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A EVOLUÇÃO DAS IDÉIAS SOBRE


A RELAÇÃO ENTRE CÉREBRO,
COMPORTAMENTO E COGNIÇÃO
Ramon Moreira Cosenza
Daniel Fuentes
Leandro F. Malloy-Diniz

A neuropsicologia é um campo do co- torno do déficit de atenção/hiperatividade,


nhecimento interessado em estabelecer as esquizofrenia, dislexia) ou ser adquiridas
relações existentes entre e o funcionamen- ao longo do curso da vida (p. ex., traumatis-
to do sistema nervoso central (SNC), por mo cranioencefálico, acidente vascular ce-
um lado, e as funções cognitivas e o com- rebral, demências).
portamento, por outro, tanto nas condições As aplicações da neuropsicologia têm
normais quanto nas patológicas. Ela tem na- aumentado significativamente, à medida
tureza multidisciplinar, apoiando-se em fun- que progridem os conhecimentos nas di-
damentos das neurociências e da psicolo- versas disciplinas que lhe são caudatárias.
gia, e visa ao tratamento dos distúrbios Cada vez mais ela é chamada a resolver
cognitivos e comporta- problemas que se apre-
mentais decorrentes de A neuropsicologia é um campo do sentam na prática clíni-
alterações no funciona- conhecimento interessado em es- ca de neurologia, psico-
mento do SNC. tabelecer as relações existentes logia, psiquiatria, peda-
A neuropsicologia, entre e o funcionamento do siste- gogia, geriatria, fonoau-
ma nervoso central (SNC), por um
na atualidade, tem uma lado, e as funções cognitivas e o diologia, etc. Além disso,
ampla gama de aplica- comportamento, por outro, tanto a neuropsicologia tem
ções na prática de pes- nas condições normais quanto nas expandido suas áreas de
quisas e na área clínica, patológicas. atuação e sua interface
que são freqüentemente com outras áreas do co-
de natureza multiprofissional. O neuropsi- nhecimento, como a filosofia e as ciências
cólogo atua, principalmente, na avaliação exatas (as novas áreas de aplicação da
(exame neuropsicológico) e no tratamen- neuropsicologia serão discutidas no último
to (reabilitação neuropsicológica) das con- capítulo deste livro).
seqüências de disfunções do sistema ner- Conforme salientado por Kolb e Wi-
voso. Essas disfunções, por sua vez, podem shaw (1995), mesmo sendo uma discipli-
estar relacionadas ao desenvolvimento na científica recente, o desenvolvimento
anormal do sistema nervoso (p. ex., trans- dos pilares da neuropsicologia ocorreu ao
16 Fuentes, Malloy-Diniz, Camargo, Cosenza & cols.

