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ANTOLOGIA DE FAMOSOS

DISCURSOS BRASILEIROS

a
l. SÉRIE

SELEÇÃO PELO
Proj. Carlos Aurélio Mota de Souza

E ainda, nesta obra:

CONSELHOS ÚTEIS AO LEITOR

DE

Mário Ferreira dos Santos

1
LIVRARIA E EDITORA L O G O S LTDA.
In 15 de Novembro, 137 — 8.° andar — Tel.: 35-6080
SÃO PAULO
Í N D I C E

Conselhos úteis ao leitor


M á r i o F e r r e i r a dos S a n t o s 9

Manfredo Leite
O Destino e o Ideal • 21
Elogio F ú n e b r e 34

Frei Francisco de Monte Alverne


Improviso ^
Segundo Panegírico 45

Xilo Peçanha
Discurso ^
Discurso ^5

D. Romualdo Antônio de Seixas


u o
Discurso
Discurso '

Ramiz Galvão
A
Discurso

Tobias Barreto de Menezes


8 8
I d é i a do D i r e i t o
P r o j e t o de u m Partenogógico 9/

João Neves da Fontoura


Discurso ^ 1
Discurso 1^7

Octávio Mangabeira
Discurso HO
Epitácio Pessoa
1 L c y
Discurso
Discurso H4
Discurso H6

Alfredo Pujol
Discurso 1^0

Armando de Salles Oliveira


Saudação ^4-

Aloysio de Castro
Saudação 1 ^
Discurso

/âwio Quadros
Alocução à Bandeira 140

Alcântara Machado
U m H o m e m de O u t r o r a 142
Discurso 146

Brasílio Machado
Onze de Agosto 151
C e n t e n á r i o de C a m õ e s 15^
Carlos C o m e s 162

Campos Sales
Falecimento do M a r e c h a l D e o d o r o 163

Coelho Netto
Discurso 168

Rui Barbosa
Visita à T e r i a N a t a l 177

Sílvio Romero
Discurso 196
Biografias 202
CONSELHOS ÚTEIS AO LEITOR

POR

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

E m nossas o b r a s de o r a t ó r i a , temos nos e m p e n h a d o em oferecer


aos estudiosos dessa n o b r e arte, os meios m a i s h á b e i s e fáceis para
a d q u i r i r o pleno uso da p a l a v r a fluente e da b o a c o n s t r u ç ã o d o dis-
curso, evitando prolongarmo-nos sobre as r e g r a s clássicas, pouco
consentâneas ao discurso m o d e r n o , e a d e m a i s , nos afastamos d a espe-
ciosidade de certos conselhos, q u e m a i s têm servido p a r a dificultar o
estudo do q u e p a r a facilitá-lo.

P a r a a m á x i m a simplificação, e p a r a a l c a n ç a r o m e l h o r proveito,
por p a r t e d o leitor, do e x a m e q u e i r á fazer dos discursos que ora
a p r e s e n t a m o s nesta o b r a , que foram t ã o inteligentemente escolhidos
pelo prof. Carlos A u r é l i o M o t a de Souza, v a m o s estabelecer algumas
análises e conselhos ao estudioso, c e r t a m e n t e benéficos para a tarefa
que empreende.

A CONSTRUÇÃO DO DISCURSO

0 p o n t o p r i m a c i a l é o aspecto construtivo de u m discurso. É éle


que vai revelar a sua coerência, a sua coesão e, finalmente, a s u a
unidade.

U m discurso n ã o é u m a m o n t o a d o de frases, m a i s ou m e n o s ana-


logadas u m a s às o u t r a s , pois deve ter êle u m a f o r m a q u e l h e dê u m a
unidade específica. Essa forma se revela pela perfeita proporciona-
lidade intrínseca de suas p a r t e s . Constitui êle, assim, u m a unidade.
?das esta n ã o é u m a q u a l q u e r , pois as h á de vários tipos. Há unidade
10 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

de m e r a a g r e g a ç ã o , e m q u e as p a r t e s diversas c o n s t i t u e m certo a m o n -
t o a d o de proposições, como verificamos e m a l g u n s discursos m a l orga-
nizados, nos q u a i s as frases sucedem-se u m a s às o u t r a s , g u i a d a s mais
pelas associações d o espírito, ao sabor das características individuais
do o r a d o r , e q u e e s t r u t u r a m u m a t o t a l i d a d e sem m a i o r harmonia.

H á a i n d a a u n i d a d e q u e s u r g e da d i s t r i b u i ç ã o h a r m ô n i c a das p a r t e s
q u e f o r m a m , afinal, u m todo h o m o g ê n e o ; em s u m a , u m a nova forma.

H á tribunos (não oradores propriamente ditos) que são possui-


dores de b o n s r e c u r s o s de voz, de atitudes, de gestos, e dispõem da
p a l a v r a fluente e d a facilidade n a construção de t r o p o s . Mas falta-
-Ihes a c a p a c i d a d e de o r d e n a r o discurso com u m a u n i d a d e de sim-
p l i c i d a d e , a de lhe d a r u m a forma.

P o d e m d i s p o r de tais q u a l i d a d e s , obter u m certo êxito e a g r a d a r


suficientemente ao a u d i t ó r i o , m a s o êxito seria m a i o r se construíssem
m e l h o r os seus discursos.

Somos de o p i n i ã o q u e a p r i m e i r a p r o v i d ê n c i a q u e deve a t i n g i r u m
estudioso de o r a t ó r i a é a c o n s t r u ç ã o h a r m ô n i c a do discurso.

O b t i d a a u n i d a d e da sua peça o r a t ó r i a , p o d e êle, depois, dedicar-


-se ao a p r i m o r a m e n t o do e x ó r d i o , da p a r t e central e, finalmente, da
p e r o r a ç ã o ; e x a m i n a r b e m o e m p r e g o das inflexões d e voz, do gesto,
das atitudes, d o b o m c u i d a d o em c o n s t r u i r frases cheias de beleza e
d e força, d a c r i a ç ã o dos tropos e da s u a a d e q u a ç ã o . E m s u m a , de-
pois de a l c a n ç a r a u n i d a d e d o discurso, p o d e o o r a d o r dedicar-se ao
a p r i m o r a m e n t o , pois j á t e r á a n d a d o m e i o c a m i n h o , e t e r á e r i g i d o a
e s p i n h a dorsal, q u e será o f u n d a m e n t o d o seu p r o g r e s s o f u t u r o .

N ã o d e s e j a r í a m o s q u e o leitor, q u e vai m a n u s e a r esta o b r a , a q u a l


lhe será t ã o útil p a r a o seu progresso, n ã o t e n h a a auxiliá-lo u m a série
de conselhos e a indicação de algumas providências úteis ao estudo
q u e vai empreender.

Essa a r a z ã o q u e nos leva a e x a m i n a r s u c i n t a m e n t e tais aspectos,


facilitando, assim, que o leitor verifique, nos discursos q u e lerá, a
p r e s e n ç a s e m p r e eficaz de tais p r o v i d ê n c i a s , cujo domínio desejamos
oferecer a q u e m se dedica a t ã o n o b r e arte.
DISCURSOS BRASILEIROS 11

DA UNIDADE DO DISCURSO

Uma o b s e r v a ç ã o simples da v i d a infantil nos d á u m eloqüente


exemplo e u m a lição de g r a n d e p r o v e i t o . U m m e n i n o , q u e desejava
obter d o p a i u m favor, a êle se d i r i g i u d a seguinte forma:

"'Papaizinho, o sr. h o j e está t ã o b o n i t i n h o . 0 sr. é t ã o bonzi-


nho. 0 s e n h o r m e deixa, n ã o é, ir a o c i n e m a , hoje?

T e n h o direito d e ir, s i m s e n h o r . J á fiz todas a s m i n h a s lições,


e depois é d o m i n g o . N ã o q u e r q u e o seu filho se d i v i r t a ?

P a p a i z i n h o , o sr. é t ã o b o n z i n h o . N ã o vê q u e seu filho estuda


toda a s e m a n a , c u m p r e os seus d e v e r e s ? N ã o t e n h o feito t u d o q u a n t o
me t e m m a n d a d o ? 0 sr. n ã o gosta do seu filho? Que pai é o sr.?
Não me quer b e m ? Não q u e r ? "
As p a l a v r a s d a c r i a n ç a nos d ã o a p e r c e b e r q u e h o u v e u m a c e r t a
relutância p o r p a r t e do p a i . M a s este, afinal, a b r a ç o u o filho, e deu-
-lhe o q u e p e d i a . Estava v i v a m e n t e c o m o v i d o .

O r a , esse discurso, q u e a c r i a n ç a p r o n u n c i a r a , foi u m a peça de


plena u n i d a d e e obedecia à m a i s perfeita técnica. E r a u m a lição in-
fantil a n ó s , adultos. E r a a v i d a q u e falava p o r a q u e l a c r i a n ç a , com
essa s a b e d o r i a p r o f u n d a e misteriosa q u e a s coisas d a v i d a nos reve-
lam, e q u e t a n t a s lições d á a o ser h u m a n o .

Aquela criança organizara u m discurso perfeito. Dividira-o em


três p a r t e s , n a s três p a r t e s f u n d a m e n t a i s . Na p r i m e i r a , q u e corres-
ponde ao exórdio, procurara agradar ao pai. N a segunda, expusera
o q u e p r e t e n d i a , e e m p r e g o u três a r g u m e n t o s e n u m a ordem espon-
tânea, m a s q u e c o r r e s p o n d e à m e l h o r d i s t r i b u i ç ã o dialética dos a r g u -
mentos, e, finalmente, n a p e r o r a ç ã o , tocou n a afetividade, aproveitan-
do-se dos a r g u m e n t o s e do e x ó r d i o , p a r a i m p r e s s i o n a r profundamente
o p a i , o b t e n d o o q u e desejava.

O EXÓRDIO

P o i s a p r o v e i t e m o s essa g r a n d e lição que a sabedoria da vida


expressou a t r a v é s d a q u e l a criança.

O e x ó r d i o é o n o m e q u e se d á à a b e r t u r a do d i s c u r s o . É a parte
q u e coloca o o r a d o r imediatamente em contacto com o auditório.
12 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

P a r t e i m p o r t a n t e e m u i t a s vezes decisiva, p o r q u e , d a a d a p t a ç ã o entre


o r a d o r e a u d i t ó r i o , o destino do discurso pode estar definitivamente
traçado.

As p r i m e i r a s p a l a v r a s p r o v o c a m n a t u r a l m e n t e u m a certa a t e n ç ã o .
H á u m a expectativa geral. E devem elas versar, n a t u r a l m e n t e , sobre
o tema fundamental d o discurso, m a s t r a t a n d o - o , de início, estetica-
mente, com a m á x i m a beleza, e m p r e g a n d o - s e frases bem construídas
e q u e p r o v o q u e m a g r a d a b i l i d a d e p o r p a r t e d o a u d i t ó r i o e, s o b r e t u d o ,
a sua p r o n t a s i m p a t i a e a d e s ã o . Observem-se os e x ó r d i o s dos diversos
discursos. Todos eles obedecem a essa r e g r a m á x i m a , p o r q u e só ex-
cepcionalmente p o d e o o r a d o r p r o v o c a r u m a repulsa do a u d i t ó r i o ou
desafiá-lo. Essa regra é: provocar a atenção, a concordância do
a u d i t ó r i o e a s i m p a t i a , u s a n d o frases d e g r a n d e beleza estética, q u e
sejam a s u m a do t e m a do discurso, m a s expostas n a q u e l e sentido ge-
nérico, capazes d e p r o v o c a r a p l e n a adesão.

Construído o exórdio, dentro dessas r e g r a s , estabelece-se desde


logo u m a ligação s i m p a t é t i c a e n t r e o o r a d o r e o a u d i t ó r i o . E m algu-
m a coisa deve o o r a d o r c o m u n g a r com este. Se se t r a t a de discurso
político, e o o r a d o r p e r t e n c e a u m a facção a d v e r s a à m a i o r i a dos p r e -
sentes, e c u i d a , n o e x ó r d i o , d e t r a t a r d e aspectos gerais, aceitos p o r
todos, o b t e r á n ã o só a atenção dos ouvintes, m a s certa s i m p a t i a , q u e
lhe será benéfica depois.

Exemplifiquemos:

" N a d a m a i s n o b r e nos h o m e n s públicos d o q u e t e r os olhos sin-


c e r a m e n t e voltados p a r a o b e m c o m u m e o m e l h o r dos seus esforços
d i r i g i d o s p a r a a concretização dos ideais coletivos".

T a l frase é v i v i d a p o r todos os presentes. Ela coloca os ouvintes


em c o n s o n â n c i a c o m o o r a d o r , e p e r m i t e q u e e n t r e a m b o s se estabeleça
u m laço d e c o m u n h ã o q u e l h e será benéfico.

O e x ó r d i o deve t r a t a r d o q u e possa unir, conexionar o orador


com o a u d i t ó r i o . D e v e ser a g r a d á v e l , p r o v o c a d o r d a a t e n ç ã o e, t a n t o
q u a n t o possível, d a s i m p a t i a , p r o m o v e n d o a adesão dos ouvintes.
DISCURSOS BRASILEIROS 13

O u t r a s r e g r a s do e x ó r d i o , q u e se referem m a i s a aspectos quali-


tativos, já f o r a m e x a m i n a d a s em nossos livros de o r a t ó r i a (1).

O CORPO DO DISCURSO

O corpo do discurso, a sua p a r t e central, é aquela q u e se d i r i g e


à intelectualidade, e, s o b r e t u d o , à r a z ã o . É a p a r t e em q u e se esboça
a tese, em q u e se oferecem as razões em favor do q u e p r e t e n d e o ora-
dor. A p a r t e central do discurso começa p r e c i s a m e n t e q u a n d o o ora-
dor dá a p e r c e b e r ao a u d i t ó r i o o q u e êle p r e t e n d e . P a s s a , então, a
argumentar, a p r o v a r , justificar a sua posição. R e ú n e as p r o v a s , os
argumentos principais. T a i s a r g u m e n t o s p o d e m ser muitos, m a s bas-
tam três, se forem eles dispostos com grande habilidade. Não há
necessidade de outros m a i s , pois estes, salvo e m orações n o j ú r i , etc,
n ã o obtêm m e l h o r efeito d o q u e a b o a disposição de três argumentos
inteligentemente distribuídos.

A r e g r a da p e r s u a s ã o , q u e j á e x a m i n a m o s em nossos livros, re-


duz-se à colocação dos a r g u m e n t o s . O argumento medianamente per-
suasivo deve vir em p r i m e i r o l u g a r . O m e n o s persuasivo e m s e g u n d o ,
e o m a i s poderoso, p o r último. Se v a m o s falar em p ú b l i c o e temos
uma tese a defender, vejamos mentalmente q u a i s os m e l h o r e s argu-
mentos de q u e dispomos p a r a p e r s u a d i r os o u v i n t e s : i m e d i a t a m e n t e os
comparamos e distribuímos na ordem acima citada. O argumento
m é d i o coloca já o a u d i t ó r i o n u m a posição s i m p á t i c a a a c e i t a r a o p i n i ã o
do orador. 0 m a i s fraco, v i n d o em s e g u n d o l u g a r , d á m a i s força ao
p r i m e i r o a r g u m e n t o e com o p o d e r deste, n ã o p e r d e a sua. 0 mais
forte, q u e é decisivo, t e r m i n a p o r levar o a u d i t ó r i o a t o m a r a a t i t u d e
desejada pelo o r a d o r .

Se o o r a d o r dispuser de m a i o r n ú m e r o de a r g u m e n t o s , pode reu-


ni-los n u m só, p a r a fortalecê-lo mais.

Não convém d i s p e n s a r o a r g u m e n t o q u e t e n h a certa força. Se


n ã o p o d e ser exposto isoladamente, reúna-se a outro p a r a corroborá-lo.
A p r e o c u p a ç ã o m a i o r d o o r a d o r , neste ponto, é ter u m a n o ç ã o da psi-

(1) Chamamos a especial atenção para o nosso "Práticas de


Oratória", lançado pela Livraria e E d i t o r a LOGOS Ltda.
14 ANTOLOGIA D E FAMOSOS

cologia d o a u d i t ó r i o , pois h á a r g u m e n t o s q u e são decisivos e m certos


a m b i e n t e s e p o d e m ser levemente convincentes em outros.

N o exemplo d a c r i a n ç a , q u e oferecemos, esta a r g u m e n t o u reunin-


d o u m conjunto de a r g u m e n t o s r a c i o n a i s e n u m a o r d e m inteligente e
bem persuasiva. H a v i a j á c u m p r i d o todos os seus deveres (argumento
forte). Depois era domingo (argumento médio, mas ótimo) e, final-
m e n t e , a necessidade do d i v e r t i m e n t o , q u e é saudável e justo (argu-
mento decisivo). O desfecho seria obtido afinal, na

PERORAÇÃO

Aqui, a criança reuniu os argumentos e, h a b i l m e n t e , tocou no


aspecto afetivo, n o c o r a ç ã o d o ouvinte, o b t e n d o a p l e n a adesão, p e r s u a -
dindo-o a fazer o q u e desejava.

P o i s é esta a g r a n d e r e g r a d a p e r o r a ç ã o . A q u i , reúnem-se as m a i s
belas frases, as m a i s a f e t i v a m e n t e c o n s t r u í d a s , aquelas q u e m e l h o r to-
cam ao coração. Depois de havermos sensibilizado pela beleza no
exórdio, de termos convencido r a c i o n a l m e n t e n o c o r p o do discurso,
p e r s u a d i m o s , afinal, t o c a n d o n a afetividade, n a p e r o r a ç ã o . É aqui que
o tom de voz m u d a . Se n o e x ó r d i o é êle u m t a n t o solene e g r a v e ;
se n o c o r p o do discurso é claro, e n é r g i c o e concludente, m a s n o r m a l ,
n a p e r o r a ç ã o , é êle s e n t i m e n t a l , afetivo, v i n d o d o peito, cheio de u m a
g r a v i d a d e h a r m ô n i c a , a d m i t i n d o certos melismos n a voz, q u e devem
ser c u i d a d o s a m e n t e controlados, c e r t a s m o d u l a ç õ e s , q u e serão propor-
c i o n a d a s a o t e m a e aos r e c u r s o s t r i b u n í c i o s d o o r a d o r .

A UNIDADE CONQUISTADA

O b e d e c i d a s estas r e g r a s , a u n i d a d e d o discurso está conquistada.


E é esta u m a u n i d a d e d e s i m p l i c i d a d e , p o r q u e é u m a u n i d a d e obtida
pela h a r m o n i z a ç ã o d a s p a r t e s d o discurso. C a d a p a r t e está entrosada
às o u t r a s . O e x ó r d i o e r a a p r e p a r a ç ã o d o t e m a , e r a o m e i o de colocar
s i m p a t è t i c a m e n t e o a u d i t ó r i o e m face do q u e se q u e r i a dizer. A tese
foi a p r e s e n t a d a n o corpo do discurso, e a a r g u m e n t a ç ã o buscou corro-
borá-la. F i n a l m e n t e , a p e r o r a ç ã o tocou n a afetividade, apelou p a r a as
paixões, p a r a q u e a p e r s u a s ã o fosse c o m p l e t a . O discurso é agora
u m a p e ç a só. É u m a u n i d a d e , é u m todo h a r m ô n i c o , algo inesque-
DISCURSOS BRASILEIROS 15

cível, algo q u e c o n t i n u a r á r e s s o a n d o d e n t r o d e c a d a u m , u m conjunto


h a b i l m e n t e c o n s t r u í d o , q u e h á d e p r o d u z i r seus frutos.

C o n q u i s t a d o este ponto, está o estudioso h a b i l i t a d o a realizar a


parte do aprimoramento. Vamos dar a seguir as regras fundamentais,
r e p o r t a n d o - n o s n a t u r a l m e n t e aos t r a b a l h o s o n d e e x a m i n a m o s c o m m a i s
proficiência esses pontos, m a s t r a t a n d o de t u d o q u a n t o possa s e r im-
portante para o melhor aproveitamento da leitura dos discursos q u e
c o m p õ e m este livro, cujas lições e exemplos devem ser a p r o v e i t a d o s .

DO APRIMORAMENTO DO DISCURSO

Em nossas o b r a s d e o r a t ó r i a , p r o p u s e m o s os m a i s úteis e fáceis


exercícios, os q u a i s oferecem os m e l h o r e s c a m i n h o s p a r a o estudioso
da o r a t ó r i a d o m i n a r a b o a construção d a frase e dar-lhe a beleza q u e
necessita, p a r a o m e l h o r efeito q u e a o r a ç ã o deve obter.

E n t r e t a n t o , v a m o s c o m p e n d i a r , neste p e q u e n o t r a b a l h o , a l g u m a s d a s
r e g r a s p r i n c i p a i s , cuja o b e d i ê n c i a só t r a r á benefícios.

O e x ó r d i o , p o r ser a p a r t e q u e coloca d e i m e d i a t o o o r a d o r c o m
o a u d i t ó r i o , deve ser c o n s t r u í d o com frases l a p i d a r e s . N o s exercícios
sintéticos, expostos e m nossos livros, m o s t r a m o s q u a l o exercício q u e
se i m p õ e p a r a a l c a n ç a r a c o n s t r u ç ã o bela d e tais frases.

Observe-se esta a b e r t u r a d e M o n t e A l v e r n e :
" J á n ã o é d a d o i g n o r a r a causa deste í m p e t o q u e a r r e m e s s o u atra-
vés de m i l azares esses h o m e n s , escolhidos p a r a m u d a r a face d a t e r r a " .

O u esta d e R a m i z G a l v ã o :

" N a d a n o m u n d o vive e p r o s p e r a senão à s o m b r a d o a m o r . Cor-


rei a série o r g â n i c a i n t e i r a , e encontrá-lo-eis p o r toda a p a r t e e presi-
dindo aos destinos d a v i d a " .

T e m o s , aí, o exemplo d e frases l a p i d a r e s p a r a a b e r t u r a . Em regra


seral, tais frases devem c o r r e s p o n d e r a o sentimento geral dos ouvintes,
àqueles p r i n c í p i o s s o b r e os q u a i s todos estamos m a i s ou m e n o s de
i c ô r d o , salvo a p e n a s nos casos e m q u e o o r a d o r deve logo d e início
er.trar e n e r g i c a m e n t e n o assunto, opondo-se aos c o n t e n d o r e s .
16 ANTOLOGIA D E FAMOSOS

Como neste exemplo:

"Nenhuma das razões, nenhuma das provas, nenhum dos argu-


m e n t o s a p r e s e n t a d o s até a q u i se f u n d a m n a v e r d a d e e n a justiça. É
o que provarei a seguir".

É u m a " t i r a d a " enérgica, q u e d e s p e r t a de início a i r a dos adver-


sários, m a s t a m b é m o t e m o r , se o o r a d o r p r o n u n c i á - l a s com convicção
e força. M a s , nestes casos, é preciso q u e o a u d i t ó r i o esteja em p a r t e
n e u t r o , q u e h a j a nele os q u e desejam s a b e r a v e r d a d e , p a r a q u e tal
a b e r t u r a possa ter u m p a p e l eficiente. A seguir e n t r a , propriamente,
n o e x ó r d i o , n a p a r t e m a i s cheia de sensibilidade q u e o mesmo deve
ter.

