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CURSO DE PSICANÁLISE - Apostila 22 PDF
CURSO DE PSICANÁLISE - Apostila 22 PDF
O presente volume pode ser utilizado de vários modos. De acordo com as espectativas do
leitor, podemos sugerir diferentes métodos de abordagem.
ALEATÓRIO: para quem. se interessa por literatura e que r saber mais
sobre seus contos ou histórias preferidos. Nesse caso. sugerimo s qu e vá direto aos capitulos
qu e lhe
chamare m a atenção , se m preâmbulos . O livro p o d e ser perfeitamente lido em
ordem aleatória, nu m percurs o costurad o pelas narrativas qu e marcaram a memória de
cada um Para tanto, cada capítulo tem a estrutura de um ensaio, prop õ e
interpretações sobre personage n s e tramas, assim c o m o lança mã o do s conceitos
psicanalíticos qu e alicerçam
tais hipóteses. Visando a permitir esse tipo de leitura, cada element o teórico tratado e esclarecido na ocasião
em que surge. Há algun s casos em qu e remetemo s o leitor, qu e esteja em busca de alguma dimensã o
qu e requeira esclarecimentos, para outr o capítulo, mas normalment e cada história ou grup o de conto s encontra
um tratamento complet o e fechad o em si.
SISTEMÁTICO: q u e m está interessad o em c o m p r e e n d e r a infância, trabalh a co m criança s
ou estud a psicanálise, psicologia , psiquiatria , peda go gi a ou disciplina s afins, atravé s da leitura
contínua , encontrará , na primeira part e d o livro, um a espéci e d e roteir o d o de se n v ol vi m e n t o infantil,
ilustrado através do s conto s d e fadas. Nã o é u m m a n u a l d e psicologi a d o d e s e n v o l v i m e n t o , ma
s busc a apresenta r o tracadi inicial d o cresciment o de um a crianç a até a adolescênci a e seu s
co nt ra te m p o s , já q u e as historias oferecera m excelente s oportunidad e s par a apresenta r e ilustrar algun s
conceitos . A segu nd a part e do livro, se lida de m o d o continuado . suger e u m a interpretaç ã o da infância
c o n t e m p o r â n e a , ou seja, o q u e é ser crianç a e viver em família hoje. PARA TODOS: p e n s a m o s
noss o interlocutor imaginário c o m o uma pesso a q u e p o d e ser leiga, mas qu e
por razõe s de trabalho , paternidade , ou po r ser um curios o sobr e a alma hum ana , que r sabe r
mais sobr e as histórias infantis d e o nt e m e hoje. Apena s u m d o s capítulo s será d e leitura mai s
árdu a para algué m sem conheciment o s prévio s em psicanálise, psicologia ou literatura: o capítul o
XII, o n d e fazemos a crítica de um livro fundamenta l sobr e o assunto . Ali estã o as justificativas
teóricas e metodológica s dest e trabalho , assim com o o diálog o c o m ess e livro clássic o q u e n o s
serviu d e m o d el o . D e q u a l q u e r maneira , m e s m o ness e capítulo, busc a mo s a clareza, assim c o m o
tentamo s realizar um deba t e sobr e a cultura infantil moderna , seu s novos meio s e temáticas.
Aliás, se algu m fio tece u nossa narrativa, foi o da busc a cia leveza. Mesm o tratand o de tema s árduo s e ne
m sempr e agradáveis , fizemos o possível par a entrega r ao leitor o fio de Ariadne, para q u e o Minotauro da
chatice nã o no s devore.. .
Sumário
PREFACIO
A CRIANÇA E SEUS
NARRADORES
15
Maria Rita Kehl
APRESENTAÇÃO
21
Capítulo XVIII
UMA ESCOLA MÁGICA
253
Harry Potter
Capítulo XIX
AS CRIANÇAS-ADULTO
269
Peanuts, Mafalda e Calvin
Anexo
GÊNESE E INTERPRETAÇÃO DE UM CONTO FAMILIAR
289
Vampi, o Vampiro Vegetariano (por Mário
Corso). Pais Suficientemente Narrativos
Conclusão
O VALOR DE UMA BOA HISTÓRIA
303
QUASE ÍNDICE
307
BIBLIOGRAFIA TEÓRICA
313
ÍNDICE
317
Prefácio
A CRIANÇA E SEUS NARRADORES
Maria Rita Keh l
16
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s
o
publicitárias. Nossa s criança s continua m interessada s
d e fadas . Co m isso , o s a u t o r e s c u m p r e m a
mai s i m p o r t a n t e da s cinc o condiçõe s
proposta s p o r Fernando Pessoa par a um crítico
literário: a simpatia.
experiênci a d e sentir-s e u m a "estranh a n o "a mort e imaginária da criança, pois esta sent e qu e
ni n ho " . Ouvir histórias é u m do s recurso s d e q u e só existe e nq u an t o sua palavra valer"7.
a s crianças dispõe m para desenha r o map a Talvez po r isso, o inesgotável potencial (re)criativo
imaginári o q u e indica seu lugar, na família e no abert o pelas narrativas infantis resida na sabedoria com
mundo. q u e apresenta m a função paterna , reduzid a ao
Histórias d e crianças q u e sae m o u sã o traço mínimo , indispensável, a partir do qual é a criança
expulsa s de suas casas, ou qu e perde m o rum o de quem tem qu e se encarrega r do resto do trabalho. O
volta depoi s de um passeio mais ousad o e se depara exempl o do Mágico de Oz é reto mad o co m muita
m co m perigos inimagináveis, funcionam com o sensibilidade pelo s autores , s e g u n d o os quai s a
antecipaçõe s qu e lhes permite m domina r o m e d o d o falta de magia do mago é o ponto mais mágico da
"mund o cruel" que , mais dia, me no s dia, terã o de história (o u do filme), poi s indica q u e o pai nã
enfrentar. Nestas incursõe s pel o m u n d o proibid o o é tã o p o d e r o s o quant o se esperava . Basta q u e
long e d a proteçã o familiar, o s melhore s conselho s seja "um h o m e m bom , mas u m ma u mágico " 8 ,
- com o os do Grilo Falante, da história de de m o d o a q u e a criança seja obrigada a re s ol v e
Pinóquio - existem para nã o ser obedecido s . De toda s r s o z i n h a o s p r o b l e m a s q u e a vid a lhe
estas, pens o qu e a soluçã o mais feliz e men o s moralista apresent a. Nesse sentido ta m b é m, as
é a de Peter P a n , meni n o qu e fugiu de casa i n ú m e r a s aventura s infantis q u e termina m c o m
exatament e par a perpetua r a utopi a d a um a volta para casa n ã o sã o tã o conservadora s c o m
infância , associada ã liberdade quas e sem limites qu e o p o d e m parecer. C o m o n a p e q u e n a novela d o
a fantasia permite. Com o observam os autores , em Bo m Leão, criada por Ernest He ming wa y ( q u e n ã o
Peter Pan, ao contrário da história de Pinóquio, o integra est e livro), aquel e qu e retorna à casa depoi s de
m u n d o da fantasia nã o é um desvio errado em relação uma longa aventura nunca será o m e s m o q u e um dia saiu
às norma s do m u n d o adulto: ele indica qu e a criança para con hece r o mundo . No entanto , a viagem de
precisa desejar crescer, para qu e isto aconteça. Por outr o iniciação necessária para
lado, a Terra do Nunca, ilha da utopia o n d e as q u e tod a a criança conquist e o m u n d o à su a
crianças nunc a crescem , nã o tem ne n h u m a maneira ne m sempr e leva para muit o long e de
semelhanç a co m o paraís o bíblico: o prazer d e casa. A análise d a sag a contemporâne a d e
habitá-la está ligado a o goz o d o perigo, d o med o e H ar r y P o tt e r revela , s e g u n d o o s autores , o
da aventura. Não interessa às crianças a fantasia de um pape l d a escola c o m o espaç o de transiçã o da
paraíso pacificado, sem conflitos. Elas desejam o infância para a adolescênci a - ou com o o luga r
medo , o praze r do mistério e do desafio, ao s o n d e é possíve l viver est e p e r í o d o q u a s e
quais responde m co m a máxima potênci a de suas impossível da vida, a chamad a pré-adolescência .
fantasias d e onipotência . No último capítul o de Fadas no Divã, o
De toda a gama de ameaça s e perigos qu e assolam e leitor será p re s en te a d o co m um a surpresa : um a
fascinam o m u n d o infantil, é important e destacar história qu e o pai-narrado r Mário Cors o criou
o desampar o das crianças diante da s fantasias inconscien• em parceri a co m sua s dua s filhas, hoje
tes do s pais, às quais estão particularmente adolescente s . C o m o toda s a s histórias d o gê n er o
exposta s pel o fato de serem, para elas, perigo s maravilhoso , esta t a m b é m conté m ele mento s
irrepresentáveis. Estes nã o se resume m às obscura s simbólico s q u e remonta m a questõe s sobr e a orige
fantasias incestuosas do s adultos ; engloba m també m m familiar da s menina s ( q u e nã o vo u antecipa r aqui
tod a um a gam a d e possibilidades de resposta à par a n ã o estragar o praze r do s leitores). Contar
pergunt a sobr e o sonh o parental: o qu e o Outr o história s n ã o é a p e n a s u m jeito d e da r
que r de mim? Pergunta cuja resposta é impossível de pr az e r à s crianças: é u m m o d o d e ampará-la s e m sua
ser atendida pela criança. Com o lembram Diana e Mário s angústias, ajudá-las a no mea r o q u e n ã o podi a
Corso, ao analisar a história de Pinóquio: a paternidad ser dito, amplia r o espaç o da fantasia e do pensamento
e é o sonh o de fazer de algué m a marionete de nosso : a ficção, escrev e C or s o , "acab a send o um a
s próprio s sonhos . E acrescenta m que , da posiçã o de saíd a p a r a q u e c er t a s verdade s s e imponham".
9
filhos, "somos o delicad o equilíbrio entre nã o encarna r
o qu e se esper a de nós, e (viver) levand o e m Contar histórias é ainda um a da s melhores maneiras
cont a ex at a m e nt e isso". Nesta balanç a precária, o de ocupa r o lugar geracional qu e cab e aos pais, junto a
adulto nã o p o d e vencer: sua vitória implicaria seu s filhos - lugar q u e os adultos hoje relutam em ocupar,
no afã de se conservar eternament e adolescentes .
Se cad a filho te m qu e reconta r a própria história à su a
18
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o Co r s o
Nessa s s o c i e d a d e s , q u e s o u b e r a m p r o t e g e r
a linguagem da degradação qu e as nossas lhe infligem,
o uso da palavra, mais do que um privilégio, é
um dever do chefe. O pode r outorgad o a ele
do uso narrativo da linguagem deve ser
interpretado com o um meio que o grup o tem de
manter a autoridade a salv o d a vi o l ê n c i a
c o e r c it i v a . (...) com o u m personagem de
Kafka, esse homem , prisioneiro de seus súditos,
continua, todos os dias, construindo seus belos
relatos de ilusão. E porque , apesar de tudo,
continua falando, todos os dias, ao amanhece r ou
ao entardecer , consegu e fazer co m qu e suas
histórias entrem na grande tradição e sejam lembradas
pelas gerações futuras. Até que , por fim, um dia,
as pessoas o abandonam : alguém, em outro local, nesse
momento , está falando em seu lugar. Seu
poder, então, acabou.1 0
C o m o o antig o chefe ranquele, os pais
narrativos servem-s e d e seu p o d e r d e dize r
coisas significativas a seu s filhos, dia a p ó s dia, até
percebe r q u e eles estã o d e ix an d o de lhe s da r
ouvidos . É hor a de deixá-los falar po r si
mes m os . O a m o r entr e ele s continu a - ma s seu
p od e r acabou .
Notas
1. Apud Robert Darnton, O Cirande Massacre de (kitos
(e Outros Fpisódios da História Cultural
Francesa). Rio de Janeiro : Graal, 1986.
Traduçã o de Sônia Coutinho.
2. Moder nos , e m b or a já tradicionai s para
nossa s crianças, porqu e são versões posteriores
ao século XVII.
3. Darnton. cit., p. 29.
4. Autor do consagrado A Psicanálise dos Contos
de
Fadas.
5. M. e D. Corso. p. 29
6. Apontamento de Fernando Pessoa utilizado
como nota preliminar publicada pela
primeira vez na edição da Obra Poética do autor
pela editora Aguilar, Rio de Janeiro . 1960. As
outra s qualidad e s do de ci fr ad o r d e
símbolo s seria m a i nt ui çã o , a
inteligência, a compreensã o e a graça.
7. p. 219 e 224.
8. p . 248 e 250.
9. p. 307.
10. Ricardo Piglia, O Laboratório do Esctitor: Sao
Paulo: Iluminuras . 1994, p. 90-91 . Traduçã o
de Josely Vianna Baptista.
19
Apresentação
tramas o motivo de sua p er enida d e e, co m bas e ness a questões sobre os sonhos e pesadelos dos
hipótese , discorreu sobr e um a série d e sere s h u m a n o s .
características d a infância. Inspirad o ness e trabalh o O ut r o fator t a m b é m estimulo u ess e estudo
d e Bettelheim, noss o estud o compartilh a d e seu . O território da análise da ficção dirigida à infância é
c a m p o d e interesse e de suas questões , ma s visa a lugar d e u m paradoxo : preocupamo-no s
seguir um pass o adiant e dess a pesquisa , ou seja, crescent e e obsessivament e co m a s crianças,
verificar se histórias infantis do sécul o XIX e XX sã o nunc a tant o inves• timent o foi feito em sere s tã o
usada s pela s crianças de forma similar. Além disso, nova s p e q u e n o s e dele s tanto se esperou . Além disso,
histórias r es p on d e m a nova s n e c e s s i d a d e s subjetivas , cad a vez mais se acredita nas influências precoce s d a
a s fantasia s t r a d u z e m a s novidade s existentes n a formaçã o n o destin o do s seres h u m a n o s . Por isso
vida d o s joven s h u m a n o s , ma s q u e modificações sã o m e s m o é intrigante q u e tenhamo s tão p o u c o
essas? es pa ç o para a crítica à ficção q u e lhes é
Na primeira parte do livro, enfocamo s conto s de oferecida . E m contrast e c o m o v ol u m e d e
fadas tradicionais tal c o m o fez Bettelheim. Dedicam o estudo s d ed ic a d o s â literatura, â mídia e às
s u m capítulo a o re-estud o d e seu livro, on d e apontamo s artes c o m o um t o d o , parec e qu e pouco s
a s interpretaçõe s interessantes q u e ele no s legou, profissiona i s e s t ã o em • p e n h a d o s e m decifrar o s
ma s també m as divergências, fazemo s críticas efeitos sobr e a s crianças d o lequ e cie cultura q u
particular• ment e a certas idealizações co m q u e o e hoje lhes é ofertado . Q u a n d o esse s estudo s sã
auto r cerco u o problema . o feitos, salvo raras exceções , tende m a ganha r
Tanto o m u n d o do s conto s de fadas, q ua n t visibilidade públic a a pe n a s as interpretaçõe s
o a oferta atual de ficção para crianças sã o universo s catastrofistas q u e surge m s o b forma d e alerta,
muit o extensos , e isso se reflete ao long o do denun • ciand o os nefastos efeitos q u e seria m
livro, o n d e també m contamo s e analisamo s muitas gerado s a partir de um a infância marcad a pelo
narrativas, o q u e basicament e s e constitu i n o s games e d e s e n h o s animad o s violentos.
re ch e i o d e n o s s o trabalho. Q u e m nã o está habituad o Mais d o q u e oferece r soluçõe s par a o s
a o tema p o d e julgar excessiv o o númer o d e enigma s q u e as trama s narrada s apresenta m , noss o
história s examinada s par a responde r questõe s objetivo foi incentivar ess e cami nh o e unir
ap ar e nt e m en t e tão simples, poré m nã o acreditamo s esforços co m aquele s críticos q u e já o estã o
possível u m est u d o dess e assunt o se m essas trilhando . Para isso, usa m o s a ferramenta da qua l
referências múltiplas. dispo mo s - a psicanálise -, ma s um a anális e
Certament e podería mo s ter mantid o u m purament e psicanalític a certament e é
de b at e basicament e teórico co m o leitor, ma s reducionista , t e nt ar e m o s s e m p r e q u e possíve l
o pta m o s po r u m ca minh o demonstrativo . Através abrir o leque . Seria um a deslealdad e tratar qualque r
d e um a ampl a gam a de exemplo s de histórias fantasia d e m o d o simplista , é n e ce ss ár i a u m a
infantis, tradicionais e m o d e r n a s , e da leitur a r e l a çã o d e respeit o co m o caráte r s u r p r e e ndent e d e
psicanalíti c a d o c o n t e ú d o inconscient e q u e elas cad a história, assi m c o m o u m a assu mid a hu mildad e
pode m evocar , p r e t e n d e m o s contribuir para d o q u a n t o su a riquez a tr a ns ce n d e noss a
elucidar as razõe s de sua atualidad e e consagração . c a p a c i d a d e d e anális e
E m termo s d e linguagem , e m p e n h a m o - no s e m Essas histórias sensibilizam q u e m as escuta
desdobr a r o s conceito s psicanalíticos d e forma qu e s e em diversos planos, e certament e nã o
torne m compreensívei s par a o s leitores nã o conseguiremo s dar conta de todos . Por exemplo , o
iniciado s ness a teoria , ma s q u a n t o a o n ú m e r conto João e Maria fa\a da escassez, de alimentos e da
o d e e x e m p l o s n ã o é possíve l economizar , faz expulsã o do lar po r essa c o n tin g ên ci a . A s criança s
part e d a naturez a d o objeto. d a Velha E ur o p a q u e o escutavam entendia m
Com o efeito secundári o d o present e estudo , b e m d o q u e s e tratava, pois a comid a faltava
a anális e d e história s a ca b a s e n d o u m a form a mesmo . Mas a empati a co m um a história se dá em
mai s agradável de entrosament o co m a teoria vários níveis e é provável que , junto co m o tema
psicanalítica, pois aqui s e pod e vê-la e m da fome real, també m fossem tocada s po r outras
funcionamento . Evidente• mente , person agen s d e questões , para as quais toda s as crianças sã o sensíveis,
conto s n ã o sã o pacientes , e n e n h u m dele s receb e co m o a separaçã o da mã e nutridora e o m e d o
algu m tip o d e diagnóstico . Trata- s e a p e n a s d e de ser a b a n d o n a d o pelo s pais. J á um a criança
história s q u e n o s p e r m i t e m a b o r d a r moderna , d e um a família abastada, quiçá n e m saiba
o q u e poss a ser a falta de alimentos , nã o obstant e se
fascina co m a
D i a n a Li c h t e n s t e t n Co r s o e M a n o C o r s o
"...as fábulas são verdadeiras. São, tomadas em conjunto, em sua sempre repetida e variada casuística de
vivências humanas, uma explicação geral da vida, nascida em tempos remotos e alimentada pela lenta ruminação
das consciências camponesas até nossos dias; são o catálogo do destino que pode caber a um homem e a uma
mulher, sobretudo pela parte da vida que justamente é o perfazer de um destino: a juventude, do nascimento que
tantas vezes carrega consigo um auspício ou uma condenação, ao afastamento de casa, às provas para tornar-se
adulto e depois maduro, para confirmar-se como ser humano."
Ítalo Calvino1
servia m a uma parcel a restrita de pessoas ; ele s
nascera m par a
26
D i a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o C o r s o
Sobre as fontes
rocuraremo s agrupa r as histórias pela fantasia
principal qu e ela geralment e evoca. É
claro qu e é uma reduçã o difícil, porqu e a
mesm a
históri a poder á se r retomad a em
o u t r o m o m e n t o , inserid a e m outr a reflexão . A
idéi a d e trabalhar u m cont o até esgota r quas e
todo s o s seu s el e m en t o s é tentadora , foi o
corajos o c a m i n h o de Bettelheim, ma s é perigoso .
Ningué m dá conta de tudo , um cont o inclui muito
material não-interpretável pela psicanálise: formas
arcaicas de narração, cacos de antigos mitos , q u e j á n ã
o n o s di z e m mai s resp eito , resto s histórico s d e
experiên cia s d e d e t e r m i n a d o s p o v o s ,
falar qu e cairíamos e m outr o problema , s e fôssemos
considera r um a história e n qu a nt o u m todo , teríamos
de eleger um a versão, ma s qua l seria a melho r fonte?
Na pesquis a so b r e a variedad e de história s e
versões , nossa s fontes serã o toda s a s d e q u e puder mo s
dispor, privilegiand o a variedad e se m hierarquiza r o
q u e seria um a narrativa autêntica , original d e deter•
minad o conto . Por isso, e m torn o d e cad a eix o temático
escolhido , organizamo s várias histórias, cujos detalhe s a s
diferenciam , ma s p a r e c e m convergi r par a u m centro comum .
Compartilhamos , relativo ao s conto s d e fadas, a idéia do
antropól og o Claud e Lévi-Strauss referente ao s mitos.
S eg u n d o ele , fazem part e d o mit o toda s a s sua s versõe s e
n ã o haveria um a versã o original a ser privilegiada6.
Embor a deva mo s reconhece r q u e o cont o maravilhos o sofre
transformaçõe s históricas, inclusive algun s conto s passara m
po r modificaçõe s d e tal mont a q u e resta pergu ntar mo s s e
dize m o m e s m o q u e diziam antes , p o d e m o s su p o r q u e ,
s e ele s s ob re vi v e m , é p o r q u e no s toca m d e
d e t e r m i n a d a form a e q u e p r o v a v e l m e n t e alg o foi
p r e s e r v a d o d e se u arranjo inicial. Caso contrário, teriam
perdid o a força, o encant o e cairiam no esqu eci ment o .
É c la r o q u e o s c o n t o s d e fada s d e v e m
su a sobrevivênci a a um a série de folcloristas, que , de um
a forma mais apaixonad a d o q u e científica, no s legaram
sua s versões . C o m o essas compilações , agor a clássicas,
constituíram o degra u q u e possibilitou a chegad a até
nó s dessa s trama s tã o antigas, eles angariara m o s mé • ritos
q u e justificam q u e o s privilegiemo s diant e d e
infinitas formas de vulgarizaçã o e difusão.
Nossa escolha, e n qu a nt o estrutura do livro, é pela
análise da eficácia das fantasias q u e os conto s possa m
mobilizar no s ouvinte s atuais. Sempr e é b o m lembrar
q u e está n o interior d e cad a u m a tecla mágica,
pois ne m todo s sã o tocado s pelo s mesmo s contos , n e m
d a mesm a forma. Afinal, conto s qu e nunc a foram
esque • cidos e provocara m horro r e fascínio em un s
passa m despercebido s para outros. Na seleçã o de quais
conto s escolher, privilegiamos entã o as histórias qu e sã o ainda
lembrada s e que , po r isso, segue m causand o efeitos ao long
o do s séculos em seu s leitores e ouvintes.
Notas
1. CALVINO, ítalo . Fábulas Italianas. São
Paulo : Companhia das Letras, 1992. p.15.
2. Essa proliferação de categorias nã o pára
de nos surpreender. A título de exemplo ,
podemo s citar um a séri e televisiv a d e
sucess o recente : o s Teletubbies,
provavelmente o primeiro programa no qual se
trata de captar a lógica dos bebê s para cativá- los.
A reação de seu público extremamente precoce
parece confirmar o acerto da proposta.
3. A transformação dos contos de fadas em relatos
bem co mp ortado s e meno s grotesco s nã o
é absolu • tamente fruto de arroubo s
pedagógicos recentes. Por exemplo, já no
início do século XIX, ao longo das sucessivas
edições da compilação dos irmãos Grimm .
é possíve l a c o m p a n h a r o progressiv o
abrandament o das tramas e das personagens,
com o a transformação da mãe má em
madrasta. "Em seu idealismo romântico, os
Grimm literalmente nã o toleravam que uma
presença materna fosse equívoca ou perigosa, e
preferiram bani-la completamente. Para eles, a
mãe má precisava desaparecer para que o idea l
so br e vi ve s s e e permitiss e q u e a Mãe
florescesse com o símbolo do eterno feminino, a
terra natal, e a família em si co m o o
mais elevad o desiderato social." In WARNER.
Marina. Da Fera à Loira: sobre Contos de Fadas
e Seus Narradores. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999, p.244.
4. PROPP, Vladimir. Morfologia do Conto, Lisboa: Vega
Editora, 2003-
5. O exempl o mais clássico desse tipo de pesquisa
é o conhecid o As- Raízes Históricas do
Conto Maravi• lhoso, de Vladimir Propp. Para dar
um exemplo mais recente, em 1994, foi
publicado o livro de Marina Warner, Da
Fera à Loira: Sobre Contos de Fadas e Seus
Narradores, qu e realiza uma viagem
pel o c o n t e x t o históric o da s narrativa s
tradicionai s , e n f o c a n d o p r i n c i p a l m e n t e a
i mp o rtâ n ci a da s mulheres.
6. LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia
Estrutural. Rio de Janeiro: Temp o Brasileiro,
1985. p.250.
7. Um do s mais famosos casos clínicos
relatados por Sigmund Freud, popularment e
conhecid o com o O Homem dos Lobos, tem
boa parte de seu conteúd o
Fada s n o D i v ã — Ps ic a n áli s e n a s His t óri a s Infa nti s
O Patinho Feio
as crianças
. Era comu m históri a d o Patinh o Fei o é
intes tinham a m p l a m e n t e conhecida . Mas n ã o i m p e d e
)ara adultos, qu e a recon - temo s - em grande s
nheceram a pincelada s - tant o para alicerçar a análise
:as, obtend o q u e faremos q u an t o para
terários lhes retomar a história original, pois ela é muit o
ra, c o n v é m difundida com passagen s cortada s ou simplificadas.
tão bem a o N o com eç o havia u m ov o diferente n o ninh o
íenas, datam d e uma pata, ele era maio r e de ch o c o mais
itura infantil d e m o r a d o que os outros . Por fim, de u orige m a
versão mais e um a avezinh a graúda, desengonçad a e acinzentada , em
Cachinhos por nada parecida com seu s gracioso s irmãos . Seu
volta de as pe c t o distint o é determinante para ser discriminad o
•sa versão, a po r todos , inclusive pela mãe . Após s e enche r do s maus-
5 assum e trato s dispensa do s por ela, irmão s e vizinhos, el e voo
a os propiciam u para long e dess e galinheiro infernal.
uenos sejam No lago o n d e foi parar, relacionou-s e co m
da tradição, doi s jovens gansos , apesa r da frase inicial dess a
ntou o cont o amizade :
:iedade q u e "você é tã o feio, que vamo s c o m a sua
io à constru- cara". Mas durou p o u c o ess e laço, poi s seu s
do em conta amigo s foram aba • tidos num a caçada . Escondid o entr
e o s juncos , salvou- s e d e um a carnificina q u e liquido u
co m tud o q u e voa• va. Paradoxalmente , el e se
d e de um caçado r qu e o desentranho u do gel o e
o levou para sua casa. Lá, devid o a
tanto sofrimento qu e teve na vida, interpretou com
choup o agressões as brincadeiras do s filhos de seu
an a salvador. Numa tentativa d e escapa r deles,
d e provoco u uma revoada desastrosa, derrama nd
um a o a manteiga, o leite e a farinha da
velha , casa. Q u a n d o a mulhe r d o caçado r gritou,
qu e po r caus a d a confusão, ele fugiu mais uma vez,
o resignado a sobreviver sozinh o no lago até a
acolhe primavera. Essa estação troux e de volta os
u cisnes, as bela s aves q u e ele admirara e vira partir
pensa no outono . F.ntão, ao curvar a cabeça de
nd o m e d o de que eles t a m b é m o maltratassem ,
tratar- ele se viu no espelh o das águas, descobrind o
se de qu e havia transformado- se no mais bel o dos
um a cisnes.
pata
poedei Pouca s histórias infantis foram capaze s
ra . Lá de um a e m p a t i a t ã o fo rt e e d u r a d o u r a
se co m o p ú b l i c o , certament e devid o a o
sentia mérit o d e traduzir muit o b e m a angústia da
hostili criança pe q ue n a . O calvário do cisnezinho , q u e
zado foi cair no ni n h o errado , é igual ao de todo s
pelo s nós . Na verdade , a trama sintetiza dua s
outro s fantasias assusta• doras : um a do s pais, o
animai m e d o de ter o filho trocad o po r outr o -
s da hoje, po r um equívoc o na maternidade ,
casa e outrora po r alguma artimanha d e algué m o u d o
foi destino; e outr a do s filhos, a de
ficand descobrirem-s e adotivos. Na primeira, o
o co m filho está no ninh o errado ; na segunda ,
sauda ele ve m d o ov o errado . Ambas ,
de da entretanto , evoca m um a certa verdade :
água , s o m o s t o d o s adotivos , o laç o biológic o nã
até o no s oferece a s garantias necessárias par a sentir-
qu e s e a m a d o . Me s m o q u e sejamo s nascido
decidi s d a mesm a mã e q u e no s ama me ntar á e
u educará , aind a resta um vag o e
voltar desagradáve l sentime n t o de ser o ov o
a o errad o n o ninh o errado .
lago. Entre o feto q u e se avolum a na barriga
T e o b e b ê q u e sai e é ap re s en ta d o ao s
ud o pais n ã o há um a iden• tificação direta.
corre u Acreditamo s q u e o b e b ê e a mã e se
be m reconh ece m , a música d e fund o dess e
at é a encontr o amo • ros o é o batiment o cardíac o
chega m at er n o q u e comparti • lhara m tod a a
da d gestação , assim c o m o há o reconhe •
o ciment o da s voze s mais constantes , q u e
invern penetra m n a cavidad e líquida d o n e n ê . Porém ,
o , isso n ã o terá sentid o s e n ã o for reapresentad o
quand ao b e b ê .
o Ele reconh ece r á a voz da m ã e do
ficou lad o de fora c o m o s e n d o a q u e l e m e s m o
congel s o m a b a f a d o q u e s e imiscuía na s água s
ad o e uterina s q u e o banha va m , d es d e q u e ela
desma reintroduz a ess a vo z n a vida dele . A
iou . mãe
Teria
morrid
o , nã o 3
fosse a 3
b on d a
Fada s n o D i v ã - P s i c a n á li s e n a s His t ór i a s Infa n ti s
pr ee n ch e r o
34
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o
35
Fadas n o Div ã — Ps ic a n áli s e n a s Hi st ór i a s Infanti s
36
Di a n a Li c ht e ns te i n C o r s o e Mári o C o r s o
razão : provavelmen t e a mora l contid a é mai s uma
desculpa , o q u e transmitimo s a o conta r u m a
maltratado, p o r q u e n ã o s e adapt a à co m p a n hi a
d o s outros animais doméstico s - un s tipo s b e m
desagradá • veis - e senti a s a u d a d e s d e n a d a r
na la g o a . A s dificuldades externa s auxiliam na s
decisõe s d e q u a n d o partir, mas o q u e realment e o mov e
é o fato de n ã o se sentir be m recebid o e m
deter minad o lugar.
Cachinhos Dourados:
uma casa que não acolhe
a versão mais popular, Cachinhos
Dourados fala de um a menin a qu e foi
passea r num a parte da floresta q u e ainda
n ã o conhecia . Lá e n c o n t r o u um a casa ,
provisoriamente
abandonada pelo s seu s donos : três ursos qu e
haviam saído para dar um a volta en q ua n t o seu mingau
esfriava nas tigelas. Esses ursos ás vezes sã o
representado s po r uma família - co m o na versã o mais
popula r hoje -; po r outras, são apena s o urso grande , o
médi o e o p e q u e n o . A trama é breve , conté m quas
e n e n h u m a ação ,
enfoca a pe n a s a estad a da m enin a na casa. Cachinho s
tenta saciar sua fome na s tigelas: o minga u da
grand e está muito quente , o da médi a muit o frio
e o da p e • quena, na medida . Por isso, ela c o m
e o aliment o do urso p e q u e n o . Cansada , busco u u
m lugar par a senta r e experimento u as três
cadeiras : a grand e era muit o dura, a média muit
o mol e e a p e q u e n a lhe parece u ótima, mas
ela era muit o gr a n d e par a o assent o e acabou
q ue br a nd o - o . Por último, foi tenta r dormi r um pouc o
na s cama s e a experiênci a se repetiu . Apó s
achar a cama do papa i urs o muit o dura , a da
m a m ã e muito mole e a do filhote ótima, p eg o u no
sono . Nã o durou muito se u descanso , acordo u
apavorada , rodea • d a d e ursos e m t or n o d a
cama . Nã o tev e dúvidas , pulou pela janela e
fugiu. Fim.
Cachinho s Dourado s está long e d e ser u m
b e b ê feinho, já é um a linda menin a crescida, ma s
n e m po r isso conquisto u um lugar. A preservaçã o dess a
história na vida da s crianças c o nt e m p or ân e a s já
garant e um a questã o im po rtante . Certa me nt e n ã o
seria po r se u conte úd o moral , poi s n ã o c o n t é
m n e n h u m a lição, apena s deix a u m v a g o avis o
d e q u e n ã o c o n v é m invadir propriedad e alheia, ne
m usar objetos se m auto • rização d e seu s d o no s . E m
geral, s u p o m o s q u e tod a a história possu i algu m
tip o d e moral , lição o u b o m exemplo , e isso
seria o motiv o de introduzi-la na vida d e uma criança.
Esta é um a prov a d e q u e n ã o é b e m essa a
história é alg o q u e n o s escapa , q u e o b e d e c e a deter •
minaçõe s inconscientes .
A história de Cachinh o s Dourado s n ã o é
um a lição d e bondade , d e bravura, d a
persistência neces • sária até encontra r u m lugar,
d o fato d e q u e t o d o o sofrimento u m dia terá
um a c o m p en s aç ã o . Q u a n d o o heró i nã o mostra algu
m tip o d e mérito, teríamo s aind a o fund o moral
q u e justificaria um a narrativa, c o m o alertar sobr
e os perigo s da curiosidad e (Barba Azul) o u d a
desobediênci a (Chape uzin h o Vermelho). Esse cont
o n ã o oferec e n e n h u m a m e ns a g e m positiva, seria
simplória a leitura de q u e a menin a é punid
a pela curiosidade , p a g a n d o u m preç o pela
transgressã o d e invadir um a casa q u e nã o é sua,
e que , co m ela, as crianças apren deria m a nã o
ser xeretas. Cachinho s é ap e n a s um a menininh a
cansad a e co m fome, depoi s de um a excursã o
na floresta. Afinal, se fosse o cas o d e culpa r
alguém , po r q u e n ã o re p re en d e r a casa do s urso s
po r n ã o ser mais acolhedora ?
Ela chega sozinha, vinda nã o se sab e de
onde , tenta de todas as formas encontrar no
ambiente algum tipo de aconcheg o e se desentend e co
m os objetos do • mésticos. Duros demais, muito
grandes, excessivamente moles, menore s do qu e
deveriam ou frágeis. São camas, cadeiras, pratos e
alimentos qu e se mostram inadequados, demonstrand o
sim qu e a menina nã o serve para se utilizar deles. Por
último, exausta depoi s de tantas aventuras, ela
adormec e na cama do beb ê urso, mas somente até o
retorno de seu verdadeiro dono .
T a m b é m c o n v é m nota r q u e t o d o s o s
aconte • cimentos dessa história ocorrem dentro da
casa. Aqui a floresta é com o uma boca de cena, por ond e
desaparecem e aparece m os personagens , o foco
está lá dentro. Se tivéssemos qu e resumir a
trama, diríamos: a casa nã o serve para a menina
e a menina nã o serve para a casa, enquant o a
floresta ainda nã o se constitui nu m lugar.
Boa part e da s histórias tradicionais infantis ocorr e
na floresta ou inclui a tarefa de atravessá-la. É o e s pa ç o
po r o n d e passa a missã o de sair par a o m u n d
o par a prova r algu m valor, c o m o ser capa z d e
sobrevive r ao s seu s perigos , trazer u m objeto o u
tesouro , tarefas mais usuai s do s herói s do s conto s
de fadas. Seja c o m o for, o q u e interessa é q u e
se repet e a situaçã o em q u e o p er s on a g e m pass
a p o r algu m tip o d e expulsão , fuga ou partid a
do lar, a partir da qua l e m p r e e n d e r á a
verdadeir a aventura , q u e s e desenrol a d o lad o d e
fora d e casa, n a floresta o u atravé s dela .
Viver junt o da família, na mesm a casa,
equival e a ficar à merc ê de seu s julgamento s
e desígnios . É precis o partir par a o m u n d o par a
revelar e descobri r o
37
Fadas n o D i v ã - Ps ic a n áli s e n a s História s Infanti s
feitio,
passagem. Mas quem ainda não nasceu constata que o Cachinhos também é a criança que cresceu um pouco,
mundo se virava bem sem sua presença. As respostas dos agora tem condições de olhar de fora e ver o
pais, revelando que o filho já morava em seus bebê que já não é mais.
corações ou em sua imaginação, tranqüilizam a criança, Muitas crianças têm cachinhos na primeira versão
assegurando-lhe que ela foi precedida por um desejo, o dos seus cabelos, os quais geralmente não sobrevivem
que já é um consolo. ao primeiro corte. Os cachinhos são o cabelo do bebê
Se tiver sido desejada, a criança de alguma forma que cresceu. Às penugens do recém-nascido,
existia antes de nascer. "Mas por que meus pais sorriam muitas vezes, se sucede uma cabeleira vasta e
tanto naquelas fotos da viagem, ou da boda ondulada, com cachinhos, que as mães têm pena de
ou da festa, se EU não estava lá?" Acompanha essa, a cortar, tanto em meninos quanto em meninas.
fatídica questão: "e se eu não tivesse nascido?" E terrível Possivelmente, o adjetivo dourados diga respeito ao
cons• tatar que não faríamos falta, pois não valor em ouro que esses cachos têm para as mães,
saberiam de nós. Portanto, se perguntar pelo lugar na ou ainda ao fato de a primeira cabeleira do ser humano
família, pelo desejo que justificou um nascimento é ser mais clara, alourada, que a permanente.
pura filosofia, e é dela que se incumbe Para muitas crianças, o primeiro corte de cabelo
Cachinhos. Um lugar na casa, um lugar ao sol, se o é marcante: depois nunca mais serão louras
temos, existimos. nem cacheadas, esse é um tempo que acaba
Nesse caso, os ursos funcionam como uma metáfora ali. Depois disso, há um mundo que espera, mas até
da família humana. Os animais muitas vezes representam lá, embora a casa esteja ficando um pouco
os humanos, mas os ursos são um caso particular em incômoda, o tora de casa ainda não tem
que esse comportamento é muitas vezes retomado. O registro. Nesse momento, sair correndo de casa
urso é um animal que vivia próximo do homem, facil• sem ir a lugar algum faz sentido, porque não
mente encontravel nos lugares onde os contos nasceram. há exatamente um lugar tora da família. Embora
Além disso, o urso é onívoro como o homem, pode ser a primeira infância traga consigo elementos de
feroz, mas nem sempre, é um animal de belo socialização, o mundo referencial dos pequenos
porte, pode andar em duas patas e usar as mãos, não transcende o universo familiar. Cachinhos lembra
parecendo-se conosco. Mas é o fato principalmente de aos pequenos e ás suas famílias que ainda não é hora
hibernar com suas crias que faz com que pareça ter um de sair, mas nem tudo são rosas na toca dos ursos. Por
lar para sua família, como os humanos. baixo das cabeleiras douradas e cacheadas, há
Os ursos, ao contrário da maioria dos uma revolução que se gesta.
animais, teriam suas casas, tornando-se portadores do
tema do dentro e fora do lar, do aconchego da casa da
família nuclear versus a floresta inóspita e perigosa do Leitores versu s ouvintes
mundo externo. Os animais sempre estiveram
nos contos folclóricos, mas, desde que o homem ssas histórias raramente são lidas
começou a sair do campo e vir para a cidade, eles pelas próprias crianças. Quando já
passaram a repre• sentar também a idealização da estiverem no ponto de lerem sozinhas,
natureza, um lugar onde a harmonia ainda existiria. buscarão tramas
Cachinhos Dourados diferencia-se do conto mais complicadas, que propiciem devaneios
de fadas tradicional por não ter um desfecho bem sobre a coragem e o amor. É enquanto ouvinte que seu
marca• do. Quando é descoberta, a menina foge bem jovem público se situa. Mas não há o que temer,
espavorida para a floresta, deixando aos ursos a tarefa afinal elas falam de um mundo de bichinhos, se a mãe
de recons• truir seus objetos, o equilíbrio doméstico e ou a professora contarem essas histórias tristes, a criança
arrumar a bagunça que deixou. não se sentirá obrigada a uma identificação consciente.
Na família urso, Cachinhos enfrenta impasses que Hoje tem-se optado por livros dirigidos às crianças
são os de qualquer criança quando aquilo que deveria pequenas em que se narram conflitos cotidianos, nos
ser tão adequado a ela deixa de ser seu número. quais elas próprias são protagonistas,
Já não encontra seu lugar nem junto ao pai, cujo amor explicitando emoçõe s ou p r o p o n d o soluçõe s
é duro, alto e quente demais; nem junto à e negociaçõe s possíveis. O franco otimismo desse
mãe, cuja presença esfriou qual a sopa e cujo abraço é tipo de narrativa9 ameniza o peso das escolhas
demasiado mole, às vezes sufocante; muito menos lhe temáticas, afinal, sempre apresentam uma solução ou
serve ser o bebê, cujo lugar agora parece frágil
consolo.
e pequeno .
Já os contos maravilhosos não precisam ser
tão delicados, podem tratar os assuntos com mais
crueza,
39
Fada s n o Div ã — P s i c a n á l i s e n a s Hi st ó ri a s Infanti s
consi •
derada a mais antiga disponível: um cont o
escocês,
graças ao distanciament o qu e a fantasia
oportuniza , talvez de v a m a isso su a long evida de .
O fato de o personage m ser u m pato, permit e qu e
ac o m p an h e m o s sua infância miserável; já qu e é um
elefante, nã o importa se o m u n d o o ridiculariza, e ele
necessita se fazer valer longe da mãe; e, quant o à
história da menina , c o m o a casa é de ursos, n ã o
parec e tã o preocupa nt e q u e seja tão po u c o
acolhedora , q ua n t o seria se a hostilidade proviesse
de uma casa de humanos .
O própri o do maravilhoso, tal c o m o definido
po r Todorov, é tratar-se de um tipo de escrita o n d
e o ele• ment o do sobrenatural figura co m toda a
naturalidade possível. Por mais maluco s e oníricos
qu e sejam os acontecimentos, nã o haverá
estranhamento , pois está tácito d e q u e estamo s e m
outr o registro, q u e tud o é totalmente fictício. Isso
ele denomin a de "maravilhoso puro", "que nã o se
explica de nenhu m a maneira".10
Notas
1. TATAR, Maria. Contos de Fadas: Fdição
Comentada e Ilustrada, Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2004.
2. ANDERSEN. Hans Christian. Contos de
Andersen.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
3. A compilação anteriormente citada, de autoria
de Maria Tatar. disponibiliza a variante padrã o em qu
e a personagem principal é Cachinhos Dourados;
ela também inclui a versão de Robert Southey,
publicada em 183", na qual a invasora era
uma velha. Em algumas compilações de contos para
crianças, com o Children's treasury (Global Book
Publishing, 2002) ou A Chil's Book of Slories
(Random House, 1998), a personage m é
s e m p r e a menin a C ac hi n h o s Dourados. Esta
última compilação citada atribui a autoria da
versão ã francesa Madame D'Aulnay, mas nela os
dono s da casa nã o são uma família, são
ursos de três tamanhos. Apesar dessas variantes, tudo
indica que a versão da história do s três ursos repre•
sentado s com o uma família e a invasora
com o Cachinhos Dourados veio para ficar.
4. "Relaciona-se geralmente o gênero maravilhoso
ao dos contos de fadas, o conto de fadas não é
senão uma das variedades do maravilhoso. (....)
O qu e distingue os contos de fadas é uma
certa escritura, nã o o estatuto do sobrenatural."
In: TODOROV, Tzvetan. Introdução ü
Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva,
2003, p. 60.
5. Brun o Bettelheim mencion a um a versã o
com o as mulheres devem dar conta de ser
profissionais e mães com a mesma competência, os
homen s também passaram a ter qu e mostrar
no qual a invasora é uma raposa qu e termina devo• rada
seu desempenh o n o mund o doméstico.
pelos proprietários da casa. Ele frisa, porém, qu e este
seria: "um cont o admonitório, advertindo- nos a respeitar a 8. O fato de os perseguidores de ambo s
propriedad e e a privacidade dos outros". BETTELHEIM, personagens serem figuras da mesma espécie da
Bruno. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Rio de Janeiro : mãe leva-nos a supor qu e elas nã o passam de
Paz e Terra, 2001, p. 256. Consideramos essa versão a duplicações de sua figura. Em Andersen, as
forma folclórica do conto , ante s cie ser direcionad a outras aves do galinheiro propiciam uma
ao públic o infantil. representação caricatural e exagerada da rejeição da
mãe. No caso de Dumbo , seria uma divisão
6. Ao escreve r seu s ensaios , no s ano s 1580-1590,
maniqueísta da mãe, entre uma toda boa e
Montaigne já reclama contra isso. Diz ele: "E fácil ver por
aquela madrasta que rejeita, clássica nos contos
experiência que essa afeição natural (amor dos pais), a
de fadas. Nesse caso, o papel da madrasta é
que damos tanta autoridade, tem raízes bem frágeis . Em
represen• tado pelas amigas discriminadoras de
troc a d e u m p e q u e n o benefíci o , arrancamos todos
dona Jumbo.
os dias crianças do s braços das mães e a estas
encarregamos de nossos próprios filhos; obrigamos essas 9. São livros dirigidos às crianças bem pequena s
mães a abandonar os filhos a alguma pobre ama, a quem que corajosamente enfocam, de forma direta,
não desejamos entregar os nossos, ou a alguma cabra". assuntos difíceis, com o a morte de um familiar muito
Aliás, o próprio Montaigne, que não pertencia â alta querido, a separação do s pais, a inclusão
aristocracia, quis que sua mulher recorresse a amas, de social de amigos ou colegas com alguma
tal mod o o irritava a presença de crianças pequena s sob seu deficiência, os sentimentos de raiva ou inveja e
teto. In: BADINTER, Elisabeth. Um Amor Conquistado. Rio de a desigualdade social, entre muitos outros.
Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p.66. 10. TODOROV , T z ve ta n . Introdução à
Literatura
~\ A mesma questão se coloca para os homens : hoje de
pouc o vale ser um sucesso no mund o externo e um Fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2003, p.63.
fracasso no casamento e ou na paternidade. Assim
40
Capítulo II
EXPULSOS DO
PARAÍSO
O s i r m ã o s d o c o n t o João
e Maria' alcançar a m a
proez a d e sere m conhecido s po r
prati• ca ment e toda s a s
crianças d o m u n d o ocidental . S
e existe u m cont o q u e fala a o
coraçã o da s crianças, este é o
caso . Nã o se p o d e dize r q u e
o s conto s d a tradiçã o
tenham uma boa
campanha d e lançament o , s e ele s sã o lem brado
s é porqu e a peneir a do s s é c ul o s o s
destaco u c o m o importantes. Co m o fonte dest a
história, e n c on tr a m o s a versã o do s irmão s
Grimm, Hansel und Gretel, publicada em 1812.
Joã o e Maria sã o filhos de um p o b r e
lenhador , cuja miséria extremad a levo u sua
esposa , madrast a das crianças, a sugerir q u e se
livrassem delas , já que nã o havia aliment o
se livrar das d u a s boca s extras para salvar a
própri a vida. A mulhe r suger e q u e as crianças sejam
levada s para o coraçã o da Floresta, par a um lugar o n d e
seriam deixada s à própri a sort e e d e o n d e n ã o saberia m
retor• nar, o u melhor, u m lugar e m q u e certament e
seriam e nc o nt ra d a s pela s feras, servindo-lhe s d e
alimento , ante s q u e achass e m a saída.
N a propost a d a madrasta , o s enteado s estava
m destinado s a o pape l d e refeição. Co m o veremos ,
era exata me nt e isso q u e assombrav a o destin o deles ,
ma s o q u e o s es pe ra v a n ã o er a u m a matilh a d
e lobo s famintos e sim outr a mulhe r perversa ,
um a brux a - provavelme n t e outr a face d a própri a
madrasta .
Nã o foi tã o fácil livrar-se da dupla . Enqua nt o
os pai s arquitetava m o plan o d e a b a n d o n o , a s
crianças, q u e n ã o havia m conseguid o conciliar o son o po r
tere m id o par a a cam a co m fome, ouvira m tudo .
Maria se desespero u , ma s J o ã o p e n s o u e m algo: n o
mei o d a noite, saiu d e casa e e nc h e u o s bolso s co m
pedrinha s
Fadas n o Div ã - Psi c a n áli s e n a s Hi st ó ri a s Infanti s
Aliás, n ã o dem or a muit o par a q u e a criança pass e a Paraíso, poi s alé m d e n o futuro virar comid a d e bruxa,
s e sentir incomplet a c o m o q u e p o d e consegui r e agor a aind a terá d e trabalhar.
m termo s de satisfação e motivaçã o através da O trabalh o de Maria retrata a p e r d a da
boc a e critica a provedora , c o m o se a falha fosse grata passividad e d o b e b ê , q u a n d o pel a su a
dela . Q u e m s a b e se o p r o d u t o foss e mai s a invalidez tudo lhe é alcançado . Há um a époc a na vida
se u contento , o consumid o r nã o ficaria tão em qu e se diz à s crianças, m e s m o p e q u e n a s , q u e
insatisfeito... use m sua s pernas para ir busca r o q u e quere m , q u e
A primeira forma de decodificar o m u n d o é procure m e alcancem seu s objetivos, e é notóri o o
oral: chupar , lambe r e suga r sã o meio s q ua n t o elas resistem a isso. Embor a já saiba m falar
privilegiado s d e con heci m en t o e satisfação. Os olho s alguma s palavras , insistem em pedi r o objeto
fazem um ma pea • ment o geral, situam o objeto, mas , desejad o ao s gritos ou através de gestos . Q u a n d o
para investigações mais profundas , sã o requerido s j á p o d e m s e locomover , se u interesse privilegiará
os lábios, a língua e um revestiment o de saliva qu aquil o q u e tiver d e lhe s se r alcançado, m e s m o
e atesta o c o n he ci m e nt o adquirid o . q u e haja outro s tantos , igualment e atrativos,
Mas chega um dia em q u e ess e sistema e o m u n d o colocado s o n d e possa m pegar. Fazer o esforço de pedir
q u e el e p o d e abra nge r p a r e c e m p e q u e n o s , c o m palavra s (e m vez d e gritos), trabalhand o n
outro s horizonte s sã o requerido s pela curiosidad e o uso d o vo ca b ul ári o , assi m com o s e
d o be b ê . A o crescer, sua motivaçã o pass a pel a a b a s t e c e r d o que necessita m (ind o busca r o s
exploraçã o d e t o d o s o s lugare s o n d e su a s objeto s c o m a s próprias pernas ) sã o ato s vividos
perna s e seu s o l h o s p ud er e m levá-lo. A c o m o a b a n d o n o . Se a criança tiver de se engenha r par
loco moçã o é fascinante, tant o a própria co m o a do a atingir um objetivo é porque n ã o o fizeram po r e para
s objetos, q u e sã o arremessad o s o u têm providenciais ela. Neste m o m e n t o (à s vezes pe l o rest o da vida), se r
rodinhas . T u d o s e mo ve . ate n di d o é um a forma primitiva de ser a ma d o ,
trabalha r par a cuidar-s e e abastecer-se evoc a um a
Jo ã o e Maria jamais admitiriam q u e gostaria m de
forma d e solidão .
ter saído d e casa. q u e ansiava m o s mistérios d a floresta. O
desej o mais imediat o seria de q u e su a própri a casa Engaiolad o pel a baixa , J o ã o fica n o pape l aparen•
fosse comestível e q u e eles p u de ss e m passa r o teme nt e mais passivo , mai s regressivo, d aquel e qu
resto da vida la m b e n d o sua s paredes . Nã o fosse a e é impe did o d e crescer, q u e s e ma nté m alhei o a o
fome e a expulsão , jamais sairiam. Aí q u e está o engano mundo . Porém , se u pe rs o n ag e m incumbe-s e d e urna
, o mai s c o mu m é as crianças se lançare m à floresta, da s mais primitivas formas d e atividade, q u e constitui n
ma s acu• s a n d o o s pais d e tê-las ex p ul sa d o d e o exercí• cio do direito de se recusa r a comer .
casa e d iz e n d o q u e ali passava m fome. Nas histórias Fechar a boc a é a primeira rebeldia
de fadas, é muit o c o m u m um a te m p or a d a na assumida de u m bebê . A o entrega r o ossinh o e
floresta, significand o o m u n d o externo , o fora m lugar d o dedo para engana r a bruxa, J o ã o se
de casa, q u e invariavelment e s e iniciará c o m o um a posiciona c o m o magro - ossudo , c o m o se diz -, na
expulsã o o u co m a fuga d e um a condenaçã o á morte mesm a medid a em qu e ela o que r rechonchud o com o
. H á muita s morte s a o long o d o crescimento , cad u m porq uinho . Esse tip o d e recus a alimenta r é
a nova etap a obriga o ser h u m a n o a ver morre r similar à do s filhos, q u e insistem em seleciona r
aquil o q u e ele era e a família q u e servia àquel a o própri o cardápio , discordant e do da mãe ,
modalida d e d e relação . assim c o m o a o freqüent e f e n ô m e n o d e q u e a s
Neste conto , e m q u e a expulsã o d e casa s e crianças c o m e m d e tu d o n a casa do s outros , enquant
dev e à falta de alimentos , a mã e ou sua o na própri a são enojado s e seletivos. É simples , na
representante , a madrasta , te m a idéia de livrar-se casa d o s o u t r o s ( q u e assi m s ã o c h a m a d o s
da s crianças , ma s o pai resiste, embor a se deix e porqu e nã o p e r t e n c e m à família mai s
levar. Parec e coerente , afinal é ela q u e m faz questã p r ó x i m a ) n i n g u é m está p en de nt e d o q u e eles c o m e
o no conto , é o se u corp o q u e é negado , já qu e m o u não . Nesse s casos, a crianç a realiza u m a
de v e m o s co mpree nde r o aliment o e n q ua n t o extensã o d o a p r o p r i a ç ã o d o at o alimentar , destinad o agor a
corp o d a mã e e d e seu s atributos m a t e r n o s . Perdido s a p e n a s à própri a satisfação, orientad o pelo s seu s
n a floresta , reencontra m um a representaçã o critérios.
d e s s e c o r p o , s o b a form a d a cas a comestível, A propost a da brux a a J o ã o n ã o existe
q u e de v or a m se m pre o c up a çã o , c o m o u m sedent o n o só nas fábulas. Muitas patologia s grave s d o víncul o
desert o s e atira na s água s d e um a miragem . O preço , mãe-bebê , q u e vã o r e d un d a r e m psicose s
c o m o sabe mos , é alto. J o ã o é engaiolad o par a infantis e e m certos q ua d ro s d e d e m ên ci a s e m
se r c o m i d o pel a brux a e Maria t a m b é m p e r d e o adultos , sã o frutos dessa bruxaria , qu e
co st u m a m o s c ha m a r d e simbiose . São
44
Diana Lichtenstein Corso e Mário Corso
filhos engaiolados, não têm olhos para floresta alguma, Por isso, os dois irmãos se prestam para repre•
só vivem para e através de um vínculo umbilical com sentar duas formas importantes do crescimento: a troca
sua mãe. Jamais desenvolverão linguagem, porque só da passividade pela atividade e a separação
ela os entenderá e só isso importa, se caminharem o entre o desejo da mãe que quer alimentar e
farão sem rumo, pois só existe a presença magnética a vontade de comer do filho. O complemento
da mãe, todo o resto não é compreensível. seio-boca rompe-se definitivamente quando a
Talvez usem fraldas e se babem como bebês, criança passa a escolher e recusar alimentos. Antes,
ofertando-se no altar dos cuidados maternos, o seio simbolizava o alimento perfeito, portanto
embora em muitos casos estejamos falando de raramente era recusado, mesmo que viesse aplacar
homens barbudos e com pêlos pubianos. Esse é o outros incômodos diferentes da fome. De um jeito
filho que a bruxa devorou. Há patologias físicas, ou outro, o seio era sempre bem-vindo, se não para
mamar, para usá-lo de bico ou para ficar olhando
como lesões cerebrais e síndromes genéticas, que
para a mãe.
condenam pais e filhos a relações mãe-bebê, num
sofrimento que se prolonga até que a morte os É importante observar que o paraíso representado
separe, mas não estamos falando desses casos. Nas pelo seio - esse modo de vida em que nada falta e em
patologias psíquicas anteriormente referidas, não há que não é preciso fazer nenhum esforço - não existe
concretamente na vida dos humanos. Desde o primeiro
acidente, não há doença diagnos- ticável no corpo
encontro, quand o o recém-nascido dá a
que justifique a gravidade do quadro,
mamada inaugural e mãe e filho são banhados de uma
apenas um vínculo sufocante e demenciante. sensação de reconhecimento mútuo, estabelece-se
Maria também terá o destino do forno, já que ser uma relação que já supõe dois seres distintos. Eles
devorado não é um privilégio da relação da mãe com o passarão bom tempo sentindo-se visceralmente
filho homem. O que muda sua sorte é que ela estava unidos, mas essa é uma ilusão compartilhada. No
trabalhando, de alguma forma independente, por isso, desmame, rompe-se essa fantasia, não uma
dela parte a possibilidade de reagir. João, por sua vez, simbiose de fato. A necessária presença do
não está como a vítima hipnotizada da cobra, esperando o olhar como complemento da mamada, que o
bote, ele mantém a esperteza e engana a bruxa. bebê reivindica (ãs vezes até furiosamente),
Buscar seus próprios objetos, de alguma deixa bem claro que ele quer a mãe, não o leite, que
forma trabalhar, não é a única maneira de romper o o seio é parte de um contexto, não serve isoladamente.
fascínio de ser cuidado, descobrir que é possível É por isso que os bebês podem ser amamentados com
discordar do adulto, que ele não é tão poderoso nem mamadeira sem traumas, quando necessário, como nos
onipresente, como se acreditava, também é importante. casos de adoção ou de algum impedimento físico para
A tarefa é dar-se conta do quanto se é independente dar o seio.
do desejo da mãe: não adianta a bruxa querer
Quando esse primeiro idílio amoroso se rompe,
lhe empurrar comida, fazendo de Joã o um
restam a queixa e a idealização do que se
porquinho , ele lhe responderá com sua magreza.
supunha ter. Em João e Maria, a queixa é
representada pela expulsão de casa, onde a
madrasta lhes recusava co• mida, assim como a
Paraíso perdido idealização fica a cargo da ma• ravilhosa casa
comestível da bruxa.
oão é um bom exemplo para ilustrar Chame-se ela casa de gengibre, de
um tipo de anorexia infantil, doces, de pães e bolos, não há quem não tenha em
absolutamente normal, no qual a criança seu acervo alguma versão apetitosa dessa casa
testa e constata da bruxa. Sua aparência varia, pode ter sido
quão grande é a vontade da mãe de que ela fornecida pela gravura de um livro infantil ou por
coma. Quant o mais se recusar, mais uma criação pessoal, mas ela faz parte da galeria
variadas e angustiadas ofertas de alimento a da infância. A casa da bruxa significa fartura, pena
mãe lhe fará, ignorando que a única coisa que lhe que o preço seja fazer parte do cardápio. Aliás, a
permitiria voltar a comer seria se abster de lhe maior parte desse conto gira ao redor do comer:
oferecer muito e insistentemente. Se a mãe não começa com a fome em casa, o banquete na casa da
mostrar ansiedade em alimentar o filho, o desejo deste bruxa (onde se comem até as paredes), o terror de
pelo alimento poderá até se expressar, mas, enquanto serem devorados por ela e conclui com um belo
a insistência da mãe lembrar que ele comerá para assado de bruxa. O mundo de João e Maria é
a satisfação dela, ele recusará. 5 interpretado a partir da oralidade, mas, na prática, isso
é uma evocação, como aquelas memórias que fazemos
Fada s n o D i v ã — P s i c a n á l i s e n a s Hi st ó ri a s Infa nti s
sobr e algum a pesso a querid a qu e perdemos , po r mort e o Seja através de um a velha baix a ou de um
u separação , entã o pinça mo s par a n os s o us o s ó lobo, de p oi s q u e um a floresta separ a m ã e e
a s parte s q u e no s interessam . A memóri a é sempr filho, restam evocaçõe s de dois tipos: idealizadas (a
e um a versã o d o s fatos. saudad e de ura m u n d o comestível) e aterrorizantes. A
Separa do s d a mã e pelo s n o v o s horizont e s figura primordial assustadora é uma versão da mã e
d e c o n h e c i me n t o e relaçõe s q u e se descorti na m a imaginária do primeiro vínculo simbiótico e, embor a
partir d o d e s m a m e , faremo s de s s e pri meir o pareç a estranho , pode muito b e m ser representad a
m o m e n t o um a versã o mítica, d e um a Mãe-Cocanha pel o lobo , associado em outra s histórias à figura
, d e cujos peito s jorrava m o leite e o mel . Mas masculina . O monstr o não precisa ser um a
ess a fantasia te m se u lad o negro : é a brux a figura feminina, porqu e ele nã o é a mãe , ele
de v or a do r a . Nã o poderíamo s pensa r qu e apena s dev e ter um apetite insaciável e feroz c o m o
s e m e l h a n t e fantasia d e c o m p l e m e n t a • ridad e entr o do ogr o de O Pequeno Polegar, de Perrault. O
e mã e e filho parecess e possíve l se m repre • senta r algu ap et it e p e r e m p t ó r i o d a velh a brux a o u a
m tip o d e ameaça . Ser u m s ó c o m a m ã e bocarra escancarad a do lob o representa m a
signific a p e r d e r - s e nel a , se r r e a d m i t i d o e m mesm a ameaça: ser visto apena s c o m o algo q u e
s u a s entranhas , e m suma , ser assado , cozid o e precisa ser incorporado o mais rápid o possível. Depoi s
co m i d o . Observe-s e q u e é uma fantasia possíve l de comidos , os filhos já n ã o terão existência própria,
a p e n a s par a q u e m j á te m b e m clar o q u e está d o lad farão parte do monstro.
o d e fora, p o r isso, tem m e d o d e se r reincorporad o . Esses conto s tã o assustadores , e m verdade ,
S ó p o d e voltar a entra r q u e m já saiu. têm u m aspect o extre ma m ent e tranqüilizador. O s
irmãos J o ã o e Maria n e m ch e g a m a se r devorados
, enquant o os cabritinhos e a menin a Chapeuzin h o
Vermelho saem intactos d a barriga d o lobo . Com
O Lobo e os Sete Cabritinhos
o a s histórias são contad a s d e s d e a perspectiv a
ara deixa r mai s claro q u e o important e da s crianças q u e já ti• vera m sua s rudimentares ,
é a separaçã o e m si, p o d e m o s lançar ma s bem-sucedida s , expe• riências d e separação ,
m ã o d e outr a história , t a m b é m m uit o n ã o h á mai s perd a d a integri• dade , ning ué m se
c o n h e c i d a , compilad a pelo s irmãos Grimm: dissolve na s entranha s da bruxa ou d o lobo .
O Lobo e os Q u a n d o um olha r enlaç a a mulhe r a se u
Sete Cabritinhos," em cujo c o m eç o há um a filho, q u e mam a e m seu s braços , j á estamo s nu m
inversã o em relaçã o a João e Maria, já q u e é a momento e m q u e ela e se u b e b ê sã o sere s separados . O
m ã e q u e m sai par a a floresta. primeiro tem po , q u e seria da simbios e absoluta , ne
Era um a vez um a velh a cabr a q u e tinh a m existe de fato. Na vida real, o seio represent a a
set e cabritinhos e os amav a c o m o as mãe s a m a m os mãe , ma s é ela q u e é a m a d a , p o r isso, é
filhos. Certo dia, ela teve de ir à floresta em busc a de re pr es e nta d a c o m o uma mulhe r (n o cas o a madrasta ,
a velha cabra) . Vice-versa, o filho interessa a ela n ã o só
aliment o e r ec o m e n d o u ao s set e cabritinhos :
p o r q u e a suga , há muitos significado s qu e se
"Tenh o de ir á floresta , meu s queridinhos , e você s
a c o p l a m á m a t e r n i d a d e - d e conquist a d e um
de v e m toma r muito cuidad o co m o lobo , q u e é
a identidad e feminina, d e poder , d e prov a de
muit o ma u e muit o peri• goso . S e ele entra r aqui e m
amor , etc. A mã e p o d e ser um a só, mas a
casa, devorar á você s todos , inteirinhos, da cabeç a ao m at er ni d a d e n ã o é um a coisa só . So ment e
s pés . Ele muitas veze s se disfarça, ma s é fácil apó s a primeira separação , da qual a criança se
reconhecê-l o logo, po r su a vo z ásper a e seu s pé s sent e autora - q u a n d o ela "se desma ma " -, aparecer
muit o pretos" . á a figura mons• truosa, c o m o se a criança p u d es s e
Disfarçado, o lob o consegui u devora r todo s se dizer: "Vejam só, o t a m a n h o d o perig o d e q u e
os cabritinhos , m e n o s o me n or zí n h o q u e s e e u m e escapei!".
e s c o n d e u be m e conto u para a mã e o aconteci d
A versã o pavoros a d o primeir o enlac e
o q u a n d o ela voltou . Eles encontrara m o mon str o
amoroso é um a espéci e de alerta par a a m bos . Para
d o r m i n d o d e bar• riga cheia e, de forma similar ao a mãe , que certament e c o n h e c e a s p e r s o n a g e n s
final de Chapeuzinho Vermelho ( q u e analisaremo s d a su a própria infância, este é o aviso: n ã o
n o p r óx i m o capítulo) , abriram a barriga d o lob o reincorporará s teu produto, s o b p e n a d e t e
c o m um a tesoura , salvaram o s filhotes d e v o r a d o s assemelhar e s a monstro s d o pior tipo; par a o filho:
e r e p u s e r a m o v o l u m e c o m pedras . O lob o s e estás n u m a viage m se m volta.
acordo u c o m sede , caminho u at é o poço , mas , com o Nã o esqu eça mo s q u e tant o a brux a quant o o lobo
o p e s o da s pedra s o derrubo u lá dentro , acabo u s ó fazem sua apariçã o n u m se g u n d o momento , apó s
m o r r e n d o afogado . a saída de casa do s filhos ou da mãe . Por sorte, em
geral,
46
Di a n a L i c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o C o r s o
esses monstros são fantasias q u e só habita m os porõe s É relevante o detalh e de q u e a travessia final tenh a
da memória, nã o fazem part e concret a da vida familiar. de ser feita a sós, ou seja, os irmãos terã o de se separar,
Uma palavra a mais é necessári a sobr e as pedra s inclusive entr e eles mesmos . Já observamo s o fato de o
na barriga do lobo: preenche r o lob o é c o m o ter certeza percurs o de volta ser tà o diferente do da ida, afinal nã o
de que sua fome será aplacada , nad a mais caber á h á notícias d e qu e eles tenha m atravessado
lá. Está bem, mas se tem ta m b é m a e n c e n a ç ã o n e n h u m curs o d'água n o trajeto inicial, muito meno s
de um a gravidez masculina, o q u e també m ocorr e em u m grand e e difícil de transpo r c o m o esse.
Chapéu- zinho Vermelho. No final, a mã e ou o Um e x e m p l o q u e segu e atual sobr e a importânci a
caçado r recos - turam a barriga do lob o co m da águ a na s passagen s é o batismo . Algumas
pe d ra s dentro , e el e morre disso. Essa "gravidez tradiçõe s religiosas tê m revalorizad o o batism o
masculina " n ã o funciona, pedra é algo inanimad o e em sua forma primitiva, a imersã o total do neófito na
morto.8 Q u a n d o o lob o sofre uma "cesariana", o q u e água . Só depoi s disso, ele estará dentr o d e outr a
sai é alg o q u e já foi nascid o antes, ele mes m o é orde m mais elevad a q u e a do início. A partir da
estéril. A barriga de ped ra s já é uma tentativa da imersão . será recon heci d o c o m o m e m b r o d e
criança de diferenciar os sexos , entr e as mulheres qu e determinad a c o m u n i d a d e religiosa, ou seja, é um
carrega m os b e b ê s em seu ventr e e os homens qu ritual de passage m em q u e a água assinala o m o m e n t o
e n ã o o fazem. Inicialmente, ela part e da premissa d e transformação .
de qu e todo s sã o iguais e p o d e m fazer as mesmas Muitos sere s mágico s sã o incapaze s d e atravessar
coisas, log o gesta r e parir seria m atributo s curso s de água . Um expedient e c o m u m para se
comuns a ambo s os sexos . A realidad e liquida livrar d e u m perseguido r sobrenatura l é pular u m
essa hipótese e talvez a g e sta ç ã o p ét re a seja riach o o u atirar-se n u m rio, pois aquel e ficará
u m a bo a ilustração dessa infettilidade. invariavelment e detid o na margem . A mitologia e
a tradição folclórica parece m sublinha r a travessia
da águ a c o m o um a da s m e t á f o r a s par a a
p a s s a g e m p ar a o u t r o níve l d e existência, d e
A travessia
transformação , n ã o s e sai d o outr o lad o d a marge m
o fim da história, conform e a versã o d o m e s m o m o d o c o m o s e entrou .
d o s irmãos Grimm, J o ã o e Maria "achara A casa par a a qual retorna m J o ã o e Maria
m em tod o o cant o da casa da baix a arcas de n ã o é a m e s m a d e o n d e partiram, n ã o h á
pedra s preciosas e pérolas" qu e eles levaram mais nela um a figura m a t e r n a a m e a ç a d o r a , e
consig o a s ri q u e z a s fora m c o n q u i s t a d a s p e l a s p r ó p r i a s
de volta para casa. "São m elhore s q u e as cri a nç a s . E u m final diferente de tantas histórias
pedrinha s brancas", afirmaram referindo-s e à q u e l a de fadas, em q u e o heró i c o nq ui s t a se u p r ó p r i o
s c o m q u e assinalaram o cami nh o de volta na reino , riqueza s e um a bel a princesa , d a n d o as
primeira vez em que foram expulsos . Em casa, J o ã costas para o seu castelo de origem. João e Maria é
o havia e n ch i d o os bolsos d e pedrinha s o u migalha s anterio r a esse s horizontes , há um a revoluçã o
q u e lhe permitisse m voltar; dessa vez, o faz co m a fazer, ma s ela é intramuros , seu s efeitos serã o
outr o tip o de tesouro , cujo valor nã o é o de contabilizado s aind a dentr o da relaçã o familiar. O
um a passage m de volta. Eles encontram o pat o c o m o mei o d e transport e talvez seja um a
ca m i n h o d e casa, ma s pela s própria s pernas, as h o m e n a g e m à versatilidade dess e animal, poi s pouco s
pedra s preciosa s e as pérola s sã o um valor mundano, c o m o el e voam , camin ha m e nadam . Difícil
sã o c o m o dinheiro , q u e providenciar á o imagina r algué m mais b e m p r e p a r a d o par a a s
abastecimento d e q u e eles precisam . Agora, o s bolso transformaçõe s q u e a vida exige, portanto , ele parec e u
s estão pleno s d e indepe n dência . 9 m b o m exem pl o de mobilidad e possível. C o m o ele
Uma vez morta a mãe, que se negava a ser o paraíso, e domin a vários meios, p o d e figurar c o m o u m
livres dos perigos de ser devorado s po r ela, os irmãos se auxiliar ajudand o algué m a passa r po r eles.
satisfazem co m as jóias qu e pode m compra r comida e bem-
estar, representantes das riquezas qu e tanto fizeram falta
nos tempo s de escassez. Muitas histórias infantis Outros gulosos
contemplam u m verdadeiro crescimento, lembrand o qu e
quando partimos nã o voltamos nunc a mais, vivemos em xiste u m c o nt o curto, muit o antigo, repetid
outro reino, o antigo morreu. Isso equivale a dizer q u o e m vários folclores, geralment e
e uma vez qu e se mud a de posição subjetiva n ã o há volta, co n he ci d o c o m o título de Os Três
10
se verá tud o desd e um outr o prisma. Desejos. A história é a seguinte : um
p ob r e h o m e m conseg ue ,
Fada s n o D i v ã — P s i c a n á l i s e n a s H is tó ri a s Infanti s
importânci a d o p o d e r d e fazer cessa r o
jorr o d e a li m e nt o . A s
po r intermédi o d e u m ser mágico , a graç a d e
ter três desejos atendidos . Mas ele e sua mulhe r
sã o muit o tolos e . c o m o q u e m nunc a c o m e mel,
q u a n d o c o m e se lambuza , desperdiça m seu s
desejos de um a forma estúpida . O pape l de mais
tolo ora é da mulher, ora é do marido , ma s o certo
é q u e um do s dois, distraído e m conjectura r qua l
a m el h o r form a d e fazer se u pedido , enunciar á
alto sua vontad e d e c o m e r algum a coisa.
Prontamen t e o pedido_ é atendid o e assim se
d e s p e r d i ç a c o m u m si m pl e s a l i m e n t o a q u i l o
q u e poderi a conte r todo s o s tesouro s d o m u n d o .
O outr o cônjuge, raivoso po r ter visto um desejo ser
banalment e usado , n u m impuls o p e d e q u e a tã o
desejad a lingüiça grud e no nariz do guloso , e lá
se vai outr o desejo . Com o d a primeira vez,
trata-se d e u m p e n s a m e n t o q u e é en u nc ia d o
alto; se inicialmente há um a gula desmedida ,
nessa segund a vez, ocorr e u m descontrol e de raiva.
For último, o derradeir o pe di d o é gast o par a livrar o
nariz do monstruos o a d e n d o . E o casal está de nov o
co m o ante s d a possibilidad e d e desejar.
Além de ser um a fábula sobr e a dificuldade
de sabe r o q u e desejamos , a história n o s
mostra que, q u a n d o nã o s a be m o s o qu e
queremos , existe um a bo a chanc e d e
escorregarmo s par a o s desejos orais ou par a outro
s impulso s primitivos. Nessa história, há dua s formas
d e incontinênci a oral, a d e raciocinar c o m o estômag o
e a de falar se m pensar . Nas histórias de fadas,
muitas vezes , as person a gen s vomita m coisas boa s
o u ruins q u a n d o falam, mostra nd o q u e palavra s
també m sã o objetos q u e sae m da boc a e é
precis o controla r o q u e se diz. Em um a delas ,
As Fadas,1 1 a b o n d a d e é premiad a co m a expulsã o d e
pérola s junt o a cad a palavra , ao pass o q u e a
p e r s o n a g e m má é c o nd en a d a a vomitar sapo s
sem pr e q u e falar.
Outra história sobr e satisfação oral chama-s e
O Mingau. É narrad a pelo s irmão s Grim m e mal
passa de um parágrafo. Nela, um a menin a
faminta receb e c o m o pr e se nt e , d e um a velh a
q u e e nc o nt r a , um a panel inh a mágica . O objet o
fantástic o s e m p r e lh e oferecerá a quanti dad e q u e
ela desejar de mingau . A velha lhe ensin a as
palavra s mágica s par a iniciar e cessar o feitiço,
e assim a menin a providenci a par a q u e ela e sua
m ã e n ã o t en h a m mai s fome. U m dia, n a sua ausência ,
a mã e c on s eg u e fazer o feitiço iniciar, ma s n ã o
sab e fazer a panel a parar, acontec e e nt ã o um a
e n o r m e inun daçã o d e minga u q u e envolv e tod a a
cidad e e só cessa c o m a volta da menina .
O Mingau é um a fantasia sobr e um paraís o
oral, pel a possibilidad e d e satisfação irrestrita, cujo
p o d e r está co m a criança. É necessári o frisar a
criança s p e q u e n a s sã o e m b uti d a s d e comid a d e tal
m o d o q u e a idéia d a colhe r vind o par a um a
boca , q u e te m d e s e escancara r b e m obedie nte , vai
ficando terrífica á medid a q u e crescem . Fecha r a boc a
é uma da s primeiras formas d e poder . For isso, essa
pe q ue n a história, q u e ne m seque r angario u muita
popularidade , é significativa par a noss a análise.
Arriscamos dize r qu e seu e nc a nt o está e m dize r q u e
a crianç a p o d e até compartilha r co m a mã e o
p od e r de fazer brota r o alimento , mas o de fazê-lo
cessa r é só dela, ningué m vai lhe fazer co me r o q u e
ela n ã o queira .
O s paraíso s orai s n ã o p e r d e r a m se u prestigiei,
s e g u e m s e n d o imaginados . Acreditamo s qu e , contem -
p o r a n e a m e n t e . o mai s r e q u i n t a d o é a fabric a
de choc olat e do livro A Fantástica Fábrica de
Chocolate, de Roald Dahl.1 2 A trama é muit o mai s
rica do qu e um a utopi a oral, mas , d e q u a l q u e r
forma, o cenári o principal , em q u e a história se
de se n v ol v e , é uma fábrica mágica-tecnológic a o n d e
t u d o é comestíve l e todo s o s s o n h o s glutõe s infantis
p o d e m se r atendidos . Nessa novela , a magia é
substituíd a pel a tecnologia , e a floresta encanta d a é u m a
fábrica n ã o m e n o s encan • tada . Enfim, u m a c o c a n h a
infantil moderna , o n d e to d o s o s d o c e s estã o
disponívei s se m custo s e sem limites, ma s cad a um a
da s criança s visitante s terá d e a p r e n d e r a se controlar
. A p as s ag e m pel a fábrica é t a m b é m u m ritual d e
saída d a infância, n a medid a e m q u e cad a u m
precis a prova r q u e n ã o s e deixa levar pel a oferta
oral , p o r mai s q u e a te nt aç ã o seja d o t a m a n h o d e
um a fábric a e se u p r o p r i e t á r i o feiticeiro, u m
g r a n d e sedutor .
O s drama s atuais, c o m o obesidade s , anorexias,
toxicomanias e alcoolismo, sã o histórias de gente , jovem o u
adulta , t e n t a n d o sol u ci o na r o s p r o b l e m a s co m
pedrinha s branca s q u e a s recon duz a m a o calor d e u m
lar q u e o s expulso u q u a n d o crescera m . Diant e do s
fracassos, da s insatisfações, esses João s e Marias tentam
devora r a casinha, ingerindo alimentos ou incorporand o
substâncias tóxicas q u e proporcion e m um a satisfação. Se
consumire m a comida , ou a substância "mágica",
tenta m atingir tal satisfação, mais mítica do q u e real.
Trata-se d e gent e qu e sab e o q u e que r e p o d e consegui- lo,
se u desejo é a incorporaçã o de um objeto concreto. A
anorexi a é o m e s m o pela s avessas , o objet o é a
comida, só qu e a relação é de recusa.
A toxicomania , c o m o a bulimia, sã o um circuito d
e vid a r e d u z i d o , ela s a p l a i n a m o p r o b l e m a d o s
desejos. Afinal, nunc a sa b e m o s muit o b e m o qu e , o u
q u e m q ue re m o s , n e m d o q u e precisamo s ser par a qu e no s
queiram . Q u a n d o o assunt o s e resolv e e m termo s d e
ingestão, c o n s u m o ou abstinência de algum
Diana Lichtenstein Corso e Mário Corso
p e r d e m o s alg o m e s m o q u a n d o no ss o s desejo s
sã o satisfeitos. Uma i n c o m p r e e n s ã o c o m u m d e
q u e m s e aproxi m a d a psicanális e é p e n s a r q u e o
c a m i n h o d a cu r a seri a a s i m p l e s r e a l i z a ç ã o
d o s d e s e j o s . N a v er d a d e seria m el h o r co n h ec ê-l o
s par a p o d e r enfren • tá-los , sa b e r lida r c o m
ele s , n ã o n e c e s s a r i a m e n t e realizá-los. S e assi m
fosse, um a q u e s t ã o d e satisfação direta, existiriam
p o u c o s h o m e n s sobr e a face da terra, j á q u e s o m o s
h a b i t a d o s p o r d e s e j o s d e m o r t e , direcionado s
inclusive ao s nosso s sere s mais queridos , incluind o
n os s o s filhos. Existem m o m e n t o s e m q u e
q u e r e m o s q u e ele s su m a m , q u e vacilamo s s e foi um a
bo a idéia tê-los tido . Esse p e q u e n o c on t o d á
va z ã o à s fantasias q u e n o s p e r c o r r e m a respeit o
d o n o s s o desejo , muita s veze s am bivale nt e , pelo s
filhos. São o s m o m e nt o s q u a n d o o s pai s p e n s a
m o q u a n t o o s filhos p o d e m se r u m p e s o n a su a vida
. Mas ess e c o n t o fala a am bos : às crianças , po r
tere m um a intuiçã o de q u e p o d e m se r o peso ;
e ao s pais , par a p o d e r e m pensa r c o m o seria
enfrenta r ess a ci da d e (casa ) vazia. O s pais têm
dificuldade d e re sp o n d e r c o m o seria
a sua vida se m os filhos. Certament e seria mais
fácil, mais barata, co m mais t e m p o par a eles , ma s
ficariam c o m o a cidad e d e Hamelin, c h o r a n d o
pela s crianças q u e s e foram o u q u e n ã o tiveram. Ter
filhos n ã o é u m b e m universal inquestionável , é cad a
vez mais, par a a sorte de todos , uma escolha . Relançar
o desejo h er d a d o d o s pais na geraçã o seguint e
se m p r e foi o destin o da hu manid ad e , paga m o s o
q u e nosso s pais investiram e m nó s n a próxim a
geraçã o q u e , po r su a vez, vai pagar tend o filhos e
assim sucessivamente . Acreditamos q u e é este p a ga m e n t
o q u e o prefeito de Hameli n inter• rompe u e, po r isso,
as crianças sumiram . Talvez hoje a pressã o po r ter
filhos n ã o esteja tã o forte c o m o um a imposiçã o
social, e existe m outra s formas de paga r ao s
pais po r no s fazer existir.
Notas
1. GRIMM, Jaco b & Wilhelm. Contos de Fadas.
Belo
Horizonte: Villa Rica Editora Reunidas, 1994.
2. Existe um conto dos Grimm, A Terra da
Cocanha, mas ali estão exposto s apena s os
traços bizarros desse lugar mágico. Um bo m livro
qu e analisa essa utopia é Cocanha- História de
um País Imaginário, de Hilário Franco Júnior,
publicado pela Companhia das Letras, São Paulo, em
1998.
3. PERRAULT, Charles . Contos de Perrault.
Bel o Horizonte: Editora Itatiaia, 1989. É bo m lembrar
qu e O Pequeno Polegar de Perrault é muito
das outras histórias com esse nome . Aqui ele é o
caçula de sete irmãos, qu e são expulsos de casa
pela miséria, o começ o é praticamente igual a João e Maria.
