d o s n ã o apena s d e p o d e r e s s o br e -
h u m a n o s , ma s t a m b é m ele persona• lidad e e v o n t a d e
livre, e n q u a n t o a magi a transforma o s d e u s e s e m
es cr a v o s elo homem . Convoca-os e c ontr ola - o s
autoritariamen t e em funçã o elo objetivo elo client e
pa ga nt e . Fia n ã o or a n e m suplica: submete- o s a o p o d e r
ela for m ul a m á gic a " . In: PIFKFCCI, A ntôn i o Flávio. .1
Magia. São Paulo : Publitolha, 2001, p . S T .
1 i. "K nqua nt o a m o r t e é completa me nt e - banalisada e
des uma ni zae l a n a s d e m a i s obra s , em Rowling ela é
vi vi d a com o um a c o n t e c i m e n t o excepciona l e
trágic o : e u m m o m e n t o gr av e q u e te m repercussões
pr of u n d a s na psicologi a ela criança . Além disso, a
m o r t e s e m p r e toc a u m a p e r s o n a g e m que , n o
rom a nc e ' , er a m u i t o i n di vi d ua l i z a d a e conhecida
p e J o s l e i t or e s , ele m o d o q u e el a provoc a uma
e m o ç ã o e u m a tristez a reais. " Fntrcvista concedida p o r
Is a be ll e Smaelja. a ut o r a de "Ifarry Potter: as R a z õe s
elo Sucesso" , no C a d e r n o Mais1, da Folheie São Paulo.
2 12 2 0 0 1 .
15. Muito s p ov o s tivera m essa s crença s , especialmente
referente s ao s n o m e s próprios . Alguns povos davam
n o m e s secreto s ás pes s o a s par a q u e os inimigos não
s o ube s s e m e n ã o tivesse m e nt ã o p o d e r sobre a pessoa. .
10. Par a c o n h e c e r um p o u c o elo be.stiário nacional ver:
CORSO , Mário . Monstruário: Inventário d
e Entidades Imaginárias e de Mitos Brasileiro.
Porto Alegre : T o m o Editorial , 2002 .
Capítulo XIX
AS CRIANÇAS-ADULTOS

Peanuts, Mafalda e
Calvin
A infância remanescente na vida adulta - Neurose na infância -
Separação ele mundos entre adultos e crianças - f-.laboracao adulta de sofrimentos iníanti
Idealização da autonomia e passividade infantil -
Kxposicao cias crianças â violência a ao sexo na mídia - Adultos-criancas
- Ilusões pedagógicas - Refugio na fantasia - Solidão na infância -
I )csidcalizacao da paivnlalidade
primeir o personage m de um a tira de jornal, viu a luz
no m e s m o ano em q u e as luze s se a p a g a r a m
te aqui analisamo s par a a primeir a
narratixas d i r e c i o n a d a s , pel
o meno s intencionalmente ,
para as
yi crianças. O gr u p o de qu e
no s o c u p a r e m o s a segui r
possu i um a diferença : sã o
história s e m quadrinho s qu e até
p o d e m ser consu mida s po r
crianças, mas seu sucess o ocorr e
princi•
palmente junt o ao públic o jove m e adulto ,
Charlie
Brown (Minduim) , Mafalda, Calvin e seu tigre H o b b e
s
(Haroldo ) s ã o p e r s o n a g e n s q u e circula m en tr e
a s gerações falando para todo s néxs.
As histórias em quadrin ho s n ã o nascera m para
o públic o infantil, su a ac e s s i b il i d a d e visav a
mai s ã popularização entr e os adultos . Yelloiv Kid. o
projeçã o cinematográfica , em ÍSOV Km a m b o s
os casos, trata-se d o nasciment o d e uma nova
linguagem , q u e além de privilegiar a narrativa através
de imagens , empresta-lhe s movimento .
Álvaro Mova descrev e assim esse fenômeno :
"A aproxi maçã o entr e cinem a e quadrin ho s é
inevitável, poi s o s doi s surgiram d a p re o cu p aç ã o d
e representa r e dar a sensaçã o cie moviment o . Os
quadrinhos , c o m o o p r ó p r i o n o m e indica , s a o
um co n j u n t o e Lima seqüência . O qu e faz do
bloc o de imagen s uma série é o fato de q u e cad a
q ua d r o ganh a sentid o depoi s de visto o anterior; a
açã o contínu a estabelec e a ligação entr e as
diferentes figuras. [...1 Não era mais a fixação
pict(')rica d e u m instante ; agor a s e observav a
um a narraçã o figurada.""
C o m o vemos , h á um a mudanç a d e
linguagem , ou seja, a narrativa ocorr e através de
seqüência s de imagen s q u e , po r sere m de fácil
assimilação, foram se
Fada s n o D i v a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infanti s
c o m o filósofos precoces . Por isso cab e a
pergunta : o q u e elas têm de infantil?

constituin do c o m o uma form a d e


c o m u n i c a ç ã o globalizada , universal.
Nesse sentido . Sônia Bibe Luyten. citand o
u m desenhista , sintetiza d i z e n d o q u e "a ilustraçã
o é o esperant o d a aldeia global"." O s quadrinho s
p os su e m a peculiaridad e d a difusã o m ui t o
acentuada , sã o nú mer o s impressionante s , poi s
a l é m d e diverti r g e r a ç õ e s dif er e nt e s , p e n e t r a m
e m cultura s m u i t o distintas. Através da publicaçã
o c o m o tiras de jornal, a s per so n ag e n s d o s
q u a d r i n h o s foram pioneira s n a globalização .
Muitas histórias e m quadrinh o s iniciaram
c o m o idéia e obr a de um auto r (o u de um a
dupla) , ma s escapara m a seu controle .
Personage n s importantes , c o m o Flash Gordon ,
Fantas m a o u S u p e r - H o m e m . tiveram sua
permanênc i a garantida po r um a sucessã o d e
roteiristas e desenhistas , q u e foram impin gind o
certas modificaçõe s no s personage ns , t o r n a n d o
sua trajetória m e n o s autoral. No cas o da s três tiras
sobr e cuja i nt e r p r e t a ç ã o t r a b a l h a r e m o s a seguir ,
ha um detalh e e m c o m u m : nunc a ningué m ,
alé m d e seu s a ut o re s , es cr ev e u o u d e s e n h o u
u m traç o d e su a s p e r s o n a g e n s . A s
p e r s o n a g e n s d e Ch ar l e s Schul z viveram co m
ele po r mei o sécul o e se aposentara m co m a
mort e de se u criador . Já Malald a e Calvin
durara m um a década , es g ota n d o e m seu s
autore s o filão da relaçã o entr e o criado r e a
criatura.
F.mbora nest e Capítul o no s referiremo s a
tiras q u e c o n h e c e r a m e n o r m e p o p u l a r i d a d e a
partir d a segund a m etad e d o sécul o XX. nã o devemo
s esque ce r d e q u e s u a s personagen s Ia/c m
part e d e um a important e linhage m d e
crianças , qu e s e m p r e marcara m forte presenç a
na história do s quadrinh os , já d e s d e o final do
sécul o anterior. 1 Nossa idéia é examiná-lo s de
uma forma diferente tam bé m : a ênfase será n o qu e
isso p o d e revelar d a relaçã o entr e adulto s e crianças:
e ainda , da infância q u e sobreviv e dentr o do s
adultos .
A s person agen s q u e escolh emo s para no s ocupa r
sã o crianças espertas , as quais, em sua s
conduta s e problemas , refletem o melho r e o
pior da condiçã o adulta : a lealdade , a
inteligênci a , a n e u r o s e e a mesq uinhez . F m
sua compl exida de , r es p o n de m mais pela infância
q u e o s adulto s ainda carrega m dentr o de si e
pela criança q u e gostaria m de ter sido . do q u e
retratam a realidad e de um a infância
pr o pri a m e n t e dita . Fssa s personagen s sã o
perspicaze s e a u t o - reflexivas. d e s n u d a m e
descreve m os absurdo s da vida c o t i d i a n a , a
insensate z da noss a e x i s t ê n c i a , funcionand o
p r o d u z e m um a identificaçã o direta d o público
infanti l co m a s personagens , com o a
Turm a d a Mônica . ma s Charlie Brown .
A infância ga n h o u dignidad e no século XX, não é Malalda e Calvin sào diferentes : a ligaçã o se dá
mais um a etap a da vida da qual convé m escapar-se co m a criança q u e gostaría• mo s de ter sido . Apesa r de
rapidament e , para, e n q u a n t o crescido , enfim viver a já termo s saíd o da infância, p o d e m o s mante r um a
verdadeir a e melho r condiçã o huma na . Ao contrário, relaçã o idealizad a e um canal abert o para ela
hoje se consider a q u e a infância merec e ser vivida via essa s p e r s o n a g e n s .
intensamente . Fsses quadr inho s sã o uma das formas de
reapropriar-s e da infância perdida , desse tempo q u e
n ã o teríamo s usufruído o suficiente. Nas sábias
palavras cio persona ge m Calvin, "a infância é curta ea PEANUTS
maturidad e é eterna".
Não é o m o m e n t o de lazer uma crítica a quanto y^^yÁ raticament e ao long o de tod a a sua
isso p o d e ser outra cilada. De fato esse s quadrinhos sã carreira.
t os
o p r e s o s a o espírit o cie se u t e m p o e , portanto, $' '. ?3 ' -^ ano s até sua morte , 50 ano s
revela m as nossa s mais altas esperança s quant o ao depois.
q u e possa ser extraído da nossa passage m pela infância. Nesses ' »-iá£$ ° n o r t e - a m e r i c a n o C h a r l e s M.
quadrinho s , já n ã o som o s tã o passivos como éramo s Schulz d es en h o u os Peamils.' Surgidos
q u a n d o p e qu e n os . Na pel e dessa s personagens, somo s crianças em tiras de
espeitas , respond e mo s ao s adultos com uma petulância qu e os jornal em 1950, ele s ch e ga r a m a ter su a
deixa constrangidos , apontamos os furos da família e da presença gara ntid a em 2.600 p e r i ó d i c o s , em 75
sociedad e e até sofremos. Mas dessa vez colocamo s em países . Os Peamitssão um a turma de crianças,
palavras noss o pesar, o que já é um a forma de controle alguma s em idade p r é - e s c o l a r e o u t r a s q u e já
. freqüenta m a escola primária. Algumas
pe rs o na g e n s surgiram com o bebês e fora m
O univers o d o s q u a d r i n h o s é vast o e portanto
crescendo , o ut r a s n a s c e r a m ao long o da
difícil de ser classificado, ma s um d o s seu s grupos,
história, ma s n en h u m a delas chego u até a adolescência.
q u e d e s cr e v e r e m o s agora , poderi a ser caracterizado
"O m u n d o do s Peanut s é um microcosmo,
com o aquel e qu e conté m personagen s que
uma p e q u e n a c o m é d i a h u m a n a par a t o d o s o s
c h a m a r e m o s d e criancas-adulto. " Fxistem quadrinhos q u e
bolsos".

270
Di a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Co r s o
d e constatar a quanta s a nd a seu lugar no amo r
alheio , ele comet e at é p e q u e n a s grosserias e sarcasmos .
Afinal,
afirmou Umbert o Fco. K difícil acreditar q u e se
p o d e encontra r tanta sabedori a sobr e a alma
h u m a n a e m histórias q u e têm c o m o cenários caixas d e
areia, cancha s de jogo. salas de aula e as
depen dência s cia casa. de onde a presenç a do s
adulto s toi totalment e banida . Os acontecimentos nã o
sa o mais empolgante s d o q u e o s cenários: conversa
s n o quintal, jogos d e beisebol , dama, pega-pega .
e s c o n d e - e s c o n d e , a hor a d o lanch e n o recreio,
visitas q u e as crianças fazem uma s ás outras e
brincadeira s co m pandorgas . Na ausênci a
d e acontecimento s relevantes , o s verdadeiro s latos
sã o subjetivos: cada um a da s personagen s luta po r um
lugar ao sol, ou seja. na estima de seu s pares, en q ua n t o
toda s elas revelam suas fraquezas e o mei o particular de
dribla- las ou de sucumbi r a elas.

Um elenco de pequenos neuróticos


>* ' 't reu d revelo u q u e a sexualidad e fazia
part e
!_ „*"í da infância, muit o ante s de encontra r
um a
\- i e x p r e s s ã o prática n a vida adulta .
Charle s
Schul z talve z n ã o e n d o s s a s s e iss o
( s u a s pe rs o na g e n s at é s e a p a i x o n a m , m a s sã o
p ue ri s e platônicas), ma s talvez concordari a co m
Freud q u a n t o ao fato de q u e a n eu r os e l a m b e m
existe na infância. muito ante s d e encontra r sua
forma adulta.
Schulz escreve u e desenho u as
personalidad e s de suas p e rs on a ge n s ao long o de
SO an o s e lê-lo é constatar q u e a graç a p ro v e
m d e reencontra r sua s especificidades confirmada s
em cad a nov a tira. Vamos descrever br e ve m e n t e o s
principais:
O personage m eixo. Charlie Brovvn (Mincluim)
é um neurótico de primeira, vive em busca de
aceitação por parte d o s amigos, ma s só faz trapalhada s
e receb e em troca t o d o o tipo de maus-tratos emocionais ,
já q u e é continuament e criticado e ridicularizado.
F.ntre os amigos da turma , ele n ã o se ressalta pela s
qualidades , mas pelo s defeitos. P ou c o lúcido, se u
pape l principal e de otário, poi s na s relaçõe s
sociais se comport a de forma p o u c o i n t e l i g e n t e .
F.le é c e g o t a n t o p a r a compreende r as sutilezas
cios relacionament o s q u e o favorecem ( n ã o pe rc e b e
q u a n d o gosta m dele) , q ua nt o as qu e o prejudicam ,
po r isso é alvo constant e da s brincadeiras e
principalmen t e d o s d e s m a n d o s cie sua amiga Lucy.
Portanto , a solidã o e o desprestígi o de que e l e
s e queix a sã o proveniente s també m cia
in ad e q ua ç ã o c o n s t a n t e d o s s e u s at o s . N o afã
pa re c e q u e é o únic o sofredor d o grupo , pel o
men o s é assim q u e el e sente .
Na s p a l a v r a s d e F c o : "Fracass a s e m p r e .
Sua solidã o torna-s e abissal, se u c o m p l e x o d e
inferiori• dade , esma gado r (colorid o pela suspeita
contínua, qu e t a m b é m ating e o leitor, d e q u e
Minduim na o tenha n e n h u m com plex o de
inferioridade, mas seja realmente inferior). A
tragédia é q u e Minduim na o é inferior. Pior: é
absolutamen t e normal . F. c o m o todo s nos"".
O própri o Schulz deliniu assim o seu
persona• ge m principal: "Podemo s entende r po r qu
e o s outros se i n c o m o d a m c o m Charlie Brovvn.
F.le os chateia p o r q u e qu e r muit o ser a m a d o .
Creio qu e iis vezes ele s estã o justificados po r tratá-
lo assim. Charlie Brovvn é muit o vulnerável"".
C o m o n ã o poderi a ser cliterente. Charlie
Brown n ã o é c o r r e s p o n d i d o no amor . e ess e
ierrité)rio do c or a ç ã o é tã o árid o c o m o o s
outro s e m sua vida. Brovvn n ã o enxerg a q u a n d
o a s menina s próxima s s e e n gr aç a m po r ele . ma
s cultiva um a paixã o platônica p o r u m a m e n i n
a q u e vi u p o u c a s v e z e s e q u e c ert a m e nt e
n ã o noto u a sua existência, a "menina d o s
cabelo s vermelhos" . Aliás, a s paixõe s nessa turma sã o
s e m p r e paralelas , nunc a s e encontram . Fnquant o
as a m iz a d e s s ã o possíveis , o amo r é sempr e
acima cie t u d o u m a s o l it á r i a f an ta si a
p e s s o a l . Iss o é v er d a dei r o relativament e á s
crianças, cujos amore s sã o se m p r e mai s discursivos
q u e factuais. mas també m n a o deix a d e laze r part
e d a vida do s adultos, cujas fantasias s ã o s e m p r e
mai s desenvolvida s qu e o s atos. Por outr o lado . a
inteligência e a sensibilidade
dessa s p er s on a ge n s despert a m para narrar sua
solidão e sofrimento. Aqui, na descriçã o do s
fracassos, Schulz c on se g u e um a profundida d e
inaudita para as histórias em q ua dr in h o s . Charlie
Brovvn é o existencialismo possível na linguage
m do s quadrinhos . F esse é um d o s grande s
ganch o s co m o s leitores. A identificação co m el e
no s ajuda a suporta r a miséria de cada dia, a no ss a
p o r ç ã o cie inf el ici d a d e cotidian a q u e n ã o
conse gui mo s elidir. Assim c o m o o protagonista,
seus amigo s sã o perso nage n s complexa s e tampouc o
estão livres d e um a bo a dos e d e sofrimento
psíquico.
Lucy. a amiga de Charlie Brovvn, iniciou a
história c o m o um a p e r s o n a g e m mai s jove m
qu e ele. mas descobri u muit o ce d o q u e podi a
exercer seu poder feminino de chantagear e
submeter os meninos. Fia é fria e calculista, parec
e nã o ter dúvidas de que os fins justificam os
meios. Sua autoconfiança é tão excessiva qu e
seguidamente a leva ao ridículo, mas ela não parece
importar-se co m isso. poi s rarament e se dá
conta e
Fada s n o Di v a — P s i c a n á l i s e n a s Hi st ó ri a s Infa nti s

portanto pouc o se abala. Km contrapartida, ela també m freqüentemen t e para um certo sadismo . Em geral, seus
padec e das dores de um amo r impossível por um menin o cliente s sae m mai s arr as a d o s do qu e
qu e a considera burra e desinteressante. F aqui qu e seu entraram , F. i nt er es sa n t e q u e n u m p e q u e n o
pode r encontra um limite e é nesse pont o qu e ela quebra a m u n d o desse s s e introduz a a caricatura de um
cabeça, incapaz, de compreende r a situação qu e escapa ao dispositivo de escuta: o consultóri o
seu controle. Assim com o Charlie Brown. e obcecad o pel psicoterápico . N e m o n d e deveria m encontra r
o pape l de perdedor . I.ucy c ofuscada pela c o m p r e e n s ã o isso é possível, poi s não há c o m o
sua suposição de sucesso. A seu modo . ambo s sao imaginar algué m mais cruel e incapaz de empatia do q u
incapazes de decodificar o qu e discorda de suas e I.ucv. Ficam assim sublinhada s as dificuldades de-
auto-imagens. comunicaçã o : as persona gen s sabe m qu e nunca
() d o n o do coraçã o de I.ucy e Schroecler. sa o ouvida s pel o interlocutor ne m q u e este
um admirador incondicional de Beelhoven. cujas seja um
sinfonias ele executa virtuosamente em seu pianinho de "profissional da escuta".
brinquedo. Através dessa paixão musical, ele mostra a tênu e Apesar cie crescido. I.inus nã o consegu e abrir mão
fronteira qu e separa a entrega artística da desconexão . d a com pan hi a d e se u "coberto r d e
Ide so se importa com o qu e tange à música clássica, segurança", que ele esfrega no rosto e e
nem seque r se interessa por outros instrumentos ou també m seu calcanhar-de- a q u i l e s . p o i s p r i v a d
estilos musicais, e monotematico. Embora possa o del e eqüival e a dei xa d o totalment e
participar de algumas outras atividades da turma e de sa m p a ra d o . Espécie de Woocly Allen dos
seja um bo m amigo de Charlie Brown. ele realmente /'camits. I.inus tem uma condiçã o altament e
só reage q ua n d o a questã o literalmente encosta em seu neurótica, mas assumíclamente sábia, suas tiradas
pianinho. F sobr e ele qu e Lucv se debruça e derrama filosóficas sobre a vida sã o a c o m p a n h a d a s cia
seu soliloquio apaixonado , o qual só produ z em sucçã o do polegar e da d e p e n d ê n c i a cio cobertor ,
Schroecler exasperação, pois se vê interrompido por c o m o s e n ã o houvesse contradição . Além disso,
sentimentos qu e nã o compartilha e muito meno s a inteligência é a única forma cie diminui r a forca
compreende . Por isso. escorraça a menina e todos do autoritarism o da irmã. que encontr a nel e a
aqueles qu e o despertam para as outras coisas d o vítima de plantão .
mundo . Patty P e p p e r m i n t (Patt y P i m e n t i n h a ) é
Schroecler nã o parec e ter o mesm o uma menin a ativa, excelent e esportista, mas po u c o
sofrimento ne urótic o d e seu s amigos , poi s el e esperta no q u e diz respeit o a outro s assuntos .
e n c o n t r o u u m refúgio: circunscreve u seu m u n d o à Patty é tão desligada qu e praticament e na o
música clássica e torno u to d o o resto se m pe rc e b e qu e Snoopv e um cão . ela o cham a cie
importância . H uma saída excêntrica, mas viável, "aquel e garot o estranho". Tant o é esportivamen t e
uma da s alternativas possíveis dentr o dess e painel clã ativa, q u an t o incapaz de se mante r acordad a
alma human a q u e Schulz traça. As características da s q u a n d o o assunt o é estudo . Ela revela um aspect o
pe rs o na g e n s do s Peanut s n ã o funcionam co m o u important e da nossa socieda d e veloz c ativa:
m p od e r peculia r a cad a um . u m dom . sa o co rr e m o s e no s o c u p a m o s tant o porq u e nao
mais q u e nad a tentativas, a maneir a q u e cada suporta mo s ficar parados .
um descobriu de lidar co m a vida e seu s percalços. F As dificuldades cie atençã o de Patty vã o além do
com o se o auto r dissesse: invent e seu jeito, estereótip o esportista-burra . ela e ligada no
afinal n e n h u m funciona direito... que diz respeit o a seu c a m p o de interesse e
I.inus e o irmãozinh o de I.ucy. provavelmen t sab e liderar os amigos . Tã o monotemátic a c o m o
e o mais culto da turma, mas també m o mais Schroecler, ela evoca um a faceta ligeirament e
explicitamente frágil e hipocondríac o . Ele inclusive patológic a em alg o consi• de ra d o tã o normal,
acredita solrer cie pantopbobia. q u e seria o medo saudáve l e integrad o co m o são os e s p o r t e s ,
de Indo. Na verdade , ess e diagnóstico foi obtid o p r i n c i p a l m e n t e n o s Estado s Unidos . A o m e s m o
po r I.inus num a espéci e de consultóri o tempo , essa p e r s o n a g e m derrub a uma das
psiquiátric o q u e sua irmã I.ucy tem. Trata-se d e ilusões de Charlie Brown. o qual consider a que .
uma barraquinha . igual àquela s d e vende r limonada , caso se entend ess e co m alguma bola, seu
o nd e , po r uma módic a quantia , ela distribui conselho sucess o estaria garantido . Pimentinh a entende-s e
s ao s amigo s necessitados . Fsse serviço é feito co m o muit o be m com ela, mas só co m ela. Obvi o q u e
auxílio d o autoritarism o d e Lucy, q u e sempr e diz esta é mais uma sutileza q u e ele nã o perceb e be m e
o qu e lhe con vé m , ma s també m ela oferec e a seu s continu a idealizando aquilo e m q u e falha.
clientes a nata d o sens o co m u m , u m discurs o Patty aproxima-s e do fracasso de Charlie
vazio q u e os instiga a vence r seu s problemas , mas q u e quando o assunt o é a feminilidade, poi s ela
desliza freqüentemente pass a um a image m masculina .
Po r ex e m p l o , numa ocasiã o um garot o ve m reclama r q u e n ã o jogaria no

2^2
Di a n a Lic h te n st e i n Co r s o e Mário Cors o

seu time se Mareie jogasse, poi s n ã o admitia participar co m a própri a mãe , q u e as mulhere s carregam consigo
cie u m t i m e q u e t e n h a meninas , com o pela vida afora. Por isso, trocarã o farpas com
se e l e simplesment e nunc a tivesse n ot a d o q u e suas amigas , filhas, noras , outra s parente s e
ela. a capita cio time, e uma menina . Algumas colega s de trabalh o d o m e s m o sexo .
de sua s tiras sã o sobre a i n ad e qu a ç ã o ao pape l Co m o os Pecimtls sa o de varias idades, e comu
feminino. Ida nã o sab e combinar as roupas , julga-se m cuidare m e ensinare m un s ao s outros . Nem
feia. ou seja. n ã o e só na escola q u e ela nã o se sai séi de h u m o r cáustic o e lento o m u n d o d e
bem . Pattv p o d e ser para as mulheres o q u e Charlie Sehulz. pel o contrário , através cia fragilidade
e para os h o m en s , um errado . Afinal, ela é tão complementari a de toda s a s personagens , revelam-
^v/z/c/ie qu a nt o ele. w n c e no s esportes , mas fracassa se mensagen s carinho • sa s , crédula s cia
ate na consciênci a da neurose , terren o ond e p o s s i b i l i d a d e d o s h u m a n o s s e ajudare m e se
Charlie é imbatível. amarem . Para tal linaliclacle. além cias várias
Mareie, a melho r amiga de Pattv. e seu antôni mo . dem onstraç õe s cie solidariedad e qu e aparece m na s
Incapa z d e joga r liem . e a s n o s e s t u d o s . tiras, existem os irmaozinho s mais jovens, particu•
Idas s e complementa m , ajudando-s e no s setore s e larment e Sally. irmã cie Charlie Brown . e
m q u e têm dificuldade. Pimentinha leva Mareie ao Kerun. o caçula da família de l.ucv e I.inus. ides
esport e e tolera sua inépcia, e n q u a n t o a outra lhe têm a ingenui• d a d e cios pequeno s e sã o
dá cola e ajuda na s tarefas escolares . Mas nã o se p e r s o n a g e n s realm ent e infantis.
ereia q u e essa relaçã o e um mar cie rosas, poi s Sallv (Isaura em português) , mesm o pequena
Mareie nã o cessa de ressaltar o fracasso (absoluto ) cia , já tem conflitos co m o m u n d o . Sua principal
amiga no s estudos . Kmbora Pattv fique chateada , nada fonte de angustia é a relação co m a escola, por
mud a sua falta de interesse ness e campo e n ã o se isso atormenta- se constantement e co m o fim cias
p ou p a de criticar a obstinaçã o cia amiga na s férias, ou seja. ne m no recesso ela tem paz. Numa
tarefas intelectuais, o q u e nã o consider a um bo m serie de tiras, ela dialoga com o prédi o dá escola.
m o d o cie viver. Idas sã o ta mbé m com ple men - tares no Ia/ as suas reclamações cio qu e ela julga uma
e m b o t a m e n t o . pois Mareie tem a capacidad e cie incleméncia da instituição e chuta o prédi o a m o d
concentraçã o escola r qu e falta a Pattv. mas ess o de vingança. Parece qu e o processo civ
e foco nã o lhe ajuda nas outra s coisas cia vida. ili/atorio realment e se dá as custas de uma
Apesa r d a inteligência . Ma r ei e t a m b é certa dos e de opressã o pessoal, a qual Sallv na o
m e insensível ãs sutilezas e costum a falar o qu e nã o se resigna com facilidade. Essa menina seguidamente
deve . Ela é um a p e r s o n a g e m frágil e tem em faz bobagen s em suas tarefas escolares porqu e
Patt\ um a protetora. Sua de v o ç ã o po r ela é briga internamente com a instituição, ou seja.
tanta q u e cheg a a ponto de chama-la cie "senhor", neuroti/.a-se na relação com ela. Sua postura e
tratament o cie respeito, mas qu e t a m b é m desvela certa diferente cia de Pattv ou cie I.inus, qu e dorme m
vitalidade de sua amiga. Mareie é especialment e na aula. Sallv na o desligaria jamais em p r e s e n ç a
malvad a q u a n d o o assunt o é a feminilidade . cia professora , a escol a e um luga r
Kmbora seja p o u c o destr a t a m b é m nesse ca m p o , demasiadament e perigos o para baixar a guarda.
sua Pattv e ainda mais desastrada , e ela nào perd e a
o po rt u ni da d e de espetá-la. Pias revelam um aspect
o important e da s relaçõe s entr e as perso • nagens
dess a turma , a questã o da hierarquia. Se na
Snoopy, um cachorro à parte
relação de Lucy co m Charlie Brown e I.inus demonstra - pÇ^J^S!? ;ini completa r o elenc o principal, é
se o lad o cruel e o b s ti n a d o cios qu e preciso m jfy§<' a pr es e nt a r sua g ra n d e estrela:
maneiam, na complementaridad e dessa s dua s menina s
Snoopy . o ft^lJyS cachorr o cie Charlie Brown
aparec e unia hierarquia q u e é muit o present e na
. Kmbora ne m se mpr e o d o n o e seus amigo s
infância e na vida: costumamo s elege r líderes e
pareça m ciar-
protetores , tais papéi s nào implicam necessariament
se conta de q u e ele na o e h u m an o . Nos
e postura s cie submissã o e pode m até passa r pior
certas alternâncias . quadrinhos , p o d e m o s ler seu s p e n s a m e n t o s , q u
e sa o bastant e reveladore s d o ridículo da s
O constant e confront o verbal entr e essa s situaçõe s e m q u e seu s p e q u e n o s h u m a n o s se
amiga s também é uma jóia da percep çã o psicológica de envolvem , mas ele é realment e infantil.
Sehulz. Afinal, m e s m o q u e s e gostem , a s mulhere s Esse cachorr o faz um m u n d o á parte
dificilmente abrirão m ã o d e tratar-s e c o m u m dentr o do univers o de qu e estamo s falando, pois
c e rt o níve l d e agressividade verbal. Talvez ess e
ele é o únic o qu e usufrui o lado b o m da
seja o resto cie um a incômoda heranç a da relação
fantasia. As personagen s hu mana s dessa história
amorosa-litigiosa mantida
sofrem co m o cotidiano, suas
Fada s n o D i v a — P s i c a n á l i s e n a s Hi st ór i a s Infa nti s
inco munic abilida d e d e to d o s nós , tem a
importante dessas tiras, encontr a através de Snoop y outra

