Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Pensa-se que Pessoa sofria de histerismo, mas eu prefiro acreditar na sua genialidade. Acredito
que encontrou na criação dos seus heterónimos uma forma de exprimir o seu mundo e o modo
como entendia as coisas. Ele não descartava a hipótese de ser histérico, mas, como sugere,
enquanto nas mulheres dá para explosões, nos homens acaba em silêncio e é esquecido.
Na obra Páginas Íntimas e de Auto –Interpretação, Pessoa afirma «Tive sempre, desde criança,
a necessidade de aumentar o mundo com personalidades fictícias, sonhos meus rigorosamente
construídos […]» e acrescenta ainda «Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente,
como se o meu ser participasse de todos os homens […]».
Porém, ele contradiz-se afirmando mesmo que nada têm a ver consigo: «não há que buscar em
quaisquer deles (Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos) ideias ou sentimentos meus, pois
muitos deles exprimem ideias que não aceito, sentimentos que não tive».
Será?
Repara que o fenómeno da heteronímia surgiu quando ele tinha entre os 5/6 anos, fruto da
necessidade de descobrir a sua consciência e a sua personalidade. Nota que o pai havia morrido
e a mãe acabou por casar com outro homem, tendo de ir viver para o sul de África. Isto causa
um impacto profundo em qualquer criança!
Atenta neste excerto ao seu colega Adolfo casais Monteiro, onde ele fala sobre a questão da
heteronímia:
E ele continua, afirmando que «Esta tendência para criar em torno de mim
um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da
imaginação. […] E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos
que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de
distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto, vejo… E tenho saudades
deles.”
Seria difícil analisá-los a todos, mas para além dos três já conhecidos, que iremos estudar, o
programa de português também aborda o semi-heterónimo Bernardo Soares, com o Livro do
Desassossego. Aqui retrata a Lisboa da 1ª metade do século XX, com as suas personagens
peculiares e um protagonista que aí deambula sem ter nada para narrar. É um livro fragmentário
e é considerado uma das obras que fundaram a ficção portuguesa do século XX.
O que o difere, afinal, dos outros heterónimos? O facto de Pessoa dizer que a personalidade não
é a sua, mas também não é muito diferente dela: «Sou eu menos o raciocínio e a afetividade».
Desta obra escolhi, apenas, a passagem que revela bem a proximidade dos dois:
Alberto Caeiro
Alberto Caeiro é o Mestre dos heterónimos e do
ortónimo. Pessoa criou-o como o contrário de tudo o
que ele é, pois é o símbolo da tranquilidade que o
ortónimo nunca conseguiu alcançar.
Homem do campo, Caeiro teria apenas a instrução primária, simplicidade que se refletirá na sua
poesia. Porém, a sua felicidade vinha do facto de não pensar, defendendo que existir é estar de
acordo com as leis naturais.
Ele, como Ricardo Reis, é estoico e epicurista, embora nele não se notem tão acentuadamente
estas características. Mas vamos deixar a explicação destas características para Ricardo Reis.
A realidade é captada pelo olhar, sem recorrer ao pensamento, que ele considera ser uma
doença dos olhos: «pensar é estar doente dos olhos».
A única verdade é a sensação. Foi o único dos heterónimos que não escreveu em prosa, pois
acreditava que a poesia seria capaz de dar conta da realidade. Há um verso que gosto de utilizar
para o sintetizar:
«Acho que só por ouvir passar o vento vale a pena ter nascido».
A sua poesia está compilada em O Guardador de Rebanhos, obra com 49 poemas, com uma
métrica irregular e verso branco. Pessoa afirma que a maior parte destes poemas foram escritos
em pé, numa cómoda, em Março de 1914. Existem algumas confusões em relação ao dia correto,
mas são peculiaridades pessoanas.
Para além do Guardador de Rebanhos, Caeiro tem mais 2 obras: Poemas inconjuntos e O Pastor
amoroso.
O sujeito poético afirma que, na realidade, nunca guardou rebanhos, ou seja, não é pastor de
verdade, mas comporta-se como se os guardasse porque a sua alma é que consegue
deambular, observar atentamente a natureza, como se fosse um verdadeiro pastor, andando
sem destino, apenas observando o seu rebanho, as suas sensações.
Em toda a sua poesia conseguimos ver, por exemplo, a simplicidade de estilo, a linguagem e o
vocabulário muito simples, o recurso a metáforas e comparações e uma preferência pelo nome
em vez do adjetivo, que permitem reforçara simplicidade de Caeiro.
Por isso quando num dia de calor Ele sente-se triste de ter sentido o dia de uma forma
Me sinto triste de gozá-lo tanto.
intensa, mas isto não perturba a sua maneira de
E me deito ao comprido na erva,
perceber a natureza. Aceita a tristeza porque vem de
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, um excesso natural de felicidade.
Sei a verdade e sou feliz. A sua fusão, união com a natureza, é fantástica!
Este parece ser uma crítica àqueles poetas que constroem versos
como um pedreiro que constrói um muro, colocando versos em
cima de versos, trabalhando-os arduamente.
Parece-nos ser também uma crítica a Pessoa, feita “por si próprio” (enquanto criador deste
heterónimo). Aliás, os poemas de Alberto Caeiro parecem ser uma fuga para a dor de pensar
que tanto atormenta o ortónimo, refugiando-se na vida do campo, na aurea mediocritas
horaciana, isto é, num local que dá tranquilidade.