Na floresta, eles enfrentam um ogro que os quer
devorar, mas, graças à astúcia do Pequeno Polegar,
habilmente conseguem escapar.
4. Nas palavras da mulher do lenhador dessa história:
- "Onde estarão nossos pobres filhos agora? Eles
fariam uma boa refeição com estes nossos restos!"
5. Voltaremos a esse assunto no Capítulo XIV, anali•
sand o os personagen s de Maurício de Sousa, Magali e
Dudu.
6. GRIMM. Jaco b & Wilhelm. Contos de Fadas. Belo
Horizonte: Villa Rica Editora Reunidas, 1994.
7. Em Chapeuzinho Vermelho, ele faz o papel de adulto
sedutor e ardiloso, similar às raposas das fábulas, qu
e tentam e engana m os inocentes e os otários.
8. Idéia desenvolvida em FROMM, Erich. A Linguagem
Esquecida. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1962.
9. Retomamos essa questã o da troca de um tesouro de valor
oral por outro de importância monetária, na análise do
conto João e o Pé de Feijão, Capítulo VIII.
10. JACOBS, Joseph . Histórias de Fadas - Mundo da
Criança, volume III. Rio de Janeiro: Editora Delta, sem
data.
11. PERRAULT, Charles . Contos de Perrault. Belo
Horizonte: Editora Itatiaia, 1989. Citamos Perrault, mas
essa história é conhecida em todos os folclores com os mais
variados títulos. Quase sempre existem duas irmãs, uma de
boa índole e outra má e egoísta, send o esta última sempr e
a preferida da mãe.
12. O livro tem tradução no Brasil pela Editora Martins
Eontes, 2000. Em 1971, saiu o filme homônim o que muito
contribuiu para a popularização dessa história.
13. Na verdade, especialmente a toxicomania comporta vários
outros elementos, aqui falamos apena s de um do s
circuitos qu e estão operand o nesses con• textos de
adição.
14. BROWNING, Robert. O Flautista de Manto Malha- do
em Hamelin. São Paulo: Musa Editora, 1993. Esta
lenda ficou popula r através da poesi a feita po r esse
inglês, mas já era conhecid a há séculos. A cidad e de
Hamelin existe, fica na Baixa Saxônia e é també m um
porto . Há q u e m queira buscar indícios reais d e
um a migraçã o d e criança s o u jovens ocorrida no
sécul o XIII, mas nad a ficou provado , e tud o entã
o fica nest e território vago o n d e o s mitos
florescem.
15. DAHL, Roald. As Bruxas. São Paulo: Martins Fontes,
2000. Em 1990, essa história foi filmada com o nom e de
Convenção das bruxas.
Capítulo III
UM LOBO NO CAMINHO
são de fato equiparáveis. Alguns são até muito amá• ante s à cas a da avó . Já na história de Perrault, o
veis, serenos, sem fel nem irritação. Esses doces lobos, lob o desafia C hape uzinh o par a um a corrida até se u
co m tod a a e d u c a ç ã o , a c o m p a n h a m a s objetivo, s e n d o q u e lh e indica o c a m i n h o mai s
joven s senhoritas pelos becos afora e além do lo n g o e vai p el o mais curt o tratar d e seu s
portão. Mas ai! Esses lobos gentis e prestimosos são, assunto s c o m a vovó. E m toda s a s versões ,
entre todos, os mais perigosos." C h ap e uz in h o n ã o c u m p r e seu trajet o d e u m a
form a d ir et a . Seja p e l a s flore s e b o r b o l e t a s
Cent o e sessent a an o s depoi s (1857), os d o caminho , seja pel o praze r d e um a
irmão s Grim m escrevera m um a continuaçã o d a corrida , ela n ã o leva su a tarefa totalmente a
história, q u e lhe emprest a u m caráter d e cont o sério, cumpre- a brincando.
d e fadas.3 Nesta, a p ó s Ch a pe u zi n h o ter sid o De qualque r maneira , o Lobo cheg a ante s à
devora da , u m lenhado r q u e estava passand o em casa da avó , anuncia-s e c o m o s e n d o a neta e
frente à casa da av ó da menin a escuto u o ronc o d o lob o aproveita par a d e v or a r a velh a se m de lo n g as ,
q u e dormi a d e barriga cheia. Ele entro u e cortou-lh e ve sti n d o suas r ou p a s de dormi r e deitando -s e em sua
a barriga, retirand o a a v ó e a neta vivas de seu cama , à esper a d a m e n i n a . C h a p e u z i n h o c h e g a
ventre; após , os três pr ee n ch er a m o espaç o vazio d o d e p o i s , e , n e s s e m o m e n t o , ocorr e o clássico
estômag o d o animal co m pedras . O lob o acordo u s e g u n d o diálog o - repro • duzid o acima -, q u e é
co m sed e a acabo u afunda nd o n a águ a qu e se m p r e o clímax da narrativa. Por mais variaçõe s q u
pretendi a beber, m orr e n d o d a mesm a forma q u e e a história poss a produzir , essas falas sã o com o u
em O Lobo e os Sete Cabritinhos. m núcle o pe r m a ne nt e .
Apesar de os finais da s histórias de Num a ediçã o com entad a e ilustrada d o s
Perrault e do s irmãos Grimm diferirem, seu s inícios conto s de fadas, Maria Tatar disponibiliza um a curiosa
sã o bastant e similares. Temo s um a menin a adorável , versão, de feitio mais antigo, dess a história. Ela foi
conhe cid a d e todo s pel o capu z vermelho , compilad a a parti r d e na rr ati v a s orais , n a
pr es e nt ea d o pela avó , o qual andav a se mpr e Fr a nç a , e m 1885; portanto , q u a n d o já existiam
vestindo . U m dia, su a mã e p e d e - lhe q u e leve un s disponíveis par a o públic o as versõe s impressa s de
bolinho s e vinh o (o u manteiga ) par a sua av ó q u e Grim m e Perrault. O cont o chama-s e A História
vivia na floresta. Em Grimm, essa or d e m é da Avó ' e te m as características da s narrativas
a c o m p a n h a d a d e u m p e q u e n o sermão : folclóricas, n ã o originalment e direcio• nada s par a a
s crianças. Po r isso, n ã o h á nel e ne nh u m a mensa ge m
Trate de sair agora mesmo , antes qu e o sol pedagógi c a subliminar, n e m p re o cu p aç ã o e m
fique quent e demais, e, quan d o estiver na suprimir o s eleme nto s grotescos .
floresta, olhe para a frente com o uma boa menina e A História da Avó merec e um comentário ,
nã o se desvie do caminho. Senão pod e cair e quebra r poi s está fora do p ad r ã o habitual . O c o m e ç o é
a garrafa, e nã o sobrará nada para a avó. E igual, mas m a i s sucinto , se m o sermã o
quand o entrar, nã o se esqueça de dizer bom-dia materno , qu e est á totalment e ausente . O
e nã o fique bisbilho- tand o pelos cantos da diálog o co m o Lob o é breve , a p ena s est e pergunt
casa. a po r o n d e ela vai e segu e o outr o caminh o corrend o
par a chega r antes . Devor a a avó , ma s n ã o toda ,
Disposta a obedecer , C h ap e uz in h o peg a o deix a u m p o u c o d e carn e e um a garrafa d e sangu e
ca• minh o conform e lhe fora indicado , ma s par a depois . Q u a n d o C h ap e uz in h o chega , el e
p e d e - l h e par a deixa r a cest a na d e s p e n s a e
encontra-s e co m o Lobo. As várias versõe s frisam q u e
a convid a co m a carn e e o vinh o (o u melhor, o
ela n ã o tev e m e d o , poi s n ã o sabia d o perig o q u e
sangue ) q u e estã o n a prateleira. N o fund o d a
corria c o m ele . N o primeir o diálog o do s dois, chei o d
cena , u m gat o falante c o m e nt a q u e é precis o
e gentilezas, el e tom a a iniciativa e lhe pergunt a
se r um a porc a par a com e r da carn e da av ó e bebe r
a o n d e ela vai. Pron • tament e a menin a conta ao Lobo o seu sangue . A menin a n ã o parec e da r importânci a
sua missão, seu trajeto e a localização precisa da a essa observação , ma s está atent a a o convit e d o
casa da avó . Lobo par a irem par a a cama :
O ardilos o animal elabor a entã o u m plan o
par a devora r n ã o uma , ma s dua s criaturas. Para isso
precisa d e tem po , entã o faz Ch a pe u zi n h o ver c o m o o Tire a roupa , minh a filha, e venh a para a
sol está lind o e qua nta s flores há par a colhe r pel o cama comigo.
cami nho . A menin a s e entusiasm a c o m a proposta ,
s e distrai c o m as flores e admirand o borboletas , e ele A cad a peç a d e roup a q u e ela tira, pergunt a par a
consegu e chega r o Lobo o n d e colocar, el e r e s p o n d e s e m p r e o
mesmo:
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o
57
Fada s n o D i v ã — P s i c a n á l i s e n a s Hi st ór i a s Infanti s
figura faz um contrapont o com o u m aspect o d o lob o
q u e é um a ameaç a primordial.
São tem po s de uma subjetividade simples,
um a é p o c a e m q u e é c o n v e n i e n t e a i nv o ca ç ã
o d e u m intermediário entre a mã e e a criança, esse é
precisamente o lobo. Q u e m já brincou co m
pequenos , pouc o mais qu e bebê s deambulantes ,
descobriu qu e se esconde r e ser encontrad o é muito
divertido para eles.
Apó s aguardare m ofegantes , escondido s debaix o
d e um a cobert a o u atrás d e um a cortina, ele s
gritam nervoso s e eufóricos q u a n d o sã o descoberto s
e sae m correndo , c o m o p or q ui n h o s gritões. O
m o m e n t o d e esper a so b o s panos , ante s d e sere
m descobertos , é equivalent e à expectativa q u e
a c o m p a n h a o diálog o co m o lob o e o objetivo da
criança co m essa brincadeira é sentir m e d o . Mas po r
q u e um a criança gostaria o u precisaria sentir
medo?
58
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o
Chapeuzinbos quando
(não) crescem...
xi st e m adulto s qu e sã o
co m pl et a me n t e alheio s à s sutileza s
e r ó t i c a s q u e e s t ã o presente s na vid a
cotidian a (certament e o l eit o r c o n h e c e r
á a história de a l g u é m
alfabetizar, voltar-se par a o s amigos , par a a
escola . T u d o vai b e m at é q u e a
próxi m o q u e seja assim) . São aquela s
mul here s o u h o m e n s q u e nu n c a p e r c e b e m 59
quand o estã o s e n d o olhados , dificilmente
arranjam parceiro s e m funçã o d e q u e n ã o
sabem , n e m rudimentarment e , praticar o jog o d
a seduçã o e s e queixa m d e sere m
invisíveis, q u a n d o n a verdad e sã o é cego s par a
est e assunto .
Q u a n d o enfim alg o acontec e par a ess e
tip o d e inocentes , eles p õ e m t u d o a perde r po r s ó
en te n de r e m as coisas depoi s da noit e ter passado .
Muitas vezes , se envolve m e m relacionamento s e m
q u e sã o usado s da s mais diversas formas, já qu e
a passividad e infantil é a únic a m o d ali d a d e d e
relaçã o q u e tê m a oferece r e se m p r e h á
q u e m tire proveit o disso . P os su e m um a
ingenui dad e crônica, a experiênci a parec e
nunc a ser cumulativa , estã o sem pr e repetind o
seu s erros , inca• paze s d e a pr en d e r c o m o
funciona o jogo sexual . Co m algum a freqüência,
essa inocênci a militante s e estend e par a o s
território s fora d o am or , fica c o m p l i c a d o
trabalha r e estudar , j á q u e rara ment e
p e r c e b e m o s subtexto s q u e estã o implícitos n a
com unica çã o entr e a s pessoas , na s instituições qu e
freqüentam , enfim sã o imu ne s a quaisque r
sutilezas.
A ingenuida d e adulta é um a patologi a da
s mais sérias, caus a u m a série d e embaraços ,
atrapalh a o u inviabiliza a vida amoros a da s
pessoa s envolvida s e, pior, geralment e n ã o é
reconhecid a c o m o u m g ra n d e proble ma . A pesso a
q u e a possui se sent e pur a e boa , e n q u a n t o os
outro s é q u e sã o cheio s de hipocrisia e
intençõe s escusas . Pois bem , um a provável fonte
dess a ingen uida d e prové m d e um a recusa
inconscient e e m admitir o p r e p o n d e r a n t e pape l do
sex o na nossa vida. A o long o d o crescimento , h á
um a série d e idas e
vinda s a respeit o dess a q uestão . O períod o de
latência, po r e x e m pl o , é u m m o me n t o d e suspensã o
d a proble • mática. Algo c o m o : n ã o q u e r o sabe r
disso, pel o m e n o s nest e m o m e n t o , t e n h o coisas
mais importante s para m e ocupar . Depoi s d e ter
passad o pel o intens o dram a am oros o e erótic o d o
Co mple x o d e É di p o, " q u e torn a a s criança s at é
o s 4 , 5 a n o s tã o difíceis d e lidar,
finalmente a s exigência s eróticas e a s disputa s d e
p o d e r d ã o um a trégua .
Na verdade , é um armistício merecido ,
poi s a long a batalh a anterio r estabelece u o
lugar da s coisas. Q u a n d o a latência chega , o s pais
diminuíra m a morosa • m e n t e d e tamanh o e
a u m e n t a r a m su a estatur a e m autoridade , a
própri a criança já n ã o se sent e tã o central n a vid a
deles . Muitos vínculo s d e d e p e n d ê n c i a mai s
primitiva, qu e envolvia m tant o física e
espiritualment e pais e filhos, estã o se dissolvend o ness
a ocasião . Graças a isso, sobr a energi a par a se
Fada s n o D i v ã - P s i c a n á li s e n a s Hi st ó ri a s Infan ti s
Bel o
Horizonte: Ed. Itatiaia, 1989.
Notas
1. PERRAULT, Charles . Contos de Perrault.
2. Da obra original de Perrault (Histoires ou Contes du Temps
Passe, Avec des Moralités. Paris: Barbin, 1697), in TATAR,
Maria. Contos de Fadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2004. É interessante observar qu e esses
versinhos finais foram suprimidos das edições atuais
de contos de Perrault.
3. GRIMM, Jaco b e Wilhem. Contos de Grimm. Belo
Horizonte: Ed. Villa Rica, 1994.
4. Conforme Maria Tatar: A História da Avó foi contada po r
Louis e François Briffaut, em Nièvre, 1885.
Publicada originalmente por Paul Delarue em Lês
Contes Merveieux de Perrault et la Tradition
Populaire", "Bulletin Folklorique de l'Îlle-de France"
(1951). Ibidem p. 335. Essas fontes sugerem que,
embora A História da Avó tenha chegad o até nós
graça s a um a pesquis a posteri o r à q ue la s que
propiciaram as compilações mais tradicionais, como as de
Perrault e do s irmãos Grimm, ela é resultante de uma
pesquisa dentr o de parâmetro s de rigor histórico qu e
nos autorizam a considerar esta versão mais antiga qu e as
anteriores.
5. FREUD, Sigmund. Três Ensaios sobre a Teoria da
Sexualidade (1905). Obra s Completas , vol. VII,
p.163. Rio de Janeiro: Imago, 1989.
6. Surpreendentemente, a enures e é um sintoma cuja cura
respond e bastant e be m a um a intervenção
moderadament e severa por parte da família. Uma
explicação plausível para esse fenômen o deve-se ao
fato de a criança receber a reprimenda como a bem-
vinda proibição de se entregar a uma forma de
satisfação sexual que , embor a sinta, é muito pesada
para carregar. Trocando em miúdos, ela sente um prazer
sexual de alguma forma conex o com coisas qu e os
adultos fazem e sobre as quais ela nã o sabe be m o qu e
são. Essas sensações corporais estranhas e boas, de
alguma forma, se associam a seus pais, porém ela nã o
tem registro possível para tal desejo, porqu e é proibido e
complicado demais. Por isso, se urina em sonho s ou
mesm o segura o xixi até qu e sua saída explode com o forma
de prazer. Quand o lhe é proibido urinar em qualquer
lugar, embora pareça um contra-senso proibir algo
que tem motivaçõe s inconsciente s , muita s vezes , a
criança consegue controlar-se; é com o se ela fosse
excluída de um circuito de prazer muito complicado para ela
mesma. Algo semelhante ao qu e sentimos qu and o ficamos
impedido s de comparece r a um compromisso desejado,
mas qu e temíamos enfrentar.
7. Ver em PERRAULT, Charles. Contos de Perrault. Belo
Horizonte: Editora Itatiaia, 1989, p.53 e 24.
Diana Lichtenstein Corso e Mário Corso
ra uma vez um casal que queria a prometer a filha que nasceria para a perversa mulher
muito ter um filho. em troca do raponço.
Quando finalmente atingiu Assim que nasceu, a menina foi recolhida
essa graça, ocorreu que a mãe por essa estranha madrasta, que a batizou de
foi tomada por um clássico Rapunzel, numa alusão aos raponços pelos quais
desejo de grá• vida: queria fora trocada. Tão grande era o apego da bruxa
comer os rapon- ços,1 (uma á Rapunzel que, quando esta atingiu a idade de
verdura para salada), qu e 12 anos, se tornando uma bela jovem, foi colocada
cresciam no jardim da numa torre sem portas, para que ninguém a visse. O
vizinha, conhecida como uma único acesso aos aposen• tos de Rapunzel era por meio
perigosa feiticeira. Tanto incomodou seu de suas próprias tranças. A bruxa madrasta chegava
marido, lamentando que morreria caso seu desejo ao pé da torre e gritava a frase que celebrizou essa
não fosse satisfeito, que ele se dispôs a correr o risco personagem:
de colher o vegetal. A primeira porção só incitou
a mulher a exigir mais, motivo pelo qual ele "Rapunzel, Rapunzel! Jogue suas tranças!"
empreendeu uma segunda excursão à horta da bruxa.
Dessa vez, ele se deu mal, foi surpreendido pela dona Pelos cabelos da moça, ela subia. A
da casa, obrigado a explicar seus propósitos e visita da bruxa era o único contato de Rapunzel com
somente saiu vivo - e carregado da verdura tão o mundo externo. Certo dia, um príncipe escutou a voz
cobiçada - porque foi coagido da jovem,
Fadas no Divã - Psicanálise nas Histórias Infantis
que cantava para aplacar a solidão. Não só costuma ser contada dentro dos limites do que se
descansou enquanto não descobriu a fonte da julga conveniente para as crianças, não é
música qu e o encantara. Escondido, assistiu à bruxa narrado o fato de que ela teve dois anos de
subindo e deci• diu usar o mesmo expediente. Depois concubinato clan• destino (e dois filhos) com seu
que ela partiu, repetiu a mesma frase e as tranças príncipe. Nesse caso, quem conta um conto, subtrai
caíram. um ponto.
Chegando aos aposentos de Rapunzel, contornou o Por sorte, a essência da história de Rapunzel não
susto da moça, que jamais vira um estranho, muito está no pedaço omitido, mas sim no desejo
menos um homem, garantindo-lhe que a amaria mais incontro- lável que ocorreu durante a gestação de sua
do que qualquer um. Assim começou um mãe, dando origem á trama que fez da menina filha
romance que só poderia terminar em um plano adotiva de uma baixa. A marca registrada desse
de fuga: ela pediu ao rapaz que lhe trouxesse conto é o exílio na torre sem portas, cuja única
entrada dava-se por meio das longas tranças da jovem.
seda com a qual teceria uma escada para descer
Como veremos, tanto o desejo incontinente da mãe,
da torre. Na véspera da sua partida, ela recebeu a
quanto a clausura da filha, responde ao mesmo
rotineira visita da baixa, mas acabou falando mais do fenômeno: a mãe possessiva. Acreditamos que
que deveria. Na versão que chegou até nós, ela diz à Rapunzel não deve fazer companhia a outras jovens,
madrasta.: "Como é, boa mãe, que você é tão mais pesada como Branca de Neve e Cinderela, que padecem da
que o jovem príncipe?" Porém, na primeira versão dos inveja da madrasta de sua beleza juvenil. Ela terá de
Grimm para essa história, a menina teria perguntado: enfrentar a ira da mulher que a criou como filha, mas
"Por que meu vestido está ficando mais apertado na a origem do conflito entre as duas está na atitude
cintura?", pelo que deduzimos, ela está grávida, mas é tão possessiva materna, que vê o crescimento como um
inocente que não compreende o que lhe ocorre. abandono. O pecado dessa personagem não é o de
A bruxa ficou furiosa, cortou as tranças da moça e ser mais sedutora que a mãe, mas o de incluir alguém
a expulsou de seu convívio, exilando-a num deserto. Na mais. o príncipe, numa relação que deveria ser completa,
seqüência de sua vingança, amarrou as tranças na torre em que mãe e filha se bastassem.
e ficou lá esperando o príncipe. Quando ele Rapunzel congrega três grandes temas recorrentes
subiu por elas, o empurrou, fazendo-o cair sobre es• nas histórias de fadas: o filho prometido a contragosto
pinhos que o cegaram. Dessa forma, condenou- para um ser mágico em troca de algum favor (ou da
o a nunca mais ver sua amada. Ele vagou por anos vida), a clausura do filho ou filha pela mãe
pela floresta, comendo raízes e frutas, enquanto no ou pai
deserto Rapunzel deu á luz a um casal de (tentando mantê-lo longe dos braços de seu amor) e,
gêmeos. Em sua errância, o príncipe chegou até por último, o surgimento de um apaixonado em função
onde ela estava e lhe reconheceu a voz, abraçando- de resgate, retirando a jovem (ou o jovem) da clausura,
se a ela, desesperado. Tomada de tristeza, ao ver seu do sono ou do feitiço. Esse conto ainda
amado naquele estado, ela chorou e suas lágrimas contempla uma jornada posterior, que também é
devolveram a visão a ele. O conto Rapunzel2 bastante comum nessa literatura, em que os amados
conserva-se lembrado pelas crianças apesar de não ter se desencontram por longos anos, esquecem-se um do
tido, até agora, grande ajuda da mídia moderna para sua outro ou não se reconhecem, para depois reatar o
difusão. Não contamos ainda com uma versão laço amoroso.
cinematográfica, apena s segu e comparecendo A sua aparição mais antiga é atribuída, por diversos
nas compilações de contos de fadas folclóricos. autores, a um conto narrado pelo precursor de Perrault
As versões que conhecemos são todas inspiradas e dos irmãos Grimm: Giambattista Basile. Em 1636, 60
na de Jacob e Wilhelm Grimm. Recentemente, o conto anos antes de Perrault, Basile publicou a primeira versão
ganhou mais uma censura, por exemplo, a literária de impacto popular de contos de
omissão da maternidade de Rapunzel no deserto. fadas, o Pentamerone, onde figurava a história de
Na verdade, a própria versão dos Grimm já é Petrosinella
modificada nesse sentido, visto que a pergunta que a (salsa, em italiano). Nesta, uma grávida é
jovem faz à bruxa - pela qual esta descobre seu descoberta roubando a horta de uma baixa, que lhe
plano de fuga - deixou de ser alusiva a uma gestação, faz prometer o bebê em troca da vida. De
como vimos antes. Essa última transformação já posse da menina, a enclausura numa torre, de
responde ao direcio• namento dessa obra de onde ela é resgatada por seu príncipe, após vários
encontros eróticos.
compilação folclórica para o público infantil. Isso
não é uma novidade, a Bela Adormecida passou Embora o autor italiano tenha enfatizado o amor
pelo mesmo crivo. Sua história hoje dos jovens e a engenhosidade da heroína para escapar
da torre, as versões seguintes já foram introduzindo o
sofrimento na vida do casal. Sessenta e um anos depois,
64
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Cors o
ameaça d e morrer ,
Um desejo imperativo
esde o mo m ent o em qu e o pai aceita o
trato e a menina é levada pela vizinha q u e a
batiza de Rapunzel - co m o alusã o ao
objeto pel o qu e foi trocada -, os pais
biológicos desapa •
recem da história. Essa feiticeira é muito diferente
da s ogras devoradoras de criancinhas e da s bruxa s más
de outros contos de fadas, ela se comport a c o m
o um a verdadeira e atenciosa mãe . Sua malvadeza nã
o mostra expressão mágica, ne m seque r se
co m p re e n d e o qu e apavorou tanto o pai de
Rapunzel, já q u e em n e n h u m momento ela faz
propriament e um feitiço. Se algué m realiza um ato
mágico, esta é Rapunzel . q u e cura a cegueira do
príncipe co m suas lágrimas.
A fúria da bruxa é se m pr e o resultad o de
sentir- se invadida, é mais egoíst a que mágica ,
seu s ato s malvados sã o conseqüênc i a da
dificuldade de ver a menina crescer e do m e d o
de perdê-la . Ela vocifera contra q u e m e n t r a e m
su a h or t a o u t o r re , s e a deixassem em paz,
aparente me nte , ela n ã o faria ma l a ninguém.
Provavelmente , a c h a m a m o s de brux a po r falta
d e um a palavr a m elh o r par a um a m ul h e r
poderosa, intransigente e egoísta.
A madrasta e a m ã e sã o pe rs o na g e n s
conexas , porque amba s q u e r e m a satisfação de
seu s desejo s num esquem a d e t u d o o u nada , vida o u
morte . A m ã e biológica exig e a verdura , s o b
65
levand o consig o a criança par a o túmulo . Já a
bruxa a m a su a filha, m a s s o m e n t e s e es s e
afet o lh e for exclusivo . Sentindo-s e traída,
expuls a aquel a a q u e m tant o s e dedicou ,
convencid a q u e n ã o lhe serve mais; de certa
forma, é c o m o se par a ela Rapunze l tivesse
morrido . Unidas pela intransigência de seu s
desejos, essas dua s personage n s materna s p od e m ser
compreen • dida s c o m o um a só . O process o d
o cont o vai nu m crescente isolamento da filha co m
a mã e até a separação radical, deixand o be m claro
qu e fora da torre uterina só há um deserto .
Essa mãe , além de querer a filha totalment e
para si, que r crer qu e é tud o para ela.
É inevitáve l pensa r qu e ess e co n t o
co nt e n h a algu m e c o d a história bíblica sobr e
a expulsã o d o Paraíso de Adão e Fva. Temo s
aqui um jardim-pomar maravilhoso , c o m o n o
Paraíso, o n d e s ó havia um a interdiçã o - nest e
cas o t a m b é m , ma s sobr e tod a a extensã o do
jardim-pomar da bruxa. No Paraíso bíblico, um a vez
burlad a a lei sobr e um vegetal interdito - a
maçã -, os dois sã o expulsos ; aqui idem, o pai e a mã
e biológicos sae m d e cena . Além disso, temo s outra
vez um a mulhe r incitand o um home m a quebra r as
regras. Nã o é o cas o d e um a re ed iç ã o d o
mito , ma s sã o elemento s e m jogo qu e permite m
raciocínios análogo s sobr e o s tema s d o desejo,
d a transgressão e d e u m castigo c o m o
paga me nto . Na história de Rapunzel, o ciclo se
repet e dua s vezes, já q u e o príncipe é pilhad o
r o u b a n d o a jovem, tal qua l ocorre u ao pai
co m os vegetais, e ambo s sã o c o n d e n a d o s a o
desterro.
O paraís o é, na visão de um a mã e
simbiótica,3 o q u e ela dá ao filho, ou a
com pletud e q u e sua relação e st a b e l e c e . Esse
pa ra ís o te m c o m o c o n t r a p o n t o a c o n d e n a ç ã o
a o deserto , q u e nã o poderi a ser melho r
m et áf o r a d a aride z qu e esper a o s
e x p u l s o s . D e q u a l q u e r forma, u m e l e m e n t o
de s s e paraíso , um a verdura , faz pape l de fruto
proibido ; já noss a heroína , g r a ç a s a u m
deslocamento , transforma-s e n u m substitut o
(Rapunzel-raponços ) d o objeto cobiçado. '
A exclusão do pai
feiticeira da casa vizinha e a mã e de
Rapunzel sã o mulhere s poderosas , cujos
desejos n ã o deve m ser negados , poi s a
cobiça da grávida era tã o impositiva quant o o
m e d o qu e a bruxa
infundiu n o pai d e Rapunzel. Esse po b r e homem ,
fraco co m o cab e à maior part e do s pais no s conto s d e
fadas, é u m joguet e entr e essas mulhere s exigentes:
um a que r raponços , outra que r Rapunzel. Sua mulher,
se morresse, levaria junto a filha q u e estava em sua s
entranhas ; já a
Fada s n o D i v ã - P sic a n á lis e n a s Hi st ó ri a s Infa n ti s
q u e o pa i vivenci e u m a e sp éc i e de mágoa ,
q u e muita s veze s
bruxa també m o fará perdê-la, levando- a para ser criada
long e dele. Ambas quere m o mesmo , porqu e
amba s sã o a mesma . Elas quere m o beb ê para si
e n ã o estã o dispostas a compartilhar, é um desejo se
m negociação . Q u e m desa par ec e é o pai, poi s el e
abdic a dess a filha p o r n ã o p o d e r satisfaze r a
su a mulher . Essa i ns ati sf aç ã o s e e x p r e s s a p e l
a e x i g ê n c i a d e m a i s raponços . n u m apetit e
insaciável q u e o deix a impo • tente . É c o m o se a
mulhe r dissesse : já q u e n ã o p o d e s me satisfazer, a
filha q u e virá será o me u objet o de satisfação. A
mãe , agora transfigurada na bruxa, anunci a ao pai o
víncul o simbiótico q u e irá ter c o m a filha e q u e ,
logicamente , o exclui. Rapunze l é a respost a para esse s
anseio s de grávida, a grávida co m e raponços , a
bruxa engol e a vida de Rapunzel . A diferença
entr e um a e outra é a existência do pai, b an i d o
da cena , junto co m a mã e biológica. Depoi s del e ter sid
o subju• g a d o pela bruxa, ningué m mai s ameaçar á
a s posse s do jardim ond e ela plantou Rapunzel para seu
usufruto
pessoal .
P o p u l a r m e n t e s e di z q u e , c a s o u m
d e s e j o alimentar da grávida nã o seja satisfeito, a criança
nasc e co m a cara daquil o qu e a mã e tant o
almejou. Pel o jeito, foi o qu e aconteceu : a
menin a ficou co m um n o m e qu e é a marca do objeto
q u e a mã e tant o queria . Mas q u e desejo é esse q u e
a grávida tem? Afinal, o q u e que r essa mulher, q u e
já está co m a barriga cheia? Teoricamente , uma
gestant e estaria plena , satis•
feita. A partir dessa perspectiva , cham a a atençã o q u
e ela queira tant o come r algo, mostrand o q u e seu apetit e
n ã o se satisfez co m o q u e lhe e n c h e o
ventre . Ela sab e precisament e o qu e lhe falta: come r um
a melancia às três da manhã , fruta q u e evidente me nt e
n ã o se te m em casa na ocasiã o ou ne m é época ,
po r e x e m pl o . O folclore sobr e o desej o
pere mptór i o da s gestante s é sábio, lembrand o qu e o
filho e s pe ra d o p o d e n ã o satis• fazer totalment e à mãe
, há algo q u e aind a lhe falta. Ainda bem ,
diríamos...
A s mulhere s geralment e deseja m a
gravidez , exibe m co m orgulh o a protuberânci a q u e torn a
pública sua condiçã o d e sexualment e desejada s e
demonstr a q u e ela foi agraciad a c o m o d o m da
maternidad e . O beb ê é herdeir o dess e orgulho :
incapa z d e anda r co m a s própria s pernas , locomove-s e
aderid o a o se u corpo , alimentando -s e d e seu s seios.
Nos caso s e m q u e a mã e fica fascinada ness a
possessão , el e será a m a d o e nq u an t o um a
continuidad e d o corp o d a mãe , enquan • t o nã o ameaç a
caminha r par a long e dele .
Q u a n d o u m casal é invadid o po r u m
terceir o elemento , o recém-nascido , nã o é incomu m
começ a no própri o curs o da gestação . A aparência de
plenitud e da grávida, alguma s veze s associada à recusa de
um a vida sexual mais animada , deixa o home m co m
um a sensaçã o d e exclusão . O nasciment o não
melhora as coisas: o recém-nascid o povo a a casa com
seu s objetos, seu s gritos e seu cheiro, incluindo, por
vezes , a p re s en ç a ostensiv a d a sogr a o u d e
outros estranho s na casa. A nova mã e passa o dia
seminua, ma s dess a vez n ã o h á n e n h u m apel o erótico,
apena s u m a font e d e leite . Ale m d i s s o , e x a u s t a ,
a mãe adormecer á co m o nen ê sempr e qu e tiver
oportunidade . Para o h o m e m , há algun s ca minho s
possíveis:
observar á tod o ess e circo a um a distância prudente ,
orgulhos o da paternidade , ma s estranh o a seu s rituais, o u é
possíve l qu e se id e nti fi q u e co m a mulher ,
com partilhan d o co m ela o s cuidado s materno s primá•
rios. De qualque r um a dessa s posições , precisará (ou
sentirá necessida d e de ) intervir, reconstruin d o a vida
erótica d o casal, l e m b r a n d o à mulhe r q u e aind a é
desejável, tirando- a d o s circuitos obsessivo s e m qu e
ela entra co m seu b eb ê . Por mais envolvi d o q u e esteja co m
mamadeira s e fraldas, o pai tend e a oferece r algu• ma
exterioridad e q u e areja a relaçã o c o m o b e b ê . As mãe s
principiantes entra m e m pen same nto s recorrentes e culposos
, e m qu e s e acusa m da s mai s variada s
insuficiências, alarmam-s e co m qualque r coisa e teme m a cad
a s e g u n d o pela vida d o b e b ê . Nada c o m o u m pai
para relativizar essa s p e q u e n a s , ma s sofridas lou• curas .
Porém , n e m se m p r e o h o m e m está pront o para exerce r tal
função . Ele p o d e t a m b é m entra r num a disput a c o m
o b e b ê , colocando-s e n a me s m a posição : chorã o e
exigente , ou aind a terá o recurs o de desistir, d e i x a n d o
su a m u lh e r e ntr e g u e a o pape l d a bruxa , vivend o
exclusivament e para o b e b ê . Muitas vezes, est a é a
ocasiã o par a providencia r um a relaçã o
extraconjugal , fazend o um a co n ve ni e n t e separa çã o
entr e a mã e e a mulhe r desejada , q u e ele nã o suport a vê-
las fundida s nu m a me sm a pessoa .
68
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Co rs o
As tranças
s cabelos, c o m o p o d e m o s constatar a o long o
da história, nunc a foram indiferentes.
Cada cultura, cad a época , decidi u o
significado de cortá-los, deixá-los cresce r ou
penteá-lo s
d e d ete r m in a d a forma , m a s se u u s o s e m p r
e foi simbólico.10 Seu corte foi um m o d o muit o
populariza d o de subjugar o inimigo, de impo r a
algué m um castigo desonroso, mas també m u m sinal d e
respeit o extremo , d e veneração. Cortavam-s e o s
cabelo s e m sinal d e luto (e muitas veze s era m
enterrado s junt o co m o ent e perdido); sua raspagem , a
tonsura , é t a m b é m o m o d o de os religiosos mostrare m
submissã o a Deus . Por isso, não pode mo s passa r
incólume s pel a relevância da s tranças nessa história;
elas foram um el o entr e a brux a e a moça, cortá-las
foi a castraçã o do q u e a relaçã o tinha de fálica.
Nesse caso, se algué m se reivindicava possuidor a
desse sempr e valioso objeto (o cabelo , as tranças ) era
também a bruxa. Cortá-lo é um a forma de
castração , mas num sentid o mai s amplo , n ã o a pe n a s
significando a ablação d o ór g ã o sexua l
masc ulino , c o n s i d e r a d o como uma espéci e d e
símbol o d o falo, d e represen • tação privilegiada
deste . Fálico, no jargão psicanalítico,
69
70
D i a n a L i c h t e n s t e i n C o r s o e Mari o C o r s o
fada da represa, us a n d o uma terminologia mais precisa,
seria entã o um a sereia,
Numa noite em q u e conviviam , aind a incógnito s
um para o outro, o pasto r pe g o u um a flauta e
toco u uma canção bela e triste. Imediatament e , a
pastor a rompeu em prantos, d ize n d o que , em um a da s
últimas vezes que vira seu marido , ela tinha tocad o
essa triste música. Só entã o ele a olhou , a
re co n he c e u , e ela também. Era com o se um vé u
tivesse caíd o de a m b o s os olhos, possibilitando q u e
enfim se vissem. Dess e dia em diante, foram felizes
par a s e m pr e .
Um prisioneiro da sereia
ste conto é, na fantasia predominante ,
uma versão masculina da história de Rapunzel.
Nas duas histórias, desd e o nascimento , o pai
nã o
ignora qu e o filho vai pertence r a um
ser feminino mais p o d e r o s o . Em ambas , o
ve r da de ir o problema só começa q u a n d o um terceiro
ve m de fora e ameaça formar um nov o núcle o
amoroso . É ness e momento que a violência do laço com
a mãe-fada mostra a sua força. No primeiro caso,
Rapunzel é expulsa, só terá registro em seu amo r
se for poss e exclusiva da mãe. No caso masculino,
a mã e reté m o filho para si, impedindo-o de amar
outra mulher.
Esse rapaz foi trocad o pela riqueza do pai,
mas acreditamos qu e é outr o significado de
riqueza q u e está em jogo: ele ve m a ser a riqueza
da mãe . O pai que fique lá com as suas riquezas
mundanas , ma s deix e o filho para ela. Se essa for a
troca, admitimos q u e a fada é um dupl o mater no
. Afinal, ela a p ar e c e pel a primeira vez no dia do
nasciment o e só vai reaparece r para impedir o
envolvimento do filho co m outra mulher, do que se
depree nd e q u e ele já lh e pertence u po r todo s esses anos.
Senão, po r que , justamente no m o m e n t o em que
surge essa jovem, a fada ve m cobrar sua dívida? Parece-
nos qu e ela n ã o suporta qu e algué m venh a a
pegar a sua riqueza. Ela já conseguiu , mediant e o trato
inicial, tirar o pai do caminho , po r q u e viria
agor a a suportar uma concorrente?
No folclore europeu , c o m o em tantos outros,
as águas pode m ser reinos de seres mágicos. De um a forma
geral, águas calmas, c o m o as de lagos, represa s e fontes,
costumam ser habitado s po r seres femininos; e n q ua n t o
nas águas agitadas, com o as de rios e
corredeiras, se encontram seres masculinos. Ambo s sã o
sedutores , mas as criaturas mágicas femininas -
sereias ou ondina s - têm na seduçã o sua principal
característica: costuma m encantar jovens homen s qu e s e
pe r de m na s água s par a nunca mais sere m vistos. Essa
ou , pel o menos , s e comport a c o m o tal. Com o
sabemos , a s sereias prende m amorosament e o s homen
s n u m reino seu. A partir disso, eles vã o viver só
para elas, se n à o os matarem . Com o o enfeitiçado
só vai ter olho s para a sereia, nad a mais lhe
interessa na vida, a mort e p o d e ser interpretada
co m o uma morte social. Mediante essa tradição
folclórica, é natural qu e a prisão do h o m e m
enfeitiçado n à o seja um a torre, ma s a água. Neste
meio , totalment e envolvente , o herói esper a qu e
algué m de fora poss a vê-lo para ajudá-lo a fugir.
Além d a mã e e d a fada, q u e s e
alterna m n o m es m o papel , há um a representaçã o
diferente da figura materna . Trata-se da velha
bond osa , ou seja, a face da mã e permitind o q u e
o filho poss a ir embora . Ela é velh a p o r q u e
sab e q u e seu t e m p o já se foi. É ela q u e vai
ter u m diálog o simbólic o sobr e don s
femininos co m a futura esposa , q u e tenta dar à
sogra as prova s d e q u e possu i o s dote s
feminino s necessário s par a g a n h a r a d is p u t a
po r ess e home m . O s presente s entregue s a
o se r a q u á t i c o sã o representante s do s
encanto s e da s lides femininas. O pent e está
ligado à b el ez a , afinal ela necessitav a
pe nt e ar- s e a nt e s d e entrega r o objeto . A flauta
lembra a música, ma s tam• b é m o encant o da voz,
do canto . Aliás, cantar é o qu e as sereias fazem
de melhor. É claro qu e a sereia é a outra, ma
s se a futura espos a nã o tiver nad a de sereia, po r q u
e ess e h o m e m trocaria de fada? Por fim, a roca
é o símbol o do trabalh o feminino po r
excelência em é p o c a s passadas , alé m do s
encantos , um a mulhe r precisava prova r q u e
sabia trabalhar.1 3
Nessas dua s histórias, depoi s da libertação, temo
s u m m o m e n t o d e cert o desenc ontr o e d e uma
cegueira, eles s e olham , ma s nà o s e vêem . H á u m tip o
d e encan • ta ment o q u e precisa cair par a q u e o
amo r ressurja. A jovem espos a tev e seu s encontro s
oníricos e reais co m a velha mulher, q u e lhe
ensino u as artes da conquista , ma s n à o p ô d e
garanti r a uniã o d o casal. A última
transformaçã o em anfíbios,14 pela qual ela lhes
salva a vida, t a m b é m o s separa , a p o n t o d e
esquec ere m-s e d a image m u m d o outro .
O olha r é q ua s e se mpr e associad o à paixão .
Nas histórias d e amor, sempr e u m capítul o
privilegiado s e dedic a à primeira visão q u e u m
ama nt e te m d o outro . Na história de Rapunzel ,
po r d u a s vezes , o príncip e n à o p o d e vê-la,
ma s p o d e escutá-la. Nesta outra, o s a m a nt e s
alternam-se , resgatando-s e atravé s d o so m da
flauta.
Essa temp orad a pastoril ajuda-no s a re-
significar a part e final d o cont o d e Rapunzel ,
poi s tenderíamo s a pensa r q u e foram soment e
o s malefícios d a brux a q u e impedira m a felicidade
d o casal, cas o n ã o conside -
Fada s n o D i v ã - P s i c a n á li s e n a s Hi st ór i a s Infa n ti s
múltiplas tarefas n a gincan a d e conquista r a
capacida d e d e pertence r a u m casal. Amar é
trabalhoso .
rá ss e m o s a s limitaçõe s d e c a d a u m d ia n t e d
e u m relacionamento . O s doi s pastores , po r
ex e m pl o , n ã o foram impedido s d e s e encontra r apena s
po r u m agent e externo , tiveram d e vence r també m
u m a dificuldade interior: estavam cego s um par a o
outro .
Após a inundação, ainda estava reservada para
os amante s a experiência da solidão e da
responsabilidade, marcas do pastor, qu e anda só, cuidand o
de seu rebanho . E com o se as metamorfoses
continuassem, pois ainda nã o estavam prontos para
outr o tipo de relação.
É bastante comum , na experiência do s casais, estes
beneficiarem-se do s impedimento s q u e a relação possa
sofrer (proibiçõe s familiares , distância s e
outros) . Paradoxal ment e , sã o dificuldade s
e x t e r n a s q u e contribuem para o bo m andament o da
relação. Algumas vezes, depoi s d e terem lutado par a
vence r tud o o q u e o s i m p e d i a , s e d e s c o b r e m
j u n t o s ( e nf i m s ó s ) e desencantados . Não estavam
prepara do s par a enfrentar u m a o outro , se m a
interme diaç ã o d a família, d o s obstáculo s d o
trabalho , d o es tu d o o u d a distância. São
tomado s d e dúvida s sobr e o qu e sente m
e ameaça m separa r aquil o q u e pareci a tã o c oeso
. À s vezes, torna-se necessári o u m m o m e n t o d e
solidão, afastar-se emocionalment e , par a enfim,
amadurecido s , p o d e r e m voltar a se encontrar .
Q u a n d o o s amante s dest e cont o com eçara m
sua relação, o caçado r receber a um a casa d o
senho r par a q u e m trabalhava; portanto , tev e de
certa forma um apoi o paterno . Porém, aind a
vivia so b a ameaç a da fada d o lago um a mã e
possessiva so b cuja m e n ç ã o crescera. Nã o h á po r
q u e considera r irrelevante q u e ele tenh a se
esquecido dess e risco q u a n d o foi lavar as mão s n o
lago. Acaba assim fazend o u m laps o similar a o d e
Rapunzel. N o m o m e n t o d a partida, q u a n d o vai
viver co m a mulhe r amada , ess e jovem vacila e entrega -
se, uma última vez, a sua antiga fada.
A preparaçã o para a nova vida de um jovem casal
envolve novament e a família, q u e r seja na organizaçã o
de uma festa de casament o ou de um lugar para morar, há
uma nova convocaçã o par a a b ê n ç ã o e a
tutela. Foi nu m m o m e n t o c o m o ess e q u e o s
doi s jovens , Rapunzel e o caçador, vacilaram. Mediante
esses lapsos
- expressã o d e fraqueza diant e d e seu s propósito
s - , a saída só p o d e ser árdua , c o m o foi par a esse s
casais, cuja uniã o será tã o mais difícil q ua n t o for
a força do vínculo familiar q u e terã o d e romper .
É importan t e observa r q u e o s outros , a m u l h e r
d o c a ç a d o r e o príncipe d e Rapunzel, n ã o passara
m im pu ne s po r ess e processo : també m tiveram
a relação metafórica do vegetal com a interpretação
da história, da planta autogâmica com a mã e
totalizante, não deixa de ser no mínimo
Notas curiosa. In TATAR, Maria. Contos de Fadas. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1. Raponço ou rapôncio é uma denominaçã o comum a
duas plantas campanuláceas, cujas raízes se comem com o 2004.
salada. Do italiano, raponzo ou raperonzo. 5. SPITZ, René A. O Primeiro Ano de Vida. São
Paulo: Martins Fontes, 1983, p.193.
2. GRIMM, Jaco b & Wilhelm. Contos de Fadas. Belo
6. O carnava l brasilei r o cel e bri z o u a
Horizonte: Villa Rica Editora Reunidas, 1994.
marchinh a carnavalesca Mamãe eu quero (de
3. "O conceito de simbiose foi criado por
Margareth Mahler, tanto para dar conta de uma fase Jararaca e Vicente Paiva, 1936): "Mamãe eu
importante na evolução da relação mãe-filho, quant o quero, mamã e eu quero, mamã e eu quer o
para dar cont a d o f u n c i o n a m e n t o p s í q u i c o d a mamar, dá chupeta, dá chupeta, dá chupeta pr
criança psicótica. Trata-se mais de uma polaridade o beb ê nã o chorar". Neste moment o de encenar
do que de uma forma clínica particular (...)." In: fantasias, fica evidenciado que , pela vida afora, no
LEBOVIC1, Serge . Traité de Psychiatrie de fundo da nossa alma, ainda mora um beb ê chorão .
L'Enfant et de L'Adolescent. Paris: Presses 7. "Para a moça, a puberdad e assinala o qu e pod e ser
LIniversitaires de France, visto pelo s outros. (...) co m as
1985, p. 196 (Lês Psiychoses Infantiles, verbete escrito por modificações da silhueta, em particular o
René Diatkine e Paul Denis). crescimento do s seios, a image m d o corp o
•i. Maria Tatar insere uma associação desse vegetal cora a está comprometid a co m dois olhares: a busca
história. S e gu n d o o crítico Joyc e Thomaz , o de uma conformidade a um model o socialmente
raponç o seria uma "planta autogâmica, qu e fertiliza a definido, cujas pistas ela pod e encontrar nas revistas
si mesma, tend o ainda uma coluna qu e se divide em femininas (...); po r outro lado, com a demand
dua s se não-fertilizada, e as metade s enroscam- se a de uma confirmação pelos outros, tanto po r
com o trança s ou cacho s na cabeç a de uma sua família com o po r seus amigos, de qu e
donzela, e isso poe o tecido estigmático o estatuto de seu corpo mudou . (...) Para o rapaz,
feminino em contato com o pólen masculino na na
superfície exterior da coluna". Procedente ou não,
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D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o
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D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o
sem tocá-la. N e n h u m a c o n s e g u e , m a s a
menina
. trapaceia as companheiras , já q u e ela pul a melho r q u e
as outras e faz parece r q u e ga n h o u , ma s sab e
q u e deixou cair uma folhinha. Rapidamente , ela
engol e essa folha para garantir sua vitória no jogo .
T e m p o s depois se descobr e grávida. Desesperada ,
poi s nã o sabe como isso ocorreu , ela recorr e às
sua s amiga s fadas2 em busca de uma explicação. Estas
lhe informam que ela engravidara magicament e da
folha da roseira. Ela passa então a ocultar primeir o a
gestaçã o e depoi s a menininha qu e nascera, a q u e m dá
o n o m e de Lisa. Leva-a até as fadas, em busca de sua
be n ç ã o e proteção , e elas lhe dã o muita s
q ual id a de s . Um a da s fadas, porém, apressad a
par a c h e g a r a ess a e s p é c i e d e batismo, torce
o pé e, movid a pel a dor, rog a um a praga. A
maldição proferida era q u e Lisa, ao atingir 7 anos,
enquanto estiver s e n d o pentead a pela mãe , mor • rerá
com o pent e enterrad o em seu s cabelos . Chegad a a
funesta ocasião, a maldiçã o se confirma. A
rainha guarda sua filha, q u e parec e morta, ma s
m a nt é m as cores da vida, em sete caixas de cristal, um a
dentr o da outra. Essa urna é mantid a escondid a
pel a mã e em um remoto quart o do castelo, cuja chav
e leva s e m p r e consigo. Tomada de tristeza pela perda ,
a m ã e morre , não sem antes pedir, em seu leito de
morte , q u e seu irmão custodiasse a chave , se m
jamais abrir a port a do respectivo recinto.
Passados algun s anos , o irmã o casa-se co m um
a mulher perversa e ciumenta . Num a ocasião , el
e se ausenta para uma viagem e confia a chave ,
co m as devidas recomendações , par a sua esposa . É
claro q u e a mulher abr e a porta e encontr a a urn a
e nel a um a jovem (que na realidad e é sua
sobrinha) . A menin a crescera nesses ano s d e sono ,
assim c o m o seu caixã o transparente, q u e s e expandir a
c o m ela. Enlouquecid a de ciúme, pel o qu e julga ser
um objeto de culto do marido, ela arranca a jovem de
seu s o n o pelo s cabelo s e, com isso, faz cair o pent e q u e a
mantinh a enfeitiçada. Ao acordar do seu son o
mágico , Lisa exclama : "Oh . minha mãe!". Ao q u e
obté m c o m o resposta : "Vou te dar mãe e pai!".
Tratando-a c o m o um a escrava, a espos a do tio a submetia
a t o d o o tip o de trabalho , de maus - tratos e recobr e
seu corp o de trapo s e sujeira. Q u a n d o o tio retorna,
a espos a lh e cont a q u e Lisa er a um a escrava
qu e lhe havia sid o enviad a pel a sua mã e e,
sendo uma jove m perversa , deveri a se r
sistemati • camente castigada.
Certo dia, ao partir par a um a viagem, o tio
p e d e a todos no castelo q u e façam algum a
e n c o m e n d a , a jovem escrava p e d e u m a boneca ,
u m a pedr a d e afiar e uma faca. A bonec a servia
c o m o ouvint e de seu s
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sofrimentos e a pedr a par a afiar a faca, q u e seria
usad a par a p ô r fim à su a vid a miserável .
O tio termin a es c uta n d o su a história triste n o
m o m e n t o e m q u e ela a narrava para a b o ne c a ,
co m isso i m p e d e que ela se mat e e a mand a par a
casa de pessoa s de sua confiança, para recupera r a
sa ú d e e a beleza . Q u a n d o a jove m finalmente
está bem , ele realiza u m b a n qu et e e m sua
homenage m , apresenta- a à sociedad e com
o s u a sobrinh a e expuls a sua pervers a mulher .
Por fim, o tio providenci a u m b o m marid o para
Lisa.
Essa narrativa serv e par a q u e possa mo s
pensa r o q u e ela teria e m se u cern e par a ser
interpretad a c o m o a or ig e m de A Branca de
Neve. As trajetórias da s pe rs o n ag e n s n a
verdad e s e assemelha m apena s pel o
desapare cim en t o precoc e d e sua s mães . N a
história d e Basile , p a r e c e h a v e r al g o d e
p e c a m i n o s o n a c o nc e pç ã o , po r mai s mágic a
q u e seja, d e Lisa, poi s sua mãe , q u e a tev e
e m função d e um a travessura, precisa oculta r
a menina , sugerind o q u e sua orige m foi de
algum a forma escusa . Esse foi um el e m e nt o
q u e s e perdeu , poi s e m nad a lembra o
nasciment o d e Branca d e Neve .
Lisa c ha m a a tia de mãe , t o r n a n d o
possível o deslizament o dest a para o pape l
materno , assim c o m o se u tio e m s eg ui d a
a s s u m e u m luga r p at er n o , a o reestrutura r se u
luga r social e providenciar-lh e u m casamento .
Ta mbé m n ã o s e mantev e nas versões poste• riores a
suposiçã o da tia de que haveria algu m tip o de amo r
entr e se u marid o e a jovem adormecida , orige m de
se u ciúm e vingativo . Essa trama ce d e u
lugar a alusõe s b e m m e n o s incestuosas. Com o
veremos , n o cont o d o s irmão s Grimm, nad a d
á marge m seque r à suposiçã o de algu m amo r
familiar. O pai desapare c e ou é se m importância , e
a madrasta entra nu m a disput a d e belez a c o m a
enteada , intermediad a pel o ascético espelh o
mágico. Tud o indica qu e a passage m d o temp o foi
d e c a n t a n d o histórias cad a vez mais simbólicas
e metafóricas, necessária s à nov a sensibilidad e
m o d er n a e à p r e o c u p a ç ã o co m o q u e se
está oferecend o às crianças .
C o m o antepassada , Lisa serv e para
representa r a fundaçã o d e um a genealogi a d e
joven s mulhere s q u e terã o d e s e salvar d e praga s
e maldades , proveniente s d e q u e m deveri a
abençoá-la s e cuidá-las. Elas de v er ã o amad urece r
isoladas, oculta s dessa s terríveis invejosas. Por fim,
par a encontra r u m amor, terã o ante s d e passa r po r
u m s o n o enfeitiçado. Vamo s adiante , então ,
a o encontr o d e Branca d e Neve e Bela
Adormecida , q u e herdara m del a parte s da
história e sobrevive m hoje p ar a alimenta r
d e v a n e i o s a m o r o s o s e m pe ss o a s d e toda s a s
idades . Co m elas, p o d e m o s pensa r sobr e a s
Fadas no Divã - Psicanálise nas Histórias In fanti s
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Fada s n o D i v ã - P s i c a n á li s e n a s H is tó ri a s Infan ti s
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D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Co r s o
A maçã envenenada
espelh o tud o sab e e acab a reveland o á baix a
qu e a belez a de Branca de Nev e segu e viva,
assim com o su a localizaçã o . A
m a dr as t a
resolve q u e s e alg o te m d e ser bem-
feito tem de ser feito pessoalment e e part e par a
en v en e n a r a princesa. Disfarçada de velha ou de
cam pon esa , tira d o seu arsenal d e maldade s u m ve ne n
o p o d e r o s o q u e oferece a ela, so b a forma de um a
maçã .
O disfarce de velha é um a sábia forma de engana r
Branca d e Neve, poi s d o s velho s p o u c o h á par a temer.
Costumeiramente, o s adolescente s encontra m no s avó s
abrigo para os conflitos resultantes do narcisismo ferido
dos pais. No velho , p o d e m reencontr a r o
confort o daquele amo r matern o perdido ,
a d m i n i s t r a d o p o r quem já se apaziguo u relativo
ao s conflitos do sexo . A camponesa seria um a
mulhe r se m o s atrativos d e uma nobre, tosca e
voltad a par a o trabalho , portant o fora do circuito
da se d uç ã o .
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84
D i a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o C o r s o
princesinh a se u d o m e uso u e n tã o su a
magia par a ameniza r a maldição : graça s a ela a
mort e se transfor• mo u n u m sécul o d e s o n o .
O rei m a n d a quei ma r a s rocas d o reino .
Mesm o assim, 15 ano s depois , ela encontr a um
a velha ( q u e n ã o sabia d a proibição ) fiando
l i n h o nu m a torr e d o castelo. A menin a pergunta ,
tod a a curiosa, o q u e era aquil o e p e d e par a
experimenta r o instrument o q u e par a ela era
novidade . Mal pego u o fuso, feriu-se e caiu
n u m s o n o centenário . Q u a n d o ficam s a b e n d o d a
tragédia, as fadas encanta m o castelo par a q u e
todos , m e n o s os pais, d u r m a m junto co m a princesa .
Magica- mente , a vegetaçã o em volta faz um a cerca de
espinhos , q u e ningué m co nsegu e ultrapassar.
Ao fim de ce m anos , um príncipe q u e
foi caçar po r aquele s lados encontro u o castelo. Sobre
este castelo havia um a lend a d e q u e era habitad o po r
uma beldad e ador meci d a , par a cujo resgate
estava destinad o u m príncipe. Entrand o n o
castelo sem encontra r n e n h u m obstáculo , poi s a
vegetaçã o espinhos a se afastava só para ele e se
fechava em suas costas, encontro u a prin• cesa .
E n qu a nt o el e a conte mp la v a p a s m o co m su a
beleza, ela despertou , pois havia chegad o o fim de
seu encantament o . Co m o a atração é recíproca, eles
come • ça m um romance . Esse caso cie amo r fica
clandestino po r dois anos , o temp o necessário
para q u e nasça m um casal de filhos, chamado s de
Aurora e Dia. Q u a n d o o pai do príncipe morre ,
ele herda o tron o e assum e publicament e o
relacionamento , para qu e nã o lhe fosse exigido casar
novamente .
Te m p o s depoi s, surge uma guerra, o
rei é obrigad o a partir, de ix a n d o o rein o e
a espos a ao s cuida do s de sua mãe .
Infelizmente, a sogra de Bela Ador me cid a er a
d e s c e n d e n t e d e um a linhage m d e ogro s e
q u e r c o m e r o s netos . Ela o rd e n a matá-los ,
ma s o criad o incum bi d o da tarefa lhes p o u p a
a vida, oferece carn e de caça par a a av ó
canibal e os oculta e m su a casa. Nã o contente ,
aind a m a n d a prepara r u m prat o co m a carn e
da nora , q u e é salva da mes m a forma q u e seu
s filhos. Felizmente , a s tanta s artimanha s par a
enganá-l a vã o d a n d o certo; n o final, o marid
o volta, e a m ã e malvada , surpreendid a em
sua vileza, s e atira n u m p o ç o d e víbora s o n d e
encontr a se u fim. Os irmã o s Grim m n o s
legara m A Bela Adorme•
cida q u e hoj e é a versã o mai s c on h ec i d a dess a
trama . A ênfas e está na relaçã o c o m os pais , o
desej o de ter a filha, su a posterio r maldiçã o
e se u despertar . As aventura s q u e o c o r r e m
a p ó s o desperta r d a jovem , si m p l e s m e n t e
inexiste m n e s s e relato . N o c o n t o , a se q üê n ci
a é c o n h e c i d a p o r t o d o s n ó s : u m casa l rea l
esper a a ns io s a m en t e par a ter u m herdeiro , u
m dia
Fada s n o D i v ã — P s i c a n á l i s e n a s Hi st ó ri a s Infa nti s
e ela me s m a vira
um a r ã a p a r e c e d u r a n t e o b a n h o d a rainh a
e lh e anunci a q u e ela terá urna filha. Dito e
feito, nasc e um a bela me nina . O s reis d ã o um a
g r a n d e festa d e batizad o e convida m t a m b é m as
fadas. C o m o o rei n ã o tinha prato s d e o u r o
par a toda s (s ó tinha 12), u m a ficou d e fora.
Essa fada e x cl uí d a , a d é c i m a terceira, cheg a à
festa m e s m o se m se r convida d a e, na sua fúria,
amaldiço a a menin a par a q u e n ã o viva mais q u e
15 anos . Ao che ga r a essa idade , ela estaria condenad
a a espeta r o d e d o nu m fuso e morrer . Por sorte
, um a da s fadas n ã o havia d a d o o se u d o m
e converte u a mort e e m u m s o n o q u e
imobilizaria a princes a po r ce m anos .
Nessa versão, t o d o o castelo, incluind o seu s pais,
ador mec e junto co m a princes a e começ a a
cresce r uma cerca d e espinheiro s a o redo r d o
castelo, q u e o cobr e inteiramente. Cria-se uma
lend a n o local q u e no tal castelo encanta d o vivia
a Bela Adormecida . E, d e s d e e n t ã o , assi m ficou
s e n d o c h a m a d a . Muito s príncipes tentara m chega r
a o castelo, mas acabava m desistindo de atravessar
o espess o espinheiro . Alguns qu e insistiram acabara
m m or re n d o . Quand o o praz o estava para
acabar, surge u m príncip e q u e n ã o te m m e d o
de atravessar a cerca de espinhos . Na verdade , nã o
precisa fazer grande s esforços, ele é de certa forma
escolhido , pois a o chega r pert o d o espinheiro , este s e
abr e em flores e o deixa facilmente passar. Encontrand o a
beldad e q u e lhe tinha sid o predestinada , el e
fica subitament e apaixo nad o e a beija. Apó s o
beijo t o d o o rein o desperta , e eles se casa m e vivem
felizes até o fim de seu s dias.
O d e s e n h o d o s Estúdio s Disne y traz-no s
um a Bela Adormecid a já nu m viés romântico , poi s
a livra dessa passividad e absoluta . Aqui o s dois
ap ai x o na d o s se escolhe m ante s q u e ela sucumb a
ao feitiço. Nessa versão, ela fica escondida , ao s cuidado
s da s boa s fadas, num a caban a na floresta até os
15 ano s par a estar a salvo da s maldade s da
bruxa . Desd e o c o m e ç o , a malvada é uma
bruxa e n ã o um a fada - um a velha senhor a q u
e havia sid o p r u d e n t e m e n t e excluíd a d a festa,
pois dela nã o s e esperav a nad a d e bo m . Durant e se u
t e m p o d e es c o nd er ij o n a floresta , a pr in ce s a
encontra , po r acaso , o príncipe ; os doi s jovens,
se m sabe r q u e já estava m prometid o s entr e si
pela s sua s famílias, s e apaixonam . Q u a n d o vã o ter
d e cumpri r o desígni o d o s pais, j á s e apropriara m
d o desej o deles , e entã o o final é feliz, poi s t ud o
é conciliado .
Mas Disne y o p e r a a lg u m a s m u d a n ç a s
imp or • tantes: o e n r ed o ganh a are s de Rapunzel , poi s a
brux a trança a Bela Adormecid a n u m castel o
inacessível, os espinheiro s estã o a se u c o m a n d o ,
deparando-se com os criados adormecidos, surpreen•
didos pelo sono mortífero que os condenou
a só despertar junto com a princesa. Dessa forma,
um dragão que impede a passagem do príncipe. Agora o
não só a mulher espera imóvel, como seu mundo
príncipe não encontra um caminho livre, ele tem de vencer
aguarda um novo amo para voltar a girar. A
os espinheiros e matar o dragão, com uma espada
entrega da Bela Adormecida é completa,
mágica fornecida pelas fadas, para chegar à princesa e
nenhuma princesa oferece tanta passividade a um
desencantá-la junto com seu reino. Embora a salvação esteja
homem como ela.
na força e na determinação do homem que escolheu essa
Apreciamos os amados em geral dormindo, não
princesa, ela já o havia explicita• mente escolhido
há mãe que não tenha ataques de ternura ao ver seus
também. Esse desenho animado não exime os heróis dos
anjinhos adormecidos. É extremamente
desígnios do destino, de serem joguetes na luta do bem
sedutora a visão dos rostos corados, os lábios
contra o mal, mas se empenha em ressaltar sua
entreabertos, a respiração tranqüila dos seres
capacidade de determinação, tanto na escolha amorosa
entregues ao sono, sem controle sobre seus
dos jovens quanto na capacidade de luta do príncipe.
corpos, inconscientes da força dessa presença
apaixonada que os possui com os olhos. O filho
e o ser amado adormecidos são perfeitos, são
Uma passividade absoluta possessões inermes, desarmadas, à mercê da nossa
as princesas dos contos de fadas, a Bela idealização.
Adormecida é a mais passiva, a começar por seu No amor, a mulher parece se colocar sempre o
nome. Sua característica principal é a dilema de que será bela enquanto se fingir de morta.
beleza inerte, objeto de cuidado e de con• Ela própria tende a narrar, para si e para os
templação por parte da Corte e do seu príncipe, que vem a outros, uma situação amorosa dando ênfase no
conhecê-la no sono enfeitiçado. Ela compartilha dessa impacto que produziu no outro, no desejo que
sedução passiva com a Branca de Neve e com Tália, que suscitou, mais que daquele sentido por ela. Embora as
cativam seus príncipes nesse estado de mortas. A mulheres modernas possam incluir seu desejo no
Bela Adormecida tem como túmulo o seu paláci o relato do desenlace de
enfeitiçad o . o prí n ci p e ch eg a até ela
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D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o
O sangue necessário
reviravolta da história é feita, c o m o é c o m u
m ness e tipo de relato, po r alguma
transgressão: a Bela Adorm ecid a se pica
p or q u e nã o devia
toca r o fuso. For mai s q u e a proibiçã o
tenh a tid o o objetivo de protegê-la, assim c o m o a
impost a à Branca de Neve, de n ã o abrir a porta
par a estranhos , trata-se d e algum a forma d e
um a o r d e m q u e n ã o é o b ed e ci d a . F.ssas
moci nha s s e s u b m et e m a o perig o porqu e sã o
desobedientes . Elas fazem o qu e nã o devem , ma s um a
maldiçã o anterior é a orige m da interdição, e é
niss o qu e devemo s no s centra r par a
deslinda r a história. A maldição prescrev e algo
q u e o futuro n ã o poder á evitar, c o m o crescer,
ama r e partir.
Um a fada, um a brux a o u ge n er ic a m en t
e um a mulhe r má, n ã o q u e r q u e a princes a
viva mai s d e q ui n z e anos . A o completa r ess a idade
, espetar á o d e d o e m um a roca, sangrar á e
morrerá . Aqui, ma s d e um a forma be m
disfarçada, a história s e aproxim a d a d e Branc
a d e Neve . É u m a substituta malévol a d a
mãe , m o v i d a pel a força d o ó d i o p o r n ã o
te r u m luga r
Fada s n o D i v ã — P s i c a n á l i s e n a s História s Infanti s
A morte necessária
o s ritos d e passagem , e m várias tradições,
existe um a repetiçã o facilmente constatável: a
passage m da existência anterior par a a que
se terá pós-ritual. A vida depoi s do rito
de p a s s a g e m é s e p a r a d a d a a nt er i o r p o r u m a
mort e simbólica e, nã o em pouca s tradições, os
neófitos até g an h a m u m nov o nome , poi s s e trata
m e s m o d e uma nov a existência . Com o sã o
so ci e da d e s c o m m e n o s degrau s etários qu e a nossa, morr e
a criança para emergir o adulto, se m fases intermediárias.
O q u e enten de mo s
D i a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o C o r s o
desperta m
O sono necessário
c o n t o , n a v e r s ã o d e Perrault , t e m
d o i s m o mento s d e adormeciment o , d e
latência. O primeiro dele s é o s o n o da
Bela, q u a n d o
ce m ano s a separa m da criança q u e foi
um dia. O segund o é o períod o de doi s ano s
em q u e a jovem e seu príncipe mantê m o casament o
em segredo . O fato de a relação ficar abrigada, oculta
no castelo já desperto , mas ador mecid o par a o
m u n d o , estend e a ela os benefícios do sono . A
moç a acordo u par a o amo r e para o sexo , mas para
o m u n d o é c o m o se ela ainda dormisse , pois ningué m
sab e deles , representan • d o u m s e gu n d o tipo d e
latência.
O primeir o períod o d e ce m ano s d e
adormeci • m ent o é a part e essencial dess e conto
, q u e n ã o se p e r d e e m nenhu m a versão .
Esse sécul o d e s o n o simboliza aquel e
distanciament o q u e separ a e m doi s te m p o s a
vida de pais e filhos. Em sua separação ,
imposta pel o crescimento , é inevitável a mort e do qu
e fomos un s para os outros .
Q u a n d o s e é adulto , o s pais p o d e m ser
acolhe - dores , n a melho r da s hipóteses , ma s j á
n ã o p o d e m vence r a s batalha s pelo s filhos c o m o
faziam q u a n d o eles era m p e q u e n o s . Ao filho cab e
enterra r a grandez a e o h e r o í s m o q u e , q u a n d o
criança , supunh a n o s progenitores . O s filhos
p o d e m até aind a freqüentar o s pais, ma s possue m u m
m u n d o próprio , q u e transcend e d e tal maneir a a
família d e origem , q u e este s n ã o c o ns e gu e m
c o m p r e e n d e r tod a a dim ensã o d o q u e s e passa na
vida do s mais jovens. As vivências em c o m u m
escasseiam-se , m u d a m n o filho o s referenciais
co m q u e ele interpreta o m u n d o . Muitas d e sua s
cond uta s e crença s serã o pautada s po r identificações e
experiên • cias colhida s e ocorrida s fora da vida
familiar.
É possível qu e um clima de amizad e e a vivacidade
distância, ma s de algum a forma ela aparecerá . A grande exceçã o
para esse afastamento ocorr e q u a n d o há netos pe q ue n o s , q u a n d
o o compartilhament o do s cuidados c o m eles , assi m c o m
o a c o n s t a n t e e v o c a ç ã o da s lembranças infantis, produ z
um a renovada familiaridade, Porém , mais uma vez, é po r
um período . Por mais amoros o qu e seja um vínculo
familiar, q u a n d o o filho começ a a amar, se instala um
estranhament o com seus pais. Q u a n d o isso ocorre, os
pais n ã o se reconhecem mais no s filhos e, nã o raro. acusa m
o parceiro amoroso dest e pelas modificações. Temo s aqui a
morte do filho c o m o p o s s e s s ã o , já q u e n ã o é mai s
u m a criatura totalment e concernid a ao s seu s pais. Co
m o tempo, um mur o nã o de espinhos , mas de
diferenças, se erige entr e as gerações , qu e p o d e ser
co m p e ns a d o com a
permanênci a d e u m afeto mútuo , o u não.2 0
Do lad o do jovem, o r o m pi m e n t o co m a família é
vivido c o m o um a forma de exílio. Um exilado é
algué m q u e vive em outr o lugar po r ter sid o de alguma forma
expulso , banido , da sua terra de origem. Ele po d e ter
en c on tr a d o abrig o no mais bel o e confortável paraís o terreno ,
ma s será inevitavelment e abatid o por um a sauda de ,
resultant e d e sua saída aparentemente involuntária .
O e s pa ç o geográfico q u e se habita na adoles•
cência é típico de um exilado : um lugar q u e sé) existe
p or q u e é fora de outro . J o ve n s encontram-s e na rua,
em lugares públicos , na s casas q u a n d o os adulto s estão
ausentes , enfim, nu m lugar e te m p o q u e n ã o sã o reinos de
ninguém . Assim o jovem providenci a um a forma de
n ã o ser visto. Q u e m n ã o é visto n ã o é interrogado, n ã o é
cobrado , nã o é controlado . Esconder-s e assim é um a da s
formas de passa r dormindo po r ess e período. Para efeitos
d a s oci e da d e , t a m b é m sã o belos
adormecidos , já q u e se trata de sujeitos crescidos, mas qu e
nã o fazem muito além de se prepara r para a vida q u e
está po r vir. E um a fase de ensaio, de treinamento, de
simulação.2 1 Essa latência (o u exílio) social, espécie de
depressã o normal qu e ocorr e nessa época , é causada
justamente po r tud o o qu e os espera . Do lad o de fora
dess e castelo adolescente , a vida adulta espreita como
um a matilha de lobo s famintos, pront a par a cair sobre os
jovens. Esse desafio inclui as decisõe s vocacionais, o
trabalho, as opçróes amorosa s e a parentalidade .
H á u m potencia l d e desperdíc i o d e t e m p o nos
jovens , um a inutilidade necessária , um a abstinência da
s grande s tarefas d a vida, traduzível po r u m sono q u
e p a r e c e e te rn o . Diant e d e t u d o isso, é preciso
dormir, par a postergar, par a esquecer , par a repousar,
par a s e esconder .
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o
para um
Notas
1. BASILE, Giambattista. 'lhe Pentamerone,
traduzido por N. Penzer. A íntegra deste conto pod
e ser lida em wwAv.surlalunefairytales.com. de autoria
de Heidi Anne Heiner, disponível desde 1998.
2. As fadas, tanto estas, quanto as convidadas ao batizado
de Bela Adormecida, nào devem ser compreendidas
como as entendemo s hoje, com o seres
mágicos femininos benévolos. No folclore europeu
"fada" é um nome genérico para inúmeros seres
feéricos, nào necessariamente femininos,
intermediários entre os seres reais e os espíritos.
Podem estar nesse conjunto, por exemplo, os elfos, os
brounies, os duendes. Enfim é uma palavra pouco
precisa e não descreve o caráter desses seres, que
parecem tão suscetíveis em seus humores como
são os humanos. Ora se apresentam como amigos e
doadores, ora pode m roubar, raptar e amaldiçoar.
3. GRIMiVl, Jacob & Wilhelm. Contos cie fadas,
bel o
Horizonte: Villa Rica Editora Reunidas, 1994.
4. Aries nos ilustra esta questão da idade de 7
anos como a do fim da infância, no capítulo
denominado Do despudor à inocência: "A partir
de 1608, esse gênero de brincadeira (jogos eróticos
com suas amas) desaparece: o Delfim se tornara
um homenzinho - atingindo a idade fatídica de 7
anos - e era preciso ensinar-lhe modos e linguagem
decentes". In: ARIES, Philippe. História Social da
Criança e da Família. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1981, p. 127.
5. A beleza da madrasta assemelha-se à do herói
do clássico literário O Retrato de Dorian Gray, de
Oscar Wilde. Nesta história, um rapaz realiza uma
espécie de pacto com o diabo para permanece
r jovem e belo. Graças a isso, um quadro , que
o retratara no auge do viço juvenil, envelhece
em seu lugar. O retrato nào só envelhece, com o
também representa a feiúra de sua alma,
tomada pel o egoísm o e a maldade. Dorian
continua sempr e aparentement e igual, sua
imagem fica congelada naquele instante juvenil,
mas, enquant o isso, seu espírito passa a ser retratado
na pintura e revela em seus traços toda a sua
miséria interior. A madrasta tem esse tipo de
beleza. Que m paga qualquer preç o para
continuar belo e jovem, diria Wilde, não amadurece,
apodrece.
6. Este olhar patern o será mais analisado no
Capítulo
VI, O Pai Incestuoso.
7. Nas fantasias infantis, be m com o em crenças
de vários povos, a ingestão do inimigo serviria
para apropriar-se de suas qualidades. Assim,
1987, p . 148.
13- BASILE, Giambattista. Sol, Lua e Tália. Esta história 18. Nas sociedade primitivas, as regras
pod e ser encontrada , inclusive acrescentad a determinavam um período de impureza para a mulher,
d o original em dialeto napolitano, no livro A havia objetos e pessoas qu e ela nã o podia
Princesa que Dormia - Nas Versões dos Irmãos tocar, atividades que nã o devi a fazer. Co m o
Grimm, De Charles Perrauli e de Giambattista passa r do s tempos , a menstruaçã o perde u
Basile. Florianó• polis: Editora Paraula, 1996. seu caráter social, a mulher nã o se retira para
14. PERRAULT. Contos de Perrault. Belo uma cabana na floresta esperando qu e passe, ela
Horizonte : Editora Itatiaia, 1989. a sente com o algo seu e pessoal, algo
15. GRIMM, Jaco b & Wilhem. Contos de Grimm. privado. Sendo qu e hoje resta apena s a TPM,
Belo nesta fronteira entre o fisiológico e o mítico,
Horizonte: Villa Rica, 1994. para lembra r q u e a mulhe r se encontr a
16. Essa compreensã o da atitude passiva se dedu z em estado delicado.
da obra freudiana, particularmente no qu e 19. "Os adultos querem ser adolescentes. Os adolescen•
tange ao tema da sedução, mas uma boa tes ideais têm corpo s qu e reconh ece mo s
sistematização dessa q u e s t ã o , tal qua l como parecidos com os nossos em suas
form ula mo s aqui , p o d e se r e nc o ntr a d a e m formas e seus gozos , prazere s iguais ao s
Je a n Laplanche . Conform e el e nosso s e, ao mesmo tempo , graças ã mágica
(citando Spinoza), "somos passivos quand o se da infância estendida até eles. são ou
faz em nós alguma coisa da qual somos a causa apena deveriam ser felizes numa hipotética suspensã o
s parcialmente". Com o exemplo , este autor das obrigações, das dificuldades e das
cita a diferença entre .ser amamentado, mamar responsabilidades da vida adulta. Eles são
e dar de mamar. Na conjugação passiva de adultos em férias, sem lei. (...) A adolescência torna-
ser amamentado se assim um ideal do s adultos". In: CALLIGARIS,
(diferentemente das posições ativas cie Contardo. A Adolescência. São Paulo: Publifolha,
mamar e dar de mamar), se expressa de tal 2000. p. 69.
forma qu e "faz- se em nós alguma coisa, da 20. Voltaremos a esse tema da relação dos jovens casais
qual somos a causa apena s parcialmente e da com as respectivas famílias e com a
qual buscamo s tornar- nos causa adequada". In: sociedade no Capítulo X.
LAPLANCHE, Jean . Teoria da Sedução
21. Calligaris descrev e a adolescênci a enqua nt o
Generalizada. Port o Alegre: Artes Médicas,
um período de moratória (termo utilizado
1988, p. 90.
originalmente por Erik Erikson) no.s seguintes termos:
17. LévkStrauss nos conta que entre os indígenas norte- "Ele se torna adolescent e quando , apesar de
americanos havia uma correlação entre boa seu corp o e seu espírito estarem prontos para
tecelã e mulher quent e na cama, que m sabe esta a competição, não é reconhecido como adulto.
ligação não pod e ser lembrada nos contos de Aprende que, por volta de mais dez anos,
fada. Afinal, é extraordinário qu e reis busque m boas ficará sob a tutela dos adultos, preparando-se
tecelãs para rainhas. A equivalência entre mitologias para o sexo. o amor e o trabalho, sem produzir,
tão distantes sempre se revela problemática e algo ganhar ou amar; ou entã o produzindo,
arbitrária, mas neste caso acreditamos qu e há ganhand o e amando , só qu e marginalmente".
um paralelo. Ver: LÉVI-STRAUSS, Claude. A In: CALLIGARIS, Contardo. A Adolescência. São
Oleira Ciumenta. São Paulo: Editora Brasiliense, Paulo: Publifolha, 2000, p. 15.
1986.
92
Capítulo VI
O PAI INCESTUOSO
Bicho Peludo
(SÉJJ^S qui a s versõe s d a história g a n h a m c o n to r n o s
W WS c lif t , r e n tes . Km Bicho Peludo,1 a versã
o do s fijLJf§j!l irmão s Grimm , o cabel o d o u r a d o é
um d o s r e q u i si t o s i m p o r t a n t e s q u e m ã e e
filha
possue m em co mu m , e ess e fetiche era exigid o par a a
substituiçã o d a falecida, alé m da s outra s virtudes .
Nu m e str at a ge m a q u e visa g a n h a r t e m p o
, a princesa - q u e depoi s ve m a ser Bicho Pelud o
— n ã o recusa diretament e a propost a incestuosa ,
ma s tent a evita r o de sa str e , p e d i n d o a o pa i
com o p r e s e n t e vestido s de sl u m b ra nt e s e
impossíveis : u m d o u r a d o c o m o o sol, outr o
pratead o c o m o a lua e o terceiro brilhante com o a
s estrelas. Além disso, que r u m mant o leito d e mil pele s
d e animai s diferentes, "cada espéci e d o teu rein o tem
q u e da r u m p e d a ç o d a su a pel e para tal fim". A
princesa pens a que , co m esse s pe di d o s
impossíveis, o rei vai recua r de su a investida. Mas el
e nã o pens a assim e, se m pestanejar, vai
realizand o os capricho s dela um a um, co m a
press a de q u e m te m u m desejo preme nt e a
satisfazer. Q u a n d o finalmente todo s txs mimo s foram
concedido s , o pai decreto u q u e a bod a seria no dia
seguinte .
Para a princesa , só resta e nt ã o fugir. Para isso, se
ocult a s o b o m a n t o d e pele s q u e g a n h o u ,
da í s e originand o o n o m e q u e d á titulo a o conto ; leva
consig o o s três vestidos deslumbrante s (guardado s nu m a
casca de coco ) e alguma s jóias; e aind a pass a
A jove m acab a s e n d o encontrad a p o r caçadores d e
u m outr o rei q u e a descobre m entocada , dormindo no o c o
de um a árvore , e acredita m tratar-se de um e s t r a n h o
anim al . Q u a n d o c o nst at a m q u e era uma mulher,
po r comiseração , o monarc a faz co m qu e ela seja levad a
ao paláci o par a ajudar na s tarefas mais sujas e
pesadas .
Bicho Pelud o te m e nt ã o seu s dia s d e Cinderela, é
obrigad a a fazer as tarefas mais degradadas , vive
c o m o um a serva em outra Corte. Até q u e certo
dia acontec e u m baile n o palácio , e Bich o Pelud o
pede par a ir espia r a festa. O cozinheiro , se u chefe, consente
q u e ela d ê um a espiada , ma s q u e volt e log o
para termina r de limpar a cozinha . Ciente de q u e tem pouco
te m p o , ela ag e rápido : p õ e o vestid o dotirad o como o sol,
tira a fuligem e vai par a o baile. Q u a n d o chega, pass
a a ser o centr o da festa, e todo s pensa m que
algué m tã o deslumbrant e só p o d e ser filha de um rei. O
rei dess e paláci o foi ao se u e n co nt r o e só dançou co
m ela, mas , terminad a a dança , ela desaparece u tão
espetacularmen t e c o m o surgiu. O rei faz busca s por
todo s o s lados, ma s n ã o c o n se g u e descobri r ne m por
o n d e ela saiu.
Ela já está de volta para sua pel e e, a pedid o do
cozinheiro real, vai prepara r a sopa qu e o rei
tomará depoi s da festa. Com tod o o esmero , preparo u um caldo
delicioso e colocou dentr o del e um do s seu s anéis. O rei gostou
da sopa e ficou intrigado co m o anel. Chamou o cozinheiro,
qu e inicialmente mentiu ter sido ele mesmo que m preparo u
o prato, mas acabou confessando que fora Bicho
Peludo . Esta foi imediatamen t e levada à presença do
rei e nego u q u e tivesse qualque r conhe• cimento de
com o a jóia fora parar no prato dele.