chatices e problemas , co m a agravante de qu e quand


o a imaginação deles finalmente voa é mais na construçã o 274
de fantasias paranóicas, visand o a atormentar o sonhado r
em sua forma de espera r o pior. Para Snoopy, o melho
r do m u n d o cia fantasia está alieno . Fm boa
parte de sua s tiras, o e n c o n t r a m o s i m ag in a n do - s
e no s seu s cenários preferidos, especialment e na
Primeira Guerra Mundial, na França, o n d e ele
teria sido um valent e aviador. Com o contrast e
dess e perso nage m , perce • b e m o s q u e o s outro s
foram privado s d e um a da s benesse s da infância:
o lado bo m do escapismo , qu e se traduz na condiçã o
de fantasiar e brincar, send o qu e tanto para as
crianças de verdade , qu ant o para esse cachorro ,
realidade e imaginaçã o ne m sempr e estã o
clarament e dissociadas . Paradox alm ent e , s e algué
m nessas historias representa a infância feliz, um tema
tão caro para nosso s contemporâneo s , é um
cachorro .
Snoop y e tio tip o q u e uiva para a lua
durant e o dia. porqu e tem m e d o de escuro . F.le
brinca, viaja em sua s pre t en s õ e s imaginária s d e
ser u m piloto , u m grand e escritor, um a dv o g ado
, enfim, el e p o d e se r o qu e be m entende r e o mais
important e é qu e os outro s embarca m na sua
fantasia, contratand o seu s serviços cie advocacia ou
tratand o sua casa c o m o se fosse um avião. Aliás,
essa casa també m é um território mágico , pois embor
a externamen t e seja uma simple s casa de
cachorro , seu interior parec e abriga r vários andare s
e ambientes , co m o biblioteca, sala de bilhar e o qu
e se quiser imaginar lá dentro . Apesar dessa
interessant e residência. Snoop y passa o dia
d o r m i n d o tora dela. sobr e o telhado , talvez para
mostrar sua bo a vida. de preguiça e
de s pr eo c u pa çã o .
("orno se nã o bastassem tantas bênçãos . Snoop y é
amad o por todos, sua inocência cativa o carinh o
cias m e n i n a s , ta n t o q u e r e c e b e i n ú m e r o s
c a r t õ e s d e Yalentine' s Day.' " Fie te m at e u m
s e g u i d o r : u m passarinho chamad o Wóodstock. esse
sim. o retrato da inocência e do desamparo . Na
verdade , trata-se de um sé q ui t o d e p a s s a ri n h o s ,
q u e s ã o um a e s p é c i e d e multiplicação cio
personage m Wóodstock, sobre os quais ele exerce certa
autoridad e e fala sua língua. Fm geral. Snoop y te m
um a c o m u n i c a ç ã o lelepátic a c o m o s humanos ,
mas eles ne m sempr e o c o m p re en d e m bem . Com o
recurso auxiliar, dentr o da sua personalidade
de escritor (um do s seu s vários alteregos).
e l e desenvolveu a capacidad e de se comunica r
através da máquina d e escrever co m o s humanos ,
mas à s vezes nem isso lhe garante q u e seu s desejos
(comida, comid a e comida ) sejam atendidos ,
portanto , o desencontr o persiste. A
forma. As outras personagen s lutam para serem amadas,
en q ua n t o para o cachorrinh o o problem a é outro, mais
próxim o d o da s crianças: ele precisa ser compreendid o
para qu e suas necessidades e desejos sejam corretamente
interpretados e atendidos . O problem a repete-se
entre ele e seu pássaro, pois Wóodstock tem inúmeros
pedidos qu e dã o um trabalho constante a Snoopy. certas
ocasiões ele nã o o s c o m pr ee n d e be m o u nã o pod e
atendê-los. Intelizmente. c o m o vemo s ness e caso,
n ã o basta ser amado , o abism o sempr e de alguma
forma se impõe. De qualque r maneira, as tiras de
Snoop y dã o a Schulz a possibilidade de explorar o
tema da amizad e como uma dependênci a benéfica,
uma tentativa de superar a solidão .
A palavra "Snoopy" poderi a ter sid o
traduzida em portuguê s po r "Xereta". e houv e um a
tentativa de fazê-lo. mas seu n o m e em inglês se impôs .
De qualquer maneira , ess e n o m e situa mais Lima
dime nsã o infantil cio perso nage m : a de ser aquel e
q u e olha a vida das pessoa s de s d e fora. mais
c o m o observado r d o que c o m o participante . Com
o n ã o fala. participa apenas tangencialment c do s
conflitos entr e as personagens. Se na o tem a
palavra certa, muita s veze s tem o gesto cert o e. se
algué m da turma está muit o deprimido, é ele qu e
cheg a intervind o da maneira correta, salvando a
situação . Mas n ã o se pe n s e qu e ele é a versã o canina cie
Pollyana: seguid a men t e el e é sarcástico, particular•
ment e co m seu d o n o . q u e é tão sofredor a pont
o cie n ã o c o nt a r n e m c o m a s o li d a r i e d a d e
irrestrita tio própri o cão : e co m Lucy. ele cujo jugo
ele, qu e não é b o b o . precisa se proteger.
F.ntre os Pcauuts e os adultos , há um abismo
intransponível , em q u e n ã o se fala a mesm a língua.
, Fm sua versã o em d e s e n h o s a ni m a d o s , a fala
cios
adultos , do s quai s s e vêe m soment e a s perna s (princi•
palment e na escola), é um a cantilena incompreensível, u
m so m contínu o d o qual nã o é possível compreender
um a sé) palavra . Fssa s e p a r a ç ã o cie m u n d o s ,
entre adulto s e crianças, ta m b é m encontr a e c o
na relação de Snoop y co m a turma de crianças,
co m a diferença
de q u e aqui há um a tentativa constant e (e muitas vezes
m fracassada) de se entender .
S Com seu s pássaros , Snoop y forma uma esfera
B
dentr o de outra, as crianças isoladas do s adultos e os
B animai s separad o s delas . Fss e abis m o realment e existe
B entr e crianças e adultos , elas participa m do mundo
B dele s principalment e bisbilhotando , enquant o o s
m adulto s c o m p r e e n d e m parcialment e as necessidades
B da s crianças. Além disso, c o m o Snoopy , elas têm
o S refúgio da fantasia: na imaginaçã o també m pode m
ser Bf herói s d e aventura s e tã o virtuosas q u an t o
quiserem. Bj
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co rs o e Mári o
Co r s o
e u m coleg a mai s p o p u l a r o u acredito u ser inferior ao s
outros . Portanto , seria falso dize r q u e o s sentimento s
d e Charlie Brow n e sua turm a sã o estranho s â
Não admir a qu e a s criança s tenha m
infância.
e s c o l h i d o o cachorrinh o c o m o seu representant e
na trupe . ele é cie fato o seu melho r tradutor.
A s personagen s d e Pccimtts sã o c o m o
aq u el e s espelho s paralelos , q u e refletem um a
image m de nt r o tia outra : o s leitore s o s v ê e m
c o m o crianças , eles . por sua vez . trata m os mai
s joven s e Snoop y c o m o infantis, q u e precisa m d e
cu id a d o e proteção , e n q u a n • to o cachorr o tem em
Woodstoc k se u menor/.inho . submetid o a s sua s
o r d e n s e cuida dos .
Embora tenhamo s personagen s díspares, u m eixo
se sobressai: há um Iracasso crônico das
personagens , cada uma a seu m o d o nã o está á altura de
suas próprias expectativas . O efeit o nã o é
n e c e s s a r i a m e n t e d e pessimismo quant o ás realizações
humanas , mais parec e que conforta o leitor, c o m o se
dissesse: venha se reunir à turma do s q u e fracassam,
atinai você ê com o nó s e não é tã o d u r o assim,
entr e fracassos e desencontr o s vamos levando. Com o
disse Álvaro de Mova." "ninguém fez tanto sucess o
v e n d e n d o fracasso".

Histórias de crianças para gente


crescida
"*" _ m u n d o de Charlie Brown dificilmente
p o d e se r e n t e n d i d o p o r c r i a n ç a s . S e
tiv er e m
...^ ' contat o co m os Pcaimls. elas te n d e m
a se identificar co m Snoop y o u
Woodstock . o s
mais novos , em termo s psíquicos, dess e time cie adulto s
em miniatura. A maior parte dessas personagen s infantis
são s u r p r e e n d e n t e m e n t e capaze s d e ilustrar a s agrura s
psicológicas da sociedad e atual, na qual vivemo s pen •
dentes de ganha r o prestígio noss o de cad a clia.
tão importante q ua n t o o pão . Eles têm a peculiaridad
e de misturar alguma s características da infância
co m os sofrimento s q u e s e a cre s ce nt a m c o m
o passa r d o tempo . Talvez essa mistura d e idade
s no s mostr e q u e há problema s q u e no s acompanha
m ao long o cia vida, mas isso n ã o basta c o m o
explicação .
Podería mo s apela r para um a ar g u m e nt aç ã o
sim• ples: ê d e s d e p e q u e n i n o q u e s e a p r e n d e q u e é
precis o praticar a arte de obte r amigo s e influenciar
pessoas . Xingue m ignor a q u e a luta p o r prestígi
o já mostr a sua face cruel n o jardim d e
infância. Q u a l q u e r u m d e n ó s terá c o n d i ç ã o d e
lembra r situaçõe s e m q u e . m e s m o s e n d o b e m
pequeno , foi r i d i c u l a r i z a d o , excluído , d e u- s e
cont a d e esta r s e n d o i n a d e q u a d o , sentiu inveja d
5

Porém , o s incidente s d e sofrimento


infantil q u e estamo s d e sc re ve n d o n ã o sã o
totalment e co mpre en • dido s q u a n d o fazem part e
d o t e m p o present e . Uma criança p e q u e n a q u e
está vivend o a s dificuldades d e se socializar
p o d e até sentir certa dificuldade de ir para a
escola, co menta r co m sua família q u e os amigo s nà o
a estã o tratand o muit o bem . chora r e
reclamar, mas dificilmente construirá um discurso a
esse respeito. Ela n ã o fará disso um traço de
identidade , geralment e e um percalço , do qual .
embor a ela possa sofrer, n ã o tira maiore s
conclusões .
Normalmente , os dissabore s da vida social
infantil reverbera m mais dolorosamen t e co m o
lembranças , e m r e m e m o r a ç õ e s oc or ri d a s n u m
t e m p o posterio r a o vivido. Por e xe m p l o , se
q u a n d o crianças sofremos o jugo de um amig o ou
irmáo autoritário, qu e se mostrava bastant e sádic o
conos co , isso será muito ruim de viver, cie fato. ma s
q u a n d o lembrarmo s disso, depoi s cie cres• cidos ,
c o m p r e e n d e r e m o s o q ua nt o erámo s trouxas ,
no s revoltare mo s pel a in ca p ac id a d e cie
reagir q u e tínhamos , adoraríamo s reencontrai' a
tal criança e ter a o p ort u ni da d e de revidar.
As personagen s verdadeirament e infantis cia
turma do s Pecniitlsí como Snoopy . Woodstock.
Sally e Rerun) sao mais verdadeiras a esse respeito,
pois sao ingênuas e rarament e clâo-se conta q u a n d o
na o estão agradand o ou fazem pape l de ridículas
e bobinhas . Em contraste co m Charlie Brown.
q u e també m e meio emb otad o nas questõe s
sociais, elas nã o fazem disso um proble• ma.
Soment e vista de tora, com o e possível depoi s
de adultos, a ingenuidad e infantil parece representar
nossas inadequaçõe s ou fragilidades.
Para ilustrar ess e encont r o cie época s
diferentes, p o d e r í a m o s pensa r nu m a d ul t o
que . a o s e senti r deslocad o num a festa,
evocass e a solidão q u e sentia n o parquin ho .
q u a n d o ningué m lhe empresto u o bald e de areia e
a pá. As persona ge n s de Pcaimls prestam - s e
p a r a e s s e m o v i m e n t o , a p o n t a m m ai s p a r
a a reconstruçã o da infância q u e para um
retrato daquel e períod o da \id a . Esses qua drinho s
atribue m â infância um a consciênci a q u e se') é
possível depoi s q u e ela terminou . Dentr o dessa
linha d e argumentos , s u po m o s q u e Peaiiuls faz
part e d e u m process o pel o qual o s adulto s
elabora m alguma s recordaçõe s complicada s d a
infância, permitind o repensa r nosso s primeiros tem•
pos , c o m o s e p ud és s e m o s revivê-los co m u m
grau d e consciênci a q u e n o s faltava n a época .
Sobre ess e aspecto , o da elaboraçã o
tardia de memória s da infância, p o d e m o s busca
r alguma ajuda na teoria psicanalítica. O
psicanalista húngar o Sândor Eerenczi,
co nt e m p or â n e o de Ereud, teorizou sobr e o

27
Fada s n o Div a - P s i c a n á l i s e n a s Hi st ór i a s Infan ti s
inadmissível pensa r qu e fomos tão p eq u en o s .

qu e ele chamo u de Sonho doNeném Sábio. Ele


descreve ess e sonho típico (cjue e um a classe
de sonh o q u e costuma se repetir em várias
pessoa s diferentes, co m algum aspect o com u m e m
toda s a s aparições), n o qual o adult o sonh a co m a
ligura de um beb ê falante, cjue diz coisas
importante s e impressionante s ao sonhado r surpreso ,
send o qu e s e expressa fluentemente num a idade
em qu e estaria incapacitado para fazê-lo."
O sentid o d e fu n d o dess e re cu r s o
oníric o a representaçã o do n e n ê falante seria o
de empresta r uma consciênci a adult a a uma
époc a de vivência s eróticas incestuosas . A guisa
de explicação . ferencz i lembra-no s a trase do
libertino: "Ah! Se eu tivesse aproveitad o melho r
q u a n d o era nenem!" Bebês p o d e m freqüentar o corp o
materno , co m liberdad e sobr e seu s seios e dispõe m
de uma intimidad e co m a mae . ao r e c e b e r
cuidado s d e hi gi e n e e alimentação , qu e
poderi a ter sido mais be m aproveitada , se
naquel a époc a soubesse m elas coisas do sexo .
tais c o m o se descobr e depois . <) expedient e dess e
sonh o materializa o desejo de pode r retroagir o t e m p o
para debela r uma inocência q u e no s parec e ter
sid o prejudicial, que r seja pel o q u e deixamo s de
aproveitar, c o m o na leitura de Ferenczi. ou talvez por
aspecto s da condiçã o infantil q u e sá o clitíceis d e
aceitar , m e s m o d e p o i s q u e a s u pe ra m o s .
Vivemos num a sociedad e qu e valoriza a o extrem o a
independência , a marca pessoal sobr e toda s as coisas, qu e
faz parece r q u e estamo s es co lh e n d o sem pre . A
publicidad e e o n d e melho r se esclarec e a
lalsidad e dessa lantasia. qu e no s laz crer ser possível
transcende r a s influências do s outros . Pensamo s
estar e sc ol h e n d o livremente, q u a n d o na o fazemos
mais d o q u e opta r entr e produto s sobr e o s quai
s no s foi sugerid o q u e fariam be m à nossa
image m perant e nosso s seme • lhantes.
Paradoxalmente , sao a s mesma s pr o pa g anda s qu e no
s v e n d e m a idéia de auton o mi a : aliás, seria
justament e nessa característica pessoal da s op ç õ e s qu
e fazemos q u e se encontrari a o almejad o estilo
pessoal . Aliás, estilo e uma espéci e de palavra
mágica, cuja expre ssã o conleria a nata de noss o
ser. Ide seria a traduçã o estética da nossa
imparidade . Você e a cara do seu estilo e e ele
qu e o diferencia do s outros . O p r ob le m a e q u e
o catálog o de estilo s e restrit o e també m está
ã venda .
Nesse contexto , fica difícil de aceitar a
condiçã o de passividade própria da infância.
Gostamo s de no s iludir q u e sempr e fomos do n o s
d o noss o nariz, qu e jamais fizeram d e n ó s o
q u e quiseram , q u e nunc a ning ué m aproveito u
mai s q u e nó s d e uma situaçã o vivida. K
sexo . violência c competitividad e q u e passara m
a fazer parte da vicia da s crianças, aliadas a
uma estética qu e privilegia os catálogo s cie
a pont o de estar à merc ê do s adultos qu e no s criaram, imagens , em demérit o da reflexão. Kss:t p r e ss a e
qu e eles se divertiram às custas de noss o despreparo , m passa r um a mensagem , a n t e s qu e o
qu e no s tomara m c o m o objeto d e possessã o pessoal, telespectado r possa seque r pensar, estaria
dispond o d e noss o corp o co m liberdades qu e hoje s ó encolhendo o espaç o cie criatividad e se m
ciaríamos a algué m q u e amássemo s muito, e olh e lá. compromissos
Vivemos tem po s d e idealização d a autonomia, (simplesment e brincai") e cie proteçã o (mantê-las a salvo
ond e o heró i é um sei/ iiuulc man. no s daquil o q u e ainda n a o c onseg ue m compreender )
quai s a c o m p r e e n s ã o da infância fica afetada po r que as crianças precisa m ocupar .
essa ilusão de q u e algué m p o d e fazer-se a si m e s m o e
dev e virar- se sozinho . Para tanto , alem do s oriâo s As teses de Postman mantê m alguma
cjue estrelam inúmera s tramas infantis, temo s na mídia atualidade, mas foram contestada s parcialment e pel
uma grande linhage m cie policiais, soldado s e heróis o fato cie que as crianças se apoder ara m cia
solitários, que vence m contra tud o e contra todos , incapaze televisão, cio cinema e do com putad o r para brincar. A
s cie lazer part e d e algu m g r u p o . Ksses d es gar ra d o seu m odo . elas recortam e colam a programaçã o qu e
s contam a p e na s co m sua própria forca e têm na lhes e oterecicla. cia mesma forma c o m o utilizam co
desconfiança cios o ut r o s um a forte aliada . Por ou tr o m liberdad e os objetos com os quai s brincam .
lado . se a condiçã o infantil tem lá suas coisas difíceis de Q u an t o ã exposiçã o das crianças à violência a ao
suportar q u a n d o vistas cie fora. há motivo s para pensa r sexo . p o d e m o s observa r qu e a sociedade tem sid o
que as persona ge n s crianças també m serve m de refúgio parcialment e sensível ao s avisos e há unia
para adulto s contrariados . consciênci a em (lenta) ex pa n s ã o de cjue isso eleve
ser minimizad o na v ida do s p e q u e n o s .
f--in 1982. o e d u c a d o r n o r t e - a m e r i c a n o Xeil
Postman lançou seu polêmic o livro O Desaparecimento As preocupaçõe s dess e auto r ainda
ila Infância, no qual consider a q u e as nova s encontram eco , apesa r do quart o de sécul o q u e
mídias eletrônica s , em particula r a televisão , no s separa de s e u lançamento , porqu e
invadiram o recint o da infância, e x p u l s a n d o del e aind a o b s e r v a m o s a di f ic ul da d e cjue n o s s o s
tud o o que a t o r n a v a um a e t a p a d i l e r e n c i a d a c o n t e m p o r â n e o s têm em
cia vicia. Ide se horroriz a co m as altas d o s e s cie

276
Di a n a Li c h t e n s t e i n Cor s o e Mári o
Corso
c o m Post ma n q u a n t o a o a s p e c t o d e qu e o s
a d u l t o s tê m c u lt i v a d o u m a existênci a infantil, ma s
n a o p o r q u e estã o ficand o b u r r o s o u b o b o s , e m
com pree nde r a s diferentes etapa s d a vida.
funçã o d e q u e a mídi a teria r e d u z i d o
Crianças são vestidas e divertidas c o m o adolescentes ,
colocamo s maquiage m e sapato s de salto em
meni ninha s q u e já sào corada s po r naturez a e
precisa m m e s m o e de um bom calcad o para correr:
c o m p r a m o s roup a d e surtista para garoto s qu e faz pouc o
ap re n de r a m a se equilibrar nas própria s pernas ; e
organizamo s reuniõe s dançante s nos aniversários da
escola primária. Enquant o isso. os adultos alterna m
para seu própri o us o as roupa s co m estampas
infantis co m a indumentári a teca.
O s adolescentes , po r sua vez. embor a
imitados por todos , sa o sistematicament e
demonizado s n a fantasia do s adultos , os cjuais
ficam s u p o n d o qu e eles elevem goza r a vida se m
restrições. projetand o nessa gent e jove m e
despreparad a todo s o s jx'cado s e
irresponsabilidade s q u e gostariam d e viver o u d e
ter vivido. I ) e \ e ser po r isso q u e as vezes os
joven s se apega m tant o à estética da infância. <)
ITsinh o 1'ooh é um sucess o no material escola r cias
adolescentes , as cjuais vestem mais cor-de-ros a cio q u e
as pré-escolares . Já os rapaze s têm através cios
game s a ojiortunidad e cie brincar de luta (e m
substituição ao s antigos solda• dinhos e ao Porte
Apache ) até muit o alem do s seu s clias de
infância. Talvez essa intantilizaçao ostensiva seja
uma torma de proteger-s e de um a sociedad e q u e
os tem na mira t o d o o te m p o .
Dentr o dess e funcionament o , qu e
p od er ía m o s chamar d e "unitemporal" . c o m o toi
diagnosticad o po r Postman. é precis o c o m p r e e n d e r a
contrapartid a disso, ou seja, o fenô men o q u e ele
de n o m in o u de adullo- criauça, assim descrito: "Fm
nossa cultura considera - se hoje desejável q u e a ma e
nã o pareç a mais velha do qu e sua filha. Ou q u e a
filha n a o pareç a mai s jovem qu e sua m ã e . Se
isto significa q u e a infância está d e s a p a r e c e n d o
o u q u e a idad e adulta está desapa • recend o é
a p e n a s um a questã o cie c o m o se deseja enuncia
r o problem a 1...I O adulto-crianca p o d e ser
definid o com o u m adult o cuja s
potencialidad e s intelectuai s e e m o c i o n a i s nã o
s e realizara m e . sobretudo , nã o sa o
s i g n i fi c a t i v a m e n t e d i f e r e n t e s daquela s associada s
ás crianças."
T e m o s hoj e um a inédit a consciênc i a d e q u
e a vida te m u m p r a z o definid o e . p o r mai s q u
e al g u n s d e n ó s p o s s a m cultiva r a t é e m
c e r t o s t i p o s d e tr a ns ce n dê n ci a , t o d o s s a b e m o s
q u e u m dia noss a vez s e acab a e t e m o s d e
passa r o b as t ã o par a a s g er aç õ e s se g ui nt e s . Po
r isso as invejamo s tant o . F, precis o c o n c o r d a r
1932, ela se permit e questiona r tudo . Apesar de
seus 5 ou 6 ano s d e vida, n à o pára d e pensa r no s
descaminho s d a humanidade , n a beligerância do s
seu s c ér e b r o s a r e c e p t o r e s d e image ns . A
infância q u e amamo s é idealizada . 6 povos , n o pode r do s
a crianç a c o m pe ns a m en t o s adulto s d e
Schulz , at ra v é s d a qua l
( i o d e m o s fantasia r q u e . s e t i v é s s e m o s
sid o mai s sábios , quiç á ter ía m o s a p r o v e i t a d
o melhor .
Fssas histeria s sà o uma porta para a
infância, n à o a q u e vivemos , ma s a q u e no s
ficaram de v en d o , agora seria o m o m e n t o de
ciar as resposta s certas, de fazer a coisa
apropriada , de usufruir esse s mo mento s
perdido s e . inclusive, d e c o l o c a r e m melhore s
palavras noss o sofrimento. Afinal, se a infância é
um m o m e nt o importante , at é o sofrimento pel o
qual passamo s dev e ter u m lugar d e
de st a qu e . I.ogo. s e somo s m e s m o a d u l t o s -
c r i a n c a s , j i r e c i s a m o s . par a n o s o l h a r n
o espelho , cie person age n s criancas-adultas.
Fm cios tanto s sonho s íuteis de éharli e
Brown. junt o co m o cie ser a alma da
festa alguma vez na vicia (missã o impossível)
e jogar be m beisebo l (mais ainda) , é e mpina r
um a pandorg a q u e n a o fique tod a enrolad a
na s árvores . Invariavelmente , ele termin a
dependurad o d e cabeç a par a baixo ,
enroscacl o n o cordã o q u e devia estar levand
o sua pipa aos céus . Bem. assim é a vida
jiara Schulz. so mud a a cor da pandorga . mas
seguimo s tentando . F essa |XTseveranca q u e taz
co m qu e os 1'caiiuts sejam queixosos , mas
n a o depressivos , ele s p o d e m fracassar, m a
s nunc a desistem .

MAFALDA
,
"ry*,:*'! atalda é uma menin a petulante , uma
fonte
. / • ' inesgotável de pergunta s sem respostas.
Sem
*; l ser seu objetivo, cria constrangimento
s para s e u s d e s p r e p a r a d o s pa i s
com questio•
na m e nt o s inusitado s e aguda s observaçõe s
sobr e o m u n d o . F.la é a person age m
principal de tiras h u m o • rísticas, publicada s na
Argentina d e s d e 29 de setem br o cie 196a até 23
de junh o cie 19^3- Q u a n d o termino u sua
temp orad a no s jornais, sobrevive u nas
década s seguinte s graças às compilaçõe s em
livros, a bo r d o cios cjuais chego u as geraçõe
s posteriore s e a vários países . Os livros
de Matalcla foram traduzido s para seis língua
s e alcançara m sucess o tant o na Furop a
q u a n t o na América Latina. Além disso, a
persona ge m se popularizo u em objetos c o m o
pôstere s e camisetas. Filha d o hu mo r inclemente d
e Quino , o u Joaquí n
Salvador Lavado, nascid o em Mencloza, no a n o de
Fada s n o D i v a - P s i c a n á l i s e n a s Hi st ó ri a s Infa nt i s
é necessário

militares - os golpe s pipocava m na América Latina esclarece r


da é p o c a —, no s p r o b l e m a s do T er c e i r o qu e a
M u n d o , na necessári a ampliaçã o d o s horizonte s ambi entaçâ o
feminino s e n a podridã o do s políticos d e plantão . Fia e a rotina
gosta d e brinca r d e g o v e r n o , escut a notícia s n o rádi de Mafalda
o e filosofa s o br e u m gl o b o terrestre , q u e é seu e de seu s
b r i n q u e d o predileto . C o m o vemos , t u d o muit o amigo s sã o
engajado . tã o típicas
da infância
q ua n t o as
do s Peaiuils.
Uma infância politizada Poderíamo s
•''"' > afalda é tu d o o q u e na verdad e as dizer qu e até
crianças nã o são. Fias p o d e m ate ser mais. na
observadora s e laze r p e r g u n t a s sobr e medida e m
política , m a s iss o so me nt e ocorre m n o qu e Quin o
cas o dess e ser u m tem a inclui o
relacioname
corrent e e relevant e dentr o da família. Na
nt o da s
infância, a rua é secundari a â casa e sa o os
persona• g e n
pais e os irmãos, acrescido s d e algun s parente s
s co m seu s
mais próxim os , q u e oc u pa r ã o o centr o da s
pais .
atenções . Mesm o o s p e q u e n o s q u e freqüentare m
O qu e
c r e c h e s o u escola s ficarão ess e temp o entr e
é me no s
outra s crianças, a p r e n d e r ã o a diferenciar ambiente s própri o da
diversos e as regras q u e lhes sã o p m p ri a s . ma s infância,
continuar ã o ligados a família em termo s emocio • ness e caso.
nais. O q u e ocorr e na escola geralment e é conseqüên • são os
cia da vida domestica , e raro q u e um tirania se origine drama s
n o sentid o inverso. enfocados ,
Na inlância . e possíve l questionar-s e sobr e gran • pois até
de s temas , com o a mort e e o sexo . q u a n d o se
m a s s e r á d ec o rr en t e de ob se r va ç õe s e impasse s revolta contra
do méstico s , e esse s p e n s a m e n t o s s e e x p r e s s a r ã o a imposiçã o
p r i n c i p al m e n t e atravé s d e brincadeir a s e familiar de
co n ve rs a s mei o en ig m á • ticas, na s quai s s e not tomar sopa .
a nitidame n t e q u e a crianç a está abordand o .Mafalda o
alg o q u e est á alé m d e sua c o m • p re e ns ã o . faz co m
Segui da ment e , as ve mo s fazer pergunt a s e afirmaçõe um to m
s q u e mostra m q u e estã o envolvid a s co m filosófico
algum a qu e st ã o transcendenta l , ma s o s diálogo s ou
sã o curtos , estranhos , e a crianç a se recolh e content e co politizado ,
("orno a
m algum a respost a parcial , deixand o o
subjetividade
a d u l t o de sc o nc er ta d o . S e alg o important e ac o nt e c
da s crianças
e n a rua. c o m o catástrofes naturais o u sociais, abalo s
dessas tiras se
o u vitórias políticas, p ro bl e m a s c o m o o d e s e m p r e g o e
aproxima
a carestia . será po r mei o da s reaçõe s d o s m e m b r o s d e pouco da
sua família diant e desse s fenômeno s qu e a s criança s o s realidade da
acessará o e c o m p r e e n d e r ã o . A criança n ã o e aind a infância,
um ci da d ã o constituído , seu s pai s e q u e são . acreditamo s
sua sociabilidad e está aind a e m construção . qu e para
As personagen s de Quin o sa o ainda mais distantes Quino elas
do m u n d o infantil q u e a turma de Charlie Brovvn, cujas representaria
vidas c o n t ê m dr a m a s d e auto-estim a e relativo s m uma
a o convívi o co m se u g r u p o d e amigos , q u e espéci e de
n ã o s ã o a u s e n t e s d a infância . A p es a r d is s o , utopia ética
nesse m u n d o confuso e problemático . Restaria à infância uni
lugar cie altericlade â mediocridad e da vida. ao absurdo q u e
resid e n a crueldade , n a desigualdad e e n a
dentr o da ca c o m o mu r representaçã serv e para r
beligerância da noss a organizaçã o social. Pensand o
compr a a cc questõe s eco pel a rua é i humanos, co
nessa direção, só o olhar infantil no s revelaria o ridículo qu e no s
cerca. Estaria nas crianças a possibilidade de espera r algo mento . A vic cie Mafalda c d a s paredes n ã o pensa qi se é
melho r do s humanos , já qu e elas ainda nã o foram e quão Mas n Mafalda, tan ment e ditos: da do irmào-
corrompida s pel o tem p o e pela sociedade. Não pensamo s var plantas
qu e Quin o acredite num a teoria rous- seauniana. qu e alienar na tt domésticos. ; ou de linguaj se u temor d
atribuiria uma pureza essencial à inlância. mas é a mensage m função do na c o m o se o
qu e acaba decantand o quand o se coloca tanta crítica q ua n d o cant de superar e: A graç
social na boca de personagen s tão jovens. q u e referiam sabedoria de g e n t e pequ maturidade
operaçã o ser na capacidad vida. Essa co crítica adult
Aliás, ne m toda s as crianças d e s e m p e n h a m esse
emprest a un trágic o pess diligentemen sab e os que Em
p a p e l n a s tira s d e Mafalda . A s p e r s o n a g e n s qu e
sun
contracena m co m a protagonista també m mostram em sua
personalidad e os adulto s problemático s qu e um dia as personag" precocidade q u e distanci inclusão dos Pa r a
serão . Em alguma s delas , é visível o potencial de Mafal personagem rádio com os a obra do nor q u e as circui
liberdad e de p e n s a m e n t o e qualidad e ética qu e se coloca no
gostari a q u e crescess e junt o co m a s crianças , mas mesmos, van
també m há personag en s q u e trazem dentr o de si o
embriã o do contrário. F de p e q u e n i n o qu e se torce o
pepino , po r isso entr e eles h á personage n s embotadas e
preconceituosas . Através desse s protótipo s caricatu• rais cie
Mafalda e algun s de seu s amigos , torna-se possível
revelar o s ponto s d e fratura d o m u n d o capita• lista e da s
famílias cie ciasse média em q u e eles estão crescendo .

