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Sebenta Português 12 Ano

Fernando Pessoa- heterónimo


A palavra heterónimo vem do grego e significa ‘outro nome’,
ou seja, as personagens têm personalidade própria como se
fossem pessoas reais.

Nota: um pseudónimo, por sua vez, é a simples criação de um


nome, mas sem uma personalidade própria.

Pensa-se que Pessoa sofria de histerismo, mas eu prefiro acreditar na sua genialidade. Acredito
que encontrou na criação dos seus heterónimos uma forma de exprimir o seu mundo e o modo
como entendia as coisas. Ele não descartava a hipótese de ser histérico, mas, como sugere,
enquanto nas mulheres dá para explosões, nos homens acaba em silêncio e é esquecido.

Na obra Páginas Íntimas e de Auto –Interpretação, Pessoa afirma «Tive sempre, desde criança,
a necessidade de aumentar o mundo com personalidades fictícias, sonhos meus rigorosamente
construídos […]» e acrescenta ainda «Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente,
como se o meu ser participasse de todos os homens […]».

Porém, ele contradiz-se afirmando mesmo que nada têm a ver consigo: «não há que buscar em
quaisquer deles (Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos) ideias ou sentimentos meus, pois
muitos deles exprimem ideias que não aceito, sentimentos que não tive».

Será?

Repara que o fenómeno da heteronímia surgiu quando ele tinha entre os 5/6 anos, fruto da
necessidade de descobrir a sua consciência e a sua personalidade. Nota que o pai havia morrido
e a mãe acabou por casar com outro homem, tendo de ir viver para o sul de África. Isto causa
um impacto profundo em qualquer criança!

Atenta neste excerto ao seu colega Adolfo casais Monteiro, onde ele fala sobre a questão da
heteronímia:

«Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo,


ou, antes, o meu primeiro conhecido inexistente — um certo Chevalier de
Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e
cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha
afeição que confina com a saudade. Lembro-me, com menos nitidez, de
uma outra figura, cujo nome já não me ocorre mas que o tinha estrangeiro
também, que era, não sei em quê, um rival de Chevalier de Pas… Coisas
que acontecem a todas as crianças? Sem dúvida — ou talvez. Mas a tal
ponto as vivi que as vivo ainda, […]

E ele continua, afirmando que «Esta tendência para criar em torno de mim
um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da
imaginação. […] E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos
que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de
distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto, vejo… E tenho saudades
deles.”

LILIANA VIEIRA CONDE 1


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Na mesma carta ele afirmava, ainda:

«hoje já não tenho personalidade: quanto em mim haja de humano eu


o dividi entre os autores vários de cuja obra tenho sido o executor. Sou
hoje o ponto de reunião de uma pequena humanidade só minha».

Pessoa procurou encontrar-se nessa diversidade. Aliás ele é essa diversidade.

Com 19 anos já se sentia diverso, múltiplo, estrangeiro e desenraizado, não se conhecendo a


si próprio. Não aceitava nenhum emprego, pois nenhum era compatível com a sua criação
literária.

Foram precisos 72 heterónimos para se encontrar na multiplicidade. Muitos, não?!

Seria difícil analisá-los a todos, mas para além dos três já conhecidos, que iremos estudar, o
programa de português também aborda o semi-heterónimo Bernardo Soares, com o Livro do
Desassossego. Aqui retrata a Lisboa da 1ª metade do século XX, com as suas personagens
peculiares e um protagonista que aí deambula sem ter nada para narrar. É um livro fragmentário
e é considerado uma das obras que fundaram a ficção portuguesa do século XX.

O que o difere, afinal, dos outros heterónimos? O facto de Pessoa dizer que a personalidade não
é a sua, mas também não é muito diferente dela: «Sou eu menos o raciocínio e a afetividade».

Desta obra escolhi, apenas, a passagem que revela bem a proximidade dos dois:

«Escrever é esquecer. A Literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida.»