Em outra ocasião , houv e outr a festa no palácio e mais
um a o p or tu ni d a d e par a Bicho Pelud o dar uma fugida
da cozinh a para espia r a festa. Dessa vez, vai co m o
vestid o pratead o c o m o a lua; nova ment e faz sucess o
co m o rei e foge se m deixa r rastros. Tud o se repete ,
ma s nessa ocasiã o deix a cair na sopeir a uma p e q u e n a
roca de o ur o . É precis o u m a terceira festa par a q u e
o rei poss a prepara r um a p e q u e n a cilada: Bicho
Pelud o c o m p ar ec e co m se u vestid o brilhante c o m o a
s estrelas e . e n q u a n t o ele s dançam , se m que ela
p e r c e b a , o rei desliz a u m ane l e m se u dedo .
Q u a n d o s e repet e a situaçã o e m q u e ela é
chamada par a q u e expliqu e a orige m d o carretei d e
o ur o n a sopa , ela se disfarça às pressas , coloc a as
pele s por cima d o su nt u o s o vestido , ma s s e e s q u e c e
d e passar fuligem n o d e d o d o anel .
Pressionando-a , o rei a p u x a p el o br a ç o num
gest o brusc o e a s pele s caem , reveland o a dam a que
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o
Além disso, reparo u no bel o príncipe que , na volta das
caçadas, aparecia na granja real para um a refeição.
se escondia em seu interior. Ele a p e d e imediatament e
em casamento e dessa ve z nad a a i m p e d e de
aceitar.
Pele-de-Asno
orno a outr a p r i n c e s a . P el e - d e - A s n o 2
s e desespera igualment e co m a intençã o d o
pai e corr e e m b us c a d o s c o n s e l h o s
d e su a madrinha, a Fada do s Lilases. É
esta última
quem tem a idéia de pedir ao rei vestidos q u e consider a
impossíveis de sere m confeccionados : um co m a
cor do tempo, outro co m a cor da lua e, po r
último, um que imite o sol. Os pedido s sã o de
fato impossíveis, mas tão deter minad o est á est e
rei qu e força seu s artesãos a executar os
capricho s da princesa . Apesa r do absurdo da
situação, é indisfarçável o e n ca n t o q u e as vestes
incríveis pr o du z e m na jovem.
Quand o ela nã o p o d e mais recuar, a fada
lhe sugere qu e faça u m últim o p e d i d o q u e ela
julga totalmente impossível de ser atendido : p e d e a pel
e de um asno qu e o pai tem em sua estrebaria. Esse asn o
é encantado e, em vez de estrume , ele evacu a
m o e da s de ouro, send o assim a maio r fonte da riquez a
do rei. Mas ele não vacila, m and a sacrificar o precios o
animal, seu desejo pela filha é maior e está dispost o
a paga r qualquer preço. Quand o a princes a
finalmente obté m a pele do asno, sabe que mais nada tem a
pedir, que
não há mais limites, barreiras n e m critérios na vontad e
de seu pai, agora só lhe resta fugir. A sua
madrinh a lhe garante qu e seu s vestido s estarã o
se m p r e à sua disposição, entrega-lhe um a varinh a
mágica e assegur a que eles a seguirão po r baix o da
terra par a o n d e ela for, quando quiser trajá-los é
só bate r co m a varinh a no chão. A princesa peg a
alguma s de sua s jóias, se suja, se cobr e co m a
pel e do asn o sacrificado e foge sem rumo.
Por ond e passa, Pele-de-Asn o p e d e trabalho , ma s
ninguém que r algué m tã o repulsiv o em sua casa.
Por fim, consegue trabalhar n u m retirad o sítio, um a
granja real onde tiveram pen a de sua condiçã o e a
deixara m limpar o chiqueiro e levar as ovelha s par a
pastar. Foi numa ocasião de pastorei o que ela se
viu refletida na água e se assusto u c o m su a
terrível aparênci a . Foi como se despertass e de
um transe, lavou-se, gosto u do que viu e a partir de
entã o passo u aproveita r sua s folgas para usa r os
se u s be l o s vestido s e fazer-s e penteados em q u
e entremeav a flores e jóias em seu s cabelos, mas
sem pr e escondid a e m seu quarto .
entre mei a à história, observ a com
O olhar do pai
mbor a a s princesa s acredite m q u e o
pedid o d o s vestido s vis a a
retarda r o a s s é d i o pa terno , n ã o
deix a d e ser curios o qu e , na s
a v e n t u r a s q u e a s e s p e r a m , seja m
essas
mesma s indumentária s a s q u e irão revelar su a
nobrez a e b e l e z a . O s vestido s sã o a s
a r m a s c o m q u e conquistarã o depoi s seu s
príncipes . Perrault , n o s comentário s q u e
Fada s n o D i v ã - P s i c a n á li s e n a s História s Infa n ti s
significam o contrári o d a nobreza , sã o
características d e q u e m te m q u e mete r a
mã o n a massa . Elas ficam assi m
perspicáci a q u e a s m oç a s p e d e m o s vestido s
socialment e desclassificadas, vã o ocu pa r o últim
e s e encanta m co m eles c o m o um a q ua s e
vacilação, afinal o q u e o pai te m a lhes oferece r o lugar
é b e m tentador . Por isso, ao fugir nunc a se
e s q u e c e m de levá-los junto , n ã o s ó o s desejavam, 96
com o ta m b é m precisa m tê-los consig o nas
aventura s q u e seguirão .
O q u e é q u e faz a graça , o e n c a n t o
de um a menina? Nã o há um a respost a simple s par
a isso, ma s o qu e faz uma menin a se m graça é mais
fácil responder . Existe um a constataçã o clínica
simples: u m pai q u e nã o d ed iq u e um olhar par a sua
filha a deix a se m arma s par a o futuro jogo am oros o
fora de casa. Não adiant a espelhar-s e n a mãe ,
m e s m o q u e esta seja c o q ue t e , s e a filha n ã o tiver
um a chanc e de ser vista pel o pai. Se ela n ã o
p ud e r disputa r o pai (na fantasia), n à o há razã
o par a a identificação co m as arma s da s ed u ç ã o
q u e a m ã e v e n h a a lh e oferecer . Esse s
v e s t i d o s representa m o olhar d o pai, olha r q u e
d e fato p o d e ser um tesouro . Sem ele fica
difícil construi r u m a image m desejável para q u e m
que r q u e seja. E m outra s palavras , um a menin a q u
e n ã o s u p o n h a u m olha r patern o desejante nã o
vai quere r se arrumar.
As artes da seduçã o da mulher se aprende m através
de um jogo qu e nã o p o d e ser realizado co m o pai. ma s
p o d e muit o be m ser en saiado . A imaterialidad e
d o vestido ve m depo r a o noss o favor: n o cas o d
e Bicho Peludo , o s vestidos p o d e m ser guardado s
num a casca d e c o c o ; e m Pele-de- Asno . a
madrinh a diss e q u e estariam se mpr e ao dispor,
bastaria usar a varinha. Esses vestidos mágicos são e m
verdad e d o n s imateriais, co m o s quais qualque r menin a
qu e s e supô s amad a po r seu pai - o u po r alguém qu e
oc u p e alguma posiçã o patern a
- se sentirá trajada quand o partir para as
batalhas do amo r e do sexo, cujo c a m p o de marte
sempr e se situa e m algum outr o reino, o n d e o pai
n à o governa .
Sob as peles
outra questão , tã o central q u an t o o tem a do s
vestidos, é o esconderij o na s peles ,
afinal s ã o e s t a s q u e as nomeiam ,
que vêm
emprestar-lhe s cert o a r rústico e da r
n o m e a o s c o n t o s . O q u e s ã o e s s a s peles ?
O q u e ela s escondem ? J á sabemo s q u e elas
e s c o n d e m a belez a d a filha q u e s e abriga d a
cobiç a d o olha r d o pai, ma s po r q u e n ã o s e
content a m c o m a sujeira da s cinzas?3
As cinzas estã o ligadas ao trabalh o e
reservad o às mulheres , poi s a sujeira está sempr e ligada ao
p o b r e e ao desvalorizado . Mas um pass o a mais p o d e
se r d a d o , co n si de ra n d o um a contextualizaçào social q u
e p o d e conte r mais d e um a referência.
Um d o s legado s da religião - q u e já foi mais
do minant e do q u e hoje - foi difundir a crenç a de que o
sex o é algo sujo, e é exata men t e o q u e aflige essas
m o ç a s , e l a s e s t ã o l i d a n d o c o m d e s e j o s sexuais
inomináveis , portant o elas estã o poluídas , impuras.
Desd e ess e p o n t o de vista, as moça s teriam perdido o seu
lugar social em função de sua apro xim açã o como p e ca d o do
incesto . Na verdade , elas n ã o fizeram nada de errado , ma s
o seu s pais explicitara m um desejo q u e lhes dizia
respeito , e isso é o suficiente par a torná- las part e d o pecado
.
Dess a forma, a n o br e z a fica associad a a uma
posiçã o mais alta no sentid o mora l e a pobreza, à
perd a da virtude. A viagem q u e elas iniciam, rumo à
r e t o m a d a e a o r e c o n h e c i m e n t o d e su a condição
aristocrática , p o d e se r vista c o m o um a espéci e de
penitência , c o m o um trech o de abstinênci a capaz de
angaria r o perdão .
O nobr e era identificado pela sua educação, pela
incorporação de uma série de limites no contato corporal, do
respeito às regras de etiqueta na alimentação, na
indumentária e no convívio. Por mais que , aos nossos
olho s contemporâneo s , a vida n u m castelo medieval
possa no s parece r um chiqueiro promíscu o e selvagem,
estamo s falando da etiqueta possível e adequad a a cada tempo .
O camponês , o trabalhador, ficava reduzido à necessidade:
comia porqu e tinha fome; vestia-se porque tinha frio; enfim, vivia
de uma forma rude . O nobre faria tud o isso po r prazer ou
obrigação social e da forma mais complicada possível.
Ao sair de se u rein o desprovid a s da nobreza de sua
origem , reencontram-s e co m um a dimensã o mais primitiva
de se u ser, perdida s da e d u c a ç ã o qu e re• cebe ra m
em casa c o m o se tivesse m desaprendido . Se pensarmo s qu e
o s prazere s era m supostam ent e restritos ao s nobres , fica fácil
c o m p r e e n d e r po r q u e essas moças se privam ta m b é m dessa s
prerrogativas . Livres de sua condiçã o nobre , poderia m viver
també m long e de toda tentação .
A riqueza da indumentária, a beleza qu e mobiliza a
paixão, só será novament e revelada para os olhos e o desejo de
outr o homem , de outr o reino e escolhido por elas. Este terá de
ser suficientemente nobr e para perceber as sutilezas qu e sinalizam
a nobrez a oculta. Trata-se de um a retomada; para pode r ser
novament e desejada, ela deverá encontrar, em outr o reino,
algué m qu e seja capaz de vê-la co m o mesm o encantament o do s
olhos do pai.
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o
O homem que substituirá seu pai a livrará dele, Paradoxalment e , o disfarce de pele s ex p õ e o qu e
mas será, de certa forma, seu equivalente. mai s s e oculta, s e p u d e r m o s pensa r a s pele s
S ó partind o de s s a premiss a é qu e c o m o s u bst it u t o d e s s e s p êl o s . Afinal es s e é
p o d e m o s entender por q u e a s histórias d e o jog o d a s p r i n c e s a s : a l t e r n a d a m e n t e oc ult a r
princesa s sã o tã o condescendentes co m o pai, n ã o e revelar . Elas m o s t r a m o q u e suscitar á o
imp ortand o o q ua n t o este as fez sofrer. Q u a n d o d e s e j o e, a seguir , o es co n d e m . S ó serã o vistas
pecaram , as mãe s má s ou substitutas morreram so b q u a n d o e q u an t o quiserem . Ter control e sobr e o
tortura, mas , q u a n d o se trata do pai, tudo termina n u m limite de entreg a ao seu parceir o a m o ro s o é muit
grand e b an q ue t e de perdão . A deduçã o q u e s e o important e par a um a jovem, poi s ela s ó
i m p õ e é q u e a l g u m t i p o d e reconciliação com deixará q u e ele tenh a acess o a o tant o q u e ela
o pai é necessária. É precis o algu m acordo para qu e suport a compartilhar. Nada estranh o entá o q u e
se possa transferir o amo r q u e o pai e a filha elas a n d e m coberta s e s imb olica men t e n u a s a o
tinham entr e si par a outr o h o m e m . No fim, ele m e s m o t e m p o , na s pele s e em pêlo . É diss o qu e se
deve comparece r para entregá-la ao herdeir o dess e afeto constrói a sensualida d e da s mulheres .
inaugural. Aind a a s p e l e s n o s le v a m a o u tr a
As peles, ante s de nosso s tempo s linh a cie raciocínio, algo tev e d e morre r para
ecológicos , receberam um lugar especial, justamente po r q u e a s heroína s ganha sse m sua s peles ; n o cas o
seu pape l diferencial entre os nobre s e os d e Bicho Peludo , u m se m -n ú m e r o d e animais; e
cam pon eses . E certo que os primitivos as usavam contra m Pele-de-Asno , o animal mais valioso do reino .
os rigores do inverno, mas elas terminaram associada s Esses fatos as ligam, de certa forma, a um a
ao s mais abastados . Além de convenientes pela morte , afinal elas porta m esse s animai s morto s e
quantidad e de calor qu e poderiam guardar, elas m seu s n o m e s e e m seu s corpos , ma s qua l
tinham um charm e a mais, era m troféus de caça. Pele-de- mort e está em jogo? Possivelment e a mort e da infância.
Asno e Bicho Pelud o carregam em seus disfarces peles Elas sae m de casa, já q u e n ã o há mais um
muito valiosas. lugar de filha e é o m o m e n t o de partir.
Um casaco feito co m amostra s de pele s de todo s Fazend o um a com paração , apesa r d e n ã o
os animais do rein o faz da filha a verdadeir a haver regra s gerai s n o s rituai s d e p a s s a g e m
rainha das peles. Por ela todo s os caçadore s do primitivos , p o d e m o s afirmar q u e quas e todo s fazem
rei fizeram uma verdadeira matança. Nossa jovem porta alusã o a um a mort e e a um a ressurreiçã o n u m nov o
suas peles , identificando-se a um a só vez co m a caça, co m estágio, ás veze s co m outr o n o m e (aqu i també m é
o animal que pertence ao rein o do pai, e co m o o caso, embor a só saiba mo s o se u n o m e d a
caçador, qu e ostenta a pele c o m o símbol o de sua fase d e transição) . Esse s conto s p o d e m ser tant o
conquista . Apesa r da aparência rústica q u e os o resto desse s rituais, q ua n t o p o d e m ilustrar
conto s alega m q u e elas assumiram, é plen o de alegoricament e o process o d e saída d a infância
significado q u e Bicho Pel ud o tenha sido encontrada para outr a modalid a d e d e existência.
, entocad a feito um bicho , po r um rei qu e
estava caçan do ; portanto , é c o m o caça que ela foi
levada ao castelo. Vivend o lá, termino u se A importância de ser amada pelo pai
comportando mais c o m o um caçador, atraind o o
seu eleito com sua s p e q u e n a s armadilha s . C o m o este s contos , n ã o se question a a
diz o ditado: um dia é da caça, outr o do castidad e d o s propósito s da s filhas ne m
caçador. s e duvid a d e q u ã o long e elas estã o
As peles dessa s histórias visam a ocultar a riquez a disposta s a chega r e m
de suas vestes, ma s n ã o p o d e m o s ignorar q u e defesa da su a honra . Embor a o rei
existe um contrapont o entr e as pele s e os esteja c e g o e m s u a o b s e s s ã o i n c e s t u o s a , a
vestidos . Estar com elas é estar se m os vestidos , r e l a ç ã o é preservad a d o pecad o pela recusa . Poré m
é estar des-vestidas. No Brasil, diz-se estar nu em h á alg o q u e pa i e filha co m p ar til h a m : o p e d i d
pêlo , ou seja, vestid o apenas co m o s pêlo s d o o d e u m objet o impossível. O s vestido s - co m a
corp o ( c o m o u m caval o q u e é montado em pêlo , se cor d o te m p o , d o sol, d a lua, da s estrelas - , assim
m a sela). A presenç a de peles , talvez alusiv a a c o m o o sacrifício d o asn o d a s feze s d e our o , sã
e s s e s p ê l o s , p o d e t a m b é m esta r r e m e t e n d o a o ressaltado s c o m o p e d i d o s inaceitáveis, tant o
um a marc a muit o i m p o r t a n t e d a maturação
q u a n t o o sex o c o m a própri a filha. A filha p e d e
sexual, o cresciment o de pêlo s pubianos .
ab s ur d o s qu e p en s a nã o poderã o se r
Acompanhados d o a u m e n t o d e volum e d o s seios,
satisfeitos , co m iss o talvez ,
o s pêlos são a marca de início do pudor , é a partir
p e d a g o g i c a m e n t e , dem ons tr e a se u pai q u e h á
dele s que os jovens passa m a ter o q u e esconder .
desejo s impossíveis, o u impagáveis , com o o
sacrifício d o asno .
Fada s n o D i v ã - P s i c a n á l i s e n a s História s Infa n ti s
O diálogo, realizado através de objetos, pa i entr a em jogo : será aquel e cujo amo r
manté m a filha na condiç ã o casta qu e a história pela filha reconhecer á a semelhanç a dest a c o m a
a apresenta , ma s esquec e u m detalhe : po r qu e essas mãe , ou seja, perceber á na filha potencialmen t e um a
princesas usa m co m o argument o precisament e o mulher . Porém, ess e a m o r t a m b é m terá de se r
pedid o d e q u e u m caprich o seu fosse realizado? Não interditado , com o foi aque l e primeir o idílio co m a
seria esse justamente seu problema , ser objeto d e u mãe , ele terá q u e mostrar q u e seu desej o já te m
m caprich o d o pai? Po r qu e responde r na mesm a en d er eç o , par a q u e a filha vá' busca r seu príncip e
moeda? Afinal, se ele que r um objeto de desejo, elas em outra s paragens . Portanto, o primeir o amo r
também . Demonstrar caprichos assim coloca pai e heterossexua l será o do h o m e m que reina sobr e
filha na mesm a situação, nisso se revela qu e nã o é sua vida: papai . Assim, a menin a poderá desejar
apena s o pai qu e quer, a jovem també m deseja algo. q u e ele a am e c o m o am a m a m ã e (o u ainda
Essas princesas acaba m ficando e m dua s posições, mais, de preferência ) e se saber á valiosa.5
tanto ativas, desejand o os vestidos, quant o Dessa forma, o eleme nt o a m or o s o interfere
passivas, com o u m objeto d o desejo paterno . na construçã o da identida d e sexua l da menin a
Ningué m sab e que m é e quant o vale po r si, essa mais do q u e no m en in o . O futuro h o m e n z i n h o
é um a questã o a ser respondi d a em interaçã o co fará o possível par a s e p a r e c e r e m alg o c o m
m a vid a q u e l e v a m o s e c o m a s p e s s o a s o pa i par a u m dia conquista r o am o r de um
co m q u e m convivemos , s e s o m o s alg o é a mulher , par a tant o basta incorpora r traços dest e
necessaria me nt e ao s olho s d e alguém . Num a em sua personalidad e . Já para a menina , se r c o m o a
esquemátic a leitura freudiana, d o qu e s e mãe , identificar-se c o m ela, não basta lh e copia r
c o n v e n c i o n o u c h a m a r d e C o m p l e x o d e Édip o - algun s traços, pass a po r ser amada corn o ela,
os primeiro s amore s vividos em família pela s ma s necessariament e perdend o a primeira
crianças —, sabe mo s q u e a m b o s os sexo s mo dalidad e d e amo r q u e experi mento u n a
principia m sua vida amoros a e m u m co rr es p o nd i d o vida.
amo r co m a mãe . Essa talvez serã a maio r paixã o q u O s garoto s continua m sempr e amand
e se viverá na vida. Para a criança pequ ena , a mã e é a o a s mulheres , d a m ã e par a a namor adinha , nã o h á
própria image m da perfeição, n ã o é à to a q u e as mudan• ças estruturais. A menin a pass a po r um a
mãe s largam ess e tron o c o m tanta dificuldade. nov a gestão: ama r algué m d e outr o sex o q u e o
A partir daí, os caminho s se bifurcam. O m e n i n d a m ã e abala a estrutura q u e o a mo r m at er n o
o partirá e m busc a d e angaria r atributos viris, com o deixo u montada , ela a b a n d o n a a m ã e , m a s
se u pai,4 par a obte r o amo r de outra mulher, poi s é p r o j e t i v a m e n t e se sente a b a n d o n a d a po r ela.
forçad o a desistir daquel a q u e foi se u primeir o Diant e dess a desilusã o amorosa, precisa no v a m en t e
amor, p o r q u e já te m d o n o . A menina , po r sua ser escolhid a c o m o objeto de amor, recebe r a
vez, par a ama r os h o m e n s n ã o contar á c o m o confirmaçã o d e su a capacid a d e d e se r amada par a s e
ca m i n h o traçad o p o r ess e amo r primordial: terá de s a b e r m u l h e r . Par a o s m e n i n o s h á uma
trocar, terá de a p r e n d e r a ama r algué m de outr o renúncia ; par a as meninas , uma perda .
sexo . Se ela tenta r mante r o primeiro esquema , As histórias dessa s princesa s sã o c o m o um drama
a saída será se identificar c o m o pai, o objeto edípic o feminin o explícito, a céu aberto . Elas venceram
de a m o r da mãe , e isso implicará se virilizar. a c o n t e n d a p e l o a m o r d o pa i q u e o u t r a s ,
Para ser mulher, precisará se identificar c o m a mãe com o Cinderela e Branca de Neve, perderam . E
, rivalizar co m ela, o q u e implica em q u e , em mais, o pai afirma q u e mulhe r algum a chegar á ao s seu s
vez d e se r a mad a po r ela. terá d e perdê-la . pés , afinal, a mã e maravilhosa e agor a morta foi nã
O menin o n ã o terá q u e elabora r a diferença entr e o só represen• t a d a , ma s superad a po r um a
ser a m a d o pela mã e e pel o seu futuro objeto de amor : v e r s ã o m e l h o r a d a , rejuvenescida , q u e é a filha.
sua na morad a o u espos a fará, queir a o u n ã o , E m suma , e m b o r a nessa s história s a s
sua s veze s d e m ã e , poi s n o h o m e m o afet o princesas p a r e ç a m contrariad a s n o p a p e l d e
a p e n a s s e transfere, nã o transmuta . A menin a terá escolhida s pelo pai , o simple s fato d e q u e p e ç a
d e m u d a r d e objeto, trocand o a m ã e pel o pai: se m p re se nt e s valiosos d e m o nst r a qu e ela s
quise r ama r e ser a m a d a c o m o a m ã e , a filha c o m p r e e n d e m e s e identificam co m a s vontade s d o
terá d e abdica r d e s s e primeir o vínculo e , aind a po r pai . Aliás, essa s princesa s desejam o desej o d o pai ,
cima, disputa r n o m e s m o território q u e ela. Se ela o exige m até , p e d e m pr o va s deste, q u e r e m sabe
ama r se u pai, e nt ã o a m ã e passará a se r sua r q u ã o l o n g e el e irá e m n o m e desse amor ,
primeira rival. É som ent e aqu i q u e o isso a s torn a b e m c o m pl ac e nte s , po rt an t o amo•
ro sa m e n t e implicadas .
D i a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o C o r s o
É traumático quando um adulto faz uma criança para que a filha possa fantasiar em paz sem temor de
viver algo que ela não tem como compreender, como o ser abusada. Bicho Peludo e Pele-de-Asno não foram
assédio sexual. Quando abusada, por mais que em certos abusadas, nem são jovens traumatizadas. Elas apenas
casos a prática possa até lhe causar um certo prazer, ela representam o fio de navalha pelo qual
terminará por se sentir privada de toda a caminha a construção da identidade de uma
identidade, reduzida a uma coisa. Abusar é confrontar a mulher.
criança com algo muito maior do que ela possa elaborar.
O assédio sexual do adulto sobre uma
criança materializa algo que, na mente infantil, não
passa de um conglomerado confuso de hipóteses,
Pistas douradas
imagens, fantasias e sensações. Esse caos só se redenção dessas jovens disfarçadas
definirá numa prática erótica que possa ser passa pela conquista de um príncipe, e, para
compartilhada com outros, quando a infância acabar e isso, elas têm seus instrumentos. Bicho
os pais já não forem mais os personagens principais da Peludo
vida. A estruturação de um desejo sexual é um foge de casa levando consigo, além de seus
processo demorado e paralelo ao crescimento. Isso vestidos, três objetos de ouro (um anel, um
ocorre assim não só para que o incesto seja evitado, fuso e uma roca) que ela colocará dentro da
mas também porque, para se desejar algo, é sopa de seu príncipe, como uma pista. Pele-
preciso sentir alguma falta. Buscar algo que não se de-Asno também entrega seus tesouros dessa
tem depende de se ter claro que se é alguém forma, colocando o delicado anel de ouro dentro
separad o dos outros, possuidor de uma do bolo. Ambas as prin• cesas se movimentam nessa
identidade e de carências. mistura entre o nojento - o sujo e excluído de seu
A criança pequena ainda tenta se iludir, pensando papel de servas imundas -, alternado com a
que possui todos os atributos necessários para ser amada, revelação de um tesouro interior - representado
portanto pretende ser e ter tudo de que precisa. R claro pelas jóias surpreendentes que brotam de dentro
que isso é uma ilusão, e, graças às inúmeras ocasiões do alimento.
em que se sente inadequadamente amada, ela encontra O sexo é como o tesouro do burro das fezes de
forças para se afastar da família e construir urna ouro, ocupa um território cloacal, a ponto de as crianças
vida própria. Um adulto, ou mesmo um jovem, já p equ en a s ( e muitos adulto s qu an d o
compreende que está só, carente do amor de que fantasiam) confundirem e misturarem as funções
necessita, por isso, fará o possível para conquistá-lo. É excretórias com a satisfação sexual. Ao vestir a
só aí que o desejo sexual vem para dar forma, para fantasia de pele, a princesa Pele-de-Asno se
enfeixar toda essa falta: ele funciona como uma caracteriza como o maior dos tesouros do pai.
espécie de parâmetro que organiza as carências. É como o ser monstruoso (o bicho feio que
Antes de ter vivido esse processo de separação, que defeca ouro) qu e ela se apresenta inicialmente
vai dando forma ao seu desejo, a criança não pode ao seu príncipe, para só bem depois assumir
tê-lo da mesma forma estruturada e sintética do adulto, a identidade daquela de quem ele se ena•
nem pode lhe ser imposta. A sexua• lidade deve ser morou. A ligação entre as duas identiciades, a da suja
vivida de acordo com as fantasias e os desejos que o serviçal e a da dama nobre, é feita pelas jóias, são elas
sujeito pode ou não assumir. que, embutidas na sopa ou no bolo, dão a pista.
Essas histórias relatam de forma privilegiada o longo Os disfarces, as várias trocas de identidade,
percurso que separa a inicial vontade de ser desejada (o são chaves para a compreensão desses contos.
voto de ter um lugar entre as mulheres) do momento Em seus reinos de origem, primeiro eram amadas
final, em que é possível traduzir isso num desejo próprio. como filhas, depois passaram a ser objeto da cobiça
Entre a menina que fantasia e a mulher que ela será, há erótica do pai. Ambas fugiram fantasiada s com
algumas etapas a cumprir, que não parecem nada fáceis as peles , que simbolizam tanto os tesouros de
de viver. As jovens dessas histórias saem de casa como seus pais, quanto o aspecto animalesco do desejo
meninas e terminam conquistando os seus amados como de que foram objeto; assim caracterizadas ,
jovens mulheres, isso vai ocorrendo na medida em que entrara m e m outr o reino, ocupando o mais sujo
aprendem a administrar as doses de sedução necessárias e desvalorizado dos postos.
para cativar seu príncipe. Nesse novo lugar, longe dos olhos do pai, puderam
A mãe tem de permanecer viva ou ser substituída se fazer desejar à sua moda e ao seu ritmo: permitindo
por outra mulher - real ou onírica - no desejo do pai, que sua beleza aparecesse e se ocultasse alternadamente,
de forma a seduzir o novo soberano de seus corações
e, só por último, revelam sua nobre identidade
por meio de algumas pistas. Aos príncipes, dão uma
imagem
10 0
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mário Co r s o
vinda s da s m ai s diversa s origens , ma s
nenhuma lhe parec e estar à altura d o jurament o
q u e fizera. Não de m o r o u muit o par a descobri r q u e
que enfeitiça, apaixona . Depois , coberta s de
buscav a
fuligem, elas entregam a pista qu e diz: você dev e buscar o
tesouro que viu e desejou o n d e ele m e n o s parec e estar.
O our o deverá ser desenterrad o da s entranha s do
burro .
Mas o our o aparec e també m em
continuida d e com a comida. O aliment o era de um
valor inestimável para as sociedades q u e dera m origem a
essas narrativas, altamente cobiçad o n u m context o de
fome e miséria.
0 ouro sublinha a importânci a do alimento , po r outr
o lado, cozinhar e alimentar, é coisa de mãe . O
príncip e d e Pele-de-Asno pa de ci a , morri a d e
a m o r e s , ma s nenhum alimento da casa poderi a
salvá-lo, som ent e aquele feito pela mulhe r amada . A
questã o é q u e seu estômago havia m u d a d o de
dona , a atual amad a é o tempero particular, é
ela q u e m vai alimentá-lo daqu i por diante e isso
será um d o s e l e m e n t o s da nov a aliança. Os
príncipe s t a m b é m fizeram seu caminho , embora
resumid o n a história: passara m d o pape l d e
filhos ao de h o m e n s ao afastarem-se da mã e nutridora .
A Ursa
história d e Gia mbatist t a Basile , A
Ursa , possui u m c o m e ç o idêntic o à s dua s
histórias anteriores, ma s o disfarce da s pele
s prové m de um a fonte mágica distinta.
O desenlac e
guarda semelhanças , em bor a saliente mais a
neces • sidade de aceitação da nor a pel a sogra.
Essa história nos é providencial par a ilustrar po r
q u e foi ta m b é m como cozinheiras q u e as joven s se
insinuara m a seu s amados. Elas revela m q u e n ã o
s ó d o lad o d a mulhe r há transições a fazer, o
h o m e m te m de ser tirado de sua própria mãe , e
ela s terã o de prova r se u valor também nesse
território.
O começ o é o mesmo : um rei apaixonad o
perd e sua incomparável esposa, e ela faz o fatídico pedid
o de que ele só torne a se casar com alguém ainda mais
perfeita do que ela. O rei desespera-se, pois sab e
qu e precisa providenciar para o reino um herdeiro,
e "a natureza, que fez sua amada Nardella, jogou o
mold e fora", e co m ele a capacidade de ama r de
seu coração . Da uniã o restou Preziosa, urna moça
tão bela quant o a mãe.
Desafiados a enco ntra r um a substitut a par
a o soberano , s e u s c o n s e l h e i r o s p r o v i d e n c i a
m u m a proclamaçã o q u e c o n v o c a m u l h e r e s d
e todo s o s lugares d o mund o a s e
ca n di da ta r e m a o pa p e l d e rainha. Por long o
te m p o , el e examin a longa s filas de beldade s
101
long e o q u e já tinh a em casa, q u e su a filha
Preziosa era "formada n o m e s m o mold e d e sua
mãe" .
Q u a n d o o rei revel a su a intençã o d e
tomá-la c o m o esposa , Preziosa literalmente arranca o s
próprios cabelos, tal seu desespero . Mas, em seu auxílio,
aparece um a velh a senhora , sua confident e ( q u e
pel o jeito era um a fada), a qua l lhe oferece um
d o m mágico qu e a ajudará a se safar dess e terrível
destino . A velha mulhe r deu-l h e u m p e d a ç o d e
madeira , q u e , a o mordê-lo, Preziosa se
transformaria imediatament e em um a ursa. Grande s
festas foram organizada s e, no moment o
em qu e o rei anunci a para a Corte suas
intenções de casa r co m a própri a filha,
Preziosa providenci a sua transformação num a
grand e ursa, cujo porte selvagem ac ab a c o m a
festa, poi s todo s foge m apavorados .
Aproveitand o a confusão, ela se interna na floresta mais
próxima, ficando lá até qu e um dia é
encontrad a po r um príncipe cjue caçava po r ali. A grand
e ursa aproxima- se do jovem d a n d o sinais de
simpatia, balançand o o rab o c o m o um cachorrinh
o e deixando-s e acariciar. O príncipe leva o
simpático animal para casa, ordena nd o q u e fosse
deixad o viver no s jardins do castelo.
Certo dia, q u a n d o estava só no castelo, o príncipe
se aproxim a da janela par a olha r a ursa e,
em se u lugar, encontr a um a bela jovem p e n t e a n d o
seu s longo s c a b e l o s d o u r a d o s , p o r q u e m fica
i m e d i a t a m e n t e apaixon ad o . Q u a n d o Preziosa descobr
e qu e está send o observada , mord e imediatament e o
pedaç o de madeira, transformando-s e nova m ent e e
m ursa.
O príncip e sucumb e e m profund a
melancoli a e , na s sua s febres , lamentav a
"minh a ursa, minh a ursa". Ele era filho únic o d e um
a m ã e muit o dedicada , q u e já n ã o sabia o q u e
fazer par a curá-lo , entã o ela p e n s o u q u e a ursa
h ou v es s e feito algu m mal a ele e m a n d o u matá-
la. O s criados , q u e compartilhava m co m o príncip e
a afeiçã o pel o gr an d e animal , apena s a
soltara m n a floresta, m e n t i n d o par a a rainh
a q u e havia m c u m p r i d o sua s o r d e n s . Q u a n d o
o príncip e fica s a b e n d o da s o r d e n s d a m ã e ,
levant a furioso d e se u leito, disp ost o a castigar
se ve ra m e n t e q u e m havia t i r a d o a vi d a d e su a
urs a e t e r m i n a o b t e n d o a confissã o d e q u e ela
havia sid o levad a par a a floresta. Mes m o d o e n t e ,
m o n t a e m se u caval o e n ã o descans a e n q u a n t o nã
o a traz d e volta. N o castelo , tranca-s e c o m a
urs a n o se u quart o e , po r lo n g o t e m p o , fica
inutilment e t e n t a n d o con vencê-l a a a b a n d o n a r
su a forma animal . Suplicou, fez promessas , tant o
imploro u at é q u e , totalment e enfraquecid o ,
de rr ot a d o p e l o se u fracasso, caiu novament e
enfer mo .
A m ã e desespera -s e mai s aind a e, dispost a a
fazer qualque r coisa, aceita o bizarro p e d i d o d o
filho d e s ó
Fada s n o D i v ã — P si c a ná li s e n a s História s Infanti s
m o d o d e amar.
102
Diana Lichtenstein Corso e Mário Corso
e à
105
Capítulo VII
A MÃE, A MADRASTA E A MADRINHA
Cinderela e
Cenerentola
Diferentes papéis atribuídos à figura da mãe - Rivalidade fraterna -
Valor da memória dos pais da primeira infância - Sedução - Fetichismo no amor
a Cinderela italiana, avó da Borralheira que ainda vive folhas. Em poucos dias a árvore havia crescido, alta
entre nós. "como uma mulher". De seu interior saiu
Cenerentola conta as desventuras de Zezolla, uma fada que lhe perguntou o que ela queria.
a filha de um viúvo, mimada po r ele e Ela respondeu que queria poder sair da casa
po r uma governanta que lhe era muito devota. sem que suas irmãs soubessem. A fada lhe
Passado algum tempo do luto, o pai casou-se ensinou as palavras mágicas que. entre outras, dizia
com uma mulher malvada, que dedicava á enteada para a tamareira ao sair: "dispa- se e vista-me
um péssimo humor. Enquanto isso, Zezolla não rápido"; e, ao voltar, "dispa-me e se vista"
parava de lamentar o quanto desejaria que a (como se a árvore emprestasse as roupas).
governanta fosse sua madrasta, em vez dessa Chegada a temporada de bailes, Zezolla
terrível mulher. Foi essa queixa que oportunizou com• pareceu suntuosamente vestida, transportada por
a Carmosina (a governanta) propor a Zezolla uma luxuosa carruagem, a ponto de polarizar
uma forma de matar a madrasta e depois insistir junto comple• tamente a atenção do rei (que pelo jeito era
ao pai para que a desposasse. A menina fez solteiro). Na saída da festa, o rei colocou um servo
tudo conforme planejaram: deixou cair a tampa para segui- la, mas ela jogou moedas de ouro no
de um baú sobre o pescoç o da madrasta e chão, e ele se distraiu recolhendo-as. Dessa forma,
depoi s convenceu o pai a efetuar novas bodas com conseguiu manter seu mistério. No segundo baile,
Carmosina, a qual havia prometido qu e lhe apresentou-se ainda mais luxuosamente
seria fielmente dedicada. Durante as bodas do pai, paramentada, dançou com o rei, mas voltou a fugir,
Zezolla recebeu a visita de uma pomba que lhe dessa vez, jogando pedras preciosas que tinha
disse: "quando você desejar alguma coisa, mande o preparado para livrar-se do criado, que
pedido para a Pomba das Fadas, na ilha da Sardenha, e novamente a perseguia a mando do rei. Ainda numa
você terá seu anseio instantaneamente atendido". terceira festa, a cena se repetiu, ainda com
Não demorou muito tempo para qu e a mais ostentação. Como o rei estava muito
nova madrasta trouxesse para a família suas determinado a descobrir quem ela era. foi obrigada
seis filhas, mantidas ocultas até então, e Zezolla a fugir correndo e. na pressa, deixou seu tamanco
começasse a ser tratada como criada, vivendo na cair.
cozinha, entre as cinzas da lareira, passand o O rei organizou grandes jantares para
a ser chamad a de Cenerentola. O pai esqueceu-se experi• mentar o tamanco em todas as damas do
da filha, ficando total• mente envolvido com as reino, mas em nenhuma delas serviu um calçado
enteadas, a quem dedicava a mesma atenção de que tão delicado. Desesperado, lançou um pedido aos
antes ela era objeto. seus súditos para que apresentassem todas as
Km certa ocasião, o pai teve de tratar de negócios candidatas possíveis. Em função disso, o pai de
na Sardenha e oportunizou a cada filha que Zezolla lhe comentou que tinha mais uma filha em casa,
pedisse presentes. As seis enteadas fizeram suas mas que ela era tão esfarrapada e suja que não poderia
encomendas de roupas, perfumes e enfeites. sentar-se à mesa real. Mesmo assim o soberano
Dirigindo-se com ar zombeteiro para a própria ordenou que ela fosse trazida e, assim que a viu,
filha - lembrava de todos menos de seu próprio soube que era a moça que ele estava buscando. O
sangue, diz a história -, permitiu- lhe fazer também um conto não relata como ela estava trajada ness a
pedido. Ela respondeu que nada queria, mas pediu que o cas i ã o , pel o jeit o co m seu s andrajo s
levasse suas recomendações à Pomba das Fadas e lhe costumeiros. Assim que ela se sentou para
oferecesse a possibilidade de ela lhe mandar alguma experi• mentar, o pequeno tamanco arremessou-
coisa. Ele comprou todos os mimos solicitados se magica- mente para seu pé, reconhecendo sua
pelas enteadas, mas se esqueceu do pedido da filha. dona. Zezolla foi coroada imediatamente, e ás
Porém, ela havia lançado um feitiço: se ele não a irmãs coube apenas morrerem de inveja e
atendesse, não teria como voltar. O navio em que correrem para casa queixar-se para a mãe da
pretendia regressar não pôde sair do porto. Só então ele injustiça de não terem sido escolhidas.
lembra do pedido da filha e vai providenciá- lo; depoi
s disso , o navio enfim zarpa. Meio a
contragosto, ele trouxe para ela o que as fadas enviaram:
uma muda de tamareira, uma enxada de ouro, um balde A Cinderela francesa
também de ouro e um guardanapo de seda. versão seguinte, numa seqüência cronológica
Zezolla plantou a árvore com os das três mais famosas, é a de
instrumentos que se revelaram mágicos, regava-a Perrault, chamada de Cinderela ou O
e limpava suas Sapatinho de
Vidro..2 A Cinderela francesa só tinha
uma madrasta, que começou a maltratá-la de entrada. Com
108
Di a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o
o é tã o magn ânim a q u an t o a anterior. A
Cinderela 3 a le m ã é mai s p r ó x i m a d e
Zezoll a e d a s
ela vieram dua s filhas, possuidora s do m e s m o péssim o
gênio da mãe. Do pai, Perrault diz a pe n a s q u e
teria repreendido a filha cas o ela se queixass e da
madrasta ,
"porque era sua mulhe r q u e m dav a as or de n s na casa",
em suma, um fraco. Ela trabalhav a de sol a sol, po r é m
se mantinha afável co m todos .
Quando chegou o convite para o baile, a ningué m
ocorreu que ela poderia comparecer, afinal, era
com o uma criada. Após pentea r e arrumar as irmãs co m
esmero, ela se sentou na cozinha a chorar. Foi nesse
moment o que surgiu sua madrinha, um a fada qu e a
obrigou, entre soluços, a confessar seu desejo de ir ao baile.
Com vários passes de mágica, ela providenciou a
carruagem - a partir de uma abóbora, tend o ratos e
lagartos transformados em cavalos, cocheiro e libres - e
os vestidos necessários para fazer de sua chegada um
acontecimento. Mas havia um senão: o encantament o só
durava até a meia-noite. O desejo foi alcançad o e,
mais do q u e isso, sua aparição paralisou a festa.
Ela se torno u o centr o da s atenções do príncip e
solteiro, e o assunt o obrigatóri o nos comentários
do baile. Lá ela dedico u particular atenção às
irmãs, co m q u e m partilhav a as iguarias
oferecidas, se m ser reconhecida . Ao voltar para
casa, sentiu muito praze r em escuta r o relat o
da s irmãs, maravilhadas pela bela desconhecid a , se m
n e m seque r
suspeitar qu e fosse ela.
Na segund a noit e de baile. Cinderela repeti
u a proeza, mas distraiu-se d a n ç a n d o co m o
príncip e e teve de sair c or re n d o q u a n d o soara m
as badalada s das doze horas . Na pressa, deixo u
cair um de seu s sapatinho s d e vidro . N a
poss e dele , o p r í n c i p e determinou-se a
encontra r a amad a misteriosa, poi s ele já estava
ap ai x o na d o po r ela. Procurara m entr e todas as
mulhere s do rein o e em n e n h u m a servia um
calçado tão diminut o e elegante , até chega r à casa
de Cinderela, q u e pedi u para prová-l o também ,
apesa r de que caçoava m dela . Num a ap ot e o s e final,
q u a n d o o calçado serviu, a moç a tirou o outr o
pé de sapat o do bols o e aind a a fada
m a d r i n h a a p a r e c e u par a transformar o s trapo s n o
mais bel o do s vestidos.
A boa Cinderela de Perrault casou-s e co m
seu amado e ainda perdoo u suas irmãs malvadas,
levando- as para o palácio e providenciando-lhes bon s
casamentos.
A Cinderela alemã
próxim a versão , do s irmão s Grimm , nã
o é tã o popular , e su a pe rs o na g e m nã
t u d o s e repetiu , ma s dess a ve z ela
moça s qu e mostrara m su a b el e z a em
m o m e n t o s mágicos , ma s se es c on d er a m em
trapo s e pele s até o m o m e n t o final d a
revelação .
Nest a história , o vín c ul o d a jove m
c o m su a f a l e c i d a m ã e é m u i t o r e s s a l t a d o
: el a s e g u e a s r ecomendaçõ e s dest a n o leito d
e morte , d e ser sempr e bo a a piedosa , e chor a
diariament e em seu túmulo . Q u a n t o a se u
pai, em brev e voltou a se casar co m um a
mulher, mã e d e d u a s filhas, amba s d e bela
apa • rênci a e péssim o coração . A ela s
c o u b e o p a p e l p r e p o n d e r a n t e de es p ez in h a r
a nov a irmã, q u e foi rebaixada , obrigad a a
fazer trabalho s forçado s e a habitar e m mei o
à s cinzas.
Certa ocasião , ante s de partir para um a
viagem, o pai pergunt o u par a as três o q u e
queria m q u e ele trouxess e d e presente . A o
contrári o da s irmãs, q u e solicitaram as riqueza s
costumeiras , ela pedi u ape nas :
" o primeir o galh o d e árvor e q u e bate r e m teu
chapéu , q u a n d o estiveres voltand o para casa".
Q u a n d o recebe u a e n c o m e n d a , um galh o de
aveleira, a jovem planto u a m u d a n o túmul o
d e sua mãe , regando- a co m sua s copiosa s
lágrimas até q u e a mud a s e transformou e m
um a árvore . Freq üente me nt e , q u a n d o ela s e
sentav a à su a sombr a par a reza r e chorar,
em seu s galho s p o u s a \ a u m passarinh o q u e
realizava seu s desejos.
Um dia cheg a um convite para um a
festa q u e duraria três dias, o n d e o príncipe
devia escolher sua noiva. Por dua s vezes, Cinderela
implorou para també m comparecer , mas a
madrasta, a contragosto, disse qu e só permitiria
cas o ela conseguiss e catar os pratos de
lentilhas qu e ela esvaziou entr e as cinzas - o qu e
julgava impossível. Q u a n d o a jovem realizou a
tarefa, graças à ajuda do s passarinhos, a perversa
mulhe r lembrou-a de q u e ela n ã o tinha roup a e entã o
nã o poderi a ir. Q u a n d o elas se foram, Cinderela apelo
u para suas aves mágicas. Curiosamente , foi
obedie nte , poi s é impossível nã o observa r qu e
ela poderi a ter apelad o para essa soluçã o mágica
desd e o começo , mas, através dess e expediente , ela
obtev e a permissã o da madrasta para ir, pois realizou
as tarefas e só nã o p ô d e comparece r po r falta de
roupas . Então, providencian d o as vestes, ela nã o
estaria fazendo nad a d e errado .
Co m o s belo s vestido s em prestad o s ,
co m p ar e • ce u a o baile e obtev e o s favores d o
príncipe , q u e n o fim se ofereceu para acompanhá-l a
até sua casa, curioso po r sabe r q u e m ela era.
Pert o d e casa, ela fugiu del e e pulo u n u m
po mbal . Co m ajuda d o pai d a moça , eles
derrubara m o pom bal , ma s nã o a
encontraram . Ela já correr a par a devolve r o
vestido , q u e deixar a sobr e o tú mul o d a m ã e
par a ser recolhid o pela s aves . N o s e g u n d o baile,
Fadas no Divã — Psicanálise nas Histórias Infantis
se escondeu do príncipe subindo agilmente lhe declara seu amor, e só então ela revela que é a
numa pereira, que novamente foi derrubada, bela dama do baile. Por isso, não convém julgar qual
sem qu e a identidade de Cinderela fosse descoberta. é a melhor versão, acreditamos que o tempo faz uma
A cada vez que ajudava o príncipe, o pai se seleção natural dos aspectos da história adequados a
perguntava se seria sua filha a princesa misteriosa, cada época e. se ela continua sendo contada, é porque
mas nada disse. Na terceira noite, o príncipe em sua essência ainda tem algo a dizer.
preparou uma armadilha: mandara passar piche As versões mais complexas, a italiana e a alemã,
na escadaria, dessa forma um delicado sapato permitem detalhar melhor a força da relação da moça
dourado da fujona ficou preso. Munido da pista, o com sua finada màe, que aparece no derramamento de
príncipe foi buscar sua amada. lágrimas sobre o túmulo e na busca de Zezolla por uma
Mandou experiment a r o sapat o em substituta, que termina sendo a Pomba das
todas , declarando que se casaria com sua dona. Fadas. Também nestas, os mistérios de Cincierela
As irmãs tentaram calçá-lo, mas como era pequeno assumem o ar de uma certa picardia infantil;
demais, a mãe delas cortou o calcanhar de uma subindo em árvores, jogando iscas para distrair o
e o dedo da outra. Conformado, já qe elas criado, as moças vão a baile como mulheres, mas fogem
haviam calçado o sapato, por duas vezes, o príncipe como molecas. O que essas duas histórias oferecem
pôs uma das irmãs sobre seu cavalo, disposto a em relação a Perrault é uma riqueza maior, o
desposá-la. Mais uma vez, os pássaros mágicos que é bem-vindo para nossa análise, enquanto a
ajudaram, avisand o o príncipe de que havia versão francesa é a melhor síntese. Talvez esta versão
sangue no sapatinho. hoje domine a cena justamente pela forma, pois é a
Voltando para a casa do pai de Cincierela, que melhor amarra os elementos da história.
ele perguntem se não haveria outra filha - afinal a Em todas elas, a madrasta parece não
amada sempre desaparecia em seu quintal. O pai invejar diretamente a juventude, a beleza e o bom
disse que só restava uma maltrapilha, mas o caráter de Cincierela, mas deixa claro que não
príncipe exigiu que ela também experimentasse. O suporta a falta desses dons em suas filhas
sapato serviu e o príncipe a reconheceu. Quando legítimas. O castigo é simples, fazer a menina
tentavam assistir ao casamento daquela que tanto trabalhar, com a expectativa de que o próprio
haviam maltratado e que agora adulavam, as duas trabalho haverá de enfeiá-la. O nome da heroína em
irmãs finalmente foram castigadas: as mesmas diversas línguas, que também dá nome ao conto, é
aves qu e tanto auxiliaram Cincierela furaram- sempre o mesmo: uma alusão às cinzas do fogão
lhes os olhos, cond en an d o à cegueira aquela e ao fato de estar junto a ele, de forma que sempre
s qu e só se importava m com a aparência. fica marcado o lugar daquela que trabalha.
Existem outros contos que insistem na idéia
de que a fadiga do trabalho acaba com o
O essencial encanto e a beleza, que as vestes rústicas da
camponesa tornam invisíveis os encantos da princesa,
ara Bettelheim, "A borralheira de Perrault é sem falar da descida na escala social, pois quem
adocicada e de uma bondade insípida e não trabalha não é nobre. Este é então o destino da
tem nenhuma iniciativa (provavelmente heroína, não ser amada em casa e trabalhar feito um
por servo. Porém, tão bom é seu caráter que ela suporta a
essa razão Disney escolheu a versão carga sem pestanejar e não só trabalha muito, como
de Perrault como base de seu relato cinematográfico). trabalha bem. Sua trajetória contém de forma
A maioria das outras borralheiras são mais gente".4 De fato, dramática uma virada clássica nos contos de
comparativamente, parece que Zezolla e a fadas, em que o herói prova no mundo externo uma
grandeza que em casa ninguém via.
Cincierela dos Grimm são mais travessas, precisam plantar
e regar a árvore de onde provém a boa magia e Cincierela dá um colorido forte a
são menos atenciosas com suas algozes. Porém, sofrimentos como o de nào ser amada pelo pai, que a
a história de Perrault sintetiza melhor toda a abandona à mercê da mulher perversa e da dor pela
trama, é um roteiro mais eficiente e perda da màe boa. Trazendo todos esses conflitos
acreditamos qu e não se perde a seqüência para dentro da cena doméstica, essa história
permite uma emparia imediata de qualquer filho
essencial: a boa alma, companheira da beleza,
com ela, já que cada um sempre se sentirá
encontra o devido reconhecimento apesar dos trapos
demasiado injustiçado e exigido, assim com o
qu e a ocultam. A jovem joga um esconde-
pouc o amado . Acreditamos qu e daí provém
esconde com o príncipe e com sua família, seu sucesso. Por isso, não importa se a heroína
que se nega a ver nela algum valor. Ele investiga, a
descobre,
Di a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o
desejáveis, sa b e q u e está na hor a de ser olhad a po r
um h o m e m , e o baile
de Perrault é mais adocicada , já q u e o e nc a nt
o do conto é m esm o su a v oc a çã o par a o
dram alhão .
As filhas prediletas
s irmãs de Cinderela sã o seu avesso, pregui•
çosas, mal-humorada s e orgulhosas . Mes m
o q u a n d o é dito qu e sã o belas (Grimm),
sã o
aparentemen t e se m atrativos, nã o
obstant e detêm o amo r da mã e . O raciocínio óbvi o seria
atribuir essa preferência ao s laços de sangue , mas
isso já nã o salvou outras personagen s da s maldade
s maternas , e, como costumamos constatar, madrasta é
um qualificativo transitório d a mãe . Outr o ca minh o
seria pensa r q u e essas filhas infantilizadas ainda nã o
ameaça m o reinad o d a madrasta, elas n ã o s ã o
aind a mulheres , n ã o h á oposição, são crianças
mimadas , vivend o n o te m p o e m que a mãe ainda era
bo a e foco de admiração .
D e q u a l q u e r m o d o , ess a história engaj a
s e u s leitores num a profund a empati a co m a filha
q u e nã o é preferida n o amo r do s pais. O n d e
houve r irmãos , haverá desigualdad e d e fato o u a
suposiçã o d e q u e ela existe. É raríssimo o cas o
em q u e um g ru p o de irmãos consider e e q u â n i m e
a distribuiçã o do amo r dos pais. N or m a l m e nt e ,
o s filhos o b s e r v a m q u e a preferência do s pais, e
principalment e da mãe , incidirá sobre o filho m e n o s
independente , m e n o s rebeld e aos mimos, mais
exigent e d e atenção . O s filhos q u e mostram maior
interesse pel o m u n d o extern o qu e pelo s assuntos
doméstico s n ã o sã o digno s dess a escolh a po r serem
traidores. Para ama r fora de casa, é precis o ter
diminuído a importânci a do amo r dentro .
As irmãs da borralheir a se deixara m arruma r par a a
festa pela mãe , ma s c o m o c o m p l e m e n t o a su a glória. As
filhas só parecia m bela s ao s olho s matern os , su a
aparência n ã o foi chamativ a par a o príncipe ,
p o r q u e não foi par a el e q u e ela s se enfeitaram . Fora m
par a a festa com o os filhos p e q u e n o s iriam a um
aniversári o infantil. Co m Cinderela , o cas o
er a o u t r o : s e u embelezament o tinh a o e n d e r e ç o
cert o d o olha r d o príncipe e imediatament e se produ
z o efeito desejado . Esse feitiço sobr e o rapa z é descrit o
s e m p r e da mes m a forma: toda s as outra s moça s e
o rest o da festa se apagam, el e s ó tev e olho s
par a su a eleita. Portanto , não s e trata mai s d e
se r escolhid a n o a m o r d a m ã e ou do pai, o alv
o da flecha é o u tr o c or a çã o .
A reaçã o da jove m começ a q u a n d o ela faz a
su a primeira reivindicação : ir a um baile. Sua
vontad e é d e s e coloca r entr e a s m ul he r e s
. Em Cinderela,
Memórias encantadoras
a m o r m at er n o d á um a seguranç a q u e
p o d e se r a p r o v e i t a d a em vár i o s
m o m e n t o s e inclusive, contra t u d o e
contr a todos , no s
m o m e n t o s cruciais. É um a força
oriund a d o fato de q u e um dia fomos amados ,
significamos algo par a alguém, e imbuído s dessa
convicçã o vamo s entã o à luta. O d o m da fada
madrinh a - o m e s m o valend o para suas
similares - na verdad e é simples: restituir alg
o q u e um a filha já teve, q u a n d o era objeto do olha r
m at er n o a pai x o na d o d e q u e o s p e q u e n o s s e
nutrem . S ó u m o l h a r d e s s e calibre , h e r d e i r
o d e s s e amor , possibilitará q u e o encant o seja
realçad o e n ã o cobert o p o r cinza s e roupa s feias.
O q u e fica e m cad a u m d e nó s da força dess e
primeir o amo r matern o será o cern e d o narcisismo
ulterior d o sujeito, aquil o q u e c h a m a m o s
err o ne a m e nt e de auto-estima . Na verdade , é
tant o a força d e um a alter-estima q u e o funda,
q ua n t o reque r um olha r extern o par a ser
reafirmada a cad a tanto . F m geral , a s m ã e s
c o n t e m p l a m s e u s filhos c o m a mesm a paixã o
d o príncip e para Cinderela: eles sem pr e se r ã o o s
mai s b o n i t o s d a festa. Mas se u p o d e r é
temporário , a m ã e log o desapar ece , a o
contrári o d a madrast a q u e a m a n t é m so b o
jug o po r u m períod o mai s longo .
No s contos , madrast a é sinônim o d e m ã e
má, a ela sã o reservado s o s papéi s d a inveja,
d a colocaçã o d e entrave s par a q u e a menin a
s e torn e um a mulhe r
(Cinderela ) o u ainda , e m su a versã o mai s
mortífera, d o ód i o assassin o (Branca d e Neve)
Fadas no Divã — Psicanálise nas Histórias Infantis
temos o contraponto da fada madrinha ou das árvores pinçamos os trechos que nos convêm,
mágicas (quer crescidas no túmulo da mãe, cortamos os discordantes e alteramos alguns fatos e
quer enviadas pelas fadas, estas são erguidas datas.
sobre a memória da mãe perdida). Essas fadas são Na versão de Perrault, a fada madrinha viria era
personagens mais evanescentes, destinados a preservar seu auxílio sempre que, desesperada, a jovem deixasse
o lado bom da mãe, ou seja, a mãe da primeira cair lágrimas denunciadoras da força de seu desejo. A
infância. Porém, enquanto a madrasta é uma fada interroga o motivo de sua tristeza e providencia
personagem real, as fadas ou seus representantes uma ajuda: fazer dela uma princesa, mas por algumas
são figuras interiorizadas, aparecem apenas na horas apenas . De alguma forma, na hora
intimidade da jovem e são um segredo seu.5 de se apresentar para um homem, há uma
Na versão dos Irmãos Grimm, a jovem costumeira- reconciliação com uma dimensão boa da mãe, uma
mente visita e chora sobre o túmulo da mãe possibilidade de se identificar com seus melhores
onde plantou uma a veleira, proveniente do primeiro atributos. Em função desse desejo, a magia
galho de árvore que bateu no chapéu do pai quando materializa-se e oferece os objetos necessários
estava voltando de uma viagem. Foi esse galho, um para que a menina obediente e rústica, agora
símbolo do desejado retorno do pai, que vestida para seduzir, fosse ao baile.
embora vivo, na prática estava perdido, que ela As ajudas benignas nos contos de fadas oferecem
plantou e regou com as lágrimas de seu desamparo. instrumentos, jamais uma solução. A vida
Túmulo, árvore e pássaros mágicos formaram uma raramente transforma alguém em outra coisa, ela
espécie de altar dedicado aos pais da primeira infância, apenas brinda com alguns acasos, fatos e contextos
de onde se retira a força para seguir adiante. A mãe pelos quais uma vida pode mudar seu rumo. Os
biológica está morta, e o pai agora é um bobo insigni• objetos mágicos são representantes dessas
ficante, totalmente incapaz de protegê-la e condições, dão oportunidade à personagem de
valorizá- la. Mas nesse altar, se consuma a fertilidade revelar seus dons, são, por exemplo, vestes que
do pai (o galho que brota) sobre o corpo da ressaltam a beleza, botas de sete léguas que dão
mãe (a terra do túmulo), representados velocidade à esperteza do herói, o objeto surge então
espiritualmente pelo pássaro" e regados com a inserido no contexto de seus desafios e capacidades.
saudade cia filha. É um espaço de culto aos pais
perdidos - e por isso idealizado -, aqueles que
foram tão pcxlerosos a ponto de nos dar vida e tão As três formas da mãe
protetores a ponto de nos permitir que
sobrevivêssemos a riscos e incapacidades da primeira , u a n d o a filha s e dedica a fascinar seu
infância. A jovem está crescida, já não precisa prínci• pe, ela comete não uma, mas duas
mais ser carregada e alimentada, por isso, os pais da traições, já que ela não deseja mais
infância vivem apenas na memória. impressionar a
O encantamento capaz, de fazê-la renascer mãe e, ao mesmo tempo, ofusca-a
das cinzas para um novo tipo de amor, não mais como mulher, tornando-se centro das atenções. A mãe
materno, provém de um espaço interior à Cinderela. Todos perde o jogo, pois nem ela, nem suas lindas
temos, como ela, que montar com nossas criancinhas são o foco da atenção. Agora é a vez de
próprias mãos o altar onde colocamos as a jovem mulher ser o alvo dos holofotes. Não é de
evocações da infância, as lembranças que se admirar que a escolha dessa mulher recaia sobre
guardaremos conosco para uso em outros suas filhas, incapazes dessa dupla traição.
momentos da vida. Há um abismo entre a infância vivida Quanto à filha que se encaminha para a
e as lembranças que guardamos dela. Freud busca de seu príncipe, não estranhamos que
denominav a alguma s dela s com o considere a mãe boa como uma memória
"lembrança s encobridoras", ou seja, um tipo de
saudosa, enquanto a que está em casa será uma
memórias fabricadas, seguindo a mesma lógica
madrasta maléfica. A mãe receberá o mesmo
inconsciente com que se constrõem os sonhos, e que
sào evocadas quando estão ligadas a algo que estamos tratamento destinado aos amores que acabaram:
querendo elaborar em outro momento da vida. afinal, despeito, desvalorização e distan• ciamento são
Não quer dizer que as nossas lembranças sejam necessários para que uma história de amor
totalmente falsas, mas sim que, como em toda história termine e dê lugar a outra. Porém, tudo o que é
contada, ela será do ponto de vista do narrador. sentido pela filha será projetado na mãe (a projeção é
Organizamos o passado de forma tendenciosa, um mecanismo pelo qual se atribui ao outro o que na
verdade se está sentindo). Esse mecanismo é tão efetivo
que a filha poderia jurar que a mãe sente por ela tudo
o que na verdade rumina em seu interior.
112
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o
razã o q u e certos autores viram e m Cinderel a um a
re m a ne sc e nt e da s
Subjetivamente falando, a m ulhe r do pai n ã o é
a mesma pesso a q u e a mãe . A mã e é
a q u e l a q u e supostamente se complet a co m os filhos, qu
e tem nele s sua prioridade e jamais deseja sua ausência .
A mulhe r do pai tem uma história de amo r a
viver, q u e exig e tempo, dedicação, e p o d e se superpo
r em importânci a a suas majestades os bebês . A mulhe
r do pai é a ma• drasta dos filhos, aquel a para q u e
m o casa me nt o está em primeiro lugar, m e s m o qu
e seja a legítima mã e deles. Nesse sentido, o pai
p o d e ser ta mbé m colocad o nesse lugar de preferido ,
em detriment o do s filhos que se sentirão
injustiçados. A madrinh a é a repre • sentante do
efeito benéfic o da s lem brança s de um a infância
ond e houv e um víncul o a m o ro s o co m a mãe . Sendo
assim, toda mã e tender á a ser mãe , madrasta e
madrinha ao m es m o t e m p o .
A madrasta invejosa do s conto s cie fadas tem uma
função extra, ela reconhec e a supremaci a da beleza da
mais jovem. Se no s referirmos ã madrasta,
compreen • demos que agora se trata cie uma disputa entre
mulheres, em que a jovem ganh a um lugar na categoria, e
a inveja da mulher mais velha é testemunh a da importância
dessa conquista. A inveja da mã e é tão important e
quant o o desejo do pai, eles sinalizam qu e em
casa a filha já pode ser considerada um a mulher,
ou pel o meno s um bom protótipo. E co m esses
elemento s q u e um a jovem se autoriza a cativar outro s
olhares.
Habitando as cinzas
nom e d a p ers o n ag e m está
invariavelment e
?;: ligado àquel a q u e trabalh a junt o da s cinzas.8
As versõe s do cont o variam mais do q u
e o nom e d a d o à heroína , que , alé m
disso, é o
nome do conto , o q u e só sublinh a a importânci a
da s cinzas para a história. Os dois no me s co m o é
conhecid a em português , Cinderel a ou Gata
Borralheira , tê m origem comum , alude m ao resídu
o do fogo. Existia, no passado europ eu , um criad o
q u e guardav a o fogo e recolhia sua s sobras , u m
a funçã o q u e estava no s últimos degrau s d e
um a s o c i e d a d e m a r c a d a m e n t e hierárquica. Q u e
seja um lugar social desvalorizad o faz sentido, ma
s po r q u e se m p r e este?
As cinzas geralment e estã o ligadas ao luto
e à purificação. Cobrir-se d e cinzas po r ocasiã o
d e um a perda era be m usual e m culturas mediterrâneas .
C o m o o fogo tem um pape l purificador, seu s restos sã o
puro s também. Isso no s leva a um a posiçã o
ambígua : ela estaria pura e stand o suja. Nã o é se m
, d e u m a cert a nobreza . Da s múltipla s versõe s
dess a história, o q u e
vestais,9 as guardiã s do fogo sagrad o na cultura
romana. De qualque r maneira , a Borralheira é 113
suja po r fora, ma s pur a po r dentro , isso ela
demonstr a co m seu b o m caráter, q u e s e m a nté m
apesa r do s maus-tratos.
Investigand o a vida amoros a do s homens ,
Freud encontro u caso s típicos de c o m o lidar co
m o amo r e o desejo , poi s estes n e m sem pr e
an d a m juntos. O q u e no s interessa nest e cas o é
ressaltar certas características d o m o d o d e amar,
encontrada s e m quadro s d e neuros e obsessiv a d e
maneir a taxativa, ma s q u e so b uma forma diluída sã o
be m recorrentes . Certas pessoa s fazem um a cisão
entr e um amo r puro , elevado , espiritual e casto
em contrapo nt o a sua vida sexual carnal,
desvalori• zada, baixa e suja. Nesses qua dros , é
c o m u m oscilar entr e u m amo r celestial e u m
amo r terren o n o baliza• m e nt o da s escolha s
amorosas . Mas essa divisão entr e a mulhe r
santa e a degradad a ou prostituta nã o cor•
re sp o n d e a u m restrito n ú m e r o d e caso s
patológicos , pois e n c on tr a m o s certa disposiçã o
geral d o s h o m e n s para uma classificação da s
mulhere s co m esses critérios. Nas palavras de Freud:
"Ond e elas (estas pessoas )
amam , nã o desejam, e o n d e d e s e j a m nã o
conse gue m amar, a fim de mante r sua
sensualidad e long e de seu s objetos amorosos".1 0
Cinderela, assim co m o Fele-de - Asno e Bicho
Peludo , de certa forma suporta essas dua s ponta s d a
representaçã o d o desejo masculino. Nesse
sentido, elas sã o uma mediação , uma síntese da
mulhe r q u e certos ho men s procuram , ora
suntuos a e pura e por isso amável; ora suja e
degradada e, portanto, sexual• ment e desejável.
Cinderela é uma personage m qu e casa em si esses
opostos : p o d e entã o ser amad a e desejada.
Bettelheim no s aponta em outra direção, ele
no s
lembra qu e na língua alemã há uma figura de linguagem:
"ter de viver entre as cinzas"" q u e significava nã o só
da condiçã o inferior, mas apontava a rivalidade
fraterna. Ou seja, estar entre as cinzas era metáfora de
estar abaixo d e outr o irmão (independentement e d o
sexo), sofrendo a l g u m a d e s v a n t a g e m . Esse é
o g a n c h o par a q u e Bettelheim centre bastante
sua interpretação do cont o no sentido de dar
conta do s problema s fraternos.
Um amor fetichista
inderela é escolhid a po r um traço, o pé.1 2
Certos autore s vêe m aqui resquícios d e
um a orige m oriental d o conto , o n d e
o s pé s sã o v a l o r i z a d o s , o q u e é
uma hipótese a
considerar . D e qualq ue r forma, mão s e pé s
delicado s s ã o si g n o s d e q u e m n ã o tr a bal h a
Fada s n o Div ã - P s i c a n á li s e n a s Hi st ór i a s Infan ti s
114
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s
o
primitivas e difundidas formas religiosas, era o cult o
d o s mortos .
quando os homen s partilharam um a cultura única . Mas
isso são suposições, o fato é q u e a similaridade
da s fábulas e do s c o nt o s distribuíd o s pe l o s
canto s d o planeta segue se n d o um a questã o não-
resolvida .
Em versões mais antigas q u e estas q u e
estamo s trabalhando, se encontr a um auxiliar
mágic o distinto que nos afasta da fada madrinh a e
no s aproxim a da árvore mágico-doadora . Nelas,
Cinderel a é ajudad a por um animal q u e ela protegi
a (vaca, ovelha , cabra, touro o u aind a u m
p e i x e ) e q u e foi m o r t o pel a madrasta. Antes
de morrer, o animal dá instruçõe s à heroína do q u
e fazer co m os seu s ossos : dev e enterrá - los e regá-
los . D es s e t ú m u l o , nascem os o bj et o s mágicos
qu e vã o ajudar Cinderela . outra s vezes , sobr e ele
nasce uma árvor e mágica ou um animal ajudante .
Em outras versões, ainda , o animal ressuscita do s seu s
ossos e entrega à heroín a os presente s mágicos .
De qualquer maneira, a força dess e auxiliar mágic o
ve m de outro mundo : do rein o do s mortos .
Aqui encontramo s apoi o nu m mit o
b a s t a n t e difundido, o d o r e n a s c i m e n t o at ra v é s
d o s o s s o s . Tratava-se d e um a s u p osi ç ã o d e q u e
o s osso s d o s animais, s e e n v o l t o s e m su a
p e l e e e n t e r r a d o s , voltariam à vida - o q u e
n o s re me t e a q u a s e um paralelismo co m o
m u n d o vegetal, já q u e eles sã o plantados. São
crença s xamânica s , en co nt ra d a s e m inúmeros
lugares, q u e falam dess a possibilidade , tant o para
homen s q u a nt o par a animais, de p o d e r voltar á
vida se certas pr e ca u çõ e s rituais c o m seu s
osso s e peles fossem respeitadas . Cogita-se qu e ess e
envoltóri o de peles e osso s seria oferecid o ao s
deuse s para q u e estes lhes devolvesse m a vida. De
qualque r forma, os restos mortais sã o devolvido s à
terra nu m a esperanç a que ela nutra e preenc h a de carn
e outra vez a estrutura
(os ossos) e seu envoltóri o (a pele) .
Geralment e o s animai s ressuscitado s
voltariam com algum problema , algu m oss o faltaria,
ou um do s cascos, enfim, eles acabaria m m a n c a n d o
pel a falha de quem fez o rito. A interpretaçã o dad a é
de que , q u e m passou pelo m u n d o d o s morto s e voltou,
fica marcad o por ter feito sem elhant e empreitad a e po r
isso manca . Por aqui passa m alguma s da s interpretaçõe s
a respeit o da assimetria no andar , e, po r isso,
Cinderel a faria parte do grupo , junto co m Edipo, Jasã o e
Perseu: deste s que caminham c o m dificuldade, tê m o s
p é s marcado s ou usam um a só sandália. São
pe rs o na g e n s q u e , de alguma forma , teria m
conhecid o o s m e i o s d e comunicação c o m o
m u n d o do s mortos .
A religião cotidian a da s culturas q u e no s
dera m origem (greco-romanas) , e um a da s mais
115
O s morto s d a família era m reverenciado s c o m o
deuses , i n d e p e n d e n t e m e n t e de sua s açõe s na terra;
e os vivos tinha m u m a série d e obrigaçõe s para co m
eles. A força de um a família provinh a justament
e dess a união , já q u e o s morto s ativament e
tentava m ajudar seu s vivos e vice-versa . Talve z
a d e d i c a ç ã o d e Cinderel a n o túmul o da mãe ,
assim c o m o a força mágica provenient e dela, poss a
ser u m ec o dessa s antigas crenças . Graças a isso,
faria mais sentid o a idéia cie ligá-la de algum
m o d o ás cinzas e entã o ao s mortos.1 "
Notas
1. BASILE. Giambattista. The Pentamerone.
traduzido por N. Penzer. A íntegra deste conto
pod e ser lida em vwvw.surlalunefairytales.com. de
autoria de Heidi Anne Heiner. disponível desde
1998.
2. PERRAELT, Charles . Contos de Perrault. Bel
o
Horizonte: Itatiaia. 1989.
3. GR1MM, Jaco b e Wilhelm. Contos de Fadas. Rio de
Janeiro: Villa Rica, 1994.
4. BETTELHEIM. Bruno. A Psicanálise dos Contos de
Fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001. p. 292.
5. "A árvore cresce, e o mesmo ocorre com
a mãe interiorizada dentro de Borralheira.
(...) A medida qu e a criança cresce, a mãe
interiorizada também deve passar por
modificações, como ela própria. F u m
pr o ce ss o d e desmaterializaç à o semelh ant e
àquele em qu e a criança sublima a mãe
boa real, transformando - a num a experiênci
a interior d e confiança básica". Ibidem. p.
299.
6. Os pássaros são animais ligados à morte, eles é
que pode m voar até um lugar longínquo que é o
mund o do s mortos. Existe uma conexão
alma-pássaro cm culturas da antigüidade,
seguramente no Egito e na Babilônia. Na tradição
cristã, os anjos qu e levam as almas são alados.
Numa cultura tão distante desta, na do s
índios da América do Sul, encontramo s
também uma idéia de qu e certos pássaros,
e por isso são agourentos, seriam a morada
transité>ria do s mortos.
7. "Quand o as lembranças conservadas pela
pessoa sã o submetida s à investigaçã o
analítica, é fácil determinar qu e nada garante
sua exatidão. Algumas imagen s mnêmica s
certament e sã o falsificadas, incompletas ou
deslocadas no temp o e no espaço.
(...) Forças poderosa s de época s posteriores da
vida modelaram a capacidade de lembrar das
vivências infantis - provavelmente as mesmas forças
responsá• veis por termos nos alienado tanto da
compreensã o
Fada s n o D i v ã - P s i c a n á l i s e n a s Hi st ó ri a s Infa nti s
dos anos da nossa infância". In: FREUD, ligação com a terra, e outros vão ver nesse mesmo
Sigmund. Sobre a Psicopatologia da Vida fato uma ligação com o mu nd o do s mortos.
Cotidiana (1905), vol. VI, cap . IV, p. 56. 13- "Parece que , quand o o fetiche é instituído,
Obra s Completas. Rio de Janeiro: Imago Editora, ocorre certo processo qu e faz lembrar a
1987. interrupção da memória na amnésia traumática
8. Por exe mplo : Cenerentol a ve m de cenere, (...) é como se a última impressão antes da
em italiano, cinza; em francês é chamada de estranha e traumática fosse retida com o fetiche.
Cendrillon, que quer dizer mulher qu e está Assim, o pé ou o sapato devem sua preferência
sempre ao pé do fogo, suja, e provém de com o fetiche - ou parte dela - à
cendre, cinzas ou restos mortais; em espanho circunstância de o m enin o inquisitivo
l Cenicienta, provind o de ceniza, cinzas e espiar os órgãos genitais da mulher a partir
no figurativo restos mortais; em alemão , de baixo, das pernas para cima." In: FREUD,
temos Aschenputtel. derivad o de asche, cinza; Sigmund. Fetichismo
em húngaro temos a Hamupipöke , derivado de (1927). vol. XXI. Obras Completas. Rio de
hamu, cinza; em inglês se usa o nom e Janeiro: Imago Editora. 1987, p.182.
francês adaptado: Cinderclla. 14. "(...) pud e reconhecer nessa fantasia de ser
9. Donzelas qu e se consagravam ao culto da seduzida pelo pai a expressão do típico
deusa Vesta (ou Cibele) e com o sacerdotisa s Complexo de Edipo nas mulheres. E agora
estavam obrigadas, por juramento, a manter a encontramos mais uma vez a fantasia de seduçã o
virgindade para sempre. Seu principal ofício era na história pré-edipiana das meninas, contudo
nã o deixar apagar o fogo sagrado da deus a o sedutor é regularmente a mãe
so b a pena de serem enterradas vivas. As (...) foi realmente a mãe quem, por suas
vestais já são uma manifestação tardia da importância atividades c o n c e r n e n t e s â h i g i e n e c o r p o r a l
do fogo em cada lar grego ou romano, cada casa d a criança, inevitavelmen t e estimulo u e,
deveria ter o seu sempre acesso, e era uma talvez até mesmo despertou, pela primeira
obrigação do don o da casa a sua nâo- vez, sensações prazerosas nos genitais da menina.".
extinção, pois ele tinha um caráter sagrado. In: FREUD, Sigmund. Novas Conferências
10. FREUD, Sigmund. Sobre a Tendência Introdutórias sobre Psicanálise (1933), vol. XXI.
Universal à Depreciação na Esfera do Amor Conferência XXXIII Obras Completas. Rio de
(1912), vol. XI. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1987, p. 149.
Janeiro: Imago Editora. 15. "... esse culto do s mortos perdura por um
1987, 166 páginas. tempo especialmente longo porqu e os mortos
11. BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos Contos são deuses p r ó x i m o s e queridos , mai s
de acessívei s qu e a s divindades oficiais
Fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001, p. 278. onipotentes. Seu culto é estrito e pragmático.
12. Alguns antropólogos fazem aqui uma ligação Compreendemo s agora po r que o índio qu e
com certa s p e r s o n a g e n s míticas q u e p o s s u e deseja uma pesca abundant e vai se deitar sobre o
m um a assimetria no andar, pois, com um só túmulo de sua mãe e ali passa alguns dias
pé calçado, Cinderela certamente claudica. Há um us dormind o e orando ; exatamente da mesma
o mítico, e provavelmente um símbolo, em andar com forma, a Cinderela russa, em sua infelicidade,
um único pé de sandália (monossandalismo). Está vai até o túmulo da mãe e rega-o com água ou
correto, mas a ligação desse caso a essa suas lágrimas, depend end o da variante; ou seja,
característica nã o nos ajuda muito, pois as realiza um ato de libação." In: PROPP, Vladimir.
interpretações sobre a assimetria no anda r també m As Raízes Históricas do Conto Maravilhoso. São
variam muito . Certos autore s acreditam qu e Paulo: Martins Fontes,
seja uma marca da autoctonia, da 1997, p. 178.
116
Capítulo VIII
PAPAI OGRO, FILHO LADRÃO
João e o Pé de
Feijão
As várias faces do pai - Construção da identidade no menino -
Morte simbólica do pai - Reconhecimento familiar do crescimento
A história de jakobs2
oã o e sua m ã e viviam à s custa s d e su a
vaca Branca-de-Leite, cujo leite vendia m na
feira. Cert o dia , a vac a s e c o u , e e le
s ficara m a m e a ç a d o s pela fom e e a
miséria, t e n d o
co m o única saída a vend a d o animal . J o ã o
sugeriu q u e poderi a trabalhar para o sustent o
deles , ma s a mã e argumento u qu e já ante s ningué m o
quis contratar. Ess a versã o é c o n d e s c e n d e n t e ,
poi s a l g u ma s adaptaçõe s sugere m qu e el e
er a u m r a p a z i n h o indolent e e mal-educado .
J o ã o saiu d e casa co m a tarefa simple s d e vende r
a vaca na feira, mas no mei o do camin h o
encontro u u m h o m e m q u e lhe fez um a propost a
peculiar: trocar a vaca po r um p u n h a d o de feijões
mágicos . Apesa r de a troca ser desproporciona l ,
noss o heró i aceitou sem pensa r muito . O h o m e m
lhe fez a seguint e promessa :
"se plantá-los à noite, pela m a n h ã estarã o lá no
céu", o q u e poderi a muit o b e m ser um a convers a d e
charla• t ã o v i s a n d o a e n g a n a r u m m e n i n o
t o l o . E foi exatament e isso q u e penso u a mã e
d e João , q u e s e deses pe ro u ao ser informada do
negócio , jogand o os feijões pela janela e m a n d a n d
o o tolinh o dormi r se m jantar, a m o d o de castigo.
A p ó s te r i d o p a r a a c a m a c o m f o m e ,
Joã o acordou-s e p el a manh ã co m um a
l u m i n o s i d a d e diferente e m se u quarto . O s feijões
mágico s atirado s p e l a j a n e l a c o n f i r m a r a m s e u
poder , crescend o espantosamente , d e tal
f o r m a q u e s e u s g a l h o s entrelaçado s s e perdia
m entr e a s nuven s c o m o um a escada . Não t en d
o mai s nad a a perder , o m e n i n o aceitou o
convit e da curiosidad e e subi u at é chega r a um a
terra e nc a nta d a , situad a acim a d a s n uv e n s . A
promess a d o h o m e m s e cumprira .
Saind o d o p é d e feijão, um a estrad a o
conduzi u até a port a de um a casa gigantesca ,
em cuja soleira estava um a mulhe r igualment e
grande , a q u e m J o ã o pedi u par a co me r alg o d e
café d a manhã , j á q u e n ã o havia seque r jantado .
o do seu jardim ante s de desce r pel o pé de feijão.
Graça s a essa s riquezas , mã e e filho viveram
be m po r u m tempo , ma s q u a n d o terminaram a s moedas,
enorm e mulhe r d e mãezinha e nã o p a r e c e tê-
foi necessári o subir novament e em busca de
la co n si de ra d o a m e a ça d or a . Mas a gigant a lh e avisou
mais.
q u e devia partir, poi s se entrass e na casa poderi a virar café
Na segund a visita, a história tod a se repeti
da m a n h ã de seu marido , o ogro , q u e já estava par a
u de forma similar, e mbor a tenh a sid o um p o u c o mais
chegar . P e n s a n d o mai s n a fom e q u e n o risco, J o ã o
difícil de con vence r a mulher. O souvenir dess a
imploro u q u e o deixass e entra r m e s m o assim, ao q u e a
ocasiã o era ainda mais valioso q u e as m o e d a s trazidas
mulhe r termino u c e d e n d o .
da primeira vez: era um a galinha q u e pu n h a ovo s
Em seguida , co m g r an d e estrondo , p o r qu e a casa tremia
d e o u r o sempre q u e lh e or denav am .
co m cad a um de seu s passos , um gigante de péssim a
E mbor a a galinh a lhe s garantis s e o
aparênci a entrou , mal t e n d o d a d o temp o de o m e n i n o
provent o necessário , J o ã o sentiu v o nt a d e de
engoli r um p o u c o de p ã o e leite e ser ocultad o
voltar lá, já que sua s visitas vinha m s e n d o tã o
dentr o do forno . O monstr o sentiu cheiro de carn e humana ,
rentáveis . Na terceira visita ne m tento u enga na r
ma s a mulhe r o e ng a n o u , dizend o que el e estava era
a mulher, entro u aprovei• tand o um a distração dela
sentind o o cheir o d o s restos d o menino q u e havia
e esconde u-s e n u m caldeirão de cobre . O ogr o mais
de g us ta d o na noit e anterior. Fia o distraiu servindo-lh e
um a vez o farejou e junt o com a espos a
um a lauta refeição, q u e o ogr o engoliu co m a
procurara m n o forno , ma s novament e
voracidad e própri a da espécie . Apavora d o em seu
julgaram se r o cheir o d o m eni n o d o jantar d a véspera.
esconderijo , o m en i n o fez m e n ç ã o de fugir, mas a mulhe r
O tesour o d a ve z er a um a harp a dour ad a q u e
lhe asseguro u q u e devia aguardar , pois ele s e m p r e
tocava e cantav a divinamente . Ao se u som , o
tirava u m cochil o depoi s da s refeições.
gigant e costu• mav a a d or m e c e r c o m o u m b e b ê . J o ã o
Depoi s de comer, o ogr o ordeno u à mulhe r que lh
aproveito u para fugir co m a harp a mágica d e po i s
e trouxess e sua s riquezas , e ela p ô s sobr e a mesa
q u e o ogr o pego u n o sono , ma s ela n ã o
sacos d e m o e d a s d e o ur o q u e ele co meço u a contar.
colaborou . C o m o falava, gritou assustad a q u a n d o o
De barriga cheia, termino u realment e pe g a n d o no sono. Essa
m e n i n o a p e g o u , a c o r d a n d o seu patrão .
foi a oportunida d e para a fuga de João , mas não sem
antes s e apossa r d e u m saco d e moedas , qu e jogou para dentr
118
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Cors o
A versão de Tabart3
início da história é similar, embor a haja
um a ressalva de q u e o m e ni n o é um
inútil, ma s d e bo m coração . Q u a n d o partiu
par a vende r a vaca, ele encontro u um
açougueir o , q u e é
quem lhe fez a proposta . O detalh e interessant e
aqui é que ele realizou a troca pelo s feijões se m q u e
seque r o açougueiro tenh a lhe explicitad o b e m
qua l seria a mágica da qual as semente s era m
capazes . Co m o na outra história, ele é re pr e en di d
o pela mãe , q u e atira os feijões pela janela e o
julga um tolo se m conserto . A diferença entr e a s
versõe s começ a q u a n d o J o ã o chega ao alto do pé
de feijão e é recebid o po r um a
fada, que lhe cont a um a história:
Trocando um pássaro
na mão por outro
voando
negócio da China feito por João
merece algumas palavras: afinal, que
troca é essa em que negociamos algo
valioso por uma
promessa? Pod e haver outro s
sentidos associados, mas salta aos olhos qu e
essa é uma representação perfeita para aludir ao
desmame. Afinal, é quand o fazemos o
negócio , a princípio nada proveitoso, de
trocar aquele leite certo de cada dia por algo
impalpável.