Pequena gente grande


, á
í ^ v "!- ' afalda é simplesment e algué m q u e pensa:
-• ; • ' . . sua peculia r sensibilidad e p o d e ser encon-
„'; j . . " j , tiad a e m q u a l q u e r i d a d e salvo , o u pelo
m e n o s em raríssimas exceções , na infância.11
O i m p o r t a n t e d es s a p e r s o n a g e m , e se u t o q u e d e
h u m o r , é su a c a p a c i d a d e d e l e v a n t a r q u e st õ e s
relevante s a partir de partículas do cotidian o qu e estão

278
Di a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Co r s o
coloca n o mapa . Com o dizíamos, o s cenários sã o
o s mesmos , varia o pont o de vista. Para Schulz. no cotidiano
dentr o da casa e da vida de qualq ue r um . O
contat o co m o m u n d o é feit o a tr a v é s d e u
m rádio , su a representaç ã o é u m gl o b o
terrestre, u m b a n q u i n h o serve para brinca r de
gover no , o armazé m o n d e se compr a a comid a
da casa abr e um a janela par a as questõe s
econô mica s e o jeito da s pessoa s q u e passa m pela rua
é um a p o n t e para falar de grande s tema s
humanos , c o m o a lelicidade . a b o n d a d e e o envelheci •
mento . A vida desfila pela calcada ou pela
pracinh a de Mafalda e pod e ser conjugad a
inteirament e dentr o das par ede s d e sua casa. Quin
o parec e dizer q u e s ó não pens a q u e m n ã o quer .
n ã o importa q u ã o p e q u e n o se é e q u ã o estreitos sã
o seu s horizontes .
Mas n e m s ó d e p r o b l e m a s d o m u n d o
viv e Mafalda, ta m b é m existe m fatos de infância
propria • mente ditos: sua ojeriza a sopas , seu ciúme s pela
chega• da do irmão , a curiosidad e pel o hohhyáo
pai de culti• var planta s de interior, assim c o m o
o gost o po r se alienar na televisão . Apesar do s
assunto s infantis e domésticos , a reaçã o de Mafalda
é de elevad a reflexão o u d e linguajar adulto . Por
exe mplo , q u a n d o express a seu temo r d e pe rd e r o
lugar n o amo r do s pais e m função do nasciment o
cio irmãozinho , ela diz q u e sent e com o se o coraçã o
dele s tivesse "aberto uma filial": q u a n d o canta no
b a n h o , ela diz qu e é "a única maneira de supera r essa
imensa e branc a solidã o da banheira" . A graça da s
tiras de Mafalda parec e ser similar â
qu e referíamos relativo ao s Peaiu/ts: a cie
coloca r a sabedoria de gent e grand e par a
interpretar a vida de g en t e p e q u e n a . Na o s e
trata a p e n a s d e injetar a maturidad e futura no
pa ss a d o pueril da infância, a operaçã o seria
t a m b é m a de mescla r a purez a infantil na capacidad
e adulta de criticar a sociedad e e a própria vida. Essa
com binaçã o de inocênci a infantil co m um a crítica
adult a a g u ç a d a , al é m d o eleit o d e h u m or ,
emprest a u m s o p r o d e e s p e r a n ç a m e s m o a o
mai s trágic o pessimista . Afinal, s e temo s
t r a b al h a d o tã o diligentement e par a destruir e estragar o
m u n d o , q u e m sab e o s q u e virão nã o o consertem ?
Em suma, com o no s Peanuts, temo s em
Mafalda as personagen s crianças-adultos. l' m
universo o n d e a precocida d e da s crianças revela as
mazelas adultas. O qu e distancia as crianças de
Schulz da s de Quin o é a inclusão do s problema s
do m u n d o na trama cias tiras. Par a Mafalda ,
e s s e s p r o b l e m a s s ã o q u a s e u m a personagem ,
se lembrarmo s um glob o terrestre e um rádio co m
os quais ela praticamente conversa. Enquant o a obra do
norte-american o deixa as crianças num a bolha, qu e as
circunscreve â casa e â escola, o argentin o as
p e q u e n o da infância, é possível encena r a
comédi a h u m a n a d o indivíduo : e m Quino ,
além desses , sã o també m enfocado s os drama s
sociais.
Mafalda coloco u toda uma geraçã o a pensa r
sobr e a miséria do seu cotidiano , ma s sem
se desligar da premênci a de questiona r o
m o m e n t o histé)rico em qu e viviam. O m u n d o dela
retrata especialment e a América Latina, do s ano s
1960-19"0. co m sua s esperanç a s e pesadelos .
Mas nã o se p e n s e q u e ela é uma militante
política obcecad a pelo s grande s tema s
ap e na s . Por exemplo , uma da s questé>es constantes
e a paixã o dessa menin a pelo s Beatles, um a
escolha estética qu e ela defend e co m unha s
e dentes , diant e d e seu amig o Manolito, qu e
a acusa de gostar de uma música cuja letra
n ã o e nt e nd e . Ela ta m b é m tem quest õe s sobr e
a lelicidade . interroga-se p or q u e algun s sã o tã o
amargo s e outro s não . sobr e o amo r e o
casamento .
Poré m Mafalda e uma menina, e tanta
sensibili• dad e política nã o lhe serve muito
q ua n d o o assunt o sã o seus pais: ela na o
escond e unia certa decep çã o pel o pouc o qu e eles
conseguiram ser na vida. o pai lhe parec e mais um
coitad o qu e e sugad o pel o m u n d o cio trabalho, a
mã e uma medíocr e qu e na o sabe. ne m se
importa co m nada fora das lides domésticas.
Esta é a mai s alfinetad a pel a crítica cia
pequen a feminista empedernid a qu e ela tem em
casa. Num do s quadrinhos. Mafalda observ a a mã e
trabalhando , estalada co m as tarefas de casa, e
pergunta, assustada, se a capacidad e para triunfar
ou fracassar seria algo hereditário. Noutro, diante
dess e mes m o quadro , a menina lhe pergunta: "o qu e
gostarias cie ser se vivesses?"
Essa espert a menin a parec e na o espera r qu e
seu s pais lhe transmitam algo. um conheciment
o sobre o m u n d o . É ela q u e deté m a
sabedoria . Quand o nã o co m p r ee n d e algo.
perguntar a seus pais revela-se inútil, é sé) para deixá-
los perplexo s e ou constrangidos. Nessas tiras, a lont e
da sabedoria é o dicionário. Ela o consulta
constantement e e discute suas respostas
furiosamente. Junt o com o glob o e o rádio, o
dicionário completa o tripé cie objetos qu e
representa m o m u n d o .
Apesa r d e freqüenta r a escola , essa s
criança s parece m a p r e n d e r sozinhas , co m a
ajuda d e algun s instrumentos . O s pais até
fornece m elementos , co m o certa ocasiã o em q u e
o pai de Mafalda lhe presente o u co m u m pôste r
q u e mostrava ruínas gregas, dizendo - lhe ser ess e
o berç o da nossa civilização. Bem, basto u o pôste
r e a frase, para q u e fossem disparada s
um se m - n ú m er o de reflexões sobr e o fato de um a
image m de destruiçã o e ruín a se r a de noss a origem
. Portanto , te mo s um a síntese entr e u m
ambient e estimulant e e um a liberdad e d e
pe n sa m e nt o , q u e s e process a e m
Fadas n o Div a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infa nti s

mente s pura s e nào- \ iciadas. K este noss o neurótico s e sofridos em q u e ele se mete . Co m certeza O oposte
ideal de
aquisição d e conheci me nt o . Q u e r e m o s a s angústia s d e Felipe n ã o sã o absolutament e próprias masculino
proporcion a r par
ao s mais joven s muita s fontes, mas desejamo s d e u m g ê n e r o o u o u t r o , ela s a p e n a s s e Manolito. Esse
q u e tirem sua s própria s c o nc lu s õe s , porqu e revela m masculina s pel o fato d e q u e desperta m de armazém q
confiamo s muito pouc o nas nossa s e es pe ra m o s muit o e m Matalda um certo zelo maternal, d e n o t a n d o essa entregas e às
da s deles . As crianças de Q ui n o sa o lambe m etern a vocação para filhos q u e os h o m e n s carrega m devot o desse
representante s da s pela vida afora.
nossas mais acalentada s ilusões O pai de Matalda t a m b é m se desespera , diante campanha s
pedagógica s . das pergunta s irrespondíveis da sua peq uen a ou até p futuro
perante grande
a invasã o de formigas em seu jardim de um dia consto.
apartamento, aí é a mã e dela q u e vai cumpri r histórias, o m;
A trupe essa missã o de dar col o para um home m era taxá-lo de
fragilizado.
a o sa o muita s a s p e r s o n a g e n s q u e As constantes críticas á mediocridade da mãe levam â maldigericlo, t
acom - valorização de uma vida de maior inserção técnica servia
1' panha m Matalda. sa o seu s vizinhos d e social
um
lOOl bairro d a classe media poilenha . para as mulheres , motivo pel o qual devíamo s classificar have r em terrr
Susanita e o protótip o da mulhe r qu e Matalda com o Lima teminista. Mas. na verdade , d e pensament
n a o que r sabe r esses q u e s t i o n a m e n t o s t a m b é m tr a n s c e n d e m o Manolito . un
de nada tora sua estreita \id a domestica , seu s tem a cio
plano s
de ascensã o social c seu s futuros filhos. gênero , visam mais do qu e nada situar qu e os negócios, mas
Manolilo so pais já
pensa em dinheiro, uma ati\ idade , c o m enfiamos, para na o servem cie exemplo , e os novo s humano s deverão peque n o se te
lá de adulta. ()s perse >nagens q u e teriam características crescei ' a p o i a d o s em sua s própria s convicções . tant o no
mais infantis sao o angustiad o Felipe, co m sua pertina z As mulhere s terão de se mostrar maternais em que seu s
procrastinacao de tarefas, e Miguelito. q u e se casa. mas t a m b é m guerreira s na rua. Sao t e m p o amigos q uant o
perd e em fantasias megalomaníacas , embor a essas s confusos e misturados para os gênero s e a turma de
na esc n ã o
caracterís• ticas sejam encontravei s na maioria do s Matalda parece ilustrar isso bastante bem . Por outr o lado.
mortais em co m o a visão esconde estar
relacion
toda s as idade s de Q ui n o e cie esperança , certament e trata-se de de criticar o
Felipe, ou Felipito. e um neurótico , ma s uma aposta otimista em qu e h o m e n s e mulhere s i ao
seu acent o esta mais na angustia do qu e no possam beneliciar-se cio fato de qu e seus destinos se pragmatisr
fracasso. A caminh o do colégio, ele se paralisa de tornaram mais complexo s e abertos. espírito.
pânico , s u p o n d o qu e esquece u o tema de A outra menina do grupo . Susanita. é o opost o de Miguelit
botânica em casa. abr e a grup o que é i
pasta, para constata r q u e estava lá. Alguns Matald a e vai na c o n t r a m ã o d e s s a t e n d ê n c i traquina de to
metro s depois , e tomad o pela doloros a a cie am pliaçã o do s papé i s masculin o e grita coisas
possibilidad e de ter feminino . F um
esquecid o o com pass o para a aula de geometria , co contrapont o ilustrativo, qu e serve para ressaltara posição passantes. Cl;
m o coraçã o e x p l o d i n d o , ab r e a pasta par a da personage m principal. Fnquant o Matalda tem q ua n t o
l a m b e m concluir qu e estava t o m ele. F aí q u e ele faz a olhos para o m u n d o e seus problemas . Susanita vive adule da sua
pergunt a qu e poderia ser a da maioria de nos: sonhando com seus futuros filhos e um lar persor é
"Justo a mim tinha qu e ter me acontecid o ser abastado , o marido parec e lhe importai' meno s no s
adulta sua
c o m o eu?" seus planos, um mero instrument o para atingir seu s
objetivos. Por isso, não ajuda para
Fsse personage m deixa para fazer os devere s pt Para rer
cie
casa n o últim o m o m e n t o , ma s pass a a tard e possui a inteligência ne m a precocidad e de fragili
tod a martirizando-sc p o rq u e deveria estar fazendo-os . Matalda, mas é co m ele q u e ela se sent e dade e
Nao faz suas tarefas, ma s esta irremediavelment e mais pert o d e ser entendid a . a
pres o a elas. Q u a n d o enfim lenta encara r um a Se na ma e d a menin a e n a de p en
tarefa mais difícil, sentad o à mesa, fica d e v a n e a n d o dê n ci
personage m d e Susanita sã o veiculada s
co m se u heró i preferido. Fl Flanero Solitário, uma a do s
críticas â medi ocridad e da s m u l h e r e s ,
espéci e de caubo i justiceiro. Apesar de ser um
atravé s d e Felipito , Q u i n o e x p õ e a home
m e n i n o espert o e um po uc o mais velho , ele n a o
n s , poi s a amiga está sempr e lentantl o tirar ess e p o d e m o s afirmar qu e ela e romântica e pueril, pode r fazer
menin o d o s labirintos pelo contrário, sua personage m concentra os piores j nascer
e mais antigos preconceito s contra as mulheres : ela é Guille transita
calculista, fofoqueira e egoísta , sua paixã o pelo s denti ma mã e
filhos bem- sucediclos qu e terá (conform e ela. seu
e chu criança
filho será um douto r muito famoso e rico) é uma
ilustração da gloria obtid a atravé s cia maternida de . pequi
Fia vive cometend o gafes, hoje diríamos discursos def
politicamente incorretas, qu e só mostram o seu seja. seus
anacronismo . Até q u a n d o está tentando ser simpática e dii parede s da
entende r o pont o de vista do s outros se revela ignorant c Mais tar
e e i n ad e qu a d a . Po r e xe m p l o , certa ocasiã o politizada qu<
coment a co m Matalda qu e , visto ser ela tão anti- a nova persoi
racista, talvez o irmão qu e sua mã e estava esperando viesse é muito
a ser uma criança negra e isso seria lindo, pois
peqi su a
combinaria com o discurso de sua amiga.
enorme
peque naco n
tiras e fica
ii

280
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o Co r s o

O op o st o político de Mafalda. e se u p er so n a ge conclusã o sobr e a relaçã o entr e seu tamanh o e nome


m masculin o para representa r a m es q ui n h e z . Sua fala acab a s e n d o um a radicalização do
hu mana , é Manolito. Fsse m e ni n o é filho de um discurso de Mafalda sobr e as mazela s do m u n d o e
gallego.1 - d o n o de armazé m q ue . aliás, já trabalha co m a asfixia de p en sa m e nt o . A metáfora nã o poderi a
seu pai. lazend o entrega s e ás veze s a t e n d e n d o no ser mais direta, ma s apesa r disso a voz dessa esperta
balcão . Fie é um devot o dess e p e q u e n o negckio peque n a encontr a a m e s m a a m p l i t u d e q u e u n
. fica s o n h a n d o co m c a m p a n h a s publicitária s s pouco s c o r a j o s o s conseguira m ter para
mirab olante s para toca r o futuro grand e combate r o s ano s d e c h u m b o q u e maltratara m
empreendiment o comercial qu e sonh a um dia a America Latina. Sao os gr an d e s perfume s no
construir. Na atmosfera política da époc a dessa s histórias, s p e q u e n o s frascos.
o maior palavrã o político para acusa r algué m era taxá-lo
de peq uen o-bur guês . bruto de um marxism o
maldigerido, essa palavra \endid a com o CALVIN E HAROLDO
classificação teórica servia para adjetivar o q u e de pior
s
se imaginava haver em lermo s de reacionarism o político ijPjP^fES tira s de CAIIVÍII and Hobbcs'
e estreite/ a de pensa mento . " Pois bem . e ness e context o fo r a m
q u e nasc e Manolito . u m m e n i n o q u e s ó te m m i" W- desenhada s , durant e uma décad a (entre 1985
c
o l h o s par a o s negócios, mas tã o p e q u e n o e seu Í^ÍÉCÍ 1996). pel o norte-america n o \\
loc o d o m u n d o q u e p e q u e n o se torna seu ser. illiam 13. Wãtterson. Alcançou uma difusão
Manolito é limitado e burro , tanto n o q u e diz semelhant e
respeit o ao s questio na m ent o s q u e seus amigo s a do s 1'caiutts. c h e g a n d o a figurar em mais de
fazem, q u e e m geral n ã o a c o m p a n h a , quant o na 2.400 jornais a o redo r d o m u n d o , se n d o qu e o
escola, o n d e é o pior alun o cia classe. Q ui n o nã o s l i livros resultante s da s compilaçõe s da s liras
e s c o n d e o q u e para ele é a inteligência: de v tiveram ediçõe s cujo suce ss o s e traduzi u n a
e estai' relacionad a co m a imaginaçã o e a vend a d e milhõe s d e ex empl ares .
capacida d e cie criticar o m u n d o ; e n q u a n t o a Ao c o n t r á ri o cia turm a de Charli e
burrice e associada ao pragmatismo , a uma ment e lir o w n . o m e ni n o Calvin e seu tigre Ilarold o
dinheirista e p o b r e de espírito. (qu e e simulta• ne a m e nt e um tigre de pelúcia,
Miguelit o talvez seja o ú ni c o p e r s o n a g e m para os outros, e um amig o d e verdade , para
d o grup o q u e é um p o u c o mais infantil, e també m o seu d on o ) nã o produzira m n e n h u m t i p o d e
mais traquina de todos , bat e na s campai nha s e sai s u b p r o d u t o . Wãtterso n s e m p r e co mbate u a
correndo , grita coisa s atrá s cie u m t a p u m e par possibilidad e d e qu e seus personagen s fossem
a assusta r o s passantes. Claro, depoi s faz uma transformado s em criaturas pueris cie plástico o u
reflexão, um tant o quant o adulta, de c o m o essa e pelúcia , o u q u e t h e s s e m sua s excentricida de
a faceta mais sórdida da sua personalida d e e acusa-s s diluídas e m bone cos , camisetas, desenho s
e de covardia . Tam bé m e adulta sua consciênci a animado s e pr o pa g a nd a s . Dessa forma, mantev e
de q u e a culpa de p o u c o ajuda para preveni r um control e absolut o sobr e o texto e a atitude de
nova s travessuras . Calvin, q u e dizia ser um alterego seu. mas nã o um
Para representa r a infância propria me n t e dita retrato da sua infância. Kis c o m o ele descrev e sua
e poder fazer piada s co m a lógica infantil, foi relação co m o perso •
precis o nascer Guille. o irmã o caçula cie nagem : [...] "eu era um m e n i n o amável ,
Mafalda. ess e sim transita dentr o de um univers o q u i e t o e obedien t e - exatament e o opost o de
co m p o st o cie papai , mamã e e chupeta . Guille é uma Calvin. I ma das razões porqu e gosto tanto d e
gracinha , faz artes de criança p e q u e n a , e e sua irmã desenha r esse personage m é qu e seguidament e eu
e seu s amigo s q u e d a o discursos d e f e n d e n d o sua nã o concord o com ele. Calvin reflete minha
liberdad e d e expressã o , o u seja. seu s direitos de condiçã o adulta, mais do qu e a minha infância.
corre r p el a d o e de s en h a r na s parede s da casa. Muitos do s conflitos cie Calvin sao metáforas do s
Mais tarde, junta-se ao grup o uma voz ainda mais meu s próprios. F,u suspeito qu e muitos de nó s ficam
politizada q u e a de Mafalda, chama-s e Libertad. Fmbor a a velhos sem crescer, e qu e dentr o cie cada
nova personage m tenh a a mesm a idad e qu e Mafalda, é adulto (às vezes nã o é precis o ir muit o fundo)
muito peque n a na estatura, o qu e contrasta co m há um pirralho qu e que r tud o do seu jeito. F.u
a sua enorm e capacida d e de se expressar . uso Calvin com o um escap e para minh a
Libertad é pequen a c o m o a liberdad e q u e havia n a imaturidade, com o u m m o d o d e manter-m e
époc a dessa s tiras e fica irritada q u a n d o as curioso sobr e o m u n d o natural, com o um mei o
pessoa s tiram a óbvi a d e ridiculariza r minha s obsessões , co m o forma de
observar a natureza humana.""- elucubraçõe s de se u criador, Calvin tem destin o similar
Fiel a essa condiçã o de ser um veículo para as

J 281
Fada s n o Div a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infanti s

à Mafalda e ao s Peaimts, el e é um a Afinal, talvez a nó s també m poss a parece r que amistoso. O


crianç a q u e filosofa. Sentad o no alto de Lima a realidad e sej a carent e d e aventura s tanta
árvore, a n d a n d o de carrinh o d e lomba, n a cama e s p a c i a i s , dinossauros , histórias d e piratas, compe
n a hora d e dormi r (q u e sempr e consider a monstro s embaixo tia cama e distorçõe s no espaç o percebemos
dem asiad o cedo) , discut e co m seu amig o tigre e no t e m p o . Essas e muitas outra s sã o a s história.
sobr e a naturez a huma na , sobr e nossa s aventura s q u e ess e meni n o nos abr e a possibilidade Haroldt
esperança s e temores . de viver, co m o fez com seu criador. Alem tlisso. parec e
q ua n d o a
O assunt o preterid o de Watterson é a atraent e pode r e m p r e e n d e r essas esi tigre
distorçã o acompa
d a realidade , qu e s e apresent a tant o no s viagen s imaginárias, co m o únic o risco de se expo r ao poi s Calvin
freqüente s deva neio s d o m e n i n o - s e m p r e ridículo q u a n d o se devanei a em lugar errado . s s a b e que lá
imaginan d o tramas Calvin \
grandiosa s povoada s d e monstro s - . qu a nt o na s e um escapista, e o faz co m a procuraçã o tle tigre é
sua s brincadeiras , q u e invade m a realidad e e se totlos seu s leitores, cansado s tia vida parct Calvi n
mescla m co m ela. Por isso, é inútil discutir se unidimensional . Além tlisso . a fantasi a é segur a não agradável
seu tigre é um amig o imaginári o clássico, d o e Watterso n explor a o contrapo nt o entr e a vida e f vida
infantil protegid a tio menino cotidian
tip o q u e a s criança s
inventam, co m o uma duplicaçã o de si mesmas , e sua s perigosa s aventuras , o n d e ele seguidament e carro ,
qu e diz o q u e elas n ã o ousa m e sent e o q u e se identifica co m os monstros . sentan
elas n ã o assistem à T\
ad m ite m , ou se ainda faz a s v e z e s d e A fantasia tle Calvin revel a pe ri g o s q u e os temas e
objeto seu tt
transicional. De fato Harold o é isso. ma s m u n d o n ã o tem, além tle uma dimensã o gororobas qu
acima de monstruosa,
tud o ele e mais uma da s várias representaçõ e s agressiva e pretlatlora . q u e habita noss o interior, Em com
que mas
sua vasta imaginaçã o lhe permit e ter. Outra vez. qu e geralment e é inexeqüível , po r sorte. Por isso. m u n d o imagir
na s palavras cio autor: "Calvin vê Harold o de um há tant a graç a na s o c a s i õ e s e m q u e o a identidade
jeito e m e n i n o está
todo s os outro s o vêm de outro . Ku mostro dua s versões c o m p o r t a n d o - s e (e sentido -s e) c o m o um está por
terrível denti
da realidade , e cada uma faz complet o sentid o tiranossauro tlevorado r tle humanos , enquant o sua mãe seu s devaneio
para o
participante qu e a está v e n d o . Ku p e n s o q u e é man d a q u e ele limpe o nariz, p or q u e para ela um a
assim q u e a vida funciona. Ne nhu m de no s vê essa p ei i o r m a n c e nã o passa tle uma criança identidat
o mundo engasgada, muito pobre,
exatament e da mesm a forma, e eu a pe n a s fungand o muito . Co m o se vê, é um a fantasia a riqueza intei
desenho segura,
isso literalmente na s tiras."1' pois jamais seremo s devorado s po r um monstr o tlesses. que
K nessa direçã o q u e dev e ser lido també m o mal- ne m correremo s o risco tle destruir nosso s semelhantes. tangenci;
co m ele. mas
en te n di d o constant e entr e Calvin e seu s pais, Porém , viagens tão sem riscos ap e n a s Talvez
como aprofundam o
L
el e diz. certa feita "estou c o n d e n a d o a viver sentiment o tle solidão, pois no devanei o ningué m nos representar tà
com
pessoa s co m as quai s mio me relaciono!" A infância se acompanh a. relações
pe.k
presta be m para evoca r o desenc ont r o entr e submetidos. (
aquele s
qu e s u p o mo s q u e deveria m se en te n d e r e evidencia nosso s dias dt
a solidã o q u e e possíve l senti r m e s m o q u a n d o Calvin, o qu e
s e é zelosament e atendido . solipsista examinai solo .
Ele tem
A família de Calvin é interessant e , seu s «yt*3. m Calriii e Haroldo já temo s uma redor. De
pai s família cei
parece m ter um mar de paciência e. fora alguma s \ eze s '{ ~".%í letluzitla, típica tio fim tio sécul o XX, e são
toda coadjuva
e m qu e s e descontrolam , e m geral costuma m combate r suas afrontas no máxim o co m ironias e sarcas
mos . Inclusive eles aceitam tratar o tigre dentr o *% '*%%; 'i solidã o q u e a a c o m p an h a . É um menino mostra r as
do m o d o tle 6 anos . filho únic o e mimado , mas o
isso impossível.
Embora
n a o significa q u e s e sinta p r ó x i m o tle seu s
pais.
de ver tio menino , sempr e q u e est e assim o e n q u a n t o eles t a m p o u c o interagem com sonalidade.
exige . A outro s o
escola é uma chatice, ma s no fim tias conta s a parente s ou person agens . Sua vizinhança c e n a r com
velha também é C
professora e o diretor sã o até tolerante s co m e c o n ô m i c a e m r el a c i o n a m e n t o s , re s u m e- s e a segund o persc
aquel e uma
alun o q u e jamais faz o q u e deve . A única amiga. Susie amiga . Susie. e m q u e m conce ntr a seu s existem histór
interesses,
(secretamen t e amada , conform e suger e Haroldo) . geralment e bélicos, ma s à s veze s c o m o u m exceções, que
é disfarce
sistematicament e maltratada, mas continu a par a sentimento s am oros os . Nã o é se m razã o qu e e a missão
brincand o co m ele. Knfim. n ã o é p o r q u e a seu principal interlocuto r é um tigre tle pelúcia . qi contrace na
realidad e é terrível r
q u e Calvin se refugia em seu m u n d o paralelo , Esse tigre chama-s e Harold o e apresenta-s e existem algurr
ele o soh
faz p o r q u e ess a outr a d i m e n s ã o p a r e c e esta r dua s formas: ora ele é um simple s bich o de viajando no te
ali, pelúcia,
c o n s t a n t e m e n t e c o n v i d a t i v a , pa r a c o n t r a p o r - s e e n q u a n t o existe m outra s pessoa s presentes ; mas basta de outro
à temj
chatice e â me diocridad e de seu cotidian o de o olha r alhei o sair de cen a e ele se transforma duplicadora, o
criança num
pequena. tigre de verdade, irrequieto , barulhento , poré m próprio
muito "clor

282
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co rs o e Mári o Co r s o
o u aind a através d e um a máq uin a duplicadora , co m
q u e p o d e construir um a cópi a d e s i p r ó p r i o " c l on a d o
" o u c o m ligeira s m o d i fi c a ç õ e s .
amistoso. O tigre p r e e n c h e a solidã o de CaKin
co m tanta com petên c i a q ue , d e certa forma,
q u a s e n ã o percebe mo s o q ua n t o ess e sentiment o
é a tônica da história.
Harold o está co m ele na trágica hora de
dormir,
(juando a escuridã o parec e pov oad a cie ameaças
. O tigre a c o m p a n h a - o e n q u a n t o esper a o ônibu s
escolar, pois Calvin se angustia muit o na hora de
ir à escola, sabe q u e lá vai dar tud o errado . Mas ne
m só na do r o tigre é parceiro , t a m b é m no s
m o m e n t o s d e praze r Calvi n nã o dispens a su a
companhia , com o n o agradável e pr ol o n ga d o
tédi o da s férias. Ta mbé m na vida cotidiana, o
amig o partilha o banc o de trás cio carro,
sentam-s e juntos á mes a para co m e r cereais ,
assistem á TV. ele vê Calvin fazer (ou melho r
enrolar ) os tema s e testemunh a a luta de seu
d o n o contra as gororoba s q u e a mã e serve no
jantar.
Km contraste com o isolamento do menino ,
cujo mund o imaginário é tão inapreensível para todo s
quant o a identidad e secreta de seu tigre de
pelúcia. Harold o está po r dentr o de tudo . afinal ele é
pait e integrante cie seus devaneios . De certa forma, o
tigre e o menin o têm uma identidad e ness e aspecto : o
qu e os outro s vêe m é muito pobre , as aparência s
engana m muito e ocultam a riqueza interior qu e so
existe num a dimensã o paralela que tangencia o m u n d
o real. po r vezes se confund e com ele, mas é
invisível ao s olho s cios outros.
Talvez um a da s razoe s de seu sucess o seja
a de representa r tã o be m o isolamento , o
afunilament o de r e l a ç õ e s pessoai s a qu e
estamo s cad a dia m ai s submetidos . Calvin é
um heró i solipsista para e c o m o nossos dias de hoje.
Ao contrário da s turma s cie crianças que exa mina mo s
antes , agora temo s u m p ersonag em - solo. Fie tem
um a presenç a forte e tud o gira ao seu redor. De
certa forma, todo s os outro s person agen s são
co a dj u va nt e s , serve m par a m o n t a r a cen a o u
mostra r a s c o n s e q ü ê n c i a s d o s ato s d e s s e
m e n i n o impossível.
Embor a consiga m d e m o n s t r a r um a certa
per • sonalidade , os pais e Susie só existe m para
contra• cena r c o m Calvin , t a n t o é assi m q u e
H a r o l d o . o segund o personagem , é praticament e seu
alterego. \ à o existem histórias se m a presenç a de
Calvin, salvo raras exceções , q u e serã o sobr e seu s
pais falando sobr e ele e a missã o q u a s e impossível
de criá-lo. Nã o bastass e c o n t r a c e n a r consig o
mesm o atra v é s de H a r o l d o . existem alguma s
histórias e m qu e ele s e duplica , tant o viajando n o temp o
(ind o encontrar-s e co m "ele m e sm o d e outr o tempo") ,
e irônico do s pais e a verdadeir a intolerância co m
as crianças, qu e aparec e nessa jovem .
visand o a q u e sua duplicata desempenhe
tarefas no seu lugar. 283