E m u d a n d o p a r a u m tom m a i s suave e mais afetivo, o orador


a b r i r i a p r o p r i a m e n t e o seu discurso. D i g a m o s q u e a p ó s tais p a l a v r a s
prosseguisse o orador:

" É horrível, n a v e r d a d e , o instante em q u e a a l m a h u m a n a a t i n g e


o seu p a r o x i s m o e t r a n s p õ e todos os limites e t o d a s as r e g r a s , paten-
t e a n d o os abismos q u e nela se o c u l t a m " (Carlyle).

" H á h o m e n s q u e possuem a l m a b a s t a n t e a p e n a s p a r a i m p e d i r q u e
se lhes a p o d r e ç a o c o r p o " (O. W. Holmes).

" S ã o tais h o m e n s q u e v i l i p e n d i a m , são tais h o m e n s q u e acusam


inocentes, a t i r a n d o - l h e a l a m a das m a i s abjectas infâmias.

E foi o q u e se viu aqui..."

E prossegue, então, n a justificação da posição q u e tomou, anali-


s a n d o as acusações e desfazendo-as. Quando tenha atingido a pleni-
t u d e da s u a p r o v a , q u a n d o o a u d i t ó r i o está t e n d e n d o p a r a o seu l a d o ,
penetra energicamente na p e r o r a ç ã o , a p r o v e i t a n d o , para exemplificar,
as p r ó p r i a s p a l a v r a s iniciais, p a r a com elas p e r s u a d i r definitivamente
os ouvintes.

Se demos a l g u n s exemplos de autores diversos, foi apenas para


i l u s t r a r os conselhos q u e oferecemos.

O exercício de c o n s t r u ç ã o de frases l a p i d a r e s é de u m a i m p o r t â n -
cia fundamental para o orador. E obtém-se b o m êxito, s e g u i n d o as
r e g r a s q u e t a n t a s vezes temos p r e c o n i z a d o .
DISCURSOS BRASILEIROS 17

Elas servem, n ã o só p a r a fortalecer o e x ó r d i o , como, sobretudo,


p a r a dar mais vida à peroração. Se o estudioso d a o r a t ó r i a exerci-
tar-se, c u i d a d o s a m e n t e , n a construção das figuras de r e t ó r i c a , próprias
p a r a o e x ó r d i o , p a r a a p r o v a e p a r a mover afetivamente os ouvintes,
as q u a i s oferecemos em nossos livros, t e r á obtido meios suficientes p a r a
alcançar o que deseja.

O u t r o aspecto, p a r a o q u a l p r e c i s a m o s c h a m a r a atenção d o estu-


dioso, é p a r a o b a l a n c e a m e n t o h a r m o n i o s o da frase.

É necessário q u e as p a r t e s do discurso tenham certa simetria


e n t r e si.

E x e m p l i f i q u e m o s com esta f r a s e :

' ' Q u e m n ã o viu sofrer o objeto a m a d o , n ã o s a b e o q u e é a m o r " .


- \ ã o t e m ela a beleza q u e exige a o r a t ó r i a como a q u e oferece q u a n d o
d i t a a s s i m : " Q u e m n ã o viu sofrer o objeto a m a d o n ã o sabe a i n d a do
q u e é capaz o a m o r " (Gozzi). H á aqui um balanceamento simétrico
e h a r m ô n i c o , q u e n ã o se verifica no primeiro caso.

O u t r o exemplo de b a l a n c e a m e n t o em três p a r t e s , d u a s laterais e


uma central:

" T o d a tu és formosa, a m i g a m i n h a , e em ti n ã o h á mácula..."


' B í b l i a , Cântico dos Cânticos, 3 - 1 ) . Amiga minha f o r m a a p a r t e cen-
trai, b a l a n c e a n d o as l a t e r a i s .

N ã o se vai c o n s t r u i r u m discurso a p e n a s de frases balanceadas,


r ó i s se t o r n a r i a m o n ó t o n o . M a s a p r e s e n ç a delas e m p r e s t a ao discurso
m a i o r beleza e, n a p e r o r a ç ã o , u m g r a n d e p o d e r s o b r e a afetividade dos
:-'-vintes. A beleza de u m a frase não depende apenas do balancea-
mento. Este p o d e faltar e a frase ter u m a eloqüência extraordinária.
r':-iemos exemplificar com este belo p e n s a m e n t o de S a n t o Agostinho:

" A m a , e farás o q u e q u i s e r e s " .

É u m a frase cheia de eloqüência, sem o b a l a n c e a m e n t o simétrico.

t - - : i a o s a q u i em face d a h a r m o n i a o b t i d a pelo khiasma, h a r m o n i a dos


: : o s t o s a n a l o g a d o s n u m todo, n u m a u n i d a d e , q u e e r a a r e g r a s u p r e m a
I T ü-eleza, q u e e n s i n a v a P i t á g o r a s , e q u e teve u m g r a n d e papel n a a r t e
r.r-inica. Se a s i m e t r i a , m a i s egípcia, oferece u m e n c a n t a m e n t o e u m
írmiilo harmônicos, os lados opostos h a r m o n i z a d o s , formando uma
18 ANTOLOGIA D E FAMOSOS

u n i d a d e de s i m p l i c i d a d e , oferecem t a m b é m a sua beleza, o q u e é ca-


racterística d a beleza escultória g r e g a do p e r í o d o clássico.

E m frases c o m o estas, além d o b a l a n c e a m e n t o , h á a beleza dos


opostos a n a l o g a d o s , f o r m a n d o u m a harmonia:

" L á está o l a v r a d o r h u m i l d e , r a s g a n d o a superfície d a t e r r a sob


os r i g o r e s d o sol ou d a c h u v a . Ali, o o p e r á r i o e n t r e g u e às fadigas
do corpo. Aqui, o magistrado que aplica os textos d a l e i " (João
Neves).

0 primeiro período não é balanceado. M a s os dois últimos ba-


lanceiam-se com s i m e t r i a . Os dois últimos com o p r i m e i r o formam,
afinal, u m a h a r m o n i a .

E x e m p l o s de frases balanceadas:

" O s frutos d o a m o r p a s s a m d e p r e s s a ; os frutos d a a r t e são i m o r -


tais" (Balzac).

" H á outros q u e t ê m f o m e ; o a r t i s t a t e m sede e t e r n a " (Geibel).

" Q u e m tem u m v e r d a d e i r o a m i g o , pode afirmar que tem duas


almas" (Graf).

Exercite-se o leitor, ao ler os discursos q u e c o m p õ e m este livro,


n o e x a m e das frases b a l a n c e a d a s e d a s frases h a r m o n i z a d a s p o r opos-
tos a n a l o g a d o s . V e j a os exemplos das diversas c o m b i n a ç õ e s ; examine
a feitura d a s m e s m a s , o r i t m o q u e a elas foi impresso, e p r o c u r e di-
zê-las com a ênfase necessária e a d e q u a d a , ao m e s m o t e m p o q u e t e n t e
construir outras à semelhança daquelas.

O m e l h o r conselho p a r a a obtenção do b o m êxito está nesta p r á -


tica. N ã o deve o estudioso p r o c u r a r c o n s t r u i r as frases mentalmente
p a r a depois p r o n u n c i á - l a s . D e v e i n i c i a r desde logo o d i s c u r s o e p r o -
c u r a r b a l a n c e a r as frases. D e início, frases c u r t a s e de fácil balan-
ceamento. D e p o i s i r á c o m p l e x i o n a n d o o exercício à proporção que
sentir que já d o m i n a p l e n a m e n t e a construção das frases, passando
p a r a as de h a r m o n i z a ç ã o de opostos e d a s diversas c o m b i n a ç õ e s pos-
síveis.

A c o n s e l h a m o s q u e p r a t i q u e falando, e p r o c u r a n d o b a l a n c e a r du-
r a n t e o processo d a c o n s t r u ç ã o d a frase falada, p a r a p r e d i s p o r o o u v i d o
DISCURSOS BRASILEIROS 19

a c o o p e r a r n a s u a f o r m a ç ã o e, s o b r e t u d o , p a r a a d q u i r i r a espontanei-
dade. Se p r i m e i r a m e n t e p e n s a r , e m e n t a l m e n t e construí-la, p a r a depois
pronunciá-la, a conquista desse d o m í n i o será m a i s lenta. É preciso
praticar imediatamente, embora haja tropeços no início. Terminar-
-se-á, afinal, p o r conseguir a p a l a v r a bela, a frase b e m h a r m ô n i c a e a
expressão adequada.

EXERCÍCIOS PARA A CONSTRUÇÃO DA FRASE

E m o r a t ó r i a , deve-se c o m e ç a r pelo p r i n c í p i o , c o m o e m t u d o . É
inútil q u e r e r p u l a r os d e g r a u s , p o r q u e os d e g r a u s a c a b a m p o r v i n g a r -
-se, propiciando-nos grandes quedas. É conveniente começar pelos
exercícios q u e em " C u r s o de O r a t ó r i a e R e t ó r i c a " aconselhamos com
o uso d o v o c a b u l á r i o , n a p a r t e final. Deve-se construir, de início, frases
simples, guiando-se pelas p a l a v r a s q u e estão ali i n s e r t a s e, depois, com-
plexioná-las, à p r o p o r ç ã o q u e o d o m í n i o seja o b t i d o .

OS GESTOS

N o início, deve-se ser o m a i s s ó b r i o possível, exercitando-se a p e n a s


u m a das m ã o s , a direita, s o b r e t u d o . A s c o m b i n a ç õ e s dos gestos só se
deve t e n t a r q u a n d o o d o m í n i o d a m ã o d i r e i t a seja c o m p l e t o ou, se
acaso sentir-se o estudioso suficientemente capaz, d a r à m ã o esquerda
m e n o r papel q u e à d i r e i t a . E v i t a r o excesso de gestos simétricos, salvo
q u a n d o t ê m força de expressão. É m a i s belo q u a n d o h á u m a oposi-
ção e n t r e os braços, m a s oposição q u a l i t a t i v a e n ã o q u a n t i t a t i v a . As-
sim, se se e r g u e a m ã o d i r e i t a até a a l t u r a d a cabeça, a e s q u e r d a m a l
se l e v a n t a e só a c o m p a n h a r á a p r i m e i r a se o gesto fôr patético. Em
nossos t r a b a l h o s de o r a t ó r i a , oferecemos as r e g r a s p r i n c i p a i s s o b r e o
e m p r e g o dos gestos.

A VOZ

E x e r c i t a r as diversas t o n a l i d a d e s de voz, s e g u n d o o t e m a , perfeita-


m e n t e a d e q u a d a ao m o m e n t o , é t a r e f a imprescindível p a r a o estudioso.
E sobretudo evitar a monotonia, exercitando as inflexões e modula-
ções, q u e e m p r e s t a m t a n t a beleza à frase. A voz de b r o n z e e a voz
•de ouro são as m a i s difíceis, m a s , com o d e c o r r e r do t e m p o e dos exer-
20 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

cícios, são elas alcançáveis, desde q u e o estudioso n ã o se d e s c u r e de


exercitá-las. N a q u e l e s livros d a m o s exemplos e r e g r a s úteis.

Os discursos q u e e n f e i x a m este livro d e v e m s e r v i r de t e m a s p a r a


exercício, e o estudioso p o d e r á , neles, o b t e r g r a n d e s lições, sobretudo
se a n a l i s a r os discursos c o m c u i d a d o , o b s e r v a r a c o n s t r u ç ã o d a s figu-
ras, a sua p r o p r i e d a d e , a a d e q u a ç ã o d a sua a p l i c a ç ã o a o a s s u n t o . Deve
ler os discursos em voz alta, c o m o se tivesse q u e p r o n u n c i á - l o s . Auto-
analisar-se, e v e r i f i c a r os defeitos, corrigi-los e r e p e t i r a leitura, até ter
a l c a n ç a d o o clima do d i s c u r s o .

São estas, em l i n h a s gerais, as recomendações que oferecemos


p a r a a l e i t u r a desta o b r a , q u e só desejamos seja proveitosa aos q u e a
compulsarem.

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS


MANFREDO LEITE

"O Destino e o Ideal" — Discurso aos bacharéis


do Ginásio N. S. do Carmo, em 3-12-1911.

Senhores:

A t r a v é s d o culto pela beleza e pela vida, q u e r i a m os gregos anti-


gos envolver n u m especial c a r i n h o e c i r c u n d a r de u m a b o n d a d e ex-
t r e m a as p r i m í c i a s d a H é l a d e , r e p r e s e n t a d a s n a sua b r i l h a n t e m o c i d a d e .
As m a i s belas solenidades, que ocorriam durante o ano, eram, sem
d ú v i d a , a q u e l a s e m q u e se c o n s a g r a v a m os méritos, se elogiava o valor,
e se glorificavam as v i r t u d e s dos m o ç o s . Pelos j a r d i n s da Academia,
t r e s c a l a n d o p e r f u m e s , r e v e r d e c i d o s p o r u m a e x u b e r a n t e p r i m a v e r a , de-
b a i x o de u m céu p u r í s s i m o , d o n d e l u x u r i a v a m p o m p a s de luz, e p a r a
onde s u b i a m olhos extasiados, pelos famosos j a r d i n s d a A c a d e m i a , e
pelos soberbos pórticos d o Liceu, o n d e a ciência r u t i l a v a em todo o
.orilho, e r a m i s t e r desfilassem os cortejos d a a r i s t o c r a c i a do talento, das
h o n r a s e das glórias p a r a a c o n t e m p l a ç ã o dos novos, q u e a v i d a infla-
mava, q u e os e n t u s i a s m o s a l v o r o t a v a m , e q u e as e s p e r a n ç a s , n u m beijo
muito q u e n t e e m u i t o doce, v i n h a m afagar.

T a n g i a m as liras os h i n o s dos seus poetas, n a evocação do pas-


mado, e m q u e se p e r d i a m os sonhos dos g u e r r e i r o s e dos a r g o n a u t a s .
Sentenciavam os filósofos. Dogmatizavam os sábios. Cantavam os
:oros. Pelo solo, alastravam-se giestas, recobertas de flores, e pelo
ambiente, passavam largos sopros de peitos, em delírio de festa. E
í.es. os novos, ali se a p r e s e n t a v a m , fortes e belos, fortes nesses corpos
^ r r i g e c i d o s pelos jogos atléticos, belos n a i r r a d i a ç ã o das a l m a s p o r sô-
::Í as frontes assetinadas pela j u v e n t u d e . E eles ali se a p r e s e n t a v a m .
r.=s suas t ú n i c a s b e m alvas, nessa elegância, cujo segredo se foi, q u a n d o
22 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

a Grécia morreu. E r a m candidatos à vida. Eram candidatos à gló-


ria. Abalavam para o futuro!

A q u e l a s solenidades, e m q u e as m u l t i d õ e s se p r e m i a m , tomadas
de alegria, aqueles esplendores e aqueles espetáculos simbolizavam p a r a
eles u m n o i v a d o — o n o i v a d o d a s e s p e r a n ç a s ; s i m b o l i z a v a m também
u m a i n i c i a ç ã o — a g r a n d e i n i c i a ç ã o d a existência, b a t i d a pelas aspe-
rezas do t r a b a l h o , pelos sofrimentos d a s lutas, d o m a d a pelos reveses ou
c o r o a d a pelas v i t ó r i a s .

A i n d a hoje, m e u s jovens amigos, m a l g r a d o o utílitarismo q u e nos


i n v a d e , s a b e m os m o ç o s d e s p e r t a r interesses, a c o r d a r emoções, ressus-
c i t a r alentos e a v i v a r aplausos, todas as vezes e m q u e n a s a l m a s eles
d e i x a m acender-se o sol d e u m ideal, e a r r e m e s s a m os corações aos
fogos d a g r a n d e z a dos sentimentos.

Vejo-vos, aí, t a m b é m c a n d i d a t o s à v i d a , a s p i r a n t e s à glória, postu-


lantes à felicidade. E eu venho trazer-vos u m a p a l a v r a às vossas exul-
tações, i n s p i r a d a s n a fé, a p e r t a d a s à â n c o r a d e u m a d o i r a d a e s p e r a n ç a ,
em demanda do porvir.

* * #

N ã o m a l s i n e m o s o século em q u e à P r o v i d ê n c i a a p r o u v e r corres-
sem os nossos dias, e se realizassem os nossos destinos. É u m século,
p o r é m , fecundo e m t r a b a l h o s , e m lutas, e m pesquisas, e m resultados
admiráveis. 0 h o m e m sente-se t o m a d o d e v e r t i g e m , depois d e m u i t o
s o n h a r e depois d e m u i t o sofrer. Êle q u e r r a s g a r os véus d e todos os
mistérios a se e s c o n d e r e m n a s p r o f u n d e z a s d o espaço, n a e s c u r i d ã o d a
t e r r a , e a i n d a m a i s n o s s a g r a d o s recessos d a consciência. A esfinge
a n t i g a postava-se n o ádito d o s a n t u á r i o , g u a r d a n d o o terrível enigma
d a v i d a ou d a m o r t e . A esfinge m o d e r n a posta-se, todos os dias, t a m -
b é m frente d a civilização, d e s a f i a n d o o homem, cansado de ilusões,
cheio d e sobressaltos e c a r r e g a d o d e c i ê n c i a .

A o longo dos c a m i n h o s vai crescendo o cortejo, e d e todos os


ângulos sobem p e r g u n t a s , r e s t r u g e m b r a d o s , levantam-se clamores. A
todo r e q u i n t e de bem-estar físico c o r r e s p o n d e u m a g r a n d e ânsia. A
todo gozo i n v e n t a d o u m a a s p i r a ç ã o imensa. A toda descoberta um
mais arrojado bater d e asas p a r a mais longínquas paragens. Todas
DISCURSOS BRASILEIROS 23

as m a r a v i l h a s c r i a d a s pela arte, pelo t r a b a l h o e pela i n d ú s t r i a n ã o lo-


g r a r a m d i s t r a i r o espírito h u m a n o , n e m v a l e r a m a q u e êle se n ã o vol-
tasse p a r a o temeroso e n i g m a d o seu destino.

Essa questão é a questão s u p r e m a . É o ser ou n ã o ser d o tedioso


Hamlet. É o capital p r o b l e m a q u e d o m i n a todos os postulados, inte-
ressa a todos os estudos e se envolve e m t o d a s as p r e o c u p a ç õ e s de todos
os t e m p o s idos, de t o d a s as gerações d e s a p a r e c i d a s e de todos os q u e
vivemos neste século a g i t a d o . Sim. Pode parecer um paradoxo afir-
mar-se q u e o h o m e m de hoje, d e s l u m b r a d o p o r t a n t a s luzes, r o d e a d o
de tanto conforto m a t e r i a l , c e r c a d o de u m a intensa cultura, arrojan-
do-se a tantos cometimentos, reflita u m só m o m e n t o s o b r e o p r o b l e m a
do seu destino. E m v e r d a d e , e m v e r d a d e , eu vos a s s e g u r o q u e o es-
pírito h u m a n o hoje, talvez m a i s do q u e n u n c a , tem essa preocupação
soberana, vive d i a n t e desta visão, a t e r r o r i z a d o , s a c u d i d o p o r estreme-
cimentos e c h e i o d e interrogações.

A obcessão d a m o r t e , m a i s d o q u e a obcessão d a v i d a , é u m dos


mais estudados fenômenos da psicastenia, é u m dos p o n t o s m a i s inves-
tigados pelo filósofo. Por que interrogar a morte, e perturbar o si-
lêncio de seus d o m í n i o s ? Assim o q u e r a misteriosa t e n a c i d a d e do
r í t i r i t o , assim o exigem as a f a d i g a d a s a s p i r a ç õ e s d o c o r a ç ã o .

Rapidamente, quero analisar convosco as correntes doutrinárias


que atravessa o pensamento contemporâneo, no concernente a este
trrrtlema.

Todos os sitemas filosóficos q u e se l e v a n t a m , t o d a s as escolas cien-


nuitas q u e se f u n d a m , todos os métodos literários q u e se c r i a m são
~ r e a l i d a d e s diferentes da investigação do nosso destino, e fórmulas
a: r aves das q u a i s êle se m a n i f e s t a ou a f i r m a . As p r ó p r i a s negações
fí: a; q u e m a i s i m p e r i o s a m e n t e o discutem. Demócrito, meditando
s-lrrre a vida, r i a s e m p r e ; H e r á c l i t o c h o r a v a . 0 otimismo e o pessi-
m_;rr.o existem e m t o d a s as épocas. O c o n t r a s t e do p a s s a d o é o con-
traste do presente. 0 n a t u r a l i s m o , famoso sistema e m q u e pretendem
:•: r finar t o d a a ciência, está a f o r m a r u m a g r a n d e c o r r e n t e . Que é
: naturalismo? E x a m i n e m o - l o à luz d o sentido filosófico.

É um sistema de filosofia, um conjunto de d o u t r i n a s , estriban-


o••-•se sobre a n a t u r e z a p a r a d a r u m a i n t e r p r e t a ç ã o d o u n i v e r s o diame-
24 ANTOLOGIA D E FAMOSOS

tralmente oposta ao verdadeiro espiritualismo. Nutre-se em escolas


diversas, alimenta-se de idéias de valores desiguais. Tem, entretanto,
u m fundo de u n i d a d e , u m p o n t o só de c o n v e r g ê n c i a : r e d u z i r t o d a s as-
r e a l i d a d e s à mecânica, ou pelo menos, à m a t é r i a . É o materialismo,
direis v ó s ? É o m a t e r i a l i s m o , sim, vestido à m o d e r n a " (1). E êle
p r o p õ e u m c r e d o a b s u r d o , depois de t e n t a r a d e r r o c a d a dos princípios-
aos q u a i s se a f e r r a a consciência. Todo sistema, efetivamente, que
a r r o g a o d i r e i t o de i n t e r p r e t a r o universo, e de c o n s t r u i r o t e m p l o da
v e r d a d e , asilo do p e n s a m e n t o humano, defronta estas t r ê s categorias
de fatos: o h o m e m , a v i d a e o m u n d o . E s o b r e esses três fatos p e s a m
as três questões f a t í d i c a s : a o r i g e m , a n a t u r e z a , o destino. Sobre a
o r i g e m , o n a t u r a l i s m o é b o r d a d o das m a i s e x t r a v a g a n t e s e a n t i c i e n t í -
ficas teorias, hoje d e s a c r e d i t a d a s p e r a n t e o t r i b u n a l do bom-senso, da
lógica e da ciência r i g o r o s a e a u s t e r a . Hipóteses e n a d a m a i s o q u e
se têm apresentado, segundo a confissão de Huxley, Zittel, Picard r

D a s t r e , de Cyon e t a n t o s outros. Sobre a n a t u r e z a , a p e n a s tem êle


e s t u d a d o a l g u n s fenômenos, satisfazendo-se e m superficialidades, inca-
pazes de s a t u r a r o espírito d o m i n a d o p o r u m a c u r i o s i d a d e sem termo»
e sem limites. Não é debalde que Poincaré escreveu dois livros:
O Valor da Ciência e as Hipóteses da Ciência. E sobre o destino, o»
destino do h o m e m , a questão s u p r e m a , q u e , h á seis mil anos, n ã o p e r d e
a sua i n t e n s i d a d e , n ã o se afasta, e m u i t o m e n o s se n ã o p o d e e s p u n g i r
do p e n s a m e n t o , p o r q u e , h á seis mil anos, o h o m e m p r o c u r a e investiga
a felicidade, p o r ela doideja e anseia, b a t e n d o a t o d a s as portas, in-
t e r r o g a n d o o g r ã o de a r e i a , o v e n d a v a l , a t e r r a e os a s t r o s ! S o b r e o-
destino d o h o m e m , q u a i s são os d o g m a s do n a t u r a l i s m o ? O nascer r

senhores, é o m a i o r acontecimento d o m u n d o . O morrer é a maior


curiosidade. Entre o acontecimento e a curiosidade há um oceano d e
sofrimentos e dores, de e s p e r a n ç a s e pavores, de e s m a g a m e n t o s e t r i u n -
fos. E depois disso, o oceano vai espraiar-se n a s i m e n s i d a d e s p a r a as
q u a i s n ó s todos p e d i m o s e q u e r e m o s u m n a v i o veleiro, e u m a bússola.,
bem firme e bem segura. O n a t u r a l i s m o asfixia o h o m e m , depois de
o insultar. As suas q u i m e r a s n ã o conseguem d a r ao espírito e ao c o -
r a ç ã o o c o n t e n t a m e n t o de u m a h o r a , p o r q u e p r o m e s s a s falazes e e n g a -
nos mentirosos são t o d a s as suas respostas aos gritos d a felicidade.