O fato é que a promessa da mágica dos
feijões se realiza. Afinal, toda criança verá um dia
seu corpo brotar em estatura tal qual o talo de
feijão, aimo ao céu. Se esses feijões realmente
significam a certeza de um crescimento, eles são,
de certa forma, mágicos.6
Porém, para crescer, é preciso perder as vantagens
de ser pequeno, como o leite do seio materno
represen• tado pela vaca. Podemos lembrar que,
movida pela raiva, a mãe manda Joã o para
cama com fome, sublinhando que o início do
conto trata mesmo de uma operação de
distanciamento da mãe e da sua condição de
alimentadora.
Quando o homem que propõe a troca da
vaca por feijões é um açougueiro (na versão
de Tabart), fica claro que ele a quer para outros
fins, diferentes do fornecimento de leite. Esse
Fadas n o Div ã — P s i c a n á l i s e n a s História s I n f an ti s
fada sabe mo s ter sid o o pai de João , é
muit o mai s um a permissã o simbólica par a a retomad
a do s tesouro s d o q u e um a ajuda. C o m o na s
mais a leitura de q u e J o ã o negoci a a versã o
histórias d e princesas ,
nutridor a da mãe . A troca resultante será a seguinte : el e
entreg a aquela qu e lhe dava leite, ma s secou , e
receb e u ma s semente s cuja magia é o crescimento
. É um negóci o de risco, pois ele dá algo q u e
n ã o lhe serve mais e receb e algo qu e ainda nã o é.
O passad o encontr a se u fim na s mão s do
açougueiro , o futuro é promissor, enquant o o
present e é um a incerteza.
O começ o do cont o já denunci a q u e a mã e
n ã o estava contente co m João . Em várias versões, ele é
um inútil desmiolado, com o se nã o bastasse, mostra-se
ainda mais tolo a partir do mau negóci o qu e faz. Enfim,
tud o começa com uma grand e desilusão de parte
a parte. Decididamente, Joã o está longe de ser o qu
e sua mã e espera dele. O contrário també m
ocorre , pois mã e e filho passavam fome, entã o
certament e Joã o nã o andav a satisfeito com sua nutriz. O
desencontr o já estava dado , em casa já nã o havia muito
para esperar, ao m enin o só restava partir para negociar co
m o destin o e tentar obte r o qu e necessitava fora de
casa.
120
D i a n a I i c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o
122
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o
ogr o n ã o é t a m b é m uma antropófaga (como n
o Pequeno Polegar, de
partir daquele momento, as riquezas (estas mesma s q u e
estamos associando aos traços identificatórios herdados )
para serem do menino terão de deixar de pertencer ao
gigante de forma explícita, po r isso, este terá de morrer.
E importante observa r q u e é so ment e no último
roubo que o gigante r ec o n he c e J o ã o c o m o o
auto r dos outros dois. Se os disfarces adiantara m
ante s é porque foi só a partir dali q u e ele atingiu
algu m tip o de identidade. Essa tolice do ogr o - e da
sua mulhe r - serve para frisar qu e as sucessiva s
incursõe s é q u e foram construind o um a
identidad e par a J o ã o , q u e passou de ladrãozinh
o a n ô n i m o à posiçã o de rival. Depois disso, o
ogr o p ô d e morrer. Morto o d o n o , os bens
roubados restam c o m o um a herança , p as sa n d o a
ser legitimamente de João . O q u e de fato aí se legitima é a
condição de crescido, capa z da inteligência e da
coragem indispensáve i s par a b us c a r d o m u n d
o o
necessário para prove r a sua casa.
Os tesouros do ogro
s tesouro s do ogr o sã o três: a galinha
do s ovos d e outro , a s sacas d e moeda s d e
o ur o e uma harp a q u e canta e toca
sozinha .
A galinh a d o s o v o s de o u r o é a antítes e
da vaca seca. As galinha s serve m ao s h o m e n s
co m sua s u r p r e e n d e n t e c a p a c i d a d e d e fabrica
r o v o s diariamente. Estes, alé m de fonte de
aliment o para nós, referem a questã o da orige m da
vida. Inclusive o ovo é um do s símbolo s da vida,
ou da ressurreiçã o como na Páscoa católica. Então,
tant o qu a nt o a vaca. a galinha está em condiçõe s
de representa r a mulhe r e seus don s de fertilidade
e alimentação . Na versã o de Jakobs, a primeira coisa
que J o ã o tira do monstr o é aquela de qu e a vida o
havia privado : a mãe .
O ouro , porém , ultrapassa a condiçã o
matern a dos ovos. Esse metal é o lastro da s
moe das , possu i um valor universal, n ã o é fiel a
n e n h u m d o n o , serv e àquele qu e o possuir. Uma
mulhe r q u e fosse c o m o a galinha do s ovo s d e
o ur o seria c o m o u m c h e q u e a o portador, d a n d o
seu s tesouro s femininos àquel e q u e lhe ordenar.
De fato, o amo r é c o m o o ouro , p o d e brilhar
na m ã o de qual que r um q u e o possua .
Aliás, so b sua aparênci a de servilidade, a mulhe r
do ogro se revela b e m p o u c o fiel: alerta J o ã o
para o perigo qu e corr e e aind a o alimenta, parec e nã
o estar do lado do marido , ap e n a s está ali par a
servi-lo po r temor. Q u e m escut a essa história,
evidente me nte , se pergunta po r q u e a mulhe r d o
Perrault) , dispost a a partilha r d o delicios o
m e n i n o assado . C o m o Réia, a espos a de Cronos , a
ogra guard a o m e n i n o par a si, n ã o neg a q u e
o pai é um rival perigos o e temível, ma s te
m a corage m cie salvar o p e q u e n o ladrã o qu
e a sedu z co m sua condiçã o d e filho
faminto. F.ssa tensã o entr e a relaçã o co m
se u h o m e m e co m seu filho é a raiz da s
contradiçõe s q u e revela m à criança q u e ningué
m é um c o m pl e m e nt o perfeito para o outro .
Se o pai fosse t u d o para a mãe , ela
jamais teria s e entregu e à maternidade ,
d e s e j a d o par a s i u m p e q u e n o sugador . Se o
b e b ê fosse tud o para ela, para q u e entã o ela s e
manteri a co m seu ogro , providen - ciand o-lh e
todo s o s prazere s q u e ele lhe exige? A
galinha do s ovo s d e ouro , portanto , mostra q u
e J o ã o p o d e até voltar ao lar e oferecer os
tesouro s para sua m a m ã e querida , mas depoi s de
ter enfrentad o o gigante algo mudou . Ela estará mais
cm posiçã o de testemunha r a s conquista s d e
cresciment o d e seu filho, d o qu e d e retorn o a
um a díacle idealizada . As artimanha s do
m e ni n o lhe permitira m vence r o seu rival e
també m aprecia r su a grandeza .
Apenas para fazer um contrapont o co m o mito
de Eclipo, po d e m o s dizer qu e J o ã o nã o despos a a
mãe . A história cessa n o m o m e n t o e m q u e ele
lhe prova qu e cresceu e circula co m outro s
valores, mais importantes qu e o alimento qu e ela
pod e fornecer, ou seja, o our o capa z de
comprá-lo .
Depoi s de comer , o ogr o costumav a gritar co
m a mulhe r pedindo-lh e q u e seu s tesouro s fossem
trazidos. Ele o s examinava , contand o o
d i n h e i r o , v e n d o a galinha pô r seu s ovo s dourado
s e , po r fim, adormecia , r o nc an d o sonora mente ,
satisfeito co m a comid a e as posses . O último
desse s ben s nã o diz respeito ã riqueza, ma s diretament
e ao prazer: trata-se da harp a encantada . Ela toca
para ador mece r se u amo , mas ta m b é m é ela q u
e grita q u a n d o J o ã o a peg a e c o m eç a a
levá-la embora . A harp a faz o q u e a ogra n ã o fez, é
fiel àquel e a que m proporcionav a p ra ze r .
S o m e n t e q u a n d o privad o dess e bem , o gigant e
desperta , reconhec e J o ã o c o m o o me nin o qu e vinha
sistematicamente rouban do - o e decid e eliminá-lo.
D ec id i da m e nt e , nã o era possíve l
compartilha r ess e tesour o co m o pai . O s ovo s e a s
m o e d a s p o d i a m ser po ss uí d o s po r J o ã o , e n q u a n t o
o se u d o n o original aind a vivia ali no alto do
pé de feijão, ma s a harpa , ess e instrume nt o d e
prazer , j á é demais . Q u a n d o u m filho faz su a
escolh a a m or o s a o u erótica, d e o n d e buscar á
extrair o deleite , o g oz o , terá de ser o a m o
d a situação , desejar á s e senti r o o g r o d a vez .
Q u er er á se r o legítim o p o s s u i d o r d e seu s
tesouros , capa z d e
123
Fadas no Divã - Psicanálise na s Histórias Infantis
produzir naquele que escolher para amar ou desejar açougueiro é aquele que o priva dos seios, é o que
eroticamente a servidão da harpa, que não reconheça lança o menino na aventura e também o ensina que é
outro que não ele. Depois do furto da harpa encantada, preciso ser astucioso. Essa lição tem de ser rapidamente
nã o h á lugar para dois. Nesse mo mento , aprendida para ser usada contra aquele que representa
Jo ã o representa o menino crescido que já não se o aspecto mais terrível: o ogro. O pai açougueiro
contenta com o que é do pai, nem com o passado; da é també m o último, porqu e seus feijões
vida ele quer o prazer que lhe seja pessoalmente realmente fizeram a mágica. Só no fim é possível ao
endereçado. Nossos argumentos falam da imaterialidade menino dar- se conta que valeu a pena. mas depois de
desses tesouros, que não seriam outra coisa que a ter vencido os obstáculos que esse mesmo pai impôs.
transmissão de dons de pai para filho. Outra evidência Identificado com a inteligência desse pai, o
que valida a hipótese é o lugar onde João vai buscar menino arrancará a esperteza necessária para saber
os tesouros: num mundo à parte, cujo acesso o pé de como sair das ciladas da vida.
feijão pos- sibilita, criando uma passagem para essa É preciso lembrar que uma identificação
outra dimen- são (agora nas nuvens), embora já estejamos efetiva pressupõe a morte imaginária daquele que nos
no território das fadas. Que reino é esse que se situa além legou o traço. Muitos casos de incompetência de um
do nosso alcance? Que lugar e esse o qual só por meio sujeito para a \ ida se devem ao fato de que os dons
de um expediente mágico podemos alcançar? João continuam fazendo parte do pai, assim como toda a
não tem um pai vivo, logo só é possível encontrá-lo sabedoria e a esperteza seguem como atributos dele.
no reino dos mortos, que também é o reino Não é o caso de nosso herói, ele aprende
das gerações passadas, responsáveis pela tradição que rapidinho que na vida ganha quem pensa mais
nos é legada. Um dos aspectos sempre lembrado rápido, e o açougueiro, que não será mais
do ogro é necessário, desaparece.
seu excelente faro para humanos. "Fi-feu-fo-fum, farejo o O próximo pai, o ogro não está
sangue de um inglês, esteja vivo ou morto, doente ou disposto a entregar-se. Na verdade não é tarefa fácil
são, vou raspar-lhe os ossos e comer com pão"10 é a para os pais a de serem usados pela
frase mais marcante do conto e o clímax para subjetividade dos filhos e depois dispensados. Há
os pequenos. Existe uma crença muito antiga que algo nos pais que diz ao filho que ele nunca crescerá,
versa sobre os odores, a qual pode vir em nosso precisará deles para sempre e jamais será tão capaz
auxílio: tanto os humanos sentem facilmente o quanto eles para enfrentar a vida. Por isso, a
mau cheiro dos mortos, como os mortos sentiriam de resistência dos pais ao crescimento dos filhos
longe o mau cheiro dos vivos. Cremos que o ogro se precisa ser eliminada através da morte do gigante. Aliás,
situa nesse outro espaço porque ele está ligado à morte, a be m da verdade, quand o os filhos ficam
até porque ele traz a morte aos humanos. Nesse grandes, os pais parecem fisicamente menores.
caso, ela vem associada á comida (ser devorado), O ogro tenta correr tanto quanto João, mas este,
mas talvez não só pelo aspecto das teses orais de mais leve e rápido, corta o talo do pé de feijão, fazendo
incorporação, mas porque a carne possibilita o gigante desabar pelo próprio peso. Há um
pensar na diferença entre os mortos e os vivos. Afinal, corte que o filho tem de fazer desse vínculo,
como os vivos se alimen- tam de carne morta, embora este não cesse de se reconstituir e regenerar de
podemos pensar que os mortos se alimentam da várias formas ao longo da vida. Se de entrada o pai
carne dos vivos; pod e ser esse o raciocínio de precisa impor ao filho um limite, ficando com a vaca
fundo de algumas lendas sobre ogros e outros para sua própria satisfação, na saída é o filho que
antropófagos que vivem em outras dimensões. lembra ao pai que ele está pesado e velho. Nada
como conviver com a juventude dos filhos para
contabilizar que o tempo não traz só ganhos, que
Morte dos três pais as perdas são muitas.
O pai que ficará para sempre, no
ão é fácil ser filho, uma identidade é masti- melhor dos casos, é aquele nobre cavalheiro do
gada e digerida com lentidão e dificuldade. conto de Tabart, o dono original dos tesouros. O
O pai é uma figura que, sob todas suas faces, o problema é que ele nunca sobrevive para entregar
principal que tem a oferecer é o desafio. seus dons. Quando o filho se apropria, o pai em
Do ponto de vista do menino, cada conjugação pessoa, já superado, não tem mais a mesma
do pai merece uma contrapartida. O primeiro importância. Afinal, uma pessoa precisa crer que
a ser encontrado nesse conto é também o seus dons e conquistas são realmente seus, senão
último. O pai estará a vida toda lidando com a própria existência
como se fosse patrimônio alheio.
124
Di a n a L i c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o
casos, a
Volta ao lar
o fim do conto , em a p en a s um a da s versões ,
Joã o caso u co m algum a princesa ,
m a s podemo s ter a certeza d e q u e e m amba
s el e está apt o par a fazê-lo. A história
termin a
afirmando qu e ele e sua m ã e viveram felizes
par a sempre. Resta-nos a pergunta : o q u e J o ã o
q ue r c o m essa mãe que já nã o tem muito a lhe oferecer?
Sup o mo s que ela está na condiçã o de testemu nha r po r
part e da família o necessário r e co n he ci m e n t o da s
conquista s do filho. Justament e po r q u e as aventura s
acontece m fora do lar, é important e q u e os pais possa m
co n he c e r a vitória do s filhos, par a q u e fique claro q u e
est e q u e venceu é o m e s m o p e q u e n o de cujas
ca p aci d a de s todos duvidavam. Se essa é um a
história q u e tem a dizer sobre a aquisiçã o de um a
identidade , p o d e m o s acrescentar qu e esta t a m b é m
d e p e n d e d e s e fazer reconhecer co m o a mesm a
pesso a do início ao fim da própria história. Em
inúmero s conto s de fadas, o heró i busca sua família ,
e m gera l seu s irmãos , p a r a compartilhar suas
glórias, par a viver junto ness e nov o reino em qu e
ele é s ob er a n o .
A mãe perma nec e e m casa, c o m o u m resto
d o passado, com o ficam todo s os pais en q ua n t o seu s
filhos partem e voltam , de ta n t o em tanto , par
a fazer o balanço de sua caminhada . Os pais q u e
ficam, real ou metaforicamente, n o lugar e m q u e
foram deixado s a o partir, servem c o m o el o entr e a
criança q u e se era e o jovem ou adult o q u e o filho
se tornou .
Voltar par a casa é vivencia r um fio de
conti - nuidade, sentir-se part e de um a história,
confirmar a identidade de um a pesso a na s várias
circunstância s de sua vida. Por isso, nest e conto ,
c o m o na vida. o filho vai e a mã e fica, poi s
ela é fiel depositári a da memória da infância
perdida . E c o m u m q u e q u a n d o se encontrare m
en v ol vi d o s c o m a p a t e r n i d a d e ou maternidade, o
s filhos retorne m par a pergunta r à m ã e detalhes d o
se u p a s s a d o mai s r e m o t o . Desta vez, ouvem
com agrad o as mesma s histórias q u e ante s os
constrangiam : r e l a t o s d e c o m o d o r m i a m o u
s e alimentavam, de c o m o nascera m e da s
gracinha s ou travessuras q u e faziam q u a n d o bebês .
É q u a n d o s e está passand o par a o outr o lad o
da linha - agor a o filho é outr o -, q u e se torn
a possível resgatar essa s lembranças, compartilhá-la
s co m a mã e (o u co m os pais) e reapropriar-se
delas . Um d o s grande s benefícios da parentalidade está
em encontrar-s e de algum a forma com a criança q u e
um dia se foi.
Geralment e é na vida adult a a ocasiã o par a ess
e retorno , a s s i m c o r n o , n o m e l h o r d o s
125
o po rt u ni da d e para u m convívi o mais a m e n o
co m o s próprio s pais . O trabalh o d e
identificação a q u e n o s referíamos oportuniz a
tant o a consciênci a de q u e se é similar, em bor a
diferenciad o deles , q ua n t o o reconhe • ciment o d a
dívida sobr e o s legado s recebidos . Q u a n d o no s
re co n he c e m o s e n q u a n t o d ev e do r e s d o fato d e
ter pertencid o a uma linhage m ( m e s m o no s caso s
e m q u e acreditamo s q u e seja um a se m
predicados) , encontra • mo s um a forma d e
viver mais interessante , q u e no s permit e
oscilar entr e a individualidad e e o sentiment o d e
pertence r a u m gr u p o . O trabalh o d e um a
análise freqüentement e repet e a o pe ra ç ã o d e
João : primeir o pega r as riqueza s - sejam elas
fartas ou parca s - d o s pais , a segui r
conscientizar-s e d e q u e proviera m deles , d e p o i s
ap r op ri ar- s e dela s e , p o r último , aceita r a
o po rt u ni da d e d e q u e elas façam part e d e um a
história p e s s o a l . Par a s a b e r q u e m s o m o s ,
é f u n d a m e n t a l descobri r de o n d e viemo s e de
q u e é feita a bagage m q u e carregamo s para todo s
o s lados, a qual c h a ma m o s d e identidade .
Poderíamo s també m pensa r qu e Joã o
é u m p e q u e n o Édipo , poi s n o fim d a
aventur a el e volta par a casa, vitorioso, t e n d o
vencid o o gigante , par a goza r o s tesouro s co
m mamãe , c o m o aquele s filhos crescido s q u e
n ã o troca m o col o d a mã e po r amore s d o tip
o d e q u e u m h o m e m p o d e usufruir. Nã o
deix a de ser um final mais convenient e às crianças
peque nas , d o q u e aquele s no s quai s o s
tesouro s estã o se mpr e e m algu m rein o
distante , e a princes a te m d e se r
conquistad a o u d e algum a forma negociad a co m
algum s o b e r a n o s o g r o - o g r o . Pa re c e at ra e nt e ,
volta r par a finalmente o cu p a r o lugar d o papai
, se r o h o m e m d a casa. Mas essa é um a cen a
bastant e difícil, pois a mã e p o d e se r a mai s
atraent e da s m u l h e r e s ao s ol h o s a p ai x on a d o s
d o filho, mas , ao s olho s dela, el e sempr e será um
b e b ê incompetent e para a vida, q u e precisa
de sua ajuda par a co me r e se agasalhar.
Normalmente , essa saída acab a s e n d o m e n o s
um a forma d e se r o h o m e m da casa e mais
uma maneir a de perpetuar-s e na condiçã o de
filho.
Voltar par a casa vencedo r é um projeto da
criança q u e alguma vez se disse: -"ele s vã o ver!".
São inúmera s as histórias de fadas na qual um
jovem, de preferência o filho menor , considerad
o tolo e fraco, identificado co m toda s aquela s
incapacidade s q u e tem aquel e qu e ainda nã o
cresceu, sai para provar qu e é o mais espert o e capa
z de sua prole. Ele sempr e super a irmãos
mais velhos e sua revanch e às vezes passa pela
grandez a de incluí-los e m seu nov o reino,
oferecendo-lhe s esposa s e riquezas. Nã o é
precis o ser o filho caçula par a se identificar co
m ess e personagem , basta ser criança.
Fadas n o Div ã - P si c an á li s e n a s Hi st ór i a s I n fa n ti s
Tabart, qu e ele chama de "a versão
expurgada", "faz co m
Na maior part e da s vezes , é o pa i q u e m
duvid a da competênci a do filho mais m o ç o , o q u e
torn a su a aventura bem-sucedid a um a revanch e
contr a a falta d e crédito recebida . N o cas o d e
João , a dúvid a é explicitada pela màe , q u e
mediant e a troca infeliz do s feijões pela vaca constata
q u e n ã o d á par a conta r c o m o filho para nada,
fazend o cor o c o m textos os pai s e irmãos mais
velho s q u e dize m q u e n ã o s e dev e confiar n o s
p e q u e n o s , at é q u e ele s p r o v e m d o q u e s ã
o capazes .
Notas
1. Os gigantes e os ogros compartilham o tamanho, a
maldade, a brutalidade e a fama de
antropófagos. Ambos podem ser descritos com o
monoculares (o que a nosso ver sublinha o
papel do olhar nesses monstros) e, quan d o são
representados , ambo s possuem uma bocarra
pronta a devorar. Polifemo. o ciclope qu e
topou com Ulisses, é um ancestral ilustre
desses seres qu e hoje pode m ser incluídos
nessa categoria confusa entre o gigante e o
ogro. Por outro lado. existem inúmeros mitos qu e
levam a crer que o home m primitivamente era um
gigante e que vem degenerando , ficando cada
vez menor, mais traço e vivendo meno s tempo . O
ogro possui uma característica qu e nem sempre o
gigante possui, u m olfato b e m d es e n vo lv i d o
par a percebe r a proximidade de humanos.
Provavelmente a palavra
"ogro" vem de Orcus. figura de origem popular
na religião romana, às vezes confundida com
Caronte e, por isso. associado à morte.
2. JAKOBS, Joseph . Contos de Fadas Ingleses.
São
Paulo: Landy. 2002.
3. "As aventuras de Joã o foram registradas em primeiro
lugar por Benjamin Talbart, em 1807, c o m o
A História de João e o Pé de Feijão'. Tabart baseou-se,
sem dúvida, em versões orais qu e circulavam
em sua época, embora afirmasse qu e a fonte
de seu conto era um manuscrito original". In: TATAR,
Maria. Contos de Fadas: Edição Ilustrada &
Comentada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
Esta versão, m en o s popula r hoje e m dia, p o d
e ser lida e m portuguê s na tradicional
enciclopédi a infantil O Mundo da Criança,
publicada na década de 1950, pela editora
carioca Delta.
4. MILLS, Alice. Cbildren's Treasury. Ne w
York: Random House, 2002. Tradução nossa.
5. Na opiniã o de Bettelheim, esse cont o de
qu e tud o qu e suced e a Joã o seja uma
retribuição moral em vez de um a história sobre a
aquisição da masculinidade". Ele o contrapõ e ao cont o
de Jakobs, qu e considera "original": "O original de João
e o Pé de Feijão é a odisséia de um menin o qu e
luta para c o n s e g ui r i n d e p e n d ê n c i a de um a
m ã e que o menospreza e tenta conseguir por conta
própria uma certa grandiosidade. Na versão expurgada,
João faz apena s o qu e lhe diz outra mulher
mais velha e poderosa". In: BETTELHEIM, Bruno.
A Psicanálise dos Contos de Fadas. Rio de Janeiro:
Paz e Terra,
2001, p. 231 (nota).
6. Poderíamos inclusive pensar qu e eles contêm uma
promessa de crescimento qu e é muito preciosa era
particular para um menino , pois o feitiço
propicia algo qu e se parec e com uma ereçã o
gigantesca. Assim cont o as sementes são uma
analogia recor• rente do sêmen human o (não só pela
origem comum das palavras, mas també m pela
história da semen- tinha do papai na barriga da
mamãe). Nesse sentido, a magia do s feijões seria alusiva
à maturação sexual do menino. Bettelheim propõ e essa
leitura ao afirmar qu e "escalar o pé de feijão simboliza nã
o só o poder mágico de ereçã o do falo, uras
també m os senti• mentos do menin o em conexã o
co m a masturba- ção". Ele també m atribui essas
fantasias a um sonho, dize nd o q u e "nenhu m
menin o norma l poderia, durante o dia, exagerar
de mod o tão fantástico as esperanças qu e sua
masculinidade recém-descoberta lhe desperta. Mas
durante a noite, no s sonhos, isso lhe aparec e em
imagens extravagantes, com o o pé d e feijã o p o r
o n d e s o b e a t é o s c é u s " . In: BEITELHEIM.
Bruno. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Rio de
Janeiro: Paz. e Terra, 2001, p p . 227 e
228 (nota).
7. A leitura freudiana da identificação co m o pai e da
rivalidade qu e esta conté m leva-nos a pensar
que que m que r se parecer co m o outro tem boa s razões
para devorá-lo. Nesse sentido, poderíamo s pensar
q u e . de certa forma. J o ã o elimina o ogr o e
se apropria do s seus objetos com o se
incorporasse algumas partes deste, lhe comesse
alguns pedaços:
"A identificação é conhecida pela psicanálise como a
mais remota expressão de um laço emocional com outra
pessoa. Ela desempenh a um pape l na história
primitiva d o Co m p le x o d e Édipo . U m
menin o mostrará interesse especial pel o seu pai;
gostaria de crescer com o ele, ser com o ele e tomar seu
lugar em tudo. Podemo s simplesmente dizer qu e
toma seu pa i com o seu ideal. (...) O menin o nota qu
e o pai se coloca em seu caminho , em relação à
mãe.
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o C o r s o
127
Capítulo IX
HISTÓRIAS DE AMOR I: QUEM AMA O
FEIO, BONITO LHE PARECE
130
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mário Cor s o
e pel a família
132
Di a n a L i c h t e n s t e i n Cors o e Mári o C o r s o
A Bela e a Fera
om petind o co m O Rei Sapo, A Bela e a Fera é
um a da s mais lembrada s histórias de noivo
animal. Enquant o a primeira é um típico conto de
fadas, a segund a no s chego u através das
versões romanceadas , embor a originalmente existissem
conto s de fadas co m estrutura similar.
A arquitetur a da história é relativament e simples. Por
um a necessida d e d o pai, um a bela jove m entrega- se a
um c a s a m e n t o de c o n v e n i ê n c i a . O marid o é
assustadoramen t e feio, ma s igualment e rico. Ao chegar á
casa o n d e ela terá de viver c o m seu n o v o consorte,
encontr a nel e um a s ur pr ee n de n t e educ ação , quando
su a únic a e x p ect at i v a er a se r d e v o r a d a . A
jovem desco br e sensibilidad e e gentileza s o b a pel e
de um monstro , e est e se beneficia cio b o m coraçã o
da bel• d a d e nad a orgulhosa . Embor a seja
certament e tam• b é m u m a a l u s ã o a o s c a s a m e n t o s
arr a nj ad o s , que tinha m d e ser enfrentado s pela maio r
part e da s mulhe• res até o triunfo do amo r
romântico , n ã o eleve ser ap e n a s essa a razã o da
sobrevivênci a dess a história até nós . A Bela e a fera
restou c o m o representant e de um a vasta linhage m de
conto s em cjue o a m o r precisa transcende r a s aparência s
animalesca s par a acontecer. O relato dess e cont o de
fadas n ã o foi colhid o da
tradiçã o popula r pelo s Grimm , ne m po r
Perrault, celebrizou-s e na m ã o de dua s da m a s
francesas que produzira m as mais popular e s versõe s da
história, em m e a d o s do sécul o XVIII. Existem
narrativas similares d e m oça s en tr e gu e s a noivo s
animai s e m toda s a s culturas, ma s a mais célebr e
é esta de Jeanne-Marie Leprinc e de B ea u m o n t (e m
1756). Essa versã o é a mais parecid a co m as narrativas
tradicionais d o s contos de fadas. Nela, até a cen a final
da transformaçã o de m on st r o e m h o m e m , Bela
ignor a q u e su a Fera n a verdad e é um bonit o
príncip e enfeitiçado . A maior part e do relato enfoca
o s ur pr e en d en t e convívi o da jove m co m o monstro , e
m q u e ela v ê u m a mo r brotar d e dentr o da s pele s d e
u m se r tã o p o u c o atraente .
Anterior a esta, temo s a t a m b é m bastant e difun•
did a versã o d e Ma da m e d e Villeneuve (e m 1740), u m
relato aind a mai s maneirista q u e o d e Beaumont . Nele, a
j ove m, d e s d e sua c h e g a d a ao c a st e l o, s o n ha
Diana Líchtenstein Corso e Mário Corso
• em outros contos semelhantes, a
trama começa com uma viagem de um pai
insistentemente com um belo príncipe, por viuvo, outrora rico, que perdera seus bens. As
quem imediatamente se apaixona. Ela também descobre irmãs
que a imagem dele está estampada em quadros por todo de Bela não cessam de se queixar dos revezes que a
o castelo, assim como há a voz de uma fada nova vida de trabalho e austeridade lhes impõe. Já a
que lhe sussurra que não se deixe levar pelas jovem parece conformada, sabe da desgraça que
aparências. A jovem passa a crer que o príncipe com se abateu sobre o pai e faz de tudo para melhorar a vida
quem sonha é prisioneiro do monstro nas masmorras do
castelo. Vemos que, nessa versão, ela conta com pistas.
De certa forma, assemelha-se à princesa que beija
o sapo, sabendo antecipadamente do resultado. A
jovem de Villeneuve convive com o monstro,
mas seu coração nunca pertencerá ao animal, ela
vive presa ã fantasia com o belo príncipe, conta com a
possibilidade de sonhar com um casamento baseado na
perfeição dos consortes.
Na maior parte das narrativas em que uma jovem é
entregue a um monstro, ela se surpreenderá
ao encontrar amor ou pelo menos algum tipo de
bem- estar, nem que seja o da riqueza do ambiente,
onde só esperava escravidão ou castigo. O
relato das senhoras francesas certamente é o grande
responsável pela permanência desse conto na memória
do mundo moderno, já que elas traduziram a fórmula
folclórica tradicional, o noivo animal, para as
modalidades e a linguagem dos padrões amorosos
do seu tempo, da mesma forma que Perrault fez, à
sua época, com outras histórias da tradição.
Para estabelecer algumas conexões,
podemos arrolar, entre os parentes próximos de A Bela
e a Fera, o conto norueguês A Leste do Sol, a Oeste da
Lua, em que o noivo é um grande urso branco,
e O Lobo Branco, conto asiático que chega até nós
através da
„- compilação de Andrew Lang. Apenas para mostrar que
lidamos com um território bastante vasto e
pouco propício a estereótipo s , lembram o s a
históri a anteriormente citada, A Gata Branca, que
inverte tanto os termos de Bela quanto os de Fera. Ali nos
deparamos com a vez de uma princesa enfeitiçada
encerrar um jovem príncipe em seu castelo, encantado-o
e fazendo- o enamorar-se dela, apesar de sua forma
animal.
P
anto nas versões que comentamos
quanto
de todos com bom humor e muitas lides
domésticas. Seu bem-estar provém do amor
correspondido pelo pai; das irmãs mais velhas
recebia tratamento similar ao recebido por
Cinderela.
Antes de viajar, por um negócio que
esperava lhe proporcionasse a volta da antiga
condição finan• ceira, o pai oferece a cada
filha a possibilidade de encomendar um presente.
As irmãs mais velhas pedem belos vestidos ou jóias,
presentes caros, evocação da opulência que ele não
podia mais lhes oferecer. Bela, sempre
compreensiva, pede apenas uma rosa, um
presente de amor.
Voltando de sua viagem, na qual seus
negócios foram um fracasso, o pai perdeu-se numa
tempestade e chegou a acreditar que havia
encontrado seu fim. Entretanto, exausto, faminto e
molhado, descobre um castelo mágico, onde
encontra calor, uma mesa de iguarias digna de
um rei, roupas secas, mas nenhuma viva alma. Após
comer e dormir, já tendo desistido de agradecer
pessoalmente a seu cortês anfitrião invisível, que
julgava ser uma boa fada, está em condições de
empreender a viagem de volta. Eis que vê a
oportu- nidade de satisfazer o desejo da sua caçula,
já que se depara com um belo canteiro de rosas.
No momento em que colhe a flor, surge o dono do
castelo tomado de fúria, acusando-o de responder á
sua hospitalidade com um roubo. É difícil de
entender tal reação. Já que tudo ali havia se
oferecido para o bem-estar do hóspede, por
que com as rosas seria diferente? Mas estamos
no universo da lógica dos contos de fadas, se uma
transgressão não acontece, não temos conto.
O castelo pertenc e a uma fera de
aspect o repelente e humor condizente com a má
aparência, o monstro exige que o negociante
pague com a vida pelo roubo. Este lhe explica
que a flor era para atender ao desejo de uma de suas
filhas. O monstro oferece- lhe então a possibilidade
de voltar para casa e ver se alguma delas se
candidata a morrer em seu lugar - no relato de
Madame de Villeneuve, a Fera não fala em matar
o mercador, mas que sua vida lhe pertencerá.
Nesses casos, ele aceitará a troca por uma
de suas filhas, mas apenas se ela se propuser
voluntariamente. A óbvia continuação é a
inegociável posição de
Bela de ir no lugar do pai, já que seu pedido
era o que havia causado toda a confusão. A rosa
solicitada se equivale aos rapúncios dos pais de
Rapunzel, que lhes levam a dar uma filha, em troca do
vegetal colhido, a uma bruxa que os ameaça. Vemos
então que, sob a máscara da humildade, Bela
pedira o presente mais precioso, aquele capricho
que levou o pai a se arriscar e que precipita a trama.
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Fadas n o Div ã — P si c a n á l i s e n a s Hi st ó ri a s I nf a n ti s
O present e q u e ela p e d e é um a prov a de realment e se inicia. A jovem volta para a casa da família,
amor, aliás, mais q u e isso, é parte d o comérci o d e ma s seu coraçã o já n ã o pertenc e ao s seus ;
u m a mo r qu e nã o precisa d e provas ; é mais d o q u e j á ela volta par a junto do pai, ma s agor a está ligada à
te m junt o dele, é um fruto da terra, representant e da vida Fera e sabe do perig o dest e vir a morre r de tristeza se
simple s qu e levam. Já sua s irmãs, ao solicitarem a n ã o retornar n o praz o c o nv en ci o na d o .
restituição da riqueza perdida , mostra m ao pai Em casa, distrai-se. d es c u m p ri n d o o praz o
sua crítica pela situação em qu e foram levadas a que havia c o m b i n a d o co m Fera par a sua estada ,
viver, c o n d e n a m - n o pela penúria , nã o estã o seja pelo praze r de convive r co m se u pai e seu s irmão s
satisfeitas co m o pa i q u e têm . Ao mesm o tempo , a homens, seja. conform e a versão, pelo s ardis da s irmãs
necessidad e de presente s caro s e valiosos denot a duvida invejosas, q u e visavam ao seu atraso par a qu e o monstr o
s a respeito de um amor. Q u a nt o meno s arraigado ele perdesse a paciênci a e a devorasse . Ao c a b o de
for, mais d e p e n d e r á de objetos qu e o provem . algu m tempo, movid a pel a culp a e po r um afeto
Jóia s e r o u p a s r e p r e s e n t a m aqu i a qu e descobrira a ligava a se u esquisit o
c o m p a n h e i r o . Bela volta ao c ast e l o o n d e o
superficialidade do víncul o q u e ligava o pa i ás
e n c o n t r a d e f i n h a n d o . T o m a d a d e tristeza, chora
outra s filhas. Já a flor, q u e Bela pedi u a pe n a s par a
, declar a se u a m o r e su a intençã o de aceitar o
satisfazer o desejo d o pai d e q u e ela t a m b é m
p e d i d o de casa mento , p r o p o r c i o n a n d o assim a s
e n c o m e n d a s s e algo, é similar ao pe di d o q u e condiç õe s par a a q u e br a d o feitiço. Apena s quando
Cinderel a - na versã o do s Grimm - faz ao pai fosse capa z de se r a m a d o , apesa r de su a
q u a n d o ele part e par a u m a viagem: que r o primeiro aparência repulsiva, a Fera poderi a readquiri r a
ram o q u e bate r n o se u chapé u q u a n d o ele e m pr ee n d e r o forma original d e q u e fora privad o po r um a
ca m i n h o d e volta. Cinderel a com o Bela, acima d e bruxa .
tudo . q u e r e m seu s pai s d e volta. Nã o contraditóri a ,
O q u e a p ar e c e inicialmente c o m o u m
m a s c o m p l e m e n t a r a ess a
sacrifício, da r a vida em troca da do pai, p o d e
interpretação , te m o s outr a q u e implic a u m a se r agor a lido c o m o a necessidad e de um a
cert a liberdade lingüística. Provenient e do latim, de/loresco
escolha . C o m o no caso da s princesa s orgulhosa s d e
— a retirada ou perd a da s flores -, c he g o u ás
q u e falávamos acima, tudo indica q u e n ã o é d e b o m
línguas neolatinas com o alusiva á perd a da
grad o q u e um a jove m trocará o amo r de se u pa i pel o
virgindade. Isso talvez no s d ê a pista d e po r q u e
de outr o h o m e m . A aparência monstruos a do
log o a s flores era m proibidas a o pai n o context o d e
consort e revela o q u a nt o ela aind a não po d e ver nel e
u m castelo o n d e t u d o se oferecia a se u bem-estar. O
nad a atraente , ap e n a s assustado r por ser um
h o m e m q u e irá colhe r as flores, qu e deflorará
h o m e m , c o m o o pai, ma s q u e tem , para com
Bela, n ã o dever á ser o pai, apesa r de q u ã o
ela, intençõe s b e m diferentes.
forte seja o a m o r paterno-filial. A interdiçã o
que desencadei a a históri a pod e se r a Os estúdio s Disney produzira m a su a versã o para
interdição a qu e pai e filha estava m submetidos . A Bela e a Fera em d e s e n h o animado. 8 Nela, a
trama foi simplificada, a família de Bela se resu m e a
Uma vez entregu e á Hera, a jovem encontr a seu pai, q u e é a p en a s u m viúv o u m pouc o excêntrico ,
no castel o t u d o a q uil o q u e se u pa i n ã o nã o u m comerciant e falido. Além disso, foi criada
p o d e r i a lh e oferecer. Desd e confortos q u e a façam a figura de u m rival p ar a Fera , s o b a form a
sentir-se cuida• da, co m tod a a seguranç a e o d e u m home m a p ar en te m e nt e atraent e po r fora,
mi m o possíveis, até a diversão, narrad a s e g u n d o ma s feio po r dentro. D e acord o co m a nov a
o s gosto s d a época , c o m direito a espetáculos , sensibilidad e q u e o s homens d e v e m sabe r
bibliotecas, jardins e pássaro s exóticos . Enfim, demonstra r n o amor, introduzid a pelas mulhere s
ela ter á t u d o , m e n o s a almejad a presenç a de ap ó s su a liberdad e conquistada , a Fera é capa z
seu q u eri d o progenitor . A solidã o inicial é de c o m p r e e n d e r os interesse s intelectuais da
c o m p e n s a d a pe l a c o m p a n h i a c a d a ve z m e n o jovem; o outr o é um brutamontes , dispost o a
s repulsiva d e Fera, q u e domin a a s artes d a conversaçã o casar-se par a fazer dela um a doméstic a a se u
e a trata co m respeito . Noite a p ó s noite, o serviço.
monstr o a p e d e em casament o e, co m a maior delicadeza
possível, Bela recusa. Até ess e m o m e nto , ela aind a se C o m o n o cas o do s relatos da s senhora s d o século
encontr a referenciada n o amo r d o pai , e m b o r a XVIII, no de se n h o animado , a figura de Fera se adaptou
c o m e c e a sentir algu m gost o pel a nov a vida. ao s ideais d e h o m e m d e um a época : d e cavalheir o n o
perfeit o d o m í n i o d a s arte s d o a m o r cortês ,
Graça s a o b o m relacionamen t o entr e eles, el e s e transm uto u par a u m h o m e m delicad o e
Fera fica disponíve l par a aceitar o p e d i d o de Bela, inteligente q u e u m a mulhe r livre e intelectualizad a - a
cujo pa i adoeci a de tristeza pel a pe r d a da filha, Bela nesse cas o amav a os livros - esper a a se u
par a visitar a família. Nesse m o m en t o , a relaçã o entr e lado . Já o pai de Bela, ape sa r da s alterações , segu e
o bizarr o casal
c o m o u m persona-
136
Di a n a Li ch t en st e i n Co r s o e Mári o Cor s o
Ma da m e D e Villeneuv e nem seque r m e n ci o n a a
orige m d o e n c a n t a m e n t o , assim c o m o n a maio r
part e da s histórias d e noivo -
gem socialmente desvalorizad o , se n d o ela a únic a qu e o
admira e po r isso seu amo r é tã o nobr e - com o na s
versões tradiciona i s - , p oi s é c a p a z de
a m a r n a adversidade.
Há um parentesc o claro entr e o amo r q u e a jovem
devota ao pai e o q u e destin a à Fera: em
a m b o s os casos, contorna as c o n ve n çõ e s sociais.
No primeiro , não se importa c o m a fortuna q u e o
pai perdeu ; no segundo, a beleza q u e falta à Fera
deix a de lhe fazer caso. Ela mostra capacid ad e
de transferir o m e s m o tipo de vínculo, c o m o se o
a m o r po r um ensinass e a amaro outro. Fera també m
se revela dispost o a espera r que Bela termine o luto po r
um amor, para q u e poss a aceder a o ut r o . N o
inicio , a jo v e m a p e n a s s e nt e saudades; a
seguir, sente-s e bem , ma s te m p e n a d o pai, que
supõ e estar d oe n t e de tristeza po r sua falta. Ainda
terá de voltar para casa, ap en a s para constata r
que seu coraçã o já n ã o pertenci a àquel e lugar, só e nt ã o
está em condiçõe s de viver um nov o amor, n ã o
mais incestuoso. Fera esper a ess e t e m p o d e
a m ad ur e ci • mento. Sua paciência, po r é m n ã o é
infinita, po r isso, está quase morto q u a n d o Bela
retorna .
Na versão Disney, fica mais realçad o o
encanta • mento sofrido po r Fera. A rosa é usad a
c o m o um a espécie d e ampulheta , u m símbol o d o
t e m p o q u e lhe resta para qu e o feitiço seja
q ue br a d o : co m o passa r dos anos, as pétalas caem
, q u a n d o cair a última, el e morrerá sem ter sid o
a m a d o e perder á a ch a n c e de voltará forma
original. Co m ess e recurso , a história se aproxima
mais da s tradicionais narrativas de noivo s animais.
Todo s tê m algu m tip o d e prazo , referent e a o tempo
qu e a jovem terá de convive r co m eles naquel a forma
horripilante; se tal praz o n ã o for respeitado ,
novos revezes e sofrimento s sã o reservado s par
a o casal (voltaremos a ess e assunt o mais adiante)
.
Ainda n o d e s e n h o animado , h á u m relato
q u e precede o desenrola r da história. Conform e a
versão . Fera teve seu coraçã o testad o po r um a fada. qu e ,
n u m a aparência esfarrapada, p e d e abrig o no
castelo, o q u e lhe foi neg ado . For ter sid o
c o n s i d e r a d o egoíst a e incapaz de amar, foi
c o n d e n a d o a ficar s o b um a forma repulsiva até que
um a mulher, apesa r disso, viesse a amá-lo. Aqui é
ele que te m de ap re n d e r a dobra r seu caráter brut o
e e nt en d e r as necessid ade s d o s outros , em outras
palavras, deixa r sua infantilidade par a trás. A
tra di ci o n a l v e r s ã o d e M a d a m e B e a u m o n t
apenas m e n c i o n a q u e u m a fad a m á
c o n d e n o u o príncipe a viver dess a forma até q u
e um a bela moç a consentisse e m desposá-lo ;
137
animal , nã o ficamo s s a b e n d o da s razõe s
d e ta l transformação . A única pista qu e temo s é
q ue , devid o a um a mulhe r mais velha, um a
bruxa, uma fada, as coisas andara m mal, geralment
e porqu e ele nã o soub e a m a r . T e m o s p o u c o s
elementos , ma s p o d e m o s e sp e cu la r , s e
fizermo s u m paralel o co m Bela. S e
considerarmo s q u e a situação do jovem é similar
à de Bela, p o d e m o s pensa r q u e seu feitiço
representaria o q u an t o ele aind a está pres o à mãe .
e ess e t e m p o seria o necessári o para pode r abrir mã
o dess e seu primeiro amor . fundant e para o s
h o m en s .
O Príncipe Querido
xist e um a históri a e m qu e a
o r i g e m d a transformaçã o animal fica
realçada po r ser o aspec t o central da
trama. Trata-se de O
Príncipe Querido, cont o tradicional
francês c o m p i l a d o p o r A n d r e w f a n g . Nele ,
u m b o n d o s o monarc a é testad o po r um a fada
q u e . sim uland o se r u m co elhinh o caçad o po r seu s
cães, s e atira no s braço s d o rei, d e q u e m acab a
r e c e b e n d o cuidados . A fada oferece , em troca
da proteçã o recebida , a realização d e qualque r
desejo , de s d e q u e seja único . Ele p e d e entã o
q u e ela seja guardi ã d a b o n d a d e n o espírito d e
seu filho, con hecid o po r todo s c o m o Príncipe
Querido , pela grandez a d e se u coração .
O pai morr e p ou c o depois , e a fada
presenteia o jovem co m u m anel, qu e lhe causa
do r q u a n d o ele s e revela ma u ou injusto. O idílio
inicial entr e o órfão e o controle da fada termina em
rompimento , o anel é post o fora e o príncip e
revela seu lad o despótic o e cruel, fazendo tod o o
tipo de injustiça qu e estiver a seu alcance. Ele é ma u co
m seu povo , ingrato co m um velh o tutor e violento
co m a mulhe r qu e escolhe u para amar.
A fada já havia dit o ao pa i q u e a
realização de se u p e d i d o d e p e n d e r i a m u i t o d
a c o l a b o r a ç ã o d o príncipe , o q u e n ã o estava
ocorren do . Diante disso, a tutor a tev e d e
recorre r a m é t o d o s mai s drásticos , media nt e
a aplicaçã o de um castigo: "condeno-t e a q u e
sejas c o m o o s animai s cujo c o m p ort a m e nt o imitas.
Pela tua fúria, ten s sid o c o m o um leão e
c o m o um l o b o pel a tua avareza . C o m o um a
serpente , ten s t e revoltad o contr a algué m qu e é
c o m o u m s e g u n d o pai par a ti e, po r teu ma u
caráter, te assemelha s a um touro . Portanto , e
m tu a nov a aparên ci a adotará s o aspect o
deste s animais".
Nã o mais querido , o príncip e ficou co m
cabeç a d e leão , a s aspa s d e touro , o corp o d e
serpent e e o s p é s e a s m ã o s c o m garra s d e lobo .
Q u a s e n ã o d á par a
Fadas n o Div ã — Ps ic a n áli s e n a s His t óri a s Infanti s
imaginar essa síntese. O fato é q u e , de dentr o da nov a extensã o do desej o do s pais. O pa i del e p e d e
forma, ele preciso u domina r a maldad e de su a que a grandez a de se u caráte r p r ov e n h a da magia, ao
alma para i r praticand o ato s d e b o n d a d e . Apó s que a fad a e d u c a d o r a r e s p o n d e q u e n ã o é
salvar o ho m e m qu e o alimentava e maltratava possível, o príncip e terá de trabalha r po r isso.
n u m a espéci e de zoológico para o qual fora A história não é mais q u e o trabalh o de um a
enviado , transformou - s e e m cãozinh o d e col o d a vida par a aprende r com frustrações e d es e ng a n os ,
rainha; a p ó s ajudar um a pessoa co m fome, é afinal, trata-se do trajeto de qualque r um . Esse
pro movid o a p o m b a . Sob essa última forma calvário animal conect a o príncipe c o m a s
animal, encontr a sua ama d a e receb e o afeto dela. princesa s m i m a da s d e q u e falávamos, que
Era o q u e faltava par a a transformaçã o final, em qu e precisara m pagar, co m trabalh o e c o m a
tud o volta a seu lugar e eles reina m felizes para perd a das vestes suntuosas , pel o se u orgulho . Mas há
sempre . um aspecto diferencial: a cond enaç ã o ã perd a da
A condiçã o animal nest e cont o é um a forma condiçã o humana. A animalidad e da aparênci a
de rebaixamento, em q u e um bel o jovem perd e o co rr es p o n d e à pouca
afeto qu e antes provocava no s outros. Ele se comport a h u m a n i d a d e d e se u espírito . O q u e no s
co m o uma criança despótica, o qu e se traduz b e m na s diferencia do s animai s está present e na forma
palavras do irmão de leite do príncipe q u e havia se com o a relação h u m a n a co m o mund o
tornad o seu mau conselheiro mais próximo: "todo tra n sc e n d e a s necessidades imediata s e se revela
aquel e q u e nã o cumprir co m teus desejos dever á desnaturada. Um animal matará par a comer , ma s
paga r po r isso". Nã o deixa de ser uma boa traduçã n ã o sairá par a caçar po r prazer. 0 má xim o q u e
o do narcisismo infantil, tal com o explicitado por p o d e m o s dize r é q u e algun s joven s gatos doméstico s
Ereud em Sobre o Narcisismo.1 0 tortura m sua s presa s ante s do golp e de
Nesse texto, ele relata co m o a criança - q u e ele cham a misericórdia, po r é m isso faz part e de se u
de His majesty lhe baby (Sua majestade, o beb ê treinamento c o m o futuros caçadores , sã o
brincadeira s d e filhote. Q u a s e t u d o q u e o s animai
) - é tratada com o alguém qu e deverá recebe r e m
s fazem tê m urna razão d e ser no sentid o da
vida tud o o qu e foi negad o a seus pais, ne n h u m limite
sobrevivênci a - sua, da cria ou do g r u p o - , é
dever á se interpor entre ela e seus desejos,
um a espéci e d e lógic a na tu ra l . J á o s
ne n h u m a exigência amargará o prazer de sua existência,
h u m a n o s sã o capaze s d e t o d o o tip o d e
tud o cairá em seu s braços com o meno r esforço possível. capricho e irracionalidade , é precis o trabalha r
Esse mecanismo , p e l o qua l o s pai s q u e r e m ve r noss a alma para q u e noss o apetit e d e g o z o nã
su a s frustraçõe s e pendência s solucionadas através o s e torn e irrestrito e perigoso . Sem o control e
da glória do s filhos, está be m ilustrado neste cont o pel de um a ed u ca ç ã o e de uma sociedad e capa z de
o diálogo do pai co m a fada. Q u a n d o ele receb e a pô r limites, som o s o pio r tipo de bich o - afinal nã o
oportunida d e de fazer um pedid o nã o que r algo para existe um altruísmo natural. Podemos encarna r a fera
si, é no príncipe qu e que r ver seu desejo realizado. má po r deleit e e serm o s capaze s de torturar a
O Príncipe Q u er i d o já era um b o m sujeito, pres a até b e m crescidos , n u m praze r que n ã o
po r isso fica difícil de c o m p r e e n d e r p o r q u e o pai foi te m idad e par a acontecer .
pedi r à fada alg o q u e o jove m já tinha .
É essa h u m an id a d e , tã o frágil, q u e é perdid
Atravé s d e s s e e x p e d i e n t e , a s q u a l i d a d e s d o a no conto . O rei considerav a a b o n d a d e o maio r
f il h o , qu e e r a m características de sua bem , por isso, n ã o desejo u alg o par a si, qui s o
personalidade , ficam alienada s com o se ficassem a refinament o do caráte r d e se u filho s e m q u e el
serviço do desej o do pai. Nã o é d e admira r entã o e tivess e d e passar p e l a s d o r e s d a e d u c a ç ã o .
q u e o jove m pass e po r u m pe rí o d o de rebeldia, E d u c a r tra z c o n s i g o a necessida d e d e impo r
necessári o para diferenciar-se dest e pai tã o limites, cercear, nega r prazeres. O s pai s q u e s e
d e v o t a m e n t e d e s p ó t i c o , a p o n t o d e s e faze r ne g a m a realizar essa tarefa constrõe m ferinhas,
representa r po r u m anel q u e feria o príncip e cri at ur a s se m capacidad e de avalia r a s
q u a n d o ele se comportav a mal. Mas esta é um a possibilidade s d a realidad e d e satisfazer sua s
da s formas possívei s d e p e n s a r o s s e u s m a u s exigên - cias, cuja satisfação reivindica m c o m
m o d o s . O u t r a vertent e para aborda r esta q ue st ã o violência. Nisso se transformo u o Príncip e
n o s aproxim a d o s impasse s qu e as famílias tê m vivido Q u e r i d o . Ge ra l m e nt e , a ideologi a desse s pais,
hoje no relativo à imposiçã o d e limites à s crianças. incapaze s d e educar , d e pôr freio a su a própri
Esse príncipe-menino-déspota , c o m o tanto s a e xt en s ã o narcísica, conté m um a idéia
q u e mostra m sua falta d e b o a s maneira s n a rosseaunian a d e q u e , deixad o à própri a sorte,
noss a vid a cotidiana , a p a r e c e n a leitura d e ou c o m p ouc a intervenção , o filho, algu m dia, revelará
Freu d c o m o u m a um a b o a natureza . Infelizmente, n ã o é o q u e acontec
e e , q u a n d o o s pai s s e d ã o conta , o s esforços .
precisa m ser r ed o br a d o s par a u m a correçã o d e ru mo
138
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o C o r s o
Notas
1. LANG, Andrew. El Libro Azul de los
Cuentos de
Hadas I. Madrid: Neo Person, 2000.
2. GRIMM, Jaco b & Wilhelm. Contos de fadas.
Belo Horizonte: Villa Rica Editora Reunidas,
1994. No original o título é O Rei Sapo ou
Henrique de Ferro, mas popularmente é referido
apena s com o O Rei Sapo ou ainda com o O
Príncipe Sapo.
3. Freud observa qu e a defloraçâo de uma
mulher constitui-se numa: "injúria narcísica que
decorre da destruição de um órgão" a qual
poderia inclusive atrair sobre o autor de tal ato a
raiva da mulher. "O perigo que assim se levanta
pelo defloramento de uma mulher consiste em
atrair sua hostilidade para si próprio, e o marido em
perspectiva é exatamente a pessoa qu e teria
toda a razã o para evitar tal inimizade."
FREUD, Sigmund. O Tabu da Virgin-
dade. Obra s Completas, vol. XI. Rio de
Janeiro: Imago, 1987. p. 187.
4. GRIMM, Jaco b & Wilhelm. Contos de Fadas. Belo
Elorizonte: Villa Rica Editora Reunidas, 1994.
5. LANG, Andrew . Fl Libro Azul de los Cuentos
de
Hadas 1. Madrid: Neo Person, 2000.
6. LANG, Andrew . Fl Libro Azul de los
Cuentos de hadas I. Madrid: Neo Person. 2000, no
qu e se refere à versão de Madame de
Villeneuve. Já para a de Jeanne-Marie
Leprince de Beaumont ver TATAR, Maria.
Contos de Fadas: Edição Ilustrada & Comen• tada.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
7. Esses dois contos serão examinados no
próximo capítulo.
8. O filme A Rela e a Fera foi lançado pelos
Estúdios Disney em 1991. Essa é a versão
infantil animada. Não confundir com o tilme
homônimo, a obra prima de Jean Cocteau, de
1946. La Belle et Ia Bette.
9. LANG, Andrew . Fl Libro Azul de los
Cuentos de Hadas II. Madrid: Neo Person,
2000. Existe uma versã o e m p o rt u g u ê s :
PIMENTEL, Figueired o . Histórias da Avozinha.
Rio de Janeiro : Livraria Garnier, 1994.
Figueiredo Pimentel foi o primeiro compilador
brasileiro de contos de fadas, mas nem sempre
encontramos seus livros. Em suas antologias, ele
misturou alguns contos brasileiros entre os da
tradição européia
10. "Os pais sentem-se inclinados a suspender, em
favor da criança, o funcionamento de todas as
aquisições culturais que seu próprio narcisismo
foi forçado a respeitar, e a renovar em nome dela
as reivindicações ao s privilégio s d e h á muit o
po r ele s próprio s abandonados. (...) A criança
concretizará os sonhos dourados que os pais jamais
realizaram - o menino se tornará um grande
homem e um herói em lugar do pai, e a
menina se casará com um príncipe como
compensação para sua mãe". In: FREUD,
Sigmund. Sobre o Narcisismo: uma Introdução. Obras
Completas, vol., XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1987, p.
108.
139
Capítulo X
HISTÓRIAS DE AMOR II:
AS METAMORFOSES
esperava, já que , q u a n d o da partida, c o m o ocorr tam , assim c o m o d e sere s mágicos , ness e caso , velhas
e a tantas prometida s a noivos animais, a idéia é s e n h o r a s q u e lh e of er e c e m cavalo s e objeto
enfrentar um sacrifício, incluindo a possibilidade de ser s cuja utilidad e ela descobrir á depois . H á mai s u m
devorad a pelo consorte. elemento muit o interessant e ness a viagem : ningué m a
Co m o em A Bela e a Fera, a moç a acab a sentind o que m ela pergunt a sab e e x ata m e n t e a localizaçã o
muita solidão durant e o s dias q u e passa n o do príncipe, e m b o r a t o d o s t e n h a m u m a idéi a
suntuos o castelo . Sent e falta d a cas a pa te r n a e a p r o x i m a d a d o ca m i n h o o u d e q u e m poder á sabe r
su a triste/ a convenc e o urs o a levá-la até lá par a um a sobr e ele. A única certez a compartilhad a po r
visita. Dessa vez, nã o há um praz o a ser texlos o s interlocutores en contrado s pel o c a m in h
de s ob e de ci d o ; entretanto , o urso a proíb e de falar a o é a de q u e ela é a moça q u e estav a
sós co m a mãe , na verdade , para qu e nã o comentass e destinad a par a o príncip e , po r isso, se dispõe
sua s intimidades . Claro q u e acontec e o proibido , e m a ajudá-la. Movida po r essa únic a indicação
a mã e se revela um a péssim a conselheira . amorosa , ela s e lança a o de sc o n he ci d o .
Sabendo , pel o relat o d a filha, d a pel e qu e ele Uma vez c h e g a n d o ao castel o da madrasta,
retira á noite, a mã e suspeita de q u e o noiv o seja ela precisa tirar se u h o m e m da s mão s da nov a e
um troll 2 e aconselh a a jovem a espiá-lo d or m in d o . horrível noiva: a princes a nariguda . É ness e
Q u a n d o ela tenta ver o noiv o se m a pele , ele perd e m o m e n t o que os presente s recebido s na viage m se
a oportunida d e de ser d es e nc an ta d o e a ab a ndona , apó mostra m úteis, pois negoci a um a maç ã de ouro , um
s referir: pe n t e de our o e uma roca d e o u r o c o m a horrend a
princesa , q u e n ã o parece estar muit o interessad a na
O q u e voc ê fez?, ex cl a m o u . Agora atraiu co m p a n hi a noturn a de seu noivo , sã o o s objeto s
um a maldição sobre nós dois. Se tivesse esperad o d o u r a d o s qu e realment e mobi• lizam seu desejo.
apena s um ano , eu terra sido libertado! l e n h o uma Aproveitand o a situação , a jovem troc a cad a u
madrasta e ela me enfeitiçou de tal mod o qu e sou m dele s p el o privilégio d e passa r uma noite co
urso de dia e home m à noite. Terei qu e deixar você e ir m o príncipe . Mesm o assim, n ã o é fácil realizar o
à procura dela. Ela mora num castelo a leste do sol e a resgate , poi s a noiva, q u e nã o era boba , narcotizava
oeste da lua. Mora lá também uma princesa, com um o príncipe . Apena s na terceira noite, el e é
nariz de três varas de comprimento, e é ela a alertado po r criado s par a q u e n ã o t o m e a poção ,
mulher qu e terei agora qu e desposar. assim poderá ficar a co r da d o para encontra r sua
amad a e planejar um a fuga. Juntos , derrota m os
trolls - pois sua madrasta e a princes a narigud a sim
Vemos ressurgir aqui a questã o do prazo , parec e
era m trolls - e fogem com toda s sua s riquezas .
qu e u m temp o é necessári o par a u m
i n d i v í d u o a m a d u r e c e r e assumi r p u b l i c a m e n t e O praz o q u e a noiva do urs o n ã o s o u b e
sua s relaçõe s í n t i m a s . E m toda s e s s a s respeitar refere-se ao t e m p o de amad ureci me nt o
h i s t ó r i a s , o p r i m e i r o encanta me n t o - o início do necessário para q u e um a relaçã o seja
relacionamen t o sexual do casal - ocorr e em algum a s s u m i d a p u b l i c a m e n t e . Atual me nt e equival e a
a situaçã o de confinamento , de exclusã o social. o p e r í o d o e m q u e o s casais p o d e m experimenta
Afinal, o q u e aborrec e a jovem é ser retirada d e r algum a privacidad e erótica, antes q u e o s laços d e
seu m u n d o d e referências e d o convívi o co m o s seus; u m casa ment o i m p o n h a m à relação desafio s q u e
ela n ã o c o m p o r t a . C o m o vem os , nas velha s
porém , q u a n d o te m a o p ort u ni da d e d e voltar ã casa
histórias, ess e p erí o d o d e latência d e u m amor já
d o s pais, de sc o b r e que sent e falta de se u ama do . A
está presente , provavel me n t e significando algo bem
partir daí, a finalização da trama é imediata,
diferente do eme par a nós . Ainda hoje a
encaminha-s e par a o fim da maldição .
estabilização ele um relacionamen t o reque r t e m p o
No cas o de Bela, nã o fosse pel o brev e descumpri - , paciênci a por part e do s amante s e um a certa cota
m e nt o d o prazo , diríamo s q u e ela fez rapida me nt de sacrifício aliada ã coragem , visand o a ajudar
e o process o d e r o m p i m en t o co m a família d e tant o o noiv o quant o a noiva a ro m p e r com os
origem , assumind o su a nov a situaçã o civil, a de velho s laços amor osos . Se não houve r ess e esforço, o
ser a mulhe r d e alguém . J á o s ama nte s dest a rapa z corr e o risco de adormecer no s braço s ela brux
tradiciona l história noruegues a passa m po r reveze s a possessiv a q u e é su a mãe . Da mesm a forma,
b e m maiore s q u e o s de Bela e Fera. A noiv a o s laços q u e p r e n d e m u m a jovem a o a m o r
precis a viajar par a a q u el e lugar geograficament e de v o t o e p l e n o d e m ú t u o s cu id a d o s q u e ela
improváve l e inacessível. Para essa jornada , professa p o r se u pa i p o d e m voltar a ficar
necessitará d e muita corage m e d o a p oi o d e forças d a fortes.
natureza , c o m o o s vento s q u e a transpor • Existe u m cont o d e Mad am e d'Aulno y q u e
nos mostr a j us ta m e n t e es s e fracasso , em que
os laços
142
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Cors o
Cupido e Psique
s história s p r e c e d e n t e s r e p r o d u z e m
um a estaitura co m u m qu e existe e m várias
versões no s conto s de fadas. Entre elas, temo
s a antiga
história de Cupid o e Psique. 5 qu e no s chego
u através de Apuleio, em O Asno de O u r o 6 — livro
també m con hecid o po r Metamorfoses. Psiqu e era
um a da s três bela s filhas d e u m rei, p or é m
muit o mais bela q u e a s irmãs. As outra s dua s
casara m e Psiqu e n ã o consegui a casamento , poi s
sua belez a era tanta q u e assustava o s
pretende nte s . Sua formosur a fazia todo s
acreditare m q u e ela era um a deusa , po r isso,
com eçara m a lh e leva r o fer e nd a s e m
substituiçã o àq u el a s devida s a Vênus . Q u a n d o
esta ve m a sabe r disso, mand a seu filho
Cupid o par a q u e a vingue : sua pen a seria
fazer c o m q u e P s i q u e s e a p a i x o n a s s e p o r
u m h o m e m desprezíve l . Poré m , C u p i d o n ã o
p ô d e realiza r su a tarefa, já q u e ele m e s m o
ficou fascinado po r Psique . Enq uant o isso, o s
pais. n ã o s a b e n d o o q u e fazer
par a qu e a filha viesse a se casar,
consultara m um oráculo , qu e é u m
intermediári o d e Apoi o - deus , entr e outra s
coisas, da s profecias. Ora, Apoio já sabia d a
pa ix ã o d e Cupido , e junto s faze m u m
plano , a partir do qual , a revelaçã o oracula r diz
ao s pais par a p r e p a r a r e m Psiqu e par a u m
funeral e deixar e m-n a n u m a roch a o n d e u m
Fadas n o Div ã - P si ca n ál is e n a s Hi st ó ri a s Infanti s
tarefas impossíveis,
144
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mário C o r s o
A p es a r d e hoj e e s c o l h e r m o s c o m o
coração, freqüente men t e ficamos surpreso s a o
constatar q u e determinad a s escolha s amorosa s
traze m o molde da noss a família, ou sã o
evocativo s da forma de ser de a l g u m d e n o s s o
s p ai s . Po r v ez e s , repetimo s seu s m o d e l o s d
e identidad e o u relação ; po r outras, no s
esforçamo s par a escolhe r noss o a m o r muito
distante de tais m odel os , ma s n ã o de q u a l q u e r
forma e sim p r o c u r a n d o seu s antônimos ,
amand o p es so a s culturalment e diversas ou
constituind o família do outro lad o do m u n d o - o qu e
ainda os mantê m na condição d e parâmetros , s ó
q u e á s inversas. Nã o temos nada objetivo a
regrar a escolha, os casa mento s não são
arranjados conform e necessidade s políticas ou
econô• micas, estamo s long e da s interdiçõe s
tribais, mas nã o necessariament e essa liberdad e
no s facilita a vida.
O problem a se equacion a do p o n t o de
vista do q u e , sintomaticamente , s u p o m o s c o m o
igual o u senti• m o s com o est ra n ge ir o .
Referi mo- no s aqu i a uma estrangeiridad e q u e
está long e d e s e restringir a o país d e origem .
Troca nd o e m miúdos , trata-se d o qu e s e s e nt e
c o m o familiar, p o r t a n t o p r o i b i d o , o u c o m o
estranho , p o rta n t o u m territóri o e m q u e a
escolh a amoros a é possível.
Pessoa s da mesm a raça, profissão, cidad e
natal, classe social ou qualque r traço evocativo da
família de origem p o d e m ser sentidas c o m o
interditadas, com o s e fossem d o m e s m o totem.
Não p o d e n d o escolhe r entre o s semelhantes , busca-
se algué m qu e possua qualque r i d e n t i d a d e
d i f e r e nt e par a p o d e r amar . À s vezes ,
necessita-se da certeza de q u e se está escolhend o
fora do lar, de q u e os amado s nã o sã o Lima evocaçã o
direta d o s pai s o u irmãos . C o m o clínicos,
observamo s o s freqüentes casos d e pessoa s q u e s ó
consegue m s e casar e m outr o país, o u co m u m
estrangeiro, o u ainda co m algué m de outra raça
ou cultura, com o única maneira de evitar a
fantasia de incesto. Nesses casos, soment e algué m
estranh o suscita desejo, só co m o príncipe ou a
princesa longínqua o casament o se concretizará.
Dessa forma, m e s m o no s tempo s m o de rn o s ,
no s quai s um a mulhe r n ã o será privad a d e
su a família, n e m obrigad a a ingressar na do
marido , a questã o da diferenç a e m t e r m o s d e
cultur a familiar aind a s e estabelece . O marid o
escolhid o trará par a dentr o da relaçã o seu s
hábito s e excentricidad e s familiares, e el a
i d e m . Sã o n e c e s s a r i a m e n t e d o i s e s t r a n g e i r o s
tentand o estabelece r u m território c o m u m d e
negocia • çõe s diplomática s e fronteiras. A identidad e
do núcle o familiar o u d o casal q u e irá constituir
dem or a e m ser encontra d a e negociada . Talvez ess e
t e m p o d e latência d e q u e falam o s conto s - n o s
quai s o s amante s aind a
Fadas n o Div ã — P si ca n ál is e n a s Hi st ó ri a s Infanti s
são d e espécie s diferent e s e deve m s etotem . Aqui q u e m te m a part e anima l é ela, e a história
ab st e r a o máximo do contat o co m as famílias de orige m é basicament e entã o a de seu sofrimento par a conseguir
- a p on t e um trabalh o de formaçã o de hábito s c o m u n s edeixa r d e ser sereia, c o m o n o rein o d o pai, e tornar-
se c o m o sã o o s d o rein o d o a m a d o , h o m e n s .
código s compartilhado s na q ue l e n o v o n ú cl e o familiar,
origina• do pel o casal. O cont o de Andersen nã o abre e s p a ç o
A animalidad e do consort e presta-s e entã o a um a para negociaçã o . Nas histórias preced entes , a m b o s tê
s o b r e p o s i ç ã o d e difere nç a s e p r o b l e m a s a m seu q u i n h ã o de perda s par a se encontrar . O
s e r e m administrados po r q u e m começ a um a relação noiv o animal passeia pel o m u n d o c o m sua
: a dife• rença de gênero ; a novidad e de , pel a primeira maldição , enqu ant o a jovem tem d e enfrentar
vez, ter tanta intimidade co m outr o sexo ; a diferença um a jornad a d e privação e perigo s para resgatá-lo.
das refe• rências familiares e ou culturais; e, po r último, Neste conto , pel o contrário, o a m a d o n ã o gasta u m
o desej o sexual qu e passa a conquista r u m espaç o d e fio d e cabel o e m troc a daquele amor, ele ne m
exercíci o outrora inédito, talvez aind a xisto c o m o s e d á cont a d e q u e ela é d e outro reino .
primitivo e portant o animal. Além disso, o preç o q u e a sereia tev e de pagar à
É possível qu e o melho r e x e m pl o de brux a pela forma h u m a n a foi sua capacidad e
troca de referências seja o tristíssimo cont o A de falar, q u e a prix-ou da capa cidad e de envolve r o
Pequena Sereia, d e Andersen. Bem meno s feliz qu e n o amado c o m a bela voz. Nã o há c o m o evitar
d e s e n h o musical h o m ô n i m o do s Estúdios Disne y pensa r a voz ta m b é m c o m o o representant e de
(1989), a p e q u e n a sereia original s ó enfrenta se u idioma. Nesse sentido , par a ingressa r e m
dissabore s d o c o m e ç o a o fim. Nessa história, po r
outr a cultura n ã o houve um a síntese possíxel, a
ocasiã o da maioridade , cad a sereia8 tinha direito a vir
mistura de idiomas , a sereia pago u sua ousadi a
espia r o m u n d o do s h o m en s . A heroína escutaxa
co m o mutismo , q u e , po r sua vez, foi a pe n a s
atentament e cad a história da s sua s precedente s em tal
metáfora da mort e q u e viria a seguir. Em última
ritual e muit o esperav a pel o seu. Q u a n d o faz 1 5
anos , xai c o m g r a n d e expectativ a espiona r o instância, o cont o termin a s e n d o um manifesto
rein o do s hu m a n o s . Na ocasião , encontr a um sobr e a impossibilidad e d e ro m p i m e nt o d e
navio em q u e havia um a festa, era o aniversário determi• nada s barreiras, sejam culturais, raciais ou
d e u m príncipe , q u e o celebrav a n o c on v é s . familiares. Não no s estranha qu e o desenh o Disney, em
Um a tempestad e vem para estragar a co m e m o ra ç ã o tempos
e joga o príncipe no mar, imediatament e a sereia o em qu e a tolerância entre os povo s é um ideal
salva e o leva, mais mort o q u e vivo, par a um a social, tenha lhe modificado o final tão radicalmente. No
praia segura . desenho animado , é permitido qu e o pox o do mar
e o da terra façam um casament o intercultural. É
O fascínio pel o outr o rein o ganh a um a dimensã o
o própri o pai da sereia que , xend o a força do
aind a maior, e a sereia se apaixon a pe r di da m e n t e pel o
amo r da filha, consente co m sua partida, m u da n d
príncipe . Não encontr a mais consol o n o rein o d o
o sua forma. Decididamente outros tempos...
pa i e faz um trato co m um a brux a para p o d e r
ser um a h u m a n a , t r o c a n d o a a p a r ê n c i a p o r
u m a d e s u a s virtudes, a voz. Ganh a a forma humana ,
ma s fica m uda . Nessa condição , encontr a o príncip e O filho animal
q u e n ã o a reco • nhec e c o m o sua salxadora, mas ,
d e qualque r mo d o , tom a carinh o po r ela e a ormal me nte , o s conto s d e noiv o anima l
conserv a s e m p r e po r p e i t o c o m o um a amiga o u u são muit o econô mic o s em explica r a
m tip o d e irmã. Desprovid a d a voz, qu e era um do s orige m do e nc a nt a men t o q u e custo u a image
seu s maiore s atrativos, e sofrend o terrivelmente, j á q u m human a ao consorte , a magia n ã o
e a s nova s pe rn a s doía m a o ca• minhar, nã o te m conviv e c o m mui-
c o m o s e fazer e nte n d e r e pass a pel o suplício d e tos p or q uê s . Vagamente , s ab e m o s q u e a
presencia r o casa ment o d o se u a m a d o c o m outr a responsável é um a mulhe r m á q u e lhe rogo u um a
princesa, ta m b é m h u m a n a c o m o ele. maldição . Alguns outro s contos , n o entanto , p o d e
Ela n ã o morre , poi s ficamos s a b e n d o qu e sereias m no s fornece r uma pista. Relataremo s u m destes
virtuosas s e transforma m n u m a espéci e d e anjo .
d a guarda , co m o ela m es m a foi par a o príncipe . Pouc o conhecido , poré m interessante, é o
É um a históri a b e a t a , e m q u e a v i d a e t e r n a conto narrad o pelo s irmãos Grimm, ch a m a d o Hans, o
fica c o m o reco mpens a suficiente par a aquel a qu e Ouriço.9
deixo u t u d o p o r a m o r a u m h o m e m d e outr a Han s é um pe rs o na g e m cuja forma mescla a
dimensão , d e outr o forma hu man a co m a de um ouriço . O detalh e
q u e no s faz conta r essa história é o fato de estar
centrad a na origem d o encantament o : u m desejo express o através d e u m deslize verbal d o pai.
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D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Cors o
tornar-s e deficient e par a o m u n d o
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D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Co r s o
m a m a r e mai s c h o r õ e s d o q u e o e s p e r a d o
e n e m se mpr e c h e g a mo s a o m u n d o c o m o
gê n er o desejado . Somo s co nc e bi d o s n u m a
intimidad e erótica d o casal, q u e compartilharem o s
de forma incômod a e conflitiva d u r a n t e n o s s o s
a n o s d e infânci a , a ss i m c o m o a evocare mo
s e m nossa s fantasias q u a n d o crescermos . A
filiação é um a sina necessária. Essas histórias
ex p õ e m caricaturalmente sua face neurótica. O
noivo animal, po r ser u m filho monstruoso ,
evoca qu e n o m o m e n t o de partir par a a vida
adulta, sexualment e independent e e madura,
levaremos conosc o os desejos co m os quais fomos
fabricados. Isso é inevitável, às vezes é possível incinerar
as peles e cavar a própria humanidade, mas sempr e
restará pel o meno s a lembrança de com o tud o
isso começou : d o lobo, d o urso, d o ouriço,
d o corv o o u d o rapúnci o q u e u m dia fomos.
Sair de casa é uma nova existência, é um a
nov a pele . A casa paterna , sempr e tão
idealizada, muitas veze s se mostra asfixiante. Não
sã o raros os filhos q u e estã o s o b o jug o d e
desejos mortíferos po r part e do s pais, q u e n ã o
suporta m o u n ã o e n t e n d e m a s escolha s daq ueles .
A saída de casa, qu e . na verdade , é a saída da s
ex p ec tat i va s pa re n tai s , revela-s e n es s e s caso s
equivalent e à libertação de um a maldição .
Notas
1. TATAR, Maria. Contos de Fadas: Edição Comentada
& Ilustrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
2. Troll é um nom e genéric o utilizado no
folclore escandinavo para seres encantados que
habitam as montanhas ou as florestas. Sua tradução
aproximada seria: espírito malvado, demôni o ou
monstro. Podem adota r várias formas,
existem referências com o send o anões, mas em
outros casos eram vistos como gigantes.
3. LANO, Anclrew. El Libro Azul de los Cuentos
de
Hadas II Madrid: Neo Person, 2000.
4. LANG, Andrevv. El Libro Gris de los Cuentos
de
Hadas. Madrid: Neo Person, 2000.
5. Esta históri a par a os latino s te m
significado s agregados, afinal Cupido é a
personificação do amor, outras vezes do desejo. Seu
estatuto entre os deuse s n ã o é muit o claro ,
algun s o c o nsi d er a m um a divindade menor.
Para os gregos, com nom e de Eros, ele existiu desd
e o começ o do mundo , com o uma e nt id a d e
primitiva e eterna , cuja força nã o se
extingue. Não podemo s esquecer qu e suas
flechas pode m atingir até os deuses. Vênus,
sua mãe nas versões mais conhecidas, é a
deusa relacionada à
Fadas n o D i v ã - P s i c a n á l i s e n a s Hi st ó ri a s Infanti s
beleza e ao amor. Já Psique tem com o sobre a pureza da alma dos pais. Mesmo hoje, em
tradução aproximada "alma". t e m p o s m e n o s religiosos , o s pai s cujos
6. APULEIO, Lúcio. O Asno de Ouro. Rio de filhos a p r e s e n t a m algum a anomali a visível
Janeiro: Edições de Ouro . 1980. precisam combater a idéia de qu e ali estaria
7. ANDERSEN. Hans Christian. Contos de marcada alguma falta por eles cometida. Já
Andersen. Bettelheim observa que:
São Paulo: Paz e Terra, 1988. "a sabedoria psicológica destes conto s é
8. As sereias da Antigüidade eram mulheres até o torso notável: falta de controle sobre as emoçõe s
com o resto do corp o de ave, foram estas por parte dos pais cria uma criança
qu e tentaram Ulisses. No caso, trata-se de um desajeitada. Nos contos de fadas e sonh os ,
ser que habita um reino no fundo do mar, metade a má confor maçã o física com freqüência
mulher e metade peixe, talvez o nom e de represent a um ma u desenvolvimento
pequen a Nereida seria mais adequado , ou ainda psicológico", In: BETTELHEIM, Bruno, A Psicanálise
Ondina, mas ficou como sereia. Na tradição dos Contos de Fadas. São Paulo: Editora Paz e Terra,
européia recente, os seres aquático s encantado s 2001, p . 87.
era m t o d o s dess a forma, metad e h u m a n o co 11. Este expediente, pelo qual o pai será
m caud a de peixe , a figura clássica de um obrigado a prometer que dará a primeira coisa
Tritão. qu e encontrar ao chegar em casa a algum
9. GRIMM, Jacob & Wilhelm. Todos los Cuentos de ser qu e o ameaça, é repetido em vários contos
los Hermanos Grimm. Madrid: Coedição de de fadas. Em muitos deles é a filha caçula qu e
Editorial Ruclolf Stiner, Mandala Ediciones, Editorial corre aos seus braços nessa ocasião, com o
Antroposó- fica, 2000. Este conto nã o consta prova da intensa afeição qu e a liga ao pai.
nos Contos de Grimm - Obra Completa, editadas Não surpreend e qu e se repita essa escolha pel o
em português pela Editora Villa Rica. É uma boa edição, filho mais jovem com o predileto, pois é o que está
mas não sabemos o que os levou a publicar 99 mais distante de abandona r a família, o mais
contos apena s do s aproximadamente 200 contos próximo da criança amada e amante dos pais.
originais, e mesm o assim chamar-se de Obra 12. GRIMM, Jacob & Wilhelm. Todos los Cuentos de
Completa. los Hermanos Grimm. Madrid: Coedição de
10. Criaturas deformadas costumavam ser Editorial Rudolf Steiner , Ma ndal a E d i c i o n e s
associadas com seres demoníacos, o qu e lançava , Editorial Antroposófica. 2000.
uma sombra
150
Capítulo XI
HISTÓRIAS DE AMOR III:
FINAIS INFELIZES
152
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Co r s o
troco . Já q u e el e as fazia
lhe um ovo, q u e de v er á se r c u i d a d o e
c a r r e g a d o sempre consigo .
Quando a primeira da s irmãs entr a no
recint o proibido, depara-s e co m um a visão terrível: um a
pilha macabra, construíd a pelo s corpo s
esquartejad o s d e todas as moças q u e já havia m caíd o
na cilada. Co m o susto, o ovo cai na poç a de sangue ,
ficando co m um a mancha indelével. Q u a n d o o Brux o
retorna , examin a o ovo, que possui o sinal da
desobediência , e identifica a senha para mata r mai s
essa jovem . Assim ocorr e também com a seguinte
. Apena s a caçula escap a do castigo, quand o cheg
a sua hor a de ser post a à prova , a história muda:
a jovem deixo u o ov o a salvo ante s de abrir o
quart o proibido , lá encontro u sua s irmãs
esquartejadas e colou seu s pedaços , devolvendo -
lhe s a vida, e depoi s as es co n d e u . Fm favor da
idéia de que as três irmãs sã o na verdad e
representaçõ e s da mesma tem-s e o c o m p o r t a m e n t
o da terceira , q u e , mesmo sem se comunica r co m
as outras , ag e c o m o se soubesse o q u e ela s vira
m e q u a i s p r e c a u ç õ e s e providências deveria
tomar.