Personagens coadjuvantes
S a escola, a solidão de Calvin nã
o é muito diferente. Qua nt o aos
colegas, o único perso • nage m qu e
aparec e é Moe. um menin o da
mesm a idade, mas maior, burr o e muito
forte,
qu e atazana a vida de Calvin sempr e qu e pode
. Calvin tenta embaraçá-l o co m tiradas inteligentes,
mas isso ne m sempr e funciona, pois ele é tão tapad o
qu e ne m perceb e as ironias qu e lhe são
dirigidas. Susie també m é sua coleg a de aula.
e a relaçã o na escola nã o é muit o
diferente do qu e a qu e eles mantê m na
vizinhança, na qual um está sempr e ã espreita
para atacar o outro.
Durant e as aulas. Calvin passa a maior
parte do t e m p o "viajando" num a espaçonav e com
o Cosmonaut a Spiff, um herói q u e n ã o dá
trégua s ao s alienígenas inimigos. Kmbora ess e
astronauta seja um preparad o piloto de
combate , muitas veze s é capturad o e está
preste s a ser torturado , q u a n d o Calvin é acordad o
para a realidade . A perplexida d e do s adulto s
c os olho s vidrado s a c o m p a n h a d o s cie um
certo sorriso sã o os indícios qu e noss o herói
está em mais uma de suas aventura s
espaciais imaginárias.
A professora, Miss Wórmwood . é uma
senhor a m ai s v el h a , cuja c o m u n i c a ç ã o c o
m o m e n i n o é inexistente. Kla é impassível e
Calvin na o presta atençã o no q u e ela diz. afinal,
passa a aula cm outr o planeta. Q u a n d o ela
tenta contat o co m o aluno , interrompen d o seu s
devaneios , normal me n t e é representad a
com o u m enorm e e viscoso monstr o
alienígena d o planeta Zorg. Aliás, seguida ment
e a voz do s adulto s penetr a na s clivagações
onírica s ás quai s Calvin se entreg a
(principalment e n o colégio) e n c a r n a n d o uma
forma m o n s t r u o s a e persecuté)ria . q u e . a o
desperta r d o me nino , contrasta co m a
puerilidad e da cen a real q u e ele protagoniza .
Quand o o s pai s precisa m sair.
contrata m um a babá . um a adolescent e q u e
sab e o qu e lhe esper a e acaba s e n d o mais
severa qu e a mã e para doniarCuWm. Rosalyn
parec e ser um a da s pou ca s pessoa s q u e met e
m e d o ness e pestinha . A crueldad e de
Rosalyn e seu d e s c a s o profund o co m o
menino , qu e r e pr es e nt a a pe n a s u m bic o
desagradáve l q u e ela faz, contrasta m co m a
atitud e d o s pais de Calvin. Aqui fica
ressaltada a diferença entr e o afeto b e m - h u m o r a d o
Fada s n o D i v a — P s i c a n á l i s e n a s His t ór i a s Infanti s

A parentalidade missão . Por isso tant o dedica m muita energia , depoi s que
desvelada quant o se questiona m se vale a pen a semelhant e fardo. c
Numa Esses pais pa
••*"•'«;.. s pais ile Calvin estã o se mpr e o c u p a d o s em tira. CaKin e o pai travam o seguint e Moraes, em s<
devere s intelectuais o u domésticos , eles diálogo:
so
" . va o a o e n c o n t r o d o filho par a (Calvin) - Você talou que . qua nd o você vira I...I Filhos sa
m a n dá- l o d e s e m p e n h a r alguma tarefa. Para pai. recebe uni livro que explica tudo no inundo? Melhor não
conxersar. i Pai) - Certo. Mas se não
e se mpr e o filho q u e vai ate eles. Ides sa o
sarcásticos,
sabe m o problem a q u e têm em casa e tenta m (Calv in ) - Posso vedo? Como sabê-
enfrentá- lo co m um cert o h u m o r (as veze s beirand o a ( Pai) - Receio qu e nai >!
irritação).
Kssa atitude ilustra a parte inglória cia ((Calvin ) - Por quê? Xào
parentalidade . já q u e seu p e q u e n o d e m ô n i o na o iPai) - Ide explica com o c criar um filho. sã(
dá tréguas , e uma m á q u i n a d e produzi r (CaKin) - Kntáo? parentalidade
contusõe s e ciar t r a b a l h o . Personagen s sem
(Pai) - Você' na o pod e saber sobre isso ate que necessária pa
no me , p o u c o sabem o s deles , a na o seja do homem,
i
ser qu e o pai trabalha nu m escritório e a ma e faz u r d e demais para nã o ter Porém, o poe
algo uni.
na máquin a de escrever. cia, pois
A funcao do s perso nage n s do s pais na historia P ar ec e n a o h a v e r m u i t a s d u v i d a s d e filhe cem . os
e demarcad a desd e o prisma do menino : estã o lá qu e a empreitad a cie ter um filho e um cami nh o vers<
para árduo , sem
atendê-lo . impo r limites e ter sua atençã o gloria e q u e . cas o soub ésse mo s o q u e vem pela (rente, Como saber
polarizada pela criança. A tarefa dele s e resistir á ningué m ousaria . Por outr o lado . o recurs o Que maciez
de m a n d a , ma s o resultad o e o inverso: tant o desses pais. qu e aparec e mais d e m ar ca d o no pai de- Que cheiro
q ua n t o ele rei\ indica incessantement e e eles tenta m Cahin c seu pe n d o r para um hu m o r absurd o (qu \ a sua
dai" menos , mais ele os e seria unia cam
convoca . O resultad o e um de se n co n tr o ostensixo bo a font e de iclentilicaca o par a a c a p a c i d a d Que gosto c
. e cie fantasiar cio filho), e uma forma de
() casal na o escond e as diliculclacles da enlrenta r a tarefa
emprei •
tada e. apesa r de qu e o clima entr e eles e sem esmorecer . Para clej
de- uma c u m p l i c i d a d e b r i n c a l h o n a . por vezes De torma crescente , o hu m o r tem se tornad o um
acusam-se
mutuament e por lerem tido alguma influência cios atributos masculino s mais valorizados Chupam gil(
nociva contempo
no caráter do filho. Kmbora seja um me nin o raneament e . t' m ho m e m co m hu mo r demonstr a bebem
inteligente ler shar
e possua uma criatividade inesgotável, suas capacidade s Lima \ isao crítica e particular do m u n d o , assim Ateiam fogo
sempr e se re\ela m dá forma mais conturbad a como d a m u l h e r q u e ele deseja. Junto as Porém, que
possível, mulheres
ele jamais faz o necessário para orgulhar ou indepe ndent e s e esforçadas q u e se precisa seduzir hoje e Que coisa k
agradar aos pais ou á escola, pel o contrário. Pies já m dia . na o h á muit o e s p a ç o par a o Que coisa li
abandonar a m a esperanç a de qu e as coisas sejam romantismo arrebatad o ou para o patriarcad o Que os filhe
muito diferentes, qu e o filho possa melhorai", ostensivo ; a sedução melosa ou o machism o
parece m resignados com as chatices educativas qu e
exacerb ad o estã o com seus dias c o n t a d o s / Wattersc
têm pela frente. Algumas vezes, um pergunta ao
outr o se está arrependido , a pergunta fica sem Apesar de desempenhare m papéis cie acordo com o expo r as ferie
resposta, mas cie uma coisa p o d e m o s ter certeza: Calvin model o tradicional, em qu e o pai sai para o escritório e o qu e
na o vai ter nenhu m irmão. a mã e taz suas tarefas em casa, os pais de nessa s a o
Cahin parece m ter uma relação horizontal, um ma
Numa da s tiras, da s raras e m q u e eles co n se g u e m
camarada, sendo incomodaçõe
desestabilizar o filho. Calvin pergunt a c o m o veio qu e a mã e mostra ter Lima língua tão ferina filho leia o
ao e uma t;
m u n d o , o pai (qu e sem pr e q u e p o d e inventa capacidad e crítica tao aguçada quant o a do pai. Knfim. é para lhe
histórias neg;
mirabolantes) lhe resp ond e q u e eles o comprara m nu m Lima família moderna porqu e a hierarquia é mais alegórica Convém
super merca d o , por uma pechincha . A mãe . ante s do qu e factual. e a relação do casal é fraterna família são
de (embora t;
consola r o filho q u e está chorando , ve m na o sem tensê)es) no qu e cliz respeito á divisão de tarefas. tem a cias tiras
censura r o pai. Pxistem m o m e nt o s de afeto tamiliar. Os pais de Calvin íoram acusado s de serem cia impossibil
ma s eles sã o ínfimos se co mpar ad o s com o constant e um qu e os
mal-entendid o entr e pais e filho. Kssa ressalva tanto quant o sarcásticos com seu filho, e nã o é do teitio hun
serve para situar q u e dess e autor edulcora r sua visão do s vínculos humanos. hipoteticam t
o s pais d e Calvin na o sa o pessoa s sem coração , Mas acreditamo s q u e esses pais já representa m um novo servem
q u e deixariam o p o b r e filho entregu e a um m u n d o m o m e n t o : aqu i s e e s b o ç a um a desidealizac ã o par;
imagi• da desencontros
nári o á guisa de defesa ou compensação. De parentalidade . Ksse casal sab e qu e nã o é muito divertido As tiras 1
jeito
n e n h u m , temo s aqui um a família mo derna , em educar, eles inclusive parece m nã o se realizar na s relações Í
que
grande
os pais sabe m o p e s o e a responsabilida d e coisa co m a paternida de , ela seria c o m o um tigre é uma e?
de sua
fardo,

284

1
Fada s n o Di v a — P s i c a n á l i s e n a s Hi st ó ri a s Infa nti s
parte cia sabedoria interior do própri o Calvin,
como
personalidade s qu e assum e e m seu s devaneios
, o Cos m onaut a Spiff. Calvin foge tia aula par a ficar
"livre par a vaga r pelo s céus , n a n o b r e busc a
d o h o m e m par a investigar o mistéri o do
universo" . F ó b v i o o contrast e entr e a b a n alidad
e da vida e a riquez a q u e a s fantasias n o s
oferecem . Atinai, q u e m vai q ue r e r ficar par a
r e s p o n d e r q u a n t o é cinc o mai s set e s e te m uma
missã o dessa s par a cumprir ?
O s tempo s modernos , pel o m e n o s n o
m u n d o o ci de nt al , assistira m a o r o m p i m e n t o d o s
fios d a s religiões e da s grande s causas . Com o marionete
s soltos, libertos ma s tontos , p ar ec e m o s - n o s c o m
Calvin, n a solidão e no desenc ant o . Fm funçã o
disso, talvez seja natural qu e pu d és se m o s espera r mais
dess a curta vida. qu e já nã o acreditamo s q u e faça
grand e diferença para o destin o da h u m a ni d ad e . Não
m u d are m o s o m u n d o , ne m o destin o da fé esta
em nossa s mãos . Cada vez mais a política e a
economi a parece m tornar-se meca • nismos supra-
hu man os . alheio s á vontad e d o s mortais. K natural qu
e a fantasia se faca grandiosa , pois. c o m o Calvin,
os h u m a n o s nunc a se pergunta m pouc a coisa e
nunc a s e conforma m verda d eir a m en t e co m
a insignificância. A vida de cada um de no s e
co m o a dess e m e ni n o : h á u m ab is m o entr e a
vastidã o d o m u n d o de fantasia (qu e inclui filmes,
cantes, livros e outras formas de devanei o coletivo) e
o encolhi me n t o de perspectivas da vida real.
A sabedori a mei o estapafúrdi a d o tigre ,
q u e Calvin escuta com atenção , contrasta co m a
do pai. qu e e constant e motivo de qu es ti on a m e nt o
e chacot a por parte tio filho. O pai fica di z en d o
també m sua s máximas e da n d o conselho s , q u e sã
o ridicularizados nas tiras. Numa da s mais belas
(visualmente , inclusive). Calvin encontra-s e nu m
m u n d o totalment e cubista. a perspectiva d o
q u a d r i n h o pa re c e ter e n l o u q u e c i d o , com o nu m
q ua d r o d e 1'icasso. o n d e frente e perfil d o
personage m convive m e o s objeto s justapõe m
todo s seus ângulos . A inviabilidade dess e m u n d o
serv e a o menin o com o argument o diant e d e se u pai.
q u e num a discussão lhe havia pr op o st o q u e tentass e ver
a s coisas tlesd e o u t r o s p o n t o s d e vista . Mais
u m a vez , a impotênci a patern a e r e s s a l t a d a /
O pai de Calvin parec e realment e pertence r a um a
geraçã o d e adulto s qu e nã o tem grand e cotaçã o n a
opiniã o d e seu s filhos. Acontece qu e seguidament e a
ironia d e Harold o soa muito parecida com as
palavras paterna s - especial • ment e quant o ao
estilo çlo pai de falar -, ma s vinda s çlo tigre,
co m o vê m isentas çlo p e s o da autoridade . Calvin
as escuta.
Se formos considera r as tiradas de Harold o co m o
u m diálog o consig o m e s m o (co m o ele trava co m
seus duplos , e m outra s ocasiões), teremo s
contextualizada um a da s razões pela s quai s tendemos ,
hoje em dia. tão facilmente para uma ilusão autodidata:
parec e sempre mais viável busca r as resposta s
sozinh o (preferimos buscar na internei, q u e parec e
se r um instrumento impessoal ou no s livros ditos
de auto-ajuda). Pais e professores têm boa s intenções ,
mas sua sabedoria está sem pr e posta em dúvida, pois já
n ã o acreditamos mais na sua capacidad e cie no s
compreender .
As histórias em quadrin ho s sofreram t o d o o tipo
de ataqu e por parte de estudiosos, pedagogos
e político s conserva dores . Afinal, a facilitaç'ão cia
sua linguagem , utilizando a narrativa através de seqüências
d e imagens , pareci a atua r n o sentid o d o
empobre• ciment o de seu público : os jovens, as
crianças e os leitores de jornal. Esperamo s qu e a análise
da s histórias cjue encerra mo s aqui ofereça argumento s
contrários, poi s n ã o foi precis o procura r muit o
para encontrar nelas profundida d e e crítica social.
Provavelmente, a caricatura política e os livros
ilustrados, q u e juntos d e r a m o ri ge m à l i n g u a g e m
do s quadrinhos , lhes emprestara m muito de sua
irreverência. C.) olhar infantil, assim c o m o o humor , sã o
formas de revelar o que o sens o c o m u m oculta,
afinal, po r sort e ou po r azar, somo s engraçado s .
"As crianças sã o as mensagen s vivas qu e enviamos a
uni temp o qu e nã o veremos". J escreveu o mesmo
Postma n qu e citávamo s antes . Certament e
essas personagen s são. ness e aspecto , esse tipo de
criança. Essas liras, já encerrada s po r seu s autores ,
seguirão encontran d o leitores por um temp o qu e os
transcenderá.

Notas
1. "Yellow Kid, o heré>i cia primeira verdadeira
história em quadrinhos, apareceu em dois painéis !...] na
edição de domingo çlo New York World ilo dia T de maio
cie
1H9S. Curiosamente, nesse mesmo ano. em cjue sur«ia o
primeiro personagem cie histórias em quadrinhos do
mundo, se assistia, no mês de dezembro, ao início das
projeções, no Houlevarcl cies Capucines. em Paris, cio
grande sucesso do cinematógrafo Lumière, dando
nascimento ao cinema no inund o contemporâneo'.
In: MOYA. Álvaro. 1 listaria da História em Quadrinhos. Sao
Paulo: 15rasilien.se, 1996. p. 24.
2. MOYA, Álvaro. Sbazam! São Paulo: Perspectiva,
1977, p . n o .
3. LEYTEN, Sônia Bibe. Manga: o Poder dos Quadrinhos
Japoneses. São Paulo: Hedra, 2000, p. 33.
Dian a Lichtenstei n Cors o e Mário Cors o

Fntre os mais importantes precursores cia linguagem Lt. Crianças sabem ser surpreendente s e dizer
cios q u a d r i n h o s , destacamos Ma.x itnd coisas q u e deixa m o s adulto s cie q u ei x o
Morilz caíd o pela esperteza que contém. Porém, isso não
(Alemanha. 1803). dois garotos impossíveis, seguidos faz parte cie um pensamento sistemático, apenas de
por Lhe )eIloiv Kid (F.stados 1'nidos. 1893), sua particular sensibilidade para apreende r e
Mttster Brown ikk-m, 1902). I.ittle Semo (idem. enunciar elementos do inconsciente lamiliar.
1903). send o qu e todos eles eram crianças levadas ou 13. Lm paralel o no Brasil, q u e le mbr e a
sonhadoras. F.videntemente que nesses primórdios mesm a simbologia. pod e ser um português don o de
também havia p e r s o n a g e n s a d u l t a s , an i m ai s e padaria.
outro s ser e s caricaturais, porem era já forte a 10. O irônico é qu e o préiprio Quino foi acusado de ser
presença e a empatia dos heróis (ou anti-heróis) u m pequeno-burguês . e Mafalda seri a
infantis. Para uma história detalhada do gênero, ver um a propaganda do mod o cie vida norte-americano.
MOYA. Álvaro. Historiada I listaria e»i Para Ler Mafalda. de Pablo José 1 lernandez.
Quadrinhos.Si\c> Paulo: Brasilien.se-. 1990. Como pode ser um bom exempl o da miséria da critica
veremos adiante, aproveitamos um conceito de- marxista dos anos 19~0. F.sse ataque a Mafalda e tao
Neil Postman. invertendo- o para título dess e inconsistente qu e nã o vale uma delesa. Para
capítulo. maiores detalhes sobr e essas críticas injustas.
No Brasil, a palavra Pcaitiils foi traduzida ver MOYA. Álvaro. História das Histórias em
para Mindiiiiti. nom e qu e se aplica ao Quadrinhos. São Paulo: Brasiliense. 1990. p.
persona ge m principal. Charlic Brown. porem nã 183.
o pegou, e as tiras sào realmente conhecidas 1 _. No Brasil, foram publicadas com o nom e de
pelo nom e original ou a partir do nom e de seu Calvin e Haroldo. por isso. passaremos a
cachorro Snoopv. que foi progressivamente chamar o tigre por seu nom e brasileiro, com o se
rouband o a cena. popularizou entre- os leitores.
FCO. I mberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo: 18. WATTFRSON. Bill. The Calvin and Hohhes
Perspectiva. 19~9, p. 28~. Tentb Auniversary Book. Kansa s City:
Ibiclem. p. 288. An drew s an d Mc.Meel. 1993 (tradução nossa).
Peanuls: lhe Ari of Charles M Schnl:. F.dited 19. Ibidcm.
and designed bv Chip Kidd. New York: Pantheon 20. "No passado , tratava-se de- conlerir ao amor
Books. uma existência poética, sagrada, quase religiosa:
2001 (tradução cios autores). convém no presente criai" uma atmosfera animada
Ocorrida em Ir de fevereiro, é uma (.lata e festiva, mostrar-s e diverti d o e simpátic o
similar ao Dia dos Namorados comemorad o no |...|. Q u a n d o domina m as coordenada s do
Brasil, porem celebra também a amizade e outros ócio c da personali• dad e nào-convencional. o
tipos de relações afetivas. ideal da relação homem- mulher tend e a liberar-se
"O sucesso do fracasso' é o título qu e o autor de sua antiga gravidade romântica: a
deu ao verbete sobre Peanuls. No seu distração, o riso e o humor pode m triunfar".
entendimento . In: LIPOYFTSKY. Gillcs. La lercera Mujer.
"Pcanuts é o diva mais barato para os B a r c e l o n a : Fditoria l A n a g r a m a . 1999. p .
milhares de fãs do mund o inteiro realizarem t9
sua catarse". In: MOYA. Álvaro. História das (tradução nossa ).
Historias em Quadri• nhos. São Paulo: Brasiliense. 2 1. MORAFS. Vinícius. Antologia Poética. Rio de
1990. Janeiro. Jos é Olympio. 1981. p. 101.
"O desejo de se tornar sábio e de 12. WATLFRSON, Bill. Calvin and Hohhes Sunday
ultrapassar os adultos em sabedoria e ciência Pa,t>es t / 9. V 5 -/ 99 5 L Kan sa s City: A n d r e w
nada mais c senã o uma inversão da situação da s Mc.Meel Publishing. 2001. p. 31 (ver também
criança". In: FKRFNC/.I. Sãndor. Escritos a tira que vai n o mesm o sentido, n a p . " ) .
psicanalíticos. O sonho do nenéni sábio ( 1923). 23. POST.MAN. Neil. O Desaparecimento da Infância.
Rio de Janeiro: Livraria Taurus Fditora.
Rio de Janeiro: Graphia. 1999. p. II.
1983. p. 2 Lt.
POSTMAN. Neil. O Desaparecimento da
Infância.
Rio de Janeiro: Graphia, 1999. Pg. 112c- 11.3.
Anexo
GÊNESE E INTERPRETAÇÃO
DE UM CONTO FAMILIAR

Vampi, o Vampiro Vegetariano


Contos narrados em família - ÇHicMocs sobre casamento ente culturas distintas -
A importância de narrar historias - Mac sulicientemenlc boa - Mãe suficientemente narrativa
- Kspaco de ilusão - 1'uncao paterna - Pais suficientemente narrativos - Iruunscientc
familiar

Mário Corso1

té agora, estamo s no s atend o de criar. No r a s o de unia historia original, temo s


LI ir â influência de histórias, tradi- relato único , fruto de um enco nt r o
pontual : será um : cionai s o u r e c e n t e s , u s a d a s síntese peculia r d e um a
família, e m u m determina d o pelo s pais na relaçã o com seu s m o m e n t o da vida.
filhos. Mas sabe mo s q u e elas Vou utilizar aqui o ex e m p l o de um cas o
particular na o abrange m a totaliLlade do q u e no s p o d e ajudar a compree nde r
e a incentivar a f e n ô m e n o , p o r q u e e x i s t e m criaçã o d e conto s n o context o
familiar. Trata-se d e u m pais q u e narra m conto s d e sua episódi o d a minh a
família, u m cont o elaborad o junt o própri a autoria. Analisar uma com minha
s duas filhas, q u a n d o idas t i n h a m
experiência dessa s apont a para uma direçã o um p o u c o a pr o xi m a da m e n t e 6 (L.aura ) e 3 ano s (Júlia), em
1995. diferente do q u e estamo s fazend o ao long o dest e !i\ ro. Uma da s melhore s coisas qu e
descobr i co m a afinal um a coisa é compartilha r fantasias ( m e s m o q u e pat er n id a d e foi a
o p o r t u n i d a d e de conta r histórias, o ec o seja se m p r e diverso) , outra é criá-las para u m Tant o
c o n t a v a a s d a t r a d i ç ã o , q u a n t o in v e nta v a contexto particular. De certa forma, estamo s diant e da
narrativas para minha s filhas. Foi, no entanto , um a diferença entr e o geral e o particular. Q u a n d o
os pais agrachh ei surpresa constatar o qua nt o os relatos criados toma m e m p r e s t a d o u m relat o j á
est a be le ci d o par a dava m cont a d o s impasse s d a minh a recém-formad a contá-lo a seu s filhos, eles
p o d e m até recriá-lo ao usar família. O resultad o dess a interaçã o é intelectualment e um estilo pessoa l de
narrativa, ma s recriar é diferente óbvio , pel o m en o s para q u e m é familiarizado co m a
Fada s n o Div a - P s i c a n á l i s e n a s História s Infanti s
saber.
Não lembr o c o m o começ ara m me u s
problema s co m o sangue , sei q u e não
ps ic a nál is e , m a s vi v en ci a r a e x p e r i ê n c i a c o m
gost o e pr o nt o . Tomo
tal intensidad e foi marcant e e crei o que , de minh a
parte, foi uma da s causa s dest e livro.
O cont o q u e exa min are mo s foi gestad o ao long o
várias noites, junt o à cama da s meninas . Klas
mesma s se dava m cont a tia divisão entr e as
histórias criadas para elas e as q u e já existiam,
preferind o clarament e as improvisada s a cada
noite, tant o po r mim q ua n t o pela mã e delas.
Q u a n d o estávamo s muit o cansado s para criar,
ne g oc iá v a m o s um a tia tradição , lida ou contada ,
d e p e n d e n d o tio acaso , e elas escutava m co m a mesm
a atenção . Já as histórias criadas geralment e
começava m num a noite e. tlepois de alguma resolução ,
seguia m noutra noite para aproveita r as
persona gen s . qu e entã o viveriam nova s aventuras .
Nesse m o m e n t o , t í n h a m o s já a c o nv ic ç ã o
tia importância tias narrativas infantis para o
desenvolvimento tias crianças. l'nintlo-s e a isso o
fato de elas sere m ouvinte s atentas e
participativas - talvez pel o noss o e m p e n h o -. o
cotidiano da contaçã o de histórias antes de dormir
estava consolidado. Sempre qu e possível, no s
revezávamos para fazê-las adormece r tlepois tle um cont o e
tios comentários qu e a trama suscitava.
N o mei o a tantas histórias, h o u v e um a q u e
m e s ur pr ee n d e u . As menina s ta m b é m ficaram
especial • ment e ligadas a ela, e foi. sem dúvida , a
mais impor • t a n t e tia infânci a delas . Su a
c o n t i n u a ç ã o e r a reivindicada po r meses , c o m o d
e fato aconteceu , ma s eu só fui me dar conta tio
motiv o tio a pr e ç o tlepoi s de um bo m tem po . O
process o era ativo, praticament e

VAMP I

O Vampiro Vegetariano
V£*?J^ e você s acha m q u e têm problema s é p or q u e
; >*%%• nã o c o nh e ce m os meus . Nasci
vampiro , o
{!'*»' i ; q u e em si n ã o é n e n h u m
p r o b l e m a . Acontece q u e soti u m vampir
o vegetariano .
Aliás o único . Nã o c o n h e ç o outr o vampir o q u
e s e aliment e só tle vegetais. Isso potl e ate soar be
m entr e v o c ê s , e u se i q u e c a d a di a há
m a i s h u m a n o s vegetarianos , ma s para um vampir
o e um desastre .
Por sorte consig o mante r e m segredo , morr o
tle m e d o qu e meu s amigo s descubram .
Você s n ã o c o ns e gu e m n e m imaginar a vergonh a
q u e seria para minh a família se todo s viessem a
merament e tle estilo e facilidade narrativa, mas. quando
foi conta do , a narrativa era em terceira pessoa .

um a criação coletiva, poi s minha s filhas nã o aceitavam certa s


cenas , q u e retirava m d o e n r e d o , b e m com o
sugeriam passagen s e polemizava m em torn o de nomes e
características da s perso na gens .
I 'm an o tlepois, Laura ilustrou esse p e q u e n o conto, e
fizemos uma ediçã o caseira, em forma tle livro infantil, para os
catchu p ou suc o tle beterraba . C o m o esse s
amigos. Foi ness e m o m e n t o qu e ele ganho u a forma escrita
sucos são vermelhos , to d o m u n d o acha qu e é
a seguir. Fste cont o é a narrativa original, o primeir o
sangue . Nunca falei diss o para ninguém , é o me
episódio . D e p o i s d i s s o , a s m e s m a s personagen s
u segredo .
viveram outras aventuras; poré m é nessa primeira forma
qu e elas são lançadas, qu e está a chave para se entende r o Na verdade minha mãe sabe. é ela que m
seu impact o junto âs meninas . prepara as poçõe s tle vegetais qu e tomo . nã o parec e
gostar tlisso. mas nã o que r qu e eu passe fome. Aliás ela
Repito, n ã o h ou v e intencionalida d e nenhuma , eu
também não com e direito, nunca a vejo comer, está
nã o tinha a m e n o r idéia tle po r q u e estava contando essa
sempr e tle dieta... Mas me u segred o eu poss o contar a
história. Contav a p o r q u e algum a tinha tle ser
contada , e ela foi n as ce n d o no diálog o co m as crianças. vocês, porque igual vocês nã o conhece m nenhu m
T a m p o u c o escolhia um a ou qualque r outra tias que vampiro mesmo.
me ocorria m c o m o fábulas instrutivas para este ou Fsta minh a mania sem pr e me fez pensa r
aquel e m o m e n t o d o cresciment o tias meninas . Como muito, sempr e qui s sabe r po r q u e eu era tã o esquisito.
qualque r pai. tecia minha s narrativas sem quaisquer O que me consol a é q u e eu t e n h o um a família mei o
i n t e n ç õ e s psicológic a s o u p e d a g ó g i c a s , inventava esquisita t a m b é m .
guiad o mais po r um sens o estético e lúdico do que Eu sou o mais velh o do s irmãos . Depoi s tle mim
po r qual que r outra coisa. ve m a Vampirela. Uma vampir a de verdade , qu e adora
Co m o é um cont o p e q u e n o e estamo s tliante de um um a sop a de s a n g u e q u e n t e . Se b e m q u e
estud o tle caso , mais vale a leitura na íntegra tio q u e ela tem
uma sinopse . F precis o levar em cont a qu e na
versã o escrita utilizei primeira pessoa , po r questões

290
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o Co r s
o

uma s coisa s diferente s ta mb é m . Possui u m Par a mi m i s s o foi a got a d'água .