(1) Eymieu.
DISCURSOS BRASILEIROS 25

M a r c e l i n o Berthelot, u m dos pontífices d o n a t u r a l i s m o , n u m céle-


b r e discurso e m q u e exalta o h o m e m , dizendo-lhe q u a l é a felicidade
desejada, descreve o q u e será a t e r r a n o a n o dois mil. A terra, u m
vasto j a r d i m , e m m e i o d o q u a l a r a ç a h u m a n a h á d e viver n a a b u n -
d â n c i a e n a a l e g r i a l e g e n d á r i a d a i d a d e do ouro, c o n t a n t o q u e se des-
cubra u m a q u í m i c a espiritual, c a p a z d e m u d a r a n a t u r e z a m o r a l d o
homem tão profundamente como a nossa q u í m i c a t r a n s f o r m a a natu-
reza material.

Bela i r o n i a , n ã o h á d ú v i d a ! A p r o x i m a - s e a h u m a n i d a d e do a n o
dois mil, e p a r a êle c a m i n h a a c e l e r a d a m e n t e . E a química espiritual
n ã o se descobre p a r a m a t a r a tristeza do c o r a ç ã o , a sede d o espírito,
a fome de justiça, o a r d e n t e desejo d a felicidade. Pelo contrário, mais
esquisita se h á t o r n a d o a sensibilidade h u m a n a aos toques d a s a n g ú s -
tias, e m a i s d e l i c a d a às a g o n i a s , sendo m e n o s sensível à s alegrias, e
m a i s indeferente a o p r a z e r .

Metchnikoff, oráculo do naturalismo, inventa outra quimera. Êle


substitui a q u í m i c a espiritual d e Berthelot pela medicina.

O h o m e m , s e g u n d o a s u a a f i r m a ç ã o , " a i n d a se n ã o despojou d a
a n i m a l i d a d e e m q u e teve a s u a o r i g e m ; a evolução a i n d a está inconw
pleta. D a í os conflitos e n t r e seus diversos i n s t i n t o s ; d a í o sofrimento
e a imoralidade. C a b e à ciência m é d i c a c o m b a t e r o m a l e m sua r a i z .
Ela h á d e s a l v a g u a r d a r os corpos c o n t r a a s e n f e r m i d a d e s , cujas c a u s a s
não m a i s serão m i s t e r i o s a s ; ela os h á de g a r a n t i r c o n t r a a decrepi-
t u d e q u e t o r n a odiosa a velhice. Ela h á de m o d e r a r as nossas p a i x õ e s ,
c o r r i g i n d o as faltas d o o r g a n i s m o " . Medicamentos, portanto, e higie-
ne! Sim. O h o m e m v a i a v a n ç a n d o , e as e n f e r m i d a d e s e os m a l e s
de toda espécie a m e a ç a m - l h e a v i d a e m todas as suas fases. A ve-
lhice ( 1 ) patológica, a velhice dolorosa n ã o t a r d a , e até hoje a p r ó p r i a
ciência m é d i c a n ã o l h e assinalou a s u a característica. Ela n ã o s a b e
se é u m a a l t e r a ç ã o dos tecidos, u m a d e s t r u i ç ã o de células n o b r e s p o r
elementos m a i s simples. E l a i g n o r a se é a esclerose ou o e n t o r p e c i -
mento d a s a r t é r i a s , d o figado ou dos r i n s . Tudo uma quimera! E
q u a n d o m e s m o se inventasse u m serum eficaz p a r a a p r o l o n g a ç ã o d a
vida, e u m reativo t ã o poderoso q u e neutralizasse os estragos micro-

(1) Eymieu.
26 ANTOLOGIA D E FAMOSOS

b i a n o s , e q u a n d o m e s m o fosse a existência u m c a m i n h o suave, mais


cedo ou m a i s t a r d e , infalivelmente, i m p l a c a v e l m e n t e s o b r e v i r i a a m o r t e .

E p a r a a m o r t e , Metchnikoff reclama u m a doçura natural. Não


quer uma contração, não quer u m gemido, na hora extrema.

— M i r a g e m , utopia, sonho ou d e l í r i o ! À ilusão desta o r d e m o


h o m e m se n ã o d e i x a c u r v a r . Protesta. Grita. Rebela-se.

V e d e b e m , m e u s jovens a m i g o s , a q u e e x t r e m o s conduz a con-


cepção naturalista do destino humano! A terra é tudo. A mecânica
é tudo. O cego, o implacável acaso t e m a ú l t i m a p a l a v r a . E o nada
é o g r a n d e , o último refúgio das d o r e s e das l á g r i m a s , d a s a l e g r i a s e»
dos heroísmos, dos sacrifícios e dos a m o r e s . E o homem é o eterno
a t o r m e n t a d o pelo desejo de ser feliz. Q u e i m p o r t a falar-se-lhe d a re-
signação? Que importa segredar-lhe ao espírito acabrunhado uma
consolação ?

"A Natureza, diz Taine, s u m o pontífice dessa teoria sinistra e


b á r b a r a , a N a t u r e z a é o ser perfeito. A v o n t a d e d a N a t u r e z a é a nossa
vontade. E a consolação perfeita a ela d e v e m o s p e d i r . A resistência
é u m a l o u c u r a de c r i a n ç a . De todos os lados, a i m e n s i d a d e nos com-
p r i m e , e a N a t u r e z a v e m exaltar-nos ou e s m a g a r - n o s . 0 n a d a é a re-
c o m p e n s a q u e e s p e r a a todas as gerações, lá n a s m a r g e n s d e u m oceano
gelado e frio.

É v e r d a d e q u e p o r sobre o a b i s m o e m q u e t u d o vai i m e r g i r há
reflexos de sol, t i n t a s d e e s m e r a l d a e cintilações de o u r o . Mas tudo
isso é ilusório. É m i s t e r resignar-se o h o m e m ao i n e v i t á v e l " ( 1 ) . E
sem Deus, sem r e s i g n a ç ã o , sem o u t r a v i d a , o m u n d o e a sociedade
devem a c a b a r n a e p i d e m i a d o suicídio anestésico, de q u e fala Le D a n -
tec, o terrível p r e g o e i r o do ateísmo, o i m p e t u o s o corifeu do natura-
lismo c o n t e m p o r â n e o . — V e d e b e m a q u e e x t r e m o s d ã o essas teorias
imorais, anti-sociais e niilistas. Delas ressalta u m corolário: o de-
sespero n a vida, o desespero n a m o r t e ; a ferocidade no h o m e m , o
egoísmo n a s o c i e d a d e ; a d e s o r d e m em t u d o , o extinguir-se d a h u m a -
nidade!

(1) Eymieu.
DISCURSOS BRASILEIROS 27

A b a n d o n e m o s , p o r é m , as regiões tenebrosas em q u e a esterilidade


m o r a , e em q u e se n ã o ouve u m cântico de e s p e r a n ç a .

O h o m e m n ã o foi c r i a d o p a r a l u t a r e depois ser b r u t a l m e n t e des-


p e d a ç a d o n a s v o r a g e n s d e todos os h o r r o r e s , e sumir-se n u m a leiva de
terra. 0 e s p i r i t u a l i s m o repassa, m e r c ê d e D e u s , o p e n s a m e n t o huma-
no. É a grande, a profunda, a s e r e n a c o r r e n t e p o r o n d e v ã o desli-
z a n d o as almas, e n a q u a l b e b e m h a u s t o s de v i d a os corações. Êle,
o e s p i r i t u a l i s m o , enfrenta audaz e triunfante as questões d a origem,
da n a t u r e z a e d o fim. P a r a t o d a s elas t e m u m a solução definitiva
e certa. Vai-lhes ao c e r n e , desvenda-lhes os segredos, ilumina-lhes as
s o m b r a s , e as clarifica nos esplendores d e u m sol. Êle a f i r m a q u e o
h o m e m é de fato u m a r u í n a , a restaurar-se, a reconstruir-se nas tor-
mentas da passagem terrestre para c h e g a r ao repouso d a felicidade
absoluta e perfeita. P a r a além dos c o m b a t e s e dos tumultos, d a s h o r a s
n e g r a s e dos dias s o m b r i o s , a c e n a o e s p i r i t u a l i s m o c o m o farol das
consolações s u p r e m a s .

A l e n t a o espírito, a l i g e i r a os t r a n s e s d o sofrer, reconforta o cora-


ção, e se m u l t i p l i c a e m estímulos, e m forças, e m d e v o t a m e n t o s .

A s pelejas feridas n o c a m p o r a s o da v i d a n ã o t ê m e s m a g a m e n t o s .
\ encedores e v e n c i d o s p o d e m a b r a ç a r - s e nos cimos i l u m i n a d o s da mi-
s e r i c ó r d i a infinita, e encontrar-se no seio dessa e t e r n a b o n d a d e , dessa
justiça sem filhos, q u e as nossas constantes aspirações r e c l a m a m e bus-
cam, n a sofreguidão de t o d a s as potências d o nosso ser. N ã o são en-
g a n a d o r a s as suas p r o m e s s a s , n e m o b s c u r a s as s e n d a s p o r êle t r a ç a d a s .
Mostra, n ã o h á d ú v i d a , a i m e n s i d a d e p e r t o ou distante n u m marulhar
doce ou e n c r e s p a d o de s u a s v a g a s .

Para a i m e n s i d a d e êle t e m o n a v i o veleiro, a p a r e l h a d o para a


travessia, forte p a r a resistir à t e m p e s t a d e , b l i n d a d o contra as fúrias
dos escarcéus dos m a u s instintos, dos p e n d o r e s viciados, d a s paixões
dissolventes e dos d e s â n i m o s c r u é i s . O n a v i o veleiro é a Fé, a pro-
jetar ao longe clarões p o r s o b r e os a b i s m o s , a a p r o x i m a r as distâncias,
a t r a n s p o r os espaços e a d o m i n a r o i n c e r t o .

P a r a os fundos pélagos existe a fateixa de e n c o n t r o à q u a l se


q u e b r a m todos os reveses — é a e s p e r a n ç a invencível n u m m u n d o me-
28 ANTOLOGIA D E FAMOSOS

Ihor, a b r i g o dos cansados, refúgio dos perseguidos, r e m a n s o dos in-


felizes.

C r e r e esperar, sofrer e s o r r i r ! A í se c o n d e n s a m todas a s g r a n -


dezas e se r e ú n e m todos os e n c a n t o s dos sacrifícios e todas a s belezas
dos m a r t í r i o s . C r e r e esperar, sofrer e sorrir! M a s t u d o isso é o
E v a n g e l h o a n u n c i a d o aos h o m e n s como o s a n t u á r i o e m q u e se esconde
a felicidade, e d a d o a o m u n d o como u m c o m p ê n d i o e m cujas p á g i n a s
vai c a d a u m de n ó s d e c i f r a r o seu e n i g m a e soletrar as p a l a v r a s d o
seu destino. M a s t u d o isso é o E v a n g e l h o , a epopéia ( 1 ) dos simples,
o h i n o a n t e c i p a d o à J e r u s a l é m dos miseráveis. M a s t u d o isso é o en-
c o n t r o d e D e u s com o h o m e m . É a d o ç u r a d o Cristo a m p a r a n d o as
nossas fragilidades, a s u a b o n d a d e t r a n s f i g u r a n d o os nossos males, a
s u a c a r i d a d e recolhendo a s nossas preces, e s c u t a n d o o nosso c o r a ç ã o ,
e subindo-nos o espírito às a l t u r a s d o seu p o d e r , vencedor de todas a s
vicissitudes e e t e r n a m e n t e refulgente n a s c l a r i d a d e s dos dias sem fim.

Felizes os q u e s a b e m c r e r n a s d o u t r i n a s do Cristo e e s p e r a r n a s
suas promessas! Frederico Masson, r e s p o n d e n d o a o discurso d e re-
c e p ç ã o de P o i n c a r é n a A c a d e m i a F r a n c e s a , a 2 8 de j a n e i r o d e 1 9 0 9 ,
em t r a ç o s m u i t o r á p i d o s mostra-nos o sofrimento de um homem que
desejava sorrir m a s soluçava, e o júbilo de outro h o m e m que chegara
à placidez d a fé.

O p o b r e S u l l y - P r u d h o m m e , o g r a n d e p o e t a do Bonheur, gemia no
seu leito d e dores, q u a s e a b a n d o n a d o e esquecido pelos a m i g o s .

U m a t a r d e , F r a n ç o i s Coppée, o m a r a v i l h o s o c a n t o r dos p e q u e n i -
nos, apresentou-se-lhe à cabeceira, talvez e m visita d e d e s p e d i d a .

A p ó s u m a h o r a d e silêncio, e x c l a m a C o p p é e : Eu, eu creio, meu


infeliz amigo.

E S u l l y - P r u d h o m m e , compassando-o com os olhos, e m q u e h a v i a


u m b r i l h o de a d m i r a ç ã o , feita d e inveja e d e c i ú m e , e r g u e n d o a s m ã o s ,
p r o f e r e estas p a l a v r a s :

" A h ! Coppée, n ã o sabes q u a n t o és d i t o s o ! "

(1) Challemel-Lacour.
DISCURSOS BRASILEIROS 29

— A p r e n d e s t e s , meus amigos, esta v e n t u r a , p o r q u e até hoje fôs-


tes a l i m e n t a d o s pela s u b s t â n c i a das v e r d a d e s divinas, e tivestes n a ju-
v e n t u d e , a i n d a e m botão, a seiva q u e fecundou o vosso espírito para
as v i r t u d e s e r e v i g o r o u a vossa consciência p a r a as a u s t e r i d a d e s do
dever. S e g u r o s podereis c a m i n h a r pelos a c i d e n t a d o s e ásperos cami-
n h o s da v i d a . Atletas do b e m , a m a m e n t a d o s aos seios fecundos da
v e r d a d e , sois c a n d i d a t o s à v i t ó r i a , e às p a l m a s dos q u e t r i u n f a m . E
sabei q u e ides em b o a c o m p a n h i a . V a i convosco o escol do gênero
humano. Encontrareis, todavia, na vossa abalada, obstáculos, contra
os q u a i s eu vos q u e r o premunir.

F a r t a s vezes, ouvireis dizer q u e a ciência é i n i m i g a d a fé. Aos


q u e assim vos falarem dai a resposta q u e , em 1 8 8 1 , formulava o sábio
Elias De Cyon, infelizmente n ã o de todo e x t r e m e de erros filosóficos
e religiosos, ao f a n a t i s m o irreligioso de P a u l Bert: "Qual dentre as
ciências a q u e l a q u e é a n e g a ç ã o d a fé em D e u s , a n e g a ç ã o da idéia
religiosa? Q u a l a ciência, q u e levada aos últimos limites do saber
h u m a n o p o d e e s t a n c a r a sede do infinito a d e v o r a r o e s p í r i t o ? Qual
a ciência capaz de nos d a r a conhecer, j á n ã o d i g o a causa final e geral
das coisas e dos seres, m a s s o m e n t e a c o n c a t e n a ç ã o integral das coisas
particulares ?

É a astronomia? Ela p o d e r á realizar p r o d í g i o s de análise, mas


s e m p r e h á de ficar u m a m u l t i d ã o de m u n d o s inacessíveis às suas labo-
riosas investigações.

É a cosmogonia? O seu p o d e r é tão l i m i t a d o no t e m p o quanto


o é o da a s t r o n o m i a n o espaço. É a física? É a química? Essas d u a s
ciências, q u a i s q u e r q u e sejam seus progressos, o u t r a cousa n ã o p o d e r ã o
c r i a r senão u m a m e c â n i c a de átomos.

J a m a i s p o d e r ã o fornecer-nos uma definição precisa da força a


u m a definição d a m a t é r i a .

É, finalmente, a fisiologia? Ainda mesmo que ela, u m dia, à


custa de i n g e n t e s esforços, c h e g u e a possuir u m a m e c â n i c a perfeita d a s
funções c e r e b r a i s , j a m a i s p o d e r á c o m p r e e n d e r o q u e seja a consciência.

L e m b r a i - v o s t a m b é m q u e os c r i a d o r e s da ciência m o d e r n a , desde
P r i e s t l e y e Lavoisier até A m p è r e , F a r a d a y e P a s t e u r f o r a m profunda-
30 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

m e n t e espiritualistas e e m i n e n t e m e n t e religiosos. O u t r a s vezes, ouvireis


apregoar-se a m o r a l científica em contraposição à moral evangélica.
R e s p o n d e r e i s , e n t ã o , q u e n ã o h á , n ã o p o d e h a v e r m o r a l sem D e u s , e
q u e t o d a s as ciências, todos os esforços e todos os h o m e n s u n i d o s j a m a i s
poderiam criar uma.

R e s p o n d e r e i s e n t ã o c o m a s estatísticas dos povos, e n e g r e c i d a s pelas


a t e r r a d o r a s somas dos crimes, dos delitos d e t o d a s as espécies, e avolu-
m a d a s o b r e t u d o p e l a c r i m i n a l i d a d e infantil. Respondereis, então, q u e
a a u s ê n c i a d o E v a n g e l h o é s u b s t i t u í d a pelo p a g a n i s m o a inundar o
m u n d o d e c a l a m i d a d e s , e infelicitar a s nações c o m os despotismos, a
d e s g r a ç a r as sociedades c o m os flagelos do luxo insolente, d o sensua-
lismo d e s b r a g a d o , d a volúpia q u e destrói a s r a ç a s , e x t i n g u e os povos
e mata o gênero h u m a n o .

R e s p o n d e r e i s e n t ã o q u e , ou o Cristo d o m i n a o m u n d o , ou o m u n d o
se p r e c i p i t a p a r a a decadência.

Dir-vos-ão q u e o clericalismo é o i n i m i g o d a sociedade moderna.


A esta frase de Leão G a m b e t t a oporeis a p e n a s o bom-senso, retrucan-
d o : A religião é a m a i s inelutável necessidade d o h o m e m . Não há
religião sem culto. Não pode haver culto sem s a c e r d ó c i o . Respon-
d e r e i s m a i s : O n d e , como, p o r q u e f o r m a é o sacerdote i n i m i g o d a so-
ciedade m o d e r n a ? Por que prega as doutrinas do Divino Mestre?
M a s essas são toda a v e r d a d e , toda a luz e toda a v i d a p a r a os indi-
víduos e p a r a as coletividades.

P o r q u e se envolve n a s questões sociais e p o l í t i c a s ? E os inte-


resses do Cristo, d a I g r e j a , os interesses e s p i r i t u a i s e m o r a i s d a h u m a -
n i d a d e n ã o se a c h a m t a m b é m n a s questões sociais e p o l í t i c a s ?

R e b a t e i , m e u s a m i g o s , esse e r r o , r e c l a m a n d o p a r a a vossa c r e n ç a
e p a r a os seus m i n i s t r o s essa l i b e r d a d e q u e os g o v e r n o s fracos e pusi-
lânimes concedem a t é aos b a n d i d o s e aos p r o x e n e t a s . Afrontai essa
tendência dos governos escravizados p o r interesses subalternos, e ata-
cados p e l a m i o p i a d e u m a política m e s q u i n h a e estéril, essa t e n d ê n c i a
q u e p r o c l a m a a l i b e r d a d e p a r a todos e p a r a t u d o , e q u e , l u d i b r i a n d o
a m e s m a l i b e r d a d e , p õ e o clero fora d a lei, d a j u s t i ç a e d a i g u a l d a d e .

E m nossos dias, e m nosso p a í s , a q u i neste opulento E s t a d o , o m a i s


glorioso d a U n i ã o Brasileira, v ó s b e m o vedes, p a r a certos homens
DISCURSOS BRASILEIROS 31

públicos t e m m a i s direito, vale m a i s , pesa m a i s n a b a l a n ç a d a comu-


n h ã o social a d e m a g o g i a desenfreada, a c u s p i r insultos, a vociferar
n a s p r a ç a s , a a c h i n c a l h a r a d i g n i d a d e , a p e r t u r b a r a o r d e m e a pros-
p e r i d a d e , d o q u e u m a classe i n t e i r a , pacífica e civilizadora. O h ! meus
amigos! 0 anticlericalismo não anda só. O anticlericalismo vem
sempre acompanhado do antimilitarismo. P o r q u e o p r i m e i r o é o des-
prezo pela a u t o r i d a d e d i v i n a . E o s e g u n d o é o desprezo pela autori-
dade pátria. Clemenceau e Briand andam de braços dados com o
antipatriota Hervé.

Aí t e n d e s u m fato q u e a h i s t ó r i a r e g i s t r a e m t o d a s a s épocas.

F i n a l m e n t e , m e u s jovens a m i g o s , sereis fascinados pela ilusão d o


gozo material, ministrado nos p r a z e r e s e r e q u i n t e s , n a s volúpias de
todas as m u n d a n i d a d e s .

É forte esta solicitação. Lembrai-vos, porém, que o prazer é a


cesta de flores q u e a escrava a p r e s e n t o u a C l e ó p a t r a .

D e b a i x o d a s pétalas, estava o v e n e n o d a áspide. E esse v e n e n o


era a morte.

As delícias d e C á p u a d e s b a r a t a r a m a s falanges r o m a n a s , e os bár-


baros tripudiaram sobre o c a d á v e r d e u m povo q u e s u b j u g a r a mil
povos.

A c i m a d e todas as d e l i n q ü ê n c i a s , q u e u m p a g a n i s m o m o d e r n o nos
oferece, levantai, senhores, u m ideal q u e seja o programa de vossa
v i d a p r i v a d a , social, religiosa e política. O ideal é u m a v e r d a d e •—
limite p a r a a q u a l p r o p e n d e o ser q u e se desenvolve harmônicamente.
Êle é a idéia substituída e a idéia cristalizadora.

O ideal substitui todas as d e m a i s idéias d e u m a t e n d ê n c i a c o m u m ,


sem as d e s t r u i r . V e m uni-las depois e enfeixá-las numa síntese. O
ideal cristaliza e m t o r n o d e si m e s m o . T r a b a l h a a s idéias d a m e s m a
tendência, enquanto dissolve n o fundo d a consciência as i d é i a s con-
trárias.

0 ideal opõe-se às d u a s coisas q u e constituem a m e d i o c r i d a d e d a


v i d a : a fraqueza e o desperdício da vontade.
32 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

Êle se converte na g r a n d e força, no belo sacrifício, e n a radiante


alegria.