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Alberto Caeiro
Alberto Caeiro é o Mestre dos heterónimos e do
ortónimo. Pessoa criou-o como o contrário de tudo o
que ele é, pois é o símbolo da tranquilidade que o
ortónimo nunca conseguiu alcançar.

Para entenderes e decorares as suas características,


fixa-o nesta imagem. O pastor por metáfora!

Homem do campo, Caeiro teria apenas a instrução primária, simplicidade que se refletirá na sua
poesia. Porém, a sua felicidade vinha do facto de não pensar, defendendo que existir é estar de
acordo com as leis naturais.

Ele, como Ricardo Reis, é estoico e epicurista, embora nele não se notem tão acentuadamente
estas características. Mas vamos deixar a explicação destas características para Ricardo Reis.

A realidade é captada pelo olhar, sem recorrer ao pensamento, que ele considera ser uma
doença dos olhos: «pensar é estar doente dos olhos».

A única verdade é a sensação. Foi o único dos heterónimos que não escreveu em prosa, pois
acreditava que a poesia seria capaz de dar conta da realidade. Há um verso que gosto de utilizar
para o sintetizar:

«Acho que só por ouvir passar o vento vale a pena ter nascido».

A sua poesia está compilada em O Guardador de Rebanhos, obra com 49 poemas, com uma
métrica irregular e verso branco. Pessoa afirma que a maior parte destes poemas foram escritos
em pé, numa cómoda, em Março de 1914. Existem algumas confusões em relação ao dia correto,
mas são peculiaridades pessoanas.

Para além do Guardador de Rebanhos, Caeiro tem mais 2 obras: Poemas inconjuntos e O Pastor
amoroso.

Caeiro é o pastor por metáfora. Vamos percebe-la melhor?

Ele começa O Guardador de Rebanhos da seguinte forma:

«Eu nunca guardei rebanhos


Mas é como se os guardasse. Repara na comparação
Minha alma é como um pastor,
Conhece o Sol e o Vento a partir daqui personifica a alma
E anda pela mão das Estações,
A seguir e a olhar.»

LILIANA VIEIRA CONDE 3


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O sujeito poético afirma que, na realidade, nunca guardou rebanhos, ou seja, não é pastor de
verdade, mas comporta-se como se os guardasse porque a sua alma é que consegue
deambular, observar atentamente a natureza, como se fosse um verdadeiro pastor, andando
sem destino, apenas observando o seu rebanho, as suas sensações.

Esta postura torna-o num verdadeiro «argonauta das


sensações». Aquele que foi o 1º a conseguir sentir
verdadeiramente. Vamos fazer aqui um breve parêntesis
só para explicar o conceito argonauta. Os argonautas
foram os primeiros navegadores, muito antes dos
portugueses. Eram tripulantes da nau Argo e
procuravam o Velo de ouro (a lã de ouro de um carneiro
alado). É um mito grego interessante que podes
pesquisar se quiseres saber mais. Porém, o que interessa
reter é que significa o primeiro.

Em toda a sua poesia conseguimos ver, por exemplo, a simplicidade de estilo, a linguagem e o
vocabulário muito simples, o recurso a metáforas e comparações e uma preferência pelo nome
em vez do adjetivo, que permitem reforçara simplicidade de Caeiro.

Para exemplificar, vamos analisar o poema IX de O Guardador de Rebanhos


Sou um guardador de rebanhos. Reforço da metáfora com uma frase curta.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações. Antítese: afirma que guarda os pensamentos que são
Penso com os olhos e com os ouvidos sensações.
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca. Enumera os 5 sentidos, característica do sensacionismo,
com a ajuda da conjunção coordenada copulativa.
Repara que ele os enumera consoante a ordem em que
sente as coisas.