armári o chei o d e bicho s d e pelúci a e arranjou u F i q u e i desc onsola do , q u e bela porcaria d e
m n a m o r a d o h u m a n o . Nà o sei s e você s sabem , vampir o q u e e u era. O q u e o me u pai ia pensa r de
ma s o n a m o r o d e vampiro s co m h u m a n o s é mim? Resolvi entà o descobri r o q u e estava errad o
rigorosament e proibido . Se papa i soube r disso, o comigo , po r isso fui detetivar a minh a própri a
castel o cai. Bichinho s de pelúcia até q u e passa, vicia.
emb or a seja ruim para a reputa çã o de uma Co m o começa r um a investigação é qu e são
vampira , ma s namora r h u m a n o s é terrível. elas, mas meu instinto de recém-detetive me ajudou.
Depoi s dela ve m Vampricila, ela tem a mani a Comecei a procura r pistas no s álbun s de
cie trocar a noit e pel o dia. Xós so mo s sere s fotografias da família. Mal sabia o q u e me esperava.
da noite , ficamos a c or da d o s de noit e e Just o ali minhas suspeitas se confirmaram.
d or m i m o s durant e o dia. Minha irmã aproveita a luz O ba ú de recordaçõ e s da família tinha de
do dia, e n qu a nt o nosso s pais d o r m e m , par a ve r tud o ma s n à o havia nad a sobr e a vida d a minha
p r o g r a m a s m e l o s o s n a T V humana . Além disso, mã e ante s cio casa mento . Estava t u d o chei o de
brinca co m uma s b o ne c a s q u e se c h a m a m Barbie. tios. tias, avós. bisavós , tataravôs . pa d ri nh o s ,
Nã o sei o n d e ela consegui u essas coisas . Po r antigo s amigos , ma s nada , nadica cie nad a sobr e
aqu i m e n i n a s v a m p i r a s b r i n c a m c o m boneca s m a m ã e e a sua família.
bruxas , co m monstrinhos . sapo s e lagartixas. T en h o O q u e escon deri a o p a s s a d o d e minh a
doi s irmão s gême os : Buda e Pest. os doi s mãe? Send o sincer o comig o mes m o , eu já tinha
adora m animais, po r cert o vã o ser veterinários. percebid o q u e havia u m mistério, mas nunc a quis
Não pode m ver u m dragã o sarnent o e esca mos o pensa r nisso, afinal, mã e é mãe .
a b a n d o • nad o pela s ruas q u e já o traze m para o A v ontad e de en te n d e r o qu e se passava
castelo. Nosso castelo já está chei o de dragões , hidras comig o falou mais alto e resolvi seguir minh a
e cachorro s de três cabeças . Esses sã o o s q u e meno s própria mãe . Peguei minh a lupa (nà o sei po r que .
m e pr eo c u pa m , ach o q u e sã o vampiro s m es m o . ma s tod o detetive usa uma ) e comece i a seguir
O me u irmã o caçula, Yampeter. aind a n ã o seu s movimentos . No c o m e ç o foi muit o
sab e caminhar, vive n o col o d e minh a mãe . a m o n ó t o n o , mã e cozinhand o , mã e fazend o a cama .
Condess a Vanessa. m ã e corrigind o temas... Quas e desisti, ma s a
Sou filho d o Cond e Yampir, ess e n o m e n ã o curiosidad e é um bichinh o dentr o cia gent e qu e nã o
lhe diz nad a poi s voc ê é h u m a n o , se fosse um a no s larga.
criatura deste lad o d o m u n d o , seu sangu e gelaria Finalmente , houv e u m moviment o
a o ouvi-lo. Só de ver me u pai. seu s olho s penetrante s e s u s p e i t o . Ma mã e p r e p a r o u o carr o par a sair.
as cicatrizes que ele tem n o rosto, marca s d a guerr a d a ma s já estav a a m a n h e c e n d o , deveríamo s ir todo s
Burgúndia , qualque r u m treme . para a cama . que r dizer, par a os caixões . Aquilo nà
Bom, també m vive n o castelo me u tio Yampirelo. o lazia sentido , entà o fiquei atento .
mas meu pai n à o gosta muit o q u e falemos dele D e p o i s q u e t o d o s e m casa do r mi a m ,
. diz que é um ma u e xe m p l o po r toma r muit o m a m ã e furtivamente dirige-se à garage m levand o
formol. Ele é um vampir o formólatra. Yampeter. Cuidadosament e , segui os dois. Estava
N o me u aniversári o d e 1 3 anos . t u d o agitado, alguma coisa m e dizia q u e estava entrand
m u d o u . Talvez você s nã o saiba m d o s costume s do s o n o mistério.
vampiros , eu explico: q u a n d o um vampir o m e ni n o Nu m de sc u i d o d e minh a mãe , escondi-m
faz 13 anos , seu pa i l h e e n s i n a a s p a l a v r a s e n o a t a ú d e . Noss o carr o é um a peru a preta
m á g i c a s pa r a s e transformar e se destransforma r , u m carr o fúnebr e superchique . ("orno sem pr e
em morcego . T o d o o vampiro aguard a ansiosament e tem um caixã o dentr o do carro, usei-o para me
ess e dia e comig o n à o foi diferente. esconder , e dali dava par a continua r e s pi o n a n d o
N o di a t ã o e s p e r a d o , e u d e s c o b r i q u e se m ser visto
tinh a vertigem, consegui a voar ma s s ó pert o d o Arrancamos e começamo s a rodar. Com o
chão . Nã o foi um fiasco maior po r q u e engane i a todos . estava escondido , nã o sabia para ond e estávamos
Saí voand o n o mei o da s p e r n a s da s pessoas , e elas indo. Tive dois medos . O primeiro qu e o dia
pensara m q u e eu estava brincando . Dep oi s saí pela estava chegando , o sol saindo, e vocês be m sabe
janela mas . na verdade, fiquei escon did o d o lad o d e m o qu e a luz do sol faz co m os vampiros:
fora d o parapeito . Uns minuto s de p o i s voltei arfando , ficamos reduzidos a pó.
n ã o cie cansaç o e sim de susto . Outra coisa é q u e o carro começo u a rodar macio.
N o m u n d o do s vampiro s n à o h á asfalto, po r isso sentia
q u e estávamo s j á n o m u n d o do s humanos . Existe
um a passage m secreta q u e separ a o s doi s
m u n do s , s ó o s vampiro s co n he c e m .
Fada s n o Di v a — P s i c a n á l i s e n a s His t óri a s Infanti s

Sinto nã o confiar e m vocês , ma s nã o poss o contar, Aquela human a parecia-me familiar, na


a l é m d i s s o , d e t e s t o tu rista . I m a g i n e m s ó o verdade, era extraordinariamente parecida co m a minha
q u e aconteceri a co m a calma d e noss o m u n d o màe. Essa semelhança colocou mais um enigma na
s e você s chegassem ! minha cabeça, c o m o se n à o bastassem as dúvidas qu e
Mas o q u e fazia minh a m à e s e eu já tinha.
aventura r n o m u n d o do s h u m a n o s durant e o dia? Tive uma curiosidad e m e d o n h a de escuta r o
Iríamos \ irar pó? Alem disso, o Vampeter. no que elas falavam e grudei me u ouvid o na porta.
ba n c o cie trás. me Escutava mal. n à o consegui a e nt en d e r qual era a
viu espiand o e nã o parava de dizer: "qu é brinca conversa , mas p a r e c i a a m i g á v e l . Parecia m dua
co m Vampi". Minha màe . po r sorte, tinha q u e olhar s velha s amiga s con versand o . D e repent e
para a frente e pensav a q u e Vampete r estava co m perceb i q u e havia um a coisa horrível e disforme,
sauda des . Mas aquil o demorav a muito , e o carro um cachorr o aleijado, co m uma só cabeça ,
sacudia, e latindo atrás de mim. Era branco , pequen o e
eu estava cansad o e... ningué m e de ferro, dorm i peludo . nunc a tinha visto coisa mais asquerosa .
em plen o exercício cio dever, ( m a desonr a para a Nào pense i q u e fosse possível, ma s fiquei
classe do s detetives. com mais m e d o do q u e já estava, o cachorr o
Q u a n d o acordei , o carro estava pa ra d o no latia para mim. Fiquei pres o entr e o monstr o e a
sol. Nunca tive um sust o tão grande . Nem q u a n d porta. Por um m o m e n t o a voz se torno u mais clara, a
o fiquei d e p e n d u r a d o d o l a d o d e fora da estranha estaca mais próxim a da porta e disse
janel a n o m e u aniversário. Kra em plen o dia assim:
claro. Preparei-m e para virar pó. "Vampeter . tenh o Lima surpres a pr a
Num susto dentro desse susto, vi qu e minhas pernas já ti. O cachorrinh o do vizinh o está na porta latindo,
estavam no sol. Pensei qu e estava consciente, apesar ele vem t o d o dia me visitar".
de morto. Tud o isso é um pouc o confuso, pois nos. Q u a n d o pense i em me es c on d e r já era
os vampiros, já somo s mortos-vivos. O lato é qu e nã o tarde, além d o mais n à o poderi a passa r pel o
virei pó . Fique muito impressionado e ainda mais terrível animal. Por sorte e po r azar. a estranh a
curioso. h u m a n a abriu a
Seria eu o descobrido r q u e essa idéia fixa co porta, e eu caí de cara no chão . Foi tud o muit o rápido,
m o sol q u e os vampiro s têm seria ap e n a s um a fiquei ali no ch ã o se m sabe r o q u e fazer.
superstição? Será q u e p a s s a m o s s é c u l o s fugind o Minha màe parecia mais assustad a do qu e eu.
d e u m falso inimigo? O sol n ã o seria ess e Depoi s a cara dela m u d o u pa r a b r a b a . d e p o i s
terrível aniquilaclor de vampiros? Ou sou eu o m u d o u par a trist e e c o m e ç o u a chorar.
diferente, e isso faz part e do mistério qu e V a m p et e r er a o ú n i c o q u e m a n t i n h a o
persigo? bom humor , ria muito e queri a brincar. Eu nà o
Minha cabeç a girava, eu seguia nervos o e acuado . sabia o que dizer, a hu man a come ço u a chora r
Enxergava mal co m tanta claridade . Estava em também .
plen o dia n o m u n d o do s h u m a n o s e n ã o sabia Mulhere s sã o c o m o vampiras , pensei ,
c o m o voltar. Meu pai tinha m e c o n t a d o sobr e quand o n à o sa b e m o q u e fazer chora m . Tive
inúmera s guerra s q u e o s h u m a n o s t r a v a r a m um a imensa vontad e de chorar, mas um vampir o nã o
e n t r e s i e d e c o m o . friamente, maltratavam-se e chora. A muito cust o consegu i mante r a calma.
matavam-s e po r p e q u e n a s diferenças. O q u e n ã o Pelo m en o s po r fora. q u a n d o levantei senti as
fariam co m um vampiro? minha s perna s c o m o se elas fossem teitas de
Saí do carr o tont o de tanta luz e lui gelatina. Meu coraçã o parec e que o c u p a v a t o d
procura r minh a màe . Não estava mais perseg uind o o o m e u peito , p e n s o q u e chegav a a e s c u t a
o mistério. eu queria era encontra r minha mãe , r s u a s b a t i d a s . N a v e r d a d e e u devi a
estava mort o de m e d o . Tinh a certez a d e q u e . tuna explicação , ma s minha mà e também . Q u e m
s e u m h u m a n o m e reconhecess e , me u tini seria começaria? A humana começou. Veio em minha
lent o e doloroso . direção com
Caminhe i até a casa mais próxim a de o n d e noss determinação. Pensei qu e seria o meu tini. Depois ela me
o c ar r o estav a estacionado . Pense i comig o agarrou e eu me senti send o esmagado. Será qu e
m e s m o : m a m ã e está lá. E estava certo , pela minha mãe permitiria esse crime na sua frente?
janela p u d e ver tudo . Mas mal podia crer em meu s Como ela me salvaria? Q u an d o a tortura da
olhos, ma mã e estava t r a n q ü i l a m e n t e t o m a n d o ch á human a começou, senti qu e minha sorte estava
c o m u m a h u m a n a . Vampete r brincava n o c h ã o mudando . O abraço fatal até que era be m legal, era
próxim o ao s raios d e sol e nad a lhe acontecia . macio e a humana usava um perfume, qu e perfume!
Enquanto eu estava ainda enredad o em seus braços ela
disse: "bem-vindo, meu sobrinho!"
Di a n a Li c h t e n s t e i n Cor s o e Mário Co r s
o
cruza de vampiro s co m humanos ? Seria

Aquilo ressoava na minh a cabeça , eu


escutava d e n o v o : m e u s o b r i n h o . Mas o q u e
er a isso? E u entendia, m a s n ã o queri a entender
. Isso significava que ela é minh a tia. l' m do s
mistérios resolvido , a semelhança estava explicada .
Mas se minh a mã e tem uma irmã hum ana , entã o
que r dizer q u e ela é...
Sim, meu s amigos , minha mã e é huma na .
Difícil crer na lógica do me u pe ns a m e nt o . Ao m e s m o
tempo , tudo assim fazia sentido , o mistério qu e
eu buscav a estava descoberto . Xão se p o d e dizer
q u e eu estava contente, sim, estava era muit o
confuso .
Você també m nã o estaria? Alem disso, comece i
a gostar do abraç o da h u m a n a e entã o me senti mal
po r estar gostand o d o q u e n ã o devia estar
gostan do .
Não sabia o qu e dizer ne m o qu e pensar.
Fiquei tonto e pedi um c o p o de água. Nao tinha
sede . mas ganhava tempo . Minha agora tia ofereceu-m e
coca-cola. Quis começa r be m nossa amizad e e nã o
recusei, mes m o sem saber o qu e era. Tomei aquela
poçã o borbulhante . preta e açucarada . Fnquant o isso
minha mã e talou:
"Não sei c o m o você chego u aqui , filho, mas essa
é a casa de minh a irmã caçula, ela se cham a
Vitória. Hla já te c o n he c e , voc ê vinha aqui
q u a n d o tinha a idade d o Vampeter".
Pensei em dizer para a minh a mã e para pararmo s
por aqui m e s m o , q u e chegav a d e revelações .
Pel o meno s para um só dia. Mas minh a mã e seguiu
falando. F, sem pr e assim. Já falei para você s q u e
minh a mã e fala demais? Acho q u e é um vício tias
mães .
"Tinha m e d o de nã o ser amad a po r ti e
pelo s teus irmãos, entã o escond i q u e era uma
hu mana . Teu pai sab e de tudo . Aliás, nunc a
escond i del e q u e era uma hu mana , ele gosto u
d e mim m e s m o assim. J á tive n a m or ad o s
h u m a n o s ante s d e teu pai q u e eram piores q u e
o diabo , ("orno e u gostei dele . n a o m e
importei del e ser um vampir o ou qualque r outra coisa".
Não sei se foram essa s revelaçõe s ou a p oç ã o
preta, ma s fiquei mais tonto . Mamã e percebe u qu e
e u nã o estava be m e resolveu q u e era hora de
voltarmo s para o castelo.
D es p ed i- m e d e minh a recém-tia . faland o
q u e voltaria a vê-la. Fia ficou content e e disse qu
e temo s muitas coisas para falar. Afinal, temo s ano s de
conversa s atrasadas.
Q u a n d o chegue i a o carr o n ã o sabia s e
estava feliz ou triste. Há ocasiõe s em q u e n ã o
sabe mo s o qu e estamo s sentindo , e e u
estav a nu m d e s s e s momentos . Sentia-me mais
aliviado, afinal eu n ã o sou um vampir o de meia-
tigela. Mas o q u e sou eu? Existe um n o m e para
mar do portã o do s munck >s. comecei a me sentir melhor
e pergunte i á minh a mã e co m o tud o começou .
Com o q u e ela conh ece u papai e por qu e
e u u m v a m p i m a n o o u u m humampiro ? Por qu e logo
resolveram ficar juntos. Ela conto u tuclinho.
comig o vai acontece r essas coisas? Fogo eu qu e era
tintim por tintim. mas é muit o d e m o r a d o , vou
contr a os transgênicos . Era só o q u e me faltava,
sou u m vampir o geneticament e modificado. resumir pra na o encompridar . T u d o co meço u num
a noite fria e escura. Mamãe
Vocês entendera m o qu e aconteceu ? Eu tinha um
mistério, resolvi e agora t e n h o outro . O n d e qu e meu s caminhav a po r uma rua deserta, voltand o para
pais estava m co m a cabeça? Por q u e uma h u m a n sua casa . q u a n d o p er c e b e u q u e algué m a
a casa co m um vampir o ou um vampir o sai de seu seguia . Seu sangu e gelou q u a n d o sentiu algo a lhe
país e vai busca r uma hu man a para casar. tocar o pescoço , m e s m o co m muit o m ed o .
consegui u acertar co m a bolsa o rosto do
Não é fácil descobri r um dia q u e se tem algo de
bandid o . O q u e o bandid o n a o sabia é q u e a
h u m a n o . Afinal, sã o um pov o bárbaro . Você já ouviu
minh a m à e carregav a um tijolo na bols a
talar de uma naçã o de vampiro s tentar invadir e matar
exata ment e para ess e tip o d e assalto. Minha mã e
outr a n a ç ã o d e vampiros ? Nunca , sabe m po r
ne m olho u para trás para sabe r c o m o ele caiu.
quê? Por qu e n ã o guerrea mo s h á muitos séculos. N o
me u país. q u a n d o algué m se enfurece e que r brigar, Não é q u e na outra noite ele estava lá de
log o vamo s dizendo : "cuidado , você vai acaba r se tornand o volta. Minha mã e já estava mais preparad a qu e no dia
u m hu mano" . anterior e p o d e mirar co m mais calma be m no
rosto daquel e tip o estranho .
Q u an d o ficamos sós no carro, o clima pesou. O
mal-estar era tão forte qu e ate o Vampeter acabou ficando Ela estava enganad a q u a n d o penso u cjue
quieto. Resolvi falar qualquer coisa so para iramansand o minh tinha livrado-se dele. Na terceira noite, ali estava
a mãe . Comente i qu e o s morcego s d o dia sã o outra vez o sujeito esquisito. Parecia qu e ele queria falar
coloridos. Minha mãe topou a conversa e me ensinou alguma coisa. Mamãe já nã o tinha tanto medo , já o
q u e m o r c e g o s , q u a n d o sa o coloridos , s e c ha m a m derrotara nos outros dias, olhou para ele, viu o rosto com
passarinhos e são parentes da coruja. Vejam sé>! um lado inchado e teve pena . Num gesto d e bondade ,
nã o lhe golpeou n o me sm o lugar. Bateu sim, mas do
Pouc o t e m p o depois , co m eçam o s a no s aproxi•
outro lado.

293

1
Fada s n o D i v a - P s i c a n á l i s e n a s História s Infa nt i s

O resultad o é q u e , na quart a noite, o caus a d o sol. O s vampiro s q u a n d o puros , d e


rost o já estava melhor, n ã o po r estar meno s inchado pai e mã e vampiros , realment e viram p ó d e
, ma s po r estar mais parelho . Minha m ã e penso u p u m quand o sã o atingido s pel o sol. Minha mã
e m muda r d e tática. Afinal, as bolsada s só tinham e é muit o branca, pinta uma s olheiras e fica,
efeito na hora . e minha má e chego u a pensa r qu e era acreditem , mais vampira do q u e me u pai. Até hoje a
e m toma r bolsada s q u e ele estava interessado . Frgueu a família do meti pai acredita, c o m o eu ta mbé m
bolsa e perguntou : que r apa nha r mais? acreditava, q u e minha mã e é uma p o b r e órfã
Fie disse: "quer o o teu p es co ç o para vampira q u e papa i encontrou .
sempre" . Minha mã e se sentiu ofendida e, l' m dentista amig o d e papai , q u e sab e d e
dessa vez. deu tudo, até colou un s canino s maiore s po r cima
Lima bolsada para valer. So depoi s ficou pensand do s dentes normai s de minh a mãe , e assim todo s
o na estranha frase sobre ter o pescoç o para sempre acreditam . Já ia e s q u e c e n d o , é claro CJLIC existem
. O qu e ela n ã o sabia , e qu e s ó soub e dentistas vampiros, perde r os dente s é o maior med o de
d e p o i s d e t u d o esclarecido , e q u e essa era a todo s os vampiros, po r isso eles têm bon s
maneir a de os vampiro s pedire m a s mulhere s dentistas . Há q u e m diga que todo s os dentistas
vampira s e m casamento . seriam vampiros , mas n ã o é verdade, existe m dentista
Fss e mal-entendid o s ó foi resolvid o s h u m a n o s . A maio r ofensa qu e se p o d e dizer
vária s bolsadas , dig o noites, depois . I'm dia, ele a um vampir o é chamá-l o de banguela. Isso
disse qu e era um \ a m p i r o e minh a mã e teve certeza tira qual que r um do sério.
q u e ele era louco . Pois é. minha mã e nessa époc a Quand o chegamo s a o castelo , já
acreditava q u e vampiro s era m lendas . e s t a v a anoitecend o , todo s iriam sair de seu s caixões,
Bolsada vai. bolsad a vem, minha mã e se teríamos qu e ser cuidadoso s para nã o fazer barulho .
acostu• mo u co m o ser estranh o e deixo u ele falar. No Nem deixei m a m ã e pedir, log o disse q u e n ã o
c o m e ç o penso u estar ajudand o u m louc o contaria nada para m e u s i r m ã o s . Nã o achav a
inofensivo. Depoi s ela c o m eç o u a ter dúvid a e. j u s t o q u e e l e s n à o soubessem , ma s qu e cada um
finalmente, essa estranh a pessoa , qu e dep oi s viria a descobriss e ((Liando fosse a sLia hora . Pelo m en o s
ser me u pai. tev e a idéia de dar uma prova. 1'uf. agora seria mais fácil agüentar a s esquisitices d e
ele se transformo u em morceg o na frente dela. meu s irmãos .
Minha ma e aí sim teve m e d o . ficou certa q u e Fiquei muit o curios o sobr e os hu m a n o s ,
ele era u m tip o d e diabo , fora m preciso s resolvi cjLie estudari a t o d o s o s m a n u a i s d e
muitos dias e bolsada s para q u e tu d o se bruxaria s qu e falassem de h u m a no s . No outr o
esclarecesse . e eles começasse m a namorar . dia, dei a desculpa q u e estava d oe n t e e p u d e
Tiveram muitas dificuldades, pois e proibido, be dormi r durant e toda uma noite e tod o um dia.
m proibidíssimo. vampiros namorar humanos . Para Q u a n d o acordei , chegue i a pensar qu e fora tud o Lim
minha mãe nã o era tão problemático, nã o há lei sonho , n ã o fosse o olhar cúmplice d e minh a
qu e impeça humano s de namorar vampiros, pois. por máe .
sorte, eles nã o acreditam muito em nossa existência. Só Será q u e você s estã o p e n s a n d o n o qtie e u
que . conforme eu sei agora, existe uma forte campanha estou pensando ? Pois é. as tais cicatrizes no rosto,
difamatória contra os vampiros. Ninguém nos aceita. oriundas cia guerr a cia Burgúndi a precisa m
Os humano s fazem cada coisa e nós qu e somos os se r mai s bem explicadas . Mas isso fica para outr o
malvados! dia. Fu ainda estava muito agitado, afinal, e u estive n o
Dizem qu e vampir o e isso. q u e vampir o é aquilo , m u n d o do s humanos e voltei vivo. O chat o é q u e
tud o farofa. Além do mais. vind o de quem ? De queri a conta r para todos e só p os s o conta r para
vocês , humanos . Será qu e vocês têm moral para falar de vocês , paciência... . Valeu a pen a ser detetiv e d e
outro s povos ? O l h e m - s e mai s n o e s p e l h o (já mim m e s m o .
q u e v o c ê s p o de m ) . Pois e . mas agora eti sinto qu e sou Garant o q u e voc ê també m tem um
u m p o u c o com o vocês. mistério. Se você . ou algué m da sua casa,
No começo , papa i até pen so u em emigra r para gosta muit o de carne mal-passada . assim
o m u n d o do s h u m a n o s para ser guard a noturno , porteir sangrando , ou gosta de coisas de terror ou , ainda
o de boite OLI coisa parecida , ma s era muit o , sent e algo forte n o coraçã o quand o enxerg a a
difícil po r lua cheia, q u e m sab e tem um antepassad o
vampiro? Descubra , se for capaz.. .
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mário Co r s
o
adolescência .

Um casamento misto
"*&n4L mbor a o recurso ã magia esteia present e nesta
" :~™' história, estamo s fora do terren o do s
conto s i4>*>;V " <-le fadas. O herói introspectivo e
a jornada interior sã o tã o importantes quant o a aventura.
Além disso, a narrativa centrada num a pessoa co m
um drama subjetivo faz co m qu e essa estrutura no s
remeta mais à s novela s m o d er na s , qu e à s
histórias infantis tradicionais.
Não é precis o pensa r muit o para descobri r q u e
a trama, contextualizad a num a família formada a
partir de um casam ent o misto, se desenrol a co m as
tentativas d e u m filho para s e situar diant e d a
diferença d e d u a s herança s culturais. Mesm o s e n d o
óbvio , e u fiquei u m bo m temp o contand o a história co
m essas personage n s se m m e pergunta r q u e m elas
era m e o q u e isso t u d o significava. Certo dia. nã
o de u mais para ignorar qu e Vampi retratava minha s
inquietações sobr e com o educa r minhas filhas diante
de dua s tradições: a católica e a judaica.
O impass e q u e eu vivia n ã o era religioso, já q u
e tant o e u q u a n t o minh a espos a s o m o s ateu s
e n ã o p e ns a m o s e m dar para nossa s filhas um
a e du c aç ã o religiosa, pel o m e n o s d o m o d o
tradicional. Mas isso nã o é tã o simples, existem ritos
q u e traze m um sentid o social important e para as
famílias e para recebe r as crianças na sociedade .
Além do mais. religião n ã o é s ó um a questã o d e
fé, h á t o d o u m legad o d e tradiçõe s q u e nã o p o d e
se r ignorado , n ã o s e p o d e fazer u m corte brusc o
co m um a história qu e vem d e tanto tempo . Assim, com o
n ã o somo s ateu s militantes (até nutrimo s uma secreta
inveja d e q u e m co n se g u e acredita r e m algo), nã o
no s o p orí a m o s a um ou outr o ritual.
Nosso casament o foi b e m aceito po r amba s
a s famílias, a questã o da origem religiosa era a pe n a s
fonte d e anedota s d e a m b o s o s lados, po r isso,
até nossa s filhas chegarem , praticament e n ã o no s
q ue sti o na m o s s o b r e o a s s u n t o . Mas. d e p o i s d a
c h e g a d a d e l a s , qualque r escolh a de um ritual
significava apoia r tal part e d a família e m detriment o
d a outra . Fôssemo s d e u m a s ó tradição ,
c e r t a m e n t e f a r í a m o s a l g u m a s concessõe s diant e
d o convencional , s e m p r e oferecen • do a elas um a
crítica ao q u e estaria send o feito - nã o
necessariament e n o m o m e n t o , talvez mais tarde .
Hoje um a e d u c a ç ã o religiosa n ã o é tã o marcante ,
m e s m o q u e s e queira , c o m o foi par a a s
g e r a ç õ e s passadas . O m u n d o dispõ e d e um a série
d e possibili• d a d e s pa r a e s c a p a r d o p e n s a m e n t o
d o g m á t i c o cie
(jualquer religião, pel o m e n o s n a cultura
ocidental . Mesm o assim, o nascimento , a entrad a na
devid o a Hatman, até minha s filhas sabia m o qu e
significa. Afinal minha s batgirls
assim c o m o o casa me nt o aind a se beneficiam d o s
ritos religioso s e culturai s q u e marca m e
celebra m se u a c o n t e c i m e n t o . Fo r isso ,
o p t a m o s p o r e s c o l h e r p a d r i n h o s par a a s
m e n i n a s , e m b o r a t e n h a m sid o n o m e a d o s fora
de uma cerimônia formal. Além disso, ac h a m o s
q u e a s crianças de v e m conhe ce r a religião da
s famílias de origem, nã o necessariament e crer nelas,
ma s sabe r n o q u e seu s antepassad o s
acreditavam .
Assim, emb or a se m qualq u e r ritual, o pta m o s
po r ensina r u m p o u c o d a tradição d e cada uma da s
origens. Isso resolve um problem a e cria outro ,
a questã o era entã o c o m o dizer às nossa s
filhas o q u e elas eram . qua l seria su a
i d e n t i d a d e e m t e r m o s d e tradiçã o religiosa.
F.las n ã o tinha m sid o batizada s na igreja
católica, log o nã o teriam primeira co m u n h ã o ,
e ne m fizeram bat nülsrá co m o colega s e
amigo s de origem judaica. J á o s dias sagrado s
d e amba s religiões era m lembrados , poré m
sem muita ênfase, pois n ã o seria natural para
nõs . Ser católico é um p o uc o mais fácil.
principalment e nu m país q u e tem essa religião
com o sistem a d o m i n a n t e . Mas a q u e s t ã o
judaica c um a heranç a mai s complex a e
m e s m o q u e uma pesso a s e esqueç a disso, os
outro s a lembrarão . A história recente d o p o v o
judeu é u m assunt o espinhos o qu e minhas
filha s e s t ã o t e n t a n d o e n t e n d e r , nao sem
m u i t o sofrimento, considerando-s e qu e o avó
materno perdeu o pai e seu únic o irmã o nu m
ca m p o de concentração . Fram esse s os impasse s
q u e estavam na minha
cabeç a q u a n d o el ab o r e i (elaboramos ) o
v a m p i r o originári o de d ua s culturas . Seu
sintoma é tentar a síntese da s tradições ,
e n q u a n t o carrega algo d e cada um a se m pode r
opta r e m definitivo po r nenhu ma . Fra isso q u e
eu , dess a maneir a alegórica e inconsciente,
dizia atravé s tia história: nã o há registro
para essa síntese q u e você s sã o e vã o ter qu e
com po r algo co m um p o u c o de cad a uma . Nao sei
o q u e elas farão, ma s essa sugestã o n ã o poderi a
ser mais sincera.
Vamp i j á er a u m heró i
atormentado , s e u s problema s alimentares o
inquietavam, mas é a partir de um ritual qu e a
história mud a de rumo . F claro qu e o ritual
encobert o a q u e o cont o faz alusão metafórica
é o bar milsrá. o ritual de maioridade judaico.
No conto, a maioridad e se traduz pela demonstraçã o
de um pode r especial, no caso voar, ma s ligado
també m a um saber místico: as palavras mágicas,
passada s de pai para filho, q u e afinal sã o as
palavras mágicas contidas na Tora.
O ritual de maioridad e para meninas , ao s 12
anos , se cham a bat mitsvã. Creio q u e isso
vem somar-se á escolh a d o vampiro , e m alusã o á
palavra bat, morceg o em inglês. Vocábulo q u e .
Fada s n o Di v a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infanti s
n o s s o c a s a m e n t o produziu , fantasiei uma . Kssa
forma alegórica respeita
seriam, c o m o o Batman, a síntese entr e os
h o m e n s e o s morcegos .
Além disso , q u a n d o r e c e b e m o s convite s
par a rituais, q u e no s levam a participar de cerimônia s
tant o judaicas qu a nt o católicas, a questã o cie pertenç a
a um ou outr o sistema religioso ressurge para nossa
família. O ritual do Yampi extrai da í sua relevância,
ele apont a nossa falta de rituais e c o n s e q ü e n t e ment e
a diferença da s nossas (ilhas para com as outras crianças.
No conto , e por ocasiã o de um ritual q u e o herói
entra em crise existencial e parte para uma
descobert a
l-'u s u p u n h a , i n c o n s c i e n t e m e n t e , q u e
minhas
(ilha s vivia m um (.'oniJ>/cxo de \uni/>i.
t e n t a n d o assimilar as dua s filiações culturais. De
certa lorma. o certo e qu e q u e m estava \ i \ e n d o
ess e c o m pl e x o era eu. pois na o sabia o qu e lhes
passa r c o m o legado , e a mã e delas, men o s ainda. Ku
tive uma e d u ca ç ã o católica formal da qual ja n a o me
queixo , digamo s q u e estou pacificado a esse respeito.
|ã Diana vive o seu judaísmo com o algo atravessado ,
ela na o c o n he c e be m a sua religião de origem e
(oi criada po r seu s pais fora da s tradições, embor a
tenh a tido algum a convivênci a co m judeu s ortodoxo s
de um ram o cia sua família.
Alguma s veze s p e ns e i q u e teria ha vi d o
um a antecipação da minha parte, trazend o â baila um
assunto que . na verdade , estava pesand o mais para o me
u lado. Mas p e n s o q u e não , afinal minha s
filhas aderira m entusiasticamente a historia, tanto
qu e a construímo s juntos. Alem disso, c o m o a
invençã o da historia na o passa por uma
determinaçã o consciente, seu s tempo s n ã o o b e d e c e
m â razão , ma s sim à s n e c e s s i d a d e s interiores
cie elaboração , co m seu própri o cronograma .
() material qu e se faz present e neste cont o familiar
merec e um comentári o a parte. O conte úd o assemelha-
se a um sonho , na o tanto pel o seu caráter inconsciente,
atinai e passível de se fazer conscient e sem
maiore s dificuldades, mas pela resolução qu e o conflito
encontra. Nã o e a to a q u e l ; reu d i n t r o d u z i u
o e s t u d o cia interpretação do s sonho s co m exemplo s
d e sonho s qu e realizavam tarefas ou atendia m desejos
pendente s . Não há o qu e o trabalho onírico nã o
laça para viabilizar uma boa noite de sono . O sonh o
é. na maior parte da s vezes , u m aliad o d o
descans o , el e d a u m jeito na s pendências ,
despach a os problema s a seu modo .
Ksse c o n t o oferec e um a possibilidad e
d e resoluçã o d o problem a d a identidad e cultural
dividida: p r o p õ e o c a mi n h o d e pensa r u m ser misto
co m o alg o palpáve l e interessante , m e s m o s e n d o
u m vam pir o excêntrico , ('orn o n ã o tínhamo s uma
definição precisa d a síntes e religioso-cultura l q u e
a diferença, tornando-a inclusive mais radical do que
é . ma s conserv a a força d o amo r q u e un e o s
dois m u n d o s . O resultad o dessa uniã o sã o filhos qu e
têm traços de identificação co m a m b o s os lados. Ou
seja. o Yamp i r e s o l v e n o s s o p r o b l e m a , el e é
u m ser inteligente o suficiente para se questionar ,
corajoso para enfrentar seu s segredo s e, ainda, para
aceitar sua diferença. Kntao, encontra mos , através dess e
vampiro, uma torma para encaminha r a elaboraçã o de
algo que n a o consegui a ser falado de outra maneira . Kssa
era a resoluçã o possível, considera nd o a pouc a idad e
que minha s filhas tinha m na ocasião .
\o moment o em qu e o cont o estav a
se n d o narrado , o ca minh o da identificação da s menina s
com os persona ge n s era lateral: elas se considerava
m as irmãs esquisitas do Yampi. Klas també m eram
diferentes e. um dia. à sua maneira , teriam de
descobri r essa diferença, assim c o m o ele descobri u a
complexidad e da sua origem . Ou seja. a tarei a era
adiada para um m o m e n t o d e mais maturidade , c o m o s e
elas dissessem:
"esta bem , ele já enfrentou, um dia será a nossa
vez, mas precisamo s clc mais tempo" .
Pensar qual origem ficou para os vampiros e qual
para os hu ma no s na o leva a lugar algum, o qu e importa e a
diferença. Ku mes m o tentei fazer essa interpretação e
cheguei a amba s conclusões , em cada um do s povos cio
cont o ha elemento s para se fazer as conexõe s com um a
o u outr a tr ad iç ã o . O s j u d e u s p o d e m ser o s
vampiros, afinal sa o uma minoria q u e vive em
outro mundo- a sua cultura. Por outr o lado, q u a n d o
se trata d e derrama r sangue , p o d e m o s chama r o s
povo s d e tradição cristã, cies são especialistas nisso, tanto
que já vampirizaram o pov o judeu várias vezes. Pens o
que a questã o principal gira em torn o de um pov o
do dia e um pov o cia noite qu e na o p od e m se
misturar, pois esta e a lei. Kssa metáfora serve para muitos
povo s com diferenças culturais acentuadas .
Q u a n t o a ser vegetariano , vale uma s palavras a
mais. pois isso é um a questã o important e em
nossa lamília. Meu irmã o e sua espos a sã o muit o
presentes para nossa s meninas , embor a fisicamente
distantes - se mpr e m o r a n d o n u m cant o re mot o cio
m u n d o - . sao subjetivament e marcantes . Ambo s sã o
vegetarianos, c você s p o d e m imagina r o q u a n t o
isso é motiv o de assunt o para o resto de um a família
gaúcha , para quem o churrasc o é quas e um ritual de
pertença . De qualquer lorma , o vegetarianism o é um a
identidad e construída a partir de um a restrição
alimentar.
Kssa identidad e t a m b é m eco a em várias histórias
contada s pela Diana, trazidas de sua infância,
sobre c o m o foi convive r co m um a part e da família
qu e só
Di a n a Li c ht e n st e i n C o r s o e Mári o Co r s
o
o vou aborrecê-los co m o resto de c on e x õ e s
autobiográficas, apena s p o d e m o s constatar
comi a kosbcr - comid a apropriad a par a
c o n s u m o s e g u n d o estritas regras religiosas judaicas. Fia
vivia de forma incômod a o lato de seu s parente s se
recusare m a usar os prato s e talhere s de sua
casa po r sere m impuros ; po r extensão , ela tam bé
m s e sentia impura . Trata-se d a n oç ã o d e um a
identidad e imaginada nã o c o m o religiosa e cultural,
mas, na visão de unia criança, c o m o um a questã o ele
regrament o da oralidadc .
Huda e Pest. os gêmeos , são uma alusã o a
meu sogro, afinal ele é húngar o nascid o em
Pest. cidad e gême a de Huda. Nas histórias qu e
se seguiram, eles ganhara m mais espaç o c o m o
cientistas precoces , outra alusão ao avô. engenheir o
químic o e curioso po r ciência. O Yampi n ã o se restringe
a isso. Mais coisas sa o
ditas nessa história, ma s jã n ã o pertence m ao
me u encontr o co m minha s filhas ou . pel o menos , na o
tanto , p e rt e n c e m , sim, a minh a história pessoal .
Poderi a facilmente fazer as co n e xõ e s , ma s fugiria
da nossa sistemática; entretanto , alguma s
pincelada s valem a p e n a . a p e n a s par a p e n s a r
d e qu e maneir a certa s questõe s p o d e m ser
passada s ao s filhos. As bolsada s repetidas , po r
ex e m pl o , sã o a minh a fantasia infantil de c o m o eu
concebi a o sexo : o amo r do s adulto s teria um
c o m p o n e n t e agressivo. O q u e disso passa para as
minha s Iilhas está em aberto ; se a infância dela s
lhes la n ç o u a m e s m a h i p ó t e s e s o b r e a r el aç ã
o sexua l formulad a pela minha , certament e elas
encontrarã o nessa cen a uma ilustração.
Kmbora o vampiro seja um personage m
clássico, tenh o uma afinidade com sangue por experiência
pessoal. Cresci vend o minha mãe . por ser
bioquímica, tirando sangu e de tod o o mundo .
Sangue esse qu e era depoi s analisado, passava por
vários processos, enfim, era um element o cotidiano da
minha infância, e principalmente eu tinha motivos para
crer qu e minha mae se interessava muito por ele. Quant o
ao sol. digamos qu e compartilho co m o s vampiros o
med o d e seus eleitos. \ a o qu e e u vire pó, mas
ele para mim e um problema, pois tenh o uma pele
muito sensível, qu e infelizmente passei com o herança
para minha filha mais velha.
O encontr o co m a tia tardiament e descobert
a e im portant e n o c o n t o p o r q u e , q u a n d o era
m e n i n o , conhec i tios co m q u e m nã o tivera contat o
até entã o - nã o foi exatament e assim, mas esse
foi o jeito co m o percebi. Meu av ô teve dois
casamento s e havia uma certa distância, qu e po r sorte
se dissolveu, entr e as dua s famílias q u e ele constituiu,
e a lembrança dess e grato encontr o ficou fortemente
gravada em mim. Com o isso nã o tem importância
ne n h u m a para ninguém , a n ã o ser para mim, nã
as crianças.