Ao retornar, o Bruxo ficou content e po r encontra r o
ovo intacto c o m o prov a da obediênci a da
jovem, resolvendo qu e esta seria sua espos a
definitiva. Ela aparentemente aceita o p e d i d o de
c a s a m e n t o e se iniciam os preparativos . Na nov a
condiçã o de futura esposa, ela lhe p e d e par a
envia r para sua família um grande cesto de riquezas ,
q u e o Bruxo deveria carrega r pessoalmente. A jovem
garant e ao noiv o q u e te m um poder mágico co m o
qual tu d o vê, de m o d o que , se ele fraquejar
c o l o c a n d o o c e s t o no c h ã o , el a o
. repreenderá. Aparentement e , el e n ã o lhe neg a
nada . Ela coloca as irmãs no cest o junto co m as
riqueza s e envia o crédulo noiv o para a sua casa
de origem . Por duas vezes, vergad o pel o imens o
peso , o Brux o tenta pousá-lo no chã o par a
descansar .
D e d e n t r o d e s e u e s c o n d e r i j o , el a s
t i n h a m instruções de , cad a vez q u e ele parasse ,
dizer: "estou olhando pela minh a janelinha e vejo
q u e paraste , te ordeno qu e sigas adiante!".
Impressionad o co m o pode r da noiva, o brux o segu
e o trajeto até q u e , s ua d o e cansado, entreg a o
cest o c o n t e n d o as joven s sãs e salvas na casa de
seu s pais. Através da s artimanhas , a jovem faz co m
q u e ele devolva as irmãs da mesm a forma com o
ele as raptou . Mas aind a lhe restava a
necessidade de fazer um pl a n o para sua própri a
fuga. Esta é a q u e melho r faz o pape l de
ridicularizar o noivo. Colocand o um a caveira vestida
de noiva na janela, disfarça-se d e u m bizarr o
pássaro , c o br in d o seu corpo de me l e plumas . Mais
u m a ve z a vinganç a tem cara de zombaria , de
153
carrega r u m ovo , ela s e fantasia d e um a
grand e ave . O q u e ela faz é subverte r as
coisas dentr o da própri a linguage m d o m onstr o
e , po r isso, ele n ã o pe rc e b e e a deix a
escapar .
Ao voltar da casa d o s pais dela, o Baix
o aind a cruza-s e n o ca m in h o co m a moç a
disfarçada d e ave . Sem desconfiar d e nada , el
e convers a co m ela, q u e lhe diz q u e sua
noiva está tod a arrumad a na janela e s p e r a n d o
po r ele, aludind o á risonha caveira deixad a em se u
lugar. Q u a n d o chego u ã casa, ele foi recebid o
pelo s irmão s da s jovens q u e incendiara m a
casa co m o d o n o dentro .
Nariz de Prata
ariz de Pinta, no conto folclórico
italiano, compilado por Ítalo Calvino, é o
Diabo. Ele aparece vestido de preto
com seu estranho nariz de prata, pedindo
a uma pobre lavadeira
que lhe confie uma de suas filhas para trabalhar
como criada em sua casa. Na verdade, como
bem cabe às aparições do demônio, ele foi
conjurado por uma das irmãs, ao exclamar que
preferia partir com o próprio diabo a passar
uma vida de tanta miséria. A história desenrola-
se de forma quase idêntica à de O Pássaro do
Bruxo: as jovens consecutivamente tornam-
se senhoras de imensa riqueza, possuem as
chaves de quartos com maravilhosos tesouros, mas
uma delas, a de um quarto proibido, não deve ser
usada. À medida que vão transgredindo, ele as mata
e volta para buscar mais uma das três irmãs,
alegando para a mãe delas que o trabalho é
muito e necessita de mais ajuda.
Nesse caso, o quarto dos horrores é um
inferno em miniatura, onde as moças padecem numa
fogueira. O objeto do teste também é diferente,
agora ele lhes coloca uma flor no cabelo
enquanto elas dormem. Quand o em contato
com o quarto-inferno, a flor murcha com o
calor e denuncia a transgressão. Como vemos, a
proibição é idêntica nas três histórias, o que muda
é a forma de suplício a que as curiosas
são submetidas, assim como o mecanismo pelo
qual se revela sua desobediência.
Lúcia, a irmã mais jovem, tirou a flor dos
cabelos e colocou-a num vaso, motivo pelo
qual não ficou chamuscada quando abriu a porta
do recinto proibido. Pensando que enfim havia
encontrado uma moça obediente, o Diabo cede
ao pedido dela de levar sacos de roupa para que a
mãe lavasse. Assim, ela faz com que ele transporte
ensacadas tanto as duas irmãs que ela tirou da
fogueira do inferno, quanto a si própria
Fadas no Divã — Psicanálise nas Histórias Infantis
de volta à casa da mãe. Usa o mesmo expediente de jovens são be m modernas , pois tud o indica
dizer que tem o dom mágico de tudo ver, para evitar que arrancaram o dote à força desses maridos, que
que o saco seja aberto e descoberta a trapaça. Cada mais se parecem com pais que as querem
vez que ele pousa o saco no chão, as irmãs ou aprisionar na inocência e na obediência infantil.
ela dizem, lá de dentro: "Estou vendo, estou vendo!" Elas terão que aprender a enganá-los para fugir
No final, com todas sãs e salvas de volta ao de casa, e eles se comportam como bobos, não
lar, basta colocar uma cruz na porta para garantir que lhes ocorre que elas possam ser espertas, que
ele não as importunará mais e usufruir dos tesouros tenham crescido tanto.
roubados por Lúcia da casa do Diabo. Todo amor qu e acaba implica algum
tipo de morte. Entre as moças e esses representantes
dos pais, que as querem reter na ingenuidade,
Um dote roubado não teria por que ser diferente. A moça em O
Pássaro do Bruxo deixa em seu lugar a patética
final é economicamente feliz, e as caveira vestida de noiva e foge. tendo-se apossado de
moças voltam provavelmente bem menos sua vida, levando consigo as riquezas que são as que
ingênuas. Porém, ainda estão solteiras. mais valem, aquelas que conseguiu conquistar
Aqui não há felicidade conjugai, a diferença sozinha. Mas vamos adiante detalhar mais este
entre a noiva percurso.
e o consorte revela-se insuperável. Contrariamente ao
caso de Bela, nessas histórias a monstruosidade
do noivo não tem cura, não há nada que o amor O quarto obscuro
possa fazer, só resta matá-lo ou fugir da relação
fracassada. Como no final da história elas estão mais esde a caixa de Pandora, a curiosidade femi•
espertas e com um bom dote, podemos talvez nina tem o péssimo hábito de abrir lugares
supor que não estejamos falando propriamente de de onde saem ou se revelam maldades. No
casamentos, mas sim de fantasias de libertação. mito grego, Zeus manda uma armadilha para
Provavelmente trata-se de desenvolvimentos os homens, uma arca que contém todos os males. 0
preparatórios para qu e uma jovem possa fazer uma endereço da oferenda é o de Epimeteu, mas
escolha amorosa e sair de casa levando aquelas é sua esposa. Pandora, quem abre a arca. Mesmo
riquezas a que tem direito. advertida do perigo , ela o ignora roída pela
Esses maridos ou noivos mais se parecem com o curiosidade. Libertados por ela, os males se espalham
ogro de João e o Pé de Feijão. Eles são poderosos e pelo mundo, e as conseqüência s só nã o são
assustadores, mas otários. Principalmente no caso do piores porque a esperança é a única que ficou
Bruxo e do Diabo, enganá-los é coisa que essas frágeis retida - Pandora fechou a arca quando se deu conta do
mulheres, assim como fez o pequeno João, fazem com que fizera. Daí vem o ditado: a esperança é a última
facilidade. A riqueza que lhes é roubada parece que resta.5 Esse é um tema recorrente em mitos
ser uma merecida punição para a maldade do e conto s de fadas: as mulheres em geral
adversário, assim como uma justa recompensa seriam mais curiosas, e há uma advertência de
pela bravura em combate das heroínas. que essa curiosidade lhes custa caro, quando não a
Dar um dote significa que o pai, um sua vida.
homem, confia aos cuidados de outro homem Para dar um exemplo bem distante do grego, os
uma mulher incapacitada para ganhar o próprio índios brasileiros tinham um mito em
pão. O dote funciona como uma compensação expansão na época da descoberta: é a história de
pelos gastos que ela causará dali em diante. No Jurupari, um herói civilizador que veio ensinar uma
tempo dos casamentos arranjados, ou de conveniência, série de coisas aos homens. Uma de suas
não se supunha que a mulher fosse somar algo à missões era conseguir uma mulher para o sol.
riqueza da família com empreendimentos e poder, Pois bem, quais os três atributos que essa mulher
isso teria de ser providen• ciado previamente pelo pai deveria ter? Saber guardar um segredo, ter paciência
dela. e não ser curiosa. O sol segue sem parceira
O trabalho feminino era interno à mecânica até hoje, pois Jurupari nunca encontrou tal
de manutenção do lar. Por mais que a mulher lidasse mulher. A questão é saber o que seria tão destrutivo,
de sol a sol como uma besta de carga, parindo, tão ameaçador, para os homens e para a civilização,
criando, alimentando e limpando, isso não era na curiosidade feminina?
visto como trabalho, nem como fonte de poder ou Na tradição judaico-cristã, a reputação da mulher
riqueza. Essas não é muito diferente. É Eva quem provoca a perda do
154
Di a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mário Cors o
paraíso terreno, ao convence r Adã o a cede r à tentaçã o A respost a d o p or q u ê dess a m á fama d e curiosas
de conhece r o sabo r da fruta proibida . Sua inveteradas é difícil, ma s talvez ess e quart o do s horrores
figura confunde-se co m a da serpente , poi s n ã o se sab e poss a no s fornece r pistas. As descriçõe s sã o
q u e m tem a maior culpa, a cobra po r representa r a variadas, ma s é um lugar particular, lá as
tentaçã o ou a mulher po r se deixar cativar po r es p os a s anteriores estã o morta s e vivas, num a espéci e
ela. São dua s faces da mesma moeda , dua s faces de suspensão , pois, e m b o r a esteja m esquartejada s ,
de Eva. Ela deseja ardentemente provar daquil o q u e par a salvá-las basta colar-lhes os me mbros . Em
lh e fora proibido : a árvore do conhecimento , de o n d e Nariz de Prata, o quarto é um a espéci e d e inferno,
prové m a capacidad e de distinguir o Bem do Mal. co m chama s e tudo , mas, q u a n d o a caçul a
O primeir o efeito dess e conhecimento foi se salva sua s irmãs mai s velhas, é só tirá-las do
percebere m nu s e se envergonha • rem, afinal, a
fogo e elas ficam c o m o antes , pronta s para voltar
inocência fora perdida . Depoi s disso ve m a sua
par a casa . É um a estranh a fogueira qu e não
expulsã o do Paraíso e as conseqüências , para
queima , ma s faz sofrer. Tant o em Barba Azai
eles e para su a d e sc en d ên ci a . Somo s herdeiro s
como em O Pássaro do Bruxo há muit o
do pecado de Adão e Eva, po r isso somo s
obrigado s a conhecer a s a gr ur a s d a vid a e sangue . Embora sejam morte s antigas, há um
te r c o m o d e s t i n o irremediável a morte. sangu e q u e nã o seca, o ch ã o cio quart o é um
lago de sangu e o n d e caem os o b j e t o s qu e
Como p o d e m o s ver, o s conto s d e fadas n ã o
ficarã o manchado s po r um a marca
tê m a mulher em melho r cont a q u e o rest o da
irreversível.
cultura, neles també m ela tem um a curiosidad e se m
Há um a história invertida, em q u e é um
possibili• dade de freio e c o m c o n s e q ü ê n c i a s
rapaz q u e profana a porta de um quart o proibido , qu e
funestas . Not e que mesmo as heroína s q u e se
salvam n ã o deixara m de abrir a porta, a pe n a s talvez no s ajude a c o m p r e e n d e r o q u e fascina essa s
so u be r a m en gana r o marido , o que nos leva a curiosas. Neste cont o do s irmãos Grimm, um rei
pensa r q u e é impossível driblar a curiosidade morr e e deixa s e u filho a o s c u i d a d o s d e s e u
feminina. h o m e m cie maio r confiança: João, o Fiel. A
Hoje a c r e d it a m o s q u e a s m u l h e r e s sã o r e c o m e n d a ç ã o cio pai é de qu e ele colocass e tod o o
mai s consistentes e c o m p r o m e t i d a s na s relaçõe s castelo à disposiçã o do jovem, dand o-lh e toda s a s
afetivas, que elas se e nt rega m ao sex o mai s movida s po r chaves , me n o s a d e u m quarto, q u e nã o
amor, que têm po r seu s h o m e n s laço s d e deveria ser abert o so b hipótes e alguma . Não é
a m i z a d e mai s constituídos ou , ainda , q u e d e p o i s precis o ir muit o long e para supo r q u e nad a interessou
d o sex o ficarão mais ligada s a o parceiro . tant o ao jove m q u an t o o tal quart o proibido .
Q u a n t o a o s h o m e n s , pensamos q u e p o d e r i a m Ele n ã o descanso u e n q u a n t o nã o fez J o ã o rompe r
s e e n t r e g a r à s r e l a ç õ e s sexuais se m a m o r e a promess a q u e fizera ao m o ri bu n d o , o bt e n d o
seria m mai s voláteis no s laços que venha m a assim a tal chave . O q u a r t o e m q u e s t ã o n ã o
constitui r a partir do s e x o . A frases acima sã o co nt in h a n e n h u m
o s e n s o c o m u m d o n o s s o t e m p o, " n ã o vamos horror, ma s o retrato de um a princesa bela,
agora analisa r a su a possíve l superficialiclade, o mas tã o bela q u e su a visão faria qualque r u m
i mp o rta n t e é r e s s a l t a r q u e es s a é um a enlouq uece r d e amor. Isso de fato acontec e co m
v i s ã o moderna. Na antigü idad e clássica e at é a o jovem príncipe, e será necessári o q u e J o ã o faça
auror a do s tempos m o d e r n o s , a idéia era b e m o impossível para trazer a beldad e para o reino ,
outra , senã o o oposto: a s mulhere s s e ante s q u e seu jovem sob era n o m o r r e s s e d e a m ore s
en tr eg ar i a m a o s e x o mai s facilmente, seria m . Podemo s també m lembra r a versã o de
mai s lúbricas . O s h o m e n s n ã o teriam muit o Perrault para Pele-de-Asuo - história ana • lisada
recato , ma s ele s seria m mai s c a pa z e s de fazer
no Capítul o VI dest e livro -, em q u e o príncip e
amizade s d ura d o ur a s e certament e manteria m mais a
ad o e c e d e amo r a p ó s ter espiad o a bela princesa
palavra e a fidelidade , n u m sentid o a m p l o . Não
pel o burac o d a fechadura . Escondid a e m seu quarto ,
vale a p e n a , n e m seria d o n o s s o alcanc e pensa r o
ela s e permitia enxerga r o s suntu os o s vestidos q u e
que estaria historicamen t e certo , ma s o s conto s d
e fadas sã o um a relíqui a fóssil d a s narrativa s trouxer a cie se u rein o e se despi a da sujeira e da s pele
h u m a n a s , e seus valores estã o firmado s mai s em crença s s animais q u e lh e ocultava m a beleza . Olha r pel
antiga s d o que m o d e r n a s . A s m u l h e r e s desse s a fechadur a é similar a abrir um a port a proibida , em
co nt o s sã o u m e x e m p l o d e p e s s o a s e m q u e m a m b o s os casos, vê-s e o q u e n ã o s e devia .
n ã o s e p o d e confiar, q u e n ã o o b e d e c e m ao s O q u e esses rapaze s enxergara m é algo
marido s e m e n t e m sempre q u e p o d e m . qu e os faria desejar ardentemen t e um a mulher. Já as
Pandora s d e todo s o s te m po s simplesment e foram
aquela s qu e n ã o aceitaram a interdição à sua
curiosidade, provavel• ment e dirigida ao sabe r sexual.
Entre todo s os mistérios
Fada s n o Di v a - P sic a n ál is e n a s Hi st ór i a s I nf a nt i s
denuncia o fog o da paixão a que se
Separações e esquartejamentos
esquartejamen t o d o s corpo s n ã o no s
sur• p r e e n d e . A i m a g e m q u e t e m o s
d e n ó s mesmos , d e n o m i n a d a image m
corporal , é construída, n ã o nasce mo s co
m ela. \ a sua
ausência, surge seu contrapont o , o corp o
esfacelado, despedaçado . Nã o n o s bast a te r
corpo , cabeç a e membros, e eles sere m
fisiologicamente funcionais, é preciso q u e exist a
u m a r e p r e s e n t a ç ã o m en ta l d o conjunto para q u
e saibamo s usá-los. A u ni da d e de uma imagem
corpora l é tecida à força de amor, po r isso
quand o este falta, resta um a sensaçã o de corp o
despedaçado . T e n t a r e m o s a q u i e x pli c a r c o m o
s e conectam os tema s da image m corpora l e do
amor.
N o c a m in h o qu e te m d e se r
ne c es sa ria m e n t e trilhado para a construçã o dess a
image m corporal , há vários percalços possíveis. Entre
eles, sã o significativas tanto a s patologia s
decorrente s d e falta d e u m investimento
amor os o n a orige m d e alguém , po r um a falta de
conexã o entr e o b e b ê e a mãe , q u an t o o efeito
devastador decorrent e d a u m a b a n d o n o posterior.
N o primeiro c a s o , q u a n d o falta u m amo r
m a t e r n o consistente, a q u e l e q u e seria capa z d e
costura r a s partes, colar a superfície e anima r o
o crescimento deixará um
deficiência s o u d ef or m a ç õe s . J á n o s e g u n d 157
o caso , q u a n d o h á um a pe r d a amoros a
importante , po r morte , a b a n d o n o o u traição,
so br e v é m a depressã o , assim c o m o a s
fantasias o u o s atos suicidas.
Uma criança só fica na vertical, só se
equilibra sobr e doi s pé s tã o p e q u e n o s , graças
a algué m q u e a olh a no s olho s e lhe transmit e
segurança . Um b e b ê só terá forças para sustenta r
o p e s o de sua cabeça , par a ficar sentad o se m
despencar , para caminha r se m s e segura r no s
móveis, se lhe for possível ficar literalmente
d e p e n d u r a d o n o olha r d a mãe , d o s pais o u
substitutos. Nossos músculo s s e desenvolv e m
naturalmente , ma s se nega m a funcionar se n ã
o tiver ningué m olhand o , cuida ndo ,
tes te m u n h an d o . 8
Isso é a particularidad e h u m a n a q u e no s
faz tão ricos e complicad o s ao m es m o t e m p o . Um
animalzinh o sairá a n d a n d o assi m q u e sair d e
d e n t r o d o ventr e materno , u m h u m a n o poder á
ser u m inválido, m e s m o q u e se u corp o n ã o
tenh a ne n hu m a limitação física, s i m p l e s m e n t e
porqu e nã o r e ce b e u o u perde u u m
investiment o am oroso .
Perde r o lugar no amo r dos pais,
ab a nd o n a r o castelo o n d e crescemos , significa
juntar o s próprio s pedaç os , colar o própri o corp o
e sair an d a nd o . Implica a p o s s a r m o s - n o s d a q u i l o
q u e r e c e b e m o s , q u e n o s permiti u transformar
u m olhar am oros o e m image m corporal . Para
q u e p o s s a m o s fazer isso, te m o s d e conh ece r
o ca minho . Crescer é ir apropriando-se , cad a vez
mais, daquil o q u e o am o r do s pais no s
ofertou. T e m o s q u e t o m a r t o d o s e s s e s
o l h a r e s q u e n o s constituíram e dissociá-los
da s figuras reais dos pais, torná-los part e d e
noss o acerv o pessoal, passível d e ser levad o
para outra s histórias d e amor, c o m o u m dote
. É po r isso q u e c o m p r e e n d e m o s tão be m porq u e
pe rs o na g e n s de conto s cie fadas fogem
r o u b a n d o as fortunas de ogros , trolls e bruxa s
se m n e n h u m dilema moral, age m c o m o se levasse
m o q u e é se u de direito. Q u a n d o u m filho
cresce, ele precisa separar-s e
dess e amo r q u e lhe foi tã o vital, constitutivo.
Para os pais, é um a perda , afinal fluía entr e eles
e o filho um a corrent e amoros a q u e clava sentid
o á vida de todos , ma s est e último foge
levand o consig o sua pesso a que , po r muit o
te m p o , pertenci a a eles.
O filho nã o ficará totalment e
in de p e nd e nt e de laços am oroso s par a se sentir
integrado , complet o e funcional, ma s q u a n d o
crescid o fará sua s escolhas . Se u desej o
apontar á que m ser á o eleit o par a
com partilha r carênci a s e insegurança s , po r
est e s e a p a i x o n a r á . J u n t o d a s u a famíli a
de origem , a precursor a da s nova s escolha s
amorosa s é sem pr e um a s e p a r a ç ã o , p o r i s s o ,
Fadas n o Div ã - P si ca n á lis e n a s Hi st ór i a s Infa nt i s
Para sua sorte, de u certo , e ele s voltara m à Corte Infelizmente, o tem a dess e cont o é b e m atual
para a alegria d e t o d o s , ma s alg o havi a e por isso vale um a análise . Freu d n o s lembr a
m u d a d o : inconformada co m o fato de q u e el e d e qu e o mecanism o do c i ú m e " (e o q u e temo s aqui
n ã o havia se resignado a morre r po r ela, agor a é um ciúme futuro, daquel a q u e a substituirá
já n ã o o amav a como antes. Assim q u e tev e q u a n d o ela morrer) funciona da mes m a maneira .
oportu nidad e , matou-o , auxiliada po r u m Um grand e ciumento é mo vid o m e n o s pel o m e d o
amant e qu e ar r a n j a r a . N u m a reviravolta, o d a perd a d e seu objeto d e amo r e mais po r projeçã
criad o do príncipe , a q u e m este havia confiado a o de seu própri o desejo. Trata- se do desej o
guard a da s folhas mágicas, utilizou-as par a ressuscitar inconscient e - ás veze s consciente - de ter
se u amo , qu e acordad o denuncio u a relaçõe s fora d o laç o a m o r o s o q u e está
princesa. O rei, pai da princes a má, q u a n d o vivendo. Aliás essa história com prov a muit o be m
ficou sabendo de tudo , c o n d e n o u a própri a filha a tese, pois foi e x a t a m e n t e a princes a c i u m en t
á morte . Como podemo s ver, o mal foi reparado , ma s a qu e traiu se u marid o e nã o o contrário .
ningué m aqui ficou feliz par a sem pre . Mas nã o precisa tratar-se necessaria me nt e d e um
Mais do qu e um e x e m p l o para mostrar o quant a v o nta d e d e trair, o ciúm e p o d e ser a pe n a s
o o mundo dos conto s de fadas é rico em tramas distintas, um reflexo de vacilações relativas a um a relação .
essa história vale c o m o um a parábol a sobr e a exigência Às vezes , para produzi r conflitos num a relação ,
de amor absoluto . É um tip o de amo r q u e nã o suport a a basta a simple s dúvid a sobr e a possibilidade de se
possibilidade de vir a ser trocad o ou a b a n d o n a d estar melho r co m outra pessoa. O ciument o acusa o outr
o no futuro. Ne ss e s casos , a mort e é o de ter olho s para um terceiro que , na verdade , ele
pr ef erí v e l ã separação. As histórias anteriores , m e s m o inclui na trama.
dest e e d o s doi s capítulos precedentes , tratavam da s Existem muito s mitos e m q u e a cobr a era acusad a
dificuldades e da s vacilações d e toda s a s parte s par d e ter r o u b a d o a imortalidad e q u e o s deuse s
a q u e u m a m o r s e efetive. A princes a d es s a teriam resenhado aos homens - o fato de a
história , a s b r u x a s q u e encantavam príncipes , no cobr a trocar c/e pel e seria o sign o de sua
cas o do s noivo s animais , a mãe bruxa de Rapunzel , regeneraçã o perma nente . Talvez aqui , co m a
toda s acabara m po r descobri r que quem teima em funçã o de trazer o instrument o para vence r a
n ã o aceitar separaçõe s naturais tudo perde. morte , ela seja um ec o dessa s antigas crenças .
Saindo u m p o u c o do s contos , até hoje Especuland o um p o u c o mais, talvez a cobr a se
encon • tramos que m necessite se apoia r em prest e para, nest e caso , representa r a força do sexo , qu
amore s fora de qualquer dúvida. Aliás, as juras de e t a m b é m morr e e se recupera , e é um a
amo r etern o fazem parte de qualque r cen a de seduç ão . poderos a força, aliada de q u e m que r preserva r a
Muitos adolescen • tes tatuam os n o m e s um do vida.
outr o no corpo , com o símbolo d e alg o q u e , d e
preferência , n e m a mort e separará.
Não é d e s e admira r q u e ess a história Notas
te n h a terminado tão mal, poi s semelhant e exigência
amoros a não se apóia na força de um amor, ma s 1. PERRAULT, Charles . Contos de Perrault.. Belo
justament e na sua fraqueza. É po r n ã o ter muita Horizonte: Editora Itatiaia. 1989.
capacida d e de amar, por duvidar de seu própri o amo r 2. CALVINO, Ítalo. Fábulas Italianas. São
q u e algué m faz Lima combinação semelhante . Em Paulo : Companhia das Letras, 1992.
muito s conto s de fadas, uma rainha morr e e 3. GRIMM, Jaco b & Wilhelm. Todos los Cuentos de
deixa atrás de si um s o be ra n o triste, incapaz de los Hermanos Grímm.. Madrid: Coedição Editorial
governar . Já esta princes a prefer e não apostar na Rudolf Steiner, Mandala Ediciones & Editorial
sorte, e se o príncip e n ã o chora r po r ela Antroposófica,
eternamente? Se el e a esquecer ? Po r isso qui s 2000.
a certeza de qu e ele morreria de amo r po r ela. Mas essa 4. O Velho do Saco é um personagem encontrad o
é a questão correta: d e o n d e v e m tanta dúvid a sobr em vários folclores. F. um vilão especializado em
e o amor? Provavelmente da sua própri a capaci dad e raptar crianças ou jovens desobedientes, mas nã
de amar que ela duvida . o neces• s a r i a m e n t e , q u e n u n c a m ai s s ã
Sob o efeito do s ideais românticos , q u e m o a v i s t a d o s . Geralmente fica livre à nossa
aind a não sabe ou n ã o p o d e ama r acab a fazend imaginação definir qual o fim terrível qu e aguarda
o laços e pedidos desesperad o s c o m o o dess a os raptados.
infeliz princesa . 5. Em outras versões, a própria Pandora é a caixa do s
males, ela é a primeira mulher da
humanidade , e Zeus a enviou ao m u n d o com o
presente aos homen s em vingança ao roub o do
fogo por Prometeu. Cada
Fada s n o Di v ã s - Ps ic a n áli s e n a s H is tó ri a s Infanti s
162
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mário Cors o
Aparentemente , s é cu l o s d e s a be d or i a
a c u m u l a d o s nesse s conto s teriam de ca nt a d o
num a forma justa e acabada .
Todo s o s autore s posteriore s ao s irmãos
Grimm e algun s d e seu s con te m p o râ n eo s , q u e
ousara m criar ficção infantil, sà o considerad o s
inadequados . Não há n e n h u m a s ó história ,
fora dessa s c o m p i l a ç õ e s folclóricas, q u e
Hettelheim cite e consider e qu e possa ser
subministrad a se m pr o bl e m a s para as
crianças. T o d a s a s r e f e r ê n c ia s a outra s
historia s s ã o par a demonstra r sua s falhas em
da r ao s pe q ue n o s o qu e seria um a plen a
possibilidad e de simbohzacào . Por outr o lado .
Bettelheim acredita q u e o s conto s d e (atlas feriam a
magia de fornecer realment e o qu e a criança
precisaria e seria para essa linguagem simbólica
qu e ela estaria preparada . Essa visão conte m
uma dupla hipótes e cruzada : as crianças
apreenderia m perfeita• ment e a lógica do s conto
s de fadas, porqu e eles sào estruturado s c o m o
men sagen s para elas. Em funçà o disso, as
histórias de fadas qu e no s chegara m pelos
compilador e s confiáveis (qu e sa o poucos ,
segund o o autor ) deveria m ser tratadas co m
muito respeito, nã o s e n d o recomendáve l alterar
nada da trama original.
O autor ilustra um do s possíveis malefícios do
uso inadequad o do s contos de fadas com um
caso clínico qu e acompanhou. 1 Nesse caso, um pai
relatava de mod o livre o cont o de Cinderela para sua
filha. Na sua maneira d e c o n t a r a história , ele s
s e i nc lu í a m e n q u a n t o personagen s e alteravam o
curso da trama: ele a salva\a das garras da madrasta
e juntos viviam aventuras. Pois bem . Bettelheim
acrescenta qu e a menina entende u essa liberdade
narrativa com o uma seduçã o paterna, e isso a levou
à esquizofrenia. Ora. certament e o psicanalista
austríaco nã o acreditou qu e tivesse sido o cont o de
fada narrado livremente q u e prejudicou a criança,
mas sim alguma neuros e familiar qu e fez os pais
ficarem numa posição inadequada, porém, sua forma de
relatar os latos deixou uma brecha aberta paia essa
deduçã o equivocada. Relativo ao quadr o patológico
dessa família, algo deve ter se expressad o na
narrativa do cont o qu e o pai fez. É certo, mas a
história de Cinderela era uma ilustração e nã o o
fato em si.
Se nã o houvesse a narração de contos de fadas, de
qualque r maneira teria se estabelecido uma
patologia. Arriscaríamos dizer qu e talvez até o resultado
fosse pior. porqu e a cena do cont o deve ter
permitido algum grau d e elaboração à menina, pois
sabemo s q u e tud o qu e encontra alguma forma de
representação se torna mais passível de ser
equacionado . O cont o de fada foi apena s a maneira
co m o a família narrou alguns de seus conflitos. Já um
caso clínico relatado dessa forma tendenciosa nos
Fadas n o Div ã — P si ca n ál i s e n a s História s Infa nti s
crianças. Geralment e as
Apesa r d i s s o , o e fei t o g e r a l d a o b r a
e d e valorização da s histórias infantis e p e d e a
volta d o s pais ao pé da cama . E o m e s m o efeito q u e
deseja mo s produzir c o m o p r e s e n t e livro , ma s
e v i t a n d o a s restrições de Bettelheim, q u e am arra
m as famílias e os contadores de histórias em geral
num a forma única de se portar diant e da narrativa.
170
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o Cors o
172
Di a n a Li c h t e n s t e i n Cor s o e Mário Cors o
as
174
Di a n a Li c ht e ns te i n Co r s o e Mári o C o r s o
e a conside -
Um pouco de história
ettelhei m é a c u s a d o de fazer um a
leitura psicológica se m levar em cont a a
história, ou seja, faz uma análise atemporal
, c o m o se os
conto s de fadas sempr e dese mpe nhass e m
a mesma funçã o par a u m p ú b l ic o similar
e v o c a n d o sentidos padrões . Entendemo s a crítica
de Mircea Eliade de serem uma dessacralização do
s mitos —, ma s a ques tã o da origem nã o respond
e o p o r q u ê da sobrevivência desse s contos . Se eles
ramo s pertinente . V. uni problema o autor nã o
provê m m e s m o de ritos arcaicos, alguns do s quai s s ó
ter se d a d o conta de q u e o público-alvo foi
reconstruímo s po r suposiçõe s antropo • lógicas,
m u d an d o , mas uma coisa temo s de perguntar aos
graças a um p o u c o de material arqueológic o e à
críticos de Bettelheim: a qual períod o histórico
com paraçã o co m ritos em outro s povos , justamente po
deveríamo s no s ater?
r sere m vivências h á muit o a ba n d on a da s , po r
Não é difícil prova r q u e algun s desse s
qu e esse s restos ainda seriam lembrados ?
conto s já existe m h á vários séculos , d e v e m o s
Por outr o lado. é possível q u e esse s ritos tivessem
entã o procura r nele s mito s diluídos , o u
d ur a d o milênios e, po r isso, m ar ca d o
talvez resto s d e ritos da s sociedade s neolíticas?
fortement e a experiênci a huma na , ma s um a vez q u e
Ou ainda, seria melho r privilegiar o pape l qu e
desaparecer a m a s pretensa s condiçõe s qu e teriam criad
ele s d e s e m p e n h a r a m n a Antigüidad e clássica
o esse s contos , e se passara m inúmera s gerações ,
o u entã o n o medievo? O u de v e m o s atenta r
s e n d o qu e já nã o temo s uma idéia do q u e
para quai s marca s a soci edad e q u e o s pô s n
realment e foi ab a n do n ad o , po r qu e teriam s e
o papel , durant e o lluminism o e depoi s no
mantid o eco s dessa s manifestações primordiais? Em
mo vi ment o româ • ntico , o s teria i m p re g n ad o ?
outra s palavras, o q u e esses conto s evoca m para
O u seja. esse s c o n t o s atravessaram de z en a s
q u e o s p o v o s o s sigam lembrand o muito d e p o i s d e
de século s e várias torma s de organizaçã o
tere m sid o esquecida s a s possívei s
social. Qua l dela s teria sido mais impor • tante
experiências qu e os teriam criado? O mínim o qu e pode •
na sua constituição? Estariam todo s esses m o m e n • tos
mo s p e n s a r é q u e ele s e st ã o d e s c o l a d o s d
representado s no s contos , tais quai s estratiticaçôes
e um a significação original, ma s isso n ã o no s
geológica s d e várias eras? O u q u e m sab e o s
ajuda muito, afinal, o q u e eles passara m a dizer? E
conto s a co m p a n ha r a m toda s essa s sociedade s
ainda , c o m o se de u essa passagem? Nã o é difícil
justament e po r seu s elemento s ahistóricos?
criticar a postur a anti- histórica; o fato é que
Ora , p o d e se r cert o q u e o s conto s
t a m p o u c o os historiador e s p o d e m no s ajudar
sejam, n a origem, uma espécie de decantad o de
muito , j á q u e existe m muita s ques • tões n ã o
antigos ritos com o que r Propp.3 1 Acreditamos q u e
respondida s sobr e a difusão e a antigüida d e do s
bebera m també m e m outras fontes - no sentid o
conto s folclóricos.
175
Fadas n o Div ã - P si ca n á lis e n a s História s Infant i s
a ressurreição . Ora , quando
176
Di a n a Lichtenstei n Cors o e Mári o C o r s o
m alg o q u e lembra a morad a do s mortos, pois lá existem
esqueleto s
As interpretações q u e atribue m um caráter arque -
típico aos simbolismos utilizados po r ritos e
conto s seguem pelo mesm o camin h o q u e estamo s
criticando, de psicologização antropocêntrica . A
princípi o essa noção é uma idéia tentadora , pensaríamo s
q u e existiria uma espécie de simbolism o elementa r
e primordial que formaria um substrat o inconscient e
compartilha d o por toda a humanidade . Os ditos
arquétipo s seriam signos arcaicos e inaugurais, cujo
sentid o seria intuitivo, evidente por si m es m o entã o - se é
q u e isso é possível. Esse significado formaria um códig o
que , po r sua forca e possibilidade de simbolizacáo .
no s acomp anhar i a ao longo da história. É um a idéia
sedutora , q u e resolve, num primeiro momento , o impass
e entr e o vivido pri• mevo e a atualidade . Seriam
entã o esse s elemento s - chaves que com bina do s fariam
a difusão desse s conto s presentes em inúmera s
culturas , e é isso o q u e se transmitiria de
geraçã o a geração . E.sse edifício cai quando
fornece sua s interpretações , geralment e elas
redundam e m generalizaçõ e s q u e significam
q u a s e tudo e seu oposto . Os ditos arquétipo s acaba m
s e n d o noções tão a m pl a s q u e s e t o rn a m vaga s
e p o u c o elucidam sobr e o s eleme nto s q u e estã o
e m jogo.
Nossa idéia é entã o qu e a eficácia atual do s conto s
folclóricos em nossa subjetividade n ã o retire sua
força necessariamente do q u e teria sido sua
constelaçã o de sentido inaugural, ma s em sentido
s outro s q u e ela possa evocar no m o m e n t o
present e de sua narrativa. Afinal, nas tramas desse s
contos , estã o misturado s ricos cacos de significação, tud o
q u e é própri o do imaginário humano lá esta
representad o ou facilmente p o d e ser conseguido co
m sua justaposição : paixões , monstros . morte,
amores , traições, a b a n d o n o s , ou seja, e um
material qu e facilmente se presta para monta r sentidos .
Mas vamo s a outr o ex e m p l o q u e p o d e ser
útil para delinearmo s ess e m o d el o provisório.
Inúmero s contos ou mitos no s falam de um a
passage m pel o interior de um ser monstruos o -
c o m o em Pinocchio
-. nos quais, depoi s de sair de dentr o dele , o
herói não é mais o mes mo : geralment e está mais sábi o
e às vezes, estranhament e , pe r d e o s cabelos .
Prop p no s aponta uma série d e exemplo s e m
sociedade s o n d e ritos semelhante s ainda existem ou
foram recentement e abandonados, ap re s en ta n d o
co nt e ú d o s similares ao s contos. Nesses ritos, os mais
diverso s animai s gigante s
- g er al m e n t e c o n s t r u ç õ e s rústicas , o u seja .
u m a estrutura alegórica - p o d e m servir de monstr
o e vã o dar abrigo a u m a temp orad a a ser passad a pel
o neófito em sua barriga. Aquele s q u e deve m passa r
um t e m p o dentro d es s e luga r simbólic o e n c o n tr a
177
ou fantasmas, e ás vezes há pistas de um
en c on tr o co m os ancestrais. Pois bem, conclui ele,
esse s c o nt o s sã o restos d e antigos ritos d e
passagem. Send o assim, outra vez a mort e e
simbólica: morre a criança par a nasce r o
adulto , e os antepassado s representam , de
algum a forma , a tradição qu e é recebida po r
aq u el e q u e está s e n d o iniciado. É bastante provável
q u e assim seja. mas po r qu e esses restos teriam sid o
preserva do s po r tant o t e m p o se os ritos em si
mes mo s já n à o n o s dize m nada?
Ora , todo s no s passamo s um a
temporad a n o ventr e de um ser. naquel e
momento , be m maior. Na ficção, porém , a o
contrário d e q u a n d o fomos gestados . temo s uma
atitude mais ativa: agora os herói s sae m po r
si próprio s dessa barriga, eles c o n s e g u e m
livrar- s e da s e n t r a n h a s d o monstr o co m a
su a forç a o u inteligência. Na ficção,
transformamo s o passiv o em ativo e buscamo s
a vida. A ideia de um a es p éc i e de mort e nas
entranha s pod e permanecer , e m b o r a agora os
co nt e ú d o s se voltem para o nascimento , poi s pod
e ser uma forma d e pensa r o estatut o d e
q u e m n à o nasceu , afinal, embor a nà o seja um
mort o q u e m vai nascer, e um não-vivo, ou um
vivo invisível.
Pode mo s nà o saber po r q u e u m p o v o
tev e u m ritual o n d e a passage m de um status a
outr o dev e ser ac o m p a nh a d a d e u m simulacro d
e renasci mento . Mas nã o é tã o difícil explicar
por qu e algun s co nt e ú d o s , capaze s de ajudar
na simbolizacá o da passage m pel o interior d e
outr o corpo , tenha m p e r m a n e c i d o . Atinai e uma
questã o nà o só para as crianças, já q u e saímo s
todo s da s entranha s d e uma gigante .
O contrário talvez nà o seja verdadeiro , o rito
n à o necessariament e foi m o n t a d o assim para
simboliza r a q u est ã o d a noss a origem , ma s
po r se r u m rito d e passagem , simbolizand o
um segundo nascimento, n à o é impensáve l qu e
cie tenh a ele ment o s alegórico s d o noss o
primeir o nascimento . Então, q u a n d o enfraque •
cera m o s sentido s relacionado s a o ritual, esse s
conto s p o d e m ter se mantido , pois fariam ec o em
no s através d o q u e ante s era a p e n a s u m resto,
uma decora çã o d a cena , mas de algum a forma
ligada a ela.
Por outr o lado, p o d e haver conto s e m
q u e isso nà o m uda . a orige m e a permanênc i
a se elevem ao s m e s m o s motivos . Boa part e
da s análise s d e P ro p p baseiam-s e n o estud o d e
ritos d e passagem , e n q u a n t o a sociedad e
m o d er n a é praticament e desritualizada. Nosso
cresciment o n ã o é balizad o po r evento s q u e
ma rq ue m se m equívoc o um a passagem .
P o r é m seguimo s crescendo , digamo s q u e temo s
aind a mais etapa s d o qu e antes , po r isso é natural qu
e u m discurs o sobr e o crescimento , q u e fale
sobr e c o m o passa r d e
Fadas n o Div ã — P si c a n áli s e n a s H is tó ri a s Infanti s
do imaginário entr e as crianças é o q u e
possibilita sua utilização com o se fosse um
brinquedo . Se um a menin a diz para a outra:
uma etapa a outra, sobr e sentir-se de fora e depoi s ser
"seremo s princesas, eu qu er o ser a
aceito num a sociedade , é noss o feijão-com-arroz
do s drama s subjetivos. A sociedad e q u e no s
transmitiu os conto s era aind a ritualizada . ma s j
á n ã o usav a o s mesmo s ritos q u e teria m d a d o
orige m ao s contos , poré m os tema s ainda era m os
mesmos , a angústia de deixar de ser e reinventar-se
em um outr o estágio, e esse segue s e n d o u m dram a
h u m a n o atemporal . Essas história s s e m a nti v er a m
po r ajuda r a e l a b o r a r o s mesmo s sentidos qu e
possivelment e as fizeram existir. Outr o e x e m p l o
desse s conto s q u e p o d e m ter
p e r m a n e c i d o similares, q u a n t o ao s c o n t e ú d o s
q u e despertam e os qu e os fundaram, p o d e ser o
daquele s relativos aos enlaces amorosos : em muitos
deles, antes do final feliz temos um casament o qu e vai ser
a condiçã o dess a felicidade, f u n d a r um a família,
d o lad o d o homem , e muda r de família, do lado
da mulhe r (nu m arranjo tradicional) , sã o quest õe s
q u e atravessara m todo s esses séculos e segue m
se n d o desafios.
Embor a os conto s sejam em si estruturas se m um
sentid o próprio , intrínseco, seguira m existindo ,
pois continua m possibilitand o arranjos q u e têm algo
a no s dizer , n ã o n e c e s s a r i a m e n t e a m e s m a
cois a q u e o r i g i n a l m e n t e podiam significar ,
mas f o r n e c e m e le m e nt o s par a um a nov a
significação . Q u a n t o á s antigas histórias, po r veze
s a s d es m o n ta m o s n o t o d o e reaproveitamo s a p en a
s os tijolos, po r outra s usa mo s uma pared e inteira
q u e agora ganh a u m nov o lugar. S a b e m o s que
o estatuto científico dessas
especulações e frágil, mas com o disse Cario
Ginzburg: A orientação quantitativa e
antiantropocêntrica das ciências da natureza a
partir de Galileu colocou as
ciências humana s nu m desagradáve l dilema:
o u assumir um estatuto científico frágil para
chegar a resultados relevantes, ou assumir um estatuto
científico forte para chegar a resultados de pouca
relevância.J3 2
Opta mo s entã o po r
ousar. A eficácia
psicológica das histórias
infantis
m a das prováveis vantagen s do s conto s
d e fadas folclóricos sobr e as outras
formas de ficção , deve-s e à
u n i v e r s a l i d a d e d e su a
difusão. O compartilhament o de trecho s
Bela Adormecida": a amiga p o d e responder : "e eu a
Cinderela"; e entã o a brincadeira p o d e começar sem
maiore s esclarecimentos . O m e s m o efeito pode ser
obtid o co m personagen s de um d es e n h o animado que
todas as crianças estejam assistindo. O imaginário infantil
abastece-s e de histórias, traços de personalidade de
personagen s e cenários proveniente s da ficção, que são
utilizado s conju nta ment e c o m o b o n e c a s , carrinhos,
bicho s de pelúci a ou super-herói s de plástico.
São elemento s disponíveis para um a combinaç ã o que, esta
sim, será o instrument o de elaboraçã o da criança.
Bettelhei m te m razã o q u a n d o diz:
Ou ainda:
Notas
1. Título do original em inglês: The Uses of Enchantment:
the Meaning and Importance of Fairy Tales.
2. Esse fenômeno de intimiclamento das famílias
foi teorizado por Christopher Lasch em Refúgio
num Mundo sem Coração . A Família:
Santuário ou Instituição Sitiada? Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1991.
3. É extraordinário o número de personagens e histórias que
o século XX criou para o consum o infantil e qu
e em pouco s anos desapareceram. Nosso estudo nos
colocou em contato com uma gama ainda mais vasta
do qu e imaginávamos. Dá uma angústia tentar
ap re e nd e r certas lógicas interna s d e
pequenos universos fiecionais. que serão logo mais
descartados pelas crianças, mas esse é um ônu s inevitável
a quem queira trabalhar com elas. Se você
pensa em se dedica r á psicoterapi a de
criança s e nã o tem paciência para entender
algo sobre, por exemplo, Os pokémons, ou algum
similar ou sucedâne o deles, p r o v e n i e n t e do r ei n
o do s animes (desenho s animados japoneses),
talvez seja de repensar a sua escolha. Não é
possível, nem necessário, assistir a TV todos os
dias, mas alguma conexã o com essas produçõe s é
imprescindível.
4. BETTEI.HEIM, Bruno. A Psicanálise dos Contos de
Fadas. São Paulo: Paz e Terra. 2001. Ver nota
na página 158.
5. Ibidem, p. 186.
6. Ibidem, p. 163.
7. Para aqueles cuja infância transcorreu na década de
1960-1970, com o nós, houve uma família Robinson
qu e também ocupo u para muitos o lugar de núcleo
familiar idealizado: a retratada no seriado
norte-
Diana Lichtenstein Corso e Mário Co r s o
cultural, ao aspira r à
182
Segunda
Parte
- HISTÓRIAS CONTEMPORÂNEAS -
a apoia r e elaborar seus conflitos íntimos, essas
histórias estão longe
o b s t i n a d a m e n t e à infância . P o o h p e n s a c o m o
a s crianças be m peq uenas , sua graça prové m dess a
lógica r u d i m e n t a r , porém , no s conto s d a
t r a d i ç ã o a s personagen s sa o se mpr e crianças maiore s
q u e j á anda m sozin ha s n a floresta, joven s o u
adultos . E m e s m o q u a n d o os protagonista s sa o
crianças, a maio r part e da s histórias trata de c o m
o sair da infância. Só hoje, co m a extrema
valorização dess e m o m e n t o da vida, já n ã o e xi si e
um a urgênci a e m sair. fo r isso . u m
personage m c o m o Pooh, q u e represent a um a
infância protegida e interminável, faz sentido .
Dentr o d es s e raciocínio , um a q u e s t ã o s e
faz p r e s e n t e : q u a i s seria m a s história s infanti
s mai s importantes criadas pos-conto s de fadas? Quai s
histórias atuais teriam potencial para ajudar as crianças
em seu s processo s subjetivos? A arte enfocad a na
infância te m crescido exponencialmen t e nas ultimas
décadas , e fica difícil escolhe r entr e o g ra n d e a c e n o
q u e a literatura, o cinema e a TV têm oferecido . Por
isso. optam o s po r partir d e u m critério be m
d e m a r c a d o : e s c o l h e mo s narrativas qu e tiveram cert
o sucess o junt o às crianças e nã o as qu e nos
parece m mais ricas.
Ness e p o n t o , a g lo b ali z aç ã o n o s ajuda ,
poi s c o n s e g u i m o s a c o m p a n h a r pe l o m e n o s a s
g r a n d e s c o rr en t e s d e interes s e d o p ú b l i c o
infantil. Consi • deramo s qu e isso e pel o meno s
um a garantia d e q u e essas histórias têm algo a
dizer às crianças. Insistimos na idéia de q u e , em
termo s de ficção infantil, ou be m elas gostam ou o
projeto não vai adiante . Um sucess o ness e ca m p o e
um encontr o feliz entr e q u e m tem algo a dizer, sab e
fazê-lo de uma forma interessante, e as
necessidades desse público qu e é
s a b i d a m e n t e exigente , já q u e se distrai co m a maior
facilidade. Além disso, ne m toda s as boa s histórias e
as belas imagen s têm a o p ort u ni da d e de
encontra r se u público . Por exemplo , o mega
sucess o Hiarry Potter só existiu pela teimosia de sua
autora, J.K. Rovvling, q u e tev e seu livro recusad
o po r várias editoras . Um c â n o n e da s p r o d u ç õ e
s mais importante s d a cultur a dirigida à s
crianças nã o está definitivament e estabelecid o ,
ma s acreditamo s que , se algum dia for feito, as
histórias qu e escolhemo s irão certament e estar be m no
ranking. Q ua n t o ao s conto s d e fadas, um a certa
escolh a
darwinia n a j á havia d e c a n t a d o a s história s q u
e s e t o r n a r a m cl ás si ca s , m a s e m r e l a ç ã o à s
h i s t ó ri a s m o d er n a s aind a n a o p o d e m o s aplicar
ess e critério. Dessas, alguma s continua m s e n d o
lembrada s muit o além de seu te m p o de origem ,
pela a d e q u a ç ã o da sua fórmula, pela genialidad e da
trama. Esse é o cas o da s histórias mais antigas da
que m garant e qu e Harry Potter. qu e hoje
qualquer crianç a sab e q u e m é . amanh ã ser á
lembrado ? O u n i v e r s o de O Mágico de Oz, q u e
Fran k Baum escreveu , tev e no s EUA a m e s m a
força q u e Rovvling tem agor a co m seu bruxinho . ma s se
n ã o fosse o filme da Metro talvez, n e n h u m a criança
de hoje soubesse q u e m é Doroth y Gal e d o Kansas.
Enfim. certas histórias e personag en s sobrevivem se u
t e m p o , vã o ao s p o u c o s s a i n d o d a literatura e
en tr an d o na fala popular . Afinal, q u e m n ã o conhece
o nariz do mentiros o Pinocchi o ou nã o sab e qu e Peter Pan
nã o suporta crescer, às vezes sem m e s m o conhecer a historia
original? E.sse é outr o critério q u e no s parece importante ,
o pta m o s entã o po r ficçòes q u e desborda- ram de sua s
histórias para a cultura, em q u e ou uma persona ge m
ou um cert o mot e entra na linguagem cotidiana.
P.ssa é, para nós , a certeza de uma genuína contribuiçã
o para seu t e m p o . Por e xe m p l o , no Brasil p o d e m o s
c h a m a r um a crianç a sujinh a d e Cascào
(embor a co m significado preexistente , hoje ele passa
pel o personage m de Mauríci o d e Sousa) ,
uma comilona , de Magali: ou um dislálico de Cebolinha;
e, se os outro s no s en te n de m , é p or q u e estamo s
diante de algo q u e faz um diálog o marcant e co m a
cultura d e seu t e m p o .
Mesmo assim, alguma seleçã o teve de ser feita: às veze s
es co l he m o s certa trama em funçã o da maior
familiaridade (po r termo s sido atravessados por essa
ficção, que r na vida privada, que r na clínica), ou pela
facilidade de abrangê-la teoricament e (alguns universos
mágico s sa o mais simple s e en t ã o mais
didáticos). Ta mbé m ho uv e situações em q u e recuamo s
diante das dificuldad e s p r o v e n i e n t e s d a vastidã o d o
material
(especialment e no cas o do s super-heróis). De qualquer
forma, acreditamo s qu e a amostrage m é significativa e
convidamo s os colegas para qu e aceitem os desafios
de interpretar as histórias qu e julguem importantes e
qu e nã o estão contemplada s neste volume. Afinal, existe um
bo m nú mer o de personagen s e histórias qu e pedem maio r
est u d o a respeit o de sua influência sobre as
subjetividades em formação.
E m toda s as hi st ór ia s dest a segund a
parte, partimo s da leitura d o s originais, ma s nã o desprezamos
as versõe s posteriores . Afinal , e s s a s narrativa
s costuma m se r apropriada s po r outro s
escritores, ilustraclores, editores , adaptada s para teatr o e
cinema. Muitas vezes , é o cruza ment o de dua s
versõe s que realment e imortaliza e export a par a
nova s paragens um a história. Por e xe m p l o , c o m o
co m e nt a m o s acima, s e m o filme da Metro , O
Mágico de Oz seria ura f en ô m e n o local e de
m e n o r importância . Ou ainda,
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o
Corso
185
Capítulo XIII
A LÓGICA DA INFÂNCIA EM
PROSA E VERSO
Winnie-the-Pooh
Investiment o familiar na e duc aç ã o das criança s - Valor social da infância
m oder n a A lógica d o pe n s a m e n t o infantil: animismo . egoc entrismo ,
pe n s a m e n t o mágico , c o m pr e e n s ã o literal da linguage m - A importânci a do
diálog o co m as crianças - Amig o imaginári o
188
Di a n a Lic h te n st ei n Cors o e Mário Co r s o
mundo.
presença s alterand o a or d e m d o m u n d o regrad o lece, arrepen de-s e de sua s chatice s e relaxa um pouco
d o s adultos . co m as criancices do s outros . Ele é o adulto
O personage m do tigre é praticamente o que as criança s tê m e m casa, q u e nã o está se m p r e
mesm o qu e Roo. ambo s saltadores, tanto qu e às vezes disponível para elas, tem pr e oc u pa ç õ e s q u e elas
vive aos cuidados de don a Kanga, com o se fosse nã o compreen• d e m e tenta se escapa r dos constante s
seu filho mais v e l h o . O canguruzinh o faz pedido s infantis, A coruja t a m b é m faz um g ê n e r o
t r a v e s s u r a s d e form a totalmente inocente, se mete em adulto, brinda
situações perigosas sem ter a mínima noçã o do qu e fez, ne m os a migo s co m um a sabedori a ridícula e
durante, ne m depois. Numa história ele caiu na água, quas e dispensável, ma s ele s jamais deixa m de consultá-la .
se afogou e depoi s ficou perguntand o para todos, Na verdade é um adult o fora de órbita , to d o s o
eufórico, se viram com o ele nadava bem. Já Tigrão respeita m mas não est á mai s c o n e c t a d o no
não é assim bobinho , ele se dá conta do s estragos qu e m u n d o real . É um avô b o n a c h ã o q u e vive de
provoca, embor a na o consiga se conter. Alterna sua s lembra nça s e tudo o que q u e r e um públic o
momento s de euforia co m outros em qu e compreend e para contá-las . freqüentemente, se p e r d e no mei o
o quant o ele incomoda e julga qu e nunca mais de sua s interminávei s histórias que ni n gu é m
será amad o por alguém. entende . Além disso , usa um vocabulário
Corn o o Tigrao , m e s m o a mai s salient e empolad o qu e visa a i m pr es si o n a r os
das crianças consegu e olhar de fora a cen a da sua outros cora sua sapiência . Por outr o lado , t a m bé
bagunç a e temer pelos seus eleitos. Aliás seu objetivo é m nã o escuta o q u e os outro s personag e n s têm para
produzi r efeitos, poi s c o m o o tigre , sua s lhe dizer. A coruja é talvez um re pr es e nt an t e da velh a
p r e o c u p a ç õ e s s e centra m no amo r e na atençã o geraçã o que ainda n ã o tinha o hábit o de escuta r
q u e é capa z de gerar. Seu lema seria: "falem mal as crianças .
de mim, ma s nã o falem de outra coisa". Aquilo qu Já c h a m a m o s a atençã o para a ausência feminina
e Roo faz, inocentemente , po r se r apena s ness e p e q u e n o univers o de m enino s (co m a
pequeno , n o Tigrã o mostra-s e mai s exceção da don a Kanga. todo s os perso nagen s sã o
com plicad o , el e tem l á sua s intenções : a s masculinos). Nã o parec e have r n e n h u m a intençã o
criança s apronta m confusõe s c o m o uma forma d e
misógina nisso, a p e na s os bicho s sã o extensõe s
diálog o co m os outros , toda aca o sua está na
da personalidade de Christophe r Robin, e ele é um
expectativa de um a reação . Se algum desse s
m e ni n o . Na faixa etária q u e mais se identifica co
persona ge n s existe na alma da s crianças, este é o
Tigraã, pois, m e s m o q u e sejam muit o peq uenas , m essa s personagen s pouco se import a se eles
be b ê s d e colo, sua s molec agen s sã o feitas d e olh o sã o m e ni n o ou menina , há ainda um a certa
n o adulto , á esper a e m o c i o n a d a d e provoca r o indiferenciaçã o sexual. Don a Kanga é uma m ã e
previsível "não". n u t r i d o r a , c o m o t o d a s , m a s s e u cuidad o s e
restringe q u a s e qu e totalment e a Roo. O
As funções adulta s sã o representada s po r
Tigrão é o únic o q u e se beneficia de seu zelo
don a Kanga . um a mã e clássica, d o n a d e um a
se m ser seu filho. Q u a n t o a Poo h alimenta-s e de mel,
paciênci a infinita, pel o coelh o Abel, q u e é um
qu e necessita
ranzinza, e pela Coruja, u m a v ô caricatural . A
ser trabalhosamen t e tirado da s abelhas . Essa
m a m ã e c a n g u r u ê amoros a e isso é tudo , um
relação do ursinh o co m o se u únic o alimento , assim
persona ge m coadjuvant e apenas , o texto de Milne
como as aventura s necessária s para obtê-lo , é um a
é mais centrad o na relaçã o pai-filho, praticament e
espécie de coraçã o da trama, po r isso m erec e
nã o há presenç a feminina no univers o de Milne.
alguma s conside• rações . O ambient e o n d e
O coelh o Abel trabalha em sua horta, tem uma
Christophe r e seu s animais vivem - um protegid o
casa arrumad a e sempr e está tentand o mante r alguma
quart o e um a imaginária floresta segura (contrapont o
orde m n o cant o d a floresta qu e ele habita.
de toda s as florestas cheias de perigo s da s
També m é o mais egoísta, tenta reprimir as
histórias infantis tradicionais) - nos faz pensa r
características mais anárquica s d e seu s amigos ,
n u m lugar q u e n t e e protegid o , portanto de
n ã o lida be m co m as novidade s e organiza co mplô s
cert a form a m a t e r n o . A c o n t e c e q u e iss o
contra un s e outros . Enfim ele guard a em si as
é uma dedução , p or q u e mãe s m es m o quas e n ã o
parte s mais chatas da s pessoa s crescidas (com o o
comparecem na s histórias do Pooh , ne m m e s m o
define Milne: Coelho, cuja vida é feita de Coisas
par a oferecer o alimento . O leite do noss o urs o
Importantes, assim co m maiúsculas) . Na verdade , ele
é o mel, ele é um insaciáv e l g l u t ã o mas ,
personifica o adult o o c u pa d o , pressionad o po r tarefas e
d i f e r e n t e m e n t e d o s bebês, a p e n a s d e m el ,
responsabilidades , q u e n ã o te m paciênci a c o m
d e s c r it o com o m a r a v il h o s o , mas perigoso ,
a s co nf u s õe s q u e a s crianças armam . N o fim da
pr o du zi d o pela s abelha s q u e ne m sempre estã o
s contas , ele s e m p r e a m o -
disposta s a fornece r a substânci a preciosa. Muito pel o
contrário , n ã o p o u p a m esforços par a perseguir o urs o ladrão , q u e vive t o m a n d o sust o delas .
192
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o C o r s
o
Apesa r d a s p o u c a s a l u s õ e s a o f e m i n i n o
, o pequeno paraíso protegi d o de Christophe r
Robin e Pooh parece ter a marca de um lugar
construíd o e cuidado pelas zelosas mão s de algum a
excelent e mãe : as casas do s animai s sã o
q ue nti n h as , a r r u m a d a s e cômodas: eles convida m
un s ao s outro s par a lanche s quando se visitam.
Co m o filhos muit o be m treinados , eles cuidam de
se agasalha r q u a n d o têm frio e vã o para a cama
á noite sem q u e ningué m tenh a qu e ralhar. Acreditamos
qu e ess e m u n d o doméstic o o r d e n a d o seja também uma
representaçã o matern a internalizada, em torno tia qual
nã o se fazem maiore s drama s e conflitos. Mas há um
território o n d e as coisas nã o funcionam com essa
eficiência: o do mel. Mais qu e uma comida, e objeto de
cobiça do Pooh. Para piorar as coisas, seu
abastecimento de mel está sempr e se esgotando , ele
é um guloso descontrolad o qu e com e tud o o qu e tem na
despensa e ainda sai por aí devorand o o estoqu e
do s outros. Engord a at é ficar en ta la d o na porta ,
e su a generosidade desapare c e q u a n d o o assunt o é
mel. Os delírios e medo s do Poo h estã o
relacionado s a q u e alguém (um terrível
Efallante,8 po r e xe m p l o ) venh a comer seu mel. É aí
qu e aparece m as falhas materna s e
os conflitos co m a dadivosa genitora.
Dona Kanga é a única figura matern a
concret a que aparec e na história . Ela é m ã e
de um filho pequeno, Roo, que . ao contrário do s
amigos, n ã o cuida de si com a autonomi a de q u e m está
crescido . Ela faz seguidamente o pape l clássico da s mães .
corrend o atrás dos filhos co m um a colher , um
agasalho , ou co m recomendações q u e ele s n ã o
escutam . Q u a n t o ao s outros, terão de enfrenta r
o m u n d o se m tod a ess a generosidade. As
abelha s representa m para Poo h a hostilidade q u e
surg e a partir de en tã o . A relaçã o complicada
entr e a gula insaciável de Poo h e o egoísm o militante
da s abelha s ilustra as di fi c u l d a d e s qu e
esperam aquele s qu e atingem algum a
indepe ndên ci a . mas ainda se s en t e m faminto s
da d i s p o n i b i li d a d e acolhedora do seio perdido .
Muitas crianças desenvolve m relaçõe s
bastant e ambivalentes co m a comida . As abelha s qu e
sae m em enxame atrás de Poo h mostra m o lad o
perigos o do alimento. Apena s ess e aspect o seria capa z
de explicar por qu e a s criança s tê m p â n i c o d e
e x p e r i m e n t a r alimentos diferente s e ficam muit o
de s or ga ni z ad a s quando se lhes obriga a comer .
Fias cuida m do q u e entra e sai de seu corp o c o m o
obsessivo s guarda s de fronteiras e n ã o estã o muit o
disposta s a ousa r n u m território q u e até en t ã o
polarizav a as troca s co m a mãe e os adulto s em
geral. São c o m o um jovem país, cioso de seu s
recém-estabelecido s limites territoriais,
c o m p r e e n d a q u e o q u e ocorr e n o s s o n h o s é
um registro diferente daquil o que de fato
acontece , é alg o q u e s ó s e pass a e m su a
temeroso s de q u e a ingestã o de algum a imaginação .
novidad e ou de quantia s indesejadas vá modificar
a forma e o caráter d e se u c or p o e pessoa .
C o m o a s crianças acredita m q u e tud o o q u e 193
se inger e passa a fazer parl e e altera a naturez a
da q ue l e q u e come , tod o cuidad o é p o u c o .
196
Di a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s
o
divindade mitológica, sempr e haver á um a história. provavelmen t e Tresspasser s Will, apelid o cie William
A criança qu e batiza se arbitra, c o m o seu s pais, a ser (com o s e o n o m e e m portuguê s d o av ô fosse, digamos :
um criador da língua. Felipe Intruso).
Vias a n o m e a ç ã o o p o r t u n i z a outr a form a
d e diálogo com a quest ã o tia linguagem : o
s o b r e n o m e ressalta um aspect o de inflexibilidade Um amigo imaginário
da língua, já que este ne m os pais tiveram o
direito de escolher. Geralmente, os so b re n o m e s sã os conto s de fadas tradicionais, os feitiços
o palavras se m signi• ficado compreensível , ou pel o ":»:••' b e n i g n o s p r o v ê m d e sere s m á g i c o s q u e
m e n o s fora de contexto , mesmo qu e designe m >:,/•' . . o f e r e c e m ao h e r ói o b j e t o s
profissões , lugare s o u qualidades, sã o palavras encantados. Seguidament e, e ss a ajud a
tora do lugar. Ferreiro, l.eite, Machado, Guerra, sobrenatural
Oliveira, Coelho , a pe n a s para de • signar os qu e têm provê m de animais, mas ela costuma estar
significados na nossa língua, q u a n d o transformados e eqüitativa- m e n t e distribuíd a entr e fadas, ancia s
m n o m e s d e família a b a n d o n a m o sentido qu e boas , a n õ e s . d ue n d e s e animais cie várias
lhes atribui o dicionário. l.'m m e m b r o cia família espécies . Os animais cios conto s cie fadas falam a
Ferreiro nã o se sentirá obrigad o a seguir tal
mesm a língua do s homens . assim , c o m o s e
profissão, n e m n e c e s s a r i a m e n t e ela fará p ar t e
foss e nat u ra l . J a m a i s o heró i s e surpreend e
cia tradição de ofícios dess e grupo , é a p en a s um a
co m esse dom . normalment e ag e com o s e fosse a
palavra que recorta um conjunt o de indivíduo s
coisa mais normal do mun do . Fies també m estão
ligados po r laços de sangu e e co n v en ç õ e s sociais.
entrosados com os desafios humanos , costuma m guardar
Numa da s histórias de Pooh , há um a algum tipo cie sabedoria e muitos têm função de ensinar.
incrível descrição sobr e a s contusõe s infantis Mas h á u m tip o d e anima l mágic o q u e n a o mor a
relativa s a o patronímico. O narrado r cia história (qu no m u n d o da s fadas. Fie habita o quart o ou
e se s u p õ e ser o próprio Milne), a qu e m o menin o a casa cie q u a l q u e r criança . Sua magia consist e
p e d e qu e cont e uma história par a seu urso sobr e
em falar, em s e movimentar , e m ser u m d o s mais
ele própri o (o urso), comenta qu e ele viria sol) o
fieis c o m p a n h e i • ros d e se u d o n o . Sao bicho s d e
nome de Mr. Sauders. O menino que r sabe r o q u
pelúcia o u b o ne c o s , ma s n ã o sã o objeto s
e significa isso de viver sob um nome, ao q u e o
quaisquer . Trata-se cia escolh a de um objet o
narrado r re s po n d e de forma be m concreta: "ele tinha
o n o m e escrito sobr e o marc o cia porta, em letras preferido , q u a s e um allerego tia criança. O bi c h o
douradas" , e qu e ele vivia abaix o deste . Da mesma falant e e se u d o n o sa o faces d a m es m a
categoria é o diálog o sobr e o n o m e cie família m o e da , c o m o se o bich o se incumbiss e cie um a
de Piglet. q u e se considerav a d es ce n de n t e de part e cia personalidad e tia criança . Certa s
Tresspassers W.... coisa s q u e a crianç a q u e r dize r o u pensar , ma s
n a o assum e c o m o próprias , sã o atribuída s a se u
Muitas vezes, ler para crianças p e q u e n a s inclui o
necessário recurs o ás figuras, há vários m o m e nt o s objet o predileto . For e x e m p l o , el a p o d e d i z e
em que elas pede m par a ver, quand o r qu e se u urs o uúo está gostando nada
a c o n t e c e alg o importante na história, surg e um a disso, quand o ocorr e algum a coisa q u e l h e
nov a persona ge m ou elas perde m o fio da meada . d e s a g r a d a , ma s nã o q u e r admitir . F.sse
Nesse caso, a figura ajuda a conta r a história: b r i n q u e d o é diferent e d e uni objet o transicional
aparec e entã o o d e s e n h o de um pedaç o q u e b r a d o (q u e explicare mo s melho r no s capítulo s seguintes ,
cie um a antiga placa pregad a próxima á casa de o qua l e um representa nt e materno) , aqui se
Figlet. o n d e se lê: Trespasser s \X'.... portanto esse é o trata de um a ex te ns ã o imaginária tia própri a
n o m e so b o qual o po r qu in h o vivia. Traduzindo par a criança .
o português , o n o br e an te p as sa d o do leitão se Atravé s tless e ti p o cie anima l d e
chamari a algo c o m o "Intrusos F..." (nã o sabemos pelúci a o u b o n e c o (embor a bichinho s d e verdade ,
as letras faltantes. ma s provavelment e seria: co m o u m cão . possa m d e s e m p e n h a r e m parte ess e
Intrusos Fora). Quand o Christophe r Robin papel) , a criança p o d e li d a r c o m aspecto s
pergunto u ao leitão o q u e isso significa, ele r e sp o n d e u m a i s antigo s d e su a personalida d e - mais
q u e era o nome de seu avô, e q u e ess e n o m e está regressivos, diríamo s em termo s psicológicos .
na família há muito temp o . O m e n i n o argu mento u Geralmente , o bichinh o é mais inocent e d o q u e
q u e algué m nã o pode chamar-s e Intruso s F. Ao q u e o seu d o n o , d e m o d o q u e este s e p o d e coloca r
leitão r e s p o n d e u que pod e sim, p o r q u e ess e era o t o m o s e fosse se u adulto , cuidando-o ,
n o m e de seu avô ,
protegenclo-o, s a b e n d o mais q u e ele, dando-lh e
ordens .
A criança e se u b r i n q u e d o tê m um a
relação de amigos , ma s ta mb é m est e é um
irmã o mais m o ç o e u m filho; é u m coringa ,
s e prest a par a múltipl a s
Fada s n o D i v a — P s i c a n á l i s e n a s H is tó ri a s Infa nti s
emparia co m o narrado r também .
N o qu e s e segue , o menin o p e d e a o
narrado r q u e cont e um a história para o urso,
tratando- o assim com o se ele fosse vivo e tivesse
vontade s q u e precisa m ser traduzida s para o adult o
q u e nã o tem a condiçã o d e e n t e n d ê - l o . P o r é m ,
n o p a r á g r a f o a nt eri o r , j á tínhamo s acess o a o
pe n sa m e n t o cie Pooh , q u e parec e ter bastant e
Lm amig o imaginário c o m o o Poo h é
possível q u a n d o a família o admit e c o m o d u p l o da
criança, aceita incluí-lo e de algum a forma se
comunica r com ele . ne m q u e seja e v o c a n d o - o na
convers a com a criança. F. um pass o além da
fantasia corriqueira de acredita r q u e o s br i nq u ed o s
te nh a m vida enquanto a criança na o vê.1 ' poi s
q u a n d o a família incorpora a perso nage m , o q u e era
fantasia se torn a uma brinca• deira. O amig o
imaginário é uma forma de a criança se referir a
coisa s sua s c o m o se fossem totalmente externas ,
('orn o faria um adult o q u e narra um a história cie sua
própria vivência c o m o se nã o tivesse ocorrido co m ele,
cont a na terceira pessoa , atribuind o os leitos a um
protagonista cie mentira.
0 amig o imaginário é uma duplicaç ã o da criança
qu e se institui, ganh a nom e e slatits de
existência, alg o c o m o um g ê m e o fantasma. A
vantage m é que através del e p o d e m ser vistas
situaçõe s e sentimentos c o m o se estivessem de fora,
c o m o ("hristopher Robin vê as i n ge n ui da d e s de
Pooh , se u sillv old bear. 0 narrado r n ã o precisa
chama r a atençã o do leitor sobre os aspecto s cômico s da
criança, eles sã o insignificantes d o lad o da s d o ursinho .
q u e é u m duplo , disponível par a ilustrá-las se m q u e
ningué m s e ofenda .
Q u a n d o uma família aceita qu e sua criança inclua
um fantasma na cen a dispõe-s e a fantasiar co m ela.
e isso na o é patológic o , e cie certa forma
lúdico. A popularidad e de relatos e analises dess e
recurso ao amig o imaginário , serve , p r o v a v e l m e n t e ,
para nos tranqüilizar a respeito do aspect o
fantasmagórico que p o d e assumir a imaginação infantil
e a fronteira muito tênu e qu e nela separa o real do
imaginário. Aliás, uma da s fronteiras mais delicadas da
clínica co m crianças p e qu e n a s está em percebe r q u a n d o
elas estão delirando e q ua n d o estão brincando . O amigo
imaginário é fantasia qu e beira um delírio, mas é
culturalment e aceitável, passageiro e provavelment e
útil.
1 ! m e x e m p l o de duplicaçã o mais simplificado e
mai s comu m é atribui r seu s feito s a
o u t r o s . Seguidamente , falamos coisas sérias co m um a
criança c o m o se n ã o lhe dissesse m respeito . Fia
no s conta evento s importante s c o m o s e tivesse m
ocorrid o com um a perso nage m da brincadeira, um
amigo , um irmão ou o cachorro . Fmbor a saibamo s qu e ela
é o verdadeiro protagonista , n ã o vamo s desmascará-la .
Será para ela u m pr az e r escuta r noss a o p i n i ã o
s o b r e o evento, acreditand o q u e no s e n ga n o u e se m
se ser obrigada a sentir-se concernid a co m o qu e dizemos .
Se no nosso e nt e n di m e nt o se u amig o foi ma u a o bate r
n u m colega po r caus a d e u m b r i n q u e d o o u q u e se u
cachorr o foi
Dian a Lichtenstei n Cors o e Mário Cors o
Notas
1. MILNF, A. A. Tbe Complete Ta/es <>/'\\iiune-tbe-Poob.
\e\ v York: Dutton Chilclrens Books, 199-1. p.
311
("Poesia e Cantigas não são coisas que você pegue,
elas e que te pegam. Tud o o qu e você tem cie fazer e
estar ond e elas possam te encontrar"). A palavra
bitm ê uma onomatopéi a do ruído das
abelhas, eqüivale a quand o cantarolamos uma
música com os lábios fechados ou talvez, às
cantigas infantis ou de ninar que embalam ao som de
palavras qu e vão se tornando murmúrios. K assim
qu e o urso Pooh classifica as músicas qu e ele
faz com suas poesias.
199
F c o m o se ele ruminass e para si
própri o uma narrativa em verso s sobr e
a situaçã o qu e está vivendo.
2. ARIFS. Philippe. História Social da
Criança e da Família. Rio cie Janeiro: Zahar
Hditores, 1981. Na mesma linha de
investigação, recomendamo s o livro cie
Flisabet h Badinter. .Cm Amor
Conquistado. publicado pela Fditora Nova
Fronteira, em 1983.
3. SPITZ, Rene. O Primeiro Ano de Vida da
Criança.
São Paulo: Martins Pontes. 1983.
•i. MILNE A. A. lhe Complete Talesof\X'innie-Ibc-l>oob.
New York: Dutton ChiklreiVs Books, 199-1. p. 29-1
s. Ibiclem, p. IO-,
ú. Os nome s entr e parêntese s sa o os da
traduçã o brasileira: ás vezes, pode m
divergir daqueles que po r ventur a o leitor
co n he ç a , pois a traduçã o brasileira nã o é
homogênea .
~. Ibiclem. p. 29 i.
8. Pfallantes (em inglês I leffaltimps) sao
monstro s temidos pedas personagen s desta
histénia. Nenhuma delas jamais viu um, mas
todos sonha m freqüen• temente com edes. Ate
já foram organizadas caçadas na tentativa
(frustrada) cie prender um deles e salvar o mel
qu e ameaçam roubar.
9. PIAGEL. lean . .1 Representação do Mundo
na
Criança. F.d. Recorcl. Rio cie Janeiro: 1981. p. 12"".
10. Ibiclem p.
9i . I 1.
Ibiclem p. ""-(.
12. ibiclem p. 03.
13. MILNF, A. A. TbeComplete•Talesof\\innw-
thed'oob. New York: Dutton ChildrenN
Books. 199-t. Intro- duetion.
1-t. Fssa histé)ria sobre a condição animada (mesmo
que secreta) cios brinquedos deu origem ao
filme 'Toy Slory, que é uma versão moderna cia
mesma fantasia cio conto As Flores da
/Jeqnena Ida. de Anclersen. Nesse caso, as
protagonistas eram flores colhidas por uma
menina.
Capítulo XIV
UM POR TODO S E TODO S EM UM*
A Turma da
Mônica
Revolta contra o poder da mae - Onipotência mágica
infantil - Agressividade nas crianças pequenas - Hstáclio do
Fspeiho - Capacidade de estar só - Objeto transicional - Fobias
inlantis -
Construção primordial do Fli - Voracidade e recusa do alimento nas crianças
'Este capítulo, de tornia reduzida, com o nome "O Knigma da Mônica", foi publicado em 7 cie junho de 2003, no (-adorno de Cultura do
jornal Zero Hora, de Porto Alegre, RS, por ocasião dos -K) anos da personagem Mônica.
Fadas n o Div a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infanti s
amig o qu e faz da rival seu moinh o de vento,
participa do plan o mei o a contragosto, saben d
o q u e irá apanha r no final.
Por último, mas nã o men o s importante , vem
Caseào, q u e vive em função cie sua fobia cie água .
razã o pela qual é um sujinho. Todo s têm a mesm a
idade . 6 ou ~ anos . aind a na o va o a eseola e
vivem o cotidian o co m u m cias crianças urbanas ,
co m Limas pincelada s de magia aqui e ali: essa.
entretanto , n ã o é a tônica do s enredos .
Os quadrinho s começara m a ser desenhados ,
em
1960. por Maurício de Sousa, e foram tiras cie jornal
ate ganharem revistas próprias a partir de 19~0. Desde
então, arregimentaram uma legião de leitores, são
motivo cie parque s temáticos, brinquedo s e garotos-
propaganda de uma inlinidade de produto s e
campanhas . Se é ceito qu e as crianças têm grande
empatia por essas persona• gens, qual ê o segredo? O qu
e da infância elas represen• tam para se fazerem
merecedora s de tantos fãs?
Acreditamos q u e encarna m facetas c o m u n s
a s crianças, mas separada s em personagens . F.
c o m o se vário s as p ect o s p r e s e n t e s n a infância
p a s s e a s s e m dissociados, permitindo-lhe s contempla r e
elabora r um de cada vez. Se juntássemo s todo s nu m
só. faria mais sentido : entretanto , faremos nossa
análise dess a turm a o b e d e c e n d o a mesm a divisão cio
autor, ciando a cad a um o lugar qu e sua
especificidade requer.
202
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s
o
levam-na para dormir no berç o qu a n d o estava
muito
."se trata cie lhe tirar esse coelh o e fazer nó s em
suas orelhas.1 com o se assim ela fosse perde r a
força, tal qual o Sansào cios mitos, q u a n d o teve
sua cabeleira cortada por Dalila. Na poss e dess e
coelho-cabelo , ele subjugaria o pode r feminino e
seria o dono da rua ou da lua, para usar suas
palavras.
Fstamos sugerindo qu e a luta inglória cie Cebolinha
contra Mônica seja també m a das crianças em geral contra sua
màe. Afinal elas nã o se entregam de tão bo m grad o à
supremacia de pode r da mãe. submissão que . para os
meninos, é ainda mais constrangedora, ('orno a
trama de quase todas as histórias da-se a partir de uma
questã o entre pares, pod e ser difícil entende r nossa
tese de qu e Mônica possa representa r algu m aspect
o da mãe . F igualmente difícil imaginar alguém
chamand o a mamã e de baixinha, golditcha c dcutuça.
c o m o cebolinh a faz. mas certamente é o q u e
muitas crianças, em certos momentos, gostariam de
dizer às suas mães. Insistimos, no entanto, em qu e essas
personagen s são todas parciais e múltiplas, oferecend o
espelho s a variadas posiçõe s identiticatórias. De
qualque r maneira, acreditamos qu e Mônica se presta
para dramatizar ludicamente a màe nessa luta cio menin o
contra o pode r materno; embor a lhe falte a
autoridade, ela tem a força e o sex o da màe.
Hntretanto, é bo m salientar q u e essa
dona da rua não parec e usufruir de um g o z o
particular pel o seu poder. Isso se da mesm o é na cabeç a
de Cebolinha. ele sim teria ess e goz o de domíni o
q u e projeta em sua rival. Mônica. c o m o uma
màe . mand a e pronto . Nào se question a ne m sent e
um glamou r especia l pel o seu pretenso reinado ,
ap e n a s administra os humore s dos que estã o so b
sua jurisdição e aind a os proteg e de perigos
maiores .
Mônica: a sansona
jpõàx».. ;\ 0 p e q u e n a e ta o p o d e r o s a .
Mônic a é
£8 | S í eloqüent e tant o cia identificação da
criança fciilí co m o p o d e r do s adultos , q u an t
o cia oni• potênci a mágic a própri a cia
infância. Xos primeiros anos , o pai e a mà e sã o
toclo-poderosos ; de seus gestos, prové m t u d o o
q u e cheg a à criança. F não há só os pais na vida de
um a criança, q u e costum a
ser rodeada de vários adultos , há ta m b é m aquele s qu e
nào são a m a m ã e ne m o papai , ma s q u e
estã o na verdade a subs tituí-lo s n o e x e r c í ci o
d a s f u nç õ e s materna e paterna .
Os adultos, entretanto, p o d e m parece r maus. Eles
colocam a criança em lugares indesejados, por exemplo ,
maiore s ficaram incrédulas , mas u m p e q u e n i n o
d e 3 ou 4 a n o s se divertiu fazend o música co m
se u corpo .
be m no colo ou nà o lhe alcançam algo qu e
ela quer. Mas també m sabe m ser bons ,
permitem qu e a criança veja o m u n d o d e
cima q u a n d o a p e g a m n o colo , oferecem-
lhe alimentos, alcançam coisas. Lana mera ação deles
permite qu e um brinqued o venha roaudoth estante
até as mãos do bebê . qu e havia demonstrad o
interesse no objeto através do olhar, de um gesto ou
de um grito. Ao b e b ê . isso parec e algum tipo
cie magia qu e
p o d e ser realizada po r ele o u pelo s adultos;
ele nà o faz muita diferença entr e o benefício
qu e prové m do gest o do s adulto s qu e o
cuida m e o q u e foi causad o po r seu grito ou
po r um gest o q u e fez. Nao pouca s v e z e s , o
s b e b ê s cria m rituai s m á gi co s , c o m o s e
balançare m para sere m erguidos , mas na o lhes
é be m claro se foram erguido s p or q u e
seduzira m a ma mã e co m a macaquic e o u pel o
p od e r d e seu gest o mágico . Seu ser ainda está
misturad o co m o do s adultos, be m c o m o o s
atos deste s co m o ambient e e m q u e a s açõe s
acontecem , as causaliclacles estã o aind a po r se
definir. Por isso, terã o cie se balança r muit o
sozinho s para c o nc lu ír e m q u e o ritual s ó
funcion a n a trent e d e adultos ; depoi s aind a
será precis o e nte n d e r q u e está e m pode r
de st e s decidi r c o r r e s p o n d e r o u n à o a o
pedido . O s adultos , então , serã o
s e d u z i d o s o u subjugado s à bas e de gritos
e lagrimas, expedie n t e q u e o b e b ê nà o
demorar á em aprende r a utilizar.