A o n d e ireis p e d i r esse ideal, senão p r o c u r a n d o o Cristo, esse pri-


meiro gentü-homem do mundo, no gracioso dizer do imortal L a c o r d a i -
re? O Cristo vivo e real, o q u e palpita e fala n o E v a n g e l h o , o pri-
m e i r o m a n u a l de p e d a g o g i a (1).

N o E v a n g e l h o q u e o a p o n t a como e x e m p l a r n ã o só das virtudes


s o b r e n a t u r a i s m a s a i n d a das p r ó p r i a s v i r t u d e s n a t u r a i s .

Sim! O Cristo n ã o é u m m e t e o r o h i e r á t i c o .

É o ideal das perfeições i n d i v i d u a i s , domésticas e sociais. Ideal


e n c a n t a d o r p a r a o q u a l estão a c o n v e r g i r as a s p i r a ç õ e s da a l m a . Ideal
c o n q u i s t a d o r q u e i n v a d e t o d a s as faculdades!

Escrevei u m a divisa na q u a l m e r g u l h e m vossos olhos n a s h o r a s das


pelejas v á r i a s e a r r i s c a d a s , q u e vos h ã o de faltar.

Tomai a divisa da t e r r a l e g e n d á r i a , onde cantou Chateaubriand


e o n d e nasceu o m a i o r p e n s a d o r dos nossos t e m p o s — E r n e s t o Hello.
D a t e r r a q u e as t e m p e s t a d e s a ç o u t a m , e em q u e o m a r t e m r u g i d o de
cóleras, m a s em q u e as a l m a s são resistentes como o g r a n i t o , e as cons-
ciências firmes c o m o os penhascos, semeados ao longo d a s p r a i a s . To-
m a i a divisa da t e r r a do h e r o í s m o , a g r a n d e B r e t a n h a : — Potius mori
quam foedari! A m o r t e é preferível à t r a i ç ã o .

Se h á g r a n d e z a s n o t e m p o em q u e l a b u t a m o s , h á t a m b é m fraque-
zas e covardias, d e g r a d a ç õ e s e aviltamentos. T e n h o m e d o dos covar-
des. N ã o t e n h o m e d o dos fortes, dos violentos e dos h e r ó i s . É uma
i d o l a t r i a essa exclusiva p r e o c u p a ç ã o pelo d i n h e i r o .

Parece que em torno dele t u d o vai gravitando. Êle c o m p r a o


c a r á t e r , êle devasta as convicções, êle c o m p r a as consciências em leilão.

Êle p r o d u z os eunucos dos servilismos, e a l i m e n t a a turbamulta


dos Chilons-Chilonides, em p e r p é t u a s c u r v a t u r a s a n t e os estadistas de
cabotagem ( 2 ) , os políticos enfatuados e os vaidosos chefes de E s t a d o ,

(1) S. Verret.
(2) A expressão não é minha: é de Barbosa Lima.
DISCURSOS BRASILEIROS 33

q u e u m a i m p r e n s a m e r c e n á r i a lisongeia e a í a g a , e q u e os interesses
a r v o r a m e m á r b i t r o s d a s r i q u e z a s e d a salvação dos países.

É preferível a m o r t e à t r a i ç ã o dos p r i n c í p i o s s a g r a d o s q u e o Cristo


infundiu e m vossos espíritos, e que vossas m ã e s o r v a l h a r a m com as
pérolas de suas lágrimas.

É preferível a m o r t e ao sacrifício de vossas c r e n ç a s e de vossa


dignidade. É preferível a m o r t e ao c o n t u b é r n i o d a s s ó r d i d a s invejas,
d a s a s q u e r o s a s bajulações e das d e p r a v a d a s e corrosivas p a i x õ e s !

B e m c e r t o estou eu, meus amigos, de q u e i l u m i n a d o s p o r esse


i d e a l e a l e n t a d o s p o r essa divisa, p o d e r e i s fazer a travessia d a vida,
d e f e n d e n d o a vossa religião e s e r v i n d o a vossa p á t r i a , sem esmoreci-
t n e n t o s e sem vacilações. E n a p r i m a v e r a d a s e s p e r a n ç a s , nos a r d o r e s
d o sol, n a s refregas dos c o m b a t e s , h a v e i s de s e m p r e ouvir a vossa mo-
c i d a d e cantar o salmo da glória!
MANFREDO LEITE

Elogio fúnebre de Sua Santidade o Papa Pio X


nas Solenes Exéquias celebradas pela Arquidio-
cese de S. Paulo, n a Igreja Abacial de S. Bento,
no dia 26 de agosto de 1914.

Excelentíssimos S e n h o r e s .

Q u a n d o , h á p r e c i s a m e n t e onze anos e q u i n z e d i a s , p o r e n t r e os
círios a r d e n t e s da I g r e j a de S. P e d r o , e n r e g e l a d o e h i r t o se estendia
no ataúde o cadáver do grande Leão X I I I , u m a estranha e profunda
comoção a b a l a v a o m u n d o inteiro.

A sensação de q u e u m sol t o m b a r a d o seu zênite, e a i n d a d e s p e d i a


os últimos fulgores, avassalava todos os espíritos.

A civilização sofrerá u m eclipse.

A h u m a n i d a d e p e r d e r a o m a i s poderoso m e n t o r . E a Igreja Ca-


tólica, vestida de luto, p e r d e r a o chefe s u p r e m o , q u e dos cimos ilumi-
n a d o s da m a i s vasta e bela intelectualidade, s o u b e r a dirigi-la com as
i r r a d i a ç õ e s q u e t i n h a m m a j e s t a d e , e com a m a j e s t a d e que tinha um
i m e n s o e desusado esplendor.

À b e i r a d a q u e l e a t a ú d e escrevia a h i s t ó r i a u m a d a s m a i s r u t i l a n -
tes p á g i n a s dos seus fastos, e a d m i r a v a - s e de v e r r e d u z i d o a t ã o m i -
núsculas p r o p o r ç õ e s a q u e l e q u e f o r a u m g i g a n t e , e q u e e n c h e r a a t e r r a
com os raios d a s u a glória, a g r a n d e z a do seu n o m e , e a beleza do
seu p o d e r . À b e i r a d a q u e l e a t a ú d e , f o r m u l a v a planos e cálculos a sa-
bedoria humana. Conjecturava a política. Suspeitava a diplomacia.
E dos q u a t r o ângulos do universo, r e v o a v a m p e n s a m e n t o s , volviam a s -
pirações, e despontavam anseios.
DISCURSOS BRASILEIROS 35

N a f ú n e b r e solenidade d a q u e l a h o r a , t u d o e r a incerteza, t u d o e r a
mistério.

Só n ã o existia incerteza e n e m h a v i a m i s t é r i o p a r a a P r o v i d ê n c i a
D i v i n a , q u e velava t a m b é m esses despojos e p r e p a r a v a os c a m i n h o s à s
rutilações de u m o u t r o sol, q u e se ia l e v a n t a r n o h o r i z o n t e p a r a a s
g r a n d e s projeções d e luz, p a r a o dissipar d a s trevas, e p a r a o calor
das almas. S u r p r e e n d e n d o e c o n t r a r i a n d o todas a s conjecturas, desi-
l u d i n d o todos os cálculos, a I g r e j a p r o n u n c i o u u m n o m e q u e d e v i a s e r
o sucessor d e Leão X I I I . Esse n o m e atravessou o espaço, voou d e boca
e m boca, e constituiu u m e n i g m a . Tão humilde era êle! E tão pe-
q u e n o se a f i g u r a v a p a r a a s i n v e s t i d u r a s d o m a i s alto p o d e r , e a m a i s
elevada d a s s o b e r a n i a s , a s o b e r a n i a d a s consciências. Pouco depois,
esse n o m e crescia, e c r e s c e n d o a r r a s t a v a s i m p a t i a s , e a r r a s t a n d o sim-
patias despertava veneração. E a v e n e r a ç ã o fazia-se a u r é o l a a circun-
d a r a fronte a u g u s t a d e P i o X , cujo d e s a p a r e c i m e n t o d e n t r e os vivos
l a m e n t a a c r i s t a n d a d e nesta h o r a , c h o r a o m u n d o , d e p l o r a a Igreja,
e c o m e m o r a S ã o P a u l o n a s p o m p a s d e luto e d o r destas h o m e n a g e n s ,
q u e a q u i vimos t r i b u t a r à s u a doce m e m ó r i a , e à s u a a l m a d e eleito.

* * *
U m a simples l á p i d e c o m e m o r a t i v a sobre o frontispício de u m a
casa m o d e s t a , n a a l d e i a d e Riese, p r o v í n c i a d e T r e v i s o , assinala q u e
ali, a 2 d e j u n h o d e 1 8 3 5 n a s c e u José S a r t o . D e s d e os p r i m ó r d i o s d a
s u a infância, b a f e j a d a pelo fervor religioso d e seus p a i s , c o n h e c e u êle
as privações e a s asperezas da pobreza, q u e o deveria acompanhar e m
todas a s fases d a s u a v i d a .

Depois d e f r e q ü e n t a r c o m a s s i d u i d a d e o g i n á s i o d e Castelfranco,
e n t r o u n o s s e m i n á r i o s d e T r e v i s o e P á d u a , i m p u l s i o n a d o pela vocação
a o sacerdócio.

E x e m p l a r pela d i s c i p l i n a e pelas v i r t u d e s , notável pela v i v a c i d a d e


d a fé, a s c e n d e u à o r d e m s a c r a d o p r e s b i t e r a t o e m 1 8 5 8 . 0 seu pa-
r o q u i a t o e m T o m b o l o , d u r a n t e nove a n o s , e e m Salzano, foi u m lumi-
noso estádio q u e êle p e r c o r r e u e m m a g n í f i c a s d e m o n s t r a ç õ e s de zelo,
solicitude e p i e d a d e . Sentia-se b e m n o c o n t a t o dos p o b r e s e h u m i l d e s ,
com os q u a i s r e p a r t i a a escassez dos seus h a v e r e s . À c a b e c e i r a dos
e n f e r m o s e m o r i b u n d o s , êle a p a r e c i a s e m p r e c o m o visão consoladora,
36 ANTOLOGIA D E FAMOSOS

e imagem de bondade. D a felicidade d e s u a m o d é s t i a foram arran-


cá-lo p a r a o l u g a r d e V i g á r i o Geral d a Diocese d e T r e v i s o . Pouco
depois, e m 1 8 8 4 , e r a s a g r a d o b i s p o d e M â n t u a . O q u e foi o seu epis-
c o p a d o d u r a n t e nove anos e m M á n t u a dizem-no os p r o f u n d o s afetos
ali d e i x a d o s p o r êle.

Empenhado constantemente em percorrer s u a diocese, d o t a r seu


seminário de u m a c o m p e t e n t e d i r e ç ã o pelos moldes disciplinares, os
m a i s elevados, a s u a g r a n d e p r e o c u p a ç ã o d i u r n a e n o t u r n a e r a a assis-
tência aos desvalidos.

F a r t a s vezes, o seu anel episcopal foi a o p e n h o r p a r a a consecução


dos r e c u r s o s e d a s esmolas, q u e se t r a n s f o r m a v a m e m alegrias para
m u i t o s lares e m u i t a s famílias. V e n c i d a s a s dificuldades d o exequatur
do governo italiano, a 12 d e j u l h o d e 1 8 9 3 , e r a D r . José S a r t o preco-
n i z a d o P a t r i a r c a d e V e n e z a e C a r d e a l , c o m o título d e S. B e r n a r d o
alie Terme. E m Veneza, desenvolveu o seu zelo apostólico a m a i s l a r g a
a ç ã o religiosa, t r a d u z i d a n u m a multiplicidade de o b r a s fecundas q u e
lhe v a l e r a m o n o m e de Cardeal da democracia cristã.

Difícil e p e r t u r b a d o e r a o m o m e n t o histórico q u a n d o a s s u m i u a
d i r e ç ã o d a I g r e j a Católica. A s atenções e a s solicitudes d o P a s t o r con-
c e n t r a r a m - s e t o d a s n a s p r e m e n t e s e a n g u s t i o s a s necessidades q u e esta-
v a m c a u s a n d o aflições às consciências, perturbações a o s espíritos e
mágoas à Igreja de Deus. U m a voz, r e p a s s a d a d e a u t o r i d a d e , e feita
de i n q u e b r a n t á v e l e n e r g i a , p r e c i s a v a d i r i m i r certas questões e contro-
vérsias, a g i t a d a s d u r a n t e longos anos. U m b r a d o , cheio d e firmeza,
de constância e i n t r a n s i g ê n c i a , e r a necessário se fizesse o u v i r a o m u n d o
p a r a nele a p a r e c e r e m t o d a a s u a p u r e z a a i n t e g r i d a d e d a fé, a dou-
t r i n a d o Cristo e a s o b e r a n i a d a I g r e j a .

D u r a n t e l a r g o t e m p o , i d é i a s e r r ô n e a s e p r i n c í p i o s falsos, vindos
a t r a v é s d a s d o u t r i n a s de Y a n t e de S c h l e i e r m a c h e r , iam avassalando
a s inteligências, d e t e r m i n a n d o u m f e r m e n t o d e p e r t u r b a ç ã o e a n a r q u i a .
0 livro d e H a r n a c h , i n t i t u l a d o a Essência do Cristianismo, e o livro
d e A u g u s t o S a b a t i e r , i n t i t u l a d o Esboço de uma filosofia da Religião,
d i v u l g a r a m t e o r i a s q u e v u l n e r a v a m os s u p r e m o s ensinamentos d a fé,
a t e n t a v a m c o n t r a a i m u t a b i l i d a d e d o d o g m a , f o r m u l a v a m u m misto d e
sistemas, e criavam uma heresia, profundamente perturbadora. 0
DISCURSOS BRASILEIROS 37

Rlischlianismo, a p r e g o a n d o q u e os critérios a g u i a r e m a a l m a religiosa


são critérios s i m p l e s m e n t e subjectivos, relativos e p r e c á r i o s , m a s não
absolutos, e o Guentherianismo, r e d u z i n d o o valor das a f i r m a ç õ e s dog-
m á t i c a s a u m valor de o p o r t u n i d a d e , i n t r o d u z i r a m o sentimentalismo
agnóstico, m a i s c o n h e c i d o pelo n o m e de modernismo. Esse modernis-
mo o u t r a coisa n ã o é senão u m a d a s v a r i a n t e s d o p r o t e s t a n t i s m o libe-
ral, o u t r a coisa n ã o é senão u m a e s t r a n h a mescla de d o u t r i n a s funestas,
subversivas, capciosas e dissolventes.

D e n t r o dêíe, p o d e viver à l a r g a o ceticismo, o Cristo fica d i m i n u í -


do, as s o b e r a n a s a f i r m a ç õ e s , dantes, fontes de p a z e t r a n q ü i l i d a d e p a r a
a consciência, ficam r e d u z i d a s a hipóteses.

Esse a g l o m e r a d o de evolucionismo, idealismo, p r a g m a t i s m o e ima-


nentismo é um pandemonium em q u e se b a r a l h a m t o d a s as certezas,
e se c o n t r a d i z e m t o d a s as v e r d a d e s .

A fé, p o r t a n t o , p e r i c l i t a v a ante o p r u r i d o da novidade, que ia


p e n e t r a n d o n a s u n i v e r s i d a d e s e a c a d e m i a s , nos i n d i f e r e n t e s e nos cren-
tes, e até nos s e m i n á r i o s católicos destinados à f o r m a ç ã o do clero. Isto
constituía u m a séria e m u i t o g r a v e a p r e e n s ã o . Em face d a religião,
escreveu o ilustre bispo de A n g e r s , n ã o se p o d e g u a r d a r neutralidade.
A religião o c u p a u m l u g a r m u i t o g r a n d e n a h i s t ó r i a , n a filosofia, na
l i t e r a t u r a , nas ciências e n a s a r t e s . É m i s t e r t o m a r u m p a r t i d o favo-
rável ou c o n t r á r i o . Que fêz a I g r e j a , a d e p o s i t á r i a d a fé e d a ver-
dade? A I g r e j a m a n t e v e o p r i n c í p i o da coesão d o u t r i n a i — a i n t r a n -
sigência. A Igreja pronunciou com energia o seu veredito. Pio X
•— o sucessor de P e d r o •— alçou a sua voz p o r s o b r e as t u r b a s e o
m u n d o , e l e m b r a n d o as constituições d o u t r i n a i s d o Concilio do Vati-
cano, c o m o j á o fizera L e ã o X I I I , p o r m e i o dos d o c u m e n t o s s o b r e o
t e r r e n o e s c r i t u r á r i o , na Encíclica Providentissimus Deus, e no terreno
ascético — n o Testen benevolentiae, ao c a r d e a l Gibbons, lançou a fa-
m o s a Encíclica Pascendi, t ã o vigorosa, t ã o clara e t ã o m a g i s t r a l q u e o
erro foi confundido, e a verdade logrou a sua esplêndida vitória.
P i o X foi u m v i d e n t e . C o m a s u a firmeza, êle soube deter a v a g a q u e
t r a z i a em seu bojo a h e r e s i a , a p e r t u r b a r a c r i s t a n d a d e , e a c o n t u r b a r
a alma humana.
38 ANTOLOGIA DE FAMOSOS

O seu pontificado p a s s a r á à h i s t ó r i a , como o pontificado da fé in-


trépida, majestosa e enérgica. A espíritos menos ponderados afigu-
rou-se u m ato m e n o s louvável a q u e b r a d a Concordata entre a França
e a S a n t a Sé. M a i s u m a vez, e n t r e t a n t o , nesse ato, revelou-se o g r a n d e
espírito d o Pontífice, e m a i s se evidenciou o seu a m o r pela Igreja.

A F r a n ç a , a n a ç ã o cavalheiresca, e cujas o r i g e n s m e r g u l h a m no
b a t i s t é r i o de R e i m s , e cuja g l ó r i a v a i c u l m i n a r n o h e r o í s m o de J o a n a
d ' A r c , a F r a n ç a v e m assistindo a u m espetáculo contristador.

H á anos, o espírito sectário vai t r a b a l h a n d o o seu governo, e u m a


luta, cheia de t r á g i c a s p e r i p é c i a s , v e m sendo t r a v a d a e n t r e as suas tra-
dições seculares e as p a i x õ e s d a s u a política d o m i n a n t e . A b e l a filha
p r i m o g ê n i t a d a I g r e j a n ã o t e m q u e r i d o escutar os p a t e r n a i s conselhos
do Supremo Pastor. U m e s p í r i t o de hostilidade e de p e r s e g u i ç ã o l a v r a
n o governo, q u e lhe d i r i g e os destinos. Ê s a b i d o q u e o sectarismo,
s u b - r e t i c i a m e n t e até se envolvia n a a d m i n i s t r a ç ã o espiritual das dioce-
ses. M a i s u m a vez, à S a n t a Sé f o r a m a p r e s e n t a d o s c a n d i d a t o s menos
dignos ao episcopado francês. Mágoas profundas d i l a c e r a m o gene-
roso c o r a ç ã o de P i o X , q u e só d e s e j a r a r e s t a u r a r t u d o e m Cristo e
a s s e g u r a r a completa i n d e p e n d ê n c i a d a s u a I g r e j a . A t r a n s i g ê n c i a com
as investidas sectárias e r a impossível.

E o livro b r a n c o d a S a n t a Sé explica com m a i o r imparcialidade


os motivos d a q u e b r a d a Concordata.

A célebre questão do Sillon, o r i g e m de p r o l o n g a d a s controvérsias


n a i m p r e n s a e nos centros católicos da a ç ã o social em França, des-
p e r t o u n a solicitude d o a u g u s t o Pontífice as p r o v a s m a i s francas da
sua benevolência e as s u a s m a i s d e d i c a d a s afeições às n o r m a s t r a ç a d a s
pelas leis d a Igreja.

A c o n d e n a ç ã o d o Sillon obteve u m a s u b m i s s ã o c o m p l e t a às pres-


crições do documento pontifício. No jornal — La Démocratie —
M a r c o s S a n g n i e r d i r i g i a a P i o X u m a c a r t a , v e r d a d e i r o d o c u m e n t o de
f i d e l i d a d e e o b e d i ê n c i a às p a l a v r a s do P a i d a C r i s t a n d a d e .

N o vasto i m p é r i o alemão, surgiu o conflito e n t r e os sindicatos


confessionais e interconfessionais. Esse conflito ficou p e r f e i t a m e n t e se-
r e n a d o pela Encyclica-Singulari q u a d a m — d i r i g i d a pelo S a n t o Padre
DISCURSOS BRASILEIROS 39

Pio X aos bispos da Alemanha. E m P o r t u g a l , e m m e i o dos ódios


a c i r r a d o s , n u m a b á r b a r a e cruel p e r s e g u i ç ã o às c o n g r e g a ç õ e s religiosas,
ao clero e à I g r e j a , o catolicismo escreveu m a i s u m a p á g i n a do seu
martirológio, e P i o X amparou a dignidade do episcopado português,
o sacrifício d a s consciências católicas, e m a n t e v e a s o b e r a n i a indepen-
d e n t e , e n o b r e m e n t e altiva, d a I g r e j a . Luminoso e esplêndido este
pontificado! Em que perdeu a fé? Os seus d o m í n i o s n ã o se estrei-
taram. A l a r g a r a m - s e , d i l a t a r a m - s e , pelo c o n t r á r i o . N a I n g l a t e r r a , co-
m u n i d a d e s a n g l i c a n a s p a s s a r a m - s e i n t e i r a s p a r a o seio d o catolicismo.
Na F r a n ç a , floresceram novas e inúmeras paróquias, desenvolvendo
u m a a ç ã o religiosa q u e c h e g a às r a i a s d o h e r o í s m o . Na Alemanha,
a u m e n t o u a h i e r a r q u i a católica. Nas duas Américas, extraordinaria-
m e n t e a m p l o e desenvolvido é o c a m p o religioso. Ao Brasil c o u b e a
insigne honra de possuir o primeiro cardeal sul-americano; e novas
dioceses s u r g i r a m , florescendo em b ê n ç ã o s os t r a b a l h o s do seu episco-
pado. 0 m u n d o i n t e i r o é d o m i n a d o p o r u m forte e vigoroso i m p u l s o
d a fé.

P i o X p r o m u l g a n d o , e m 1906, o decreto s o b r e a c o m u n h ã o fre-


qüente e quotidiana, acendeu um imenso b r a s e i r o , cujo calor desfaz
a tibieza, d e s p e r t a a indiferença, m a t a os últimos resquícios d o janse-
n i s m o , a l e n t a as a l m a s e m u l t i p l i c a os d e v o t a m e n t o s e a c a r i d a d e .

M a i s d o q u e n u n c a , a I g r e j a , p e l a a d m i r á v e l beleza de s u a orga-
n i z a ç ã o , pelos laços d a s u a disciplina, pela c o m u n h ã o dos fiéis com os
seus guias e chefes, realiza nesta h o r a o p e n s a m e n t o de G u i z o t :

A Igreja Católica é a mais vasta escola de respeito, obediência e


autoridade.