O pensar não lhe causa sofrimento como em Fernando


Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
Pessoa, pois pensar é sentir. Reforça, assim, a ideia de
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
que a sensação é a única realidade para ele

Por isso quando num dia de calor Ele sente-se triste de ter sentido o dia de uma forma
Me sinto triste de gozá-lo tanto.
intensa, mas isto não perturba a sua maneira de
E me deito ao comprido na erva,
perceber a natureza. Aceita a tristeza porque vem de
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, um excesso natural de felicidade.
Sei a verdade e sou feliz. A sua fusão, união com a natureza, é fantástica!

Este poema pode ser dividido em 2 partes:


 Duas primeiras estrofes – o sujeito poético apresenta o seu sensacionismo e a
preferência pelo sentir
 Terceira estrofe – parece ser uma conclusão, introduzida pela locução “por isso”. O
poeta funde-se com a natureza e isso torna-o feliz.

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O sentir o momento presente é o mais importante e, por isso, predomina o presente do


indicativo e o nome, em vez do adjetivo, pois não interessa caracterizar, mas nomear os sentidos
com que capta a realidade.

Há um outro poema que gostaria de destacar de Caeiro, o XXXVI:

«E há poetas que são artistas


E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas!...»

Este parece ser uma crítica àqueles poetas que constroem versos
como um pedreiro que constrói um muro, colocando versos em
cima de versos, trabalhando-os arduamente.

Segundo Caeiro, esta não é a forma de ser poeta, mas captar a


realidade com os sentidos.

Parece-nos ser também uma crítica a Pessoa, feita “por si próprio” (enquanto criador deste
heterónimo). Aliás, os poemas de Alberto Caeiro parecem ser uma fuga para a dor de pensar
que tanto atormenta o ortónimo, refugiando-se na vida do campo, na aurea mediocritas
horaciana, isto é, num local que dá tranquilidade.

Por fim, no poema II, «O meu olhar é nítido como um girassol», ele afirma que ao olhar para a
natureza sente a eterna novidade do mundo. A sua inocência, como a de uma criança, permite-
lhe ver as coisas como se fosse a primeira vez.

«Sei ter o pasmo em mim


Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo».

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Ricardo Reis
Esta é uma imagem que retrata Ricardo Reis. Fixa-a e compreende
as características ricardianas.

Ricardo Reis é o poeta clássico que aceitou e desenvolveu na sua poesia o paganismo
espontâneo de Caeiro. Paganismo é o culto e respeito à natureza, pois a Natureza é viva e
sagrada. Deus é só mais um deus e está em toda a parte, embora distante dos homens por não
se interessar pelo seu destino.

Se Caeiro aceita a vida sem pensar, apenas sentindo-a, Reis aceita-a apesar de pensar. A sua
emoção é controlada pela razão. Saber contemplar é ver intelectualmente a realidade.

Vamos ver como Pessoa o construiu.

Caeiro é um monárquico, educado num colégio de jesuítas latinistas. Ele é a representação de


toda a sabedoria do passado, todo o património moral da tradição humanista, mas também é
um esforço lúcido e disciplinado para obter a calma. Na famosa carta a Adolfo Casais Monteiro,
onde ele fala da criação dos seus heterónimos, ele afirma que «Reis [escreve] melhor que eu,
mas com um purismo que considero exagerado.»

Escreve essencialmente em odes de tipo horaciano e cultiva temas como o neopaganismo, o


Estoicismo e o Epicurismo. Nota bem que uma Ode era um texto lírico que se destinava a ser
cantado, retratando temas importantes, com o objetivo de elogiar ou homenagear. Claro que
este tinha de ser o escolhido para Reis, uma vez que revela uma grande mestria.

O Neopaganismo defendia o regresso aos valores gregos, à mitologia, pois acreditava-se que
Deus e os outros deuses estavam em pé de igualdade. Deus seria só mais um deus. OS deuses
estão próximos dos humanos porque revelam-se na natureza, mas também estão distantes
porque não se interessam pelo ser humano.

O epicurismo, filosofia moral de Epicuro, defendia o prazer como caminho da felicidade.


Porém, um estado de ataraxia (tranquilidade sem qualquer preocupação) era essencial para que
os desejos se realizassem de uma forma estável. Horácio vem completar esta ideologia com a
sua teoria do carpe diem (aproveitai o dia) como algo essencial à felicidade.