longo de vários séculos, partindo da busca díaca (como é chamada a crença de que a
pela compreensão sobre a relação entre o mente está associada ao coração). Na Grécia
organismo e os processos mentais até o essa noção encontrou seus primeiros oposi-
estágio atual, em que buscamos compre- tores formais, entre eles Alcmaeon de
ender como o sistema nervoso modula nos- Crotona (500 a.C.), que formulou a hipóte-
sas funções cognitivas, comportamentais, se de que os processos mentais estariam as-
motivacionais e emocionais. sociados à atividade cerebral. Essa idéia não
Embora atualmente pareça um truís- era aceita tranqüilamente, e outro filóso-
mo a concepção de que, em nosso organis- fo, Aristóteles (384-322 a.C.), cuja obra se
mo, o sistema nervoso relaciona-se com tornou mais influente, era um opositor
comportamento e processos mentais, na veemente dessa idéia. Para Aristóteles, no
verdade foram necessários vários séculos coração estaria a base da mente, enquanto
para que essa idéia se tornasse sólida e o cérebro seria uma espécie de radiador,
aplicável à prática clínica. com a função de resfriar a temperatura
Esclarecer como o corpo se relaciona sangüínea.
com os processos mentais e comportamen- Paralelamente às diferentes tendên-
tais é uma questão que desperta interesse cias filosóficas, as observações clínicas
há milênios. Na Antigüidade, em diferen- como as de Hipócrates (460-400 a.C.) e Ga-
tes culturas, diversas teorias tentaram lo- leno (130-200 d.C.) foram determinantes
calizar a alma no corpo humano. Não se para a solidificação da hipótese cerebral.
sabe precisamente quando a associação en- Ao longo dos tratados médicos reunidos no
tre a atividade cerebral e a mente come- Corpus Hipocraticus e nos relatos de
çou a ser feita. No entanto, achados paleon- Galeno, médico dos centuriões romanos, a
tológicos de crânios pré-históricos trepana- lesões cerebrais são atribuídas alterações
dos ainda em vida indicam que o homem da personalidade, do comportamento e da
das cavernas já procurava intervir no cére- capacidade de raciocínio. É bom lembrar
bro, possivelmente na tentativa de liberar que, embora saibamos que o coração não
os maus espíritos que o atormentavam. controla os processos mentais, nossa cul-
No Egito, embora vigorasse a idéia de tura popular carrega ainda hoje marcas
que o coração era a sede da alma e o órgão desse dilema da Antigüidade Clássica.
controlador dos processos mentais, há uma Além do dilema cérebro versus cora-
das primeiras evidências documentadas em ção, registre-se, também, outra fonte de con-
favor da idéia de que o cérebro se relacio- fusão. Desde as primeiras observações
na aos processos mentais. No papiro de anatômicas, era evidente que o cérebro é
Edwin Smith, escrito há cerca de 3 mil anos composto por tecido e por cavidades, os
e atribuído ao médico Imhotep, encontram- ventrículos cerebrais. Os ventrículos chama-
se diversos relatos clínicos, entre eles o de vam muito a atenção dos primeiros anato-
um paciente com alterações da linguagem mistas, pois o cérebro não fixado aparecia
decorrentes de ferimento localizado no apenas como uma geléia amorfa. Acredita-
osso temporal. Uma segunda associação, va-se, então, que nos ventrículos cerebrais
provavelmente casual, também foi origina- circulavam fluidos, ou espíritos, que seriam
da de uma civilização que acreditava ser o importantes na regulação do comportamen-
coração a sede da alma: a hebraica. Na Bí- to. Para Galeno, esses espíritos eram deri-
blia, no livro de Daniel, é descrito um so- vados do processamento dos alimentos no
nho do rei Nabucodonosor em que ele se fígado e na corrente sangüínea e armaze-
refere a imagens atemorizantes que vinham navam-se nos ventrículos cerebrais. Dali eles
de sua cabeça. podiam viajar através dos nervos, conside-
Cabe salientar que, na Antigüidade, rados como estruturas ocas, provocando mo-
muitos povos eram adeptos da hipótese car- vimentos e mediando sensações.
Neuropsicologia 17

Essa concepção, chamada hipótese cionamento de diferentes áreas da sua ana-


ventricular, foi amplamente aceita nos sé- tomia. Nascia o debate entre os holistas e
culos seguintes, obtendo a aprovação da os localizacionistas. Para os primeiros, não
Igreja Católica. Durante a maior parte desse haveria especificidade regional no cérebro,
período os ventrículos são representados que controlaria o comportamento atuando
como sendo três, em que o primeiro seria como um todo. Os segundos acreditavam
responsável pelas sensações; o intermedi- que o cérebro atua de forma fragmentada,
ário, pela razão e pelo pensamento; e o e cada uma de suas regiões seria responsá-
último cuidando da memória. vel por uma função mental e comportamen-
René Descartes (1596-1650), um dos tal específica.
expoentes da filosofia ocidental, também Entre os localizacionistas, vale men-
conferiu aos espíritos circulantes nos ven- cionar a teoria elaborada por Franz Joseph
trículos uma importância no processo de Gall (1757-1828) e muito difundida por
controle comportamental. Para ele, a mente seu aluno, Johann Gaspar Spurzheim
seria adimensional e imaterial, mas ela (1776-1832). Essa teoria ficou conhecida
deveria interagir com o corpo por meio de como frenologia – embora tenha sido de-
uma estrutura, a glândula pineal, que por nominada inicialmente organologia (Zola-
sua vez poderia controlar os comportamen- Morgan, 1995) – e tinha como pressupos-
tos, reflexos ou não, por meio de uma ação tos básicos as seguintes afirmações:
regulatória sobre a circulação dos espíri-
tos animais. 1. cada região do cérebro constitui-
As evidências sobre a importância do se em um “órgão” responsável por
parênquima cerebral foram se acumulando uma função mental ou comporta-
aos poucos, tanto do ponto de vista anatô- mental específica;
mico quanto clínico. O anatomista Andreas 2. cada região do cérebro se desen-
Vesalius (1514-1564), por exemplo, em seu volve de forma a moldar a super-
tratado De humani corporis fabrica, argu- fície craniana;
mentou que o que diferenciava os huma- 3. se uma região é bem desenvolvi-
nos dos outros animais era o volume de te- da, ela cresce em volume, refletin-
cido cerebral e não o tamanho dos ventrí- do esse crescimento no desenvol-
culos cerebrais. Posteriormente, Thomas vimento do crânio.
Willis (1621-1675), além de atribuir papel
crucial ao tecido cerebral, propôs que a ori- A partir dessas hipóteses, Gall e Spur-
gem dos conceitos e do movimento estaria zheim inferiram que, ao analisar a superfí-
no cérebro, sugerindo que a imaginação cie do crânio, seria possível saber se uma
estaria associada ao corpo caloso. Ao final função mental é bem desenvolvida ou não.
do século XVIII, as duas correntes teóricas – Após estudarem centenas de crânios, che-
ventricular e tecidual – ainda conviviam garam a um modelo em que atribuíram ao
lado a lado, e só o desenvolvimento da ci- cérebro 35 diferentes “órgãos”. Dentre eles
ência moderna veio comprovar o acerto da estariam áreas compartilhadas entre ho-
segunda. mens e outros animais, como a área da co-
Tendo o cérebro se ragem e do instinto car-
consolidado como o ór- nívoro, além de outras
Tendo o cérebro se consolidado
gão responsável pelos como o órgão responsável pelos
áreas especificamente
processos mentais e pelo processos mentais e pelo compor- humanas, como as rela-
comportamento, surgiu tamento, surgiu o problema de sa- cionadas à sabedoria, ao
o problema de saber se ber se essas funções poderiam ser senso de metafísica, à
essas funções poderiam decorrentes do funcionamento de sátira, ao talento poéti-
diferentes áreas da sua anatomia.
ser decorrentes do fun- co, etc.
18 Fuentes, Malloy-Diniz, Camargo, Cosenza & cols.