D e u m e x t r e m o a o u t r o d a t e r r a , p e r c o r r e , neste m o m e n t o , u m v e n t o
de destruição. E s t r e m e c e m os povos. Sofrem as r a ç a s . Perturba-se o
mundo. E j u s t a m e n t e nesta h o r a apocalítica da história humana, é
q u e d e s a p a r e c e o h o m e m d a paz, o s á b i o guia, o d i r e t o r das a l m a s !
S o b r e o r o c h e d o da I g r e j a Católica, de e n c o n t r o ao q u a l vão q u e b r a n d o
os séculos os seus vagalhões, e as p a i x õ e s h u m a n a s vão p e r d e n d o as
s u a s fúrias, P I O X e r a a sentinela, vestida de b r a n c o , q u e apontava
os horizontes, p r e g a v a a c a r i d a d e e a c o n c ó r d i a do E v a n g e l h o , e bra-
dava a clemência. A sentinela, porém, retira-se. Emudece. Diante
40 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

de seus olhos b a n h a d o s d e d o ç u r a , e ú m i d o s d e tristeza, desenrolou-se


todo u m c e n á r i o d e m a r t í r i o s e sofrimentos, de d o r e s e a n g ú s t i a s . As
n a ç õ e s a r r e m e s s a r a m - s e terríveis e formidáveis, umas contra outras.
Os povos u l u l a r a m n a â n s i a d a s v i n g a n ç a s . Os c a n h õ e s t r o a r a m . As
m e t r a l h a d o r a s d e r r a m a r a m o e x t e r m í n i o , e o solo d a E u r o p a esfarra-
pou-se e m s a n g u e d e m i l h a r e s d e v í t i m a s h u m a n a s . O Pontífice, bei-
j o u a cruz. S o r r i u p a r a u m a visão d e a m o r e d e p a z . Fechou os
olhos. E adormeceu n o Senhor.

. . . A e x p i a ç ã o , senhores, s o b r e ser u m a g r a n d e v e r d a d e teológica,


é t a m b é m u m a g r a n d e lei d a h i s t ó r i a .

E u creio s i n c e r a m e n t e q u e a justiça d i v i n a p e d i a à t e r r a , neste


m o m e n t o aflitivo, u m a v í t i m a q u e fosse capaz d e l h e a b r a n d a r os r i -
gores. E a vítima, carregada de méritos, enfeitada de virtudes e r a
esse Pontífice, q u e as nossas e s p e r a n ç a s c o n t e m p l a m n o seio d a infinita
misericórdia pedindo a paz para a humanidade, e a concórdia para
as n a ç õ e s . E r a esse b o m , justo e suave P i o X , q u e os a n a i s d a I g r e j a
h ã o d e c e l e b r a r com o fúlgido n o m e d e P a p a d a Eucaristia e Pontífice
da Fé.
FREI FRANCISCO DO MONTE ALVERNE

I m p r o v i s o n a Associação E n s a i o Filosófico, e m
10-12-1848, p o r ocasião de ser p o r ela a c l a m a d o
o mais genuíno representante d a filosofia do
Brasil.

S e n h o r e s , n ã o é possível sufocar a s emoções violentas q u e a g i t a m


m i n h a a l m a ; é m i s t e r d a r u m a p a s s a g e m a esta c h a m a q u e se a c e n d e
em m e u p e i t o ! . . . Houve u m tempo em que pude gloriar-me de triun-
fos obtidos pela força d a r a z ã o e d a p a l a v r a ; sabeis q u e essas a r m a s
n ã o f o r a m inúteis e n t r e a s m i n h a s m ã o s , q u e t i v e r a m u m b r i l h o : elas
d e s c a n s a r a m ao fim, m a s n ã o q u e b r a d a s . . . Estou fraco e a b a t i d o . . .
a posição e m q u e estou é t ã o e x t r a o r d i n á r i a p a r a m i m , q u e talvez n ã o
compreendais!... Se eu soubesse q u e e r a a r r a n c a d o das bordas do
m e u sepulcro, d o seio do m e u r e t i r o p a r a r e c e b e r d a s m ã o s d a moci-
d a d e u m a coroa d e l o u r o , h o n r a cívica, q u e p r e m e i a meus serviços,
pisados pela ignorância, esquecidos pela estupidez, e m a l p a g o s pela
m a i s fria i n d i f e r e n ç a , a i n d a assim talvez n ã o tivesse c o r a g e m de a p r e -
sentar-me p a r a recebê-la!

E u sei q u e ela t e m u m g r a n d e peso, q u e t e m b r i l h o m u i t o a c i m a


d e todos os m e u s m e r e c i m e n t o s , e q u e m e u s t r a b a l h o s n ã o correspon-
d e m a esta auréola, q u e r e c e b o n o fim d a m i n h a vida. Parece-me que
sou u m a v í t i m a enfeitada p a r a a h o r a d o sacrifício.

T a n t a s h o n r a s , t a n t a c o n s i d e r a ç ã o p a r a u m h o m e m oculto n o si-
lêncio de s u a cela, p a s s a n d o d a o b s c u r i d a d e à g l ó r i a ; a velhice c o r o a d a
pela m o c i d a d e , a mente reanimada pela v i d a . . . são fenômenos tão
g r a n d e s , g e r a m sensações t ã o p o d e r o s a s q u e n ã o as posso ocultar!...
Doze a n o s t e n h o estado e m s i l ê n c i o ! . . . Sabeis q u e força é p r e c i s o
42 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

p a r a q u e escapem estas p a l a v r a s toscas n o m e i o de t a n t o e n t u s i a s m o ,


a despeito desta glória, q u e a m o c i d a d e ( 1 ) a c a b a d e revelar, deste
f u t u r o q u e se a p r e s e n t a t ã o r a d i o s o ! . . .

S e n h o r e s , vós d e s p e r t a i s a s m a i s belas r e c o r d a ç õ e s ; vós consagras-


tes os t r a b a l h o s d e u m a i d a d e a n t i g a ; é o p a s s a d o q u e personificais
em m i n h a pessoa. As sombras de t a n t o s h o m e n s que ilustraram as
ciências e a filosofia, e q u e m o r r e r a m esquecidos, desprezados, se a p r e -
s e n t a m hoje, a q u i , p a r a r e c e b e r e m de vós esta coroa, q u e lhes é d e v i d a
com m a i s d i r e i t o do q u e a m i m : e q u e t e n h o e u feito? Empreguei,
é v e r d a d e , os anos d a m i n h a m o c i d a d e e m d i r i g i r as inteligências q u e
m e t i n h a m sido c o n f i a d a s : revelei v e r d a d e s q u e m e u s antecessores n ã o
m e t i n h a m c o m u n i c a d o ; a l a r g u e i a esfera d a i n t e l i g ê n c i a ; m a r c h e i in-
t r é p i d o ; pisei o e g o í s m o ; fui s o b r a n c e i r o à i n d i f e r e n ç a ; n ã o voltei o
rosto à i n j ú r i a , à c a l ú n i a ; fui c o n s p u r c a d o p e l a i n v e j a . . . m a s , longe
de s u c u m b i r , levei d e v e n c i d a m e u s adversários.

U m a n o v a a r e n a se a b r i u d i a n t e d e m i m n o s e m i n á r i o d e S ã o
José. . . M e u s serviços s ã o c o n h e c i d o s : a m o c i d a d e n ã o foi e n g a n a d a ;
o q u e n ã o e r a c o n h e c i d o foi a p r e s e n t a d o à s claras, e a e m u l a ç ã o n o b r e ,
e o c a r á t e r a r d e n t e d a m o c i d a d e , q u e conquistei p a r a as ciências, hoje
m e p a g a esses t r a b a l h o s , q u e t i n h a m sido esquecidos a t é a g o r a , m e re-
c o m p e n s a com u s u r a , e eu m e a c h o à frente desta m o c i d a d e esperan-
çosa, d a q u a l n u n c a d e s e s p e r e i . . . (Muito comovido)

Não, nunca! Este f u t u r o t ã o obscuro p a r a outros, foi s e m p r e ra-


d i a n t e p a r a m i m ; s e m p r e vi n o c a r á t e r dos Brasileiros esta s u p e r i o r i -
d a d e de talentos, q u e n i n g u é m lhes contesta, este f u t u r o g r a n d i o s o , esta
g l ó r i a q u e d e v e r i a i l u s t r a r o nosso país t ã o e s p e z i n h a d o pelo estran-
g e i r o , q u e n ã o nos conhece, n e m a p r e c i a , p o r q u e talvez n ã o nos possa
b e m a v a l i a r : t ã o m a l t r a t a d o p o r essa m e d i o c r i d a d e t o r p e q u e só tem
mérito para deprimir. T u d o espero desta m o c i d a d e , q u e f i r m a r á p o r
s u a constante aplicação, a glória, q u e deve r e s u l t a r d e t a n t a capaci-
dade. Estas plantas t ã o viçosas, estas magníficas vergônteas, cujas
flores d e r r a m a m u m p e r f u m e t ã o odorífero, tornar-se-ão á r v o r e s fron-
dosas e r o b u s t a s ! . . .

(1) A p r i m e i r a edição (Castilho), não tem a palavra "mocidade".


DISCURSOS BRASILEIROS 43

T u d o espero, senhores!

A filosofia é a r a z ã o e m g r a n d e escala, a g r a n d e inteligência q u e


c o n q u i s t a o u n i v e r s o , q u e t u d o d o m a , e q u e vitoriosa aparece como
senhora. O h o m e m inerte, s e m a r m a s , fraco, sem meios q u a s e a l g u n s
de defesa, s u b j u g a a n a t u r e z a ; c r i a a s a r t e s e a s c i ê n c i a s ; e esse uni-
v e r s o q u e D e u s disse a o h o m e m — C o n q u i s t a p a r a t i — sai d e suas
m ã o s , c o m o s u a v e r d a d e i r a conquista, p o r q u e seus m e l h o r a m e n t o s são
a c o n q u i s t a d a inteligência, e a inteligência é a filosofia; é a razão
n o seu m a i s alto g r a u d e desenvolvimento.

M a r c h a i , pois, sectários d a filosofia, q u e e n t r e n ó s n ã o t e m sido


apreciada... entre n ó s . . . Nosso p a í s tem-se t o r n a d o egoísta, é mis-
ter q u e sejamos m a i s francos, e q u e m a r c h e m o s p a r a a s e n d a d a ciência
com esta f r a n q u e z a , com esta g e n e r o s i d a d e q u e é só d i g n a dela.

Todos os g r a n d e s h o m e n s ( 1 ) c a í r a m ; a i n g r a t i d ã o m a r c h o u sem-
p r e a p a r deles: n ã o sabeis a h i s t ó r i a dos g r e g o s ? T i n h a m u m a idéia
n o b r e , a e r a q u e os talentos, e a s v i r t u d e s n ã o c a r e c i a m d e recompen-
s a ; m a s n ã o c o n h e c i a m as fraquezas do coração, nem as tramas da
i n v e j a : é preciso u m estímulo aos talentos, e u m apoio à v i r t u d e , e
n a G r é c i a t u d o foi recusado, ou c o n s t a n t e m e n t e disputado.

Sócrates bebe a cicuta; foi u m a v í t i m a s a c r i f i c a d a à mediocri-


dade ( 2 ) , à injustiça, à h i p o c r i s i a ! F o i a p o s t e r i d a d e q u e t o m o u so-
b r e si v i n g a r a m e m ó r i a d o g r a n d e h o m e m : e e n q u a n t o a maldição
do século p e s a sobre seus p e r s e g u i d o r e s , s u a g l ó r i a se t e m p e r p e t u a d o
sempre grande, sempre radiante. Q u a s e t o d o s os filósofos receberam
em p r ê m i o o ostracismo ou a m o r t e !

Os r o m a n o s f o r a m m a i s generosos, porque seu gênio e r a m a i s


elevado, seu c a r á t e r e r a m a i s n o b r e ; e r a a c o n s e q ü ê n c i a d a g r a n d e z a
de seu i m p é r i o . A í estão s u a s coroas, s u a s ovações, suas apoteoses,
suas p o m p a s t r i u n f a i s : aí estão seus g r a n d e s h o m e n s ; é inútil d e c l a r a r
seus n o m e s . V ó s m a r c h a i s c o m a civilização, q u e outros preparam
antes de v ó s : podeis m a r c h a r seguros, p o r q u e deveis c o n t a r c o m os
vossos t a l e n t o s ; m a s , vede b e m a inveja q u e m a r c h a a par de v ó s :

(1) A primeira edição (Castilho) não tem a palavra "homens".


(2) Idem, com relação à palavra "mediocridade".
44 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

q u a n d o descerdes ao t ú m u l o , ela vos e n t r e g a r á à c a l ú n i a , sua i r m ã q u e


é imortal. O h ! n ã o t e m a i s , a p o s t e r i d a d e vos defenderá!

R e c e b o u m a coroa, eu a a c e i t o ; é o p r ê m i o de m i n h a s fadigas,
n ã o é u m a coroa de espinhos, é u m laurel de glória, é o p e n h o r desta
g e n e r o s i d a d e q u e t r a n s b o r d a d o c o r a ç ã o destes moços a q u e m sempre
amei, a quem s e m p r e d i r i g i pelo c a m i n h o da v e r d a d e . Recebo esta
c o r o a das m ã o s do anjo d a I g r e j a F l u m i n e n s e ! . . . Assim d e v i a ser,
p o r q u e vós, s e n h o r (voltando-se para o Exmo. Bispo), c o m o bispo, sois
o r e p r e s e n t a n t e do c r i s t i a n i s m o q u e revelou os v e r d a d e i r o s destinos do
gênero h u m a n o ; enobreceu o coração d o h o m e m ; elevou sua razão;
ilustrou o seu e s p í r i t o ; e m a r c h a r á s e m p r e a despeito de todos os pe-
rigos, a despeito de todos os reveses, à frente da civilização, porque
êle é o seu m a i s forte elemento, p o r q u e êle é o tipo n o b r e e s u b l i m e
d a g r a n d e z a , da glória, e do l i b e r d a d e d o h o m e m .
MONTE ALVERNE

Segundo Panegírico de S. Pedro de Alcântara,


pregado na Capela Imperial do Rio de Janeiro,
no dia 19-10-1854.
Nolite timere, pusillus grex, quia
complacuit Patri vestro dare vobis
regnum.
Não hajais medo com serdes poucos,
e fracos, porque vosso pai celeste vos
assegurou a posse do seu reino.
S. L U C A S , cap. 12, v. 32.

Senhor (1):

Já n ã o é d a d o i g n o r a r a c a u s a deste í m p e t o d i v i n o q u e a r r e m e s -
sou a t r a v é s d e m i l azares esses h o m e n s , escolhidos p a r a m u d a r a face
da terra. É i n ú t i l fingir desconhecer a o r i g e m dessas f a ç a n h a s singu-
l a r e s , d e q u e j u s t a m e n t e se e n s o b e r b e c e a b e l a filha d o céu ( 2 ) . Ex-
p i a ç õ e s c r u e n t a s p r e l u d i a v a m esta r e g e n e r a ç ã o , q u e os séculos espera-
vam com extrema ansiedade. Holocaustos espontâneos e n s a i a v a m esta
r e n ú n c i a d e si m e s m o , estas q u e b r a s d o egoísmo, a q u e estava l i g a d a
a p u r i f i c a ç ã o d a espécie h u m a n a : m a s todos esses rasgos d e d e d i c a ç ã o ,
t o d o s esses b r i o s d a m a g n a n i m i d a d e f i c a r a m m u i t o longe d a s p r o v a s ,
a q u e e r a m c h a m a d o s os r e p r e s e n t a n t e s d o novo p r o g r e s s o nacional.
Repelidos p o r t a n t o s reveses, d e s a n i m a d o s com t a n t a s d e r r o t a s , os m a i s
e x p e r i m e n t a d o s c o n t e n d o r e s c e d e r a m a a r e n a , q u e eles h a v i a m coberto
de ruínas. C o n v i n h a m outros meios, e r a m m i s t e r e s e m p e n h a d o s d o u t r a
ordem. L o u r o s a i n d a n ã o estimados, u m a a u r é o l a , d e q u e n ã o h a v i a

(1) S. M. I. o Sr. D . Pedro II.


(2) Apoc. c. 21 v. 2.
46 ANTOLOGIA DE FAMOSOS

notícia, p r ê m i o s a i n d a n ã o concedidos p o d i a m só r e a n i m a r a constân-


cia desses m a n t e n e d o r e s , q u e d e v i a m achar-se a b r a ç o s com t o d a s as
dificuldades, vencer todos os obstáculos, d o m i n a r todos os preconceitos,
e desfazer todos os p r e j u í z o s . Só u m d i a d e m a , e m q u e se p r e n d i a a
i m o r t a l i d a d e com todos os seus fulgores, e t o d a a m a g i a d u m a felici-
d a d e i n t e r m i n á v e l , e r a d i g n o de c o m p e n s a r t a n t o s suores, e c o r o a r tan-
tas f a d i g a s . Nolite timere, etc.

T o d o s os a n a i s d e r a m c o n h e c i m e n t o deste a b a l o c o m q u e o m u n d o
foi sacudido, e pôs e m desuso as idéias r e c e b i d a s . As á g a p e s dos
confessores c o n d e n a v a m esses festins, m a r c a d o s como e s t i g m a d a atro-
c i d a d e , e com os excessos d a i n t e m p e r a n ç a ; b a t a l h õ e s d e v i r g e n s m a n -
d a d a s à m o r t e , p o r c o n s e r v a r s u a p u r e z a , c o b r i a m de confusão essas
m u l h e r e s , q u e n ã o t i n h a m pejo de assistir em completa n u d e z às ceias
voluptuosas de Tigelino n a s a l a m e d a s de seus jardins profusamente
iluminados ( 1 ) , e a m a t a n ç a d o l a g o F u c i n o p a r a satisfazer os c a p r i -
chos d u m déspota ( 2 ) , q u e r e c e b i a os últimos e m b o r a s d a majestade
d o povo-rei ( 3 ) , era c o n t r a t a d a p o r esses m i l h õ e s de h o m e n s amon-
toados nos anfiteatros, c o n s u m i d o s n a s fogueiras, e despedaçados nos
cavaletes a fim de justificar q u e a h o r a d a salvação t i n h a chegado,
e que a humanidade estava r e g e n e r a d a . C a d a século a p r e s e n t a v a pe-
ripécias ainda não apreciadas. A s flagelações rivalizavam as cenas
do m a r t í r i o ; a p e n i t ê n c i a v i n h a sentar-se n o l u g a r d a s perseguições,
e as v i r t u d e s pacíficas s u b s t i t u í a m os surtos d a h e r o i c i d a d e . Um só
h o m e m r e c o m p i l o u todos esses méritos, e obteve as m a i s a r d e n t e s ova-
ções. Os a r r o u b o s d a a b n e g a ç ã o evangélica, o espírito de reforma,
a ostentação da o n i p o t ê n c i a d i v i n a b a s t a m p a r a dá-lo a c o n h e c e r . Os
anjos o c h a m a r a m — P e d r o — o l u g a r d o seu n a s c i m e n t o acrescen-
tou-lhe o apelido de — Alcântara.

Não, não poderei terminar o q u a d r o , q u e acabei de bosquejar:


c o m p e l i d o p o r u m a f o r ç a irresistível a e n c e t a r d e novo a c a r r e i r a , q u e

(1) Tacit. Annal.


(2) O Imperador Cláudio.
(3) Tacit. Annal.
DISCURSOS BRASILEIROS 47

p e r c o r r i vinte e seis anos ( 1 ) , q u a n d o a i m a g i n a ç ã o está extinta, q u a n -


do a robustez d a i n t e l i g ê n c i a está enfraquecida p o r tantos esforços,
q u a n d o n ã o vejo as galas d o s a n t u á r i o , e eu m e s m o p a r e ç o estranho
àqueles q u e m e escutam, c o m o d e s e m p e n h a r esse p a s s a d o tão fértil de
r e m i n i s c ê n c i a s ? c o m o r e p r o d u z i r esses t r a n s p o r t e s , esse enlevo com q u e
realcei as festas d a religião e d a p á t r i a ? É tarde! É muito t a r d e ! ! . . .
Seria impossível r e c o n h e c e r u m c a r r o de t r i u n f o neste p ú l p i t o , q u e h á
dezoito anos é p a r a m i m u m p e n s a m e n t o sinistro, u m a r e c o r d a ç ã o afli-
tiva, u m f a n t a s m a infenso e i m p o r t u n o , a p i r a e m q u e a r d e r a m meus
olhos, e cujos d e g r a u s desci só e silencioso p a r a esconder-me n o r e t i r o
do claustro.

Os b a r d o s d o T a b o r , os c a n t o r e s do H e r m o n e do S i n a i , b a t i d o s
da t r i b u l a ç ã o , d e v o r a d o s de pesares, n ã o o u v i n d o m a i s os ecos repeti-
rem as estrofes dos seus cânticos n a s q u e b r a d a s de suas montanhas
pitorescas; não e s c u t a n d o a voz do deserto, q u e levava ao l o n g e a
m e l o d i a dos seus h i n o s , p e n d u r a v a m seus a l a ú d e s nos s a n g u e i r o s que
bordavam o rio da escravidão; e q u a n d o os h o m e n s apreciavam as
suas composições, q u a n d o aqueles q u e se d e l e i t a v a m c o m pedir-lhe a
repetição dessas epopéias, e m q u e p e r p e t u a v a m o p e r f u m e d o seu es-
tilo, e a beleza de s u a s i m a g e n s , v i n h a m as m e m ó r i a s de seus ante-
passados, e as m a r a v i l h a s d o T o d o - P o d e r o s o , eles c o b r i a m suas faces
u m e d e c i d a s d o p r a n t o , e a b a n d o n a v a m a s c o r d a s f r o u x a s e desafinada?
dos seus i n s t r u m e n t o s músicos ao v e n t o da t e m p e s t a d e (2).

Religião d i v i n a , m i s t e r i o s a e e n c a n t a d o r a , tu, q u e dirigiste meus


passos n a v e r e d a escabrosa d a e l o q ü ê n c i a ; tu, a q u e m devo t o d a s as
minhas i n s p i r a ç õ e s ; tu, m i n h a estrela, m i n h a consolação, m e u único
refúgio, t o m a esta c o r o a . . . Se os espinhos, q u e a c e r c a m , rebentar
a l g u m a flor; se das silvas, q u e a e n l a ç a m , r e v e r d e c e r e m a l g u m a s fô-
.r.as: se u m enfeite, se u m a d o r n o r e n a s c e r destas v e r g ô n t e a s j á secas,
ceposita n a s m ã o s do I m p e r a d o r , p a r a q u e a s u s p e n d a , como u m tro-
:eu. s o b r e o a l t a r d o g r a n d e h o m e m , a q u e m êle deve seu n o m e , e o
Brasil a p r o t e ç ã o m a i s decidida.

* * *

(1) Este panegírico foi pregado a instâncias de S. M. I.