com o retalhos de lembrança s de um pai pode m


tornar- se literatura familiar. Provavelmente , nã
o é diferente co m os escritores, alimentam-se de
restos de cotidiano, reminiscências e questõe s
pendentes .
Mesm o q u e e u n a o quisesse . Yampi
traria a s marca s d o noss o t e m p o , ness e
sentid o ele foge a o me u controle . K um
personage m qu e vive o dilema d e n ã o s e
senti r part e integra l d e nada . sente-s e
dividid o diant e de dua s identidades . Ora.
viver essa incerteza, ser c h a m a d o a se engajar
em alguma entre- as múltipla s identidade s
oferecida s n a o é a noss a condiçã o moderna ?
Neste cont o está o clássico dilema da escolh a
entr e a tradiçã o e o ro m p i m e nt o , est e
ilustrado pel o casament o proibido , deixand o a
força da s c on v en ç õ e s herdada s para trás.
Alem disso, há tam bé m um manifesto a
tolerância, um do s grande s desafios atuais.
Nesse sentido , ele é um espelh o de todo s nó
s e na o especificament e da minha família.
ll á outr a questã o sobreposta : faz
part e d a intância lidar co m o dilema d e
sabe r c o m o u m ser p o d e provir de doi s sere
s diferentes . 1' um mistério q u e paira s o br e
a c o n c e p ç ã o . Pm outra s palavras , po r q u e e
necessári o um pai e uma ma e para fazer um
a criança? Por q u e n a o p o d e m o s nasce r
apena s ele um? Q u e m te m tamiliaridad e co m
o estud o cias mit o lo gi a s s a b e c o m o ess a
q u e s t ã o é r e co rr en t e t a m b é m ness e c a m p o .
O u seja. m e s m o sem querer , a c a b a m o s faland
o d o s tema s h u m a n o s universais. O q u e e ter
um pai e uma mae? P o qu e fazemos com a
historia dele s q u e , qu e ira m o s ou nao . e
també m a nossa? Por q u e os nosso s pais se
amam? O qu e fez a u n i ã o deles ? O a m o r
elos pai s p r i n c i p a l m e n t e a historia do primeir
o encontro , e uma questã o bastant e fantasiada,
afinal, s e ele s n a o tivesse m s e encontrado . o filho
n a o existiria . A o ri g e m cie cad a um est
á concer nid a ness e feliz ou infeliz encontro ,
po r isso o c o n t o elo Yampi ta m b é m e
universal .
Por último, mas na o meno s importante, o
objetivo dess e apêndic e elo livro e incentivar
os pais a serem n a r r a d o r e s . Continue m
c o m p r a n d o livros, ma s s e aventure m també m
a produzi r sua s própria s narrativas. Klas p o d e m
n ã o ser ta o be m articuladas q ua n t o a s outras
, ma s sé) elas p o d e m transmitir algo próprio , algo q u
e e i m p o r t a n t e para sua fa mília . Nao
t e n t e compr eend er , deixe-s e toma r pela
história qu e está contando . A interpretaçã o é
algo a mais e, cas o seja possível , pod e
ajuda r a p e n s a r a rela çã o co m a s crianças,
o s conflitos q u e elas desperta m no s pais e o s q u e
elas de fato estã o vivendo . Na prática, ela
só é important e para no s c on v en c er m o s a
levar a sério a função de conta r histórias para
Fada s n o Di v a - P s i c a n á l i s e n a s História s Infa nt i s
Pode mo s fazer a comparaçã o co m u m
grup o d e amigos qu e atravesse a vida se
Ná o importa q u e sua s personagen s sejam reencontrando : ele terá u m p e q u e n o a ce r v o d
tiradas d e o u t r o c o n t e x t o o u q u e s e utilize m e contos e anedotas - uma
tre c h o s d e histórias clássicas, o q u e vale é deixar-se
falar, ás veze s n e m s a b e n d o c o m o a s história s
v à o terminar . A s crianças costuma m ser sensíveis
a tais iniciativas, elas và o s e interessar pela trama
s ó p o rq u e provê m do s pais . ela s p e r c e b e m q u
e alg o a mai s est á s e n d o t r a n s m i t i d o e s a o
t o m a d a s d e c u r i o s i d a d e . Aliás. convé m lembrar
q u e uma infância rica n ã o d e p e n d e d e qu e
soment e o s pai s sejam narradores , o u tr o s
adulto s próximo s p o d e m c om plementa r o u suprir ess e
papel . Outra fonte de inspiraçã o muit o valiosa sã o
as histcírias qu e muito s trazem em seu ba ú de
infância, histéirias contada s po r avós . tios ou babás .
O s livros s ã o historia s p r on ta s qu e
p o d e m o s compartilhar e delas tiramos forma para nosso s
sonhos . elas ajudam a lidar co m medo s e desejos, no s
ensina m toda sorte de coisa. Já as histórias inventada s
ao pé da cama cumpre m outra função: elas và o
transmitir outra s mensagens , algo qu e voc ê ne m sab e qu
e está dizendo , um estilo de narrar, uma filosofia qu
e voc ê ne m sab e qu e tem e. principalmente , os mitos
próprio s da família em questão . Por último, mais um a
vez. é bo m lembrar, um cont o familiar nã o necessita
ser interpretad o para q u e sua eficácia atu e na
dinâmic a familiar. Aliás, a interpretação , para as
crianças, geralment e n ã o é bem - vinda . Quand o
o c o r r e , p o d e inibi-la s a s e g u i r e m c o nt a n d o sua
s fantasias.

Pais suficientemente narrativos


•XHIÍPV históri a d o Vamp i é um f e n ô m e n
o que r" produziu e produzirá, em
diferentes
^, . m o m e n t o s d a vida ,
q u e s t i o n a m e n t o s e inúmera s rodada s de
significação para cada
um do s membro s da família. Nenhum a
interpretação será definitiva, sempr e qu e a
história for retomada , algu ma s ponta s cie
significaçã o aind a s e d e i x a r ã o entrever. E po r
isso qu e uma análise nã o se esgota. p o d e acabar a
paciência do pacient e ou se esvaírem os motivos qu e
o levaram ao diva. mas assunt o sempr e haverá .
O importa nt e e nt ã o é p e r c e b e r c o m o um a
narrativa cristaliza, assim co m o uma foto congela
um m o m e n t o vivido, certa constelaçã o inconscient
e e m determinad o grup o familiar. Reencontrar a foto
sempr e convidará a um nov o olhar, afinal uma imagem é
sempr e mais do qu e ela própria, é um p e q u e n o
fato.
bebedeir a , um a aventura , u m m al-enten did o -
q ue , q u a n d o narrados, selam a identidad e de seu s membros ,
servem para apresenta r o grup o para os de fora e para
si mesmos . Uma história criada po r um m e m b r o
da família, assim c o m o um relato de algo vivido,
com o aquela s histórias constrangedora s sobr e a infância
qu e as mãe s costuma m conta r na frente do s namorado s do s
filhos, poderia ter no mínim o essa mesm a função,
de selar a identidad e de um grup o familiar por compartilhar
um a na rr ati v a . Mas a ficçã o criad a n o c a l o r
d o inconscient e da família, no entanto , é diferente,
ela necessita ser compreendi a cie forma mais profunda qu
e uma hist(')ria ou uma anedot a qu e caracteriza um grupo .
Contar Lima história, com o a tio Vampi, qu e procure
tle alguma forma recobrir ou viabilizar a compreensã o
tle uma aliança, tle um casament o - união qu e
tenta uma síntese para dua s referências disjuntas -, abr e flanco
para uma série tle questionamento s qu e se impõe m aos
seus protagonistas. Por exemplo , nã o há com o evitar a
indagação a respeito tle por qu e foi feita a escolha
tle u m a m a d o diferente . Nã o havia nenhum a
vampira interessante para o pai tio Vampi? Por qu e sua mã e foi
se interessar por um sujeito tão bizarro? Por qu e a
síntese tlesse amo r perma n ec e difícil, estrangeira ao s
rituais, geradora tle conflitos neuróticos para o vampirinho?
Por qu e nã o se fabricou outra síntese? Tais questõe s servem
para realçar q u e . diferentemen t e tias an e do t a s qu
e caracterizam um grupo , a nairativa inventada vai retratar
certos ponto s noclais do inconsciente familiar, em qu e se fala
mais. muito mais. do qu e se compreende .
K difícil definir o espaç o em qu e essas
palavras brotam, pois. embor a enunci a d o po r um,
no caso o pai. nã o é tle propriedad e exclusiva
dele. Realmente parec e um sonho . Cm cont o criado
para os filhos é co m o um sonh o sonh ad o em voz
alta pel o pai. cuja trama pudess e ser alterada po r todos . O
trabalho onírico
- a construçã o de um sonh o - é fruto tle uma coleta
e síntese: restos diurnos, nã o apena s tle fatos, mas também tle
pe n sa m e nt o s (tidos, inacabado s ou evitados), se une
m a alguma expressã o verbal ou artística (cena tle
filme, quadro , propagand a ou cenári o tle viagem, uma
frase ouvida ou lida, um ditado), qu e vai dar o clima tia
cena. A síntese tle tud o isso visa a equaciona r
uma saída para algum problem a ou questã o qu e insiste
em nã o adormece r co m seu dono .
Na tentativa tle teorizar sobr e o fenômen o
que e n v o l v e a contaçà o d e histórias ,
e n c o n t r a m o s a providencial elaboraçã o de Celso Gutfreind.
em seu livro O Terapeitta e o Lobo, sobre a utilidade
terapêutica das histórias infantis. Ele se refere à adaptaçã o
tia expressão mãe suficientemente boa!' originalmente
winnicottiana.
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o
Co r s o
co m o desej o da criança e, graça s a isso, torna-s e alg o qu e
esta p o d e considera r c o m o seu .
para mãe suficientemente narrativa, o que ve
m ao encontr o de no.ssa necessidade.1 Esta seria uma mã
e que ,

para ser razoável, precisa ouvir e contar, ou


mesm o calar (...) uma relação capaz de envelopar as
pulsões de uma criança e banhá-las de
referências, quant o mais nã o sejam as referências ele
uma história a qual ela já pertenceria.1

Q u a n d o tivemo s o p o r t u n i d a d e d e u m
contat o pessoal co m Celso Gutfreind. q u e alé m d e
psicanalista é u m r e c o n h e c i d o a u t o r cie ficçã o
par a crianças , pergu nta mo s sobr e as fontes po r
ele utilizadas para esse conceit o q u e no s havia
interessado . Kle se referiu a um coleg a na França.
B. Golse . q u e teria sid o o primeiro a mencioná-
lo . Celso fez o m e s m o q u e nós , gostou cia idéia e
solicitou a fonte cie o n d e se u coleg a havi a r e gi s tr a d o
tal idéia . Gols e n ã o c o n s e g u i u encontra r a
referência e, assim, Gutfreind teve de citar, e m seu
livro, o conceit o c o m o provenient e d e comu •
nicaçã o oral.
P o d e m o s recorre r a o utr o conceit o d e
Wánnicott par a no s aj u d a r n e s s e momento .
Ele tinh a u m a expressã o para descreve r o tipo
de conteúd o q u e se cria n u m espaç o entr e um
ser h u m a n o e outr o - po r exemplo , o beb ê e o seio,
o psicanalista e o pacient e - e qu e nã o pertenc e ne m
a um ne m a outro :

e s p a ç o d e ilusão . Esse e s p a ç o seria u m


luga r intermediário no qual o bebê cria o seio
(fautasiando- o) uma e outra vez a partir cie
sua capacidade de amor ou de sua necessidade.
Desenvolve-se nele um fenômeno subjetivo qu e
chamamo s cie peito materno
(expressão que sintetiza todos os cuidados
maternos). A mãe coloca o peito no lugar em qu e
o beb ê está pronto para criar e no moment o oportuno
( as observa• ções entre parênteses são nossas)."

Convé m observa r atenta me nt e essa última


frase: a mãe coloca o peito no lugar ond e o bebê está
pronto para criar.

o u seja. ela oferec e u m a p o i o c o nc re t o ,


se u s cuidados , de tal forma q u e o filho poss a se
apropria r deles. É c o m o se a criança p ud e ss e ter
p e n s a d o assim:
"a presenç a da m a m ã e é acon cheg ant e , ma s
fui eu qu e fiz. q u e ela estivesse ali".
O apoi o concret o e o p o r t u n o da m ã e se confund e
pode nd o - caso nã o haja melho r opçã o - o
papel ser encarnad o po r qualque r interesse q u e
envolva a mã e o suficiente para
O relato do Vampi foi se n d o construíd
o dia a dia, totalment e balizad o pel a reaçã o da s
meninas , cada person age m o u nov o element o
dependi a d a aprovaçã o da audiência , q u e tinha
p od e r de lhe alterar o destino . Trata-se de um a
criação, ma s colocad a a serviço de outra. A
autoria se dilui nu m espa ç o de ilusão, este. po
r sua vez, nã o seria possível s e n ã o
houv ess e a presenç a cuidador a d o discurs o d
o pai. dispost o a oferecei" o apoi o sem o
qual a ilusão na o vingaria. O inverso tam bé m
vale, é a escuta do s filhos qu e faz. brotar
ess e discurs o onírico no s pais.
Voltand o ao conceit o de mãe
suficientemente narrativa, pensamo s se nã o
ficari a melho r s e pudéssemo s estendê-l o
par a pais suficientemente narrativos, poi s nã
o estamo s no territóri o d o s cuidado s
materno s primários, estes a pe n a s no s serve m d e
metáfora . A narrativa, diferent e d a construçã o do
s primórclios cio eu . é um a atribuiçã o
simbólica q u e p o d e e d ev e ser dividida po r
pai e mãe .
C o m o o b e b ê encontr a o peito ali o n d e
ele está a p o n t o de criá-lo. a criança encontr
a seu s pais ali o n d e ela imagina q u e ele s
estejam. A história narrada é um a oferta q u e
os pais fazem para ajudar nessa criação. Os
pai s nã o sabe m o q u e dizem, ne m o filho sab e
o q u e escuta , ma s ali. naquel e ato de
sonha r juntos, se está fabricando o livro cie
uma vida.
E que m tem de ser suficientemente narrador?
Como vimos na história de Peter Pan. o único
moment o em q u e ele admite q u e precisa de
alguém é na busca de uma mã e para ter de que m
ouvir historias. A mais famosa narra dora de histórias,
Sherazade. cie As Mil e ! 'ma Xoites, é uma mulher.
Talvez, com o coub e ã mãe a proximidade co m a
infância, ficou para ela també m a representação, a
encarnaçá o dessa figura qu e no s envolve co m palavras:
entretanto, q u a n d o uma mã e conta histórias, se
inicia justamente um process o qu e transcend e
sua figura de mãe . dá-se a introduçã o de algo
maior qu e ela e que , na verdade , a distancia do
filho.
Tod a um a corrent e psicanalítica''
dedico u-s e a teorizar a respeito do papel do
pai com o aquele cuja função seria a de
propiciar uma bem-vinda separação entre a mã e
e o seu bebê . Deveria-se chamar a essa
operaçã o mais especificamente de função paterna,
para q u e nã o fique colada â pessoa concreta do
pai. Aliás, a criança pod e muito be m ter seu pai
em casa, sem qu e ele exerça essa função, assim
com o p o d e nã o o ter e contar co m algum
expedient e ou pessoa em sua vida qu e
de se m p e n h e o papel. A função paterna
interfere com o um terceiro na díade màe-filho,
Fada s n o Di v a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infanti s
para outra s finalidades, geralment e o pai
narrado r cria personag e n s q u e passa m a ser
compartilhada s co m a criança . Pssa figura
fazê-la esquece r do filho po r algum tempo . Xa falta imaginári a p o d e p r o t a g o n i z a r
de um pai. o filho e a ma e colherão na sua vida interesses
e pessoas qu e opere m na suplência dessa
personagem . Isso funciona, mas e uma via mais
trabalhosa.
A figura de um pai present e na vida da
criança é benéfica, inclusive pela s razoe s q u e
ab o rd a m o s nest e capítulo. Sua \ o z . colocad a na s
histórias qu e contará ou , pel o me nos , na s palavras
cio q u e dirá para educa r o filho, talvez no seu
jeito de comenta r o qu e pens a da vida.
funcionara mais do q u e um terceiro, capa z de
ajudar na tlescolage m entr e o beb ê e a mae .
A presenç a real tio pai propiciar:! apoio s
identificatórios para os filhos, ocasionar á oportunid ade s
de elaboraçã o tios ponto s notlais tio inconscient e
familiar, será um guia e traduto r tio m u n d o intern
o e extern o ao lar.
Nessa aborda ge m tia importância e da
caracte• rística tia tunca o paterna , p o d e m o s p e n s a r a
dinâmica familiar com o um espaço , relativo ao
qual se situam um fora e um dentro . Patern o seria
aquil o q u e pux a a ma e e a criança para fora tia
díatle em q u e tende m a se encapsular . e o corte
qu e areja o vínculo. Matern o é o espaç o intern o
constituíd o po r um olhar, uma voz. qu e vã o
oferecend o a o b e b ê a o p or tu ni d a d e d e s e
descobrir, mais qu e isso. se constituir - c o m o
tivemo s oportunida d e d e descreve r e m várias ocasiõe s a
o long o tleste livro. Por isso. falamos em funções
patern a e matern a e na o em papa i e m a m ã e ,
já q u e o casal parental p o d e inclusive se revezar
nessa s funções.
Sempr e n o princípi o d e tu d o h á uma voz
. l m filho tem qu e ser narrado; para existir, seu corp o
precisa ser d e alguma lorma descrito, apresentad o a
o própri o d o n o . f.xiste uma narraçã o primária, própria
tia função materna , em qu e a ma e traduz os latos
fisiológicos e ambientai s para seu b e b e . no meia ,
interpret a seu s h u m o r e s . Iss o p e t l e um a ma
e s u f i c i e n t e m e n t e narradora . tal c o m o descrita
no livro de (íutlreínd .
Paz. part e da t un c a o matern a incumbir-s e
tias palavras qu e vã o ser as fundações , os pilares sobr e
os quai s o b e b ê irá se montar, ess e discurs o
tem unia m us ic ali d a d e a c e n t u a d a : será c o m p o s t o
d e excla • mações , cantigas e p e q u e n o s /in^/es. qu e
ac o m p an h a m hábitos tle alimentação , higien e e
sono . P uma voz q u e reveste, recobre , c o m o s e
jogasse uma cobertur a tl e compreensibilitlatle
sobre o que nomeia. Poderíamos pensai'
que a mae suficientemente narrativa é uma
tias facetas tia mãe suficientemente boa, e um
d e s d o b r a m e n t o tio conceit o de Winnicott. À função
patern a c o rr es p on d e uma voz q u e serve
é. Vejamos, qual seria a quantidad e tle hist(')rias
necessárias para co mpo r um sujeito? Nao é uma
matemática precisa, muitas nuance s se encerra m
história s inventada s ou apenas participa r d ness e processo . P uma questã o um pouc o sem
e brincadeiras, pode , po r exemplo , ser representad a pela mã saída, qualque r um de nós pode pensa r q u e dev e
o d o pai (leito marionet e e q u e p o d e ser nomead a tle have r uma inserçã o num a cadeia discursiva e
aranha , formiga ou representa r outra personage m qu e a riqueza de uma subjetividade vai estar
qualquer ) ou a pe n a s ser referida. Para algun s pais. o ligada a isso. mas c o m o provar? () contrário é
m o m e n t o tle desenha r co m os filhos se presta mais verificável: referimo-nos ao s problema s
tanto para inventar histórias q ua n t o para escuta r as crianças. encontra• do s q u a n d o temo s pais demasiadament e
Algumas soltam a fantasia co m o apoi o do papel . silenciosos - q u e s e e n c o n t r e m d e p r i m i d o s , po
A invenção tle uma personage m e apena s um dos r exempl o - , o resultado potle ser o tle um
recursos narrativos, há muitos outros, com o contar leitos empobreciment o subjetivo.
pessoais, tle algum antepassad o ou de alguma figura
() discurso parental ensina a pensar,
admirada política, religiosa ou culturalmente. Se a voz
cria potencialidade s tle equacionai" e soluciona r as
materna e a qu e constitui uma musicalidade qu e cadência os
coisas. Ide na o e tão important e no conte úd o quant o na
fatos, emprestantlo-lhes uma lógica, a paterna é uma
forma, pois o simples exercício de p en s a m en t o e
espécie d e mestre-tle-cerimônias tio mun do .
narrativitlade po r part e do s pais. o u m e s m o d e u
P.speramos qu e fique be m claro qu e se trata m s ó deles , pode ser potencial de erudiçã o e
tle tipos tle discurso, tle tal forma qu e uma ma e criatividade no filho, mesmo q u e os pai s n a o o
não se restringe a voz materna, nem o pai à paterna, d o m te nh a m . O contrári o també m é válido,
o no cas o da s lunçoe s patern a e materna , encontra mo s famílias em q u e a sensibilidade
anteriorment e referidas (tias quais a voz é um aspecto), eles são artística e a consistência cultural do s pais sã o
posições qu e pode m encontrar cena s variações. Pm função indiscu• tíveis, ma s existe um abism o se p ar an d o
disso, dessa alternância e da inexistência tle uma pais e filhos. A função parenta l n ã o pass a po r
hierarquia em importância entre que m narra, preferimos osmose , ela depend e d e u m exercíci o ativo d e
chamar essa capacidad e de ]>ais suficientemente transmissão .
narrativos.
C o m o verificamos n a análise d o cont o d o
Se o conceito lhe parece r um pouc o imponderável,
Vampi, um a da s coisas mais importante s ness e
lembramo s qu e a natureza do assunt o també m o
exercício é o