O estoicismo defende o controlo dos instintos para não sofrer e daí ele pedir a Lídia para
desenlaçarem as mãos, para não se apegarem muito um ao outro, de forma a não sofrerem, a
não se distraírem da razão. Reis defende uma certa apatia, indiferença, pois a vida já está
traçada e escorre para um fim (inexorabilidade da vida): a morte. Por isso, defende que se deve
aceitar o destino com calma e concentrar-se no momento presente.

Vamos analisar alguns poemas para perceber melhor como Ricardo Reis constrói a sua visão do
mundo. Comecemos pelo poema…

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Segue o teu destino


Neste poema vemos desde logo algumas influências
Segue o teu destino, clássicas, fruto da sua educação: aceita o destino e
Rega as tuas plantas, busca a felicidade através do prazer; vive o
Ama as tuas rosas. momento presente segundo a filosofia do carpe
O resto é a sombra diem; e acredita nos deuses e nas presenças quase
De árvores alheias. divinas que habitam todas as coisas
(neopaganismo). Porém, nem os deuses nos podem
A realidade dar a resposta do que é a vida.
Sempre é mais ou menos
Do que nos queremos. Este poema incita para a felicidade da vida e para a
Só nós somos sempre recusa do pensamento por não acreditar na
Iguais a nós-próprios. possibilidade de o alcançar. Parece ser uma lição de
vida para todos nós.
Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre Repara nos versos no imperativo, que referem essa
Viver simplesmente. mesma lição dirigida a todos nós: segue, rega, ama,
Deixa a dor nas aras deixa, vê, imita.
Como ex-voto aos deuses.
No final, faz uma recusa ao pensamento «Os deuses
são deuses porque não pensam».
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

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Há um outro poema que sintetiza muito bem a sua filosofia de vida, o qual vamos só analisar
alguns excertos:

Não tenhas nada nas mãos Neste poema ele recusa a posse do que quer que seja,
Nem uma memória na alma, para não sofrer e para não deixar nada quando morrer.
Que quando te puserem Sugere, através do imperativo, que as flores podem ser
Nas mãos o óbolo último, colhidas para se apreciarem, mas no final devemos
larga-las para não nos pegarmos demasiado.
Ao abrirem-te as mãos
Nada te cairá.
[…)
Colhe as flores mas larga-as,
Das mãos mal as olhaste.

Senta-te ao sol. Abdica Termina com um estado de ataraxia fantástico. Usufrui


E sê rei de ti próprio. apenas daquilo que tu és. Utilizou frases curtas e o
imperativo para nos sugerir isso mesmo.

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Álvaro de Campos
RRRRRR’s eternos, a fúria das máquinas… Álvaro de
Campos!

Eu gosto de dizer que este heterónimo é a explosão de


Pessoa.

Este é o engenheiro naval que vai mostrar na sua poesia a velocidade do modernismo. É,
segundo Pessoa, o “filho indisciplinado da sensação”.

Para este, é importante sentir tudo, de todas as maneiras e não é invulgar vê-lo a desejar ser a
máquina, a roda ou até o navio. Ao contrário de Alberto Caeiro, defende que a única realidade
é a sensação captada pelos sentidos e tenta captar intensamente todas as sensações sem se
preocupar com mais nada.

Podemos dividir a sua obra em 3 fases: decadentista, sensacionista e intimista.

Na primeira fase, a decadentista, o Opiário é o poema síntese. Esta é uma fase antes de Pessoa
criar o Mestre e é uma fase que mostra o tédio, o cansaço e a necessidade de ter novas
sensações, muitas vezes, recorrendo-se ao álcool e ao ópio para as conseguir. Pretendia-se uma
fuga à monotonia da vida. Porém, como ele afirma, estes estimulantes não lhe trouxeram o que
ele procurava.