(2) Sal. 136. v. 1-9.
48 ANTOLOGIA DE FAMOSOS

É u m a indesculpável t e n a c i d a d e p r e t e n d e r v i c i a r a t e o r i a d a reli-
gião. É u m a b s u r d o c o m p a r a r o r e i n o indestrutível d o Cristo a essas
m o n a r q u i a s colossais, q u e se m o s t r a r a m sem filiação, sem genealogia,
e d e s a p a r e c e r a m sem d e i x a r a l g u m vestígio de sua p r i m e i r a grandeza.
Abramos este livro a d m i r á v e l , q u e t e m escapado aos m a i s temerosos
cataclismos e sobrevivido às revoluções d o globo; consideremos esta
a l e g o r i a m a g n í f i c a , de q u e o escritor h e b r e u serviu-se t ã o habilmente
para d e r i v a r d o p e n s a m e n t o p r i m o r d i a l d o h o m e m p r i m i t i v o as ten-
d ê n c i a s d a nossa n a t u r e z a ; e seremos forçados a c o n c o r d a r c o m o m a i s
s á b i o dos d o u t o r e s ( * ) , q u e o c r i s t i a n i s m o deu começo à s u a existên-
c i a , p r o t e g e n d o o h o m e m n o i n s t a n t e m e s m o d a s u a q u e d a : q u e o se-
g u i u n a sua i n f â n c i a envolto n a s o m b r a d o m i s t é r i o , e manifestou-se
e m t o d a a s u a i r r a d i a ç ã o , logo q u e a sociedade a s s u m i u as p r o p o r ç õ e s
mais gigantescas. A m u l h e r , tipo d o d e v a n e i o , e d a f a t u i d a d e , é sub-
j u g a d a pelo p r e s t í g i o d o m a r a v i l h o s o ; e a v e n t u r a - s e aos resultados d a
m a i s fatal desobediência, e n g a n a d a p e l a serpente, símbolo da fascina-
ção, e do encantamento. 0 homem escuta s u a e s p o s a ; deixa-se do-
b r a r de s u a s c a r í c i a s ; q u e b r a n t a u m preceito, q u e c o n t r a r i a s u a vai-
d a d e ; esquece p r o m e s s a s , q u e êle n ã o c o m p r e e n d e , a f a g a d o p o r deleites,
q u e êle conhece, q u e êle e x p e r i m e n t a , q u e êle sentia c a d a d i a ; e a r r a s t a
s u a p o s t e r i d a d e nos h o r r o r e s d a d e s v e n t u r a (1). 0 reparador esten-
d e n d o a m ã o aos filhos d o g r a n d e c u l p a d o , n a fase m a i s assustadora,
a c e i t a as condições de s u a f r a g i l i d a d e , satisfaz as necessidades d a r a z ã o ,
f r a n q u e a n d o - l h e os d o m í n i o s d a f é : a t e n u a os estímulos do desejo com
a e t e r n i d a d e d o r e m o r s o ( 2 ) ; e q u i l i b r a os sacrifícios d o a m o r p r ó p r i o
c o m a s u b l i m i d a d e das r e c o m p e n s a s , e abrilhanta suas ações com o
reflexo d a divindade.

T u d o cede, t u d o se p r e c i p i t a a p ó s essa influência inefável, e in-


definida. A s gerações p u r i f i c a d a s com o s a n g u e n ã o r e c e i a m o opró-
brio das idades anteriores. Novos c a m p e õ e s c o n t i n u a v a m o p r o g r a m a
d o c r i s t i a n i s m o , n o m e i o das lides m a i s p o r f i a d a s ; e q u a n d o n o X V I
século, u m m o n g e d o m i n a d o d o o r g u l h o ( 3 ) , destrói os apoios d a fra-

(*) Santo Agostinho.


(1) Gen. c. 3. v. 1-24.
(2) Isai. c. 66. v. 24.
(3) Martim Lutero.
DISCURSOS BRASILEIROS 49

q u e z a , e a d u l t e r a as m á x i m a s deste E v a n g e l h o , q u e e s c a r n e c e u a s a r g ú -
cias do erro, e z o m b o u d a s t r a m a s d a p e r f í d i a , D e u s suscitou a P e d r o
d e A l c â n t a r a , p a r a ser u m protesto vivo c o n t r a o p r e d o m í n i o d a s p a i -
x õ e s , e f i g u r a r a s resistências do dever c o n t r a a s invasões do interesse.

S u b a m o s a s s e r r a n i a s d a n o v a Castela, p e n e t r e m o s o convento d e
Manjarrez, atravessemos essas a r c a d a s silenciosas, esses vastos dormi-
tórios, e m q u e se p e r d e o r u í d o d o s é c u l o . . . Quem é este j o v e m
e s c a p a d o aos a b r a ç o s m a t e r n a i s , e q u e s a i n d o h á p o u c o d a u n i v e r s i d a -
d e , q u e e s p a n t a r a c o m seus talentos, d e i x a a c a r r e i r a d a s d i g n i d a d e s ,
e i m p õ e silêncio à l i n g u a g e m d a s e d u ç ã o ? O q u e v e m êle b u s c a r a o
m e i o destes h o m e n s , q u e estabeleceram o m a i s irreconciliável antago-
n i s m o a o regalo e à s d e l í c i a s ? O filho d o g o v e r n a d o r d e A l c â n t a r a
está vestido c o m o saial do p o b r e d e Assis. P e d r o está n a lista dos
penitentes.

T i n h a m - s e visto p e r s o n a g e n s ilustres fugir dos palácios e n ã o t e n d o


e m c o n t a o v a l i m e n t o d o s reis asilar-se n a s s e r r a n i a s m a i s inacessíveis;
m a n c e b o s corajosos, r e j e i t a n d o os m i m o s d a fortuna, s e g u i r a m as p i s a d a s
desses v e t e r a n o s do E v a n g e l h o : m a s q u a n d o se a t e n t a p a r a o cartel,
q u e P e d r o de A l c â n t a r a f o r m u l a r a c o n t r a si p r ó p r i o ; q u a n d o o novo
conscrito a p e n a s i n i c i a d o n o s mistérios d a c r u z d e c l a r a a seu m e s m o
corpo, q u e d ' o r a e m d i a n t e o c o n s i d e r a q u a l i n i m i g o perigoso, e n ã o
lhe d a r á d e s c a n s o ; recua-se e s p a v o r i d o , e u m g r i t o i n v o l u n t á r i o atrai-
çoa a a d m i r a ç ã o , e o a s s o m b r o : e r a J o ã o Batista, de q u e se a f i r m a ,
q u e n ã o comia, n e m b e b i a : Venit Joannes neque manducam, neque
bibens (1). S u a v i d a é u m a t u r a d o j e j u m ; p ã o e á g u a , e r v a s desa-
b r i d a s constituem o seu a l i m e n t o : o c h ã o é seu ú n i c o leito. Apertado
com áspero cilício, d a n d o a p e n a s u m a h o r a d e sono a seu c o r p o exte-
n u a d o com as m a c e r a ç õ e s , P e d r o d e A l c â n t a r a d e m o n s t r a v a o q u e diz
S. P a u l o : Q u e t u d o é possível c o m o conforto d a g r a ç a (2). Nosso
século é m u i t o delicado p a r a s u p o r t a r a n a r r a ç ã o destes f a t o s ; m a s o
respeito, q u e eles i n s p i r a m , e a v e n e r a ç ã o , q u e d e s p e r t a m , compensam
as i r o n i a s d a crítica, e os motejos d o ceticismo.

(1) Mat. c. 11. v. 18.


(2) Pilip. c. 4. v. 13.
50 ANTOLOGIA D E FAMOSOS

U m a n t i g o h a v i a d e c l a r a d o , q u e êle fizera u m c o n c e r t o c o m seus


olhos p a r a q u e n ã o se fitassem n a l g u m a v i r g e m : Pepigi faedus cum
oculis meis, ut ne cogitarem quidem de virgine. (*). Os olhos do
p e n i t e n t e estão d e c o n t í n u o voltados p a r a a terra. Encarregado da
sacristia, cujo serviço l h e p r o p o r c i o n a v a o ingresso f r e q ü e n t e d a i g r e j a ,
P e d r o d e A l c â n t a r a passou longo t e m p o s e m a d v e r t i r q u e seu teto e r a
construído de abóbada. Êle m e s m o declarou, q u e h a b i t a n d o três anos
e m u m convento, só d i f e r e n c i a v a seus i r m ã o s pelo s o m d e s u a voz, e
sabia-se q u e j a m a i s h a v i a e n c a r a d o o rosto d u m a mulher.

Q u a l p o d i a s e r o m o t i v o destas lutas, destas g u e r r a s t ã o r e n h i d a s


contra os sentidos? Q u e m a t e a v a este i n c ê n d i o , q u e êle n ã o p o d i a
c o n t e r e m seu peito, q u e o c o n s t r a n g i a a b u s c a r o a r livre, c o r r e r os
c a m p o s , devassar os bosques, e x a l a r seu a r d o r e m canções jubilosas,
com q u e c e l e b r a v a os favores, d e q u e o S e n h o r o e n r i q u e c i a ? Pedro
d e A l c â n t a r a p o d i a a s s e v e r a r c o m o a p ó s t o l o : Q u e êle estava cruci-
ficado com Jesus Cristo, e q u e e r a Jesus Cristo q u e m vivia, q u e m h a -
b i t a v a e m seu s e i o : Cristo confixus sum cruvi (1). Vivo autem, jam
non ego, vivit in me Christus (2).

U m h o m e m t ã o e x t r a o r d i n á r i o n ã o p o d i a s e r o l h a d o c o m indife-
r e n ç a : P e d r o d e A l c â n t a r a possuía todas as q u a l i d a d e s , q u e a f i a n ç a m
u m grande caráter. A solidez d o seu juízo, u m a p r u d ê n c i a consuma-
d a , u m a p e r í c i a r e c o n h e c i d a facilitam a Pedro de Alcântara os pri-
meiros cargos de sua ordem. Sua afabilidade conquistou a afeição
mais profunda, e assegurou-lhe os m a i s b r i l h a n t e s sucessos. Ardendo
e m zelo pela c a u s a d o S e n h o r , desejando i n s t i t u i r o u t r o s cooperadores,
q u e a t e r r a s s e m o vício, e removessem os escândalos q u e d e s l u s t r a v a m
a h e r a n ç a d o p a i d e f a m í l i a ; P e d r o d e A l c â n t a r a evade-se a o provin-
c i a d o , q u e p e l a s e g u n d a vez l h e fora proposto, e se r e t i r a p a r a o con-
v e n t o d e S a n t o Onofre, j u n t o d e S o r i a n o . E n t r e g u e c o m m a i s desabafo
aos t r a b a l h o s d a p e n i t ê n c i a , e aos gozos d a m e d i t a ç ã o , o reformador
l a n ç a os f u n d a m e n t o s d a p r o v í n c i a dos descalços, a q u e m d e u seu no-
m e , e q u e e n c h e u d e t a n t o lustre a E s p a n h a e toda a I t á l i a : ansioso

(*) J ó . c. 31. v. 1.
(1) G a l a t . c. 2. v. 19.
(2) Ibidem. v. 20.
DISCURSOS BRASILEIROS 51

p o r d i l a t a r os c a m i n h o s d a perfeição, c o m p õ e o seu livro a c e r c a d a v i d a


i n t e r i o r , e o seu t r a t a d o d a o r a ç ã o mental, q u e l h e g r a n j e o u os m a i s
s u b i d o s e n c ô m i o s de F r . Luiz d e G r a n a d a , d e S . F r a n c i s c o d e Sales,
d o p a p a G r e g ó r i o X V e d a r a i n h a C r i s t i n a de S u é c i a .

Q u e m p o d e r á c o n t e r o v ô o desta á g u i a s o b e r b a , q u e a m e a ç a g a l g a r
o espaço, e t r a n s p o r a r e g i ã o d o s o l ? Q u e m o u s a r á r e f r e a r esta tor-
r e n t e i m p e t u o s a , q u e a r r e b a t a , q u e a n i q u i l a os d i q u e s , e as r e p r e s a s ,
q u e se o p õ e m à s u a p a s s a g e m ? P e d r o de A l c â n t a r a a c e d e às reite-
r a d a s instâncias do d u q u e d'Aveiro, e do infante D . Luiz; atravessa
a p é , e descalço, a E s t r e m a d u r a e s p a n h o l a , e todo o P o r t u g a l ; e vai
c o a d j u v a r n a s u a o u s a d a e m p r e s a esses d e n o d a d o s atletas, q u e h a v i a m
p r o j e t a d o a r e f o r m a d a p r o v í n c i a de A r r á b i d a . Sempre na vanguarda
dos c o m b a t e s e êmulo dos A n t ã o , e dos P a c ô m i o fortalece, com os
seus conselhos, e a i n d a m a i s c o m o seu e x e m p l o , os novos solitários,
que lembravam esses f a m i g e r a d o s anacoretas, que nos começos da
I g r e j a , e s p a n t a r a m com s u a s a u s t e r i d a d e s as solidões do alto Egito, e
os desertos d e S a í d e e d a T e b a i d a . D o c i m o desses r o c h e d o s alcan-
tilados, o infatigável c o n d u t o r d a s n o v a s t r i b o s c o n t e m p l a v a nos asso-
mos d'alegria esses destemidos arautos, que envergavam a mesma
c o u r a ç a , de q u e êle estava revestido, e q u e dos mesmos entrincheira-
mentos, com q u e se defendia, l e v a v a m e m suas m ã o s r o b u s t a s o a r c h o t e
da revelação, e i a m a c o r d a r os povos, q u e d o r m i a m n a s t r e v a s d a ido-
latria. Eles n ã o t e m e r a m afrontar i m p á v i d o s o c a b o das tormentas;
s u l e a r a m os m a r e s d ' a u r o r a , p a s s a r a m os H i n d u s , v i s i t a r a m os Corilis
o r i e n t a i s ; e sentados às p o r t a s de C a n t ã o , e d e N a n q u i m , aguardavam
o m o m e n t o de a r v o r a r em suas torres o estandarte do Crucificado.
Os lagos d o C a n a d á , a s i n u n d a ç õ e s d o Mississipi, e as alturas dos
A n d e s n ã o a s s u s t a r a m s u a i n t r e p i d e z apostólica. Nossos pais os con-
templaram comunicando com o Guaicuru, reprimindo a ferocidade do
Botocudo, c o n c i l i a n d o o implacável Aimoré. Eles d o m a r a m o indô-
mito 11) Goitacá, p o l i r a m o T a m o i o , e p r e n d e r a m ao c a r r o d e Jesus
Cristo o T u p i e o Caeté. P o v o a ç õ e s florentes s u r g i r a m , como p o r en-
canto, das m a r g e n s d o A m a z o n a s até às c a b e c e i r a s d o P r a t a ; e p a r a
c ú m u l o de sua g l ó r i a , f o r a m eles q u e s a u d a r a m p r i m e i r o a civilização

(1) Vieira.
52 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

da terra de C a b r a l , e e r g u e r a m o lábaro sagrado, que procurou ao


Brasil o epíteto a i n d a m a i s glorioso d a t e r r a de S a n t a C r u z .

O m u n d o p o d e o b l i t e r a r feitos t ã o a s s i n a l a d o s : o filosofismo pode


c u s p i r desses h o m e n s , q u e s a c r i f i c a r a m seu sossego em prol de seus
i r m ã o s , f u n d a r a m c i d a d e s populosas, l a n ç a r a m pontes s o b r e os abismos,
erigiram hospitais, edificaram hospícios n o p í n c a r o dos Alpes, para
arrancar à morte desgraçados e n g u l i d o s pelas neves, votando-se eles
mesmos a u m a morte inevitável; m a s o c r i s t i a n i s m o n a sua imensa
c a r i d a d e v i r á em auxílio do g ê n e r o h u m a n o ; e s q u e c e r á seus desvarios,
e d i s s i m u l a n d o suas l e v i a n d a d e s , fornecerá recursos valiosos, q u e repa-
r e m seus desastres. A í está a h i s t ó r i a , aí estão d o c u m e n t o s irrefra-
gáveis p a r a comprovar esta verdade. Os Beneditinos recolhem, nas
s u m i d a d e s do Cassino, as r e l í q u i a s d a ciência, o sobejo das artes esca-
p a d o ao v a n d a l i s m o , e ao m a c h a d o dos b á r b a r o s . Os D o m í n i c o s afu-
g e n t a m com seus escritos a d e p r a v a ç ã o , e a i g n o r â n c i a , de q u e ressentia
a idade média. Os p a d r e s t r i n o s ocupam-se em r e s g a t a r os cativos
cristãos, q u e g e m i a m n a s m a s m o r r a s de Argel, nas p r i s õ e s de T r í p o l i ,
e nos b a n h o s de C o n s t a n t i n o p l a em face das n a ç õ e s civilizadas. Os
F r a n c i s c a n o s g u a r d a m , depois de séculos, esses mesmos l u g a r e s santos,
que a Europa inteira não pudera c o n s e r v a r além de oitenta anos a
despeito de suas n u m e r o s a s c r u z a d a s ; e q u a n d o as l a v a s do vulcão
r e v o l u c i o n á r i o com as d o u t r i n a s d e E p i c u r o , p r o p a l a d a s nos salões d e
P a r i s , n u t r i d a s com a s p r o d u ç õ e s d o ateísmo, e l a b o r a d a s nos antros
obscuros do b a r ã o d ' H o l b a c h , q u e i m a r a m em 1 7 7 3 esses troncos secula-
res, cujos r a m o s frondosos h a v i a m a b r i g a d o a F r a n ç a , as instituições
v e r d a d e i r a m e n t e d i v i n a s do santo e i m o r t a l Vicente de P a u l a , as cria-
ções sublimes d o p a d r e 1'Epeé, e do a b a d e S i c a r d , r e u n i n d o milhares
d e m e n i n o s , e v i r g e n s expostas à c o r r u p ç ã o e à m i s é r i a , surdos e mu-
dos de n a s c e n ç a votados ao idiotismo, e c e n t e n a r e s de p o b r e s desvali-
dos, v í t i m a s d ' a v a r e z a , e da i n s e n s i b i l i d a d e dos ricos, n ã o d e i x a m m a i s
d u v i d a r , q u e ao c r i s t i a n i s m o está r e s e r v a d a a missão p e r p é t u a , gene-
rosa de a d o ç a r , de m i n o r a r os males da espécie h u m a n a .

D e u s se c o m p r a z i a em d e r r a m a r a e n c h e n t e dos seus dons s o b r e


o h o m e m estupendo, q u e êle escolhera n a sua p r o v i d ê n c i a p a r a ressar-
cir as perdas da Igreja. Êle se d e i x o u v e r c i n g i d o com o l a u r e l
DISCURSOS BRASILEIROS 53

cThonra ( 1 ) , e c e r c a d o do esplendor d a s a n t i d a d e (2). O s e n h o r en-


tregou-lhe o c o r a ç ã o dos p r í n c i p e s , e confiou-lhe o i m p é r i o d a natu-
reza; a p o m p a d e seus m i l a g r e s d a v a t e s t e m u n h o da magnificência,
com que o Eterno o sublimara. P e d r o de Alcântara restitui vivo a
u m a m ã e o filho, q u e a c a b a v a de p e r d e r ; ressuscita n a e s t r a d a entre
Á v i l a e P e d r o s o u m m e n i n o , q u e se a f o g a r a . N o v o Eliseu a q u e c e c o m
o seu valor vital o i n a n i m a d o cadáver d o filho d o c o n d e d e Ozor-
m o ( 3 ) , fere a s á g u a s c o m seu m a n t o , e encostado a seu c a j a d o v a d e i a
a p é e n x u t o o Tejo, e o G u a d i a n a ( 4 ) .

O universo acabava d e p r e s e n c i a r u m desses acontecimentos, q u e


abafam a p e n e t r a ç ã o m a i s a t i l a d a , e a l u e m o pedestal dos s i m u l a c r o s
da grandeza. Q u e b r a n d o e n t r e suas m ã o s os reis, c o m o se fora u m
vaso de argila ( 5 ) , d e s p o j a n d o d e s u a s i n s í g n i a s os gloriosos, os su-
blimes da terra ( 6 ) , D e u s p a t e n t e i a d a m a n e i r a m a i s solene, q u e é
êle q u e m d o m i n a os reinos, e os i m p é r i o s (7), e q u e somente a êle
p e r t e n c e a exaltação e o p o d e r i o ( 8 ) . O p r í n c i p e i l u s t r a d o , cujo n o m e
é u m a formosa a u t o n o m á s i a ; o estadista p r o f u n d o cuja administração
p r e s t a r a n o v a s f o r m a s a o d i r e i t o p ú b l i c o , e c r i a r a o sistema político
hoje conhecido c o m a d e n o m i n a ç ã o de e q u i l í b r i o e u r o p e u ( 9 ) ; o t r i u n -
f a d o r , q u e depois d a b a t a l h a d e P a i v a recebeu e m M a d r i a h o m e n a -
g e m do m o n a r c a m a i s cavaleiroso do seu t e m p o ( 1 0 ) ; o g u e r r e i r o feliz,
que escarmentou a arrogância de Túnis, e humilhara em Muhlberg a
altivez dos p r í n c i p e s confederados, a r r o j o u o cetro, q u e se t o r n a r a u m
peso i n s u p o r t á v e l . Carlos V t i n h a a b d i c a d o . O p o t e n t a d o q u e esten-
d i a s u a d o m i n a ç ã o desde o golfo do M é x i c o a l é m d a s p r a i a s d o Texel,
e d o D a n ú b i o além d a b a í a de S. F r a n c i s c o , fatigado, enjoado da
i n c o n s t â n c i a d a s m e n t i r a s , e d a s lisonjas d o m u n d o , r e n u n c i o u os tro-

( 1) Éxod. c. 34. v. 30.


( 2) Ecli. c. 45. v. 2.
( 3) M a t . c. 11. v. 18.
(4) 4? R e g . c. 2. v. 14.
( 5) Sal. 3. v. 9.
( 6) Jó c. 12 v. 18, Is. c. 5 v. 14.
( 7) D a n . c. 4 v. 14.
( 8) Apoc. c. 19 v. 1.
( 9) Robertson, " H i s t . de C h a r l e s V " .
(10) F r a n c i s c o I, rei de F r a n ç a .
54 ANTOLOGIA D E FAMOSOS

nos f u l g u r a n t e s d a A l e m a n h a , d a E s p a n h a , d a Sicília, dos Países-Bai-


x o s ; d e s a m p a r o u a s s u a s i m e n s a s possessões d a A m é r i c a , e foi ocultar-se
no interior d u m mosteiro. O s e n h o r d ' A l h a m b r a , e de H a b s b u r g o es-
q u e c e u os e s t u q u e s d o u r a d o s desses p a ç o s suntuosos o n d e se o s t e n t a v a m
os p r i m o r e s d o luxo, e encerrou-se n o s estreitos limites d e u m a cela.
0 a r m i n h o , e a p ú r p u r a f o r a m t r o c a d o s p e l a s o t a i n a d o converso.