300
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mário Co r s
o

fato de o discurs o parenta l ser depositári o de um a de excentric idade s significativas. O


convívi o familiar carga inconsciente , q u e transcend e a possibilidad e d e da s cr ia n ç a s
contemporâneas , filhos ele pai s q u e c o m pr ee ns ã o do s q u e falam e do s q u e escutam . Aliás,
tra b al h a m cie sol a sol . te m se reduzido , q u a n d o s e houvess e intençã o d e conscientiza r o
processo , tal m u i t o , a es s e e n c o n t r o n o t u r n o . Ness e p e q u e n o flux o s e interromperia . Por
isso. dizemo s q u e o qu e es p a ç o d e t e m p o , tod a a forma d e co mu nic aç ã o vale flui entr e pais e
filhos r es p on d e melho r ao n o m e de a pena .
transmissã o qu e d e ensinamento s , cie
aprendiz age m o u d e outr o term o mais pedagógic o
.
l : m c o n t r a - e x e m p l o talve z aj u d e : a a d o ç ã o NotCIS
freqüentemen t e pr o d u z segredos . Nunc a e u m assunt o
fácil, m e s m o q u e o enfrentemo s diretament e e sem 1. Rsta é a única parte do li\ ro escrita
somente por uni medo . O segred o se impõ e q u a n d o os pais. po r uma de nós: na parte teórica
a seguir, sobre Pais suficioi- insegurança amoros a (talvez po r na o tere m elaborad o leniente
narrtiliros. retomamos a escrita comparti- a ferida narcísica q u e certas ad o çõ e s provoca m - a
lhada.
falta de fertilidade do casal), opta m pel o silêncio, as -. Sena a "mãe atenta a todas as formas
de diálogo e vezes sobr e o fato total, ás veze s sobr e parte. A criança, de brincar criativo, ela devia
se mostrar capaz de• por sua vez. e n t e n d e q u e o silêncio sobr e suas origen s inspirar á criança uma
frustração necessária, a fim faz part e cio laço co m seu s pais. Pia entã o na o vai de
desenvolver seu desejo c- sua capacidad e cie quere r sabei' o q u e sua família n a o deseja q u e ela
indiv icluaçao. Fssa relação, que reduz o lugar do saiba. O problem a e qu e isso possivelment e produzir á
pai a o mí ni m o i n d i s p e n s á v e l , a p a r e c e c o m o um efeito generalizante . As pergunta s calada s contami -
exclusiv a e nao-c rolizacl.i". In KOI IllNFSCO. na m a própria capacid a d e intelectual da criança, sua
Flisabeth <S. PI.ON. Michel. Dicionáriode Psicanálise. curiosidad e fica co mpro m etid a , afinal ela e obediente ,
Rio cie janeiro : Jorge /.ahar Fclitor. 1W<S, p. ""S-i.
o pact o era n a o saber. 3. Deve ficar bem claro, qu e esta
adaptação do termo
Assim c o m o unia criança pocle ter sua curiosidad e nao questiona em absoluto o conceito
criado por emb otad a pela obediênci a devid a a um segredo , o Winnicott. Fie e ele
extrema importância, conforme m e s m o ocorr e co m o p e n s a m e n t o de outra cujas idéias ressaltado por
Guitrcincl. mas foi adaptado para essa e palavras nã o interessam a ninguém , balar co m uma
específica necessidade de teoriz.acao.
c r i a n ç a , c o n t a r - l h e h i s t o r i a s ou ca u s o s c; e s t a r t. Cil"]TRFIND. Celso. (> 'lerapenta c n l.oho: a
I iili-
interessad o em sua escuta, é autorizá-la a ter idéias. zação do Cánlo na Psicoterapia da
(.'riança. São
O resultad o cie um a narrativa provenien t e do s Paulo: Casa do Psicólogo, iiiu-i. p. 1 n
pais é mais q u e uma criaçã o coletiva, ê uma história > WINNICOTF. D.W. Rca/idad vJUCÍ><>. Buenos
Aires:
ficcional q u e se escrev e e n q u a n t o algué m vive sua Cíedisa. 1982
história real. uma se desenvolv e apoiad a na outra . A o. Reterimo-nos -às teorias cie- lacques I.acan
e daqueles condiçã o de ser pais suficientement e narrativos na o é que se inspiraram nelas.
Winnicott elaborou seu u m do m especial, encontrave l e m pais particularment e enloque
psicanalític o num a époc a e m qu e s e d o t a d o s par a a p ar e nta li da cl e . A c r e d it a m o s esta r
enfatizava muito a importância da estruturaçã o des crevend o u m process o corriqueiro , q u e p o d e ter
interna d a criança com o causadora d e eventuais características mais marcaclament e literárias ou nao .
distúrbios psíquicos, formad o no interior das teorias mas seu resultad o i n d e p e n d e disso.
de Melanie Klein, ele buscou outro eixo: a relevância O n d e h ou v e r um filho criativo, no sentid o cie
do vínculo com a mac- como determinante-. Ambas
ter e n c o n t r a d o s o l u ç õ e s par a viabiliza r su a vicia, teorias, cie- Klein e Winnicott.
ressaltaram aspectos p o d e m o s ter certez a d e q u e el e tev e pai s suficien- i m p o r t a n t e s do
desenvolviment o human o e tement e narrativos . Nest e c ap ít u lo , va lo ri za m o s o
p e r m i t i r a m o u s a d i a s clinica s i n d i s p e n s á v e i s . eve nt o da história ficcional contad a pelo s pais . na
realizando a seu mod o necessárias revoluções no clássica hor a ante s de dormir, a p e n a s para de mo nstr a r
pensament o psicanalítico. Porem, consideramos que q u e o q u e se diz a o s filhos, p o r mai s m a l u c o e
devem ser lidos à luz de uma retomada da impor- ficcional q u e seja. nunc a é irrelevante . A existênci
a tância do conflito eclípico. no sentido freudiano. Foi de um e s p a ç o lúdic o verbal , c o m o o
pr o pi cia d o po r a importância que a teoria lacaniana dispensou à esses costumeiro s encontro
s noturnos , é se m p r e palc o função paterna qu e proporcionou mais essa virada.
Conclusão
O VALOR DE UMA BOA HISTÓRIA

istórias nã o garante m a para crescer, um n o m e e uma missão na vida.


felici• d a d e ne m o sucess o Porém, i n d e p e n d e n t e m e n t e d o q u an t o nossa tamília
na vida. ma s ajudam . Idas tenha no s p r o v i d e n c i a d o u m bo m acerv o
sa o com o e x e m p l o s , emocional , o s problema s , as dúvida s e as
metáfora s q u e ilustram exigências surgirão, com o uma esling e devorador a
diferentes m o d o s d e p e n s a r q u e s e interpõ e n o caminho. Bem. essa é a hora
e ve r a real id a d e e. em q u e uma boa caixa cie histórias é de grand e
cjuanto mais variadas e extraor- valia.
' . . . . . . dinárias forem a s Por acreditar no pode r da fantasia, nos
situações qu e elas contam , mais se ampliará a gama lançamos na tarefa de refletir sobr e o q u e as
de abordagen s possnei s paia os pioblema s qu e no s histórias antigas, q u e aind a sã o narradas , e a s
afligem. I m grand e a c e r v o d e n a r r a t h a s e c o m novas , qu e surgiram m odelada s po r valores
o u m a b o a caix a d e ferramentas, na qual sempr conte mp orâne o s , têm a dizer às pessoa s qu e
e temo s o instrument o certo p a r a a operaçã o recorre m a elas. Supusemo s qu e há um a relaçã o
necessária , poi s d e t e r m i n a d o s conserto s ou pragmática co m a ficcào. usamo s o qu e n o s é
instalações só p o d e r ã o ser realizado s se tivermo s a útil. Porém , essa utilidad e nã o d e p e n d e d e
broca . o alicate ou a chav e de tend a a d e • q u ad o s men sagen s diretas, pois. se ess e tosse o caso,
. Além disso, co m essas ferramenta s p o d e m o s apena s s e c o n s u m i r i a m livro s d e a ut o- aj u d a
ta m b é m criar, construi r e transformar os objetos e e m a n u a i s variados , o q u e felizment e n ã o e
os lugares . verdade . Muitos adulto s cae m nessa cilada, lato
Uma ment e mai s rica possibilita qu e qu e soment e os torna mais po b r e s de espírito, na
sejamo s flexíveis e m o c i o n a l m e n t e . capaze s d e medid a em qu e esse tipo de leitura n ã o os alivia
reagi r ade • quadament e a situaçõe s difíceis, da s obsessões , ne m os livra de sua s ruminaçõe s
assi m com o criar s ol uç õ e s par a nosso s labirínticas.
i mp a ss e s . C er ta m e nt e , essa s qualidade s d e p e n d e m Por sorte, as crianças sã o muito mais
d e q u e t e n h a m o s recebid o u m suport e a d e q u a d o espertas, elas sã o adepta s irrestritas cia ficcào e
n a infância, o u seja. um a família q u e no s quant o mais mágica , onírica, radical e absurda ,
ofereceu a proteçã o e o estímul o necessário s melhor. Pode-se t a m b é m traçar um paralel o
interessante co m a poesia,
Fada s n o Div a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infa nti s
r intençõe s pedagógica s sublimi• nares dentr o
d e seu supri me nt o d e fantasia: aqu i elas parece
m preferi r u m territóri o livre d e
atravé s d a qua l a s palavra s s e tor n a m
influência s pedagógicas .
ferramenta s poli \ a l e n t e s . C ri an ç a s adora m
t r o c a d i l h o s , rima s divertidas, sentido s surpree ndente
s e humor , e é nisso q u e as julgamo s sabias , poi
s o d o m í n i o da língua flexibiliza o e nte n di m e n t
o tia realidad e e faz noss o pe n sa m e nt o mais
versátil e ágil. F.nfim. e uma sorte qu e n a mesm
a époc a e m qu e estamo s e m formação , a rr u mand o
a s malas q u e content o o s fundament o s qu e
\ amo s levar na \ iagem pela vida a tora. sejamos consu •
midore s \ or a ze s d e liccao.
draca s a essa s m e n t e s o ní v or a s . foi
possíve l constata r q u e aind a há lugar para
nova s e velha s personagens , cada uma co m
uma missã o a cumprir.
< ) s c o n t o s d e fada s n ã o e n v e l h e c e r a m , u m
b o m n ú m e r o dele s segu e s e n d o bastant e útil a s
crianças, apena s tiveram de se adapta r um p o u c o as
exigência s do s no \ o s tempos , alem disso, eles nã o
d a o conta d e toda s as pauta s de q u e elas hoje
necessitam tratar.
Podemo s nos dizer satisfeitos co m as
produ çõe s do s séculos XIX e XX paia as crianças,
ate porqu e foi nessa époc a qu e se inventou a
ficção propriament e infantil. Constatamos qu e as historias
para crianças dess e períod o na o parece m ser
estruturalmente muito dife• rentes do s conto s cie
fadas, no qu e tang e ã capacidad e de fornecei"
elemento s qu e as ajudem a elaborar suas questões .
Mudam os temas, mas a operaçã o e a mesma ,
("orno os contos de Ia das. a liccao de hoje traz elemento s
para cena. se a criança vai usá-los para um fim regressivo
ou com o auxílio nu m m o m e n t o cio crescimento,
isso vai dependei'ci a vida q u e está ie\anclo. Não no s
parec e q u e á s produçõe s recentes , pel o
m e n o s a s q u e exa min a mos , po r s i m e s m a s
possa m ser respo nsa • bilizada s po r e \ e n t u a i s
pr o bl e m a s q u e a s criança s
\ e n h a m a apresentar. Sozinhas, histórias na o
induze m à violência , na o fazem apelo s
regressivo s q u e a s retenham na infância, na o
produze m isolamento social, ne m a s desliga m d a
re ali d ad e . S e certa s criança s apresentam alguns
desses comportamentos , é melho r procurar culpado s
em outr o lugar.
F, tácil dize r q u e a licca o infantil poderi a
se r melhor , q u e d e \ c rí a m o s e l a b o r a r narrativa s
mai s educativas, qu e transmitissem \a lo r e s
positivos para nossas crianças. Mas. c o m o Pinocchi
o já demonstro u muito bem . elas na o se engata m
em postura s franca• ment e didáticas e pretere m
historias q u e nã o tenha m embutid a a intençã o d e
educa-las . Atenção , n ã o s e trata cie abrir mã o de
educa r as crianças, ma s sim de evitar contrabande a
Muitas vezes, certo s adulto s q u e r e m ciar aula até n o
recreio , e isso a s criança s sente m q u a n d o lhe s
oferece m histórias marcaclamente educativas , repletas
cie b o n s princípio s morais, mesm o qu e sejam pautada s po r
ideais m o de r no s , c o m o a tolerância e o respeit o â
natureza . Se esse s princípios fizerem parte da vida
do autor, provavelment e encontrarã o ec o e m suas histórias
e. po r essa via. serã o construída s as perso nage n s boa s e
clicas co m os quai s elas gosta m de se identificar,
mas se elas farejarem qu e estã o diant e de um
Cavalo cie Tróia replet o de pedagogia , na o terã o
dúvida s em incendiai' o e n g o d o .
Isso na o que r dizer qu e tenhamo s d e mantê-
las nu m m u n d o cie lantasia e alienação . Pelo
contrário: crianças m o de rn a s adora m opinar, sã o
filhas d e u m ideal democrátic o e na o aceitam nada qu e
na o tenha m co mpre endid o ou elaborado . Questiona m
leis, regras, e o tema do s limites é m o l h o de
constant e polêmica, da qual elas participam ativamente.
Isso e fruto de uma educaçã o familiar e escolar qu e incentiva
a curiosidade, a criatividade e a capacidad e cie
questionar, na qual també m acreditamos . Prova disso
é qu e nã o faltam p ersonag en s ge n ui n a m en t e
irreverente s para ilustrar essas qualidad e s q u e hoje
consider am o s desejáveis. Porem, q ua n d o se trata de fiecao.
os propósitos racionais têm de ficar em segu nd o plano, pois
se fala desd e outro lugar e. na melho r das hipóteses, estaremo
s no territé)rio da arte. literatura, cinema e teatro po d e m até
questionar ou defende r ideais, mas isso será um
efeito colateral benéfic o de sua função mais
importante , a de nos fornecer boa s histórias.
A fiecao. infantil ou adulta, supr e os
indivíduos d e alg o q u e n ã o s e encontr a facilmente
e m outros lugares: todo s precisamo s cie fantasia, nã o
é possível viver sem escape . Para suporta r o fardo da vida
comum, é preciso sonhar. Mas nã o elevemos confundir
a oferta cie fantasia através da fiecao. qu e fornece tramas
capazes d e ali m e nt a r d e v a n e i o s e b ri n ca de ir a s ,
co m uma educaçã o alienante. qu e confund e infância
com pueri- lidade. desmerec e a curiosidad e da s crianças
e pinta o m u n d o e m ton s pastéis . O s assunto s
complicado s eostumeirament e evocado s pelos conto s de
fadas, assim c o m o alguma s tramas q u e demonstramo s
serem subja• centes às histeirias infantis contemporâneas ,
provam cinc• as crianças nã o se esquiva m de assunto s
cabeludos, inclusive às vezes os enfrentam de forma be
m ousada. K be m po r isso q u e tantas dessas
narrativas permane• ceram conosc o pel o resto da vida,
graças à riqueza que emprestara m e segue m oferecend o
co m o auxílio diante cie e n cr uz il ha d a s e dificuldade s
q u e continua m se interpond o n o caminho .
Di a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Co r s
o
e roteiros simplórios, tornam-s e m o e d a corrent e entr e
a s crianças . C o m o nenhum a criança vive se m relaçã o co
m as outras, sejam vizinhos, colega s d e escol a o u
Fantasia versu s alienação parente s d a mes m a idade, é impossível evitar q u e
tenha m contat o co m
Ç?S~yl rovavelmente , o maior tab u q u e temo s
hoje
,„!'* * . ? n a e d u c a ç ã o d a s c r i a n ç a s sej a
evitar
>t }<*'" transparece r noss o pessimismo . Na
medid a cio possível, nã o lhes dizemo s
clarament e o
q u a n t o a \ ida é pesad a para todos . Mesm o q u e
cias saibam q u e nã o vivemo s n o melho r cios mundos ,
lhes infundimo s a esperanç a d e q u e o s bon s po d e m
salvar a situação. Ocultamo s , se mpr e q u e possível, o
fato de q u e nó s m es m o s temo s certa ap re e ns ã o d e
q u e talvez o futuro poss a ser ainda pior. Sempr
e qu e possível d o u r a m o s a pílula, postergamo s a
revelaçã o de nossa s dúvida s ate q u e elas descubra
m sozinhas , e muitas v e z e s ess a é a c a u s a
cie c e r t a s d e p r e s s õ e s q u e norm alm ent e ocorre m
n a adolescência : trata-se d e u m desenca nt o abrupt o
co m o m u n d o .
Co m o contrapes o ã sonegaçã o da realidade a qu e
tend e a educaçã o q u e fornecemos , a ficção acaba send o
um a saída para qu e certas verdade s s e
i m p o n h a m . Mesmo qu e fragmentariamente. ela traz
ã tona alguns desses elemento s recalcados, po r
exemplo , através da violência apocalíptica de certos
filmes, quadrinho s e games. Esses produto s nã o
chegara m do espaç o sideral, eles são congruente s co m o
estad o da política atual em quas e tod o o mun do ,
vivemos num a époc a em qu e a desigualdad e e a
violência sã o epidêmica s e se perpe • tuam .
Infelizmente, nã o temo s a receita d e q u a n d o ,
quant o e c o m o uma confrontação co m as
dificuldades d o m u n d o dev a se r a d m i nis tr a d a à s
crianças . D e q u a l q u e r forma , é important e
a p o n t a r q u e o q u e expulsamo s pela porta acaba
voltand o pela janela.
Qu e fique be m claro , e nt ã o , qu e
de fe n d e r a importância do recurs o à fantasia e à ficção
n ã o implica supo r q u e a s crianças deva m cresce r e m u
m ambient e de histórias pobres , de um maniqueísm o
barat o e finais felizes a qualque r preço .
Certa ment e n ã o e s t a m o s f a z e n d o n e n h u m ti p o
d e libel o à s vantagen s d a alienação e do
bovarismo . Defen de mo s a importância d a ficçã o
po r cre r qu e a c a p a c i d a d e d e cria r e
questionar se nutr e da mesm a fonte q u e a de devanear .
Parcos recurso s imaginário s red u n d a m so ment e
e m pobrez a de espírito e num a civilidade bovina .
Infelizmente , ne m só de boa s histórias
vive a infância. Seg uida m ent e , obra s d e ostensiv
a estética kilscb, en v ol ve n d o p ers o n ag e n s
populare s d a mídia o u simplesment e lançand o mã o d
ess e tip o d e prod u to , m es m o qu e
parcialmente . N o context o d a socialização do s
p e q u e n o s , a s histórias sã o um a espéci e d e
linguage m c o m u m entr e eles . portant o ta mbé m
inclui os itens pop ulare s e po r veze s indigestos do
cardápio . Se formos muit o rígidos na tentativ a
de pr e s e r v a r n o s s o s filhos, deixando-o s
d i s t a nt e s da s produçõe s qu e supomo s
ruin s - e c o nv e n ha m o s , n ã o e p e qu e n a a
oferta de programa s de cultura trasb à
disposiçã o -. p o d e m o s constituir uma criança
alienada daquil o q u e seus semelhante s estã o
us a n d o para brincar e conversar. Acreditamos
q u e é melho r c o n h e c e r u m pr o du t o d e
qualidad e duvidos a e sofrer seus eleitos, do q u e se
sentir excluído d e u m grup o po r n ã o pode r
falar sobr e u m assunto . C or re -s e o risco , p o
r e s s e d e s c o n h e c i m e n t o , cie valorizar algo q u
e nã o tem valor algum. Em a simples proibiçã o
sei irá sublinha r a importância, p o d e n d o fazer a
criança pensa r q u e lá existe algum segred o da
vida adulta q u e estamo s q u e r e n d o lhe sonegar .
Essa linguage m c o m u m ao s p e q u e n o s (e
muitas veze s ao s grande s també m ) tem na televisão
sua maior fonte. A melho r saída parece-no s ser a
mais trabalhosa: nã o deixa r uma criança cie fora
do qu e o seu temp o oferece, mas tant o
seleciona r e oferecer alternativas a isso, c o m o
ta m b é m elabora r co m ela um a crítica ao s
produto s mais fracos. Tant o a 'IA" quant o os
produto s de baixa qualida d e só p ode m fazer mal a
uma criança q u e esteja subjetivament e
aband ona da , e. ness e caso. t a m p o u c o se
estivesse expost a soment e a programa s corretos ,
ela estaria muito melhor. Ou seja. o drama
aparec e q u a n d o um a criança receb e esses
produto s culturais, b o n s o u ruins, a d e q u a d o s o u
inadequados , c o m o única fonte d e contat o co m
o mun do , qu a n d o o s adulto s q u e zelam po r ela
n a o sã o capaze s d e fazer diálogo s interessante s e
ajudá-las na sua apreens ã o do m u n d o . Nã o há
pr o du t o bo m o suficiente qu e salve um a criança do
isolament o e n a o ha um produt o ruim o bastant e
qu e poss a prejudicar aquela qu e estiver
conectad a co m u m ambient e estimulaclor.
Justamente , um a da s questõe s mais
equivocada s em relaçã o às questõe s q u e estamo s
desenvolven d o é o exager o (juanto ao alcanc e
do pode r da ficção na subjetividad e em geral
e particularment e na infância, q u a n d o a
pretens a influência seria aind a maior. A
tendênci a de hoje é localizar a orige m do s
problema s da s criança s n ã o n a forma e m q u e
elas estã o vivend o realment e sua infância, seu s
possíveis mal-estares e m relaçã o ao s amigos ,
à escol a e à família, ma s em influências
parciais sobr e sua vida, e um a dela s seria
provenient e d o m u n d o d a fantasia. Com o cada
geraçã o te m r e c e b i d o n o v o s p r o d u t o s , a
ge ra ç ã o d o s pai s
Fada s n o D i v a - P s i c a n á l i s e n a s História s Infa nt i s

rarament e c o m p r e e n d e o q u e d e fato seu s filhos estã bo a capacidad e d e simbolização . Uma pesquis a


o c o ns u m in d o , isso já gera um a primeira e m exte nsã o sobr e a ampl a gam a da oferta de
desconfiança . Parece-nos qu e esse mal-entendido entre os ficção para as crianças n ã o era noss o objetivo e
adultos sim um estud o focand o certas trama s a partir da
e os produto s culturais consumido s po r jovens e crianças s quai s p u d és se m o s falar de crianças, de
prové m do fato de os pais de hoje n ã o se psicanálise e da s boa s histórias d e ficção co m
sentirem legitimados com o influência dominant e no seu s possíveis benefícios.
resultado da educaçã o do seu filho. Por isso, projetam sua A história real do s h o m e n s nunc a foi
insuficiência, seu s medos , sua inseguranç a q ua n t o fácil de aceitar. A violência, a ignorância e a
ao s valores n o primeiro alvo qu e passar, se sentindo injustiça triunfam co m maio r freqüência d o q u e
isentos de culpas e vend o abrandada s suas obrigações. Não gostaríamo s d e admitir. Pel o menos , noss a
se deve esquecer d e qu e a s histórias so ment e c a p a c i d a d e d e criar, d e conta r histórias, parec e
mobilizam algo q u e a s crianças já têm em seu ter en c on tr a d o formas d e sobreviver e questionar .
interior, e a constituição de sua personalida d e se Afinal, certa do s e de otimism o é possível, pois. embor a
dá a partir do q u e sua família lhe transmite, a ficção n ã o tenh a o p o d e r de salvar o m u n d o ,
consciente e inconscientemente. com o tanto s herói s contemporâneo s tê m
1. necessári o fazer um a advertê nci a ante s tentado , ela pel o m en o s o enriquece . Esperamo s
de encerrar. Xosso estud o p o d e passa r u m cert o com este livro ter contribuíd o um p o u c o para a
otimism o qua nt o á qualidad e do s prod uto s da legitimação d a fantasia c o m o part e imprescindíve
indústria cultural para a infância, afinal analisamo s e l n a vida da s crianças, assim c o m o ter oferecid o ao
en c on tr a m o s b o n s indicadore s em algun s deles , s adulto s algumas pistas par a c o m p r e e n d e r po r
ma s é b o m frisar q u e aqui nã o houv e uma análise q u e algun s conto s e histórias infantis disputa m
ampl a da cultura oferecida hoje às crianças. Estamos na espaç o e m sua s memória s co m fatos, ditos e
verdad e long e disso, temo s p o u c o s exemplo s imagen s do seu passado .
e
t r a b a l h a m o s j u s t a m e n t e c o m histórias q u e sabíamo s lassas histórias atiraram por uma poria,
serem capaze s d e propiciar uma saíram pela outra... e quem quiser que conte
outras'
QUASE ÍNDICE

ue m já tez um a tes e ou um po r exe mplo , o Gato de Botas, ou as inúmera s


livro sab e qu e um a versões do Pequeno Polegctr. Fies nã o sa o meno s
p e s • quisa n ã o tem fim, mas importantes q u e os outros , mas, po r uma limitação
qu e e m u m determinad o nossa, ficaram se m a devid a atenção .
m o • ment o é necessári o Co m a segund a parte do li\ro , temo s uma relação
parar. Neste quase-íudice diferente , afinal, a amplitud e é ainda maior e
encon • tram-s e e nt ã o a s só é possíve l trabalha r po r amo strage m , salvo
histórias q u e tínhamo s alguma s histórias q u e já se tornara m clássicas, tivemos
vontad e d e incluir q u a n d o de fazer escolhas . Então, muita coisa boa e
co m e ç a m o s interessante ficou de fora.
o livro, ma s po r várias razoe s n ã o conseguimo s . For muito tempo , estudamo s e estávamos
Por honestidad e co m o leitor e na esperanç a q u e com o compromisso , conosc o mesmo , de incluir
colega s se interessem em dar conta tlelas, aqu i uma análise cie Alice no País das Maravilhas. O
estã o as q u e ficaram de fora. sem-númer o de estudo s sobr e Alice e a
Na primeira parte, sobr e os conto s de fadas, profundidad e de alguns desses ensaios , assim c om o
os limites qu e enco ntra mo s n ã o foram poucos : o univers a dificuldade de reunir tod o o m at eri a l qu e
o desses conto s é vastíssimo, faz. a p ro xi m a d a m en t e desejávamos , no s d e s e n c o r a j a r a m . Temíamos
un s trê s a n o s q u e e s t a m o s l e n d o c o n t o s chegar a conclusõe s a qu e outros já chegaram e nã o
d e f a d a s ininterruptamente, de vários compilador e s dar os merecido s créditos. Alice é uma paixão
e de diver• sos países e seguimo s t e n d o material també m para adultos e muitos autores escreveram sobr e
para ler. para voltar a ler, para pensar . A o tema. F um a pena , daria oportunida d e a uma reflexão
imersã o no s conto s no s deu a dimensã o de sua sobr e o sonh o e a fantasia, e provavelment e
amplitud e e de quanta s histórias aind a p o d e r í a m o s sobr e a nova subjetividade da s meninas , afinal foi
trabalhar . Recolhemo s a s mai s conhecidas, escrito num a époc a d e transformação, ainda qu e
acrescidas d e uma s pouca s histórias m e n o s populares, lenta, d o papel d a mulher. Co m Alice começava m
cujo c o n t e ú d o s e i m p u n h a po r sua temática exempla r o a desperta r heroínas, ainda meninas , q u e dava m
u po r sere m conto s intermediários , qu e conta dess e nov o mo me nt o de construçã o de um a
influenciara m o s mai s conhecidos . Me s m o identidad e feminina ousad a e i n d ep e nd e nt e .
assim , ficaram de fora certos conto s pelo s quai s temo s
apreço ,
Fada s n o D i v a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infa nti s

Co m a ficção brasileira, noss a maio r dívida é co m mereceri a u m trabalh o psicanalítico cuidadoso .


Mo n t e i r o L o ba t o , gostaríamo s d e te r Para ter um a idéia dess a pe rsonage m surpreendente ,
e x a m i n a d o alguma s de suas personagen s , principalment pe n s e n u m a mistura da força da Mônica co m a
e a bonec a Emilia. A vastidã o da obr a de Lobato irreverência d a Emilia, escrit o d e u m a form a
tornari a essa e m p r e i t a d a maio r d o q u e n o ss a s m u i t o divertida . Infelizmente n ã o deu .
forças . K ainda , sentíamo s qu e o m u n d o lobatian o Gostaríamo s d e ter abordad o u m produt o recent e
p e d e mais reflexões antropológica s e históricas do q u das indústrias Disney, para tanto tínha m o s
e psicanalíticas. Para explora r a paisage m do n o s p ro g ra m a d o para estuda r o Rei Leão.
Sítio do Pica-Pau Amarelo. consideramo s Teste mu nha mo s sua apariçã o e sucess o junto às
fundamental aprofunda r certos estudeis em literatura, crianças, be m c o m o o us o d e seu conteúd o (com o
antropologi a e história brasileira. C o m o isso nã o foi s e fosse um a mitologia) po r elas. Ficou claro para
possível, capitulamos , co m m e d o de acaba r na barriga nós , po r experiênci a clínica e parental . o q ua n t o
da Cuca. essa história é rica e formativa para os p e q u e n o s .
Nossa segund a dívida é co m Ziraldo. O A história do leàozinh o Simba ficou d e tora para qu e
Menino Malitqinnbo consegui u ser um personage m o present e volum e n ã o s e tornass e tã o extenso .
conheci d o am pla ment e pela s crianças brasileiras, lim a fábula m o d e r n a , cujo impact o
e n q u a n t o sua Professora Maliu/iiinba simbolizar á viesse d o cinema , se m raiz na tradição , daria
par a sempr e o vínculo amoros o qu e possibilita um a important e r e f l e x ã o . l'm e x e m p l o
a aprendizagem . Mas a literatura brasileira é prolífica, d i d á t i c o s er i a E.T. - O Extraterrestre, o filme
temo s a sorte de contar com muita gent e brilhante, de Spielberg. Nã o é precis o dizer a ningué m o
po r exemplo : Kuth Rocha. Maria Clara Machado . F.va q ua n t o essa história encanto u crianças e a d u l t o s .
Furnari. Ana Maria Machado . Lygia Bojunga. Cristina Iss o seri a m o ti v o suficient e par a fazê-la
Porto . Liliana Iacocca, entr e outros, enfim, é um
merecedor a d e u m estud o psicanalítico mais profundo,
universo tão rico com o amplo . Se o Brasil nã o de r
q u e m sab e conseguiríamo s dizer alg o q u e ainda
certo, pod e ter certeza qu e o motivo é outro, nã o é po r
nã o foi dito sobr e ess e estrangeir o radical e
falta de bon s nome s na nossa literatura infantil. Uma
desgarrad o q u e necessitava, mais do q u e tudo , voltar
análise das características comun s a esse grup o d e
escritores, q u e falasse d o lugar e t e m p o qu e para seu lar. Além disso , a o té r mi n o d o livro,
influenciou suas obras, seria certament e revelador t e m o s uma
do qu e é nascer e crescer no Brasil. sensaçã o qu e el e j á est á levement e
e n v e l h e c i d o . Conseguimo s fazer leituras de histórias
Com a turma do s super-herói s també m situadas numa transiçã o do sécul o XIX par a o
estamo s em falta. Aparentemente , existe um eixo XX, ma s falta uma reflexão sobr e o fim do
co m u m qu e percorr e a s histórias do s super-heróis . sécul o passad o e o engate co m o q u e estamo s
ma s eles sã o muitos. Poderíamo s escrever sobr e vivendo .
u m deles, poré m c o m o situar alg o se m explora r
Para fins d e at ua li za çã o , g o s t a rí a m o s d
o s p a r e n t e s e sua s possíveis relações? Mais uma vez.
e ter e n f o c a d o a p r o d u ç ã o j a p o n e s a r e c e n t e .
fomos desestimulado s pel o tamanh o d o
O J a p ã o c o ns eg u e ser hoje u m grand e
empr een dim ent o . Acreditamos qu e uma reflexão
exporta do r d e cultura, capa z de balança r o q u e
séria sobr e os super-herói s ciaria quas e tanto
parecia invencível: a estética Disney-norte-americana
trabalho quant o no s de u a segund a parte deste
. Seu segred o é ter colocado no liqüidificador
livro. E uma pena , pois o universo Mane i no s encanta
elemento s míticos de toda s as culturas, organizado s
, seria uma satisfação pode r mergulhar em suas tramas
dentr o d e um a linguage m francamente visual.
e ve r s e e n c o n t r a rí a m o s o s fios q u e s us te nt a m
Essa a pa re nt e m e nt e improváve l colagem tem
es s e encontr o da magia co m a urb e caótica,
pr o du zi d o u m tã o enigmátic o q u a n t o bem-
tecnológica e angustiada .
sucedid o p r o d u t o , la rg a m en t e c o n s u m i d o pela s
Enq uant o fazíamos o livro, nossa filha mais nova, criança s d o mund o inteiro. Embor a sua s
Júlia. no s lembro u d a importânci a d e um a d e ro u pa g e n s sejam muito d i v e r s a s , a estrutur a
sua s paixõe s de infância: Pipi Meias Longas, livro d a s h i s t ó r i a s p a r e c e se r m o n ote m á ti c a : lutas
infantil escrito pela suec a Astrid Lindgren, em 1945, qu e d e prestígi o e nt r e opon entes . C u r i o s a m e n t e , o
inicia um a série. Con hecía mo s a fama da t e m a d a c o m p e t i t i v i d a d e , tão c o n t e m p o r â n e o ,
escritora, o q u e ela represento u , ma s co m a en v ol v e combatente s qu e evocam múltiplo s
observaç ã o do s efeitos da leitura em noss a filha e l e m e n t o s d a t ra di çã o , ta nt o da s fadas, q u a nt o
c o m p r e e n d e m o s o fascínio q u e se u te x t o a in d a do s mais variado s mitos. Na verdade , a Coréia e Hon
e n c e r r a . Aquel a m e n i n a travess a g Kon g t a m b é m fazem p r o d u ç õ e s similares, um
estudei mai s a m p l o d o f e n ô m e n o deveri a englobá-
los.
308
Diana Lichtenstein Corso e Mário Corso

Da mesma maneira, uma recente modalidade de


produção de histórias infantis ficou de fora: a animação
por computador. Os estúdios Pixar ou
Dreamworks
(futurologia nunca dá certo, mas...) podem ser
os equivalentes de Disney do século que se inicia e
não conseguimos examinar mais a fundo em seus
produtos.
Teria sido divertido dialogar com tipos tão
peculiares com o os papõe s de Aíonslros S.
A. ou Shrek, o simpático ogro verde que pôs
os contos de fadas de cabeça para baixo.
Enfim, pesquisar tem seus custos, fomos até
onde nos foi possível.