Cebolinh a é um me nin o qu e já perceb
e q u e a mà e tem ess e pode r e nà o está
contente . Para isso (e so ment e isso). Mônica
encarn a a ma mãe . Mas .Mônica é muit o mais.
també m é aquel a criança qu e se sent e
poderos a pelo s gesto s mágicos . Sente qu e pocle
levitar objetos , a p o n t a n d o para eles. e voar
invocand o os deuse s do balanço . Assim, seu
pode r é ilimitado, nà o h á e m q u e m n à o possa
bater.
O b e b ê na o extrai seu presu mid o pode r
ap e n a s da ignorância da causalidade , ele sab e qu e
sua pesso a é um objeto valioso de possessà o e
dign o de cuidad o p a r a s e u s p a i s . Fi e n à o
ter á e m a b s o l u t o u m a consciênci a disso ,
ma s sentira u m poder , q u e está r e p r e s e n t a d
o po r Mônica . Fia é o filho no p l e n o
exercíci o d e u m sentiment o d e realeza, q u e
eman a d a v a l o r i z a ç ã o d a crianç a n a
família , j á q u e , p o r menorzinh a q u e seja.
polarizará a s atençõe s .
Certa vez. nu m program a d e pega dinha s
norte - a m e r i c a n o / a propost a era fazer a
música-ambient e d e u m su p er m er c a d o tocar
conform e o s moviment o s d e determinad a pessoa ,
sincronizand o o s acorde s co m seu s movimento s e
co m isso deixá-la desconcertad a . A maio r part
e d o s adulto s n à o p e rc eb e u , a s crianças
Fada s n o Div a — P si ca n ál is e n a s História s Infa nti s
Cascão: o sujismundo
i • asca o e um lobico . ou seja, tem 205
m e d o de
' alg o muit o específico e vive p e n d e n t e
de
'- sua aparição . Mapeia o m u n d o
conform e a presenç a o u a ausênci a
d o objet o d e se u
pavor, no caso . a água . Isso qualque r criança
entende , e a solidariedad e co m Cascão é
imediata. Ter m e d o é uma coisa séria para os
p e q u e n o s , e é bo m ver q u e na o sã o o s
único s co m m ed o s inexplicáveis.
Não há criança sem um objeto lobic o
ainda q u e transitório . O tip o mais c o m u m sã
o aquele s q u e a criança tem oportunidad e s
variadas d e encontrar: co m o um palhaço , um
cachorr o ou o Papai Noel. O objeto fóbico
ajuda a estipula r os espaços , p o d e m o s dizer
q u e ele atua com o um referencial, um
parâmetro , a partir do qual a criança mapei a
de te r mi n a d o lugar, assim c o m o articula tais
espaço s co m uma certa lei, identificando o n d e
pod e e o n d e na o p o d e ir. Q u a n d o um a
criança p eq u e n a tem m e d o d e palhaç o o u
d o Papai Noel, p o d e m o s observa r seu s
movimento s d e vai-e-vem m e d i n d o o território
co m o olha r no p o n t o fixo de seu terror.
F.ntao. estabelec e a distância ideal d e s d e o n d e
poder; ! observa r detidamente , e co m
verdadeir o fascínio, o seu objet o lobic o e, ao
m e s m o tem po , se sentir segura, f az e n d o assim, ela
estabelece u um es p aç o lísico e sua s leis de
trânsito, po r exemplo , concluind o : "poss o m e
aproxima r 1 metro s q u e ele na o me fará
nada".
O s objetos fóbicos sã o representante s
paternos . A função patern a e a fábrica de o n d e
vêm os //í/oqu e sa o utilizados po r todo s os adulto s e
lembra m à criança d e q u e ne m tud o n o m u n d o
está a o seu dispo r e ne m tud o o q u e ela faz
satisfaz a todos . Porem, ne m sempr e te mo s a
sorte cie conta r co m um Papai Noel. co m um
palhaç o ou co m zoofobia s (a mais clássica e
o m e d o d e c a c h o r r o ) , epie s ã o m e d o s t a o
b e m s i t u a d o s , portant o tã o fáceis cie evitar. As
vezes, a fobia assu m e u m a form a ma i s
difusa , m a i s sofrida , p o r e s t a r espalhada ,
se m contorn o s definidos. Assim, é o m e d o cie
escur o e de água . O escur o e a água
estã o po r todo s os lados, sem pr e c o m p are c e m
em nossa vida e sã o um a fonte inesgotável cie
sustos.
I ma criança p e q u e n a q u e tinha intensa
tobia ã água . ao crescer, explico u q u e seu
maior temo r era o ralo da banheira , poi s tinha
certeza de qu e seria sugad a p o r el e .
Evidentemente , ess a explicaçã o é um a
elaboraçã o posterior, poi s ã époc a da fobia tant o
fazia se havia ralo ou n ã o na água , q u e era o
Fadas n o Div a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infanti s
da chuva . Evitando essas dua s possibilidades ,
n ã o há do
embor a nunc a tenh a ficado claro o qu e aconteceri a se
ele se molhasse . De qualque r maneira, essa
image m d o ralo d a banheir a vale pela
explicaç ã o q u e no s proporcion a para o s m ed o s
difusos: eles envolve m uma idéia d e sermo s
engolidos , d e no s diluirmos .
Esses medo s infantis normai s sã o d a
mesm a índol e da q uel e s sentid o s po r pessoa s
q u e n ã o consegue m sair cie casa. freqüentar lugares
co m muita gent e ou estar em algu m lugar o n d e
fiquem long e cia saída. Sao conseqüênci a s cie uma
dificuldade cie definir o n d e estã o seu s c o n t o r n o s ,
o n d e termin a o e u e começ a o oi tiro.
Q u a n d o tiramos a roup a cie um recém-
nascid o para banhá-lo . e freqüent e q u e ele
grite c o m o u m desesperado . Sua vivênci a
correspond e ã d e te r p e r d i d o a pele . o
ú ni c o referencia l q u e tinh a n o m u n d o . A roup a
era seu parâmetro , o únic o lugar q u e conheci a para
se encostar; licar sem ela, eqüival e a cair no
vácuo . As fobias de águ a geralm ent e estã o
ligadas a icleia de se- mesclar e se afogar nessa
coisa mole. maior e perigosa q u e e a água . Ta mbé
m é um a fantasia de perde r os contornos , de
deixa r de ser.
listamos falando cias fantasias de um bebê ,
cuja construçã o do eg o e algo muito precios o e
recente . Q u a n d o u m início d e separaçã o d a mã e
(o u d e q u e m cumpr a essa função) estabelec e os
primeiros contorno s de uma individuacão , a primeira
silhueta daquil o q u e chamaremo s de eu. tud o e ameaç
a para essas fronteiras tão inseguras, que . po r essa
razão, serã o defendida s co m bravura. I 'ma cias
formas de demarca r limites e se besuntanclo de
comida , de fezes ou cie sujeira da pracinha .
Trata-se d e pichar o s muro s daquil o qu e
co m p re e n de m o s ser noss o território. Nesses casos, ser
limpo, lavado, é ficar privad o dess a identidade ,
dess a pele qu e se pichou , se tatuou . qu e foi apropriad a
co m o qu e havia ao alcance . Cascào defend e essa
primeira delimitação cie si. no caso , a sujeira. Seu
tema aind a é estabelecer o s contorno s d o própri o
corpo .
Q u a n d o uma criança escolh e u m objeto
fóbico. o cachorro , po r exe mplo , ela está se
organizad o para circular nu m espaç o fora do lar. V.
precis o sair de casa para encontra r o cachorro , sabe r
atrás de quai s portõe s e muro s ele se esconde , ser
surpreendi d o po r ele num a virada d e esquina , enfim,
ess e é u m m u n d o chei o d e riscos . Assim, q u a n d o
s e eleg e u m objet o fóbico. el e funciona com o um
sistema de defesa e cie estruturação . O personage m d e
Cascão conse gu e transformar um a fobia mais
primitiva, muit o mais assustadora , em algo previsível
e passível de ser evitado . A água o ameaç a
basicament e cie dua s formas: através cio b a n h o e
q u e temer. Isso n ã o deix a de ser um a bo a dica
para o s p e q u e n o s assust adiços : é b e m m e l h o r
quando s ab e m o s o n d e mora o perigo .
Cascã o faz da sujeira uni a verdad eir a
marca registrada. Sua presenç a é anuncia d a e notada
pelo cheir o ruim. el e irrita a família e os amiguinho s
cora ess e fedor, ma s ele s nad a p o d e m fazer a
não ser reclamar. Toda s as tentativas de fazê-lo tomar
banho sã o vencida s pel o seu propósit o de jamais se
molhar. Km sua s histórias, a criança se sent e xingada das
tantas veze s q u e foi violentamen t e privad a de seu
revesti• mento , de seu cheiro , aquel e construíd o co m
trabalho e e m a n aç õ e s cio seu corpo .
A parte mais chata da e d uc aç ã o certamente está
relacionad a co m a limpeza, e muita s crianças fazem
ali sua s oposicòes . O adult o peg a a criança,
esfrega, e n xá g u a e. po r mais pat in h o s de borrach a
que se po n h a na banheira , é impossível n ã o se
ver que a criança se sent e pe q u e n a á merc ê da q ue l e
gigante de mão s tão fortes. (.) hábit o cie higien e é rotina
infalível: o b a n h o sem pr e virá. a cara se m p r e será
esfregada para sere m retirado s os restos de comida , a
mão da criança será posta em baix o cfágua para
tirar aquela pap a cie banan a q u e estava s e n d o amassad a
com tanto prazer. A dificuldade co m os hábito s de
higiene é a insurreiçã o contra ess e poder . De cert o
m o d o , Cascào encarn a o protest o contra essas regras.
A propixsito. convé m lembrar que , para muitas
crianças, as fezes sã o a forma de ocupa r o
ambiente co m seu cheiro, c o m o faz Cascão. Soment e
algumas se re b el a m e foge m à troc a de fraldas,
par a melhor aproveitar o contat o co m seu s dejetos; ma
s todas elas são igualmente mal-cheirosas q u a n d o estão
passeando co m suas fraldas sujas. A criança també m
perturba o ambient e com assuntos ligados às suas fezes: as
diarréias e gaze s do recém-nascid o sã o uma forma
de opinar sobr e o aliment o recebido , de informar
sobr e algum mal-estar; prisões cie ventre costuma m lembrar
que elas nã o são //;;; lubo de entra e sai. elas p od e m
reter, por razõe s objetivas ou subjetivas, Lima grand e
quantidade de fezes. Depois da retençã o prolongada , a
criança pode brindar sua família co m o acontecimen t o
de grandes derramações . q u e se mpr e sã o motivo de
comentários e confusões. Com o vemos , a sujeira da
criança é uma forma cie expressão , cie diálog o co m sua
família, e ela nã o entend e qu e seu s presentes , seu s
tesouros, sejam tratados c o m o lixo. Cascào nunc a entrega
sua sujeira e está sempr e a lembrar qu e o lixo pod e ser
nobre .
S e n d o sujinho , Cascào , o u q u a l q u e r criança,
c o n s e g u e n ã o ficar n o luga r d o q u e r i d i n h o
bebê cheiros o cia m a m ã e . Esse a s p e c t o repulsiv o
que a
Dia n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s
o
qualque r
* quantidad e e se m conseqüências .
Ela decodifica tu d o através d a fome, qu al qu e r
sujeira promov e p o d e ser um es c u d o eficaz
situaçã o ou imagem p o d e ser traduzid a em comida .
contra o apaixonamento da m àe . K ela q u e o limpa e
Sua visão
enfeita, é de sua escolha a roup a e p e n t e a d o
q u e o filho vai usar e na o convé m q u e ele
estragu e sua obra-prima . Já a sujeira, além de
ser da autoria da criança, é o inverso do q u e ela
faz. a súmul a do q u e ela desgosta . Nao há ideal q u
e resista a uma bo a cam ad a cie lama. Além disso,
o s p e q u e n o s gosta m d e ser amados , adoram ser
atirados para cima, abraçados e
aconchegados, mas detestam excessos
a f e ti v o s provenientes d a q u e l e s co m q u e m n ã o
c o n s t r ó e m alguma e m p a d a . Fies foge m d e
pe ss o a s q u e lhes apertam as bochecha s , os
pega m no col o a forca e exaltam verbalmente
(falando alto) como s a o bonitinhos. Isso e
um a prov a de q u e criança s sa o carentes, mas na
o sà o tão ingênuas . Afeto e bom . mas apresentado cie
forma tã o barulhent a ou intrusiva as constrange,
reduzindo-a s ã condiçã o de bibelô , objeto de
admiração passiva. Via de regra q u e m se relaciona
assim co m as crianças nã o esta dispost o a
escuta r o que elas têm a dizer ou a observá-la s
para decifrar o que dizem seu s gestos . Q u e m
exclama alto co m o são lindinhas geralment e n ã o
que r p a p o co m elas. Send o assim, se forem
fedorentinhas , ou até mei o antipáticas, evitarão a
p r o d u ç ã o dess e eleito . H po r essa razã o que
elas ficam mu da s q u a n d o a mã e lhe orden a q u e
respondam a uma pergunt a em públic o (seu
no me . idade), elas se nega m a sere m aprese ntad a s
co m o um
bichinho amestrad o .
D e cert a forma , h á u m a m e n s a g e m cie
q u e . quando crescer, Cascão terá cie abrir mã o dessa
sujeira. Fina criança fedorenta e tolerável, mas um adult
o não . Quem nos dá esta clica é Capitã o Feio. um
supervilá o que quer sujar o m u n d o todo . torna-l o
um lugar feio e poluído. Fie teria tud o para ser o
herói do Cascão, mas nã o é. Ao contrário , a
Turm a cia Mônica está sempre enfrentand o e
derrotand o ess e sujáo fedorento . Aliás, é b o a a
l e m b r a n ç a de Mauríci o de q u e a sujeirinha cias
crianças é bo b a ge m , mas a porcaria qu e os adultos
fazem, destruind o e poluind o seu ambiente . é caso de
polícia.
Crianças filósofas
••"• '•"' gama de perso nage n s de Maurício é
muit o
... • mais vasta que o pequeno grupo
q u e já
. . :. comentamos . Seu sucess o també m se
dev e a uma variada galeria de
persona gen s q u e
e v o c a m o u tr o tip o d e q u e s t õ e s , a s q u ai s
n a o s e restringem ao s percalço s do crescimento . 1
lá a turma d o Chic o Bento , arquétip o d o
n o s s o i n t e r i o r a n o esperto , um Pedr o Malasarte
mais jovem, diluíd o e adocicado . Temo s o Biclu.
um cachorr o q u e se p r o p õ e q u e s t õ e s e x i s t e n c i a i s .
Mas é s o b r e a t u r m a d o Penadinho . qu e têm
corage m de falar da morte , a qual també m é uma
personage m - Dona Morte - q u e é important e
se dete r um p o u c o mais.
As crianças, q u a n d o deixada s ã própri a
sorte, po d e m nã o chega r a n e n h u m a concl usã o
filosófica brilhante, mas. sem duvida, se formulam as
pergunta s certas . A inibica o d o m u n d o a d u l t o
s o b r e certo s assuntos as Ia/ recuar ou silenciar, e
existe um cert o c o n s e n s o cie q u e a mort e n ã o
seria a ss u n t o par a crianças. Por sorte. Maurício
n a o compartilh a dess e tabu. Criou uma u m
persona ge m d e m e s m o nome . cuja versã o cm
quadrin ho s c or re s po n d e á represen • tação clássica
qu e temo s dela: Don a Morte é vestida d e n e g r o ,
carreg a um a foic e e ve m a qualque r
mo me nto , sem piedade , no s buscar.
Embora existam formas religiosas cie
minimizar o impact o do limite da vicia, a mort e
apresent a se m p r e a questã o da tinitude, e as
origem , ma s já b e m brasileira), ele ment o s qu e fazem
da tinitud e algo m e n o s radical. De qualque r forma,
Don a Morte c o m p a r e c e ao s q u a d r i n h o s para fazer
pensa r sobr e isso q u e ocorre , a todo s os momentos,
em toda s as famílias e so b r e o q u e se comenta
o mínim o indispensável .
H gr a n d e o n ú m e r o de famílias em qu e não se
fala da mort e para as crianças. Mesm o diant e de mortes náo-
traumáticas . c o m o a cie algué m muit o velho ou há
long o t e m p o do e nt e , cujo fim era esperado, os
adulto s nad a falam para os p e q u e n o s sobr e
aquilo q u e já sabiam, mas cochicha m ostensivament e ao redor
deles . Os adultos , muitas vezes, projetam nas crianças sua
impossibilidad e cie aborda r o problema , deixando- as
solitárias para elabora r a tristeza de uma ausência
sentida. A be m da verdade , projetamo s na s crianças
uma condiçã o de ignorância q u e almejaríamos ter, que bo m
seria se fôssemos p o u p a d o s de sabe r da existência cie tud o
o q u e é ruim.
A morte retratada po r Maurício sempr e chega com su a
inclemênci a costumeir a e encontr a a resistência p o r
pa rt e da vítima , q u e foge . a e n g a n a e pede
prorrogação : sã o raros os q u e se entrega m de bom
grado . De um jeito ou de outro , cda acab a po r cumprir seu
objetivo, mas talvez esteja també m para nos lembrar cie q u e
[iodemo s viver s a b e n d o de sua existência e g a nh an d o
dela a cad a dia.
Muitas vezes, correm-s e grande s riscos provenien• te s
da ignorânci a da m ort e . J o v e n s seguidamente
s u c u m b e m em acide nte s frutos cia onipotênci a do
comigo nâo vai acontecer nada. A mort e está
sempre á espreita, nã o existe essa de coipo fechado;
levá-la em cont a é a melho r forma cie evitá-la. Por isso.
nàoé ma u negóci o tocar ness e assunt o co m as crianças, que
aliás pensa m nisso e em outro s assunto s cabeludos -
c o m o sex o - co m muitíssimo mais freqüência do que
qualque r adult o poss a imaginar.
O ut r o desse s assunto s polêmic o s é a loucura.
Nas histórias cio Cebolinha . existe um personage m que a
encarnaria , aliás seu n o m e é Pouco, para nã o deixar
dúvidas . Fie é a represe ntaçã o idealizada da loucura
e m consonânci a c o m noss a época , resultad o d e anos d
e trabalh o dos m o v i m e n t o s d e a b e r t u r a dos
manicômio s , visand o a valorizar esse s sofredores e
encontra r um a representaçã o mais digna para a psicose. Na
c o n c e p ç ã o an ti psi q ui át ric a , m u i t o p o p u l a r na orige
m dess e moviment o , o louc o habitaria um mundo co m
outra lógica, seria feliz a se u m o d o e estaria de b e m
co m sua excentricidad e (o q u e infelizmente não é b e m
assim). C o m o a o p ç ã o de Maurício é nã o elidir assuntos ,
talvez se u p e r s o n a g e m seja a representação
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mário Cors
o
p e n d o r para a fantasia, outra fonte par a o
fantástico p ro v é m de
210
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o C o r s
o
is linhas de forç a aminho abert o par a
muito maior q u e os
, examinamos aqu i
]
sem pr e s e reno vando , portanto , e m extinção , co
m a se n sa ç ã o d e q u e j á nasce mo s s e n d o
u m m o d e l o s u p e r a d o e se m encaix e n o
contratempo s só pape l qu e espera m d e nós . A sua
empr esta m uma modernidad e e a ilusão de construir-s e
tinta bucólica de s o z i n h o , se m referênci a s p a r e n t ai s . aliás
vicia simples, n e m d a genética ele aceita herança , po r ser
nad a é insolúvel vegetariano .
n e m irreversível
ou realment e As personagen s da Turma da Mônica.
duro . mesm o habitam o bain o do Limoeiro, um lugar antigo,
situaçê)es c o m o ond e tud o se ajeita e pod e ser tratado co m leveza.
o desemprego , Com certeza é um espaç o assim qu e lutamos
o u a separaçã o para construir para nossas crianças.
do s pais, sã o Infelizmente, um dia todo s crescem e
apresentada s co viram Horácio. Restrita a esse universo
m leveza, graças â aconchegante, a ticcao de Maurício cumpr e sua
comicidad e e função, mas nã o cobr e a gama de neces•
ao afeto das sidade s das crianças. Estas, finda a
personagen s infância, busca m consumi r histórias qu e
entr e si. retratem sua vida de lutas no m u n d o
externo, muito além do bairro do Limoeiro.
O únic o
persona ge m Assim, sobra e s pa ç o para programa s e
órfão é 1 publica- cê>es q u e ofereça m histerias sobr e o
lorácio - figura s problema s q u e as crianças têm na escola
principal de e na vida fora de casa e a televisão tem s
tiras co m e incumbid o co m muit o boa qualidad e dessa
algun s outro s temática. Com o exemplo , citamos o canal infantil
dinossauros . F Xickelodeo n CIA" a c a b o de origem norte-
um a situaçã o americana) , q u e veicul a trê s programa s
irreversível , qu e c o n s i d e r a m o s inte ressante s : í)oii(>.
q u e faz d e l e criad o po r Jeff J e n k e n s ; Iley. Aruold!. de
. para • Craig Bartlett: e As To/d by (iiiiger, Csup o
doxalmente , o Gabor . Esses sã o algun s entr e outros , a p en a s
mais m o d e r n o d e para citar q u e existe muit o e s pa ç o entr e o
todo s o s públic o infantil para consumi r histórias q u e
persona gen s d o en f oq u e m d e frente algun s d e seu s problema
Maurício . s cotidianos .
Florácio é u m N o ram o da s revistas, a publicaçã o
tiranossaur o criada pel a Disney italiana, chamad a
pequeno . W.I.T.C.H., abr e es p a ç o par a o s conflitos da s
vegetarian o e m e ni n a s p ú b e r e s . N a verdade , ess a série
pacifico (ou apost a n o s doi s c a m in h o s , elas p o s s u e m
seja. a pura um a faceta mágic a e outr a c o m p o r t a n d o
contradição) , o m u n d o da s meni na s co m u n s , c o m seu s
nascid o de um proble ma s lie m concretos .
ov o a b a n d o n a d
o ao sol. F,
um sujeito tor a
2
de época, de
1
lugar , a
1
própri a imag e
m d o d es a m pa r
o e da
solidão, ide e
o q u e mais se
parec e c o m o s
seres h u m a n o s
d e hoje :
somo s tã o se
m referências
c o m o Horácio .
perdido s nu m
lugar q u e está
Fada s n o Div a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infa nti s
.S
Pinocchio
A formaçã o moral tias criança s - Importânci a da experiênci a - Ncnro.sc
inlaniil - O p e s o da s expectativa s parentai s - Construç ã o cia identida d e
parcnta l -
Conto s de fadas m o de r n o - Internalixacà o tias regra s - Significado tias
mentiras - Defesa contr a a alienaçã o - Metáforas do
renasciment o
A história de Pinocchio
e a n z a r u m a
jS^i sinops e dess a novel a é
sem pr e um desafio, justament e po r ter
sid o escrita c o m o u m folhetim, se m
grande s pretensõe s a uma futura unidad e
textual. Personagen s
morrem e reaparecem , nã o há um fio de continuidad e ,
eo autor termina a história várias vezes, po r isso.
este trabalho é aproximativ o . Só o fazemo s para
q u e o leitor relembre minimament e a trama e possa
raciocinar conosco. Além disso, um relato brev e
priva a história da magia do text o original, q u e
é realment e muit o encantador. Xo estilo em q u e
toi escrito, no h u m o r dos d i á l o g o s , est á a
r i q u e z a q u e c a t i v o u s e u s contemporâneos.
Tudo começ a co m um pedaç o ele macieira falante,
nào ficamos sabe nd o po r qu e essa macieira era mágica,
só que foi ciada ao artesã o Gepett o po r um
amigo . Com o material mágico, Gepett o esculpiu um
bonec o , que antes mesm o de ficar pront o já se
comportav a mal. Enquanto aind a era um p e d a ç o
ele pau . consegui u induzir uma briga entr e Gepett o
e seu amigo, fazendo o b s e r v a ç õ e s jocosa s
sobr e um ou outr o q u e desembocaram num
a pancadaria.
O s on h o de Gepett o era fazer um a
marionet e perfeita, com muitos dote s artísticos, qu e viesse
a torná- lo famoso e be m de vida. Infelizmente, o
c o m e ç o n ã o poderia ser mais desastroso , o b o n e c o
fugiu, provoco u mais d e s e n t e n d i m e n t o s na rua,
e G e p e t t o a c a b o u injustamente pres o po r sua
causa .
A dedicaçã o elo pai nã o encontro u contrapartid
a no filho. Gepett o várias veze s abriu mã o de sua s coisas
para dar conforto e futuro a Pinocchio , mas
tud o o que ele recebe u foi a p en a s ingratidão.
Pinocchi o n ã o conseguia fazer nad a q u e u m
bo m menin o faria, começando po r sua
incapacidad e de ir ã escola: seu fascínio era pel o
m u n d o e log o saiu em busc a de aventuras.
Junt o co m as primeiras manifestações cie
mau s modos do boneco , surgiu o Grilo falante, seu
primeiro conselheiro, o qua l s e apresento u n o moment o
e m q u e Pinocchio se encontrav a sozinh o em casa.
ap ó s ter causado a prisão cie Gepetto . Tend o a
função de ser uma e s p é c i e d e c o n s c i ê n c i a , o
Gril o o a d ve rt i a insistentement e d a s e n r a s c a d a s
e m qu e estav a s e metendo, mas foi mal
recebid o e termino u martelado contra a parede .
A primeira aventur a foi o contat o co m sua
ver• dadeira turma : Pinocchi o vende u a
cartilh a q u e Gepetto havia lhe d a d o para ir à
escola e co m p r o u uma entrad a par a o teatro de
marionetes . O d o n o do
215
A versã o em d e s e n h o a ni m a d o feita p o r
Walt Disney" troux e um a m u d an ç a importante : n ã o
fez um filme sobr e Pinocchio , muit o tiel á
obra de Collocli; nã o foi um sucess o de
bilheteria, mas é um b o m filme. Talvez nã o
do desej o de Gepett o de ter um filho, que , somada ao b o m tenh a e m p o l g a d o o público po r ser excessivament e
caráte r dess e h o m e m , sensibiliza a Fada Azul, fiel ao original, fazend o poucas concess õe s ao s novo
dand o-lh e ess e dom . s tem pos .
Dessa forma, Pinocchio de Disney lembra a lenda
cie Pigmaliao. Nesta, o rei de Chipre esculpiu a
estátua de uma mulher, enamoranclo-se de sua obra.
Com seu forte anseio por conviver com a amada, comove u a Repetir o erro é humano
deusa Afrodite. qu e de u á estátua o d o m cia vida. Para Gepetto,
na versão Disney, o desejo peremptóri o é por ver seu g r a l ostuma-s eo stuma-s dizee r dize q ureq u
"errae r "erra ér 1é h u m a n o , insistir
bonec o transformado nu m filho e que m se comove é
no e
uma fada. A diferença entre a história da mulher estátua e I Wa* ^ n u i Ta' cfrase:
" °alterar e : o s s i c ; i n ; l alistas poderiam
P
cio m e n i n o b o n e c o resid e em q u e , no caso de $&>~s*$ "é própri o do h u m a n o
Pinocchio. o do m mágico requer uma prova da parte de que m insistir no s mes mo s erros". Na verdad e
o recebeu, de merecer esse lugar no coração de seu isso pode
criador e sé) entã o a dádiva seria permanente . se r um a cias definiçõe s d a n e u r o s e , u m
caminho equivo cad o q u e nã o conse gui mo s recusar.
No resto, o d e s e n h o a ni m a d o é bastant e fiel a
F essa é a atitude sistemática de Pinocchio , já qu e
Collocli no espírito, pois, s en d o um a versã o resumida,
ele nã o erra unia, ma s sim várias vezes , e s e mpr e
muitas liberdade s foram tomadas . O clímax de Disney
do m es m o jeito, c o m um a insistênci a irritante .
o c o r r e a p ó s P i n o c c h i o te r m o s t r a d o c o r a g e m
e d e s p r e n d i m e n t o , salvand o o pai do ventr e de O b o n e c o é, nesse comportament o , mais h u m a n o
uma baleia gigante, e a fada entã o o transforma em menino. impossível, então , desde s e m p r e u m m e n i n o d e
Aqui n ã o há a re de n ç ã o via trabalho , ma s po r v e r d a d e . Pr o v av el m e nt e , Pinocchi o seria m e s m o
meio d o amo r a o pai. T a m b é m nã o h á t e m p o para u m b o n e c o , cas o s e compor• tass e c o m o u m a
crescer, é e n q u a n t o m e n i n o q u e ele resolv e se u marionet e manipulável . Mas seu caráter
drama, ao contrári o da história de Collocli, em q u e voluntarios o e rebelde , alternand o repetidos erro
a jornada é cie m e ni n o a h o m e m . s co m ataque s de remo rs o e culpa , faz del e
Fm 2003, Roberto Benigni. c o m o ator e diretor, uma
216
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o
Pensei em construir para mini um belo bonec o Assim qu e seus pé s ficaram prontos , o
cie macieira, porém terá qu e ser um bonec o b o n e c o saiu e m desabalad a corrida pela s ruas,
maravilhoso, que saiba dançar, esgrimir e ciar saltos
c o m G e pet t o atrás sem conseguir alcançá-lo.
mortais. Quer o rociar o mund o com tal boneco ,
Q u a n d o finalmente , c o m ajuda d e u m gu ar d a ,
para ganhar para mim o pão e o vinho.
foi a p a n h a d o , o p o v o começo u a murmurar qu e o
velh o maltrataria o b oneco , d e m o d o qu e que m
O velh o artesã o projet a n o b o n e c o t o d a
acaba pres o é G e pe tt o .
s a s qualidades cjue um filho o be d ie nt e deveri a
Pinocchio ficou só em casa, passand o fome e, ainda
ter: seria maravilhoso e principalment e teri a
por cima, teve seus pés queimado s no braseiro, q uand o
virtude s q u e reverteriam par a o praze r e
tentava se esquentar. Gepetto voltou e deu-lh e de comer,
benefício de se u criador. Depois d o bonec o
entregando-lh e sua própri a refeição . Poré m , s ó
nascido, Gepett o lh e d e di ca r á sacrifícios e
lhe reconstruiu os pés mediante a promess a cie
experimentar á o p e s o da responsabilidad e que trouxe
q u e n ã o voltaria a fugir. Inicialmente o pa i
par a sua vida. Na história de Collodi. o sonho
d u v i d o u de se u propósito de ser um bo m menino ,
do filho maravilhos o e útil n ã o cheg a n e m at é o
te m e n d o q u e estivesse
final de su a fabricação. O toc o de madeir a falante já
Fadas n o Div a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infa nti s
suficiente
0 nariz e a mentira
íp'- ' Liando e v o c a m o s Pinocc hio , o se u
nariz iií"' expansível e retrátil é
indissociável de sua IV*, * figura. A partir do
conheciment o popula r de psicanálise, espera-se q u e
façamos a inevitável
referência a esse c o m o um a metáfora grosseira do pênis.
cujas manifestações exibicionistas deve m ser cerceada s
pela sociedade, mediant e a ameaç a de castração .
V. certamente uma leitura possível, mas simples
demais . Não podemo s esquece r qu e o nariz cresce
q u a n d o o boneco mente. No livro, a fada explica ao
bonec o qu e existem dois tipos de mentira: as de perna
s curtas e as de nariz comprido , as del e seriam do
segund o tipo. As pernas curtas nunc a alcançariam seu
objetivo, e o nariz comprido denunciaria a farsa.
Mais do q u e no s dedicar mo s a ess e pretens o falo
facial, é necessári o en te n d e r o caráte r dessa s mentiras .
Para o poeta Mário Quintana , "a mentira é um a verdad e
que esquece u de acontecer" , ou seja, ela é
inverídica quanto a o fato, mas verdadeir a q ua n t o a
o desej o q u e venha a expressar. Ao mentir,
ocultamo s algum a falha ou ostentamos algu m falso
valor, é um ato de proteção .
0 autor da mentir a preserva , tentand o
e n g a n a r o interlocutor, a integridad e de um ideal,
ocultand o os pontos discor dant e s entr e a situaçã
o real e a q u e acredita qu e deveria ter ocorrido
. Nesse sentido , po r estranho qu e possa parecer,
mentir é um at o de amo r a o interlocutor, a q u e m
d e algum a forma s e q u e r impressionar.
Há aind a outr a leitura possível da mentira: a
cie marcar a separaçã o entr e o pensament o do adult o e
a subjetividad e d a criança . O s pequeno s
s u p õ e m inúmeros p o d e r e s no s seu s adulto s e
certament e a telepatia está entr e eles, nã o raro
eles acredita m q u e seus pensa mento s possa m ser
escutados. Por exemplo , para um a crianç a qu e
vívenci e u m s e n t i m e n t o d e continuidade entr e ela
e sua mãe , ter a experiênci a de lhe di z e r um a
m e n t i r a e n ã o s e r d e s c o b e r t a é fundamental.
A p o s s i b il i d a d e d e c o nt a r p e q u e n a s lorotas e
ludibriar o adult o é um at o de indepen dênci a , de
percebe r a limitação dess e em controlá-lo . A fada
221
222
Di a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Cors o
8. Pinocchio quer dizer pinhão, semente de pinheiro, O efeito do beb ê acaba revelando o que
ou pinha. Sementes geralmente estão ligadas ã idéia cada um tem de melhor e faz deles um
da vida em formação e ainda ã ressurreição, pois a grupo. Até aquele personagem qu e faz o papel cie
casca rompe e a semente morre para qu e a um traidor e queria o fim do beb ê
planta possa nascer. Especialment e a pinha , e (representando o éidio ao recém- nascido)
o con e formado de eseamas. na Antigüidade acaba mudand o de lado.
clássica eram símbolos da fertilidade e da 13- GRIMM, Jaco b & Wilhelm. 'iodos ios Citentus de
vida. Dessa forma. Pinocchio fica ligado a uma los IlermauosGrimm. Maclricl: Cocclicão Editorial
idéia de potencial, de poder tornar-se grande, Ruclolf Steiner, Manclala Ecliciones >S: Editorial
mas ainda terá de brotar, de mostrar-se a qu e Antroposófica.
veio. 2000.
9. A seqüência do texto permite especular um pouc o l i . O leitor terá observado a coincidência cio inicio dessa
alem sobre a possível origem do nom e histéma com algumas passagens tios contos
Pinocchio. Imediatamente após nomeá-lo. Gepetto lhe que analisamos no Capítulo XI. os quais
esculpe- os olhos e estes parecem interrogá-lo. o qu e incluíam a custódia das chaves de um quarto
o leva a afirmar: "Olhos de Macieira, que lauto proibido c a marca indelével cia transgressão.
me olhais? Porem, não há nenhum motivo para alinhar esta
(Occhiacci di legno. perché mi guetrdate?) histéma com aquelas, pois o eixo é outro. E mais uma
Afinal, temos oechio (olho) e leí>no (macieira ou ocasião para que possamos recordar que os
no caso. pinho). São olhos fixos, com o uma contos tradicionais são como um caleidoscópio,
pergunta que insiste. Acreditamos qu e é como se esse em qu e os mesmo s elemento s se combinam,
olhar similar colocasse a questão: "o qu e queres de lormando histé)rias muito diversas.
mim?", mas invertida. Afinal o qu e quer 1T. Em uma das mais antigas histé>rias sobre
Gepeto fazendo esse boneco, nos parece ser a metamor• fose. O Asuo de Ouro. de Apuleio.
questão. também temos o personagem principal tend o uma
10. WATT, Ian. .1 Ascensão do Romance. São vida animal sob a forma cie um asno. As
Paulo: Companhia cias Letras, 1990. interpretações clássicas cias aventuras cie Lúcio
11. Esta fantasia de ser devorado retorna no final menciona m o castigo por ter metido-se com a
cio livro. Antes de ter sido engolido pelo tubarão magia. Acreditamos que já é uma leitura cristã, de
gigante. Pinocchio foi pescado, e o pescador qualque r forma e possível qu e tenha inspirado
queria tritá-lo e comê-lo de qualquer maneira. Collodi.
Dessa vez. é um animal amigo, um cachorro 16. Yladimir Propp, analisando as representações sobre
qu e ele salvara de se afogar, qu e vem em sua a floresta encantad a do s conto s de fadas e
ajuda. seus monstros, assim fala sobr e os ritos de passagem.-
12. A ficção moderna, tanto a infantil com o a "A morte e a ressurreição eram provocadas por
adulta, tem insistido na idéia de qu e um pai é um ações que representavam a deglutição das
eleito a posteríorí da vinda de um filho. \ ã o se crianças por um animal monstruoso qu e a
nasceria pai. tornar-se-ia pai por forca dos encantos devorava. Era com o se o animal a engolisse e ela,
cio bebê . ou porque a presença cie uma criança apó s uma permanência menos ou mais longa no
e os cuidados que ela inspira sã o capaze s estômago deste, era cuspida de volta ou vomitada
cie acorda r um pai adormecido qu e tod o o - ou seja, retornava. Para a realização desse
home m carregaria dentro cie si. Na versão rito construíam-se às vezes casas ou cubanas
infantil, podemo s destacar o filme de animação A Era especiais, com a forma de um animal e com uma
do Gelo (2002), em que um grupo cie animais, todos porta representand o a bocarra". In: PROPP, Vladimir.
machos, por um acaso cie destino acaba tend o cie As Raízes Históricas do Couto Mararilhoso. São
se incumbir de um beb ê humano . Paulo: Martins Pontes, 1997 . p. S-t.
>
Capítulo XVI
CRESCER OU NÃO
CRESCER
Peter Pan e
Wendy
Relatividade das pautas de crescimento - Desejo de crescer - Infância como paraíso -
A mãe ideal tios filhos - O filho ideal das nines - O papel da mãe na construção da paternidade
- Aspectos reais e simbólicos da função materna - Nostalgia dos cuidados maternos -
Natureza dos diversos tipos de fantasia - Crianças despóticas -- O olhar dos outros como espelho
e do q u e façam.
J.M. Barrie nasce u em 1860 e foi um
a criança franzina, co m parca s possibilidade s d
o nc eb i d o pel o escocê s Jame
e convive r co m meninos da sua idade , po r isso,
s Matthew Barrie, Peter Pan.
encontro u na literatura e na fantasia um lugar par a
o m e ni n o q u e nã o queria
viver e se expressar. Cres•
cres• cer, consagro u-s e
atravé s cio livro Peter Pan e
VCeiifiy.' escri• to em 1911. O
eixo cia narrativa
e
Çj^l"^"^'jSl «-lelineado pel o vínculo entr
e
*S^S!tJÊÈ^sS9 esse s doi s personagens,
e a história em si é um a
redençã o
para as boa s mães . Na contra mã o de todo s os
relatos de bruxas q u e se incu mbe m do lad o
amea çado r cio papel matern o nas histórias infantis da
tradição, esta é dedicada à s boa s mães . q u e conta
m histórias, zelam pelo son o tranqüil o do s filhos
e nunc a se ma goa m com eles, i n d e p e n d e n t e m e n t
cido , segui u a cr e d i t a n d o n a lieca o c o m o
consolo , decidin d o ser escritor. Após trabalha r c o m o
jornalista, e s t r e o u co m pequeno s escrito s sobr
e l u g a r e s imaginários e teve grand e sucesso . Na
vida familiar, porém , sua trajetória n ã o teve a
mesm a linearidade . Co m a idad e de 6 ano s apenas ,
enfrentou a perd a de seu irmã o mais velho , o q u e
acarreto u para sua mã e u m g ra n d e períod o d e
depressã o . N a idad e adulta, nã o teve a sorte cie ter
filhos, po r isso, afeiçoou-se a cinc o irmão s - George .
Michael, Jack, Nico e Peter - q u e conhece u n u m
pa r q u e q u e costumav a freqüentar, travou amizad e c o m
as crianças e passo u a conviver co m elas. Km 1909,
seu s querido s menino s tornaram - se órfãos, p er d e n d o no
curt o praz o cie dois ano s o pai e a mãe , doente s de
câncer. O escritor, q u e já estava separado , assumi u a
tutela informal do s menino s da família Davies,
formand o po r essa via indireta a família q u e a vida
inicialmente havia negado-lhe . Infelizmente, j á e m 1915
a G u e r r a l h e a r r e b a t o u uni d e s e u s
Fada s n o Div a - P s i c a n á l i s e n a s História s Infa nt i s
sid o represe ntada s p e l o m e s m o ator, dando a
As dificuldades em crescer
229
Fadas n o Di v a - P s i c a n á l i s e n a s His t ór i a s Infa nt i s
Elogio à mãe
r&Éf* vot o de etern a infância de Peter tem no
livro
,__.}_ um a explicação , digamo s psicológica,
qu e
*„",, "• faz. parece r a possibilidad e de
congela r o t e m p o alg o na o ta o
opciona l assim. Peter
Pan narra dua s versõe s d e sua história, q u e
n ã o sã o n e c e s s a r i a m e n t e co nt ra d it óri a s , mai s
p a r e c e m se r comple m ent are s . Nu m primeir o
m o m e nt o , ele cont a q u e . s e n d o aind a u m
b e b ê . escuto u d e seu s pais o s projetos d o q u
e eles esperava m q u e ele s e tornass e q u a n d o
crescesse . Por negar-s e a seguir ess e plano ,
teria fugido para um parque , o n d e ficou
vivend o co m as fadas, qu e finalmente o
levaram para a Terra do Nunca . Na segund a
versão , ele explica po r q u e trata co m tanta
obsessão , mágo a e ceticism o o tem a da mãe
. a p o n t o de proibir os Menino s Perdido s de
falar sobr e o assunto : de fato ele teria partido ,
conform e o relato anterior, ma s decidi u voltar,
sa u do s o daquil o q u e a b a n d o n a r a . O problem a
é q u e ness a ocasiã o n ã o encontro u sua
janela aberta, e s p e r a n d o po r ele. Pela janela
fechada, viu um nov o b e b ê em sua cama .
demonstrand o qu e a mã e o havi a
esquecid o e substituíd o . A partir daí,
ressentido , ele decid e n ã o cresce r mais e volta
para sua terra imaginária.
A mãe . na visão idealizada de Barrie, nã o
deveria conserva r má goa s d e seu s filhos, t u d
o suportari a e principalment e seria algué m qu
e nunc a m udass e d e posição : sua janela teria
de estar sempr e aberta para q u e o s filho s
v o l t a s s e m q u a n d o q u i s e s s e m , n ã o import and
o o qu a nt o eles a tivessem feito sofrer co m sua
ausênci a e a b a n d o n o . Fssa é a mã e q u e Peter
Pan queri a e nã o teve .
K interessant e notar essa aborda ge m
psicológica d o persona ge m , considera nd o q u e s
e travava d e u m livro escrito q u a n d o o sécul o
XX e a psicanálise era m aind a jovens . Ksse
p e n d o r para a infância se m fim já nasc e
atribuíd o a drama s d o núcle o familiar, c o m o s
e nã o houvess e muitas dúvida s para Barrie d e q u e
somo s resultad o de c o m o construímo s a
narrativa da história de nossa filiação.
As crianças Darling têm certeza de q u e a
janela dela s nunc a estará fechada ,
independentement e d e eme tenha m sid o
egoístas a p o n t o de fugir e fazer os pais
passare m po r tã o mau s bocados , po r isso,
voltam e sabe m cjue n ã o ficarão sós. Wend y
vai â 'ferra do Nunc a par a repara r o vazi o d e mã
e q u e havia naquel e m u n d o , graças a isso, ao s
pouc os , os Menino s Perdido s vã o se en c ontrad o e
termina m po r se soma r à família Darling. A
menin a está tã o tranqüila da acolhid a de seu s
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o Co r s
o
u m a i n va so r a e q u e P et e r havi a ordenado q u e
a matassem . Eles e nt ã o atiram flechas contra a
menin a q u e chegav a v oa n d o . Infelizmente, acertam o
menina a realizaçã o na fantasia dess a regia brincadeir a
alvo, mas , po r sorte, ela milagrosament e é salva po r
de boneca s q u e Wend y fez na Terra do Nunca .
Talvez melhor d o q u e n e n h u m h o m e m , este menin o u m objet o q u e g a n h o u d e Peter.
sab e d o que as mulhere s gostariam: cie se
perpetua r no pape l da mã e da criança p e q u e n a ,
sentir-se objeto d aq u el e amor q u e se u beb ê
lh e s d e d i c a , d e se r e t e r n a s possuidoras dess e
rosad o e valioso bem . O devanei o da menin a
sobr e a mulhe r q u e ela será inclui est e objeto
mágico : o b e b ê . Peter brinca co m Wend y no
duplo pape l d e papa i e filhinho. s e n d o a o
m e s m o tempo aquel e q u e a faz ser mà c e o
filho qu e n à o a abandonar á nunca . Nesse
sentido , el e é o h o m e m perfeito, co m q u e m tod
a a menin a sonh ou , logo . u m menino assim p o d e
representa r o mais perfeito objet o de desejo,
destinatári o do valioso beijo, dess a caixinha que guard a
o maio r segred o feminino.
A Sra. Da iii n g c o n v i d o u Pete r Pa n par a
se r adotado junto ao s Menino s Perdidos , ma s ele
recuso u mediante o fato de q u e ela lhe garantiu
q u e o faria estudar e mais tard e trabalhar: "Não quer o
ser h o m e m , seria horrível se um dia eu acordass e
e descobriss e que tinha barba" . Q u a n d o garant e
q u e n ã o ficará lá para crescer, ele se torn a essa
criança etern a e leva consigo o beijo secret o
c o m o troféu . O p r ê m i o é recebido ã con diçã o
d e q u e ele continu e s e n d o um a fantasia q u e
habita o s o n h o da s mulheres .
Wendy enamorada
Ç, J-m,. éte r Pan precipita um sentiment o
amor os o
;!?; ' _: bastant e erotizad o n à o so ment e cm
Wendy .
';•!• ,*•'• ma s t a m b é m na s fadas e sereias (qu e
vivem a s turra s c o m a atua l es c ol hi d a
p o r se u
coração) , poré m se comport a cont o um
b o b à o , totalmente inocent e e desconcertad o
diant e d e s s e element o q u e el e p a r e c e i gn orar
, e m b o r a s ai b a administrar a seu favor. Acima
de tudo . ele se deixa amar e, em troca, oferec e
sua ingen uidad e e a magia que provê m de sua
infância imortal.
Exist e u m a c e n a q u e . s e a lermo s
c o m o s e interpreta um s o n h o , mostra co m clareza
a di mensã o amorosa d o casa l p ri nc ip a l . Q u a n d
o e s t ã o t o d o s chegando à Terra do Nunca , Sininho,
morta de ciúmes , põe e m prática u m pl a n o par a
livrar-se d e Wendy . Enganando os Menino s
Perdidos , ela os faz acreditar que We n d y er a
233
A flecha eme a derrubo u acerto u um pingent
e de b o l o t a d e c a r v a l h o q u e ela trazi a
p e n d u r a d o n o pescoço , o qua l havia sid o trocad
o po r u m deda l co m Peter . A tr o c a p o d e
p a r e c e r e s t r a n h a , m a s t u d o com eço u co m u
m mal-entendido : deveria ter havid o uma troca
de beijos, poré m Peter n ã o sabia o qu e era um
beijo. Por isso. q u a n d o ela lhe ofereceu um
beijo, nu m gest o d e grand e ousadi a para uma
menina , ele reagiu fechand o os olho s e
e s t e n d e n d o a mã o aberta, na expectativ a de qu e
ali fosse dep ositad o o qu e que r q u e foss e qu
e el a estav a denominand o beijo.
Desconcertad a pel a ingenuidad e d o
menino , ela coloco u ali seu p e q u e n o dedal .
Em retribuição, Peter lhe de u u m d e seu s
botões , uma bolota d e carvalho, c h a m a n d o - o
ta m b é m de beijo. De certa forma, essa bolota
de carvalh o era entã o um beijo ganhado.
Apesar de nà o ter sido ferida pela flechada, já
qu e acabo u send o salva pela bolota de
carvalho, ela caiu co m o morta. Na tradição
ocidental. Cupid o (deu s do amo r para os
romanos ) acabou send o representad o por crianças
flechando os candidatos ao iclílio. Além disso.
em inglês existe a expressã o "cair de amores"
(tofali in lore). qu e significa apaixonar-se (em
português temos o mesm o sentido).
Entre Peter Pan e Wend y encontra-s e tud o
aquil o q u e u m amo r herd a d o víncul o primordial
co m a mã e e o us o erótic o q u e é possível
lazer disso. Embora brinqu e m alternadamen t e de
ma e e filho e de papai e ma mãe , n à o h á
dúvid a d e q u e foram flechados po r u m amo r
d e outr o tipo. Essa multiplicidade d e papéi s
reservad a a Peter Pan é decorrent e da
diversidad e de fantasias a q u e um a menin a
recorre para imaginar a mulhe r q u e ela será: uma
mulhe r q u e que r u m h o m e m a se u l a d o q u e
a proteja , ma s q u e t a m b é m seja d e p e n d e n t
e dela . q u e lhe d ê filhos, o s quai s deve m
realizar seu s son hos , ma s de tal forma q u e
nunc a a a b a n d o n e m , alé m de muita s
outra s f u n ç õ e s contraditórias entr e si. Peter Pan
consegu e se desdobra r e m quas e toda s elas.
entã o n à o admira q u e termin e impacientando-s e
co m a s mulheres .
232
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mari o Co r s
o
e n ã o te m c o n e x ã o n e n h u m a co m o universo
infantil, enquant o a mã e está totalmente voltada
a Peter Pan num a devoç ão : "era um a don a de
casa leal demai s para permitir qualque r reclamaçã o
contr a o pai. 'O seu pai é q u e sabe' , vivia repetindo ,
qualque r que fosse sua opiniã o pessoal" .
A Sra. Darling deixa seu s filhos po r un s m o m e nt o s
para co m p a re c e r a um a festa co m se u marido ,
graça s à essa ausênci a e ao lato de q u e o sr.
Darling havia amarrado Naná. impedindo- a d e protege r
a s crias c o m o um animal faria, os três terã o sua
aventura , p o d e r ã o viajar para a ilha de sua s fantasias e
voltar, decidido s a crescer. A maternidad e h u m a n a
é feita de ausências , de brecha s - també m
favorecidas po r ess e envolvi• mento co m u m home
m - , e m q u e a criança construirá a própria versã o
de sua história, q u a n d o sua fantasia moldará a
persona ge m do q u e ela que r ser.
A mã e de janela aberta , et er n a m e nt e
disposta a ver no filho aqu el e objet o de amo r qu e
seu b e b ê foi outrora, existe para sempr e na
fantasia de todo s os adultos. Kla representar á
um afet o irrestrito qu e o adulto buscar á
in uti l m en t e n o amor . ma s . cas o o encontrar,
fugirá apavor ad o e nã o se m motivo . l' m amor
assim trará junt o um a face terrífica. atinai ele
estará outra vez sentindo-s e c o m o um objeto, indefes o
como u m b e b ê . Essa o p e r a ç ã o , porem , é
s e m p r e incompleta, poi s dentr o d e tod o adult o mor a u
m Peter Pan, o l h a n d o d e fora d a janel a ag or
a fe c ha d a e denunciando o a b a n d o n o a q u e foi
submetido .
Peter Pan també m representa a porçã o da nostalgia
dos cuidados maternos, com o se ali estivesse
alguma forma de amo r incondicional, qu e fica aderida á
memória do adulto. Talvez aí é qu e entra a personage m
de Naná. essa babá qu e dedica às crianças uma
fidelidade canina e uma paciência de que m nã o tem
outro interesse no mundo. Assim c o m o as fadas
representava m a mã e internalizada das crianças
pequenas . Naná é a mã e em seu aspecto de
dedicaçã o real e prática. A ocupaçã o obsessiva e
persistente co m os pequ eno s é um fato e uma
necessidade, por isso. toda a mã e é també m uma
Naná. Por outro lado, toda a mã e é també m uma traidora,
que vai ao baile com o marido em vez de
cuidar do s filhos. Para sorte deles, se nã o tosse
assim, seriam os filhos que jamais iriam a lugar algum.
Existe um a babá mágica e inesquecível: a do filme
Maiy Poppins, q u e é o invers o de Naná. poi s
ela se incumbe do aspect o emociona l e mais
simbólico da maternidade. Poppin s é afetiva,
educadora , oferecend o fantasias e limites, sempr e na
medida certa. Ela chega numa famíli a par a
ocupar-s e d e d u a s c r i a n ç a s desorientadas pela
ausência subjetiva do s pais. O pai é ocupadíssimo
da s crianças, ela encarnav a uma função. Com os
pais de verdad e acontec e o mesmo : executa m o seu
trabalho de criar e educa r os filhos e sua
para o m u n d o externo, já qu e é uma militante
função se esvazia.
feminista dedicada à campanh a pelo voto das
mulheres.
A suposiçã o d e q u e um a mã e q u e
pens a sobr e m u n d o e que r mais pode r para
ela e para seu sex o n ã o p o d e r i a c ui d a r
b e m d a s sua s criança s é u m paradigm a d
o p e n s a m e n t o conservad o r d a virada d o sécul
o XIX para o XX, isso seria o sulicient e
para c o l o c a r e s s a o b r a n a lista n e g r a
cio m o v i m e n t o feminista. Porém , é de Mary
Poppin s o centr o da s atenções , a outra (a
mãe ) soment e existe para criar um co ntrapo nto
, um fundo de ausência qu e ressalta a presenç a
dess a figura matern a mágica qu e toda s as
crianças quere m ter e as mulhere s quere m
ser. Além disso. Mary Poppin s é irreverente e livre,
ne m a súplica da s crianças a faz ficar q u a n d o
ela decid e partir. Tem amigo s h o m e n s e and a
pela cidad e sem inibições. nã o é u m a m u l h e r
su b m is s a e caseir a q u e viria par a
c o m p e n s a r a característic a m u n d a n a d a
m ã e . Seu co nt ra p o n t o é co m um a mã e
desconectad a d o s filhos, e n q u a n t o ela sim teria
a chav e do m u n d o intantil e o p o d e r de
reconstituir o fio da família. De qualque r
torma . a s dua s sã o mulhere s qu e possue m
interesses além do lar. ou seja. as crianças qu e
se acostume m a ser criadas po r mulhere s co m
horizonte s mais largos. A história de Mary
Poppin s trata meno s cia falta
d e amo r pelo s filho s e mai s d a
n e c e s s i d a d e cie c o m p r e e n d e r a especificida d
e d o p e n s a m e n t o da s crianças: para criá-las
e iniciá-las no noss o m u nd o , temo s d e i r
buscá-las n o m u n d o delas. A babá qu e
compartilh a o univers o mágic o intantil
lembra Peter Pan . na medid a em qu e
brinc a co m s e ri e d a d e e materializa as
fantasias. Por outr o lado. o trio formad o po r
Poppin s e os dois irmãos lazem inúmero s passeios,
est a be le ce n d o c o n e x õ e s entr e o m u n d o
mágic o d a infância e o ambient e racional do
trabalh o do pai. A bab á mágic a o s c o n d u z
ness e trajeto, d e saída d a reclusã o doméstic
a inicial, e m q u e s ó brilhavam o s encanto s
materno s (representad o s pela personalidad e
magnética da própria Mary Poppins) , para a
descobert a d e interesse s no s parques , no s tipos
populares , assim c o m o n o mund o d e
negócio s d o pai. cujo víncul o co m os filhos
també m é enfocad o po r ela.
N a vida d e todo s nós . essa transiçã o
acontec e imperceptivelment e e a mã e costuma
ser a mestra-de- cerimônias. Q u a n d o a tarefa
está pronta, aquela babá feiticeira p o d e partir, vai
para ningué m sab e onde . afinal t a m p o u c o sabemo s
d e o n d e ela veio . P op p i n s vai embor a
porque , mais d o qu e u m personage m n a vida
Fada s n o D i v a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infanti s
234
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mari o Co rs o
236
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o
Co r s o
papéi s um para o outro, n ã o fica claro o que o filho ganh
a e sim o q u e ele perde .
delicada, q u a n d o se torna r necessári o q u e a
criança saiba a r e s p e i t o d e al g o trist e o u
difícil q u e est á afetando a vida familiar ou
pública . Por ex e m pl o , se houver um a guerra , um a
c o m o ç ã o social, a mort e de alguém ciuerido. o
d e s e m p r e g o de algu m do s pais. a criança p o d e e
dev e ser informada do ocorrid o e de que isso
está afetand o sua gente , ma s n ã o s e es p er e dela
q u e seja um apoio , ela tem o direito a ser frágil e
exigir ser a mpara da . Se ante s de um a viage m cie avião,
uma criança p e q u e n a quise r de seu s pais a certeza
cie que ele nã o vai cair, cabe-lhe s dar a ela um a
confiança que eles próprio s n ã o têm . K precis o ser
gr a n d e para haver-se co m a angustia decorrent e cia
consciênci a de que o destin o muitas veze s n ã o
avisa... Claro q u e um dia os pais sae m cie seu lugar de
super-heróis . q u a n d o termina a infância, ma s é
precis o espera r o m o m en t o . Com o idealizamos a
infância c o m o um paraíso e
as crianças c o m o sere s b o n s q u e a vida aind a
n ã o estragou, se') poderíamo s esperar um festival de
bond ad e e criatividade se elas tivessem mais poder. A
experiência clínica só confirma o contrário, e a literatura
nã o tem se revelado mais esperançosa . Vide o livro
O Senhor das Moscas, cie William Colding. qu e conta a
história de um gaipo de jovens náufragos isolados num a
ilha. Km suas tentativas de se organizar, constróem um
inferno, no qual as criança s e n c a r n a m a figura
caricatura l cio pio r despotismo nazifascista. Qu an d o as
crianças licam sem a mediação de um adulto, impera a
lei do mais forte.
Até a c h e g a d a d e Wencly . o s m e n i n o
s s e submetiam ao s capricho s de Peter po r medo
. já q u e ele lhes impunh a castigos físicos e at é â morte ,
q u a n d o o desobedeciam. Além disso, eram ligados e
submisso s a ele por recei o ao s perigo s dess e m u n d o
paradisíaco - hostil. afinal ele era um líder nato .
brav o guerreir o e sem dúvida o mais a d a p t a d o ao
lugar.
0 pai pirata
SjHHSI ai vez Peter Pan sé) vá crescer q u a n d o perde r
um a briga para o Capitão Gancho , mas. com o
"OMÍ vimos, nã o foi dessa vez. Qualque r menin o
passa po r uma fase de briga co m o pai. afinal
é este qu e vem dizer o qu e o filho pod e e o qu e
nã o pode. Ele é a figura da lei e apren de r a
submeter-s e à lei é uma tarefa da s mais árduas . Embora
nã o se cresça sem receber limites, p o d e se dizer
qu e ningué m se entrega de b o m grad o às
exigências civilizatórias. Por isso, nessa époc a
inaugural, q u a n d o pai e filho estã o encenando seu s
239
As crianças no poder
fnws^f^ ara sorte de todos , a democraci a
enquanto
£> \ *• um valor tem pr os p er a d o e difunde-se
pel o
-\ ,..* m u n d o . Seus reflexos està o em tod a a
part e e c h e g a r a m ã família, ma s um a
pretens a
igualdad e dentr o d e casa. n a criação do s filhos,
te nh a m o s de no s lembra r disso, ou seja. do óbvio: as
geraçõe s n ã o està o n o m es m o plano , e o s mais velhos tê m
algu ma s coisa s a ensina r a a q ue l e s q u e estào
c h e g a n d o na vida.
O qu e vemo s hoje na criação do s filhos é qu e ou os
pais toma m as rédea s e governa m (sem despotismo) sua
família, ou be m a tirania da s crianças ganha espaço. A
ausênci a de hierarqui a no lar n ã o r e d u n d a cm
democracia, ne m em anarquia, ela gera um autoritarismo
invertido. Fssa nov ela é exempla r para demonstrar o
qu e pod e ser o domíni o exercido por crianças e o quanto ele
pod e ser mais brutal qu e o do adulto. Verificamos que .
quand o a infância dita as leis, o autoritarismo revela- se cie
uma intolerância sem limites, tal qual Peter Pan. qu e
exerc e seu pode r c o m o um rei absolutista. matando se m d ó
que m queir a c o n t r a r i á- l o . A violênci a é
diretament e proporciona l ã impotênci a e à falta cie
legitimidad e de q u e m está no m a n d o , po r isso.
as crianças termina m s e n d o tão ditatoriais q ua n d o
têm algum poder, co m o co mpe nsaç ã o pela sua
fragilidade e falta cie prepar o para decisões .
Os pais c o nt e m p or ân e o s , salvo exceções , nào se se n t e
m suficientement e calcado s par a su a tarefa
educativ a e tenta m compartilha r sua s decisõe s com os mais
jovens. O resultad o ne m sempr e é o melhor, a idéia
soa bo a em tempo s de igualdad e e questiona• me nt
o da s hierarquias , ma s o q u e vemo s na prática é q u e .
seguida m en t e so b ess e discurso, os mais velhos se
exime m da s sua s responsabilidades , da árdua tarefa d e
educa r o s mais jovens.
Antigamente, a maturidad e supunh a uma aura de
sa be d or i a e era u m a e s p é ci e de font e natural
de autoridade . Nào se trata de sermo s nostálgicos: não há
nada de extraordinário q u e tenhamo s perdid o quanto a
esse supost o saber absolut o atribuído ao s mais velhos,
principalment e no exercício ditatorial do pai-patrào. do
patriarca cujos d e s m a n d o s tanto s destino s destruiu.
Porem, uma vez p o da d o s os excessos, a longo prazo,
há mais benefícios em conta r com pais qu e se resignem a
carregar o fardo de seu cargo, m es m o qu e errem em certos
pontos , do qu e ser criado pelo s qu e se nivelam com os
filhos. Ser pai às vezes é suportar segurar o leme.
mes m o nà o sabe nd o be m para ond e se vai. Furtar- se cie
capitanea r o navio, su c u m bi n d o ao medo do risco e
da incerteza da jornada, nã o só dificulta encontrar o rum o
certo, c o m o deixa as crianças desnecessaria• ment e
inseguras e angustiadas.
Uma coisa é escuta r as crianças, levar em conta
seu s m e d o s e dificuldades, outra é compartilhar com
elas os nosso s m e d o s e dificuldades. Isso só deve ser
feito em circunstâncias muit o especiais, de forma muito
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o Co r s
o
inaugurai s d e diálogo d e u m ser h u m a n o no s
primeiro s três mese s
Talvez um relato paralel o poss a no s ajudar.
Na tradição alemã, existe a história de um rapaz q u e vend
e sua sombra ao diabo , aliás outr o Peter, ma s o n o m e
e o tema da sombr a sã o o únic o pont o de contat o entr
e essas dua s narrativas. F.ssa p eq u e n a novel a
chama-se : A História Maravilhosa de Peter
Scblemibl.'" é de Adelbert von Chamisso e tem uma
estrutura cjue lembra um conto maravilhoso , embor a
seja considerad a um a versão para crianças ela lenda
de Fausto.
Peter Sclilemihl nã o vend e a alma c o m o
Fausto, ele vende a sombra , mas, co m o ficamos
sa be n d o mais tarde, era se') um a armadilh a do
di a b o para d e po i s chantageá-lo e obrigá-lo a trocá-
la po r sua alma. coisa que ele nã o faz, embor a
muit o sofra pela perd a da sombra. Sclilemihl achava
cjue podia viver sem sombr a ou pelo meno s cjue o
saco mágico cjue recebera cio diabo em troca dela, de
o n d e podia tirar tcxlas as moe da s de ouro qu e quisesse,
seria uma boa co mpe nsaç ã o pela sua falta. Triste engano ,
ningué m o aceitava se m sombra, eele passou a levar uma
vida de enjeitado. A lembrança é válida para pensarmo s
a respeito cia sombra perdid a que o noss o Peter vem
busca r no quart o cias crianças. Na história alemã, a
sombr a é retirada co m uma tesoura q u e a corta
rent e ao s pés . No n os s o caso . é Wendy cjue a
costura no s pé s de Peter, pois este se revela
incapaz de fazê-lo. A questã o é o qu e represent a
esse dupl o cjue é nossa sombra?
A sombr a no s a c o m p a n h a , atravé s dela a
luz marca noss a silhuet a , p a r e c e brinca r c o m
n o s s o s contorno s c o m o q u a n d o v a m o s a u m
a cas a d e espelhos m a l uc o s . Não h á crianç a
q u e nã o t en h a tentado pisa r n a su a sombra ,
n e m adult o cjue n ã o tenha tentad o subjugá-la .
fazendo- a da r forma ãs sua s macaquices. f or m a n d o
bicho s e caricatura s co m as mãos par a diverti r
o s p e q u e n o s . Mais o u m e n o s obediente , el a
t e s t e m u n h a c o m s e u s c o n t o r n o s bruxuleantes,
u m a existênci a cjue b u s c a m o s d es es p e • radamente ver
confirmad a atravé s d e to d o s o s e x p e • dientes
possíveis .
Passar de sa p er ce bi d o é um a forma de
inexistên• cia, por isso, repetida ment e consultamo s
o espelho , na vã tentativa de captura r a image m
cjue os olho s dos outros vêem , n o e s pe l h o
procura mo s no s ver d e fora. Fssa o p era ç ã o só
funciona p or q u e , no início, os olhos ávido s d o
b e b ê q u e u m dia fomo s descobrira m no olhar da
m à e e do s adulto s um a fonte privilegiada de diálogo
e respostas .
O psicanalista René e Spitz, em sua descriçã o
do primeiro a n o de vida, ressaltou o q u a n t o o
sorriso voluntário d o b e b ê . um a da s forma s
de vida, se dirige a um pa r de olhos . F a
presenç a de u m rosto d e adulto , d o m i n a d o pelo s
seu s dois grande s olhos , cjue inaugur a essa
conversa, em cjue o b e b ê se p e r c e b e o l h a d o ,
sorri e receb e e m troc a so n or a s
manifestaçõe s d o efeito c a us a d o po r sua pessoa. "
Sou visto, log o existo. Nesse s casos, a sombra
funcionaria c o m o um espelh o cjue pod
e s i m b o l i c a m e n t e testem unh a r cjue existimos
para os outros .
O personage m do cont o alemã o termina po r
viver em isolament o absoluto , discriminad o
pela sua falta cie sombra . Porém , p o de m o s pensa
r o contrário : a falta de sombr a já é resultad o
de seu isolamento , já cjue n e m a luz se
dign a a lhe espelha r seu s contornos . Perdid o
d e sua sombra . Peter Pan certament e precisa d
e um a màe . cjue simbolize esse s dois grande
s olho s capaze s de testem unha r sua existência.1 "
Voltando para buscá-l a n o quart o da s crianças
Darling, ess e lugar o n d e uma mà e conta
histórias e zela pel o son o do s filhos , sai u
d e l á m a i s d o q u e c o m su a s o m b r a
devida me nt e costurad a ao s seu s pés . levou
consig o uma mà e para todo s o s menino s
que . c o m o ele. s e perdera m dess e do m cjue
só ela p o d e ciar: o cie ter uma imagem .
Wend y era uma ma e de faz-de-conta, mas ,
c o m o vimos , isso na o lazia diferença para
Peter Pan...
Notas
1. BARRIF. James Matthew. Peter Pau e
Wendy. São Paulo: Companhia das I.etrinhas,
2002. As citações qu e taremos a seguir de'
alguns trechos cio livro são dest a ediçã o
muit o bem-feita , cuja traduçã o
cuidadosa e de Hildcgard Feist.
2. Fm 2005, estreou um filme enfocando a
relação de J.M. Harrie com os meninos da família
Davics e com a màe deles. Sylvia. O filme
é Pm Busca da Terra do .Xuiica, com
direção de Marc Forster e que foi inspirado
na peça teatral 'lhe Man \\'b<> Was Peter
Pan. escrita por Allen Knee.
3. Acredita-se' que este nom e tenha sido inventado
por Barrie. Kle é originário tia amizade do
escritor com uma criança, chamada Margareth.
cjue tinha a anos quand o eles se conheceram.
Fia costumava chamá- l o de m y friendy.
ma s com o n ã o c o n s e g u i a pronunciar o
r, terminava pronunciand o a palavra de tal
forma cjue soava fwendy ou wendy. Há quem
cont e qu e ela gostava de dizer qu e ele
era seu fwendy-wendy. Margareth morreu com
a idade de 6 anos , mas se eternizo u no
nom e da heroína da história mais
importante da carreira de Barrie.
Fada s n o D i v a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infanti s
ainda por um único privilégio: antes de
esfriar para sempre , queri a ver Peter
com ete r um a falta d e educação .
O pirata clássico s e m pr e tem um olh o de vidro e
um a pern a de pau , alé m cia su a cara de
mau . Ele pago u co m parte s de seu corp o o preç 240
o cia vida q u e leva. po r isso, ele é, de certa forma,
limitado. No noss o caso . ess e g a nch o qu e lhe dá o nom e
é o representant e da castração de noss o amável capitão ,
já q u e ele. c o m o adult o q u e é , tev e d e paga r
algum a coisa. Provavel• mente , na imaginaçã o cie
Peter, ser adult o é perde i algo precios o q u e fica
simbolizad o c o m o uma part e cio corpo , mais um a
razã o para n ã o crescer.
Embora o grande adversário de Ganch o seja
Peter Pan. seu maior med o era o crocodilo qu e já
comera sua mão. Talvez esse també m seja o m e d o de
Peter. afinal o qu e significa esse crocodilo qu e faz
tic-tac permanen • t e m e n t e ? S a b e m o s qu e el e
e n g o l i u u m r e l ó g i o , simbolicamente ele mes m o
p o d e ser u m relógio, o u melhor, o tempo , afinal
é ele que m com e a carne cie todos os qu e ficam
velhos. Xa verdade . Peter Pan ainda nã o o teme. pois
seu voto pela infância o coloca, por enquanto, fora
da jurisdição desse implacável perseguidor. Ou melhor, o
voto pela infância nã o seria també m para manter esse
crocodilo-tempo" afastado? Por isso. para provocar
Gancho , em plen o duel o Pan faz questã o de
afirmar: "Eu sou a juventude , sou a alegria,
sou um passarinho qu e acabou de sair do ovo".
Com certeza, que m sempr e sai derrotad o diante a Peter
Pan é o tempo .
'"Havia em Peter alguma coisa qu e
enlouquec i a o co m a n d an t e tios piratas: era a
arrogância". G a n c h o nutria uma secreta admiraçã o
pel o seu jovem inimigo,
"aquel e fedelh o orgulhos o e atrevido" ,
p a r e c i a congrega r e m s i p od er e s equivalente s ao s
dele , se m jamais ter pag a d o o preç o q u e custo u
ao pirata. De fato, se t o d o o pirata carrega em seu
co r p o as marca s da s batalhas qu e travou, termin a
pr o va n d o q u e ne m ele está acima da lei. afinal,
p o d e até d e s o b e d e c e r continuament e , mas lhe
custará algo: o s p e da ç o s d e seu corp o qu e entreg a
c o m o castigo po r seu s peca dos . Além disso, o pirata
de Barrie tem seu s refinamentos :
A Sombra
]
SySflpf á um ele m e n t o interessant e no começo da -j
''•MJ%% história, c l u c resta enigmático : como e por
j íllaSBtf ^ u e P e t e r ' ) a n P e r ( J e u s u a sombra? É n
o 1 encalç o del a q u e ele volta e é surpreendido 1
po r Wendy , q u e o ajuda a pregá-la outra vez em seu 1
corpo , costurando- a no s p é s d e Peter.
1
Capítulo XVII
O PAI ILUSIONISTA
0
Vida. São Paulo: 'N, .
O Mágico de
Oz
O novo conto de fadas - Yicissiludes da função paterna a partir da modernidade
- O pai idealizado da primeira inlância - Reconhecimento da fragilidade do
pai -
A construção da autonomia - Busca tia autorização dos pais para crescer
•4. Por exemplo, o livro The Peter Pan Syndrome: 8. ENDE. Michael. A História sem Fim. São
Men Who 1 lave Never Grown Up, cie Dan Kiley. Paulo: Martins Fontes/ Editorial Presença, 1985.
publicado em 1983. Publicada originalmente em f9 7 9 , a história
T. A cultura busca palavras para descrever o foi filmada em
fenômeno da dificuldade cie crescer contemporânea. Por 1984, com título homônimo .
exemplo, temos os Á7'íY////.v(cTiancadulto), adultos que 9. A personificação do temp o é atribuída a Cronos, a
consomem produtos culturais infantis: os .Xesters. filhos orige m dess a conexã o de v e- s e
que não saem cia casa dos pais (do ninho, literalmente); originalmente apena s a um jogo de palavras
ou os hoomerang kids (porque vão e voltam). homofônicas cm greg o entre a palavra
Existem, c cada vez mais, adultos qu e nã o se "tempo" e o deu s da raça do s titãs, mas
resignaram à necessária independência que a acabo u p er m a ne c en d o , na nossa tradição
passagem do tempo impõe. Na falta de uma cultural, uma associação entre o tempo e um
elaboração mais precisa, tomamos emprestado da deu s devorador.
literatura nomes que nos ajudem, por isso. Peter 10. CHAMISSO, Adelbert Yon. A História
Pan é tão usado para falar das dificuldades de Maravilhosa de Peter Schlemihl. São Paulo:
amadurecimento. Estação Liberdade,
(). AKIFS. Philippe. /listaria Social da Criança 2003
e da 11. SPITZ, René. O Primeiro Ano de Vida. São
Família. Rio cie Janeiro: /alia r Kditores. 1981. Paulo: Martins Fontes. 1983. p. 91.
-
. Mary Pop]>ins e uma novela de Pamela L. 12. A respeito desse assunto, é possível
Travers publicada em 193-t. Em 196-4. saiu o filme aprofundar-se no texto: O papel de espelho da meie e
feito pelos Estúdios Disney. da família no desenvolvimento da criança, no
livro Realidade e Jogo. de D.W. Winnícott.
242
Fada s n o D i v a - P s i c a n á l i s e n a s História s Infa nt i s
O Mágico de Oz1 é um pont o de Essa segund a parceria teve seu ápic e na produção
partida , o primeir o volum e dess a história, q u e s e do próxim o livro: O Mágico de Oz, o qual
celebrizo u e m dua s linguagens : em livros, durant e 40 continha nada meno s do qu e 150 ilustrações, cujas
anos , e depoi s no cinema . Hoje em dia essa imagens foram seguida s posteriorment e no cinema.
história é muit o mais popula r e m forma d e Convenhamo s que esse é um nú mer o generos o até para
filme. Porém , tant o n a versã o cinematográfica, nosso s tempo s de inflação imagética. Portanto, desd e
q ua n t o c o m o livro, p o uc o s c o n h e c e m mais d e u m seu nascimento, 0
volum e d a série. Será a o episódi o mais divulgado Mágico d e O z est á marcad o po r um
, o primeir o e inaugural, q u e no s ateremo s n a c a s a m e n t o inseparável co m a imagem, prenunci o
análise q u e s e segue . da consagração cie sua versã o cinematográfica, já
Essa obr a deve-s e a um h o m e m se m qu e hoje pouco s o conh ece m através da fonte
tradiçã o literária. I.vman Frank Baum, nascid o em escrita. Dizem inclusive os comentaristas qu e Frank
1856. q u e cresce u cercad o d e mimo s n o sei o Baum. o autor, nã o era muito bem-visto pela crítica,
d e um a família abastada , enriquecid a pela a mesm a qu e derramava laudas de elogios ao
exploraçã o d e petróleo . Porém, essa riqueza ilustrador \X'.\X. Denslow."
familiar nã o duro u muito. I.vman pa s s o u a vida O Mágico de Oz te v e um a primeir a
adult a l u t a n d o p o r e st a b e l e c e r u m negócio, sem versão cinematográfica de p ou c o s recursos, feita
grande s sucessos e com várias bancarrotas, até encontra r pel o próprio a u t o r , ma s s e consagr o u e m
aquela qu e seria sua identidad e definitiva: autor cie 1939 . quand o foi transformado num a grand e
literatura infantil. produçã o em filme da Metro GolcKvyn Mayer, dirigido po r
Durant e 20 anos . Baum escreve u 15 volume s Victor Fleming: um musical estrelad o po r uma jovem
da série. Até o fim da vida, em 1919, ele o cu p o u o chamad a Jud y Garland no pape l de Dorothy. O
carg o de Historiador Real de Oz. deno min açã o sucess o alcançad o no s indica que essa história
assumida para demarca r qu e o m u n d o mágic o organiza os elemento s da tradição num arranj o
havia transcendid o seu controle , tornando-s e ele c o n v e n i e n t e â so c i e d a d e d o t e m p o que a
própri o u m p er so n a ge m de sua criação. Após a sua c o n s a g r o u , o u seja , c o m b i n a a s v e l h a s e
morte, a incumbênci a de seguir adiant e ficou ao s boas personagen s do cont o de fadas nu m
cuidado s de outra escritora: Ruth Plumly T h o m ps o n , argumento que respond e ao s anseios cia infância
q u e produzi u u m volum e po r ano , até 1939. do século XX. Sua difusão també m reforça o debat e
A saúd e frágil de Baum. contra a qual lutou sobr e uma nova forma de transmissão, em qu e o
tod a a vida, obrigou- o a uma infância mais cinema aparec e posicionado e n qu a nt o narrado r
introspectiva. próxima do s livros, do s conto s de privilegiado, cumprind o o papel de preservar uma
fadas e marcad a pel a imagi naçã o . Porem , el e trama, tal qual os narradore s orais faziam co m os conto s
acreditav a qu e devi a oferece r à s criança s da tradição. O Mágico de Oz já fora um sucess o
história s mai s p a r e ci d a s c o m sonho s d o qu e co editorial, mas foi esse musical em tecnicolor qu e
m pesadelo s qu e lhe inspiravam o s conto s cie fadas lhe garantiu a perenidade .
tradicionais. Antes do primeir o volum e de Oz. Baum
escreve u uma peç a teatral de sucesso , ma s foi
mesm o com o contado r d e história s par a A viagem à Oz
criança s qu e el e s e consagrou . Seu s
fil h o s o inaugurara m nessa atividade, ma s n ã o pira|ã filme n ã o se res um e a reproduzi r a história,
som ent e eles. t a m b é m a s criança s d e su a '^'ípjKr ele dá um a volta a mais no texto,
cidad e o solicitava m constantemente , que r na transfbr- Í ^ Í - Í Í m a n d o a aç ã o toda . ocorrid
sua loja ou m e s m o na rua. q u a n d o o parava m a n o mundo
par a q u e lhe s e m pr e sta s s e u m p ou c o de sua
" mágic o de Oz . n u m s o n h o da
fantasia, sentado s no mei o fio da calçada. Seu primeir o
protagonista Dorothy . Apesa r de seu s recurso s
livro de sucess o na área conto u co m a parceri a
cinematográficos, hoje considerad o s rudimentares ,
d o tradicion a l ilustrado r n o r t e - a m e r i c a n o Maxfield
o filme baseado no cont o de fadas de Bau m
Parrish e nela aparec e uma menin a cham ad a
Dorothy . Mas foi junt o de outr o ilustrador, continu a circulando, sendo en c on tr a d o e assistido
William Denslow , q u e Baum publicou , em 1899, repetida s veze s po r crianças qu e lhe confirmam
um livro cie conto s infantis chamad o Father o acert o do arranjo.
Goose, His Book (na esteira de se u título A história te m um es q u e m a na verdad e
anterior: Motber Goose in prose, de 1897), q u e se pouco com plexo , o q u e facilita sua assimilação. Sob
torno u o mais ven did o na área . esse eixo simples, é m ontad a um a constelaçã o de
personagens b e m consistente s co m um a fineza Kansas co m seus tios
psicológica ímpar. Doroth y vive n u m a fazend a do
244
Di a n a Li c ht e n st ei n Co r s o e Mári o Co r s o
246
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o Co rs o
Covard e n ã o r ec e be r a m n e n h u m dom, seguira m
s e n d o o s m e s m o s d e q u a n d o ela o s
KEsmeralda qu e ele b a n c o u o go v er n an t e
milagroso ,
!' assim como parece u ter o p o d e r q u e o grup o esperav a t
dele. Como vemos , os h u m a n o s p ar ec e m entra r
na l autonomia inicialment e caminhand o de
costas:
• avançam, mas só tê m olho s par a o q u e estã o pe rd e nd o .
Mais dia, meno s dia, toda a criança terá de se dar conta
de que seu pai n ã o é todo-poderoso . aliás n ã o é nada
poderoso, existem forças maiores qu e o pai. No
filme, elas são representada s pela a lei do xerife e pela
mulher influente - p or q u e era rica -, portador
a do mandato qu e orden a entregar-lhe o cachorro .
Doroth y sai de casa q u an d o seu tio se revela nul o para
protege r a ela e seu cãozinh o e retorna q u a n d o
reconhec e e assimila de alguma forma essa
fraqueza. No livro, o desamparo de Dor oth y é
mai s v ag o . ressalta-s e a melancolia do ambient e
e a falta de cuidad o do s tios para com ela:
q u a n d o c o m eç a o t o r n a d o , o tio se preocupa
c o m o s a n i m a i s , e n q u a n t o tia Kmm a
providencia a própria segurança . Esse descas o co
m a vida da sobrinha contrasta co m a dedicaçã o dela a
Totó.
por cuja salvação é capa z de arriscar a vida.
A novidad e dessa história, relativa á posiçã o
do pai nas narrativa s tradicionai s , é a
m o d u l a ç ã o , a explicação ciada ã sua fraqueza .
Em geral, o pai é fraco e omisso diant e do s
p od er e s da bruxa e ponto . Aqui ele pod e enfim
retrucar, falar da tarefa impossível que lhe é imposta e
q u e h u m a n o algu m está á altura da onipotência qu
e se esper a da posiçã o paterna . O pai dessa
história p o d e explica r os cami nho s pelo s quais
algué m aceita tal funçã o e su a c o n d i ç ã o de
impostura. A paternidad e é imposta e impostor a
ao mesmo te mpo . O difícil para o filho
c o m p r e e n d e r é que, dessa consciênci a da fragilidade
paterna , nasc e a condição para encontra r em si
própri o os recurso s necessários para viver.
O Mágico cie Oz n ã o tem podere s sobr e as bruxas,
ele sab e q u e n ã o p o d e v e n c ê - l a s p o r q u e
é u m impostor. O interessant e é q u e . d e s d e essa
posiçã o de mentiroso, ele vai concentra r o maio r
p od e r daquel e mundo. Nos conto s de fadas
provenient e s da tradição, a impotênci a d o pa i
serv e c o m o c o n t r a p o n t o a o s perigosos po d er e s
cia mã e (o u substituta), e n q u a n t o na história cie
Baum, apesa r da sua condiçã o de falsário. a figura patern
a segu e organiza n d o a cena . Além de perceber
c o m q u a n t o s t r u q u e s s e faz o p o d e r d o
Mágico, a jornad a de Doroth y assiste à
transformaçã o d e seu s a m i g o s , cie fraco s e
q u e i x o s o s d e s u a s carências, em indivíduo s apto s
a se supera r q u a n d o a situação o exigia. No final,
o Espantalho , o H o m e m de Lata e o Leão
encontrou , ma s estava m p re pa ra d o s a colocar-se
num a posiçã o paterna , própri a de q u e m zela e
decid e pelo s outros . Eoi isso q u e a pr e nd er a m
cuidand o d a menin a e un s do s outros .