A frenologia acabou por ser rechaça- tal específica. Além disso, Wernicke cha-
da na comunidade científica, por apresen- mou a atenção para o fato de que as fun-
tar falhas em praticamente todas as suas ções cerebrais poderiam também ser com-
hipóteses constituintes. Nessa mesma épo- prometidas pelas lesões nas conexões en-
ca, o fisiologista francês Pierre Flourens tre regiões cerebrais diferentes. Assim, pos-
(1794-1867), a partir de lesões provoca- tulou a existência de outro distúrbio da lin-
das em sujeitos animais, concluiu que não guagem, a afasia de condução, que seria
importaria a área da lesão, mas a quanti- originada por lesões no fascículo arquea-
dade de material cerebral lesionado. Para do, responsável pela conexão entre a área
ele, qualquer área do cérebro poderia as- de Broca e a de Wernicke.
sumir, com ou sem redução de sua eficiên- No início do século XX, pesquisado-
cia, funções que estavam em uma outra res experimentais de renome, como Karl
área danificada. No início século XX, o psi- Lashley, após estudos com animais, publi-
cólogo canadense Karl Lashley (1890- caram dados desanimadores sobre a possi-
1958) reforçou esses dois princípios teó- bilidade de localização de funções, como a
ricos, dando a eles os nomes de principio memória, em regiões cerebrais circunscri-
da ação de massa e equipotencialidade, res- tas. No entanto, começaram a surgir evi-
pectivamente. dências e teorizações que iriam dar corpo
O pêndulo da história voltou a favo- à neuropsicologia que hoje conhecemos.
recer os localizacionistas em meados do Dentre essas, iremos destacar algumas que
século XIX. Isso se deu quando Paul Broca nos parecem importantes.
(1824-1880), entre 1861 e 1863, apresen- No final dos anos de 1940, Walter
tou à Sociedade Parisiense de Antropolo- Hess (1881-1973) criticou a noção de “cen-
gia a descrição de cerca de nove pacientes, tro” nervoso e propôs que as diferentes ati-
vítimas de lesões nos lobos frontais do he- vidades dependem de uma “organização”
misfério cerebral esquerdo, que apresen- cerebral. Atividades mais complexas recru-
tavam uma síndrome caracterizada por tariam, proporcionalmente, um maior nú-
comprometimento maciço na produção da mero de estruturas, que intervêm no pro-
fala e relativa preservação da compreen- cesso. Na mesma época, a partir dos estu-
são da linguagem. A síndrome foi nomea- dos de James Papez (1883-1958) e Paul
da afasia de Broca, e a área da lesão foi MacLean (1913-), evoluía o conceito de
chamada área de Broca, passando a ser “sistema límbico”, um conjunto de estru-
conhecida como o “centro funcional da lin- turas cerebrais interconectadas, que se re-
guagem”. Posteriormente, o neurologista velava importante para o processamento
alemão Carl Wernicke (1848-1904) descre- das funções emocionais e sua integração
veu pacientes que tinham um tipo de lesão com a vida de relação. Nos anos 1950 o
diferente daqueles descritos por Broca e neurocirurgião William Scoville (1906-
que, por sua vez, também apresentavam 1984) publicou o caso de um paciente –
comprometimento de suas habilidades lin- amplamente conhecido na literatura neu-
güísticas. Esses pacientes tinham lesão no ropsicológica como paciente “H.M.” – sub-
córtex temporal do hemisfério cerebral es- metido à remoção bilateral do hipocampo
querdo e apresentavam dificuldade na e das amígdalas para tratamento de um
compreensão da linguagem, quadro que grave quadro epiléptico e que, após a ci-
passou a ser nomeado como afasia de rurgia, desenvolveu uma incapacidade
Wernicke. Essa descrição de uma nova área maciça de aprender novas informações. Fi-
relacionada à linguagem impulsionou ain- cava claro que processos mentais impor-
da mais a noção de que o cérebro seria tantes, como a aprendizagem e a memó-
composto por diversos centros funcionais, ria, dependiam da integridade de centros
cada um responsável por uma função men- nervosos específicos e suas conexões.
Neuropsicologia 19