309
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316
índice

matern o 33 . 82-84. 111-116


na adolescênci a 138
A b an d o n o do s laços amoroso s infantis 136-139. na família pré- mod ern a 34
142- necessidad e 130
143, 137 no s conto s de fadas 130
Abus o sexual 99-100 perd a do 138
Adã o e F.va 63, 83 . 13-4-133 presente s 136
Adoçã o 301 promessa s do 131
fantasias sobr e 33 prova s 1 i 2-l -
Adolescência 83 . 89-90, 2=T-260 n simbiótico
amizade s 82 68
amo r na 138 violência 131-139
c o m o exílio 89-90 Andersen . Han s Chrisiian 32-40. 1 4(>, 163,
contestaçã o 21-t PI Angústia 38. 60
fantasia na 260 cie separaçã o 138
idealizaçã o da 23^-238. 262 infantil 33-40
infantilização da 27- 1 no s b e b ê s P 9 - 1 8 0
prolon ga ment o da 231 Animismo 193
relaçã o co m a tradiçã o 262-263 Anões, simbolism o 81 , 91
relaçã o co m adulto s 239 Anorexia 48
Adulto-criança 2 7 7 infantil 43
Afanasfev 104 Antropofagia 120-121. 124
Afrodite 224 Apeg o cia filha â mã e 6~'-_3, 101-102
Agitação infantil 191-192 Apoi o 143-144
Agressividade infantil 204 Apuleio 223
Água, simbolism o - F Aquisição da loco moçã o 44
Ajudantes mágico s 113 Aracne 232
Aliança cio filho co m a m ã e 123 Aranha, simbolism o 230
Alienaçã o 217, 222, 263-266 Arquétipo s P~
Alienaçã o na s histórias infantis 30-4-303 Arvore mágica 111-112, 113
Amaldiçoar 88 As flores da p e q u e n a Ida 199
Amigo imaginário 197-198. 282 Asbjornsen. Peter Christien 1-41
Amnésia cia infância 230, Ash-Boy 1(F
2S] Amor Asno de O ur o . O 143. 223
agressividad e 1.31 Asno. simbolism o 99
da mã e â espos a 102 Assédio sexual 100
do s pais pelo s filhos Ato falho 68-69
111 entr e pai e filha Alo sexual imaginad o c o m o violência 132
136-13"' et er n o 138-139 Auto-ajuda 303
exigência s 139 Autodidatism o 286
fetichista 113-114 Auto-estima 111
image m corpora l 137-138 Autonomi a 232, 276
importânci a para as mulhere s 98 ilusão da 276
inseguranç a n o 139 Aventuras cie Pinóquio , As 213
Fada s n o Di v a - P s i c a n á l i s e n a s História s Infant i s

Casament o 129
arranjado 134, 141, 145, 151-152, 154, 157
Babás 234-235 intercultural 145-146, 295-297
Bambi P3 Castelo Rá-Tim-Bum 266
Barba Azu l 151-160. r6 Castração 240
Barrie. J a m e s Matthew 22" simbólica 68
Basile. Giambattista 64, ~6. 84. 93 . 101-102. KF. Caumont , Charlotte Rose de 65
HO Beaumont . Jeanne-Mari e I.eprince d e 1.3-+-135. Cegueira 68
'3~ Cenenterol a IO"7-116
Bebês, primeir o sinal cie independênc i a 4.3-50 Censura no s conto s de fadas 26, 64, 102
Beijo, simbolism o 131-132 Chamisso . Adelbert von 241
Bela Adormecid a do Bosque , A 84-92 Cha peuzi nh o Vermelh o 51-61. 133, 166
Bela Adormecida , A ~S- - 6 . 84 Chapoli n Colorad o 168. 181
Bela e a 1'era, 13i-135 . 1 i2 , 152 Charlie Brown 1~4, 185
Bele/ a ""9, 80. 8 1 . 9 1 . 96. 100. K M . 110. 129-139. Chiquititas 1~2. 182
145- Cinderel a 8" \ 102. 103. 1()~-116, 136. 163, 17 9
1+4 Cinzas 9 6 -9 " . 110. 113. 115
feminin a ""9-92 simbolism o 113, 116
B e nign i . Robert o 2 16 Cisão do objet o a m a d o 1 13
Bernard o e Bianca )9 Ciúme s 159
Bettelheim . Brun o 165. P 3 - H - + , P 8 - P 9 Cocanh a t2
Bich o Pelud o 80. 93. 1 13 Cólicas do recém-nascid o }4, 66-67
Branca de Neve _ S-92 . 111. 2=51 Complex o de Castração 114
Branca de Nev e e os Sete Anõe s 162. 166 Co mple x o de Fxlipo 125. 261-262
Brincar 236-238. 2 5 1 , 260 na menin a 8"". 95-105
B r o w n i n g . Roberl 50 n o m e ni n o 9 8
Bruxa 5^. 65. ^ 6 . 83. 86. 2 ( 6 - 2 i 8 . 250-252 C o m p or ta m e n t o regressivo 229
devorado r a 4.5, t5 Co mp ulsã o ã repetiçã o 216-217
Bruxas. As (novel a de Roald Da h l ) . 49 C o nc e pç ã o oral d o m u n d o 43-50
Bulimi a 48 Construçã o d a
identidad e feminina
252
-
n o menin o 120-12-1
7
Cabelos, sim b o lis m o 69, "73 9
Caçadores 80-81 . 9 " Construçõe s e m análise 1
Cachinhos Dourado s 31-40 Cont o maravilhos o 27-28, 40
Cachos de cabelo, simbolism o 39 Conto s de fadas
Caçula 38. 103. 105. 150 a d e q u a ç ã o e i na d eq u aç ã o 163-166
Caixa de Pandora 154 censur a 26. 64
Calvin 185. 2~(). 281-286 c o m o linguage m entr e geraçõe s 169
Calvin e Harold o 198 difusão 1 6 9 - P 0 . H 8
Calvino . ítalo 153 e a lógica infantil F 0 - H 1 , 174-175, 179
Canibalismo 80. 85. 91 e mitos 28
Cantigas de ninar 1 "9-180 efeitos terapêutico s 178-179
Cao Hamburge r 266 eficácia 163. 170, 173-174, 176-180
Capacidad e de estar só 204 estrutura 2"\ 144, 166, 174-175
Capa-de-Junc o 102 final feliz 165. 173-174
Cario Collodi 172 fontes 144
Carneiro Fncantado , O l t 3 idealizaçã o d o s 162-165
Casa, simbolism o 251 ilustração 166-167
Casal, construçã o da identidad e 145-146 impact o na infância 28
Casal, diferenças culturais 145-146 magia 265-266
mitos 166, 175-176
Di a n a Lic h te n st ei n C o r s o e Mári o
Co r s o

m o d e r n o s 243-244, 247
mu danç a d e públic o 2
5 novo s meio s 169
orige m 25. 27. 165. 168-171, 175-176
realidad e no Zl. t2
restos históricos 175-17 6
s e g u n d o Brun o Bettelheim 165. P . 3 - P i .
P8-P
simboli/.ação 163-165. P I
transformaçõe s históricas 168
us o pela criança 28-29
valor do s 162-182
Conto s folclóricos,
eficácia P7
orige m P5-P6
Conto s maravilhoso s 2-4.3
Conto s narrado s em família 289-301
Control e esfincteriano 99
Corp o infantil
perd a d o 251
Corp o matern o
fantasias co m 58, 114
reincorporaç ã o 210
simbolism o 44. 210
COITO , O 148
Cresciment o 120, 126. 133. 224
dificuldades 229-233. 2-4~
jornad a d e 250-251
resistência ao 229-230
Criança
gosto s culturais 169- P 0
mimad a 1.33. 1.38-139
Crono s 121. 123. Ii2
Cuidado s materno s 2.34
higien e 206
na vida amoros a 102
Culto ao s morto s 112. 116
Cultura de massa s e histórias inlantis 168-169
Cupid o 1 43-1 (4. I t 9
Cupid o e Psiqu e 14.3-144
Curiosidad e .301
feminina 154-15"7
sexual 155-156
sexual infantil 54-60

d"Aulnoy. Madam e 142


Dahl, Roald 48
Dam a D u e n d e 5 5
Decodificaçào oral d o m u n d o 57
Defenestraçã o 68. 7 3
Defesa contr a incorporaçã o 58
Defloração 88. 1.32. 139. 156
simbolism o 136
Depressã o 265
D es a m p ar o 248
Descobert a da sexualidad e pela criança 53-61
Desejo 69. 87, 264
da grávida 65
de mort e do s
filhos 49 do s pais
122, 2\~, 231
incestuos o 95-105
masculin o 1 1.3-1 l-i
oral na gravidez 66-6""
patern o 54-60. 8 1 . 95, 9~-98. 10.3-104
proibid o 83
recusa do 2.31
sexual 156
sexua l infantil
221 sexual
proibid o 96
sexual, g ên e s e
100
Desencontr o màe-filho 120
Deserto , simbolism o 65
Desidealizaçã o
da parentalidad e 28-1-285
do s pais 2-46-24", 259. 286
D es m a m e 4.3-46. 58. 119-120
Desobediênc i a feminina 156
Despotism o infantil 138-1.39. 2.38-239
Desvalorizaçã o social d o s pais 162
Desventura s em série 1"2
Devanei o 260. 282
diurno s 2.36
Devorado , fantasia de ser "5
Diabo 15.3
Diferença sexual 69. 114
simbolism o 1.32. I t 6
Diferenças entr e geraçõe s 2.38
Dificuldades
materna s na separaçã o do filho 65-~3
na c o n c e p ç ã o 1-48-149
Disney, Estúdios " 8 . 86, 1.36. 1-4(3, 162. P 3 . 18^.
190.
' 2 16
Disney, Walt 34, 1()7, 110
Dívida para co m os pais 148
Divisão psíquica 173
Don s femininos 7 i
Dons , de pais par a filhos 124
Doré , Gustavo 166
Dot e 141, 145, 154, 157

31
9
Fada s n o D i v a — P s i c a n á l i s e n a s H is tó ri a s Infanti s

Dr. Jekill anel Mr. Hyd e 173 n o bri n q ue d o 236-237


D u en d e Amarelo . O 133 realidad e 265-266, 304-305
D u m b o 3-t-+0 sobr e a do ç ã o 3 3
Fantasiar 260
Fantástica Fábrica de Chocolate . A 48
Feiúra "9, 91 , 130-139. 136
Educaçã o tias erianças 220 "Felizes para sem pre " 158
Educaçã o do s filhos, dificuldades na 138- Fetichismo 113-114. 116
139 Fezes, simbolism o 99
Educaçã o religiosa 295 Ficção
Egocentrism o 193-19 + c o n s u m o na infância 303-30 +
infantil 203-20 i F.nde. para crianças, origem ^2
Michael 2.r Filha de nossa senhora . A 22\-222
Fnures e St, (>0 Filha, nasciment o "0
Enve nena m ent o , fantasias 83 Filho
Fra do gelo . A 225 adult o 125
Frotizaçào do s cuidado s materno s 13 + amaldiçoa d o l 4" -l + 8
Fscolarizacao precoc e 211 . 250-25 " co m o c o m p l e m e n t o mater n o 3
Fscolhas amorosa s 1 t5-l (0 5 com o extensã o narcísica
Fsop o 22 i 138-139 fantasiado na gravidez
Espaç o de ilusão 299 34
Fspelh o mágico , simbolism o " 9 . 26-1 idealização 1-4"-1 49
Fspinheiro . simbolism o 8 idealizad o " 9 . 232-233
" Fstádio do espelh o 20 + imperfeito l 4 " - l i 8 . 150
Estrutura do s conto s d e fada preferido 1 1 1
2 " Fxcitacáo sexual infantil 5-4 preterid o l t "
Exílio, simbolism o 90 pródigo , parábol a do 1-t-
Fxpulsa o de casa. fantasia 3~'-39 Flautista de f lamelin . O 49
Flores, simbolism o 135-
13" Floresta, simbolism o 4-
4
Fábula, aspecto s da 21 i Fobia 58. 205-206
Fada da Represa do Moinho. A "0-~l Fome 41-50
Fada 233-23+. fracasso do 34
definição 91 Fruto proibid o 155
madrinh a 1 1 1 Funçã o matern a 206. 231-232, 234-235, 2 48, 300,
Fadas. As (cont o de Ferrault) 48 Funçã o patern a 36. 58. 119-12", 205. 220. 239-
Fálico 09 240,
Falo 69 2+6-248. 250. 299-300
matern o 1 l i corage m 250
Família 89-90 sabedori a 2-t8-249
conte mp orân e a 28-4 Furto sintomátic o 122
Fantasias 236-23". 252. 260. 304-305
d e d es p e da ca m e nt o s 15"-158
d e e n v e n e n a m e nt o 8 3
d e expulsã o d e casa 3 7 -3 9 Cata Branca. A 135
de incorporaçã o 56, 120. G ê ne s e d a se d uç ã o feminina 9 6
210 d e s e d uç ã o po r u m Gestação , simbolism o 22f>-22í
adult o 5 5 de ser de v or a d o Gigante s 117, 122. 126
46, ^5 Golding . William 239
d e s p e d a ç a m e n t o 176 G o z o 123. 138-139
femininas 233 Gravide z
fantasia do filho perfeito 34
masculina , fantasia 47
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Co r s o

Grimm, irmão s 4 1 , 46, 55, 64, 65 , 70 . 78 . 84, 85 , 93 , d o objet o m at er n o perdid o 4 6


107, 109, 110, 131, 132, 148, 155, 158, 162- d o s pai s 203
163, Identidad e feminina 75 . 8 3
170, 221 construçã o da 252
Grimm, Ja c o h e Grimm , Wilhelm. Ver Irmão s Grim Identificação 126
m
ao s pais 122
Grup o fraterno 81-82
da filha co m a m ã e 81
Guerra na s estrelas 262. 264
da menin a co m a mã e 2.32
d o m e n i n o co m o pai
m 120-12" Ilusâ o da autono mi a
276
Harpa encantad a 123 Ilusõe s pedagógic a s 280
Harry Potte r 172. 183-185, 212. 253-268 Image m corpora l 157-158, 176
Heranç a construçã o da 157, l7(->. 204
apropriaçã o 121-127 Imaginaçã o infantil 236
inconscient e 121-122 Impact o d o s conto s de fadas na infância 28-29
patern a 121-127 Incest o 99
Hércules 261 proibiçã o 145
História da avó , A (conto ) 52. 55. 60 Inconscient e parenta l 121-122
História em q ua dr in h o s 167. 269-2-0 Incontinênc i a
orige m 269-270 oral 48
persona gen s infantis 270 urinaria 54
História maravilhos a de Peter Schlemihl. A 2+1 Incorp oraçã o
História se m fim, A 2.37 defesa da 58
Histórias infantis fantasia 80, 91 , 120, 12
a d e q u a ç ã o e i na de q u aç ã o 168-169 + Independência
alienaçã o 304-305 d o b e b ê 43-45
angustiante s 172-173 infantil 45
com plexid a d e 171-173 Infância
e cultura de massa s 168-169 amnési a 230, 251
e o romance moder no assunto s tabu s 208-
171 eficácia 174-HS , 304- 209 c o n s u m o d e
305 final feliz 173-174 ficção 303 despotis m o
funçã o 170 138-139
magia 265-266 exposiçã o â violência
n ov o s meio s 162-163. 167-169 276 exposiçã o a o sex o
orige m 1 7 1 - P 2 276 fim da 276
pe rs o na g e n s co mple xo s l-2-l" 7 + nasciment o da 189-190
pe rs o na g e n s fracassados 1"M pr ol o n ga m e nt o d a 35-40
ruins 305 rejeição na 33-40
violência 304-305 solidã o 271, 282-283
H o m e n s sensíveis 136-137 términ o 224
Homossexualida d e feminina 81 valor social 189-190
Hook , a volta d o Capitã o G a n c h o 239 Infertiliclade 147-149
Ingen uidad e adult a 59
Início da vida sexual da mulhe r 83
Início d o relacionament o sexual 88-90
Ideais romântico s 159 do casal 142-143
Idealizaçã o Inocênci a infantil 133
da família 189 Insatisfação matern a 65-67
da infância 188-189, 211 , 251 , 277-278 Insuficiência matern a 82-83
d o objet o a m a d o 133-134 Inteligência 248-249
Interdiçã o d o incest o 136
321
Fada s n o D i v a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infanti s

Internalizaçà o d o s pais da infância 112 Mãe


Inveja matern a 78-92, 84, 112-113 alimentador a 207-208
Irmão s Grimm . Ver Grimm , irmão s bo a 76, 78, 110, 112-113
fantasias d e a b a n d o n o 231-232
«P idealizada 231-232, 234
internalizada 192-193
Jakobs , J o se p h 102. 117-119, 170 internalizada 234
J o ã o e Maria 41-50, 164 má 79, 251-252
J o ã o e o Pé de Feijão 117-127. 154 nutridor a 119-120
Jo ã o . o Fiel 155 possessiva 64-66, 7 2 , 251-252
Joâo-se m- M ed o 55-56 primeira sedutor a 134
Jove m Escrava, A 76-78 simbiótica 65, 68. 70-71
Julga ment o moral, construçã o d o 214 suficientement e bo a 298-301
Jurupar i 154 suficientement e narrativa 298-301
Ju v en tu d e 130 Mafalda 185. 270, 277-281
Magia 247, 262-263
Mágico de Oz . O 184-185
Maldição 88
Man" Poppin s 235
La Fontain e 214
Masturbaçâ o feminina 54. 88
Lang, Andre w 135, 1.57. 143
Materialidade da s palavras 193-195, 209. 266
Lapso ~1
Maternidad e 220-221
Latência 59
c o m o valor 35
Legad o inconscient e 121-122
Maturaçã o sexual 97
Lembrança s da infância 112
Maturidad e 130
Lembrança s encobridor a s 112
Lembrança s infantis 275-276 desvalorizaçã o da 224, 229, 231
Mau cheiro , simbolism o 124
Leste do Sol, a Oest e da Lua, A 135, 141-150
Maurício de Souza 202
Linguagem infantil 191
Médico e o Monstro, O 173
Linguagem onírica 208-209
Med o P , 55-61, 205. 250
Literatura de auto-ajuda 303
Literatura infantil d e ser de v or a d o 4 6
conte mp orân e a 39 Megera Domada , A 132
Melancolia 265
origem 32
Menarca 88
Lobo 51-61
Menstruaçâ o 88. 92
Lobo, simbolismo 59
Mentiras, significado 221-222
Lobo Branco, O 135, 143. 148
Mickey Mous e 49
Lobo e os Sete Cabritinhos. O 46-47
Mídia, crítica 305
Lógica infantil 188, 190-191
Milne, Alan Alexande r 187-188
Loucura, representaçã o da 208-209
Mingau. O (cont o do s irmão s Grimm ) 48
Lucas, Georg e 262
Mitologia, u s o m o d e r n o d a 258
Lugar na família, conquist a do 38
Mitos e conto s de fadas 28, 166. 175
Moe, Jorgen , 311
12! Monstr o
devora do r 46
Maçã, simbolism o 83
simbolism o 148
Madam e D'Aulnoy 133
Monteiro Lobato 211, 266
Madrasta 64-65, 75 , 78, 79, 80, 82, 110, 111-113 Morte 265-266, 268
Madrinha 111-116
da infância 97
da mã e bo a 78

322
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co rs o e Mári o Co r s o

do pa i 90, 120-122, 124 Ouro , simbolism o 101, 123


simbólica do s pais 111-112 Ovos , simbolism o 123
simbolism o 44, 84-86, 97,
223
Mund o Mágico de Oz, O 243-
252
Mundo s mágico s 262-263

na m o d er ni d a d e 36
Narcicismo 138-139
Nariz de Prata 151-160
Nariz, simbolism o 221
Nasciment o
da filha 76
d e u m irmão , reaçã o a o 3 8
d o "eu" 204-206
simbolism o 177, 223-22a
Neurose , repetiçã o 216
Nobreza , simbolism o 96
Noiv o anima l 129-139, 141-150
nova s formas 35

IP
Objet o fóbico 57-60. 180, 205-
206
Objet o transicional 204-205. 282
Objeto s mágico s 112, 264
Ó d i o da filha pela m ã e 82-92
Ogro s 43, 117, 120, 123. 126
Olha r 8 0
d o pai 80, 95
m at er n o 241
Omissã o patern a n a e d uc aç ã o
16" On dina s 71
Onipotênci a infantil 208
O pr e ss ã o da mulhe r 133, 156
Oralidad e 43-50, 101, 207-208
fantasias 57, 193, 207-208
incontinênci a 48
na gravidez 66-67
vida amoros a 101-102
Orelhas , simbolism o 220
Orfan dad e
na literatura 251
sentiment o d e 172-173, 259
Orige m
da ficção par a crianças 32
da literatura infantil 32
d o s conto s d e fadas, 25, 2 7
62
amea çado r 120-121 fraco 36, 65-67. 80, 107. 112, 246-247
b o m 120 frente a o b e b ê
c o m o adversári o do filho 123 6 6 incestuos o 95-
d 105 ma u 261-262
a possessiv o 158
visão primitiva do 218-219
i Pais
n c o m o gigante s 122
f da primeira infância 111-112
â desidealizaçâ o d o s 259
n devora dor e s 43
c inibido s em educa r 164
i narradore s 2 9 7
a suficientement e narradore s 298-301
Pais e filhos, desenco ntr o 89
1 Pandor a 154. 159
2 Papel da escola conte mpo râne a 256-257
0 Paraíso 68
- oral 48
1 perd a 45
2 simbolism o 65
1 Paranói a 212
Parentalida d e
d conte mp orân e a 238-239
e desidealizaçâ o da 284-285
v Parto 210
fantasia de 58
o Pássaro do Bruxo, O 151-160
r Pássaros, simbolism o 115
a Passividade 92
d feminina 84-92
o infantil 276
reaçã o 207
r Paternida d e
construç ã o da 217, 219-220
1 dificuldades 219-220, 238-239, 247, 257-258, 284-
2 285,
0 fantasias sobr e 261-262
-
1
2 323
1

d
u
p
l
i
c
a
ç
ã

2
6
1
-
2
Fada s n o D i v a — P s i c a n á l i s e n a s H is tó ri a s I nf a n ti s

Patinh o Feio 31-40 m u d an ç a s corporai s 263


Pé, simbolism o 113-114 segredo s na 260-261
Peanut s P 4 , 185, 270- Purez a 113
27? Pedr o e o Lobo 81
Pele-de-Asn o 93, 113, 145. 155
Pele-cle-Porco KM
Pele s Quart o proibid o 155-15"
simbolism o 96-9~\ 148-149
Pêlo s pu bi a n o s 6 P 69, 9 " í&P8
simbolism o 69
Pensa me nt o infantil 188-189
Rapunze l 63, 86, 135
confusã o de registros 194
Rato. simbolism o 49
continente s e c on te ú d o s 210
Realidad e e fantasia, limites 236-238
materialidad e da s palavras 193-195
Realidad e no c o nt o de fadas 22. 42
morte 208
Reconciliaçã o
poesia 195
da filha co m a m ã e 112
vocabulári o pessoal 196
da filha co m o pai 97, 103
Pensament o mágic o P I , 193. 203-204. 209-
Reconheciment o d o s filhos pelo s pai s 125, 130
210. Pentameron e 64, K F
Recusa alimenta r 44, 48, 83 .
Pequen a Sereia. A Lt6
20 " Regressivo, co m p o rt a m en t o
P e q u e n o Polegar. O t3
229
Perda da inocência 53-61
Rei Arthur 261
Perda da virgindade, simbolism o 132
Rei Bico-de-Tordo, O 132-133
Perdido s no Kspaço 181
Rei Lear, O 103
Perrault, Charles 51 . 84. 89. 93 . K F . 108,
110. Réia 121. 123
162-163, P0 Reino do morto s 124
Person age n s Rejeição
com plexo s F2-F4 do filho 147-148
7
fracassados Pt -148m atern a 34, 14
reais 188 na infância 33-40
Peter Pan \-2, 183-185. 224. 22~-2-\2 patern a 147-148
Petrosinella 64 Relacionament o sexual , início 1 4 2 - P 3
Pigmaliâo 216 Religiosidade 262-263
Pimentel . Figueired o 139 Repetiçã o c o m o neuros e 216-217
Pinocchi o \~2, F ~ \ 183-185. 213-225, 230 Repulsa ao sex o 130-140
Pirata, simbolism o 239 Resistência d o b e b ê â indepen dênc i a 4 4
Polifemo 126 Ritos de passage m 88, 97, 176-178, 223
Poo h 18~-199 Rivalidade
Possessã o matern a 66 co m a mã e 78
Precocidad e infantil 2"P do filho co m o pai 239-240, 261-262
Preconceit o contra a mulhe r 76. 154-155 do m e n i n o c o m o pai 121
Present e c o m o prova d e a m o r 136 entr e a mã e e a filha 251-252
Primeira relaçã o sexual 132 entr e as mulhere s 273
Príncipe Qu erid o 137-139 entr e o filho e a m ã e 202-203
Proibição do incesto 145 fraterna 111
Projeção d o s sentimento s d o b e b ê 3 8 mãe-filha 77-92, 112-113
Prolon ga men t o da infância 35-40 sogra-nor a 144
Psicose infantil 44-50 Robinso n Cruso é 259
Psiqu e 143-144 Robinson s Suíços 164-182
P ub er d a d e 67, 259-262 Roca 71
fantasia na 260
D i a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mário Co r s o

Roca, simbolism o 88
Role-Playing G a m e s 262
Romance , características 218
"Romanc e Familiar d o Neurótico " 258
Ro mpi me nt o
da filha c o m o pai 132-133
do pai co m a filha 156-15"7
Rompiment o d o híme n 8 8
Roub o
doméstic o 122
simbolism o 120-122
Rowling, J o a n n e K. 253-25-4
RPG 268

Sabedoria 248-249, 25~-258. 285-286


Sair de casa 89-90, 131-133. 142-143, 1 -
i~-1
157, 173
Sangue, simbolism o 156
Sapatinh o de Vidro. O 108
Sapos, simbolism o 73 . 134
Schulz. Charles 2"'0-2"73
Schulz, Friedrich 65
Seduçã o 96
Segredos 260-261
familiares 301
Seis Criados, Os 132
Senhor da s Moscas, O 239
Senhor do s anéis , O 262
Sentiment o
d e inadeq uaçã o 3 8
"de infância" 165, 171. 189. 230
d e orfandad e 259
relativos a o nascimen t o d e u m irmã o
38
Separaçã o
da mã e 67-68
mãe- beb ê 46, 57-60. 65
Sereias 71 , 150
7 ano s 78, 91
Sexo
c o m o animalidad e 144-146
com o mistério 156, 210
nojo 133
repulsa infantil 133
sujeira 100-101
visto pela s criança s 133-134
Sexualidade infantil 53-61
Shakespeare , William 103, 132
Shepard , Ernest 187-188
Simbiose 44-50, 68
Soberb a feminina 132-133
Socialização infantil 256-257
Sogra 71 , 76, 85-86, 89, 101, 144-145
Sol, Lua e Tália 84-92
Solidão 69. 72
Solidão na infância 271-2~\3. 282-283
Sombra, simbolism o 241
Sonho s 209. 245
típicos 276
trabalh o onírico 296, 298
Sonh o d o Nené m Sábio 276
Son o 89
simbolism o 84-86
Spielberg 239
Stan Lee 263
152 Stevenson , R.L., 173
Stuart Little 49
Sucede r ao s pais 130
Sujeira, simbolism o 99. 100, 113

Tabart. Benjamin 11" , 119


Tabu da inocênci a infantil 133-134
Tarzan 259
Teletubbie s 29
Televisão 167
Terror n ot ur n o 209
Tesouro , simbolism o 99, 100, 120-123
Tirania infantil 238-2.39
Tolkien 262
To m e Jerry 49
Torre, simbolism o 65
Toxicomani a 48
Toy Story 199
Trabalhar, simbolism o 110
'franças, simbolism o 67-69
Transcende r ao s pais 122
Transformaçõe s d o s conto s de fada 36
Transgressã o 135, 152
Transmissã o inconscient e 295-298, 300
Traum a sexual 99-100
Travessia, simbolis m o 47
Três Desejos, Os 47-49
Três Folha s da Cobr a 158
Três Porquinhos , Os 56-60
Tristeza 265
Troll 142, 149

3
2
5
Fada s n o Di v a - P s i c a n á l i s e n a s Hi st ó ri a s Infa nti s

Turm a da Mônica 184, 201-212 Víncul o simbiótico 66


TV e histórias infantis 167 Violência 238
na s histórias infantis 304-305
Virgindade, perd a 136
\4rgindade . simbolism o 156
Ursa, A 93 , 101-102 Volta ao lar 125-126, 251
Ursinho Puff 187-199, rn
Urso, simbolism o 39
LISO do cont o de fadas 28-29
Utopia oral 48 W.I.T.C.H. 267
Watterson, William 13. 281
Wencly 22^
Winnie-the-Poo h 174, 183-185, 187-199
Vagina 210 Wvss. [ohan 164
Valor cia maternidade , origem 35
Valor social do estud o 21}
Velha 83
simbolism o ~T X-Man 263
Velho do Saco 152. 159
Vênus 143-1*4. M9
Vestais 113
Vestidos Yellovv kid 269
mágico s 9t-10 4
simbolism o 96-97
Villeneuve. Madam e de 134, 13 7
WS,
Vinculaçào pré-edipian a da menin a
82 Zeu s 121
Vínculo m à e- b e b ê 33-40. 43-50
separaçã o 57-60

326

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