Por fim, no poema II, «O meu olhar é nítido como um girassol», ele afirma que ao olhar para a
natureza sente a eterna novidade do mundo. A sua inocência, como a de uma criança, permite-
lhe ver as coisas como se fosse a primeira vez.
Ricardo Reis
Esta é uma imagem que retrata Ricardo Reis. Fixa-a e compreende
as características ricardianas.
Ricardo Reis é o poeta clássico que aceitou e desenvolveu na sua poesia o paganismo
espontâneo de Caeiro. Paganismo é o culto e respeito à natureza, pois a Natureza é viva e
sagrada. Deus é só mais um deus e está em toda a parte, embora distante dos homens por não
se interessar pelo seu destino.
Se Caeiro aceita a vida sem pensar, apenas sentindo-a, Reis aceita-a apesar de pensar. A sua
emoção é controlada pela razão. Saber contemplar é ver intelectualmente a realidade.
O Neopaganismo defendia o regresso aos valores gregos, à mitologia, pois acreditava-se que
Deus e os outros deuses estavam em pé de igualdade. Deus seria só mais um deus. OS deuses
estão próximos dos humanos porque revelam-se na natureza, mas também estão distantes
porque não se interessam pelo ser humano.
O estoicismo defende o controlo dos instintos para não sofrer e daí ele pedir a Lídia para
desenlaçarem as mãos, para não se apegarem muito um ao outro, de forma a não sofrerem, a
não se distraírem da razão. Reis defende uma certa apatia, indiferença, pois a vida já está
traçada e escorre para um fim (inexorabilidade da vida): a morte. Por isso, defende que se deve
aceitar o destino com calma e concentrar-se no momento presente.
Vamos analisar alguns poemas para perceber melhor como Ricardo Reis constrói a sua visão do
mundo. Comecemos pelo poema…
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.
Há um outro poema que sintetiza muito bem a sua filosofia de vida, o qual vamos só analisar
alguns excertos:
Não tenhas nada nas mãos Neste poema ele recusa a posse do que quer que seja,
Nem uma memória na alma, para não sofrer e para não deixar nada quando morrer.
Que quando te puserem Sugere, através do imperativo, que as flores podem ser
Nas mãos o óbolo último, colhidas para se apreciarem, mas no final devemos
larga-las para não nos pegarmos demasiado.
Ao abrirem-te as mãos
Nada te cairá.
[…)
Colhe as flores mas larga-as,
Das mãos mal as olhaste.
Álvaro de Campos
RRRRRR’s eternos, a fúria das máquinas… Álvaro de
Campos!
Este é o engenheiro naval que vai mostrar na sua poesia a velocidade do modernismo. É,
segundo Pessoa, o “filho indisciplinado da sensação”.
Para este, é importante sentir tudo, de todas as maneiras e não é invulgar vê-lo a desejar ser a
máquina, a roda ou até o navio. Ao contrário de Alberto Caeiro, defende que a única realidade
é a sensação captada pelos sentidos e tenta captar intensamente todas as sensações sem se
preocupar com mais nada.
Na primeira fase, a decadentista, o Opiário é o poema síntese. Esta é uma fase antes de Pessoa
criar o Mestre e é uma fase que mostra o tédio, o cansaço e a necessidade de ter novas
sensações, muitas vezes, recorrendo-se ao álcool e ao ópio para as conseguir. Pretendia-se uma
fuga à monotonia da vida. Porém, como ele afirma, estes estimulantes não lhe trouxeram o que
ele procurava.
coletividade para enfrentar as situações difíceis da vida moderna. A Ode Triunfal, a Ode
Marítima e a Saudação a Walt Whitman são obras que se inserem nesta fase.
ODE TRIUNFAL – título sugere algo grandioso. É de facto um elogio à era das máquinas
Como vimos, as suas características estilísticas também são diferentes dos outros heterónimos,
sobretudo na sua 2ª fase, onde a sua linguagem excessiva consegue traduzir os sons, a força e
a velocidade das máquinas e da civilização moderna.
A terceira fase, a intimista, caracterizada por uma angústia existencial e por uma reflexão
metafísica, mostra um certo desânimo, como se as tentativas de sentir tudo e de todas as
maneiras não lhe dessem resposta para o que ele procurava. Nesta fase, vemos um Campos
abatido e cansado em relação à vida, parecendo ser uma extensão das emoções de Fernando
Pessoa.
Aniversário
Este tema parece o tema da nostalgia da infância de Fernando Pessoa, momento que trazia
felicidade ao momento presente. Porém, essa felicidade, tal como em Pessoa, foi recortada pela
morte. Hoje ele define-se como um sobrevivente afetado pela dor de pensar. Parece estarmos
a ouvir Pessoa, quando na verdade este é um poema de Álvaro de Campos. Reside aqui a minha
teoria de Campos ser a explosão de Pessoa, projetando o seu sofrimento ao máximo, como se
o ortónimo e este sujeito poético partilhassem do mesmo sofrimento, da mesma vida. É
realmente difícil separá-lo das suas criações.
Vou terminar com um excerto de Campos que parece sintetizar toda a obra de Pessoa:
«Afinal
Que fiz eu da vida?
Nada.»
Ele tentar ser tudo, ser múltiplo nos seus heterónimos, mas no final não conseguiu encontrar-
se, encontrar a sua felicidade. Inconstante, mas com uma vastíssima e fantástica obra.