Nos últimos anos, o advento das téc- O monumental trabalho de Luria in-
nicas de neuroimagem veio possibilitar a cluiu o desenvolvimento de uma bateria
confirmação de fatos já conhecidos, bem completa para o exame neuropsicológico,
como acrescentar novas evidências que que influencia ainda hoje boa parte dos
ampliam extraordinariamente as possibili- testes usados na atividade cotidiana dos
dades de correlação entre as funções neuropsicólogos. A bateria de Luria, junta-
cognitivas e o funcionamento cerebral. mente com a bateria Halstead-Reitan, foi
O localizacionismo, no entanto, só muito usada em meados do século XX, quan-
viria a ser superado por um novo conceito do se preconizava aquela abordagem
de função, algo tentado por vários cientis- abrangente para o exame neuropsicológico.
tas, entre os quais se salienta o neuropsicó- Da bateria de Luria derivam outras, como a
logo soviético Aleksandr Luria (1902- Luria-Nebraska e o teste de Barcelona, ca-
1977), cujo modelo é hoje amplamente pazes de trazer uma ampla informação so-
reconhecido e aceito, embora já com mo- bre o funcionamento das funções cognitivas
dificações que precisam levar em conta, en- e que têm ainda utilidade, embora o arse-
tre outros fatos, a assimetria da função ce- nal de testes neuropsicológicos tenha se tor-
rebral, hoje mais profundamente compre- nado mais específico e se multiplicado de
endida. forma exponencial nos anos mais recentes.
Luria (1980) postula um novo con-
ceito de função, exercida por “sistemas fun-
cionais” que visam à execução de uma de- REFERÊNCIAS
terminada tarefa (a tarefa é constante, mas Barcia-Salorio, D. (2004). Introducción histórica al
os mecanismos para executá-la podem ser modelo neuropsicológico. Revista de Neurologia, 39,
variáveis). Funções mais elementares po- 668-681.
deriam ser localizadas, mas os processos
Cosenza, R. M. (1996). Evolução das idéias sobre as
mentais geralmente envolvem zonas ou funções cerebrais. Revista Médica de Minas Gerais,
sistemas que atuam em conjunto, embora 7(1), 45-51.
se situem, freqüentemente, em áreas dis-
Cytowic, R. E. (1996). The neurological side of neuro-
tintas e distantes do cérebro.
psychology. Cambridge: MIT.
Para Luria, pode-se distinguir no cé-
rebro três grandes sistemas funcionais. O Finger, S. (1994). Origins of neuroscience: A history
primeiro regula a vigília e o tônus cortical of explorations into brain function. New York: Oxford
University.
e depende de estruturas como a formação
reticular e áreas do sistema límbico. O se- Kolb, B., Wishaw, Q. (1995). Fundamentals of human
gundo se encarrega de receber, processar neuropsychology. New York: W. H. Freeman.
e armazenar as informações que chegam Luria, A. R. (1980). Higher cortical functions in man.
do mundo externo e interno e está situado (2nd ed.). New York: Basic Books.
em áreas do córtex cerebral localizadas Rufo-Campos, M. (2006) La neuropsicologia:
posteriormente ao sulco central. Ele orga- Historia, conceptos básicos y aplicaciones. Revista de
niza-se em áreas corticais primárias, secun- Neurologia, 43(Supl 1), S57-S58.
dárias e terciárias. Já o terceiro sistema Scoville, W. B., Milner, B. (2000). Loss of recent
regula e verifica as estratégias comporta- memory after bilateral hippocampal lesions. 1957.
mentais e a própria atividade mental, é The Journal of Neuropsychiatry and Clinical Neuros-
constituído pelo córtex cerebral situado nas ciences: Official Journal of the American Neuropsy-
regiões anteriores do cérebro e organiza- chiatric Association, 12(1), 103-113.
se, também hierarquicamente, em áreas Zola-Morgan. (1995). Localization of brain function:
corticais primária, secundária e terciária the legacy of Franz Joseph Gall (1758-1828). Annual
(ver Capítulo 2). Review of Neuroscience, 18, 359-383.

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