Enq uant o Doroth y e seu s amigo s vã o
busca nd o as soluçõe s milagrosas do Mágico e
se desiludindo , d e sc o br e m dentr o d e s i o q u
e esperava m q u e este lhe s desse , assim c o m
o q u e d e se u maio r defeit o pr o v é m a sua
gr a n d e capacidad e . Se o Mágico fingisse lhes
atribuir os d o n s em vez de obrigá-los a
enfrentar a bruxa, eles jamais saberia m q u e o desej
o é anim ad o pela busc a do q u e no s falta e o qu e
no s mo v e na vida é o desejo . Ao desmascara r
os truque s do Mágico, eles n a verdad e
desco bre m qu e do s defeitos p o d e m nasce r a s
melhore s qualidade s .
Por isso. Doroth y precisa caminha r tant o
até ter condiçã o de utilizar a magia q u e estava a
seu s pés . só poder á ser poderos a c o m o a s
senhora s bruxa s boa s q u a n d o tive r
a m a d u r e c i d o o s ufi ci e n t e p a r a s e identificar
co m elas. Ou seja. os instrumento s mágicos e m
s i n ã o serv e m , s e a p e r s o n a g e m n a o
estive r preparad a para usá-los. E nesse s detalhes qu e
O Músico de Oz de mon str a o q u e separ a um
cont o de tadas m o d e r n o cio tradicional. Embora
encontremo s bruxa s e outra s magias, nessa versã o
atual do maravilhoso, o eix o passa pela
construçã o subjetiva da personagem . feita a
partir da experiênci a de vida. sem auxílio da
magia. De certa forma, essa história conté m uma
crítica a si mesma : estamo s no território da
magia, mas ela n ã o tem soluçõe s diretas para
resolver o problem a da heroína . H á u m
desenc ant o co m a magia dentr o d o seu própri
o terreno .
O Grand e e Poderos o Mágico de Oz é conscient
e cie n ã o estar à altura de seu pode r e recorre a
truque s d e ilusionismo para mantê-lo ; n o entanto
, o n d e s e v ê impostur a dev e se ver a humildad e e
a sabedori a dess e perso nage m . Se Dorothy , ao ver
sua casa despenc a d a sobr e a bruxa , tivesse
assumid o a função de poderos a feiticeira qu e o pov
o Munchki n lhe atribuía, ela estaria fazend o c o m o
ele, aceitand o o carg o qu e estava sendo - lhe
imposto , a coro a q u e colocara m n a cabeç a
d o mágic o e a árdu a tarefa de reinar. A menin a se
escap a dess e desígnio , ma s nã o o homem , que , a o
assumi-lo, s e en c arr e g a cie cui d a r d a q u e l e
povo . Co m esta s palavras ele narra sua
chegada :
A o qu e ele responde :
249
Fadas n o Div a — P s i c a n á l i s e n a s H is tó ri a s Infa nti s
se o oposito r reagisse, seria ele q u e m sairia n e n h u m des potism o será admitido , a paternidad e Dorothy
correndo . Por isso. resolve pedir ao Mágico coragem : terá tle ser sábia e respeitar limites, os seus . os do s est; co r e sem
"tle forma q u e poss a me torna r tle fato o Rei tios outros e tio se u cargo , n ã o bast a rugi r e afeto, n ai n d a é
Animais, c o m o a m ed ro n ta r , é depende r
necessári o sabe r governar pr áti c a o
ampan
iod os me chamam". Hle percebe que .
aparências
edes
n u n c i a r que
e n g a n a m e tem e ser d e sv e nd a d o , seu
sentiment o e Kmma . qu e
supòf
tle insuficiência para o cargo . No entanto , tal ausência . Ela
qual acont ec e co m seu s dois amigos , o Leão nã o Não há lugar como nosso que p r e s s u p õ e ,
cessa tle
lar mas
da r d e m o nst ra ç õ e s tle sua valentia, até q u e deixara m que o fi
no fim
p o d e admitir q u e nã o é tia ausência tio m e d o q u e H«*BKj m O Mágico t/cOz. há uma viage m d o s tios
ela inespera- arriscou
é feita. A corage m consiste em lutar contra o Íj['Pí$w c ' a e <> ansei o tle voltar para casa, s e m p r e faz por
m e d o a cad a nov o desafio. mas o jKkjâll percurso mesmo e a ;
p o s s i b i l i d a d e tle t e m p o tod o um c
No livro, o Leão volta a ser o rei tia selva. cresciment o tia heroína . Doroth y volta u m a órfã.
Num a para parece
da s florestas qu e eles atravessam para encontra r a Bruxa o Kansas. ma s está m u d ad a . Apre nde u e cresce u no
O herói ór
Boa do Norte, encontra m os animai s tio local acuados , percurso . O filme no s permit e vislumbrar m o d er n a , acredita
melho r a
so b a ameaç a tle um monstr o terrível, parecid o idéia de q u e a jornad a é na ve rd a d e um r e s p o n d e ao s
co m percurso i
uma aranh a gigantesca, tio t a m an h o tle um interior, tle auto-conhecim ent o , afinal tud o teria m o d e r n o . A idéi;
elefante, sido
co m um a e n o r m e boc a cheia tle dentes . F.Ia só um sonho , um a vivência p ur a m en t e e s t a r só no
havia subjetiva. mui
inclusive d e v or a d o outro s leões ante s dele , poré Doroth y n ã o se tleixa seduzi r muit o t e m p o tendênci a
m o noss o herói a venc e u sa n d o u m p o u c o tle por outro s lugares, ela que r m e s m o retorna r a o conte importânci a
estratégia. Se fosse destemido , teria tido o m e s m o Kansas. No m u n d o o n d e sua fantasia a leva, ela dos o s órfãos .
destin o tios protagoniza e A qt
antecessores , ma s o m e d o o tornara esperto , a tem tle r es p o nd e r sobr e seu s desejos e potleres . dimensão
ponto Logo trágica
tle c o m p r e e n d e r q u e q u e m parec e invencível e m sua c h eg a d a fica clar o q u e ela te m d e conse qüên ci a de
dev e querer
ter um p o n t o fraco, graças a isso escolh e o algum a coisa, se u gru po , q u e percorr e a uti li da d e : se
melho r jeito e m o m e n t o tle matá-la. Após essa estrada tle tijolo s a m a r e l o s , é c o n s t i t u í d o p o r nâ filiaçã o e
prova , aquel e grup o d e animai s lhe p e d e q u e a q u e l e s que m ar ch a m e m n o m e d e u m p e dido , uma d e v e d o r e s
aceite governá-los . u m desejo . D e entrad a ta m b é m lhe pergu nta m da r nosso s
A aranha, por ser t e ce d o r a, um se ela é um a bruxa pod e rosa , leia-se, se ela já é um
pais e qt
a t r i b u t o g e r a l m e n t e fe m i n in o , e c o m o ani ma l a mulher , ela responde
l; admiti r e
predador e pagar.'
250
I
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o Co r s
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""S^",
Paulo: Àtica,
^%*
Harry
Potter
Kxpansão do papel da escola na socialização - Negação do passado e obsessão pelo luuiro -
Romance lamiliar ilo neurótico - Atitude crítica dos adolescentes - Devaneios adolescentes
-
1'uberdade - Importância dos segredos - Cisão da figura paterna -
Adolescência como ideal social - Papel das referências culturais no
crescimento -
A magia na literatura intanto-juvenil - Dificuldades com a histê>ria familiar
també m s e ex il a m e m se u interio r
a q u e l e s q u e , m e s m o t e n d o nascido s trouxas , 255
revelare m d o n s para a magia . Ness e caso . o
jove m troux a q u e for d o t a d o dessa s capacidad e
s receber á u m dia, a o completa r
1 1 anos , um a carta c o n v i d a n d o - o par a
estuda r e m Hogwart s (o u e m outr a escol a d e
magia) . O s bruxo s se m p r e p e r c e b e m q u a n d o
algué m revela sensibilidade para a magia, m e s m o
q u a n d o está fora de seu m u n d o . Toda s essa s
informaçõe s n a o sã o entregue s d e
form a clar a em nenhu m mo me nt o do
s liv r os . A c o m p a n h a m o s Harry em sua
ignorânci a inicial a respeit o d e tud o e . junto co
m ele, vamo s descobrin d o ao s poucos , m ont a n d o
u m quebra-cabeç a cujas peça s estã o espalhada s
ao long o cios livros. Este é mais um d o s
motivo s par a espera r cad a nov o volume ,
pois, alé m da s nova s e e m p ol ga nt e s
aventura s d e Harry par a s e salvar da s armadilha s
d e Voldemort, esperamo s po r mais revelações .
Sempr e descobrimo s algo mais sobr e a história
d o s pais de Harry e seu s contemporâ • neos , sobr
e Hogwart s e o m u n d o do s bruxos .
Han y cresceu com o um trouxa e.
portanto, nada sabi a s o b r e magia , t a m p o u c o
s o b r e se u p a s s a d o . Decididos a afastar o beb ê
de sua precoc e tragédia, os professores da
Escola cie Magia e Bruxaria Hogwarts, à qual
seu s pais eram ligados, decidiram qu e ele crescesse
longe de tud o isso. O menin o viveu até os 11 ano s
junto à irmã da mãe, entre uma família de
trouxas qu e nã o tinha nenhum a relação nem
simpatia com a realidade paralela na qual a mã
e de Harrv havia decidido viver.
O s tios d e Harry sa o d o pior tip o d
e trouxas : consumistas. medíocres , egoístas e
preconceituosos . Na casa. vive també m um primo da
mesma idade de Harry. um menin o mi ma d o e
implicante. capa z de tod o o tipo d e grosseria .
Co m seu s tios, Harry vive c o m o u m
enjeitaclo. jamais receb e uma palavra gentil, e
obrigad o a de s e m pe n h a r tarefas domestica s cias
quais seu primo é p o u p a d o , alé m disso , se u
quart o e um cubícul o embaix o da escada . Os
tios contaram-lhe qu e seus pais haviam morrid o nu m
acident e automobilístico, portanto el e nad a
compreend e a respeit o do s estranho s
fenômeno s qu e ocorre m em sua presença. Na
condiçã o d e jovem bruxo , ele produ z fenômeno s
mágicos mesm o nã o intencionalmente,
principalmente movidos por raiva ou desespero , sã o
pe q ue n a s e inconscientes vinganças diante da s
injustiças qu e sofre constantemente .
Co m seu aniversário de 11 anos . chega
a carta de conv ocaç ã o para ir estuda r em
Hogwarts . A partir daí a vida de Harry torna-s e um
a longa e lenta jornada r u m o à s necessária s
explicaçõe s par a sua estranh a condição . N a
escola, encontr a u m m u n d o maravilhos o e
Fada s n o Div a — P s i c a n á l i s e n a s Hi st ó ri a s Infanti s
e as incô mo da s mudança s qu e a adolescênci
a i mp õe ao
a possibilidad e de aprende r feitiços e
aprofundar-s e na s ciências ocultas. Essa escola é
mais do q u e um colégio, c o m o o q u e Harry
freqüentava ante s do s onz e anos . e o lugar o n d e
ocorr e a iniciação do s jovens bruxos , nu m ciclo qu
e vai cios 1 1 ao s 17 anos .
Hogwarts organiza-se em quatro casasS ou
grupos qu e acolhem os estudantes e os classificam
de acord o com sua índole. Essas casas disputam entre
si ao longo de tod o o an o letivo, e os méritos ou
as faltas de seus membro s incidem sobre a pontuaçã
o da casa com o um todo. Assim, cada ato cie
bravura ou justiça de Harry e seus amigos traz p< intos
para suas casas, mas as constantes transgressões ao
regulamento qu e são levados a cometer tiram pontos.
Q u an d o chega m á escola, os novatos são submetidos
ao (liafxm Sckioi; um chapé u falante, que . colocado
sobre a cabeça do aluno, analisa seu caráter e decreta
a qual casa deve pertencer.
\ o encontr o cie Harry co m o Chapé u
Seletor. constatamo s d e imediat o q u e o assunt o d o
b e m e d o mal nà o é tratad o de forma tã o simple s
em Hogwarts , poi s o Chapé u suger e q u e ele
poderi a ser u m grand e brux o se entrass e para a
Sonserina, a casa do s ávido s po r poder , cujo
representan t e mais famos o é precisa• m e n t e
Yoldemort . Nu m diálog o travad o d e n t r o cio
pe n sa m e n t o de Harry. o menin o se o p õ e á essa
idéia, forcand o o Chapé u a um a segund a escolha: ele é
entã o destinad o para a Grinfiné>ria, a casa do s
corajosos e ousa dos . É lá qu e se consolid a a
amizad e co m Ronny Wêaslev e ll er m i o n e Granger.
seu s constante s com • panheir o s cie aventuras .
Estes representa m a versã o infantil de seu s pais.
pois Hermi on e é uma menin a trouxa, muit o
estudios a e excelent e feiticeira, c o m o sua mãe .
e n q u a n t o Ronny pertenc e a um a tradicional família
d e bruxos , um a família nu meros a d e ge n t e
pobr e e visceralment e comprometi d a co m a
justiça e o lado bo m da magia.
Ao long o do s cinc o livros publicado s até o
a n o de 2001, a c o m pa n ha - s e o cresciment o de Harry.
assim co m o seu aprimor a m ent o e n q u a n t o u m brux o
valente, obstinad o e melancólic o . O m u n d o e a
cabeç a de Harry vã o se tor na n d o cacla vez mais
sombrios , e as person a gen s cad a vez mais
ambíguas . Ao long o da trama, ele precisa desvenda r
secretas histórias passada s de traições, sacrifícios
pessoai s e disputa s políticas. O m u n d o d o s bruxo s
n ã o cess a d e su r p r e e n d e r c o m figuras mágica s
c o m o centauros , dragões , lobisome n s e hipogrifos;
po r outr o lado . o s vilões vã o ficand o cad a ve z
mais psicológicos .
A cacla volume , o co mba t e co m as trevas vai
se misturand o mais co m os pesadelo s , a d e pr es s ã o
herói . A cad a pass o da saga, mais se mescla o
terror extern o co m o intern o de Potter. afinal ele
tem uma baga ge m triste de lembranças , um a vida
solitária de órfão. Sua reaçã o é a revolta, e esta o mov e
a reparar o mal q u e lhe foi feito. Sua compulsiv a
curiosidade é u m a p e l o q u e faz co m qu e o
acompanhemo s n o desvelament o dess e mund o
e n i g m á t i c o e d a sua história cheia de segredos . As
histórias de Harry e do m u n d o do s bruxo s
entrelaçam-s e de tal forma que sua vida termin a
s e n d o um a espéci e de eix o em torno cio qual se decid e
o destin o de todos .
Escola da vida
iÇ5$?fl principal mérit o de Rowling foi situar esse
| ^%S • u n i v e r s o m á g i c o d e n t r o da pri meir a e
;
SSJÍ3 Principa l e x pe r iê n c i a socia l d a vida
das crianças de hoje: a escola. A
escolaridade
par a as criança s c o n t e mp o r â n e a s se inaugur
a p r a t i c a m e n t e junt o c o m su a c a p a c i d a d e d e
falar, q u a n d o n ã o a n t e s . ' Hora d a e s c o l a , o
universo doméstic o é extrema me nt e reduzido : papai ,
mamãe, co m sorte algu m irmã o e. co m mais sorte ainda,
avós, lios e um q u e outr o primo .
Nossa realidad e familiar está diferente cia forma•
çã o tradicional. As geraçõe s estã o mais separadas, a
família diminuiu , temo s meno s ir m ã o s e
primos, c r e s c e m o s l o n g e d e avcxs o u tios , o u
e n t ã o mais distantes física e afetivamente cio qu e antes. Até
mesmo a vizinhan ç a já foi mai s p r e s e n te , ess e
espaç o de convívi o t a m b é m pe r d e u a vez par a a
mobilidade g e o g r á f i c a d a s famílias . Alé m d i s s o ,
a vid a em apartamento s e a reclusã o em casa
estã o justificadas pela violência da rua. Enfim, o
individualismo reina c o m o ideologia e as condiçõe s
práticas nã o favorecem sua diluição. A vida confina-se
nu m núcle o familiar reduzido , dentr o d e casamento s
passageiros .
Premida po r essas circunstâncias, a escola garante certa
estabilidad e e abriga o cern e da vida social das
crianças, tant o q u e o s primeiro s ano s sã o considerados de
socialização. E important e ressaltar essa diferença, poi
s o projeto inicial da escola era a pe n a s destinado à
transmissã o do s c o nh e ci m e nt o s formais. Hoje, suas
funçõe s s e ampliaram , n o sentid o d e comporta r todo
o m u n d o tora de casa para os pe quenos . Ali eles apren• derã o
a dividir, respeitar, espera r a vez e conquistar seu
espaço .
Excetuand o o cas o daquele s q u e vivem em condi• çõe s
de miséria, em nossa sociedad e todo s os privilégios qu e um a
família pu d e r ter, po r m enore s qu e sejam,
D i a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o C o r s o
opositore s (d a Sonserina), apont a para os diversos
caminho s q u e essa
serão da s crianças. Na escola, um a criança
descobrirá que é a pe n a s mais uma . Com a professora
do berçário o u d o j ar di m , viver á a e x p e r i ê n c i
a da s família s numerosas, o n d e n a o havia
praticament e uma mã e para cada filho. As instituições
escolares têm sofrido os eleitos dessas expectativas
familiares q u e passaram a absorver, professores e
diretore s se cansa m de ter cie colocar limites em
crianças mimada s e sem pr e pa r o para o convívio
social, resultad o dess e nov o quadro .
Roa parte da s aventura s de Harry e seu s
amigos centra-se na escola. Há um a dupl a cisão
do m u n d o entre o dentr o e o tora tia escola, entr
e o m u n d o do s bruxos e o do s trouxas. O m u n d o
mágico possui outros cenários além da escola, mas
são secundário s para a trama. F.mbora n ã o tenh a mo s
mais o hábito do s colégios internos, hoje a s escola s
forma m u m univers o q u e transcende o horário de
aulas. Na escola, os p e q u e n o s farão s u a s primeira s
amizades , ali c o m p a r t i l h a r ã o hábitos, modas ,
leituras e musicas q u e os trouxa s do s seus pais.
po r mais qu e se esforcem, pouc o poderã o
partilhar. O pai q u e tentar mostrar-se um iniciado
no mundo do s filhos, s e n d o mais adolescent e o u
criancáo que os próprios , parasitand o os amigos e
o lazer do s filhos, estará privando-o s dessa separaçã
o de mundos , do seu espaç o pessoal de socialização,
qu e e precios o para a construçã o da personalidade .
Hogwart s é mais q u e uma instituição de
ensino : por ser um lugar de iniciação, é uma
escola de vida. Por isso, é justament e na cont a
dessa e x pa ns ã o do papel da escol a q u e a
identificaçã o se insere . As questões atinente s a o
en si n o tradicional aparece m s o b a forma do s exames ,
da dedicaç ã o de I iermion e ao s livros e da s
tantas veze s q u e sua sabedori a salva a situação ,
m a s is s o n a o é a q u e s t ã o c e n t r a l . O
aperfeiçoamento subjetivo e mora l do s aluno s
ocorr e no confronto co m a personalida d e do s
professores : as personagens cresce m am parada s n a
sabedori a muita s vezes enigmátic a d o direto r
D u m b l e d o r e , n a justa rigidez d a p r o f e s s o r a
Mi n e r v a , na h u m a n i d a d e brincalhona d e
Hagrid. l a m b e m h á o s protessore s implicantes.
aletados , carreiristas, neurótico s e malucos . A sabedoria
q u e se vai obte r em Hogwarts é a
necessária par a atravessa r a cris e a d ol es ce nt e :
um passado maq uiad o de fantasias mágicas, algun s
truques , uma visã o m ui t o crítica d o s ad ul to s ,
um a relaçã o ambígua co m os limites e. principalmente ,
a curiosidad e de descobrir sobr e tud o aquil o qu e for
segredo."
A divisão em casas, assim c o m o o confronto
do s vários m o d o s de encara r a vida. mais demarc ad o
entr e os heróis (o s da casa Grifinória) e seu s
formação p o d e tomar. Lembremo-no s de qu e o Chapéu
Seletor estava dispost o a indicar para Harry a casa
do s anivistas. ou seja, os feiticeiros do mal també m se
iniciam em Hogwarts . A instituição dá os meios ,
propõ e as regras, ma s os fins d e p e n d e m de cada um.
Os conflitos político s e x t e r n o s s e r e p r o d u z e m n
a escola , poi s Yoldemort e seus seguidore s foram
derrotados, mas nã o destruídos, e o pode r está co m os
justos, mas a ameaça é constante . Na vida cotidiana de
Hany . a ameaça qu e destruiu sua família e encarnad a
pel o seu inimigo Draco Malfoy, líder da Sonserina.
filho de I.ucius Malfoy. um confess o militante do
jogo sujo, assim co m o rico e influente no m u n d o
do s bruxos . F.nfim. quant o mais se conhec e Hogwarts.
percebe-s e qu e mais se parece com a vida do qu e co m a
escola, a questã o e que . tanto no m u n d o do s bruxo s
quant o no nosso, a escola e a vida po r muitos ano s
se eqüivalem.
Velhos sábios
fpsppí ; og w a rt s t a m b é m fornec e uma
resposta a É & % outra questã o qu e muito
tem pesad o sobre i | S f á » ' o s o n i ' M X ) S ( ' o s m ; h s
jovens: a inversão d o lugar da sabedoria . Na
sociedad e contempo •
rânea , os adulto s e a tradiçã o qu e eles
encarna m parece m ter p o u c o a ensina r para
uma geraçã o de joven s cujas ousadias ,
irreverências e modismo s sã o exaltado s â exaust ã
o e repetido s pelos mais velhos.
Numa sociedad e tradicional, o passad o é a
fonte do saber, a vida se organiza a partir da
manutençã o e d o respeit o a o previament e
estabelecido. Mas desd e q u e imvncâo e rcrolitçcio
passaram a ser palavras de ordem , isso se inverteu,
e o passad o no s parece sempre encolhid o diant e da s
maravilhas qu e n o tuturo seremos capaze s de criar
em termo s de tecnologia, ciência e
co m p o rt a m en t o . F.ssa e uma realidade a ser
encarada se m nostalgias. atinai, na s sociedade s
tradicionais, o pes o da tradiçã o oprimia a vida
com toda a sorte de rituais e crendices , apesa r
de qu e confortava com a certeza d e um a verdade
, q u e descansava n o passado, no s antigo s escritos,
no s velhos.
No m u n d o de Rowling. se acredita na
tradição, os joven s p o d e m ter a ousadi a própria da
sua idade, o q u e é bem-vindo , ma s eles
demonstra m consciência cia necessidad e de apren de
r um a sabedoria ancestral, representad a po r
professore s velhos, qu e estào muito long e de ser
vistos c o m o gagá s ou obsoletos. Essa valorizaçã o
cio p as sa d o n ã o se encontr a somente na
organiza çã o tradiciona l d a escola , ma s també m
n o c a l d o d e cultur a i m a gi ná ri a e m q u e s e
banha o
Fada s n o Di v a — P s i c a n á l i s e n a s His t ór i a s Infanti s
a m bi en t e . Tal c o m o e m Tolkien, " con voca-s e i m p o n h a m respeit o para q u e possa m ser levado s gent e
um a em consum:
e n o r m e coleçã o de figuras da mitologia e cont a e, após , superá-los . É c o m o da r um salto, incapaz de qu;
ficção da para
tradição ocidental , para um extraordinári o tanto , é precis o um a bas e par a impulsionar , e gent e pobre d'
meetingie esta
um a g ra n d e salada ) no s c orr e d or e s e arredore d e p e n d e d o am adure ci me n t o assumid o e seu s pais
s da orgulhoso fora
escola. Você já penso u em ter o refeitório cie seu s pais, avós e professores. Convenhamos , é difícil lut a n d o por
invadid o po r u m Iroll. encontra r unicórnio s n o hoje encontra r gost o e orgulh o em ser mais velh o e se t poderes .
b os q u e , ter u m Ning
gigant e po r amig o e lutar contra cãe s de três apresenta r c o m o algué m q u e tem alg o a dizer. Ereud c<
cabeças , lobisomens , serpente s e aranha s gigantes , Resumindo , é mais fácil come ça r um a Romance
voar nu m adoles• Fam
hipogrifo e criar dragõe s de cênci a se m q u e esta esteja carregad a da filho. Ao contr
estimação? responsa•
A mitologia comparec e c o m o uma sabedoria bilidad e de ser o aug e da vida em termo s de gozo . ou preservaçã o
do c
passado , a mais indomesticada da s produ çõe s culturais, ainda de aponta r as tendência s para o n d e vamo s toclos. infância,'
dess
algo qu e segu e a o m e s m o t e m p o fascinand o e A idealização cia adolescênci a e n q u a n t o fase pu herdade
no s desafiando sobr e seu sentido. O esoterism o áurea c um fardo para os jovens. dei q u e
conte mpo • enfeitiça c
râ n e o dificilmente p o d e ser explicad o po r um m e nt e se
a s ó vertente, mas essa revalorização da mitologia enxi h u m a n a
(e ness e frágil
caso uma mistura de referências) parec e ir para a mesm a Órfão, mas nobre q u e só será
direção: uma crítica tanto espontâne a quant o ei inicia
ingênua â pretensã o totalizante qu e a ciência no s ários autore s têm a p o n t a d o um a naquele Boa
vende . estrutura similar â Ciih/erela em Harry part
Confiar no passad o c o m o fonte de sabedori Potter, afinal re sp o n d e aos r
a é u m alívio, poi s par a o s mai s joven s ê ^•J#*ÍS e e
' v > v e nu m b ur ac o e m b ai x o d a d e pais .
assustador escada, mas
percebe r qu e seu s adulto s espera m e n q u a n t o suport a se r maltratad o por acredita que pi
dele s o conhe ci ment o qu e deveria m oferecer-lhes. seu primo , q u e ganh a tu d o e principalment e um p o u c o importa
O s adulto s de hoje têm deixad o seu s filhos lugar no coraçã o do s pais. Nã o é errado , mas é um a seria a auto-ed
de sa m p a ra d o s . Eles saída muito
produzira m uma espéci e d e com binaçã o d e simple s para da r conta da comple xida d e desta as próprias ma
ne g aç ã o trama.
d o passad o co m obsessã o pel o futuro: vivem tentand o Além disso, para alicerçar ess e esque ma , só haveria o Poucos n
s e desconecta r d a própria origem e , a o m e s m o t e m p o início cie Ciuderela em c o m u m entr e amba s fantasia de
, histórias, ur
nutre m uma intensa expectativa d e uma ielicidad e pois . em Harry Potter. nã o há o event o do nasce r e
que reconheci• creso
o f ut u r o p o s s a o f e r e c e r . O p a s s a d o é ment o po r um olha r extern o am oros o qu e o ou prescindir
p a r a se r esquecido , o futuro e uma promess a de restitua, via casamento , â condiçã o nobr e anterior. Já qu e c n ã o cresce
gozo . traçar u m p a r a l e l o é u m a b o a f o r m a d e soz
Mimelizados co m a juventud e do s filhos, os au xi li a r n a co m p re e ns ã o , p r o p o m o s a utilização h u m an id a d e ?
pais hoj e n ã o p o d e m funciona r c o m o um a de um esquema f r e u d i a n o , qu e conté m ess a sociedad e de u
reserv a cie sabedori a qu e os auxilie a interpretar mesm a fantasia d e enjeitaclo, ma s co m outr o nosso
seu s impasses , pois ter vivido s u p õ e (ou deveria final. individu
se supor ) q u e se apren de u algo co m os erro s e Uma das fontes de empatia dessa história
os acerto s cometidos . pode
Eles quere m ver seu s filhos livres da sua conselho s o u limites serve m d e p ar â m etr o . pais
influência, c o m o s e esta fosse se r u m fard o O jove m p o d e at é esc olhe r contrariar e contem
m ui t o difícil d e carregar, esquecem-s e d e q u e seu s transgredir, mas os usará c o m o referência. Os porâneo
s não se conforma m aser compreendid a a partir de uma fantasia típica Um lugar
que
1 reucl denomino u de "Romance familiar do Neurótico'? p lP&"f#£
Nessa fantasia, imaginamo s sermo s filhos owlir j& > V "
adotivos, porqu e na verdad e pertenceríamo s a uma n:1
°~'
família em algum aspect o melho r do qu e aquela na qual
deriv
crescemos. Com isso. demonstramo s qu e nosso s pais
não estão à
'&ÀA
viver o t e m p o q u e lhes foi reservado , co m as limitações altura cio q u e sonhamos , qu e no s ama m pouco ou mal patet:
q u e esl e te m . E s p e r a m d e s e u s h e r d e i r o s e. em se u lugar, c o n vo ca m o s , em devaneios , "trouxa'
n ã o a s u c e s s ã o , ma s a font e d a j u v e n t u d e , outra família idealizada, seja de um amigo, cie uma deixa palavra
imita m su a obra de inventa
adolescência , ne g a m q u e a tendênci a natural é ficção ou aind a criada p u r a m e n t e na fantasia. um hábito adole
ser Esse
transcendi d o po r eles. Co m o mal admite m ser d e recurso ainda se presta para no s isentar de culpa relativa a ap o d o s nada ca
uma g e r a ç ã o a nt eri o r , t a m p o u c o s u p o r t a m o q u a l q u e r fantasi a e d í p i c a p e n d e n t e , afinal, Tornar-se
próprio se
passado , pois encara r seu s velho s e admitir-lhes alguma estivermos desejand o ou odiand o os progenitores. tanto ideais , de
prefe
sabedoria , lembr a q u e u m dia serã o c o m o faz, já q u e eles nã o seriam nosso s pais. caricatural da fa
eles.
Uma sociedad e precisa de velhos, mitos, monstro s e Harry acreditava q u e seu s pais morreram os joven s têm
d e regras q u e possa m ser respeitadas , ma s t a m b é num a c i d e n t e e p r o v a v e l m e n t e n ã o seria m ;
m diferentes q u e parece m
t
burladas. Os jovens necessitam de adultos daquel a família de trouxa s em q u e fora criado. mento e
que Uma curtos
258
D i a n a Li c h t e n s t e i n Cors o e Mário Co r s
o
criado . Uma
rrera m n u m
1 diferentes
otários, ingênuo s coloca-nos n o c e r n e d o
funcionament o adolescente . O s ad ult o s
pensa m tud o saber cio sistema qu e habitam,
A afinal sáo eles qu e o movimentam, eles têm o
palavra
"trouxa" controle do dinheiro, do s bens , da autoridade ,
é similar eles trabalham e já passaram alguma s vezes
ao pela experiência da escolha amorosa. Os
atualmen jovens sã o cheios cie intenções e tê-las é
te sinal de q u e se está próxim o cios seus
popula r
ideais. Q u e m tenciona idealiza, qu e m idealiza
"otário " ( q u
e há que r mais do qu e o medíocr e p r e s e n t e
al gu m a s of er ec e , q u e r t r a n s c e n d e r . Essa p osi ç ã o
d é c a d a s era p r e d i s p õ e a um a atitud e d e apreciaçã o
"careta" o u critica do s adultos, pais, substitutos e adjacências.
"quadr Os adultos estão vivend o a vida em seu m o m e n t o
ado") , mais serio e produtivo, os jovens estão planejando a
co m o sua e. para tanto, observam cuidados a e
qual detidament e o qu e nà o vao quere r repetir.
os
jovens 'frouxa s e patetas , ao s olho s
definem pretensioso s do s adolescentes , os adultos
algué m parece m ter perdid o o sens o crítico e
qu e é seriam incapaze s de se percebe r no pape l
tolo, ridículo qu e as vezes lazem na vicia.
qu e nà Qualque r hábito, estilo ou mania torna-se natural
o para que m se acostumou a viver co m ele. A vida
conseg vai delineand o alguns sintomas co m os quais
u e organizamo s essa estrutura mínima cie nossa
inserir- identidade, qu e os psicanalistas chama m de "ego".
se O adolescent e passa o eg o do adulto no
correta raio X. que r lhe ver a estrutura, a ossatura
ment e qu e o sustenta, tenta co mpre ende r além do
na qu e as aparências mostram. Por isso. muitas
vida vezes, os jovens parece m mais espertos,
ou no porqu e o pact o deles com seus sintomas ainda
grupo , está em negociaçã o e seu s ideais estão a flor da
qu e pele. enqua nt o para os mai s velho s o
na o ac or d o está leito e só será questiona d o
perceb e em momento s de crise da conjugalidade, do
as trabalho, do envelheciment o e do luto.
sutileza A p u b e r d a d e é o princípi o de tud o
s, ne m isso. poré m sem as facilidades da
tem o adolescência , na qual existe a possibilidad e
jogo de refúgio (ou ate m es m o cio exílio) no s laços
de fraternos e amoro sos . A história cie Potter,
corp o qu e inicia co m a p u b e r d a d e , oferec e ao s
necessá leitores dess a faixa etária um bem-vind o
ri o contat o co m uma versã o ficcional do romanc e
para familiar. Nunca será tão necessário o recurs o a
saber outra família, poi s a própri a jamais será tã o
se insuportável .
colocar Aquele s q u e tê m m e d o d a crise
n o adolescent e é p o r q u e n ã o prestara m atençã o a o
sistema. q u e s e process a po r
\ a
verdade
,
pensa r 2
o s 5
nao- 9
bruxo s
com o
tolos,
trouxas,
Fada s n o D i v a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infa nti s
Es p ec u la n d o u m p o u c o , p od er ía m o s pensa r
q u e a orige m de Harry seria c o m o a do Rei
Arthur, q u e teve, de certa forma, doi s pais.
Arthur foi e n g e n d r a d o a partir de um a figura
cie pai tendida .
A hisrória é a seguinte : Arthur era filho
da bel a Igraine, casada co m Gorlois. Duqu e cie
Tintagel. Ocorr e q u e o rei 1'ther Pendrago n era
ap ai x o na d o po r Igraine e. co m a ajuda do mag o
Merlin. se fez enfeitiçar para assumir a forma
de (íorlois. Com essa image m falsa, e n g a n o u
a d u q u e s a Igraine , q u e acreditav a esta r
encontrando-s e co m seu m a n d o , e dessa uniã o
resultou Arthur. Afinal cie q u e m el e é filho?
Para a mãe . a image m d o h o m e m qu e a
tecundo u era d e seu legítimo e desejad o marido ;
mediant e o feitiço, no entanto , a alma era de
outro . De q u e m é ess e corp o q u e gero u
Arthur? De certa forma ele e filho do inimigo,
do rival
([ue logo em seguid a veio a ser o
responsáve l pela mort e do marid o da mãe .
Co m o Potter. o futuro rei Arthur t a m b é m
cresce u órlào . poi s loi levad o p o r Merlin
para ser criad o em outra casa. ignorant e da sua
origem , co m forma de garantir sua boa
formação.
Hércules , o heró i da mitologia clássica,
també m tinha um a origem semelhante : sua
m a r Alcmena foi enga nad a po r Zeus . co m o
m e s m o estratagema, num a noite em q u e o marido .
Anfitrião, estava fora. Anfitrião volto u na man h ã
seguint e e enge ndr o u nela mais um filho.
Assim, ela acabo u te n d o uma gravidez
dupla , s e n d o q u e cad a b e b ê tinha um pai
diferente. Graças a isso. Hércule s tem um mei o
irmã o g ê m e o mortal, um pai terren o e um pai
celeste.
A princípio, Harry tem apena s um pai. Tiago
Potter. mas co m o está sempr e às voltas co m
seu inimigo, o assassin o d e se u s pais , est e
ex er c e um a pr es e n ç a constante , c o m o uma
sombra qu e o envolve. Vários indícios no s
mostram qu e Harry carrega consigo tantas coisas
do inimigo quant o de seu pai. Usa o mes m o tipo de
varinha de Yoldemort. é ofidioglota (fala a linguagem
da s cobras ) c o m o os de sua estirpe e. po r
pouco , o Chapé u Seletor nã o o destina para a
casa Sonserina. â qual pertence u seu
perseguidor. O feitiço destinad o a matá-lo,
q u a n d o ainda era bebê , impregnou- o com as
características de q u e m o lançou, e assim
noss o herói fica marcad o co m algumas qualidade s
de Yoldemort. A cicatriz na testa, qu e o identifica
tanto quant o seu nome , é o resto dessa operaçã o de
batism o de fogo. De sangu e ou não , os dois sã o
pais. pois legam marcas indeléveis em sua
história.
Na saga de Potter equacionam-s e e
u n e m doi s aspecto s complementares : temo s a
duplicaçã o da figura do pai, entr e um q u e é b o m e
Fada s n o D i v a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infanti s
nest e cas o artificial) d e q u e s e necessita para
crescer. Afinal, ao partirmos, precisamo s mais d o
q u e reminiscência s infantis, temo s d e levar
Acrescenta-s e aind a a colocaç á o dest e outr o
perso • co n os c o u m acerv o d e referências culturais
nage m patern o n a figura d o vilão. " co m a s quai s organizamo s um a identidad e
Para utilizar uma referência mais recente , própria .
basta evoca r a saga cinematográfica, escrita e
dirigida po r
(ieorg e Lucas, Guerra nas listre/as. 'Lambem
ness a história, o maio r inimig o do heró i
resulta ser se u p r ó p ri o e i g n o r a d o pai ( n u m
c o m b a t e final entr e ambos , ficamos sabend o qu e o
jovem l.uke Skywalker é. na verdade , filho de
Darth Yader, o vilão).
Por mais est ra n h o q u e pareça , t a m b é m
ness e aspecto , o herói de Rowling abr e um
cami nh o para identificações co m a vida de seu s
leitores. Afinal, um do s aspecto s da filiação na o e
lidar co m identificações qu e na o escolhemos , mas qu e
constatamo s ter h er d a d o de nosso s pais? I larrv pod e ama r
a seu pai sem reservas, poi s tod o ó di o fica
canalizad o par a Yoldemort . O m u n d o e p e q u e n o
para 1 larrv e Yoldemort. Lssa briga só terá fim com
a mort e de um . poi s os dois estã o e s p e l h a d o s
ness e ó d i o m ú t u o . Odia r faz part e cio conjunto
confuso d e e m o ç õ e s q u e dedica mo s a noss o pai.
atinai ele c o rival pel o amo r da ma e e po r
isso n ã o ve m nad a mal a idéia cie eli m i ná -l o
. Se lh e dedicamo s esses sentimento s na o muito
nobres , nad a mais natural q u e p e n s e m o s q u e ele
que r o mes mo : livrar-se cio filho na primeira
o po rt u ni da d e . Portanto, s e p u d e r m o s livrar n o s s o
pai d o pes o dess a rixa. e sc o lh e n d o c o m o
inimigo um vilão paterno, estaremo s isento s cia culp
a pelo s m a u s s e nti m e n to s dirigido s àquel e q u e
no s gero u e protegeu .
Mundos mágicos
ada mais c o m u m na infância q u e habitar
os m u n d o s mágico s q u e a literatura
oferece .
.,%, Ger alm ent e esse s m u n d o s constitue m
u m acerv o q u e se levará junto através da
adoles •
cência e talvez para o resto da vida. Yide o seu
mais meritório e popula r representante : a saga
O Senhor dos Anéis, de Tolkien.
Tolkien criou u m m u n d o d e ho m e n s e
rapazes , o n d e o s de s afi o s d a c o r a g e m e d o
c r e s c i m e n t o a c o n t e c e m n u m luga r marcaclameni e
diferent e d o cotidian o cios leitores e q u e beb e
seu s c o m p o n e n t e s imaginários na mitologia européia . A
o pe ra ç ã o de seu s livros é bem-feit a porqu e
pe r mi t e o trânsit o pel a tradiçã o (aind a q u e
O Senhor dos Anéis deu origem a um a brincadeira
adolescent e : os Role-Playing Games (RPG), ond e
se dramatiza m lutas e p r oe z a s n u m cenári o chei o
d e p e r s o n a g e n s inspirada s ness e imaginário . Pntr e
u m gr u p o d e iniciados n o conh eci men t o d a saga,
vivem- se aventura s e lutas semelhant e s ás cia Terra
Média. Gom o se vê. o m u n d o mágic o é tant o um
bo m livro, q ua n t o um lugar para brincar.1"
Rowling consegui u repetir essa proeza , levando
em cont a q u e hoje se cresc e mais cedo . Seus
livros sa o para um públic o mais jovem qu e os de
Tolkien
(geralment e lido na adolescência) . As personagen s dela s ã o
púberes. u m a faixa etári a q u e s e a mpliou ,
periclitante entr e um a infância q u e nã o se resigna
a termina r e q u e tem seu território invadid o po r
uma série de pauta s de condut a e vivências
adolescentes. A adolescência hoje é mais qu e uma
faixa etária,
e u m ideal social . Nã o h á a du lt o q u e n ã o
queira conservar o corpo , o entusiasm o sexual e a
possibi• lidade de escolha s do s 20 anos . Isso faz cia
juventude um fenômen o q u e penetra na infância enqu ant o
grande expectativa. Por isso. as crianças sã o convidada
s a se vestir e a consumi r objetos culturais próprio s
desse temp o qu e está po r vir. e as famílias tanto
valorizam quant o aplaude m tais iniciativas.
Independentement e disso, a puberdacle já marca
presença , enquant o essa fase em qu e a infância declina,
para horror de um sujeito q u e ainda é minúscul o para
freqüentar o mund o lá fora. mas qu e começ a a se
incomoda r co m seus pais e n qu a nt o eles ainda reinam
absolutos sobr e sua vicia. Atentos aos brotos cia
adolescência qu e nasciam
na sua criança, os adultos elevaram a puberdacle
(ou pré-aclolescência com o costumam chamar) ao slatits
de uma etapa da vida qu e dev e ser levada em conta, com o
qual as crianças de 9 a 12 ano s sei tiveram a ganhar. Lm de
seus bon s lucros é Harry Potter. qu e importa todos os
benefícios do imaginário á maneira de Tolkien para seu
momento , tend o gent e cie sua idade com o protagonista.
Além disso, esse s universo s mágico s para uso
do s adolescent e s e p ú be re s representa m um
espaço de realização possível para uma nostalgia
mítica, algo q u e no s permitisse acess o a um a
sabedori a vinda do passad o e Lima supost a co n e x ã o
co m nossa s raízes. Grescemo s sem muit o contat o co
m as geraçõe s que no s precedera m e sem nota r a
continuida d e qu e existe entr e o qu e somo s e a história do s
nosso s antepassados. Isso n ã o é exclusiv o dess a
geração , outra s já não se r e c o n h e c e r a m na tradiçã o
e na religião do s pais e escolhera m crença s
alternativas.
A religião n ã o vive grande s dias, os
fundamen- talistas sim. e isso é mais um indício da crise das
religiões
Di a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Co r s o
lugar de origem. Mas c o m o n ã o p o d e m o s ficar
se m
d o q u e d e u m avanç o da s crenças. S ó pela
força d o fanatismo e obscurantism o é possível,
atualmente , uma religião ganha r adeptos . Conto hoje
esta cad a vez mais difícil acreditar em qualque r coisa, a
magia p o d e entrar no imaginário infantil no lugar
de.ssa religião perdida . Afinal, é um a magia pela outra, e
a magia tem vantagens, é u m substitut o qu e
ap r ox i m a a s cultura s p o r se r universalista. qualque
r criança, das mais variadas origens culturais, pod e
experimenta r nela a nostalgia de uma religião qu e
já nã o lhe serve mais.
A outra vantagem da magia é nunca ter sido
um pensament o dominante , sempr e esteve ã margem, nã o
e responsabilizada po r no s legar uma herança difícil,
ela sempre foi um conhecimen t o subterrâne o recusad o pel
o eslciblisbmeiil, a adversária eterna das religiões.
Com o nunc a foi u m sistem a d e p e n s a m e n t o
totalizad o e coerente, pod e ser moldad o hoje ao
noss o bel-prazer. Na verdade, qu a n d o falamos magia,
estamos colocand o no mesm o caldeirão conhecimento s
antigos estruturados, como a astrologia ou a
alquimia e tod o um conjunto disperso de mitologias
e superstições medievais, enfim, tudo qu e é prê-
científico. Kste e o saber de Hogwarts, um
renascimento âo m u n d o anterior â ciência moderna .
Entre a ciência e a religião, a autora encontra um a terceira
via: o medievo , q u a n d o as dua s eram confundidas.
Na medida em q u e a magia é um conjunt o de
práticas objetivas, pelas quais é possível dominar e
produzir os efeitos no desconhecido , ela se
apresenta com o uma forma ad e q ua d a de
religiosidade para nossa cultura pragmática e co m
a tendênci a a instrumentalizar os saberes, afinal
ela nos tira da passividade da religião.1, P o d e m o s
arriscar ainda outra hipótese , q u e seria
a generalizaç ã o d e u m f e n ô m e n o verificável
clini• camente e m certo s jovens: existe nele s um
a gr a n d e dificuldade e m estuda r a história h u m a n a ,
poi s co n h e • cê-la fere tant o sua sensibilidade , quant o
seu narcisis- mo. Toma r e m p re sta d o u m univers o mágic
o passadista significa alg o c o m o "eu n ã o t e n h o
nad a a ver co m todos esse s fatos
c o n s t r a n g e d o r e s d a historia d o s homen s e n ã o
q u e r o sabe r mais nad a a respeito". A história
h u m a n a e , par a usa r um a metáfor a velha ,
porém precisa, um rio de sangue . F.la no s traz
mais motivos d e vergonh a q u e d e orgulho .
Esses joven s resistente s ã históri a
g e r a l m e n t e possuem u m ganch o específico po r
o n d e sã o pegos , particularidades obscura s e
sofridas da vida de seu s antepassados estão
engajadas em sua recusa, tais c o m o escravidão,
genocídio s diverso s ( c o m o culpado s o u vítimas);
além disso, é difícil també m enfrentar q u e seu s avós
migraram porqu e era m un s morto s d e fome n o
história , entã o al g u n s j o v e n s usa m a
ficção par a preenche r a real história da qual .
queiramo s ou não , somo s o resultado. Nã o se trata
de um delírio, mas de fantasias sobr e u m passad o
h u m a n o meno s cruel, mais heróic o ou mais
distante de nós. Claro qu e elas são c o m o um a
prótes e malfeita, ma s pode m pr ee n ch e r
temporariament e uma busca pel o passado .
A sociedade em Hogwarts
- <£»•»?•» prim o trouxa de Harry e um menin o obeso ,
ft J** mi m a d o e desleal, o qual . junt o co m
sua
-^ .*• , família, permit e a Rowling um a ácida
crítica a o individualismo e ã
sociedade de
consu mo . Seu lugar em casa é a caricatura do
majestoso e ilimitado e s p a ç o q u e a s famílias
c o n t e m p o r â n e a s mais favorecidas têm reservad o a
seu s filhos.
Outr a crítica da qua l o br u xi n h o e
porta-vo z encontra-s e no co nt e ú d o voltado para
a questã o da tolerância. As várias procedência s do s
bruxos se prestam para levantar questõe s raciais, e nisso
I larry e definitivo: o herói é intolerante para com os
intolerantes. Defende q u e todo s o s bruxo s sa o iguais,
independentement e d a c o nd iç ã o d e seu s
nascimentos : s e seu s pais seriam bruxo s puro-
sangu e o u não , p o u c o importa. J á sua opiniã o
sobr e os trouxa s e benévola. sao un s otários,
mas nã o deve mo s odiá-los ou destruí-los.
Os X-Man. herói s mutante s do s
quadrinho s de autori a d e Stan Lee. d e b a t e m -
s e co m a s m e s m a s que stões : deve m devolver
a hostilidade da qual são alvo po r sere m
diferentes? Nessas histórias, o elitismo é mai s
de sc ar a d o , ele s sa o d e tat o superiore s ao s
outros , pois . enquant o mutantes .
desenvolvera m capacidade s qu e o s torna m
mai s dotado s qu e o s h o m e n s co muns .
Provavelmente , essa superioridad e sobr e o s outro s
h u m an o s , qu e o s podere s empresta m ao s mutantes .
serve c o m o co mpe nsaç ã o pelos intensos sofrimentos
qu e esse s mesmo s don s lhes impingem, ta n t o
p r o v e n i e n t e s d a e x c l u s ã o social, c o m o da s
dificuldades de control e dessa s forcas. Por outro
lado. os mutante s fazem a ligação com um aspect o cie
Potter q u e dev e se r ressaltado : o do m mágico
se revela de tal forma par a seu portado r q u e se
impõ e a ele co m o algo q u e dev e ser controlado , cujo
us o prático depe nd e de um a iniciação e de certa
força para dominá-lo. E difícil imaginar melho r
metáfora para as "mutações" e os fenô meno s q u e
aco mete m o corp o e a mente das c r i a n ç a s
quand o chega m ã puberdade : desd e o
cresciment o de pêlo s e volumes , ã saída de líquidos
e sangu e d e seu s órgão s genitais, à s
transformações d a
Fada s n o D i v a - P s i c a n á l i s e n a s História s Infa nt i s
saga q u e fornece um bo m índice. O trech o
é o seguinte : Harry Potter, em mei o a sua s
an d an ç a s pel o castelo tle Hogwart s
voz. ao s calore s e rubores . Ilaja magia para (era d e s e espera r q u e essa escola fosse
domina r tanta mutação . sediad a n u m
Com o cm toda a ficção qu e se apoia em
nossa historia passada . Marry Potter carrega traços
de uma nostalgia do m u n d o do ancién redime, qu e
parece uma sociedade mais fácil de decodificar, em qu e
que m é bo m é bom . que m é nobr e o e desd e sempre.
l;m (iiienii nas Estrelas, po r exemplo , reúnem-s e as
dua s pontas : o passado e o futuro. Para tanto, se
projeta uma tecnologia avançada dentro de um cosm o de
relações sociais pratica• mente feudais. Nao estamos em
um terreno novo. quas e nã o há cont o de fatias sem
reis. rainhas, príncipes e princesas, mas nos contos
tle fadas o aspecto social ná o e tão relevante quant o nessas
c< instruções pseudomíticas. Afinal, naquele s cenários,
a sociedad e na o importa, e apena s pan o de fundo, os
reis estão a ser\ iço tle projetar os pais engrandecido s tia
primeira infância.
\ e s s a s histórias de mitos artificiais, utiliza-se
um uni vers o tle fácil compreensão , se m
n u a n c e s . D e q u a l q u e r fo r m a , e interessant e
qu e s o c i e d a d e s democráticas, em qu e a
mobilidade social e a tônica, forjem histórias nas
quais o qu e vale e o nascimento . Embora a
história tle Rowling milite em prol tle qu e o berç o
nã o faz o bruxo , há a revelação tle um do m
inat o q u e diferenci a a q ue l e s q u e nasce m entr
e o s trouxas, mas sao apto s a lidar co m as
torças ocultas.
\ â o tleixa tle ser algum tipo tle determinism o de origem.
P ar ec e q u e a s s o c i e d a d e s aristocrática s
náo
perderam seu fascínio. O próprio Potter nasceu
bom . embora lute com algumas ambigüidades, jamais
supomo s q u e ele vai muda r tle lado. Ele apena s busca
aperfeiçoar- se. mas ele já está pre-pronto. basta a
escola e umas avent ura s e m q u e o s d o n s j á
h e r d a d o s possa m s e desenvolver. Esse e o aspecto
mais fraco e conservador da aventura, mas c bo m
levarmos em conta qu e c uma obra para que m mal saiu
tia infância, e o alcance político delas talvez na o vá mais
longe tio qu e isso.
A psicologia de Rowling
ifsnrç*- ao é tia nossa, alçada discutir o valor literário
» í 6g*"- da a u t o r a , e n q u a n t o p s i c a n a l i s t a s
só
»- \& & p o d e m o s julgar a q ual i da d e de um a
obr a
íiarr ** * ' • V , , , -
• ,
pel a p r o f u n d i d a d e psicológic a q u e ela
e capa z tle atingir e sobr e c o m o ela oferece
e s q u e m a s q u e c ol oq u e m as criança s a pensar. Quant o
a isso. há um a passage m do primeir o livro cia
castelo maravilhoso) , desc obr e num a sala determinado
objeto , q u e depoi s ficamos s a b e n d o tratar-se tle uni
espelh o mágico , d e n o m i n a d o Espelho de Ojesed.
Potter corria pela escola, fugitivo tle alguma das
peripécia s q u e tinha a pr o nt a d o e ocult o po r uma capa q u e
o tornava invisível. Q u a n d o entro u nu m aposento, uma sala
tle aula a b an d o na d a , de parou-s e com um objeto qu e
parecia discordar tio contexto: um majestoso espelh o tle
moldur a dourada . Ainda invisível, ele viu o reflexo de
sua image m e tle uma s de z pessoas , que log o conclu i
se re m s e u s pai s a c o m p a n h a d o s dos parente s bruxo s
tle linhagem paterna , tle qu e m crescera afastado, aquel a
família qu e perde u co m a morte tle seu s pais. De
dentr o tio espelho , uma mulher, sua mae . lhe
a b a n a \ a simpaticamenl e . Triste, constatou qu e "Ida e os
outro s so existiam no espelho" . E correu para chama r seu
amig o Ronv. q u e viu n o espelho uma cen a
totalment e diferente: estava refletido seu futuro c o m o
chefe tios monitore s e capitã o tio time tle quadribo l
tle Hogwarts .
Entalhado no alto tia moldura tio espelh o lia-se:
"Não mostro seu rosto, mas o desejo em seu coração",
estava escrito tle trás para a frente, para ser lido
num espelho, assim co m o Ojesed é a palavra "desejo"
escrita ao contrário. Objetos mágicos costumam ser instrumentos
para ajudar o herói a vencer um desafio ou atingir um
objetivo, tláo poderes . Mas com os espelho s é diferente, eles
sempr e revelam algum tipo tle verdade. Às vezes ele e
um dupl o qu e no s surpreend e em pleno ato de
observar nossa alma. O fato de Harry encontrar-se com o
espelh o pela primeira vez q u a n d o estava invisível
ressalta qu e o reflexo na o será tia casca, mas tia essência
imaterial tio herói. Esse tipo tle espelho , com o o da
bruxa de Branca de Neve. permite acesso a uma verdade qu e
está inalcançãvel para o sujeito. O espelh o faz com as
personagens o mesm o qu e com a palavra ojesed-desejo. tlesinv
erte, para qu e aquilo qu e já estava escrito pudesse ser lido. só
dependi a de ser decifrado.
Q u a n d o o m e st r e Du m bleclor e descobri u os
menino s fascinados com as imagens qu e o espelho lhes
oferecia, esclareceu: ele "mostra-nos natla menos tio que os
desejos mais íntimos, mais desesperatlos de nossos
corações". E nesses detalhes qu e a riqueza tio texto de
Rowling se mostra, ness e caso, oferece às crianças um
objeto mágico para apresentar o qu e se oculta de forma mais
enigmática na nossa alma, os nossos desejos. Nisso a
psicanálise está de acord o co m a autora, é neles que
reside nossa verdad e interior, o maior segred o de cada um
sào os desejos qu e se desnuda m quand o as aparências s e
t o r n a m i n v i sí v e i s . Is s o é o q u e podería m o s
compreende r co m o u m espelh o mágico psicanalítico.
Di a n a Li c h t e n s t e i n Cor s o e Mário Co r s
o
Han y é um herói melancólico , a perd a do s
pais é incontornável , e ele, de tant o em tanto , se
Han y é movid o pela busca de compreende r abat e
sua origem e de encontrar lugar num a linhagem, já seu
amigo Rony, oriund o de uma família de muitos
rapazes, todo s lutando po r u m lugar a o sol n o
m u n d o do s baixos , precisa vencer. O qu e ambo s vêem
é a tarefa concluída, é o reflexo do ideal qu e se constrói a
partir de um desejo. Kowling parec e saber qu e tod o o
desejo tem uma fantasia qu e o representa, e esta
qu e encontramo s em nossos devaneio s de sucess o
ou vingança, é esta qu e move o sujeito em
determinad a direção . O espelh o lembra q u e a
escol a é a me s ma , os desafio s e as aventuras
tamb ém , ma s cad a pers onage m tem um a tarefa
distinta na gincana da vida. K essa tarefa, inscrita nos
mais secretos esconderijos da mente , o verdadeir o
motor q u e leva o sujeito adiante . Ao m e s m o tempo ,
o espelho paralisava os heróis, pois ficavam
fascinados com a miragem do seu desejo e na o
se movia m no terreno concret o para consegui-lo.
O espelh o teve cie ser removid o para devolver nosso s
protagonistas a acào . Outr o exempl o psicológico
interessante é a con•
cepção d e depressã o qu e encontramo s e m uma d e
suas criaturas. C) monstro mais aterrador do universo
potteriano é, até agora, a figura do Dementador. Os
Dementadore s são os guardas da Prisão de A/.kaban. qu
e comparece m à escola caçand o um prisioneiro fugitivo, e
suas presenças passam a ameaçar també m os alunos. Mies
são um perigo principalmente para Hany. qu e se
revela mais sensível que os outros á sua aura
maléfica.
Fies parece m parentes do s Xazgul. descritos em O
Senhor dos Alieis, qu e també m são espectros qu e
trazem o mal pela sua simples presença . Os
Dementador e s roubam a forca vital, sugam as boa s
lembranças. Depois de encontrar um deles, uma
pessoa se sente com o se nunca mais fosse ser feliz
na vida. Ser influenciado po r eles assemelha-se a viver
nu m pesadel o do qual nã o se consegue acordar. Mas é
preciso esclarecer qu e eles nã o oferecem um conteúd o qu e
nos taça sofrer, apena s criam o clima para qu e fiquemos
reduzidos a nossa pior face. Os De me ntador e s
corporificam Lima novidad e no
mundo do s monstros . O terror psicológic o já é c o m u m
nos quadrinhos , cujos heróis seguidament e s u c u m b e m
sob o p es o de seu s pesadelo s , e. na literatura, sempr
e foi uma matéria-prim a preciosa . Mas agor a
estamo s falando de sere s terríficos qu e se
populariza m entre- os mais joven s e p o d e m ser
usado s po r eles c o m o a cara conte mporâ ne a d o
m e d o . Até agora, q u as e todo s os monstro s conhecido
s mach uca m , cortam , clecepam, engolem e mata m
sua s vítimas, sã o diferentes deste s cuja arm a é a
tristeza.
s m u nd o s mágicos do s conto s d e fadas, ond e tud o
é reversível, inclusive a morte . O
pel o pe s o d o passado . Por isso. q u a n d o o s
Dementa • dore s ron da m Hogwarts . ele é o mais
afetado, a p o n t o de desmaia r na presenç a
deles. Afinal, o herói tem p ou c a s defesa s
contra esses sugadore s d e boa s lem• branças ,
sua s recordaçõe s boa s sao exíguas. O fato é
q u e temo s um a excelent e imagem d a
depressão , tão consistente , principalment e para
um públic o jovem, q u a nt o o melho r livro de
psiquiatria.
Para sintetizar: a depr essã o e uma
tristeza q u e no s engolfa, q u a n d o o s laços
afetivos (nossa s boa s le mbra nças ) q u e no s
segura m c o m o nu m a teia s e desfazem . Kntáo
sobreve m o vazio e caimo s no chão . Os
psicanalistas n ã o teriam muito a objetar a
Kowling, é claro q u e acreditamo s qu e em
geral o dementa do r está na nossa própria
trincheira, ou seja. q u e a maio r fonte de do r
p r o \ é m de nó s mesmos . A arte é um a forma
prévia de sabedoria , escreve-s e so b forma
de literatura aquil o qu e sabemo s d e forma
intuitiva, nã o teé)rica. Hoje ne m as crianças
ignoram os perigo s da tristeza. Melhor assim,
c o n h e c e n d o o s contorno s d o monstr o fica
mais fácil combaté-io .
l : m a da s pr eo c up a çõ e s recorrente s do s
críticos dessa s ficcòes indaga se estes m u nd o s
mágicos nã o induze m um bovarism o nas crianças.
Ou seja. o temo r de q u e a fantasia atrapalh e a
assimilação da realidade po r facilitar o escap e
da criança, por preenche r sua cabeç a co m
sonh os , po r lazê-la habitai" mun do s imagi• nários .
Acreditamo s q u e e uma p r e o c u p a ç ã o co m
p o u c o fundamento : as crianças, fora as
gravement e perturbadas , sabe m a diferença entr e
a ficção e a rea• lidade , ou . n u m nível mai s
simples , distingue m a brincadeira da realidade .
Nao e necessário ficção, ne m fantasia, para a criança
ir a outr o mun do , basta começa r a brincar co m
qualque r pe da ç o de macieira ou pedrinh a q u e
encontr e n o caminho .
De q u a l q u e r forma, essa e um a
p r e o c u p a ç ã o desnecessária quant o a Kowling, já
qu e o seu universo é de uma magia com me no
r alcance inclusive qu e a do s conto s de fadas.
Para esta autora, a magia existe, mas ela nã o
p o d e tudo , e a maior parte das conquistas tem cie
ser feita co m muito esforço, se nã o fosse assim, os
protagonistas na o estariam numa escola, por exemplo .
l : m a prova dessa s boa s dose s d e realidad e
q u e s e misturam á fantasia nesse s livros é a
recorrência da morte, a qual. com o no noss o m undo ,
nã o tem conserto. Um do s eixos da trama é a
assimilação dolorosa
da mort e do s pais de H an y e nã o há magia
capaz de ciar jeito nisso,1 ' ele terá de sofrer,
conformar-se e ainda encontr a r forças par a segui
r vivendo . Ora , isso no s distancia e m muito do
Fada s n o Div a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infanti s
alimentand o
a s t u a n c a s b r a s i l ei r a s c o m f ol cl o re s
alheios. O
u n i v e r s o d e Ro wlin g n ã o p o u p a a s criança s engi a t a d o e q u e o s conto s d e fadas traze m todo s
d o s inevitáveis sofrimentos advindo s do esse s
crescimento . As personagens , co m o costuma
acontece r co m o s adoles • centes, se machuca m
muito, e isso nã o acontec e sem dor, ne m sem
conseqüência . \ a enfermaria d e Hogvvarts. u m ferimento
grave p o d e até ser reparad o com poçõe s mágicas, mas
o doent e passará po r um tratamento sem muita
anestesia e co m remédio s be m amargos.
Há mais um exempl o interessante da
psicologia d e Rowling . u m pouc o mai s
i n c l i n a d o p a r a a antropologia. O arquiinimigo de
llarry. c o m o vimos, e Yoldemort. mas ningué m fala
seu no me . apena s dizem
"rocê-scibe-queni" c todo s sabe m de q u e m se trata.
Hssa atitude supersticiosa e motivada pel o medo .
pois falar seu nom e nã o e de bo m agouro . A
autora retoma um uso . o u melhor, um a evitaçá o
q u e era c o mu m e m tempo s passados, quant o a
pronunciar o no m e do diabo. Acreditava-se que . caso
talássemos seu nome . ele se sentiria convocado .
Ainda hoje os dicionários conservam uma quantidad e
incrível de circunv olucbe s qu e eram feitas para
evitar dizer o nom e do "coisa-ruim". Claro qu e nã o
necessariament e a s crianças sabe m disso, mas com o
todo s já passamo s po r uma fase infantil em qu e
acreditávamos na magia da s palavras, somo s
sensíveis ainda, já qu e temo s uma matriz
supersticiosa a esse respeit o q u e basta sabe r
convocar. \ o lunclo. ainda acreditamos qu e as
palavras têm um pode r sobr e as coisas e vice-versa,
com o se uma ligação mágica existisse entr e a palavra e
a coisa.1" A autora soub e desperta r uma certa
magia qu e ainda no s habita.
1-ntim. sa o e x e m p l o s ilustrativos. O livro
está rechead o de situações com o essas, para cada
aventura
(e elas são be m emocionantes ) ha tuna
contrapartida psicológica. As personagen s de Rowling
participam de lutas, correrias e sustos, com o nu m bo m
filme de ação. mas nã o são po r isso personagen s
plana s ou práticas, sempr e há a hora da duvida, do
impasse ou da ressaca psicológica. Certamente o
leitor q u e conheç a o texto d e liarrv Potter
poder á evoca r outra s c o n e x õ e s o u exemplo s
similares ou melhore s qu e os qu e convocamo s para
ilustrar essa qualidad e do texto.
266
Di a n a Li c ht e nst e i n C o r s o e Mári o
Co r s o
leitor uma visão fantasista da vicia, típica da
infância, ofere•
pererê, q u e ele explor a tã o bem . O s gregos ,
norte - americanos e e u r o p e u s q u e visitam o sítio
o fazem p o r q u e ne m Lobat o ne m a s
c r i a n ç a s p o s s u e m fronteiras, sã o onívoro s e tod
a a ficção q u e seja cie qualidade é bem-vind a
em sua s terras.
O Brasil m u d o u de lugar, a cidad e é agor a
noss a realidade. C o m o qua lque r País. somo s Iruto
d e uma fusão cultural, n ã o existe autoctonia .
so m o s o resul• tado d e um a confluência q u e nã o
terminou . Influên• cias externa s se g u e m m o l d a n d o
noss o País. e nt ã o po r que devería mo s fixar-nos
nu m moment o particula r dessa identidad e
mutante? Nino. o heró i do castelo, embora nascid
o aqui . é de uma família q u e ve m de outro
país . r e p r e s e n t a n d o to d o s o s imigrante s q u e
fizeram o Brasil e, ness e caso . São Paul o (n ã o é à
toa que ele tem um n o m e q u e soa italiano). As
crianças identificam-se co m Nino . poi s ele é com o quas
e todas : urbano, d e sc en d e nt e d e imigrantes q u e
trouxera m sua cultura e esperança s par a este País.
Acreditamos q u e a primeira pergunt a q u e
deve • mos fazer a um a obr a de ficção infantil é o
q u a n t o ela e m p re s t a às criança s elemento s
par a qu e s u a imaginação e inteligência sejam
estimulada s e n ã o qual país de orige m const a em seu
passaporte . De qualque r forma. Nin o é a p ro v a
q u e Harr y Potte r o u a lg o parecido be m poderi a
ter nascid o no Brasil.
Notas
1. Contemporâne o ao sucesso de Potter. houve
outra epidemia bruxesca (especialmente entre as
meni• nas). Trata-se de uma série de revistas
chamada W.I.T.C.H. (originalme n t e criada s
pela Disne y italiana, espalharam sua influência
pelo resto do mundo) , qu e retratava em
quadrinhos os revezes de um grup o de cinco
feiticeiras pré-aclolescentes. Assim com o no s
livros de Kovvling, para essas mocinhas, as
descobertas relativas ao mund o mágico se mesclavam
com os impasses próprios da idade, como as
transformações físicas, os primeiros amores, o mau
humo r em casa e o tema do s segredos. A
partir de 200S, as bruxinhas tornaram-se
também desenh o animad o de TV.
2. "A fantasia potteriana nos oferece, com uma mão, o
prato da bruxaria e do misticismo, e com a
outra nos dá uma dose forte (e crítica) da realidade
atual. A série não arranca o leitor do solo firme da
realidade para conduzi-lo ao reino da fantasia, mas
quase ao contrário - a história compartilha com o
responsabilidades, realmente tal ato pod e representar
uma espécie de abandon o num momen• to crítico.
Em termos do jogo, ou do jogo da vida,
cendo-lhe um caminho seguro para transitar
dela para a dura vida do mund o teen". In: FISCI
IF.R. Luís Augusto. Os Sele Segredos de Ilany 267
Potter. Revista Superinteressaule. Fcl. Abril. n.
196. janeiro de 2004.
3. "Hogvvarts está dividida em quatr o
Casas, qu e t u n c i o n a m com o equipes :
I.uta-lufa, Corvinal, Sonserina e Gritinória. Os
nomes originais guardam conteúdo s qu e a
tradução nã o tinha com o manter: Huftleput traz
a palavra bit//, 'acesso de cé>lera': em Ravenclavv.
lemo s rareu. 'corvo", e clavv, garra':
Slytherin começ a com sly. 'astuto' ,
fingido": e Giyffindor pod e ser associado ao
grito, animal com asas de águia e corp o de
leão que protegia um tesouro . Aliás, em
quas e tod o o nom e a autora embute um
segredo a ser desvendado", ldem.
-l. Consideramos a fase pré-escolar como escola,
afinal, ela sé) é pré no nome. V. a escola para aquela
fase da vida. e mesmo as creches possuem
hoje uma forte inclinação pedagé>gica. c seu
modelo cie funcionamento é a escola ou uma
preparação para ela.
5. Numa leitura psicanalítica de Ilany Potter.
Alfredo Jerusalinsky e F.da Tavares tecem uma visão
elogiosa e interessante cie I Iogvvarts: "l"ma
escola que . em lugar cie ensinar os princípios do
positivismo técnico, transmita os modo s e as
vicissitudes do laço social. Que. em lugar de
preencher todos os buracos, deixe espaço e
mistério suficiente para o surgimento da
curiosidade. Que permita a dúvida, a vacilacão e
ate
0 absurdo para dar âs crianças a chance de
responder de um mod o singular, com o
mestres criadores e protagonistas ativos. Que
ensine como e quais os efeitos de nossa
imaginação sobre a realidade, nos fazendo
responsáveis dessas conseqüências, embora elas
escapem ao nosso controle". "Harry Potter e
a Magia cia Vida". Caderno cie Cultura, /on/rt/ Zero
Hora.
1 cie dezembro de 2000.
6. Fstamos referindo-nos ã trilogia O Senhor dos
Anéis. cie J.R.R. Tolkien. qu e tem extensas
comunidades de fãs. deu origem a jogos e
embalou as fantasias de mais de uma geração.
O surgimento recente dos filmes reacendeu a
paixão por esse mund o mágico e suas
personagens. A 'ferra Média cie Tolkien é
morada dos devaneios de um público
jovem, mas mais velho do qu e os leitores de
Kovvling.
~\ VCinnicott. em um belo texto chamad o A
Imaturi• dade do Adolescente, escrito em 1968.
comenta esta tendência, qu e pelo jeito não é
de hoje: "quando, com o fruto de uma
política deliberada, os adultos transferem
Fadas n o Diva - Psicanális e n a s História s Infantis
Rio ele Ja ne ir o : C o nt r a p ont o . 2004 . p. 105.
v o c ê abdic a j u s t a m e n t e q u a n d o o a d ol e s c e n t e
vai t e mata r (el e s e refer e à s u p e r a ç ã o d o s pais) .
Al gu é m fica feliz? Se m d ú vi d a , o a d o l e s c e n t e n ã o
Fica: é el e q u e a gor a s e t or n o u o e s ta bl is hm e n t .
Tod a ati vi da d e i m a g i na t i v a , t o d o o i m p u l s o d
e imaturidad e s e p e r de m . A rebeliã o nã o
faz m a i s s e n t i d o , e o a d o l e s c e n t e q u e ga n h a
o j o g o m ui t o de pr e s s a lo g o é a p a n h a d o e m su a
própr i a ar m a dil h a ; te m q u e s e t o r n a r d i t a d o r ,
te m que fica r a g u a r d a n d o s e r a s s as sina d o —
se r m or t o n a o p o r u m a n o v a g e r a ç ã o ele s e u s
próprio s f i l ho s , ma s po r irmãos. " In:
WIWICOTT . 1). \\\ . 'indo Começa em Casa.
Sã o Paulo : Martin s Fonte s . 1989. p. 125
8. "A i m a g i n a ç ã o da cria nç a e n t r e g a - s e ã taref
a de libertar-se d o s pai s q u e de s c e r a m e m su a
estima , e d e substituí-lo s po r outr o s , e m gera l d e
u m a pos iç ã o social mai s elevada. " In: FR1T I).
Sigmunel. Romances
1'amiliarcs. O br a s C om pleta s , voi . IX. p. 2-ta. Rio
de
Janeir o : l m a g o Kditora. 1 9 8 - .
9. " \ a ve r d a d e , t o d o e s s e esfor ç o par a substitui r o
pai ve r da de i r o p o r u m q u e lh e e .superio r n a d a
ma i s e d o q u e a e x p r e s s ã o d a s a u d a d e q u e a
crianç a te m tio s dia s felizes d o pas sad o , q u a n d o o pai
lhe pareci a o mai s n o b r e elos h o m e n s e a m ã e
a mai s linda e a má v e l da s m ul her es . " . kleiii , p .
2a0 .
10. O s tradut or e s brasileiro s d o livro d e Samdja.
Angel a Ramalh o Viana e Antôni o Monteir o Guimarãe s ,
faze m outr a pr opos t a d e t r a duç ã o par a o t e r m
o miigí>lc. s uger e m q u e : " o t e r m o inglê s e
pr o va ve l m e n t e u m a de f or m a ç ã o ele mugger . q u e
significa 'agressor' , e te m de s s e m o d o c on ot a ç õ e s
b e m m e n o s br a nd a s q u e a e xpr e s sã o (trouxa )
escolhid a pel a tr a duç ã o brasileira". In: SMADJA.
Isabelle . Ilarry Pol/er: as Razoes do Sucesso. Rio
de J ane ir o : C ont r a po nt o . 20(M. p. 9.
11. Isabelle Samdja e nr i q u e c e aind a mai s esta
que s t ã o , m e n c i o n a n d o a surpreendent e
m u l t i pl i c a ç ã o d a s figuras p a t e r na s , n a o a p e n a s
num a divisã o m a ni - queista . m a s atravé s d e
vária s figuras: "Tiag o Potter. D u m bl e d or e , Sirius
Black. I lagrid. I.upin. S na p e e o pr ó p r i o
Voldemort.. . H s u r p r e e e n d e n t e q u e ta nt a s pe s soa
s reivi ndi que m a p a t e r n i da d e d e Harr v Potter. ou
o pa pe l ele um pai ou ele um protetor . Que se nt i d
o atribuir a ess e e s ti l ha ca m e n t o elas figuras
paterna s ? Além ele permiti r explica r a ambivalênci
a ele senti • m e n t o s e x p e r i m e n t a d o s p o r u m lilh o
e m relaçã o a o p a i , ess a divisã o decert o
tradu z a s d i f e r e n t e s e xper iê nci a s q u e u m a
crianç a poele ter d o valo r d e se u pai.". In:
SAMDJA, Isabelle . Ilany Potter- asRazòes do Sucesso.
12. Os jogo s ele RPG tra nsce nder a m ao imaginári o ela Terra Média
e hoje há variante s ele toelo o tipo , desele os cie franc a
i ns pi r a ç ã o e m T ol ki e n . c o m o Dungeons c - Dragons.
at é out r o s m u n d o s a i n d a mai s sombrios, habita d o s
p o r vampiros , l obi s om e n s e outr o s tipos de c o nde na d o . Para
sabe r mais , ver: RODRIGIFS . Sônia. Roleplayíng Carne e
a Pedagogia da Imaginação no Brasil. Rio ele Janeir o :
Hertrand Brasil. 2001 .
13. A magi a guar d a c o m a religiã o o fascínio e o respeito pel o
de s c o n he c i d o , e l e va d o ã c o n d i ç ã o d e entidade, m a s
compartilh a c o m a ciênci a a objetividad e com a qua l
enfrent a ess a ignorância : "A essênci a ela magia e a
d o m i n a ç ã o elos p o d e r e s supra-sensívei s , escreveu Prazer , ao
p a s s o q u e a e s s ê nc i a ela religião e o a b a n d o n o ,
a entre g a de si, o o b s é q u i o , a submissão á su a
s ober a n a vo nt a d e . As religiõe s monoteístas - j udaís m o ,
cristianis m o e islã - leva m isso ao pé da letra. Na o e
à toa q u e a palavr a 'íshlam ' que r dizer justa me n t e
s ubm i s s ã o' . A religião , noutra s palavras, é o conj unt o
ele' pratica s q u e n o s permite m motivar o s s e r e s s upr a -
s e n s í v e i s . d o t a d o s n ã o apena s d e p o d e r e s s o br e -
h u m a n o s , ma s t a m b é m ele persona• lidad e e v o n t a d e
livre, e n q u a n t o a magi a transforma o s d e u s e s e m
es cr a v o s elo homem . Convoca-os e c ontr ola - o s
autoritariamen t e em funçã o elo objetivo elo client e
pa ga nt e . Fia n ã o or a n e m suplica: submete- o s a o p o d e r
ela for m ul a m á gic a " . In: PIFKFCCI, A ntôn i o Flávio. .1
Magia. São Paulo : Publitolha, 2001, p . S T .
1 i. "K nqua nt o a m o r t e é completa me nt e - banalisada e
des uma ni zae l a n a s d e m a i s obra s , em Rowling ela é
vi vi d a com o um a c o n t e c i m e n t o excepciona l e
trágic o : e u m m o m e n t o gr av e q u e te m repercussões
pr of u n d a s na psicologi a ela criança . Além disso, a
m o r t e s e m p r e toc a u m a p e r s o n a g e m que , n o
rom a nc e ' , er a m u i t o i n di vi d ua l i z a d a e conhecida
p e J o s l e i t or e s , ele m o d o q u e el a provoc a uma
e m o ç ã o e u m a tristez a reais. " Fntrcvista concedida p o r
Is a be ll e Smaelja. a ut o r a de "Ifarry Potter: as R a z õe s
elo Sucesso" , no C a d e r n o Mais1, da Folheie São Paulo.
2 12 2 0 0 1 .
15. Muito s p ov o s tivera m essa s crença s , especialmente
referente s ao s n o m e s próprios . Alguns povos davam
n o m e s secreto s ás pes s o a s par a q u e os inimigos não
s o ube s s e m e n ã o tivesse m e nt ã o p o d e r sobre a pessoa. .
10. Par a c o n h e c e r um p o u c o elo be.stiário nacional ver:
CORSO , Mário . Monstruário: Inventário d
e Entidades Imaginárias e de Mitos Brasileiro.
Porto Alegre : T o m o Editorial , 2002 .
Capítulo XIX
AS CRIANÇAS-ADULTOS
Peanuts, Mafalda e
Calvin
A infância remanescente na vida adulta - Neurose na infância -
Separação ele mundos entre adultos e crianças - f-.laboracao adulta de sofrimentos iníanti
Idealização da autonomia e passividade infantil -
Kxposicao cias crianças â violência a ao sexo na mídia - Adultos-criancas
- Ilusões pedagógicas - Refugio na fantasia - Solidão na infância -
I )csidcalizacao da paivnlalidade
primeir o personage m de um a tira de jornal, viu a luz
no m e s m o ano em q u e as luze s se a p a g a r a m
te aqui analisamo s par a a primeir a
narratixas d i r e c i o n a d a s , pel
o meno s intencionalmente ,
para as
yi crianças. O gr u p o de qu e
no s o c u p a r e m o s a segui r
possu i um a diferença : sã o
história s e m quadrinho s qu e até
p o d e m ser consu mida s po r
crianças, mas seu sucess o ocorr e
princi•
palmente junt o ao públic o jove m e adulto ,
Charlie
Brown (Minduim) , Mafalda, Calvin e seu tigre H o b b e
s
(Haroldo ) s ã o p e r s o n a g e n s q u e circula m en tr e
a s gerações falando para todo s néxs.
As histórias em quadrin ho s n ã o nascera m para
o públic o infantil, su a ac e s s i b il i d a d e visav a
mai s ã popularização entr e os adultos . Yelloiv Kid. o
projeçã o cinematográfica , em ÍSOV Km a m b o s
os casos, trata-se d o nasciment o d e uma nova
linguagem , q u e além de privilegiar a narrativa através
de imagens , empresta-lhe s movimento .
Álvaro Mova descrev e assim esse fenômeno :
"A aproxi maçã o entr e cinem a e quadrin ho s é
inevitável, poi s o s doi s surgiram d a p re o cu p aç ã o d
e representa r e dar a sensaçã o cie moviment o . Os
quadrinhos , c o m o o p r ó p r i o n o m e indica , s a o
um co n j u n t o e Lima seqüência . O qu e faz do
bloc o de imagen s uma série é o fato de q u e cad a
q ua d r o ganh a sentid o depoi s de visto o anterior; a
açã o contínu a estabelec e a ligação entr e as
diferentes figuras. [...1 Não era mais a fixação
pict(')rica d e u m instante ; agor a s e observav a
um a narraçã o figurada.""
C o m o vemos , h á um a mudanç a d e
linguagem , ou seja, a narrativa ocorr e através de
seqüência s de imagen s q u e , po r sere m de fácil
assimilação, foram se
Fada s n o D i v a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infanti s
c o m o filósofos precoces . Por isso cab e a
pergunta : o q u e elas têm de infantil?
270
Di a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Co r s o
d e constatar a quanta s a nd a seu lugar no amo r
alheio , ele comet e at é p e q u e n a s grosserias e sarcasmos .