0 t a u m a t u r g o de A r e n a s é c o n d u z i d o pelo espírito de D e u s à pre-


sença d o ex-soberano, q u e a i n d a p r o v o c a v a a s u b m i s s ã o , e o p a s m o .
P e d r o de A l c â n t a r a está em S. J u s t o . Quê! 0 profeta de Tesbes v i r á
e x p r o b r a r ao novo A c h a d as p e r t u r b a ç õ e s , com q u e i n q u i e t a a t o d a a
E u r o p a , essas g u e r r a s i n t e r m i n á v e i s , esses b a n d õ e s acesos pela discór-
d i a , essas l a b a r e d a s s o p r a d a s pelo f a n a t i s m o religioso? (1) O vidente
d a r á de rosto ao m o d e r n o J e r o b ã o ( 2 ) p o r t e r l e v a d o o s a q u e e o r o u b o
à capital do m u n d o c r i s t ã o ; c o n s t r a n g i d o o p r í n c i p e do episcopado (3)
a refugiar-se n o Castelo S a n t o  n g e l o ; e ludibriado o infortúnio, e
ordenando preces públicas pela s o l t u r a d o pontífice, q u e êle m e s m o
aprisionara? O novo I s a í a s p u n g i r á o c o r a ç ã o de M a n a s s e s (4) com
a l e m b r a n ç a de t e r e v o c a d o o cisma, e a apostasia i n d u z i n d o o chefe
da Igreja (5) a e m p r e g a r u m r i g o r inútil, e e x t e m p o r â n e o c o n t r a o
príncipe ( 6 ) , q u e a l c a n ç a r a de L e ã o X o título de defensor da fé?
A t u r d i r á seus ouvidos c o m os gritos, e os l a m e n t o s dos filhos d a Ata-
l i b a , e d e netos d e G u a t i m o s i n , que em vão pediam vingança das
c r u e l d a d e s e x e r c i d a s pelos p r i m e i r o s f u n c i o n á r i o s do E s t a d o ; e recor-
d a v a m o m e n o s p r e z o , e m q u e t i v e r a o venerável bispo de C h i a p a (7),
q u e i n u t i l m e n t e i m p l o r a v a e m n o m e d e D e u s a l i b e r d a d e dos h o m e n s ?
P e d r o d e A l c â n t a r a conhece a e x t e n s ã o dos deveres, de q u e o S e n h o r
o e n c a r r e g a r a ; o discípulo d a c r u z rejeita o b s t i n a d a m e n t e o l u g a r ho-
norífico d e confessor d o i m p e r a d o r , e da p r i n c e s a J o a n a , sua filha.
N ã o , n ã o e r a à m e s a dos g r a n d e s , e dos s á t r a p a s , q u e d e v i a sentar-se

(1) 3? Reg. c. 20 v. 17-22.


(2) Idem c. 20. v. 1-3.
(3) O papa Clemente VII.
(4) 4? Reg. c. 21. v. 20-12.
(5) O papa Clemente VII.
(6) Enrique VIII, rei da Inglaterra.
(7) Las Casas.
DISCURSOS BRASILEIROS 55

o h o m e m portentoso, q u e se a l i m e n t a v a d a s i g u a r i a s dos santos (1),


A a t m o s f e r a d a c o r t e n ã o p o d i a c o n v i r a o apóstolo, q u e j a m a i s teria
resolvido c o b r i r a v e r d a d e com as roupas m e n t i r o s a s d a fábula, e
s u b o r d i n a r a s e v e r i d a d e d a m o r a l ao influxo d o p o d e r , e aos respeitos
humanos.

Levanta-te e c o m e , dizia o S e n h o r a o exilado de Betsabée, p o r q u e


vais e m p r e e n d e r u m a l o n g a j o r n a d a : Surge comede: granais enim tibi
restat via (2). P e d r o de A l c â n t a r a recusa as c a r r u a g e n s reais, que
lhe são o f e r e c i d a s ; e só, s u s t a d o n o seu â n i m o , a p a r e c e e m Lisboa
a n t e c i p a d o p o r todos os votos, e p r e c e d i d o p o r essa l a r g a veia de luz,
q u e i l u m i n a a m a r c h a dos g r a n d e s h o m e n s . P e d r o d e A l c â n t a r a con-
ferência com D . J o ã o I I , q u e lhe s u p l i c a r a o c o n c u r s o de s u a expe-
r i ê n c i a n a s c i r c u n s t â n c i a s m e l i n d r o s a s d o seu governo, dissipa a s in-
q u i e t a ç õ e s do r e i ; instrui n a s lições d a m a i s alta p i e d a d e as filhas e
a i r m ã daquele monarca, e confirma n a d e v o ç ã o os n o b r e s e o povo.

O lidador tinha já dobrado a meta d o estádio, q u e l e v a r a de


vencida. E x a u s t o de forças, c a i u s o b r e m o n t õ e s de p a l m a s , e grinal-
das, que merecera por sua perseverança. Pedro de Alcântara está
r o d e a d o de seus i r m ã o s , q u e o o b s e r v a m , c h o r a m e a d m i r a m . O pobre
de Jesus Cristo despe seu h á b i t o e p e d e o u t r o m a i s velho, em q u e se
envolva depois de m o r t o . 0 s u p e r i o r olha e m t o r n o de si, e n ã o en-
c o n t r a n d o q u e m ostente i g u a l desprezo, veste i g u a l à r e l í q u i a inesti-
mável, e l h e dá e m t r o c o s u a t ú n i c a . 0 c o r p o d o p e n i t e n t e asseme-
lha-se a raízes r e s s e c a d a s ; sua pele está d e n e g r i d a e queimada com
o fogo d a m o r t i f i c a ç ã o . 0 frio d a m o r t e a g i t a seus m e m b r o s lívidos
e descarnados. U m m o ç o religioso se a p r o x i m a e i n t e n t a estender so-
b r e êle u m l e n ç o l : Retira-te, grita-lhe o l u t a d o r , a i n d a h á p e r i g o ; o
i n i m i g o está em p r e s e n ç a , a i n d a n ã o cessou o c o m b a t e ! . . . 0 justo
i m p r i m e seus lábios n o sinal a d o r á v e l d a r e d e n ç ã o . . . P e d r o de Al-
c â n t a r a s u b i u ao t r o n o de Deus!...

Salve, h o m e m p r i v i l e g i a d o ! Salve, t r ê s vezes salve, h e r ó i p r e c l a r o


e excelso! V i n t e e cinco anos são p a s s a d o s , q u e a q u i m e s m o , neste
m e s m o dia, p r o c l a m e i a i n a u g u r a ç ã o d e t u a estátua, e dei a s a b e r q u e

(1) E s t . c. 14 v. 17. D a n . c. 2 v. 8.
(2) 3? Reg. c. 19 v. 7.
56 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

a I g r e j a te h a v i a r e c o n h e c i d o p o r p r i n c i p a l p a t r o n o do Brasil. Não
m e iludi q u a n d o preconizei t ã o acrisolado m e r e c i m e n t o ; n ã o fui en-
g a n a d o q u a n d o acreditei, q u e os Brasileiros e s t a v a m b e m r e s g u a r d a d o s
com o teu eficaz p a t r o c í n i o . V i n t e anos d e ilusão e desvios, vinte a n o s
de desares e c a l a m i d a d e s , q u a s e e s q u e c i d a s e dissipadas, d e v e m t e r
a l t a m e n t e c o m p r o v a d o q u e u m p o d e r invisível c o n t r a o q u a l e m v ã o
desenfreiam os tufões m a i s e m b r a v e c i d o s , a b r i g a e p r o t e g e o i m p é r i o
brasileiro. Todas essas q u i m e r a s d u m a p e r f e c t i b i l i d a d e social, q u e n ã o
é p e r m i t i d o p o s s u i r ; todas essas u t o p i a s falazes, q u e a i n d a n ã o a p r o -
v e i t a r a m a a l g u m povo, e s v a e c e r a m p a r a d a r ocasião d e m e l h o r a m e n t o s
aconselhados pela s a b e d o r i a , e r e f o r m a s a c r e d i t a d a s pela c i r c u n s p e c ç ã o .
U m p r í n c i p e , n o vigor d a m o c i d a d e , prossegue a v a n t e à testa deste m o -
v i m e n t o acelerado, que impele as nações p a r a a sua prosperidade.
M a i s notável pelos dotes d o seu c o r a ç ã o , do q u e pela transcendência
d e s u a s concepções, persiste c o m afinco n o intento glorioso d e l e v a n t a r
o seu p a í s a o g r a u d a i m p o r t â n c i a , q u e l h e r e s e r v a m seus destinos.
A n i m a n d o a s artes, favorecendo as ciências, d a n d o à i n s t r u ç ã o l i t e r á r i a
o desenvolvimento d e q u e é suscetível, r e s t a u r a n d o os costumes, s e n d o
êle m e s m o u m modelo d e h o n e s t i d a d e pública e doméstica, o nove*
A u g u s t o m a r c a r á u m a época nos fastos d o seu r e i n a d o ; e m a i s dis-
tinto, m a i s a d m i r á v e l p o r t e r a r r a n c a d o seu povo d a abjeção, e m q u e
o d e i x a r a m o descuido e a i n d i f e r e n ç a dos seus a n t i g o s dominadores,
g a n h a r á p a r a si u m r e n o m e , u m a c o n s i d e r a ç ã o , q u e o e s t r o n d o d a s
c o n q u i s t a s e o b r i l h o efêmero d a s a r m a s n ã o p o d e m a l c a n ç a r . Uma
d a s esposas m a i s d e d i c a d a s d e Jesus Cristo, vossa discípula querida,
S a n t a T e r e z a d e Jesus, deixou-nos dito, q u e o S e n h o r n ã o r e j e i t a r i a
a l g u m a súplica, a p o i a d a n a vossa m e d i a ç ã o . P o i s b e m : eu m e d i r i j o
a vós m e s m o neste m e s m o d i a g r a n d i o s o e m e m o r á v e l ; eu vos s u p l i c o
empenheis vossa poderosa intervenção e m favor do Imperador, em
favor desta n a ç ã o b r i o s a e m a g n â n i m a , d e q u e m vós sois o escudo, e
u m b a l u a r t e invencível e i n e x p u g n á v e l .
NILO PEÇANHA

N o Espírito Santo, n a campanha de 1921-1922.

V e n h o d e e x a m i n a r j u n t o d a s p o p u l a ç õ e s do N o r t e g r a n d e duas
vezes, n a " v i r t u d e d e h o s p i t a l i d a d e dos povos a n t i g o s " , e n a s p a i x õ e s
d a l i b e r d a d e , força e c o n d i ç ã o dos povos m o d e r n o s , — a s questões de
economia nacional, d e crédito público, d e v i a ç ã o férrea, de m a r i n h a
m e r c a n t e , de legislação o r ç a m e n t á r i a , d e i m i g r a ç ã o , d e defesa n a c i o n a l ,
de exploração das minas, d a fundação das indústrias, da expansão da
a g r i c u l t u r a , — m a s n e n h u m a delas sobreleva, n e m se i m p õ e t ã o im-
p e r i o s a m e n t e a o futuro governo, c o m o a o f u t u r o d a nossa p r ó p r i a r a ç a ,
como a questão da instrução popular. (Muito b e m ! Muito b e m ! )

O Brasil n a d a será e n q u a n t o fôr u m povo d e 8 5 % de a n a l f a b e t o s :


falem-lhe e m d e m o c r a c i a , n a s r i q u e z a s inertes d o seu solo, e m r e f o r m a
social, n u m a R e p ú b l i c a livre, nesses g r a n d e s p r o b l e m a s q u e a í estão
a a t r o a r os a r e s , n a d a seremos, e n q u a n t o este povo n ã o s o u b e r ler n e m
escrever. (Aplausos prolongados)

A F r a n ç a só foi g r a n d e q u a n d o a s u a p r i m e i r a assembléia repu-


blicana fundou o exército d a inteligência, e n o s seus decretos funda-
m e n t a i s , estabeleceu para cada mil habitantes um educador e uma
e d u c a d o r a e q u e todos os h o m e n s e todas a s m u l h e r e s r e c e b e r i a m a
i n s t r u ç ã o e q u e n i n g u é m seria m a i s p r i v a d o dela p o r culpa d a R e p ú -
blica.

Ela foi g r a n d e p o r q u e , desde aí, os seus e d u c a d o r e s e r a m encar-


r e g a d o s pelo E s t a d o , c o m o r e c o r d a J . S i m o n , d e u m a g r a n d e missão,
a d e fazer a P á t r i a , d e fazer c i d a d ã o s e c i d a d ã s , fazer a h u m a n i d a d e
d o s h o m e n s e d a s m u l h e r e s , e q u e todas a s m e d i d a s f o r a m tomadas
58 ANTOLOGIA D E FAMOSOS

p a r a q u e esse a u g u s t o sacerdócio fosse dos m a i s honrosos, dos m a i s


n o b r e s e dos m a i s a l t a m e n t e retribuídos.

E u , p o r m i m , se pudesse, o u tivesse p o d i d o , o Brasil n ã o c e l e b r a r i a


o seu c e n t e n á r i o , r e s p e i t a n d o e m b o r a as b r i l h a n t e s intenções do S r .
Presidente da República, senão e m p r e g a n d o esses c i n q ü e n t a ou c e m
mil contos q u e v a m o s g a s t a r c o m a s especulosas e inúteis exposições
de s e m p r e — n a c r i a ç ã o d e escolas p a r a os três m i l h õ e s e oitocentas
mil c r i a n ç a s q u e a s estatísticas dizem e m condições d e a p r e n d e r e q u e
estão a crescer, a g o r a , nesse g r a n d e Brasil c o m o a n i m a i s sem q u e com-
p r e e n d a m o s , os h o m e n s d e governo, q u e n e n h u m a m a l d i ç ã o p e s a r á m a i s
s o b r e a nossa c a p a c i d a d e , a m a n h ã , q u e essa d a R e p ú b l i c a n ã o t e r de-
cretado a instrução obrigatória e g r a t u i t a a o povo b r a s i l e i r o . (Pal-
mas)

Senhores! Somos talvez o ú n i c o povo d o m u n d o que tributa a


instrução!

A i n d a r e c e n t e m e n t e , u m dos nossos m a i s b r i l h a n t e s publicistas es-


crevia: " N u m país em q u e espantosa é a percentagem de habitantes
b r o n c o s , seria i n t u i t i v o , s e r i a lógico, seria justo, s e r i a mediocremente
sensato, q u e fosse g r a t u i t a a i n s t r u ç ã o oficial em todos os g r a u s .

N ã o só g r a t u i t a , m a s , e m d e t e r m i n a d a s c i r c u n s t â n c i a s , auxiliada
pelos p o d e r e s públicos, aos q u a i s d e v e r á i n c u m b i r , o f o r n e c i m e n t o d e
livros às c r i a n ç a s r e c o n h e c i d a m e n t e p o b r e s e o patrocínio de caixas
escolares q u e liberalizassem à q u e l a s os m e i o s q u e aos pais falecem p a r a
as fazerem instruir.

Mas entre as singularidades pasmosas, entre as excentricidades


i n e p t a s , e n t r e os a b s u r d o s d a nossa b u r o c r a t i z a ç ã o dispendiosa, figura
a i n s t r u ç ã o como receita p a r a o e r á r i o p ú b l i c o . (Muito b e m ! )

E esse p u b l i c i s t a n ã o d e c l a m a v a n e m referia u m caso o c o r r i d o n a s


r e m o t a s regiões d o i n t e r i o r d o país, m a s n a p r ó p r i a capital d a N a ç ã o ,
o n d e u m certificado d e e x a m e custa 5 $ , inclusive o selo, u m a i n s c r i ç ã o
em d e t e r m i n a d a disciplina custa 1 0 $ , inclusive o selo d o r e q u e r i m e n t o ;
e c o m o se n ã o bastassem t a i s s a n g r i a s : a cada p e d i d o de inscrição
d e v e m a c o m p a n h a r 5 $ , e m selos, p a r a serem inutilizados e a i n s c r i ç ã o
r e q u e r i d a pelos c a n d i d a t o s , m e n o r e s , s e m i d a d e civil, é r e c u s a d a se o
DISCURSOS BRASILEIROS 59

p a i ou tutor n ã o c o n f i r m a m , e m d e c l a r a ç ã o a n e x a , a filiação ou a res-


p o n s a b i l i d a d e j u r í d i c a , i m p r e s c i n d í v e i s p a r a a identificação dos r e q u e -
rentes, d e v e n d o a f i r m a d o p a i ou t u t o r , constante dessa declaração,
p a s s a r pelas f o r ç a s c a u d i n a s do r e c o n h e c i m e n t o d o t a b e l i ã o .

E assim, p a r a c a d a disciplina, são precisos 22$ e se o e x a m i n a d o


n ã o faz u m , m a s t r ê s e x a m e s , t e r á d e p a g a r 66$500. E se e m vez d e
u m s ã o três, os filhos d a m e s m a v í t i m a , o imposto c o n t r a a i n s t r u ç ã o
a t i n g e a 190$000! (Oh! oh!)

O s nossos d i r i g e n t e s n u n c a t o m a r a m a sério a c a m p a n h a contra


o analfabetismo e é preciso que tenhamos u m governo que assuma
desde j á o c o m p r o m i s s o d e enfrentá-lo.

N ã o h á m u i t o a e s p e r a r dos E s t a d o s q u e estão o u o n e r a d í s s i m o s
de d í v i d a s n o e s t r a n g e i r o , ou se t ê m r e n d a s folgadas, c o m o M i n a s Ge-
rais, o g r a n d e E s t a d o d a l i b e r d a d e , o p r i m i d o neste m o m e n t o ; elas ja-
mais se d e s t i n a r i a m à instrução dessas 900.000 crianças mineiras,
q u e lá estão c l a m a n d o p o r escolas, t a n t o se p r e c i s a d e r e c u r s o s para
m a n t e r o "fogo s a g r a d o " dos t u b a r õ e s d o j o r n a l i s m o d o R i o d e Ja-
n e i r o , neste assalto à P r e s i d ê n c i a d a R e p ú b l i c a . (Palmas prolongadas)

É c e r t o q u e o A t o A d i c i o n a l e n t r e g o u o ensino p r i m á r i o às nossas
antigas províncias, m a s a Constituição d a República n ã o impede q u e
a U n i ã o colabore nessa o b r a d e salvação p ú b l i c a , j á f u n d a n d o as es-
colas n o r m a i s , d e o n d e s a i r i a m os professores d e a m a n h ã , j á interes-
s a n d o todos os ó r g ã o s d a o p i n i ã o , d o p e n s a m e n t o e d a f o r t u n a do Brasil
na realização da grande reforma social!

Senhores! E u t a m b é m t e n h o o d i r e i t o , p o r m u i t o s q u e sejam os
m e u s e r r o s , d e , neste assunto, falar alto aos nossos c o n c i d a d ã o s , por-
q u e nestes t r i n t a a n o s d e r e g i m e , foi o g o v e r n o a q u e tive a h o n r a d e
p r e s i d i r , q u e l a n ç o u a s bases d o ensino profissional, nessas dezenas d e
institutos q u e a í estão criados, n a s capitais do Brasil. (Aplausos)

E u t i n h a j á e n t ã o e m vista o exemplo d e v á r i o s países d a velha


E u r o p a , q u e n ã o p o s s u i n d o e m b o r a m i n a s d e c a r v ã o e d e ferro como
t e m o Brasil, a i n d a assim a i n s t r u ç ã o técnica p ô d e neles f u n d a r as
s u a s i n d ú s t r i a s d e t r a n s f o r m a ç ã o , c o n d i ç ã o d e defesa dos povos inte-
ligentes e t r a b a l h a d o r e s .
60 ANTOLOGIA D E FAMOSOS

A essa i n s t r u ç ã o técnica são ali m e s m o d e v i d a s as f á b r i c a s d e


fiação d e seda, d e lã, d e a l g o d ã o , além d a s n u m e r o s a s i n d ú s t r i a s quí-
micas e eletroquímicas, n ã o obstante faltar a esses povos a m a t é r i a
p r i m a p a r a a s suas usinas, q u e eles i m p o r t a m d o J a p ã o , d a F r a n ç a ,
d a A r g e n t i n a e d o Brasil, m a s aos q u a i s v e n d e m a s u a p r o d u ç ã o m a -
nufaturada.

Essas escolas profissionais q u e a í estão, rudimentares ainda, se


quiserem, já ensaiam a emancipação do brasileiro e o equilíbrio da
sociedade f u t u r a . (Muito b e m ! Muito b e m ! )

N ã o s a í r a m d a s a c a d e m i a s os i n v e n t o r e s d a locomotiva, do n a v i o ,
d o telégrafo, do telefone e d e centenas d e o u t r a s invenções, e m q u e os
seus autores, h u m i l d e s r e p r e s e n t a n t e s d o t r a b a l h o m a n u a l e v e r d a d e i r o s
c r i a d o r e s d a civilização m o d e r n a , s a b i a m fazer u m a coisa q u e os sábios
d e hoje i g n o r a m , isto é, servirem-se d a s s u a s p r ó p r i a s m ã o s .

E justificando a s u a f u n d a ç ã o , e u n e l a v i a a r e a ç ã o c o n t r a a ex-
tensão do p r i n c í p i o d a divisão do t r a b a l h o , q u a n d o estabeleceu duas
classes distintas, a dos intelectuais e a dos t r a b a l h a d o r e s , o q u e vale
a dizer a e s c r a v i d ã o d e u m a pela o u t r a , e c o m o se esse desprezo pelo
trabalho manual que é a verdadeira disciplina do h o m e m e essa in-
justiça, m u i t a s vezes secular, q u e v e m p e r t u r b a n d o a consciência do
m a i o r n ú m e r o e c a r a c t e r i z a n d o a nossa civilização feita d e egoísmo e
de sensualidade ( a p l a u s o s ) , e q u e d e u a u n s o m o n o p ó l i o d o pensa-
m e n t o t ã o a b s u r d o e t ã o odioso, como s e r i a o d a luz, o d o a r , o d a
r e s p i r a ç ã o e a o s outros, isto é, aos o p e r á r i o s , a s e r v i d ã o , a i g n o r â n c i a
e os d u r o s e n c a r g o s d a v i d a ( p a l m a s ) , pudesse c o r r e s p o n d e r aos n o b r e s
destinos m o r a i s e intelectuais d o h o m e m .

Essas escolas q u e n ó s f u n d a m o s e que continuaremos a fundar,


p o r q u e seremos o g o v e r n o d o Brasil (palmas), representam u m a rea-
ção c o n t r a o p r e j u í z o d a s a r i s t o c r a c i a s , q u e r e l e g a n d o às classes t r a b a -
l h a d o r a s o c o m é r c i o e a s i n d ú s t r i a s , d i v i d i r a m a sociedade de hoje e m
dois c a m p o s r i v a i s e i n i m i g o s e p u s e r a m e m p e r i g o a o r d e m m o r a l e
material das nações.

De escolas c o m o essas q u e n ó s f u n d a m o s é q u e u m o p e r á r i o , esse


W a t t , s a i u p a r a i n v e n t a r o v a p o r ; q u e esse o u t r o o p e r á r i o , Jacquard,
t a m b é m saiu p a r a revolucionar a t e c e l a g e m ; e como esse outro, opera-
DISCURSOS BRASILEIROS 61

r i o a i n d a e filho d o povo, Stephenson, p a r a c o n s t r u i r a p r i m e i r a loco-


motiva. (Aplausos. Aclamações)

Não! A h u m a n i d a d e e r a m a i s feliz, dizem os escritores, q u a n d o


os h o m e n s de c i ê n c i a c o n h e c i a m o t r a b a l h o m a n u a l e Galileu fazia o
telescópio com as suas p r ó p r i a s m ã o s e N e w t o n , desde a s u a infância,
os i n s t r u m e n t o s q u e t a n t o c o n t r i b u í r a m p a r a o êxito d a s s u a s desco-
bertas.

Aos filhos d o t r a b a l h o m a n u a l , deve o m u n d o a m a r a v i l h a das


g r a n d e s invenções.

As invenções têm p r e c e d i d o s e m p r e a descoberta d a s leis científi-


c a s : n ã o foi a t e o r i a m e c â n i c a do calor, diz K r o p o t k i n e , q u e a n t e c e d e u
a invenção da máquina.