Refere o álcool e a bebida como


«Levo o dia a fumar, a beber coisas, substâncias que povoam o seu dia a dia,
Drogas americanas que entontecem, mas afirma nem precisar delas porque é
como se estivesse sempre bêbado, talvez
E eu já tão bêbado sem nada! Dessem numa tentativa alucinante de se encontrar
Melhor cérebro aos meus nervos como rosas.» e de fugir de algo.

Atira a culpa a quem lhe deu um cérebro


assim: nervoso. Sugere que lhe podiam ter
dado antes calma e perfeição como a rosa.

A segunda fase, a fase sensacionista exalta o excesso de energia, a velocidade, a força da


máquina e da modernidade. É uma fase em que ele deseja sentir tudo de todas as maneiras.
Porém o vício de pensar pessoano surge por entre estes sentimentos, intelectualizando-os.
Nesta fase parece existir uma frustração radial, pois é na máquina que se projetam os desejos
do poeta. Há, ainda, uma característica unanimista, de união, confiando-se na solidariedade e

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coletividade para enfrentar as situações difíceis da vida moderna. A Ode Triunfal, a Ode
Marítima e a Saudação a Walt Whitman são obras que se inserem nesta fase.

ODE TRIUNFAL – título sugere algo grandioso. É de facto um elogio à era das máquinas

À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica A modernidade, a industrialização é


Tenho febre e escrevo.
aqui representada nas máquinas que
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto, lhe causam febre, como se o escrever
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos. fosse uma doença.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno! Começa com 2 apóstrofes e 1


Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria! onomatopeia acelerando o ritmo do
Em fúria fora e dentro de mim, poema, representando o som das
Por todos os meus nervos dissecados fora, máquinas e o efeito que causa em si:
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto! a “fúria” em todo o seu ser.
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
[…]
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um excesso de carícias no corpo numa só carícia à alma.

As suas sensações vivem por entre as correntes, por entre as


máquinas.

O gerúndio dá a ideia desse arrastamento, do que lhe dá


conforto, carinho, como se fossem carícias e aí encontrasse o seu
equilíbrio.

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!


Ser completo como uma máquina!

Sintetiza bem o desejo de sentir tudo de todas as formas


e projetar isso na máquina. A perfeição do sentir.

Como vimos, as suas características estilísticas também são diferentes dos outros heterónimos,
sobretudo na sua 2ª fase, onde a sua linguagem excessiva consegue traduzir os sons, a força e
a velocidade das máquinas e da civilização moderna.

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A terceira fase, a intimista, caracterizada por uma angústia existencial e por uma reflexão
metafísica, mostra um certo desânimo, como se as tentativas de sentir tudo e de todas as
maneiras não lhe dessem resposta para o que ele procurava. Nesta fase, vemos um Campos
abatido e cansado em relação à vida, parecendo ser uma extensão das emoções de Fernando
Pessoa.

Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,


Eu era feliz e ninguém esta morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião qualquer.
[…]
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio…
[…]
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!» repara na alusão à dor de pensar

Este tema parece o tema da nostalgia da infância de Fernando Pessoa, momento que trazia
felicidade ao momento presente. Porém, essa felicidade, tal como em Pessoa, foi recortada pela
morte. Hoje ele define-se como um sobrevivente afetado pela dor de pensar. Parece estarmos
a ouvir Pessoa, quando na verdade este é um poema de Álvaro de Campos. Reside aqui a minha
teoria de Campos ser a explosão de Pessoa, projetando o seu sofrimento ao máximo, como se
o ortónimo e este sujeito poético partilhassem do mesmo sofrimento, da mesma vida. É
realmente difícil separá-lo das suas criações.

Vou terminar com um excerto de Campos que parece sintetizar toda a obra de Pessoa:

«Afinal
Que fiz eu da vida?
Nada.»

Ele tentar ser tudo, ser múltiplo nos seus heterónimos, mas no final não conseguiu encontrar-
se, encontrar a sua felicidade. Inconstante, mas com uma vastíssima e fantástica obra.

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