Afinal,
afirmou Umbert o Fco. K difícil acreditar q u e se
p o d e encontra r tanta sabedori a sobr e a alma
h u m a n a e m histórias q u e têm c o m o cenários caixas d e
areia, cancha s de jogo. salas de aula e as
depen dência s cia casa. de onde a presenç a do s
adulto s toi totalment e banida . Os acontecimentos nã o
sa o mais empolgante s d o q u e o s cenários: conversa
s n o quintal, jogos d e beisebol , dama, pega-pega .
e s c o n d e - e s c o n d e , a hor a d o lanch e n o recreio,
visitas q u e as crianças fazem uma s ás outras e
brincadeira s co m pandorgas . Na ausênci a
d e acontecimento s relevantes , o s verdadeiro s latos
sã o subjetivos: cada um a da s personagen s luta po r um
lugar ao sol, ou seja. na estima de seu s pares, en q ua n t o
toda s elas revelam suas fraquezas e o mei o particular de
dribla- las ou de sucumbi r a elas.
portanto pouc o se abala. Km contrapartida, ela també m freqüentemen t e para um certo sadismo . Em geral, seus
padec e das dores de um amo r impossível por um menin o cliente s sae m mai s arr as a d o s do qu e
qu e a considera burra e desinteressante. F aqui qu e seu entraram , F. i nt er es sa n t e q u e n u m p e q u e n o
pode r encontra um limite e é nesse pont o qu e ela quebra a m u n d o desse s s e introduz a a caricatura de um
cabeça, incapaz, de compreende r a situação qu e escapa ao dispositivo de escuta: o consultóri o
seu controle. Assim com o Charlie Brown. e obcecad o pel psicoterápico . N e m o n d e deveria m encontra r
o pape l de perdedor . I.ucy c ofuscada pela c o m p r e e n s ã o isso é possível, poi s não há c o m o
sua suposição de sucesso. A seu modo . ambo s sao imaginar algué m mais cruel e incapaz de empatia do q u
incapazes de decodificar o qu e discorda de suas e I.ucv. Ficam assim sublinhada s as dificuldades de-
auto-imagens. comunicaçã o : as persona gen s sabe m qu e nunca
() d o n o do coraçã o de I.ucy e Schroecler. sa o ouvida s pel o interlocutor ne m q u e este
um admirador incondicional de Beelhoven. cujas seja um
sinfonias ele executa virtuosamente em seu pianinho de "profissional da escuta".
brinquedo. Através dessa paixão musical, ele mostra a tênu e Apesar cie crescido. I.inus nã o consegu e abrir mão
fronteira qu e separa a entrega artística da desconexão . d a com pan hi a d e se u "coberto r d e
Ide so se importa com o qu e tange à música clássica, segurança", que ele esfrega no rosto e e
nem seque r se interessa por outros instrumentos ou també m seu calcanhar-de- a q u i l e s . p o i s p r i v a d
estilos musicais, e monotematico. Embora possa o del e eqüival e a dei xa d o totalment e
participar de algumas outras atividades da turma e de sa m p a ra d o . Espécie de Woocly Allen dos
seja um bo m amigo de Charlie Brown. ele realmente /'camits. I.inus tem uma condiçã o altament e
só reage q ua n d o a questã o literalmente encosta em seu neurótica, mas assumíclamente sábia, suas tiradas
pianinho. F sobr e ele qu e Lucv se debruça e derrama filosóficas sobre a vida sã o a c o m p a n h a d a s cia
seu soliloquio apaixonado , o qual só produ z em sucçã o do polegar e da d e p e n d ê n c i a cio cobertor ,
Schroecler exasperação, pois se vê interrompido por c o m o s e n ã o houvesse contradição . Além disso,
sentimentos qu e nã o compartilha e muito meno s a inteligência é a única forma cie diminui r a forca
compreende . Por isso. escorraça a menina e todos do autoritarism o da irmã. que encontr a nel e a
aqueles qu e o despertam para as outras coisas d o vítima de plantão .
mundo . Patty P e p p e r m i n t (Patt y P i m e n t i n h a ) é
Schroecler nã o parec e ter o mesm o uma menin a ativa, excelent e esportista, mas po u c o
sofrimento ne urótic o d e seu s amigos , poi s el e esperta no q u e diz respeit o a outro s assuntos .
e n c o n t r o u u m refúgio: circunscreve u seu m u n d o à Patty é tão desligada qu e praticament e na o
música clássica e torno u to d o o resto se m pe rc e b e qu e Snoopv e um cão . ela o cham a cie
importância . H uma saída excêntrica, mas viável, "aquel e garot o estranho". Tant o é esportivamen t e
uma da s alternativas possíveis dentr o dess e painel clã ativa, q u an t o incapaz de se mante r acordad a
alma human a q u e Schulz traça. As características da s q u a n d o o assunt o é estudo . Ela revela um aspect o
pe rs o na g e n s do s Peanut s n ã o funcionam co m o u important e da nossa socieda d e veloz c ativa:
m p od e r peculia r a cad a um . u m dom . sa o co rr e m o s e no s o c u p a m o s tant o porq u e nao
mais q u e nad a tentativas, a maneir a q u e cada suporta mo s ficar parados .
um descobriu de lidar co m a vida e seu s percalços. F As dificuldades cie atençã o de Patty vã o além do
com o se o auto r dissesse: invent e seu jeito, estereótip o esportista-burra . ela e ligada no
afinal n e n h u m funciona direito... que diz respeit o a seu c a m p o de interesse e
I.inus e o irmãozinh o de I.ucy. provavelmen t sab e liderar os amigos . Tã o monotemátic a c o m o
e o mais culto da turma, mas també m o mais Schroecler, ela evoca um a faceta ligeirament e
explicitamente frágil e hipocondríac o . Ele inclusive patológic a em alg o consi• de ra d o tã o normal,
acredita solrer cie pantopbobia. q u e seria o medo saudáve l e integrad o co m o são os e s p o r t e s ,
de Indo. Na verdade , ess e diagnóstico foi obtid o p r i n c i p a l m e n t e n o s Estado s Unidos . A o m e s m o
po r I.inus num a espéci e de consultóri o tempo , essa p e r s o n a g e m derrub a uma das
psiquiátric o q u e sua irmã I.ucy tem. Trata-se d e ilusões de Charlie Brown. o qual consider a que .
uma barraquinha . igual àquela s d e vende r limonada , caso se entend ess e co m alguma bola, seu
o nd e , po r uma módic a quantia , ela distribui conselho sucess o estaria garantido . Pimentinh a entende-s e
s ao s amigo s necessitados . Fsse serviço é feito co m o muit o be m com ela, mas só co m ela. Obvi o q u e
auxílio d o autoritarism o d e Lucy, q u e sempr e diz esta é mais uma sutileza q u e ele nã o perceb e be m e
o qu e lhe con vé m , ma s també m ela oferec e a seu s continu a idealizando aquilo e m q u e falha.
clientes a nata d o sens o co m u m , u m discurs o Patty aproxima-s e do fracasso de Charlie
vazio q u e os instiga a vence r seu s problemas , mas q u e quando o assunt o é a feminilidade, poi s ela
desliza freqüentemente pass a um a image m masculina .
Po r ex e m p l o , numa ocasiã o um garot o ve m reclama r q u e n ã o jogaria no
2^2
Di a n a Lic h te n st e i n Co r s o e Mário Cors o
seu time se Mareie jogasse, poi s n ã o admitia participar co m a própri a mãe , q u e as mulhere s carregam consigo
cie u m t i m e q u e t e n h a meninas , com o pela vida afora. Por isso, trocarã o farpas com
se e l e simplesment e nunc a tivesse n ot a d o q u e suas amigas , filhas, noras , outra s parente s e
ela. a capita cio time, e uma menina . Algumas colega s de trabalh o d o m e s m o sexo .
de sua s tiras sã o sobre a i n ad e qu a ç ã o ao pape l Co m o os Pecimtls sa o de varias idades, e comu
feminino. Ida nã o sab e combinar as roupas , julga-se m cuidare m e ensinare m un s ao s outros . Nem
feia. ou seja. n ã o e só na escola q u e ela nã o se sai séi de h u m o r cáustic o e lento o m u n d o d e
bem . Pattv p o d e ser para as mulheres o q u e Charlie Sehulz. pel o contrário , através cia fragilidade
e para os h o m en s , um errado . Afinal, ela é tão complementari a de toda s a s personagens , revelam-
^v/z/c/ie qu a nt o ele. w n c e no s esportes , mas fracassa se mensagen s carinho • sa s , crédula s cia
ate na consciênci a da neurose , terren o ond e p o s s i b i l i d a d e d o s h u m a n o s s e ajudare m e se
Charlie é imbatível. amarem . Para tal linaliclacle. além cias várias
Mareie, a melho r amiga de Pattv. e seu antôni mo . dem onstraç õe s cie solidariedad e qu e aparece m na s
Incapa z d e joga r liem . e a s n o s e s t u d o s . tiras, existem os irmaozinho s mais jovens, particu•
Idas s e complementa m , ajudando-s e no s setore s e larment e Sally. irmã cie Charlie Brown . e
m q u e têm dificuldade. Pimentinha leva Mareie ao Kerun. o caçula da família de l.ucv e I.inus. ides
esport e e tolera sua inépcia, e n q u a n t o a outra lhe têm a ingenui• d a d e cios pequeno s e sã o
dá cola e ajuda na s tarefas escolares . Mas nã o se p e r s o n a g e n s realm ent e infantis.
ereia q u e essa relaçã o e um mar cie rosas, poi s Sallv (Isaura em português) , mesm o pequena
Mareie nã o cessa de ressaltar o fracasso (absoluto ) cia , já tem conflitos co m o m u n d o . Sua principal
amiga no s estudos . Kmbora Pattv fique chateada , nada fonte de angustia é a relação co m a escola, por
mud a sua falta de interesse ness e campo e n ã o se isso atormenta- se constantement e co m o fim cias
p ou p a de criticar a obstinaçã o cia amiga na s férias, ou seja. ne m no recesso ela tem paz. Numa
tarefas intelectuais, o q u e nã o consider a um bo m serie de tiras, ela dialoga com o prédi o dá escola.
m o d o cie viver. Idas sã o ta mbé m com ple men - tares no Ia/ as suas reclamações cio qu e ela julga uma
e m b o t a m e n t o . pois Mareie tem a capacidad e cie incleméncia da instituição e chuta o prédi o a m o d
concentraçã o escola r qu e falta a Pattv. mas ess o de vingança. Parece qu e o processo civ
e foco nã o lhe ajuda nas outra s coisas cia vida. ili/atorio realment e se dá as custas de uma
Apesa r d a inteligência . Ma r ei e t a m b é certa dos e de opressã o pessoal, a qual Sallv na o
m e insensível ãs sutilezas e costum a falar o qu e nã o se resigna com facilidade. Essa menina seguidamente
deve . Ela é um a p e r s o n a g e m frágil e tem em faz bobagen s em suas tarefas escolares porqu e
Patt\ um a protetora. Sua de v o ç ã o po r ela é briga internamente com a instituição, ou seja.
tanta q u e cheg a a ponto de chama-la cie "senhor", neuroti/.a-se na relação com ela. Sua postura e
tratament o cie respeito, mas qu e t a m b é m desvela certa diferente cia de Pattv ou cie I.inus, qu e dorme m
vitalidade de sua amiga. Mareie é especialment e na aula. Sallv na o desligaria jamais em p r e s e n ç a
malvad a q u a n d o o assunt o é a feminilidade . cia professora , a escol a e um luga r
Kmbora seja p o u c o destr a t a m b é m nesse ca m p o , demasiadament e perigos o para baixar a guarda.
sua Pattv e ainda mais desastrada , e ela nào perd e a
o po rt u ni da d e de espetá-la. Pias revelam um aspect
o important e da s relaçõe s entr e as perso • nagens
dess a turma , a questã o da hierarquia. Se na
Snoopy, um cachorro à parte
relação de Lucy co m Charlie Brown e I.inus demonstra - pÇ^J^S!? ;ini completa r o elenc o principal, é
se o lad o cruel e o b s ti n a d o cios qu e preciso m jfy§<' a pr es e nt a r sua g ra n d e estrela:
maneiam, na complementaridad e dessa s dua s menina s
Snoopy . o ft^lJyS cachorr o cie Charlie Brown
aparec e unia hierarquia q u e é muit o present e na
. Kmbora ne m se mpr e o d o n o e seus amigo s
infância e na vida: costumamo s elege r líderes e
pareça m ciar-
protetores , tais papéi s nào implicam necessariament
se conta de q u e ele na o e h u m an o . Nos
e postura s cie submissã o e pode m até passa r pior
certas alternâncias . quadrinhos , p o d e m o s ler seu s p e n s a m e n t o s , q u
e sa o bastant e reveladore s d o ridículo da s
O constant e confront o verbal entr e essa s situaçõe s e m q u e seu s p e q u e n o s h u m a n o s se
amiga s também é uma jóia da percep çã o psicológica de envolvem , mas ele é realment e infantil.
Sehulz. Afinal, m e s m o q u e s e gostem , a s mulhere s Esse cachorr o faz um m u n d o á parte
dificilmente abrirão m ã o d e tratar-s e c o m u m dentr o do univers o de qu e estamo s falando, pois
c e rt o níve l d e agressividade verbal. Talvez ess e
ele é o únic o qu e usufrui o lado b o m da
seja o resto cie um a incômoda heranç a da relação
fantasia. As personagen s hu mana s dessa história
amorosa-litigiosa mantida
sofrem co m o cotidiano, suas
Fada s n o D i v a — P s i c a n á l i s e n a s Hi st ór i a s Infa nti s
inco munic abilida d e d e to d o s nós , tem a
importante dessas tiras, encontr a através de Snoop y outra
27
Fada s n o Div a - P s i c a n á l i s e n a s Hi st ór i a s Infan ti s
inadmissível pensa r qu e fomos tão p eq u en o s .
276
Di a n a Li c h t e n s t e i n Cor s o e Mári o
Corso
c o m Post ma n q u a n t o a o a s p e c t o d e qu e o s
a d u l t o s tê m c u lt i v a d o u m a existênci a infantil, ma s
n a o p o r q u e estã o ficand o b u r r o s o u b o b o s , e m
com pree nde r a s diferentes etapa s d a vida.
funçã o d e q u e a mídi a teria r e d u z i d o
Crianças são vestidas e divertidas c o m o adolescentes ,
colocamo s maquiage m e sapato s de salto em
meni ninha s q u e já sào corada s po r naturez a e
precisa m m e s m o e de um bom calcad o para correr:
c o m p r a m o s roup a d e surtista para garoto s qu e faz pouc o
ap re n de r a m a se equilibrar nas própria s pernas ; e
organizamo s reuniõe s dançante s nos aniversários da
escola primária. Enquant o isso. os adultos alterna m
para seu própri o us o as roupa s co m estampas
infantis co m a indumentári a teca.
O s adolescentes , po r sua vez. embor a
imitados por todos , sa o sistematicament e
demonizado s n a fantasia do s adultos , os cjuais
ficam s u p o n d o qu e eles elevem goza r a vida se m
restrições. projetand o nessa gent e jove m e
despreparad a todo s o s jx'cado s e
irresponsabilidade s q u e gostariam d e viver o u d e
ter vivido. I ) e \ e ser po r isso q u e as vezes os
joven s se apega m tant o à estética da infância. <)
ITsinh o 1'ooh é um sucess o no material escola r cias
adolescentes , as cjuais vestem mais cor-de-ros a cio q u e
as pré-escolares . Já os rapaze s têm através cios
game s a ojiortunidad e cie brincar de luta (e m
substituição ao s antigos solda• dinhos e ao Porte
Apache ) até muit o alem do s seu s clias de
infância. Talvez essa intantilizaçao ostensiva seja
uma torma de proteger-s e de um a sociedad e q u e
os tem na mira t o d o o te m p o .
Dentr o dess e funcionament o , qu e
p od er ía m o s chamar d e "unitemporal" . c o m o toi
diagnosticad o po r Postman. é precis o c o m p r e e n d e r a
contrapartid a disso, ou seja, o fenô men o q u e ele
de n o m in o u de adullo- criauça, assim descrito: "Fm
nossa cultura considera - se hoje desejável q u e a ma e
nã o pareç a mais velha do qu e sua filha. Ou q u e a
filha n a o pareç a mai s jovem qu e sua m ã e . Se
isto significa q u e a infância está d e s a p a r e c e n d o
o u q u e a idad e adulta está desapa • recend o é
a p e n a s um a questã o cie c o m o se deseja enuncia
r o problem a 1...I O adulto-crianca p o d e ser
definid o com o u m adult o cuja s
potencialidad e s intelectuai s e e m o c i o n a i s nã o
s e realizara m e . sobretudo , nã o sa o
s i g n i fi c a t i v a m e n t e d i f e r e n t e s daquela s associada s
ás crianças."
T e m o s hoj e um a inédit a consciênc i a d e q u
e a vida te m u m p r a z o definid o e . p o r mai s q u
e al g u n s d e n ó s p o s s a m cultiva r a t é e m
c e r t o s t i p o s d e tr a ns ce n dê n ci a , t o d o s s a b e m o s
q u e u m dia noss a vez s e acab a e t e m o s d e
passa r o b as t ã o par a a s g er aç õ e s se g ui nt e s . Po
r isso as invejamo s tant o . F, precis o c o n c o r d a r
1932, ela se permit e questiona r tudo . Apesar de
seus 5 ou 6 ano s d e vida, n à o pára d e pensa r no s
descaminho s d a humanidade , n a beligerância do s
seu s c ér e b r o s a r e c e p t o r e s d e image ns . A
infância q u e amamo s é idealizada . 6 povos , n o pode r do s
a crianç a c o m pe ns a m en t o s adulto s d e
Schulz , at ra v é s d a qua l
( i o d e m o s fantasia r q u e . s e t i v é s s e m o s
sid o mai s sábios , quiç á ter ía m o s a p r o v e i t a d
o melhor .
Fssas histeria s sà o uma porta para a
infância, n à o a q u e vivemos , ma s a q u e no s
ficaram de v en d o , agora seria o m o m e n t o de
ciar as resposta s certas, de fazer a coisa
apropriada , de usufruir esse s mo mento s
perdido s e . inclusive, d e c o l o c a r e m melhore s
palavras noss o sofrimento. Afinal, se a infância é
um m o m e nt o importante , at é o sofrimento pel o
qual passamo s dev e ter u m lugar d e
de st a qu e . I.ogo. s e somo s m e s m o a d u l t o s -
c r i a n c a s , j i r e c i s a m o s . par a n o s o l h a r n
o espelho , cie person age n s criancas-adultas.
Fm cios tanto s sonho s íuteis de éharli e
Brown. junt o co m o cie ser a alma da
festa alguma vez na vicia (missã o impossível)
e jogar be m beisebo l (mais ainda) , é e mpina r
um a pandorg a q u e n a o fique tod a enrolad a
na s árvores . Invariavelmente , ele termin a
dependurad o d e cabeç a par a baixo ,
enroscacl o n o cordã o q u e devia estar levand
o sua pipa aos céus . Bem. assim é a vida
jiara Schulz. so mud a a cor da pandorga . mas
seguimo s tentando . F essa |XTseveranca q u e taz
co m qu e os 1'caiiuts sejam queixosos , mas
n a o depressivos , ele s p o d e m fracassar, m a
s nunc a desistem .
MAFALDA
,
"ry*,:*'! atalda é uma menin a petulante , uma
fonte
. / • ' inesgotável de pergunta s sem respostas.
Sem
*; l ser seu objetivo, cria constrangimento
s para s e u s d e s p r e p a r a d o s pa i s
com questio•
na m e nt o s inusitado s e aguda s observaçõe s
sobr e o m u n d o . F.la é a person age m
principal de tiras h u m o • rísticas, publicada s na
Argentina d e s d e 29 de setem br o cie 196a até 23
de junh o cie 19^3- Q u a n d o termino u sua
temp orad a no s jornais, sobrevive u nas
década s seguinte s graças às compilaçõe s em
livros, a bo r d o cios cjuais chego u as geraçõe
s posteriore s e a vários países . Os livros
de Matalcla foram traduzido s para seis língua
s e alcançara m sucess o tant o na Furop a
q u a n t o na América Latina. Além disso, a
persona ge m se popularizo u em objetos c o m o
pôstere s e camisetas. Filha d o hu mo r inclemente d
e Quino , o u Joaquí n
Salvador Lavado, nascid o em Mencloza, no a n o de
Fada s n o D i v a - P s i c a n á l i s e n a s Hi st ó ri a s Infa nt i s
é necessário
278
Di a n a Li c h t e n s t e i n C o r s o e Mári o Co r s o
coloca n o mapa . Com o dizíamos, o s cenários sã o
o s mesmos , varia o pont o de vista. Para Schulz. no cotidiano
dentr o da casa e da vida de qualq ue r um . O
contat o co m o m u n d o é feit o a tr a v é s d e u
m rádio , su a representaç ã o é u m gl o b o
terrestre, u m b a n q u i n h o serve para brinca r de
gover no , o armazé m o n d e se compr a a comid a
da casa abr e um a janela par a as questõe s
econô mica s e o jeito da s pessoa s q u e passa m pela rua
é um a p o n t e para falar de grande s tema s
humanos , c o m o a lelicidade . a b o n d a d e e o envelheci •
mento . A vida desfila pela calcada ou pela
pracinh a de Mafalda e pod e ser conjugad a
inteirament e dentr o das par ede s d e sua casa. Quin
o parec e dizer q u e s ó não pens a q u e m n ã o quer .
n ã o importa q u ã o p e q u e n o se é e q u ã o estreitos sã
o seu s horizontes .
Mas n e m s ó d e p r o b l e m a s d o m u n d o
viv e Mafalda, ta m b é m existe m fatos de infância
propria • mente ditos: sua ojeriza a sopas , seu ciúme s pela
chega• da do irmão , a curiosidad e pel o hohhyáo
pai de culti• var planta s de interior, assim c o m o
o gost o po r se alienar na televisão . Apesar do s
assunto s infantis e domésticos , a reaçã o de Mafalda
é de elevad a reflexão o u d e linguajar adulto . Por
exe mplo , q u a n d o express a seu temo r d e pe rd e r o
lugar n o amo r do s pais e m função do nasciment o
cio irmãozinho , ela diz q u e sent e com o se o coraçã o
dele s tivesse "aberto uma filial": q u a n d o canta no
b a n h o , ela diz qu e é "a única maneira de supera r essa
imensa e branc a solidã o da banheira" . A graça da s
tiras de Mafalda parec e ser similar â
qu e referíamos relativo ao s Peaiu/ts: a cie
coloca r a sabedoria de gent e grand e par a
interpretar a vida de g en t e p e q u e n a . Na o s e
trata a p e n a s d e injetar a maturidad e futura no
pa ss a d o pueril da infância, a operaçã o seria
t a m b é m a de mescla r a purez a infantil na capacidad
e adulta de criticar a sociedad e e a própria vida. Essa
com binaçã o de inocênci a infantil co m um a crítica
adult a a g u ç a d a , al é m d o eleit o d e h u m or ,
emprest a u m s o p r o d e e s p e r a n ç a m e s m o a o
mai s trágic o pessimista . Afinal, s e temo s
t r a b al h a d o tã o diligentement e par a destruir e estragar o
m u n d o , q u e m sab e o s q u e virão nã o o consertem ?
Em suma, com o no s Peanuts, temo s em
Mafalda as personagen s crianças-adultos. l' m
universo o n d e a precocida d e da s crianças revela as
mazelas adultas. O qu e distancia as crianças de
Schulz da s de Quin o é a inclusão do s problema s
do m u n d o na trama cias tiras. Par a Mafalda ,
e s s e s p r o b l e m a s s ã o q u a s e u m a personagem ,
se lembrarmo s um glob o terrestre e um rádio co m
os quais ela praticamente conversa. Enquant o a obra do
norte-american o deixa as crianças num a bolha, qu e as
circunscreve â casa e â escola, o argentin o as
p e q u e n o da infância, é possível encena r a
comédi a h u m a n a d o indivíduo : e m Quino ,
além desses , sã o també m enfocado s os drama s
sociais.
Mafalda coloco u toda uma geraçã o a pensa r
sobr e a miséria do seu cotidiano , ma s sem
se desligar da premênci a de questiona r o
m o m e n t o histé)rico em qu e viviam. O m u n d o dela
retrata especialment e a América Latina, do s ano s
1960-19"0. co m sua s esperanç a s e pesadelos .
Mas nã o se p e n s e q u e ela é uma militante
política obcecad a pelo s grande s tema s
ap e na s . Por exemplo , uma da s questé>es constantes
e a paixã o dessa menin a pelo s Beatles, um a
escolha estética qu e ela defend e co m unha s
e dentes , diant e d e seu amig o Manolito, qu e
a acusa de gostar de uma música cuja letra
n ã o e nt e nd e . Ela ta m b é m tem quest õe s sobr e
a lelicidade . interroga-se p or q u e algun s sã o tã o
amargo s e outro s não . sobr e o amo r e o
casamento .
Poré m Mafalda e uma menina, e tanta
sensibili• dad e política nã o lhe serve muito
q ua n d o o assunt o sã o seus pais: ela na o
escond e unia certa decep çã o pel o pouc o qu e eles
conseguiram ser na vida. o pai lhe parec e mais um
coitad o qu e e sugad o pel o m u n d o cio trabalho, a
mã e uma medíocr e qu e na o sabe. ne m se
importa co m nada fora das lides domésticas.
Esta é a mai s alfinetad a pel a crítica cia
pequen a feminista empedernid a qu e ela tem em
casa. Num do s quadrinhos. Mafalda observ a a mã e
trabalhando , estalada co m as tarefas de casa, e
pergunta, assustada, se a capacidad e para triunfar
ou fracassar seria algo hereditário. Noutro, diante
dess e mes m o quadro , a menina lhe pergunta: "o qu e
gostarias cie ser se vivesses?"
Essa espert a menin a parec e na o espera r qu e
seu s pais lhe transmitam algo. um conheciment
o sobre o m u n d o . É ela q u e deté m a
sabedoria . Quand o nã o co m p r ee n d e algo.
perguntar a seus pais revela-se inútil, é sé) para deixá-
los perplexo s e ou constrangidos. Nessas tiras, a lont e
da sabedoria é o dicionário. Ela o consulta
constantement e e discute suas respostas
furiosamente. Junt o com o glob o e o rádio, o
dicionário completa o tripé cie objetos qu e
representa m o m u n d o .
Apesa r d e freqüenta r a escola , essa s
criança s parece m a p r e n d e r sozinhas , co m a
ajuda d e algun s instrumentos . O s pais até
fornece m elementos , co m o certa ocasiã o em q u e
o pai de Mafalda lhe presente o u co m u m pôste r
q u e mostrava ruínas gregas, dizendo - lhe ser ess e
o berç o da nossa civilização. Bem, basto u o pôste
r e a frase, para q u e fossem disparada s
um se m - n ú m er o de reflexões sobr e o fato de um a
image m de destruiçã o e ruín a se r a de noss a origem
. Portanto , te mo s um a síntese entr e u m
ambient e estimulant e e um a liberdad e d e
pe n sa m e nt o , q u e s e process a e m
Fadas n o Div a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infa nti s
mente s pura s e nào- \ iciadas. K este noss o neurótico s e sofridos em q u e ele se mete . Co m certeza O oposte
ideal de
aquisição d e conheci me nt o . Q u e r e m o s a s angústia s d e Felipe n ã o sã o absolutament e próprias masculino
proporcion a r par
ao s mais joven s muita s fontes, mas desejamo s d e u m g ê n e r o o u o u t r o , ela s a p e n a s s e Manolito. Esse
q u e tirem sua s própria s c o nc lu s õe s , porqu e revela m masculina s pel o fato d e q u e desperta m de armazém q
confiamo s muito pouc o nas nossa s e es pe ra m o s muit o e m Matalda um certo zelo maternal, d e n o t a n d o essa entregas e às
da s deles . As crianças de Q ui n o sa o lambe m etern a vocação para filhos q u e os h o m e n s carrega m devot o desse
representante s da s pela vida afora.
nossas mais acalentada s ilusões O pai de Matalda t a m b é m se desespera , diante campanha s
pedagógica s . das pergunta s irrespondíveis da sua peq uen a ou até p futuro
perante grande
a invasã o de formigas em seu jardim de um dia consto.
apartamento, aí é a mã e dela q u e vai cumpri r histórias, o m;
A trupe essa missã o de dar col o para um home m era taxá-lo de
fragilizado.
a o sa o muita s a s p e r s o n a g e n s q u e As constantes críticas á mediocridade da mãe levam â maldigericlo, t
acom - valorização de uma vida de maior inserção técnica servia
1' panha m Matalda. sa o seu s vizinhos d e social
um
lOOl bairro d a classe media poilenha . para as mulheres , motivo pel o qual devíamo s classificar have r em terrr
Susanita e o protótip o da mulhe r qu e Matalda com o Lima teminista. Mas. na verdade , d e pensament
n a o que r sabe r esses q u e s t i o n a m e n t o s t a m b é m tr a n s c e n d e m o Manolito . un
de nada tora sua estreita \id a domestica , seu s tem a cio
plano s
de ascensã o social c seu s futuros filhos. gênero , visam mais do qu e nada situar qu e os negócios, mas
Manolilo so pais já
pensa em dinheiro, uma ati\ idade , c o m enfiamos, para na o servem cie exemplo , e os novo s humano s deverão peque n o se te
lá de adulta. ()s perse >nagens q u e teriam características crescei ' a p o i a d o s em sua s própria s convicções . tant o no
mais infantis sao o angustiad o Felipe, co m sua pertina z As mulhere s terão de se mostrar maternais em que seu s
procrastinacao de tarefas, e Miguelito. q u e se casa. mas t a m b é m guerreira s na rua. Sao t e m p o amigos q uant o
perd e em fantasias megalomaníacas , embor a essas s confusos e misturados para os gênero s e a turma de
na esc n ã o
caracterís• ticas sejam encontravei s na maioria do s Matalda parece ilustrar isso bastante bem . Por outr o lado.
mortais em co m o a visão esconde estar
relacion
toda s as idade s de Q ui n o e cie esperança , certament e trata-se de de criticar o
Felipe, ou Felipito. e um neurótico , ma s uma aposta otimista em qu e h o m e n s e mulhere s i ao
seu acent o esta mais na angustia do qu e no possam beneliciar-se cio fato de qu e seus destinos se pragmatisr
fracasso. A caminh o do colégio, ele se paralisa de tornaram mais complexo s e abertos. espírito.
pânico , s u p o n d o qu e esquece u o tema de A outra menina do grupo . Susanita. é o opost o de Miguelit
botânica em casa. abr e a grup o que é i
pasta, para constata r q u e estava lá. Alguns Matald a e vai na c o n t r a m ã o d e s s a t e n d ê n c i traquina de to
metro s depois , e tomad o pela doloros a a cie am pliaçã o do s papé i s masculin o e grita coisas
possibilidad e de ter feminino . F um
esquecid o o com pass o para a aula de geometria , co contrapont o ilustrativo, qu e serve para ressaltara posição passantes. Cl;
m o coraçã o e x p l o d i n d o , ab r e a pasta par a da personage m principal. Fnquant o Matalda tem q ua n t o
l a m b e m concluir qu e estava t o m ele. F aí q u e ele faz a olhos para o m u n d o e seus problemas . Susanita vive adule da sua
pergunt a qu e poderia ser a da maioria de nos: sonhando com seus futuros filhos e um lar persor é
"Justo a mim tinha qu e ter me acontecid o ser abastado , o marido parec e lhe importai' meno s no s
adulta sua
c o m o eu?" seus planos, um mero instrument o para atingir seu s
objetivos. Por isso, não ajuda para
Fsse personage m deixa para fazer os devere s pt Para rer
cie
casa n o últim o m o m e n t o , ma s pass a a tard e possui a inteligência ne m a precocidad e de fragili
tod a martirizando-sc p o rq u e deveria estar fazendo-os . Matalda, mas é co m ele q u e ela se sent e dade e
Nao faz suas tarefas, ma s esta irremediavelment e mais pert o d e ser entendid a . a
pres o a elas. Q u a n d o enfim lenta encara r um a Se na ma e d a menin a e n a de p en
tarefa mais difícil, sentad o à mesa, fica d e v a n e a n d o dê n ci
personage m d e Susanita sã o veiculada s
co m se u heró i preferido. Fl Flanero Solitário, uma a do s
críticas â medi ocridad e da s m u l h e r e s ,
espéci e de caubo i justiceiro. Apesar de ser um
atravé s d e Felipito , Q u i n o e x p õ e a home
m e n i n o espert o e um po uc o mais velho , ele n a o
n s , poi s a amiga está sempr e lentantl o tirar ess e p o d e m o s afirmar qu e ela e romântica e pueril, pode r fazer
menin o d o s labirintos pelo contrário, sua personage m concentra os piores j nascer
e mais antigos preconceito s contra as mulheres : ela é Guille transita
calculista, fofoqueira e egoísta , sua paixã o pelo s denti ma mã e
filhos bem- sucediclos qu e terá (conform e ela. seu
e chu criança
filho será um douto r muito famoso e rico) é uma
ilustração da gloria obtid a atravé s cia maternida de . pequi
Fia vive cometend o gafes, hoje diríamos discursos def
politicamente incorretas, qu e só mostram o seu seja. seus
anacronismo . Até q u a n d o está tentando ser simpática e dii parede s da
entende r o pont o de vista do s outros se revela ignorant c Mais tar
e e i n ad e qu a d a . Po r e xe m p l o , certa ocasiã o politizada qu<
coment a co m Matalda qu e , visto ser ela tão anti- a nova persoi
racista, talvez o irmão qu e sua mã e estava esperando viesse é muito
a ser uma criança negra e isso seria lindo, pois
peqi su a
combinaria com o discurso de sua amiga.
enorme
peque naco n
tiras e fica
ii
280
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o Co r s o
J 281
Fada s n o Div a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infanti s
282
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co rs o e Mári o Co r s o
o u aind a através d e um a máq uin a duplicadora , co m
q u e p o d e construir um a cópi a d e s i p r ó p r i o " c l on a d o
" o u c o m ligeira s m o d i fi c a ç õ e s .
amistoso. O tigre p r e e n c h e a solidã o de CaKin
co m tanta com petên c i a q ue , d e certa forma,
q u a s e n ã o percebe mo s o q ua n t o ess e sentiment o
é a tônica da história.
Harold o está co m ele na trágica hora de
dormir,
(juando a escuridã o parec e pov oad a cie ameaças
. O tigre a c o m p a n h a - o e n q u a n t o esper a o ônibu s
escolar, pois Calvin se angustia muit o na hora de
ir à escola, sabe q u e lá vai dar tud o errado . Mas ne
m só na do r o tigre é parceiro , t a m b é m no s
m o m e n t o s d e praze r Calvi n nã o dispens a su a
companhia , com o n o agradável e pr ol o n ga d o
tédi o da s férias. Ta mbé m na vida cotidiana, o
amig o partilha o banc o de trás cio carro,
sentam-s e juntos á mes a para co m e r cereais ,
assistem á TV. ele vê Calvin fazer (ou melho r
enrolar ) os tema s e testemunh a a luta de seu
d o n o contra as gororoba s q u e a mã e serve no
jantar.
Km contraste com o isolamento do menino ,
cujo mund o imaginário é tão inapreensível para todo s
quant o a identidad e secreta de seu tigre de
pelúcia. Harold o está po r dentr o de tudo . afinal ele é
pait e integrante cie seus devaneios . De certa forma, o
tigre e o menin o têm uma identidad e ness e aspecto : o
qu e os outro s vêe m é muito pobre , as aparência s
engana m muito e ocultam a riqueza interior qu e so
existe num a dimensã o paralela que tangencia o m u n d
o real. po r vezes se confund e com ele, mas é
invisível ao s olho s cios outros.
Talvez um a da s razoe s de seu sucess o seja
a de representa r tã o be m o isolamento , o
afunilament o de r e l a ç õ e s pessoai s a qu e
estamo s cad a dia m ai s submetidos . Calvin é
um heró i solipsista para e c o m o nossos dias de hoje.
Ao contrário da s turma s cie crianças que exa mina mo s
antes , agora temo s u m p ersonag em - solo. Fie tem
um a presenç a forte e tud o gira ao seu redor. De
certa forma, todo s os outro s person agen s são
co a dj u va nt e s , serve m par a m o n t a r a cen a o u
mostra r a s c o n s e q ü ê n c i a s d o s ato s d e s s e
m e n i n o impossível.
Embor a consiga m d e m o n s t r a r um a certa
per • sonalidade , os pais e Susie só existe m para
contra• cena r c o m Calvin , t a n t o é assi m q u e
H a r o l d o . o segund o personagem , é praticament e seu
alterego. \ à o existem histórias se m a presenç a de
Calvin, salvo raras exceções , q u e serã o sobr e seu s
pais falando sobr e ele e a missã o q u a s e impossível
de criá-lo. Nã o bastass e c o n t r a c e n a r consig o
mesm o atra v é s de H a r o l d o . existem alguma s
histórias e m qu e ele s e duplica , tant o viajando n o temp o
(ind o encontrar-s e co m "ele m e sm o d e outr o tempo") ,
e irônico do s pais e a verdadeir a intolerância co m
as crianças, qu e aparec e nessa jovem .
visand o a q u e sua duplicata desempenhe
tarefas no seu lugar. 283
Personagens coadjuvantes
S a escola, a solidão de Calvin nã
o é muito diferente. Qua nt o aos
colegas, o único perso • nage m qu e
aparec e é Moe. um menin o da
mesm a idade, mas maior, burr o e muito
forte,
qu e atazana a vida de Calvin sempr e qu e pode
. Calvin tenta embaraçá-l o co m tiradas inteligentes,
mas isso ne m sempr e funciona, pois ele é tão tapad o
qu e ne m perceb e as ironias qu e lhe são
dirigidas. Susie també m é sua coleg a de aula.
e a relaçã o na escola nã o é muit o
diferente do qu e a qu e eles mantê m na
vizinhança, na qual um está sempr e ã espreita
para atacar o outro.
Durant e as aulas. Calvin passa a maior
parte do t e m p o "viajando" num a espaçonav e com
o Cosmonaut a Spiff, um herói q u e n ã o dá
trégua s ao s alienígenas inimigos. Kmbora ess e
astronauta seja um preparad o piloto de
combate , muitas veze s é capturad o e está
preste s a ser torturado , q u a n d o Calvin é acordad o
para a realidade . A perplexida d e do s adulto s
c os olho s vidrado s a c o m p a n h a d o s cie um
certo sorriso sã o os indícios qu e noss o herói
está em mais uma de suas aventura s
espaciais imaginárias.
A professora, Miss Wórmwood . é uma
senhor a m ai s v el h a , cuja c o m u n i c a ç ã o c o
m o m e n i n o é inexistente. Kla é impassível e
Calvin na o presta atençã o no q u e ela diz. afinal,
passa a aula cm outr o planeta. Q u a n d o ela
tenta contat o co m o aluno , interrompen d o seu s
devaneios , normal me n t e é representad a
com o u m enorm e e viscoso monstr o
alienígena d o planeta Zorg. Aliás, seguida ment
e a voz do s adulto s penetr a na s clivagações
onírica s ás quai s Calvin se entreg a
(principalment e n o colégio) e n c a r n a n d o uma
forma m o n s t r u o s a e persecuté)ria . q u e . a o
desperta r d o me nino , contrasta co m a
puerilidad e da cen a real q u e ele protagoniza .
Quand o o s pai s precisa m sair.
contrata m um a babá . um a adolescent e q u e
sab e o qu e lhe esper a e acaba s e n d o mais
severa qu e a mã e para doniarCuWm. Rosalyn
parec e ser um a da s pou ca s pessoa s q u e met e
m e d o ness e pestinha . A crueldad e de
Rosalyn e seu d e s c a s o profund o co m o
menino , qu e r e pr es e nt a a pe n a s u m bic o
desagradáve l q u e ela faz, contrasta m co m a
atitud e d o s pais de Calvin. Aqui fica
ressaltada a diferença entr e o afeto b e m - h u m o r a d o
Fada s n o D i v a — P s i c a n á l i s e n a s His t ór i a s Infanti s
A parentalidade missão . Por isso tant o dedica m muita energia , depoi s que
desvelada quant o se questiona m se vale a pen a semelhant e fardo. c
Numa Esses pais pa
••*"•'«;.. s pais ile Calvin estã o se mpr e o c u p a d o s em tira. CaKin e o pai travam o seguint e Moraes, em s<
devere s intelectuais o u domésticos , eles diálogo:
so
" . va o a o e n c o n t r o d o filho par a (Calvin) - Você talou que . qua nd o você vira I...I Filhos sa
m a n dá- l o d e s e m p e n h a r alguma tarefa. Para pai. recebe uni livro que explica tudo no inundo? Melhor não
conxersar. i Pai) - Certo. Mas se não
e se mpr e o filho q u e vai ate eles. Ides sa o
sarcásticos,
sabe m o problem a q u e têm em casa e tenta m (Calv in ) - Posso vedo? Como sabê-
enfrentá- lo co m um cert o h u m o r (as veze s beirand o a ( Pai) - Receio qu e nai >!
irritação).
Kssa atitude ilustra a parte inglória cia ((Calvin ) - Por quê? Xào
parentalidade . já q u e seu p e q u e n o d e m ô n i o na o iPai) - Ide explica com o c criar um filho. sã(
dá tréguas , e uma m á q u i n a d e produzi r (CaKin) - Kntáo? parentalidade
contusõe s e ciar t r a b a l h o . Personagen s sem
(Pai) - Você' na o pod e saber sobre isso ate que necessária pa
no me , p o u c o sabem o s deles , a na o seja do homem,
i
ser qu e o pai trabalha nu m escritório e a ma e faz u r d e demais para nã o ter Porém, o poe
algo uni.
na máquin a de escrever. cia, pois
A funcao do s perso nage n s do s pais na historia P ar ec e n a o h a v e r m u i t a s d u v i d a s d e filhe cem . os
e demarcad a desd e o prisma do menino : estã o lá qu e a empreitad a cie ter um filho e um cami nh o vers<
para árduo , sem
atendê-lo . impo r limites e ter sua atençã o gloria e q u e . cas o soub ésse mo s o q u e vem pela (rente, Como saber
polarizada pela criança. A tarefa dele s e resistir á ningué m ousaria . Por outr o lado . o recurs o Que maciez
de m a n d a , ma s o resultad o e o inverso: tant o desses pais. qu e aparec e mais d e m ar ca d o no pai de- Que cheiro
q ua n t o ele rei\ indica incessantement e e eles tenta m Cahin c seu pe n d o r para um hu m o r absurd o (qu \ a sua
dai" menos , mais ele os e seria unia cam
convoca . O resultad o e um de se n co n tr o ostensixo bo a font e de iclentilicaca o par a a c a p a c i d a d Que gosto c
. e cie fantasiar cio filho), e uma forma de
() casal na o escond e as diliculclacles da enlrenta r a tarefa
emprei •
tada e. apesa r de qu e o clima entr e eles e sem esmorecer . Para clej
de- uma c u m p l i c i d a d e b r i n c a l h o n a . por vezes De torma crescente , o hu m o r tem se tornad o um
acusam-se
mutuament e por lerem tido alguma influência cios atributos masculino s mais valorizados Chupam gil(
nociva contempo
no caráter do filho. Kmbora seja um me nin o raneament e . t' m ho m e m co m hu mo r demonstr a bebem
inteligente ler shar
e possua uma criatividade inesgotável, suas capacidade s Lima \ isao crítica e particular do m u n d o , assim Ateiam fogo
sempr e se re\ela m dá forma mais conturbad a como d a m u l h e r q u e ele deseja. Junto as Porém, que
possível, mulheres
ele jamais faz o necessário para orgulhar ou indepe ndent e s e esforçadas q u e se precisa seduzir hoje e Que coisa k
agradar aos pais ou á escola, pel o contrário. Pies já m dia . na o h á muit o e s p a ç o par a o Que coisa li
abandonar a m a esperanç a de qu e as coisas sejam romantismo arrebatad o ou para o patriarcad o Que os filhe
muito diferentes, qu e o filho possa melhorai", ostensivo ; a sedução melosa ou o machism o
parece m resignados com as chatices educativas qu e
exacerb ad o estã o com seus dias c o n t a d o s / Wattersc
têm pela frente. Algumas vezes, um pergunta ao
outr o se está arrependido , a pergunta fica sem Apesar de desempenhare m papéis cie acordo com o expo r as ferie
resposta, mas cie uma coisa p o d e m o s ter certeza: Calvin model o tradicional, em qu e o pai sai para o escritório e o qu e
na o vai ter nenhu m irmão. a mã e taz suas tarefas em casa, os pais de nessa s a o
Cahin parece m ter uma relação horizontal, um ma
Numa da s tiras, da s raras e m q u e eles co n se g u e m
camarada, sendo incomodaçõe
desestabilizar o filho. Calvin pergunt a c o m o veio qu e a mã e mostra ter Lima língua tão ferina filho leia o
ao e uma t;
m u n d o , o pai (qu e sem pr e q u e p o d e inventa capacidad e crítica tao aguçada quant o a do pai. Knfim. é para lhe
histórias neg;
mirabolantes) lhe resp ond e q u e eles o comprara m nu m Lima família moderna porqu e a hierarquia é mais alegórica Convém
super merca d o , por uma pechincha . A mãe . ante s do qu e factual. e a relação do casal é fraterna família são
de (embora t;
consola r o filho q u e está chorando , ve m na o sem tensê)es) no qu e cliz respeito á divisão de tarefas. tem a cias tiras
censura r o pai. Pxistem m o m e nt o s de afeto tamiliar. Os pais de Calvin íoram acusado s de serem cia impossibil
ma s eles sã o ínfimos se co mpar ad o s com o constant e um qu e os
mal-entendid o entr e pais e filho. Kssa ressalva tanto quant o sarcásticos com seu filho, e nã o é do teitio hun
serve para situar q u e dess e autor edulcora r sua visão do s vínculos humanos. hipoteticam t
o s pais d e Calvin na o sa o pessoa s sem coração , Mas acreditamo s q u e esses pais já representa m um novo servem
q u e deixariam o p o b r e filho entregu e a um m u n d o m o m e n t o : aqu i s e e s b o ç a um a desidealizac ã o par;
imagi• da desencontros
nári o á guisa de defesa ou compensação. De parentalidade . Ksse casal sab e qu e nã o é muito divertido As tiras 1
jeito
n e n h u m , temo s aqui um a família mo derna , em educar, eles inclusive parece m nã o se realizar na s relações Í
que
grande
os pais sabe m o p e s o e a responsabilida d e coisa co m a paternida de , ela seria c o m o um tigre é uma e?
de sua
fardo,
284
1
Fada s n o Di v a — P s i c a n á l i s e n a s Hi st ó ri a s Infa nti s
parte cia sabedoria interior do própri o Calvin,
como
personalidade s qu e assum e e m seu s devaneios
, o Cos m onaut a Spiff. Calvin foge tia aula par a ficar
"livre par a vaga r pelo s céus , n a n o b r e busc a
d o h o m e m par a investigar o mistéri o do
universo" . F ó b v i o o contrast e entr e a b a n alidad
e da vida e a riquez a q u e a s fantasias n o s
oferecem . Atinai, q u e m vai q ue r e r ficar par a
r e s p o n d e r q u a n t o é cinc o mai s set e s e te m uma
missã o dessa s par a cumprir ?
O s tempo s modernos , pel o m e n o s n o
m u n d o o ci de nt al , assistira m a o r o m p i m e n t o d o s
fios d a s religiões e da s grande s causas . Com o marionete
s soltos, libertos ma s tontos , p ar ec e m o s - n o s c o m
Calvin, n a solidão e no desenc ant o . Fm funçã o
disso, talvez seja natural qu e pu d és se m o s espera r mais
dess a curta vida. qu e já nã o acreditamo s q u e faça
grand e diferença para o destin o da h u m a ni d ad e . Não
m u d are m o s o m u n d o , ne m o destin o da fé esta
em nossa s mãos . Cada vez mais a política e a
economi a parece m tornar-se meca • nismos supra-
hu man os . alheio s á vontad e d o s mortais. K natural qu
e a fantasia se faca grandiosa , pois. c o m o Calvin,
os h u m a n o s nunc a se pergunta m pouc a coisa e
nunc a s e conforma m verda d eir a m en t e co m
a insignificância. A vida de cada um de no s e
co m o a dess e m e ni n o : h á u m ab is m o entr e a
vastidã o d o m u n d o de fantasia (qu e inclui filmes,
cantes, livros e outras formas de devanei o coletivo) e
o encolhi me n t o de perspectivas da vida real.
A sabedori a mei o estapafúrdi a d o tigre ,
q u e Calvin escuta com atenção , contrasta co m a
do pai. qu e e constant e motivo de qu es ti on a m e nt o
e chacot a por parte tio filho. O pai fica di z en d o
també m sua s máximas e da n d o conselho s , q u e sã
o ridicularizados nas tiras. Numa da s mais belas
(visualmente , inclusive). Calvin encontra-s e nu m
m u n d o totalment e cubista. a perspectiva d o
q u a d r i n h o pa re c e ter e n l o u q u e c i d o , com o nu m
q ua d r o d e 1'icasso. o n d e frente e perfil d o
personage m convive m e o s objeto s justapõe m
todo s seus ângulos . A inviabilidade dess e m u n d o
serv e a o menin o com o argument o diant e d e se u pai.
q u e num a discussão lhe havia pr op o st o q u e tentass e ver
a s coisas tlesd e o u t r o s p o n t o s d e vista . Mais
u m a vez , a impotênci a patern a e r e s s a l t a d a /
O pai de Calvin parec e realment e pertence r a um a
geraçã o d e adulto s qu e nã o tem grand e cotaçã o n a
opiniã o d e seu s filhos. Acontece qu e seguidament e a
ironia d e Harold o soa muito parecida com as
palavras paterna s - especial • ment e quant o ao
estilo çlo pai de falar -, ma s vinda s çlo tigre,
co m o vê m isentas çlo p e s o da autoridade . Calvin
as escuta.
Se formos considera r as tiradas de Harold o co m o
u m diálog o consig o m e s m o (co m o ele trava co m
seus duplos , e m outra s ocasiões), teremo s
contextualizada um a da s razões pela s quai s tendemos ,
hoje em dia. tão facilmente para uma ilusão autodidata:
parec e sempre mais viável busca r as resposta s
sozinh o (preferimos buscar na internei, q u e parec e
se r um instrumento impessoal ou no s livros ditos
de auto-ajuda). Pais e professores têm boa s intenções ,
mas sua sabedoria está sem pr e posta em dúvida, pois já
n ã o acreditamos mais na sua capacidad e cie no s
compreender .
As histórias em quadrin ho s sofreram t o d o o tipo
de ataqu e por parte de estudiosos, pedagogos
e político s conserva dores . Afinal, a facilitaç'ão cia
sua linguagem , utilizando a narrativa através de seqüências
d e imagens , pareci a atua r n o sentid o d o
empobre• ciment o de seu público : os jovens, as
crianças e os leitores de jornal. Esperamo s qu e a análise
da s histórias cjue encerra mo s aqui ofereça argumento s
contrários, poi s n ã o foi precis o procura r muit o
para encontrar nelas profundida d e e crítica social.
Provavelmente, a caricatura política e os livros
ilustrados, q u e juntos d e r a m o ri ge m à l i n g u a g e m
do s quadrinhos , lhes emprestara m muito de sua
irreverência. C.) olhar infantil, assim c o m o o humor , sã o
formas de revelar o que o sens o c o m u m oculta,
afinal, po r sort e ou po r azar, somo s engraçado s .
"As crianças sã o as mensagen s vivas qu e enviamos a
uni temp o qu e nã o veremos". J escreveu o mesmo
Postma n qu e citávamo s antes . Certament e
essas personagen s são. ness e aspecto , esse tipo de
criança. Essas liras, já encerrada s po r seu s autores ,
seguirão encontran d o leitores por um temp o qu e os
transcenderá.
Notas
1. "Yellow Kid, o heré>i cia primeira verdadeira
história em quadrinhos, apareceu em dois painéis !...] na
edição de domingo çlo New York World ilo dia T de maio
cie
1H9S. Curiosamente, nesse mesmo ano. em cjue sur«ia o
primeiro personagem cie histórias em quadrinhos do
mundo, se assistia, no mês de dezembro, ao início das
projeções, no Houlevarcl cies Capucines. em Paris, cio
grande sucesso do cinematógrafo Lumière, dando
nascimento ao cinema no inund o contemporâneo'.
In: MOYA. Álvaro. 1 listaria da História em Quadrinhos. Sao
Paulo: 15rasilien.se, 1996. p. 24.
2. MOYA, Álvaro. Sbazam! São Paulo: Perspectiva,
1977, p . n o .
3. LEYTEN, Sônia Bibe. Manga: o Poder dos Quadrinhos
Japoneses. São Paulo: Hedra, 2000, p. 33.
Dian a Lichtenstei n Cors o e Mário Cors o
Fntre os mais importantes precursores cia linguagem Lt. Crianças sabem ser surpreendente s e dizer
cios q u a d r i n h o s , destacamos Ma.x itnd coisas q u e deixa m o s adulto s cie q u ei x o
Morilz caíd o pela esperteza que contém. Porém, isso não
(Alemanha. 1803). dois garotos impossíveis, seguidos faz parte cie um pensamento sistemático, apenas de
por Lhe )eIloiv Kid (F.stados 1'nidos. 1893), sua particular sensibilidade para apreende r e
Mttster Brown ikk-m, 1902). I.ittle Semo (idem. enunciar elementos do inconsciente lamiliar.
1903). send o qu e todos eles eram crianças levadas ou 13. Lm paralel o no Brasil, q u e le mbr e a
sonhadoras. F.videntemente que nesses primórdios mesm a simbologia. pod e ser um português don o de
também havia p e r s o n a g e n s a d u l t a s , an i m ai s e padaria.
outro s ser e s caricaturais, porem era já forte a 10. O irônico é qu e o préiprio Quino foi acusado de ser
presença e a empatia dos heróis (ou anti-heróis) u m pequeno-burguês . e Mafalda seri a
infantis. Para uma história detalhada do gênero, ver um a propaganda do mod o cie vida norte-americano.
MOYA. Álvaro. Historiada I listaria e»i Para Ler Mafalda. de Pablo José 1 lernandez.
Quadrinhos.Si\c> Paulo: Brasilien.se-. 1990. Como pode ser um bom exempl o da miséria da critica
veremos adiante, aproveitamos um conceito de- marxista dos anos 19~0. F.sse ataque a Mafalda e tao
Neil Postman. invertendo- o para título dess e inconsistente qu e nã o vale uma delesa. Para
capítulo. maiores detalhes sobr e essas críticas injustas.
No Brasil, a palavra Pcaitiils foi traduzida ver MOYA. Álvaro. História das Histórias em
para Mindiiiiti. nom e qu e se aplica ao Quadrinhos. São Paulo: Brasiliense. 1990. p.
persona ge m principal. Charlic Brown. porem nã 183.
o pegou, e as tiras sào realmente conhecidas 1 _. No Brasil, foram publicadas com o nom e de
pelo nom e original ou a partir do nom e de seu Calvin e Haroldo. por isso. passaremos a
cachorro Snoopv. que foi progressivamente chamar o tigre por seu nom e brasileiro, com o se
rouband o a cena. popularizou entre- os leitores.
FCO. I mberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo: 18. WATTFRSON. Bill. The Calvin and Hohhes
Perspectiva. 19~9, p. 28~. Tentb Auniversary Book. Kansa s City:
Ibiclem. p. 288. An drew s an d Mc.Meel. 1993 (tradução nossa).
Peanuls: lhe Ari of Charles M Schnl:. F.dited 19. Ibidcm.
and designed bv Chip Kidd. New York: Pantheon 20. "No passado , tratava-se de- conlerir ao amor
Books. uma existência poética, sagrada, quase religiosa:
2001 (tradução cios autores). convém no presente criai" uma atmosfera animada
Ocorrida em Ir de fevereiro, é uma (.lata e festiva, mostrar-s e diverti d o e simpátic o
similar ao Dia dos Namorados comemorad o no |...|. Q u a n d o domina m as coordenada s do
Brasil, porem celebra também a amizade e outros ócio c da personali• dad e nào-convencional. o
tipos de relações afetivas. ideal da relação homem- mulher tend e a liberar-se
"O sucesso do fracasso' é o título qu e o autor de sua antiga gravidade romântica: a
deu ao verbete sobre Peanuls. No seu distração, o riso e o humor pode m triunfar".
entendimento . In: LIPOYFTSKY. Gillcs. La lercera Mujer.
"Pcanuts é o diva mais barato para os B a r c e l o n a : Fditoria l A n a g r a m a . 1999. p .
milhares de fãs do mund o inteiro realizarem t9
sua catarse". In: MOYA. Álvaro. História das (tradução nossa ).
Historias em Quadri• nhos. São Paulo: Brasiliense. 2 1. MORAFS. Vinícius. Antologia Poética. Rio de
1990. Janeiro. Jos é Olympio. 1981. p. 101.
"O desejo de se tornar sábio e de 12. WATLFRSON, Bill. Calvin and Hohhes Sunday
ultrapassar os adultos em sabedoria e ciência Pa,t>es t / 9. V 5 -/ 99 5 L Kan sa s City: A n d r e w
nada mais c senã o uma inversão da situação da s Mc.Meel Publishing. 2001. p. 31 (ver também
criança". In: FKRFNC/.I. Sãndor. Escritos a tira que vai n o mesm o sentido, n a p . " ) .
psicanalíticos. O sonho do nenéni sábio ( 1923). 23. POST.MAN. Neil. O Desaparecimento da Infância.
Rio de Janeiro: Livraria Taurus Fditora.
Rio de Janeiro: Graphia. 1999. p. II.
1983. p. 2 Lt.
POSTMAN. Neil. O Desaparecimento da
Infância.
Rio de Janeiro: Graphia, 1999. Pg. 112c- 11.3.
Anexo
GÊNESE E INTERPRETAÇÃO
DE UM CONTO FAMILIAR
Mário Corso1
VAMP I
O Vampiro Vegetariano
V£*?J^ e você s acha m q u e têm problema s é p or q u e
; >*%%• nã o c o nh e ce m os meus . Nasci
vampiro , o
{!'*»' i ; q u e em si n ã o é n e n h u m
p r o b l e m a . Acontece q u e soti u m vampir
o vegetariano .
Aliás o único . Nã o c o n h e ç o outr o vampir o q u
e s e aliment e só tle vegetais. Isso potl e ate soar be
m entr e v o c ê s , e u se i q u e c a d a di a há
m a i s h u m a n o s vegetarianos , ma s para um vampir
o e um desastre .
Por sorte consig o mante r e m segredo , morr o
tle m e d o qu e meu s amigo s descubram .
Você s n ã o c o ns e gu e m n e m imaginar a vergonh a
q u e seria para minh a família se todo s viessem a
merament e tle estilo e facilidade narrativa, mas. quando
foi conta do , a narrativa era em terceira pessoa .
290
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mári o Co r s
o
293
1
Fada s n o D i v a - P s i c a n á l i s e n a s História s Infa nt i s
Um casamento misto
"*&n4L mbor a o recurso ã magia esteia present e nesta
" :~™' história, estamo s fora do terren o do s
conto s i4>*>;V " <-le fadas. O herói introspectivo e
a jornada interior sã o tã o importantes quant o a aventura.
Além disso, a narrativa centrada num a pessoa co m
um drama subjetivo faz co m qu e essa estrutura no s
remeta mais à s novela s m o d er na s , qu e à s
histórias infantis tradicionais.
Não é precis o pensa r muit o para descobri r q u e
a trama, contextualizad a num a família formada a
partir de um casam ent o misto, se desenrol a co m as
tentativas d e u m filho para s e situar diant e d a
diferença d e d u a s herança s culturais. Mesm o s e n d o
óbvio , e u fiquei u m bo m temp o contand o a história co
m essas personage n s se m m e pergunta r q u e m elas
era m e o q u e isso t u d o significava. Certo dia. nã
o de u mais para ignorar qu e Vampi retratava minha s
inquietações sobr e com o educa r minhas filhas diante
de dua s tradições: a católica e a judaica.
O impass e q u e eu vivia n ã o era religioso, já q u
e tant o e u q u a n t o minh a espos a s o m o s ateu s
e n ã o p e ns a m o s e m dar para nossa s filhas um
a e du c aç ã o religiosa, pel o m e n o s d o m o d o
tradicional. Mas isso nã o é tã o simples, existem ritos
q u e traze m um sentid o social important e para as
famílias e para recebe r as crianças na sociedade .
Além do mais. religião n ã o é s ó um a questã o d e
fé, h á t o d o u m legad o d e tradiçõe s q u e nã o p o d e
se r ignorado , n ã o s e p o d e fazer u m corte brusc o
co m um a história qu e vem d e tanto tempo . Assim, com o
n ã o somo s ateu s militantes (até nutrimo s uma secreta
inveja d e q u e m co n se g u e acredita r e m algo), nã o
no s o p orí a m o s a um ou outr o ritual.
Nosso casament o foi b e m aceito po r amba s
a s famílias, a questã o da origem religiosa era a pe n a s
fonte d e anedota s d e a m b o s o s lados, po r isso,
até nossa s filhas chegarem , praticament e n ã o no s
q ue sti o na m o s s o b r e o a s s u n t o . Mas. d e p o i s d a
c h e g a d a d e l a s , qualque r escolh a de um ritual
significava apoia r tal part e d a família e m detriment o
d a outra . Fôssemo s d e u m a s ó tradição ,
c e r t a m e n t e f a r í a m o s a l g u m a s concessõe s diant e
d o convencional , s e m p r e oferecen • do a elas um a
crítica ao q u e estaria send o feito - nã o
necessariament e n o m o m e n t o , talvez mais tarde .
Hoje um a e d u c a ç ã o religiosa n ã o é tã o marcante ,
m e s m o q u e s e queira , c o m o foi par a a s
g e r a ç õ e s passadas . O m u n d o dispõ e d e um a série
d e possibili• d a d e s pa r a e s c a p a r d o p e n s a m e n t o
d o g m á t i c o cie
(jualquer religião, pel o m e n o s n a cultura
ocidental . Mesm o assim, o nascimento , a entrad a na
devid o a Hatman, até minha s filhas sabia m o qu e
significa. Afinal minha s batgirls
assim c o m o o casa me nt o aind a se beneficiam d o s
ritos religioso s e culturai s q u e marca m e
celebra m se u a c o n t e c i m e n t o . Fo r isso ,
o p t a m o s p o r e s c o l h e r p a d r i n h o s par a a s
m e n i n a s , e m b o r a t e n h a m sid o n o m e a d o s fora
de uma cerimônia formal. Além disso, ac h a m o s
q u e a s crianças de v e m conhe ce r a religião da
s famílias de origem, nã o necessariament e crer nelas,
ma s sabe r n o q u e seu s antepassad o s
acreditavam .
Assim, emb or a se m qualq u e r ritual, o pta m o s
po r ensina r u m p o u c o d a tradição d e cada uma da s
origens. Isso resolve um problem a e cria outro ,
a questã o era entã o c o m o dizer às nossa s
filhas o q u e elas eram . qua l seria su a
i d e n t i d a d e e m t e r m o s d e tradiçã o religiosa.
F.las n ã o tinha m sid o batizada s na igreja
católica, log o nã o teriam primeira co m u n h ã o ,
e ne m fizeram bat nülsrá co m o colega s e
amigo s de origem judaica. J á o s dias sagrado s
d e amba s religiões era m lembrados , poré m
sem muita ênfase, pois n ã o seria natural para
nõs . Ser católico é um p o uc o mais fácil.
principalment e nu m país q u e tem essa religião
com o sistem a d o m i n a n t e . Mas a q u e s t ã o
judaica c um a heranç a mai s complex a e
m e s m o q u e uma pesso a s e esqueç a disso, os
outro s a lembrarão . A história recente d o p o v o
judeu é u m assunt o espinhos o qu e minhas
filha s e s t ã o t e n t a n d o e n t e n d e r , nao sem
m u i t o sofrimento, considerando-s e qu e o avó
materno perdeu o pai e seu únic o irmã o nu m
ca m p o de concentração . Fram esse s os impasse s
q u e estavam na minha
cabeç a q u a n d o el ab o r e i (elaboramos ) o
v a m p i r o originári o de d ua s culturas . Seu
sintoma é tentar a síntese da s tradições ,
e n q u a n t o carrega algo d e cada um a se m pode r
opta r e m definitivo po r nenhu ma . Fra isso q u e
eu , dess a maneir a alegórica e inconsciente,
dizia atravé s tia história: nã o há registro
para essa síntese q u e você s sã o e vã o ter qu e
com po r algo co m um p o u c o de cad a uma . Nao sei
o q u e elas farão, ma s essa sugestã o n ã o poderi a
ser mais sincera.
Vamp i j á er a u m heró i
atormentado , s e u s problema s alimentares o
inquietavam, mas é a partir de um ritual qu e a
história mud a de rumo . F claro qu e o ritual
encobert o a q u e o cont o faz alusão metafórica
é o bar milsrá. o ritual de maioridade judaico.
No conto, a maioridad e se traduz pela demonstraçã o
de um pode r especial, no caso voar, ma s ligado
també m a um saber místico: as palavras mágicas,
passada s de pai para filho, q u e afinal sã o as
palavras mágicas contidas na Tora.
O ritual de maioridad e para meninas , ao s 12
anos , se cham a bat mitsvã. Creio q u e isso
vem somar-se á escolh a d o vampiro , e m alusã o á
palavra bat, morceg o em inglês. Vocábulo q u e .
Fada s n o Di v a — P s i c a n á l i s e n a s História s Infanti s
n o s s o c a s a m e n t o produziu , fantasiei uma . Kssa
forma alegórica respeita
seriam, c o m o o Batman, a síntese entr e os
h o m e n s e o s morcegos .
Além disso , q u a n d o r e c e b e m o s convite s
par a rituais, q u e no s levam a participar de cerimônia s
tant o judaicas qu a nt o católicas, a questã o cie pertenç a
a um ou outr o sistema religioso ressurge para nossa
família. O ritual do Yampi extrai da í sua relevância,
ele apont a nossa falta de rituais e c o n s e q ü e n t e ment e
a diferença da s nossas (ilhas para com as outras crianças.
No conto , e por ocasiã o de um ritual q u e o herói
entra em crise existencial e parte para uma
descobert a
l-'u s u p u n h a , i n c o n s c i e n t e m e n t e , q u e
minhas
(ilha s vivia m um (.'oniJ>/cxo de \uni/>i.
t e n t a n d o assimilar as dua s filiações culturais. De
certa lorma. o certo e qu e q u e m estava \ i \ e n d o
ess e c o m pl e x o era eu. pois na o sabia o qu e lhes
passa r c o m o legado , e a mã e delas, men o s ainda. Ku
tive uma e d u ca ç ã o católica formal da qual ja n a o me
queixo , digamo s q u e estou pacificado a esse respeito.
|ã Diana vive o seu judaísmo com o algo atravessado ,
ela na o c o n he c e be m a sua religião de origem e
(oi criada po r seu s pais fora da s tradições, embor a
tenh a tido algum a convivênci a co m judeu s ortodoxo s
de um ram o cia sua família.
Alguma s veze s p e ns e i q u e teria ha vi d o
um a antecipação da minha parte, trazend o â baila um
assunto que . na verdade , estava pesand o mais para o me
u lado. Mas p e n s o q u e não , afinal minha s
filhas aderira m entusiasticamente a historia, tanto
qu e a construímo s juntos. Alem disso, c o m o a
invençã o da historia na o passa por uma
determinaçã o consciente, seu s tempo s n ã o o b e d e c e
m â razão , ma s sim à s n e c e s s i d a d e s interiores
cie elaboração , co m seu própri o cronograma .
() material qu e se faz present e neste cont o familiar
merec e um comentári o a parte. O conte úd o assemelha-
se a um sonho , na o tanto pel o seu caráter inconsciente,
atinai e passível de se fazer conscient e sem
maiore s dificuldades, mas pela resolução qu e o conflito
encontra. Nã o e a to a q u e l ; reu d i n t r o d u z i u
o e s t u d o cia interpretação do s sonho s co m exemplo s
d e sonho s qu e realizavam tarefas ou atendia m desejos
pendente s . Não há o qu e o trabalho onírico nã o
laça para viabilizar uma boa noite de sono . O sonh o
é. na maior parte da s vezes , u m aliad o d o
descans o , el e d a u m jeito na s pendências ,
despach a os problema s a seu modo .
Ksse c o n t o oferec e um a possibilidad e
d e resoluçã o d o problem a d a identidad e cultural
dividida: p r o p õ e o c a mi n h o d e pensa r u m ser misto
co m o alg o palpáve l e interessante , m e s m o s e n d o
u m vam pir o excêntrico , ('orn o n ã o tínhamo s uma
definição precisa d a síntes e religioso-cultura l q u e
a diferença, tornando-a inclusive mais radical do que
é . ma s conserv a a força d o amo r q u e un e o s
dois m u n d o s . O resultad o dessa uniã o sã o filhos qu e
têm traços de identificação co m a m b o s os lados. Ou
seja. o Yamp i r e s o l v e n o s s o p r o b l e m a , el e é
u m ser inteligente o suficiente para se questionar ,
corajoso para enfrentar seu s segredo s e, ainda, para
aceitar sua diferença. Kntao, encontra mos , através dess e
vampiro, uma torma para encaminha r a elaboraçã o de
algo que n a o consegui a ser falado de outra maneira . Kssa
era a resoluçã o possível, considera nd o a pouc a idad e
que minha s filhas tinha m na ocasião .
\o moment o em qu e o cont o estav a
se n d o narrado , o ca minh o da identificação da s menina s
com os persona ge n s era lateral: elas se considerava
m as irmãs esquisitas do Yampi. Klas també m eram
diferentes e. um dia. à sua maneira , teriam de
descobri r essa diferença, assim c o m o ele descobri u a
complexidad e da sua origem . Ou seja. a tarei a era
adiada para um m o m e n t o d e mais maturidade , c o m o s e
elas dissessem:
"esta bem , ele já enfrentou, um dia será a nossa
vez, mas precisamo s clc mais tempo" .
Pensar qual origem ficou para os vampiros e qual
para os hu ma no s na o leva a lugar algum, o qu e importa e a
diferença. Ku mes m o tentei fazer essa interpretação e
cheguei a amba s conclusões , em cada um do s povos cio
cont o ha elemento s para se fazer as conexõe s com um a
o u outr a tr ad iç ã o . O s j u d e u s p o d e m ser o s
vampiros, afinal sa o uma minoria q u e vive em
outro mundo- a sua cultura. Por outr o lado, q u a n d o
se trata d e derrama r sangue , p o d e m o s chama r o s
povo s d e tradição cristã, cies são especialistas nisso, tanto
que já vampirizaram o pov o judeu várias vezes. Pens o
que a questã o principal gira em torn o de um pov o
do dia e um pov o cia noite qu e na o p od e m se
misturar, pois esta e a lei. Kssa metáfora serve para muitos
povo s com diferenças culturais acentuadas .
Q u a n t o a ser vegetariano , vale uma s palavras a
mais. pois isso é um a questã o important e em
nossa lamília. Meu irmã o e sua espos a sã o muit o
presentes para nossa s meninas , embor a fisicamente
distantes - se mpr e m o r a n d o n u m cant o re mot o cio
m u n d o - . sao subjetivament e marcantes . Ambo s sã o
vegetarianos, c você s p o d e m imagina r o q u a n t o
isso é motiv o de assunt o para o resto de um a família
gaúcha , para quem o churrasc o é quas e um ritual de
pertença . De qualquer lorma , o vegetarianism o é um a
identidad e construída a partir de um a restrição
alimentar.
Kssa identidad e t a m b é m eco a em várias histórias
contada s pela Diana, trazidas de sua infância,
sobre c o m o foi convive r co m um a part e da família
qu e só
Di a n a Li c ht e n st e i n C o r s o e Mári o Co r s
o
o vou aborrecê-los co m o resto de c on e x õ e s
autobiográficas, apena s p o d e m o s constatar
comi a kosbcr - comid a apropriad a par a
c o n s u m o s e g u n d o estritas regras religiosas judaicas. Fia
vivia de forma incômod a o lato de seu s parente s se
recusare m a usar os prato s e talhere s de sua
casa po r sere m impuros ; po r extensão , ela tam bé
m s e sentia impura . Trata-se d a n oç ã o d e um a
identidad e imaginada nã o c o m o religiosa e cultural,
mas, na visão de unia criança, c o m o um a questã o ele
regrament o da oralidadc .
Huda e Pest. os gêmeos , são uma alusã o a
meu sogro, afinal ele é húngar o nascid o em
Pest. cidad e gême a de Huda. Nas histórias qu e
se seguiram, eles ganhara m mais espaç o c o m o
cientistas precoces , outra alusão ao avô. engenheir o
químic o e curioso po r ciência. O Yampi n ã o se restringe
a isso. Mais coisas sa o
ditas nessa história, ma s jã n ã o pertence m ao
me u encontr o co m minha s filhas ou . pel o menos , na o
tanto , p e rt e n c e m , sim, a minh a história pessoal .
Poderi a facilmente fazer as co n e xõ e s , ma s fugiria
da nossa sistemática; entretanto , alguma s
pincelada s valem a p e n a . a p e n a s par a p e n s a r
d e qu e maneir a certa s questõe s p o d e m ser
passada s ao s filhos. As bolsada s repetidas , po r
ex e m pl o , sã o a minh a fantasia infantil de c o m o eu
concebi a o sexo : o amo r do s adulto s teria um
c o m p o n e n t e agressivo. O q u e disso passa para as
minha s Iilhas está em aberto ; se a infância dela s
lhes la n ç o u a m e s m a h i p ó t e s e s o b r e a r el aç ã
o sexua l formulad a pela minha , certament e elas
encontrarã o nessa cen a uma ilustração.
Kmbora o vampiro seja um personage m
clássico, tenh o uma afinidade com sangue por experiência
pessoal. Cresci vend o minha mãe . por ser
bioquímica, tirando sangu e de tod o o mundo .
Sangue esse qu e era depoi s analisado, passava por
vários processos, enfim, era um element o cotidiano da
minha infância, e principalmente eu tinha motivos para
crer qu e minha mae se interessava muito por ele. Quant o
ao sol. digamos qu e compartilho co m o s vampiros o
med o d e seus eleitos. \ a o qu e e u vire pó, mas
ele para mim e um problema, pois tenh o uma pele
muito sensível, qu e infelizmente passei com o herança
para minha filha mais velha.
O encontr o co m a tia tardiament e descobert
a e im portant e n o c o n t o p o r q u e , q u a n d o era
m e n i n o , conhec i tios co m q u e m nã o tivera contat o
até entã o - nã o foi exatament e assim, mas esse
foi o jeito co m o percebi. Meu av ô teve dois
casamento s e havia uma certa distância, qu e po r sorte
se dissolveu, entr e as dua s famílias q u e ele constituiu,
e a lembrança dess e grato encontr o ficou fortemente
gravada em mim. Com o isso nã o tem importância
ne n h u m a para ninguém , a n ã o ser para mim, nã
as crianças.
Q u a n d o tivemo s o p o r t u n i d a d e d e u m
contat o pessoal co m Celso Gutfreind. q u e alé m d e
psicanalista é u m r e c o n h e c i d o a u t o r cie ficçã o
par a crianças , pergu nta mo s sobr e as fontes po r
ele utilizadas para esse conceit o q u e no s havia
interessado . Kle se referiu a um coleg a na França.
B. Golse . q u e teria sid o o primeiro a mencioná-
lo . Celso fez o m e s m o q u e nós , gostou cia idéia e
solicitou a fonte cie o n d e se u coleg a havi a r e gi s tr a d o
tal idéia . Gols e n ã o c o n s e g u i u encontra r a
referência e, assim, Gutfreind teve de citar, e m seu
livro, o conceit o c o m o provenient e d e comu •
nicaçã o oral.
P o d e m o s recorre r a o utr o conceit o d e
Wánnicott par a no s aj u d a r n e s s e momento .
Ele tinh a u m a expressã o para descreve r o tipo
de conteúd o q u e se cria n u m espaç o entr e um
ser h u m a n o e outr o - po r exemplo , o beb ê e o seio,
o psicanalista e o pacient e - e qu e nã o pertenc e ne m
a um ne m a outro :
300
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co r s o e Mário Co r s
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Casament o 129
arranjado 134, 141, 145, 151-152, 154, 157
Babás 234-235 intercultural 145-146, 295-297
Bambi P3 Castelo Rá-Tim-Bum 266
Barba Azu l 151-160. r6 Castração 240
Barrie. J a m e s Matthew 22" simbólica 68
Basile. Giambattista 64, ~6. 84. 93 . 101-102. KF. Caumont , Charlotte Rose de 65
HO Beaumont . Jeanne-Mari e I.eprince d e 1.3-+-135. Cegueira 68
'3~ Cenenterol a IO"7-116
Bebês, primeir o sinal cie independênc i a 4.3-50 Censura no s conto s de fadas 26, 64, 102
Beijo, simbolism o 131-132 Chamisso . Adelbert von 241
Bela Adormecid a do Bosque , A 84-92 Cha peuzi nh o Vermelh o 51-61. 133, 166
Bela Adormecida , A ~S- - 6 . 84 Chapoli n Colorad o 168. 181
Bela e a 1'era, 13i-135 . 1 i2 , 152 Charlie Brown 1~4, 185
Bele/ a ""9, 80. 8 1 . 9 1 . 96. 100. K M . 110. 129-139. Chiquititas 1~2. 182
145- Cinderel a 8" \ 102. 103. 1()~-116, 136. 163, 17 9
1+4 Cinzas 9 6 -9 " . 110. 113. 115
feminin a ""9-92 simbolism o 113, 116
B e nign i . Robert o 2 16 Cisão do objet o a m a d o 1 13
Bernard o e Bianca )9 Ciúme s 159
Bettelheim . Brun o 165. P 3 - H - + , P 8 - P 9 Cocanh a t2
Bich o Pelud o 80. 93. 1 13 Cólicas do recém-nascid o }4, 66-67
Branca de Neve _ S-92 . 111. 2=51 Complex o de Castração 114
Branca de Nev e e os Sete Anõe s 162. 166 Co mple x o de Fxlipo 125. 261-262
Brincar 236-238. 2 5 1 , 260 na menin a 8"". 95-105
B r o w n i n g . Roberl 50 n o m e ni n o 9 8
Bruxa 5^. 65. ^ 6 . 83. 86. 2 ( 6 - 2 i 8 . 250-252 C o m p or ta m e n t o regressivo 229
devorado r a 4.5, t5 Co mp ulsã o ã repetiçã o 216-217
Bruxas. As (novel a de Roald Da h l ) . 49 C o nc e pç ã o oral d o m u n d o 43-50
Bulimi a 48 Construçã o d a
identidad e feminina
252
-
n o menin o 120-12-1
7
Cabelos, sim b o lis m o 69, "73 9
Caçadores 80-81 . 9 " Construçõe s e m análise 1
Cachinhos Dourado s 31-40 Cont o maravilhos o 27-28, 40
Cachos de cabelo, simbolism o 39 Conto s de fadas
Caçula 38. 103. 105. 150 a d e q u a ç ã o e i na d eq u aç ã o 163-166
Caixa de Pandora 154 censur a 26. 64
Calvin 185. 2~(). 281-286 c o m o linguage m entr e geraçõe s 169
Calvin e Harold o 198 difusão 1 6 9 - P 0 . H 8
Calvino . ítalo 153 e a lógica infantil F 0 - H 1 , 174-175, 179
Canibalismo 80. 85. 91 e mitos 28
Cantigas de ninar 1 "9-180 efeitos terapêutico s 178-179
Cao Hamburge r 266 eficácia 163. 170, 173-174, 176-180
Capacidad e de estar só 204 estrutura 2"\ 144, 166, 174-175
Capa-de-Junc o 102 final feliz 165. 173-174
Cario Collodi 172 fontes 144
Carneiro Fncantado , O l t 3 idealizaçã o d o s 162-165
Casa, simbolism o 251 ilustração 166-167
Casal, construçã o da identidad e 145-146 impact o na infância 28
Casal, diferenças culturais 145-146 magia 265-266
mitos 166, 175-176
Di a n a Lic h te n st ei n C o r s o e Mári o
Co r s o
m o d e r n o s 243-244, 247
mu danç a d e públic o 2
5 novo s meio s 169
orige m 25. 27. 165. 168-171, 175-176
realidad e no Zl. t2
restos históricos 175-17 6
s e g u n d o Brun o Bettelheim 165. P . 3 - P i .
P8-P
simboli/.ação 163-165. P I
transformaçõe s históricas 168
us o pela criança 28-29
valor do s 162-182
Conto s folclóricos,
eficácia P7
orige m P5-P6
Conto s maravilhoso s 2-4.3
Conto s narrado s em família 289-301
Control e esfincteriano 99
Corp o infantil
perd a d o 251
Corp o matern o
fantasias co m 58, 114
reincorporaç ã o 210
simbolism o 44. 210
COITO , O 148
Cresciment o 120, 126. 133. 224
dificuldades 229-233. 2-4~
jornad a d e 250-251
resistência ao 229-230
Criança
gosto s culturais 169- P 0
mimad a 1.33. 1.38-139
Crono s 121. 123. Ii2
Cuidado s materno s 2.34
higien e 206
na vida amoros a 102
Culto ao s morto s 112. 116
Cultura de massa s e histórias inlantis 168-169
Cupid o 1 43-1 (4. I t 9
Cupid o e Psiqu e 14.3-144
Curiosidad e .301
feminina 154-15"7
sexual 155-156
sexual infantil 54-60
31
9
Fada s n o D i v a — P s i c a n á l i s e n a s H is tó ri a s Infanti s
322
Di a n a Li c h t e n s t e i n Co rs o e Mári o Co r s o
na m o d er ni d a d e 36
Narcicismo 138-139
Nariz de Prata 151-160
Nariz, simbolism o 221
Nasciment o
da filha 76
d e u m irmão , reaçã o a o 3 8
d o "eu" 204-206
simbolism o 177, 223-22a
Neurose , repetiçã o 216
Nobreza , simbolism o 96
Noiv o anima l 129-139, 141-150
nova s formas 35
IP
Objet o fóbico 57-60. 180, 205-
206
Objet o transicional 204-205. 282
Objeto s mágico s 112, 264
Ó d i o da filha pela m ã e 82-92
Ogro s 43, 117, 120, 123. 126
Olha r 8 0
d o pai 80, 95
m at er n o 241
Omissã o patern a n a e d uc aç ã o
16" On dina s 71
Onipotênci a infantil 208
O pr e ss ã o da mulhe r 133, 156
Oralidad e 43-50, 101, 207-208
fantasias 57, 193, 207-208
incontinênci a 48
na gravidez 66-67
vida amoros a 101-102
Orelhas , simbolism o 220
Orfan dad e
na literatura 251
sentiment o d e 172-173, 259
Orige m
da ficção par a crianças 32
da literatura infantil 32
d o s conto s d e fadas, 25, 2 7
62
amea çado r 120-121 fraco 36, 65-67. 80, 107. 112, 246-247
b o m 120 frente a o b e b ê
c o m o adversári o do filho 123 6 6 incestuos o 95-
d 105 ma u 261-262
a possessiv o 158
visão primitiva do 218-219
i Pais
n c o m o gigante s 122
f da primeira infância 111-112
â desidealizaçâ o d o s 259
n devora dor e s 43
c inibido s em educa r 164
i narradore s 2 9 7
a suficientement e narradore s 298-301
Pais e filhos, desenco ntr o 89
1 Pandor a 154. 159
2 Papel da escola conte mpo râne a 256-257
0 Paraíso 68
- oral 48
1 perd a 45
2 simbolism o 65
1 Paranói a 212
Parentalida d e
d conte mp orân e a 238-239
e desidealizaçâ o da 284-285
v Parto 210
fantasia de 58
o Pássaro do Bruxo, O 151-160
r Pássaros, simbolism o 115
a Passividade 92
d feminina 84-92
o infantil 276
reaçã o 207
r Paternida d e
construç ã o da 217, 219-220
1 dificuldades 219-220, 238-239, 247, 257-258, 284-
2 285,
0 fantasias sobr e 261-262
-
1
2 323
1
d
u
p
l
i
c
a
ç
ã
2
6
1
-
2
Fada s n o D i v a — P s i c a n á l i s e n a s H is tó ri a s I nf a n ti s
Roca, simbolism o 88
Role-Playing G a m e s 262
Romance , características 218
"Romanc e Familiar d o Neurótico " 258
Ro mpi me nt o
da filha c o m o pai 132-133
do pai co m a filha 156-15"7
Rompiment o d o híme n 8 8
Roub o
doméstic o 122
simbolism o 120-122
Rowling, J o a n n e K. 253-25-4
RPG 268
3
2
5
Fada s n o Di v a - P s i c a n á l i s e n a s Hi st ó ri a s Infa nti s
326