Já milhares de máquinas transformavam o calor em movimento,


quando meio século depois, os sábios f o r m u l a r a m a teoria dinâmica
c o r r e s p o n d e n t e e n o m u n d o i n t e i r o a i n d ú s t r i a j á t r a n s f o r m a v a o mo-
v i m e n t o em som, e m luz e e m e l e t r i c i d a d e , q u a n d o a p a r e c e u a teoria
d a c o r r e l a ç ã o d a s forças físicas.

Não haverá perigo de convulsões sociais num país que tenha


r e a b i l i t a d o as a r t e s m e c â n i c a s (muito b e m ! ) , que tenha emancipado
a a t i v i d a d e de c a d a u m , e m q u e todos os h o m e n s , sem d i s t i n ç ã o de
n a s c i m e n t o , de condição ou de fortuna, t e n h a m r e c e b i d o u m a educação
prática.

Só a ciência faz a v e r d a d e i r a i g u a l d a d e , e x c l a m a u m dos líderes


d o p e n s a m e n t o francês c o n t e m p o r â n e o , e se ela se assemelha ao farol
d o alto das m o n t a n h a s , e q u e e n t r e êle e vós h a j a u m m u n d o de prin-
cípios, de florestas e de abismos, é preciso c h e g a r até lá, antes com
a m b i ç ã o de s u b i r d o q u e com m e d o de m o r r e r , pois a i n d a assim se
m o r r e r i a s e m p r e com os olhos voltados p a r a o sol. (Apoiado)

Vós, povo espírito-santense, conheceis como povo brasileiro, as


nossas idéias e a nossa t r a d i ç ã o política. I d e inquiri-las, p o r é m , no
c a m p o o p o s t o : s u a i m p r e n s a n ã o discute, i n s u l t a ; n ã o i n s t r u i , difama!
S u a t r i b u n a e m u d e c e u , m a s o T e s o u r o é o m e r c a d o das consciências
venais.
62 ANTOLOGIA DE FAMOSOS

A s u a política, vós o sabeis, em t r i n t a anos de r e g i m e , e x c e t u a d a


a presidência de u m ilustre m i l i t a r , a p r e s i d ê n c i a atual, e a minha
o b s c u r a i n t e r i n i d a d e d e dezessete meses, t e m d o m i n a d o o Brasil sem
contraste.

E o q u e ela t e m feito? O q u e ela j á organizou?

E u a c a b o d e falar ao povo b r a s i l e i r o e m doze c a p i t a i s d a Repú-


blica e d o u g r a ç a s a D e u s d e tê-lo s u r p r e e n d i d o a i n d a forte e m meio
d a s p r ó p r i a s desesperanças, d a s aflições e d o seu t r a b a l h o e d o seu
crédito, m a s a m a l d i ç o a n d o essas o l i g a r q u i a s q u e lhe s u b t r a í r a m o di-
r e i t o do voto, q u e l h e d i m i n u í r a m a f o r t u n a , q u e l h e v i o l a r a m os lares,
q u e lhe p e r t u r b a r a m a consciência, q u e t o r n a r a m os Estados vassalos
u n s dos outros ( p a l m a s ) , q u e lhe a r r e b a t a r a m as t e r r a s , c o m o se fos-
sem devolutas, q u e lhe d e p u r a r a m os r e p r e s e n t a n t e s (palmas) e aos
b r a v o s sertanejos s e m p ã o só a b r i r a m as e s t r a d a s d o b a n d i t i s m o , do
crime e da reação a r m a d a ! ! (Palmas prolongadas)

E e n g a n a m - s e todos quantos têm visto n o sertanejo do n o r t e a


r e s i g n a ç ã o m u ç u l m a n a , a i n d o l ê n c i a ou a i n s e n s i b i l i d a d e mórbida.

Reconhecei-o de p r e f e r ê n c i a , n a a g u d a o b s e r v a ç ã o de A b d i a s Neves,
o b e d i e n t e ao p r i n c í p i o d a a u t o r i d a d e , incarne-se esta nos p a t r õ e s , no
governo, ou nos p o r t a d o r e s d a s funções públicas, — mas com um
melindre e um s e n t i m e n t o de altivez i n d o m á v e l . N ã o tolera q u e o
humilhem.

O s impulsos q u e l h e d o r m e m nos extratos dos instintos inferiores


i r r o m p e m , se preciso, e m b r a v u r a e e m s o l i d a r i e d a d e !

E a fisionomia a p á t i c a , s e n ã o a a t o n i a m u s c u l a r d a p r i m e i r a vista,
se t o r n a m flexibilidade e vivacidade nervosa.

N e n h u m homem teria tido, talvez, resistindo à n a t u r e z a hostil,


u m a escola de p a i x õ e s , d e l u t a s e d e sofrimento t ã o a p u r a d a ou tão
viva; nem sei q u e outros meios e o u t r a s raças tenham criado um
h o m e m de t a n t a c o r a g e m e t a n t a s e n s i b i l i d a d e .

Cético p o r t e m p e r a m e n t o e p o r e x p e r i ê n c i a p r ó p r i a , e e m b o r a o
I m p é r i o ou a R e p ú b l i c a , p o u c o i m p o r t a o r e g i m e , l h e t e n h a m negado
a i n s t r u ç ã o p a r a os filhos, assistência aos enfermos, polícia p a r a sua
DISCURSOS BRASILEIROS 63

s e g u r a n ç a , j u s t i ç a ao seu d i r e i t o , êle só foi o revoltado q u a n d o lhe


a r r e b a t a r a m a p r o p r i e d a d e e lhe n e g a r a m a p r o t e ç ã o d a lei. (Apoiado)

"O fazendeiro dos sertões", diz E u c l i d e s d a C u n h a , " v i v e n o lito-


ral, longe dos d i l a t a d o s d o m í n i o s q u e n u n c a viu, às vezes. Herdaram
velho vício h i s t ó r i c o . C o m o os opulentos sesmeiros d a colônia, usu-
fruem p a r a s i t à r i a m e n t e as r e n d a s de suas t e r r a s , sem divisas fixas.
Os v a q u e i r o s são-lhes servos submissos. Graças a um contrato pelo
q u a l p e r c e b e m c e r t a p e r c e n t a g e m dos p r o d u t o s , ali f i c a m a n ô n i m o s , •—
n a s c e n d o , v i v e n d o e m o r r e n d o n a m e s m a q u a d r a d e t e r r a , <— p e r d i d o s
nos arrastadores e m o c a m b o s e c u i d a n d o a v i d a i n t e i r a , fielmente, dos
r e b a n h o s q u e lhes n ã o p e r t e n c e m .

" O v e r d a d e i r o dono, ausente, conhece-lhes a fidelidade sem par.


N ã o os fiscaliza. Sabe-lhes, q u a n d o m u i t o , os n o m e s . Envoltos, en-
tão, n o traje característico, os sertanejos e n c o u r a d o s e r g u e m a c h o u p a n a
de p a u - a - p i q u e à b o r d a d a s c a c i m b a s , r a p i d a m e n t e , como se a r m a s s e m
tendas e entregam-se, abnegados, à servidão que não avaliam."

Essa sociedade, êle depõe, a i n d a se r e g e p o r u m código d i g n o dos


tempos d a c a v a l a r i a ; em nenhuma o u t r a p a r t e se p r a t i c a c o m mais
a r d o r o culto da l e a l d a d e e d a h o m b r i d a d e , n e m o respeito ao p u d o r
das m u l h e r e s e à s a n t i d a d e dos l a r e s .

Cangaceiros, jagunços, bandidos, tenham os n o m e s que tiverem,


eles só o são p o r q u e a política b r a s i l e i r a os fêz assim. (Palmas)

N e m a c a m o r r a i t a l i a n a q u e entesta, hoje, com os t r i b u n a i s , a b r i n -


do u m doloroso p a r ê n t e s e à civilização d a Itália, se fêz n u m só dia,
de u m jato, i n i m i g a d a s o c i e d a d e e d a o r d e m .

Ela nasceu, a o c o n t r á r i o , como u m i n s t r u m e n t o de legítima defesa


q u a n d o as p r i m e i r a s d o m i n a ç õ e s reais, célebres pela sua crueldade,
pela sua a v a r e z a , c o n s i d e r a v a m as d u a s Sicílias c o m o u m país con-
q u i s t a d o e o b r i g a r a m os p e r s e g u i d o s a f u n d a r a justiça pelas suas p r ó -
pria; mãos.

E já q u e tive de i n v o c a r o p r e c e d e n t e e s t r a n g e i r o , consenti que


eu t e r m i n e r e p l i c a n d o a u m a d a s recentes investidas d o c a m p o a d v e r s o .
64 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

N ó s n ã o somos, como escreveu h á dias u m dos ó r g ã o s d a c a n d i -


d a t u r a oficial, e m resposta a u m a m e m o r á v e l o r a ç ã o p a r l a m e n t a r de
O t á v i o R o c h a s o b r e o p r e t e n d i d o espírito de s e p a r a t i s m o do R i o G r a n d e
d o Sul, da B a h i a , de P e r n a m b u c o e do Rio de J a n e i r o : — a "cari-
c a t u r a das r e p u b l i q u e t a s d e g r a d a d a s da velha Itália".

Na Itália, n i n g u é m , hoje, c o n d e n a os m o v i m e n t o s de insurreição


liberal que puseram por terra a tirania e que proclamaram a Unidade
Gloriosa. (Muito bem; muito bem!)

L e d e esta p á g i n a q u e n t e e j u s t a de T i m a n d r o , o g r a n d e panfle-
t á r i o , q u a n d o a Sicília r o m p e o nexo q u e a p r e n d i a a N e r o n a p o l i t a n o
e p r o c l a m a u m a Constituição s u a e r e c o n q u i s t a o g o v e r n o de si m e s m a ;
q u a n d o N á p o l e s r e a g e e a d i g n i d a d e d o h o m e m j a z i a no o p r ó b r i o de
r e c o n h e c e r c o m o lei ú n i c a o alvitre de u m d é s p o t a ; q u a n d o Sardenha
abre a carreira por onde chega a firmar o i m p é r i o da liberdade;
q u a n d o Toscana, P a r m a e Módena arvoram o estandarte da revolta
c o n t r a os seus respectivos A u g ú s t u l o s ; q u a n d o o L e ã o de S. Marcos
e x p a n d e as asas e r e s t a u r a com a sua i n d e p e n d ê n c i a o esplendor do seu
c o m é r c i o ; e q u a n d o a L o m b a r d i a se i n s u r g e em peso c o n t r a a casa d a
Á u s t r i a e m a r c h a com o seu rei cavaleiro, — lede esta p á g i n a , de
v e r d a d e , de h e r o í s m o e de s e n t i m e n t o n a c i o n a l i t a l i a n o , — e vereis
q u e esse m o v i m e n t o brasileiro, q u e veio d a s cristas d a s á g u a s do C h u í ,
q u e envolveu o Paraíba, que tomou o S. F r a n c i s c o (bravos!), que
c h e g o u ao C a p i b e r i b e e q u e foi ao A m a z o n a s , é o Brasil de amanhã
e q u e v e n c e r e m o s ( b r a v o s ! ) p o r q u e somos a justiça, essa i m e n s a f i g u r a
e t e r n a de q u e falou o exilado de Jersey, com os pés no c o r a ç ã o do
h o m e m , m a s com as asas e o p e n s a m e n t o n o C r u z e i r o d o S u l ! (Pal-
mas prolongadas)
NILO PEÇANHA

Discurso p r o n u n c i a d o n a Academia de Letras


de M a n a u s ( 1 9 2 1 ) .

V ó s sois o p e n s a m e n t o livre, e n a m o r a d o da beleza eterna, rico


d e s s a força s e m p r e nova, c r i a d o r a d o a m o r , d a glória, d a r i q u e z a , d a
í é e d a s g r a n d e s o b r a s do c o r a ç ã o ; sois a ilusão q u e i n s p i r a as a r t e s
e q u e i n s p i r a o l i v r o : — g u a r d a i , p o r isso, a p a r dessa a l m a renova-
d o r a d a e s p e r a n ç a , o s a b o r e o e n c a n t o d a s l e t r a s clássicas, q u e f o r m a m
a s u b e s t r u t u r a d a vossa e d u c a ç ã o l i t e r á r i a e a l i m e n t a m n a t r a d i ç ã o d e
v i r t u d e d o s povos a n t i g o s a s e n e r g i a s d o p a t r i o t i s m o e d a r a ç a .

F o r a delas — n a s misérias, n a s competições e n o egoísmo d o


m u n d o — n a d a h á q u e possa ferir a vossa i m a g i n a ç ã o .

A i n d a a g o r a , d a g r a n d e g u e r r a d a E u r o p a , d o p e r í o d o m a i s ator-
m e n t a d o d a H i s t ó r i a , n a d a saiu a i n d a n o t e a t r o , n o r o m a n c e , n a poesia,
n a legislação i n t e r n a c i o n a l , q u e possa p e r p e t u a r o sacrifício d o s a n g u e ,
d o e n t u s i a s m o e d a ilusão dos h o m e n s . (Apoiado)

Como q u e a fatalidade q u e fêz p a r a r o t r a b a l h o dos c a m p o s e


d a s fábricas, fêz p a r a r o p e n s a m e n t o t a m b é m ( m u i t o b e m ) ; é como se
d a atmosfera m o r a l d a s t r i n c h e i r a s tivesse saído um coração doente,
í r r i t á v e l , m a u , c o m o seu r e g u l a d o r falseado, c o m o dizem os cardió-
logos, o u c o m o se o fogo d a s b a t a l h a s de q u e falam a s e s c r i t u r a s n ã o
tivesse sido b a s t a n t e p a r a p u r i f i c a r o m u n d o d a s suas culpas. (Muito
bem)

E se a a t i v i d a d e l i t e r á r i a é função d e todas a s f o r m a s d a ativi-


d a d e h u m a n a , — n ã o é, p o r certo, p a r a os nossos dias, a t r a n s f o r m a ç ã o
d a s a r t e s o u a r e f o r m a d a sociedade, n e m p a r a os nossos d i a s q u e a
66 ANTOLOGIA D E FAMOSOS

v i b r a ç ã o das a l m a s e x a l t a d a s pelas dores fecundas da g u e r r a realize


a sua o b r a de f r a t e r n i d a d e e de justiça. (Muito b e m )
O p r e s e n t e n a E u r o p a vive a q u e r e r i m i t a r o p a s s a d o e n e m sem-
p r e com a m e s m a filosofia ou a m e s m a s i m p l i c i d a d e elegante.

E u lá estava e o q u e n o m o m e n t o a p a i x o n a v a a l i t e r a t u r a e ins-
pirava a derradeira tese de E . R o s t a n d , c o m o em seguida a Henri
Bataille e a outros, e r a a m e s m a tese q u e antes, e com t a n t o b r i l h o ,
havia inspirado Byron na Inglaterra, Hoffmann na Alemanha, Dumas
e A . Musset n a França.

N a d a t e m v a r i a d o n e m t e m sido acrescido de u m a originalidade


ou de u m a i d é i a nova.

Até n o m u n d o d a s flores h o u v e quem observasse q u e nenhuma


i n s p i r a ç ã o n a poesia é a i n d a hoje m a i s obsecante q u e a rosa, nascida,
se quiserdes, d o s a n g u e de A d ô n i s ou de Afrodite, p r o t e t o r a dos guer-
r e i r o s nos combates, abrigando e recolhendo as l á g r i m a s de Maria
M a d a l e n a , flor d a volúpia n o p a g a n i s m o sensual, v i d a e g r a ç a dos alta-
res n o c r i s t i a n i s m o ; ela a i n d a é h o j e o motivo e o enfeite de q u a n t a
m a n i f e s t a ç ã o l i t e r á r i a fale aos sentidos e à fantasia, ou celebre o es-
plendor das princesas. (Muito bem)

T u d o , como vedes, se repete.

E m t o r n o de vós, ao c o n t r á r i o , vive s e m p r e o ideal e o desco-


nhecido.

A própria hidrografia desse a m b i e n t e e x t r a o r d i n á r i o de natureza


q u e vos cerca a i n d a f i g u r a i n d e f i n i d a ; esse A m a z o n a s q u e E . Récius
achara maior que o Mediterrâneo como q u e a i n d a fixa o seu leito
e constrói a sua m o l d u r a ; esse A m a z o n a s q u e a o u t r o sábio, Morris
Davis, p a r e c e u , p a r a t r a ç a r a sua calha p e r m a n e n t e , está a aprofundar
e a e n t u l h a r , está a d e s t r u i r e a levantar, está a retificar e e n c u r v a r ,
n i n g u é m s a b e n d o até o n d e i r á esse t r a b a l h o ciclópico p a r a suspender
a terra ( m u i t o b e m ) ; esse A m a z o n a s , cujos g r a n d e s lagos, b a í a s e
canais podem transformar-se a m a n h ã , n o dizer de R. de M o r a e s , na
vasta planície q u a t e r n á r i a , capaz antes de r e c e b e r a locomotiva que
conter o navio. . .
DISCURSOS BRASILEIROS 67

Sois s e m p r e o m o v i m e n t o e a evolução o r g â n i c a e n a fronteira


setentrional d o Brasil sois o nosso m a i o r o r g u l h o . (Aplausos)

A crise, q u e a í está, é c o m u m a todos os povos q u e r e n u n c i a m a


agricultura pelas indústrias extrativas; mas vai passar, tais são as
e n e r g i a s e tal é a aflição dfe todo o Brasil d i a n t e dos vossos sofri-
mentos.

N ã o p o d e m o r r e r o povo q u e T a v a r e s Bastos, o profeta do libe-


ralismo, a s s i n a l a v a e n t r e dois oceanos, e n t r e a E u r o p a e a Ásia, como
u m dos centros d o futuro comércio d o m u n d o , e q u e a êle r e c o r d a v a
a A m é r i c a , n a visão de Colombo, e n t r e d u a s g r a n d e s massas dágua,
equilibrando a Terra. (Palmas prolongadas)
D. R O M U A L D O A N T Ô N I O D E SEIXAS

Discurso que, como orador d a Deputação, diri-


giu a Sua Majestade Imperial, no dia 7-7-1838.

Senhor! O a t o de u m P o v o q u e s e n t i n d o a consciência das suas


forças e d a sua d i g n i d a d e sacode o p e s a d o j u g o de u m a longa tutela
e r e a s s u m e seus n a t u r a i s direitos p a r a constituir-se n o l u g a r q u e seus
altos destinos lhe a s s i n a m e n t r e as N a ç õ e s civilizadas, é, sem dúvida,
u m dos q u e m a i s b r i l h a m e m seus fastos e t ã o d i g n o de seu respeito
e g r a t i d ã o q u e o m e s m o S u p r e m o L e g i s l a d o r e Á r b i t r o dos Impérios
n ã o se d i g n o u de prescrever, c o m o especial objeto d o Culto de um
P o v o célebre, p a r a ser t r a n s m i t i d a até à ú l t i m a p o s t e r i d a d e , à m e m ó r i a
do dia venturoso em q u e o seu B r a ç o O n i p o t e n t e o libertou d a mão
dos seus opressores. M a s , e n t r e estas p a s m o s a s vicissitudes q u e m u d a m
a face d a s N a ç õ e s e q u e m u i t a s vezes e s c a p a m à previdência e aos
cálculos d a política h u m a n a , q u a l é o p o v o q u e p o d e gloriar-se, c o m o
o Brasileiro, de u m a p r o t e ç ã o m a i s s i n g u l a r e de m a i s copiosas bên-
çãos d o Céu, n o h e r ó i c o e m p e n h o de c o n q u i s t a r seus legítimos foros
e independência? A o passo q u e outros povos d o a n t i g o e novo m u n d o
apresentam seus gloriosos troféus enegrecidos de s a n g u e e marcados
com as c a l a m i d a d e s de u m a porfiosa e e n c a r n i ç a d a l u t a : e q u e m u i t o s
a i n d a e r r a m , m a l seguros e vacilantes ao i m p u l s o das p a i x õ e s i n i m i g a s
da P a z e da v e r d a d e i r a L i b e r d a d e : o Brasil, S e n h o r , n ã o ostenta h o j e
s e n ã o recordações g r a t a s e p u r a s de u m T r i u n f o talvez sem e x e m p l o n a
história das Nações.

A p e n a s o A u g u s t o P a i de V. M . L, o m a g n â n i m o F u n d a d o r do
I m p é r i o , soltou n a s m a r g e n s do I p i r a n g a o g r i t o s u b l i m e d a Indepen-
dência, a esse m á g i c o som e s t a l a r a m as c a d e i a s q u e já n ã o podiam
convir, sem desonra, a u m povo n u m e r o s o e i l u s t r a d o : confundiram-se
DISCURSOS BRASILEIROS 69

neste m a g n í f i c o p e n s a m e n t o todos os interesses e todas a s vontades;


e o Brasil, de u m a até o u t r a e x t r e m i d a d e , se viu, como p o r e n c a n t o ,
r e u n i d o e m t o r n o d o P r í n c i p e i m o r t a l , q u e n ã o e r a senão o i n t é r p r e t e
dos seus generosos s e n t i m e n t o s : as m a i s p o d e r o s a s N a ç õ e s da Europa
c o r r e m , n ã o e m seu auxílio p a r a d e b e l a r falanges i n i m i g a s , m a s p a r a
saudá-lo como seu i g u a l e solicitar sua a m i z a d e ; enfim, três lustros
a p e n a s t ê m d e c o r r i d o e o Brasil, a t r a v é s de mil escolhos e e m b a r a ç o s ,
a v a n ç a sereno e majestoso n a b r i l h a n t e c a r r e i r a d a civilização.

T a i s são, S e n h o r , os prodigiosos efeitos dessa política r a r a e feliz


q u e identifica os P r í n c i p e s com os p o v o s : seu t r o n o , f i r m a d o nos cora-
ções se t o r n a , e n t ã o , u m c e n t r o i n e x p u g n á v e l d o n d e p a r t e a luz, o movi-
m e n t o e e n e r g i a , q u e vivifica t o d a s as p a r t e s d o c o r p o político e t r i u n f a
de todos os obstáculos. S ó esta ditosa a l i a n ç a e n t r e o povo e seu
Chefe; só esta u n i d a d e de c r e n ç a s e d e sentimentos q u e constitui a
v i d a das N a ç õ e s será c a p a z de consolidar esta g r a n d e o b r a e realizar
essa i m e n s a e i n d e f i n i d a p e r s p e c t i v a de g r a n d e z a e d e glória, q u e a
n a t u r e z a t e m assinalado ao nosso a b e n ç o a d o P a í s .

É com este espírito, Senhor, que a Câmara dos D e p u t a d o s nos


e n c a r r e g a de v i r e x p r i m i r respeitosamente, ante o T r o n o de V . M . I.,
o í n t i m o j ú b i l o de q u e ela se a c h a possuída neste d i a faustíssimo e
sempre memorável. Fiel à s u a alta m i s s ã o e aos seus s a g r a d o s jura-
mentos, a C â m a r a dos D e p u t a d o s forma os m a i s a r d e n t e s votos pela
estabilidade d o T r o n o Constitucional, c o m o o m a i s firme penhor da
Independência, da união e da prosperidade Nacional. E estes votos,
S e n h o r , a i n d a se t o r n a m m a i s fervorosos ao c o n t e m p l a r s e n t a d o neste
a u g u s t o T r o n o u m j o v e m M o n a r c a , delícias da N a ç ã o , e objeto das suas
mais caras esperanças. P o s s a o seu r e i n a d o , a f u g e n t a n d o para sem-
p r e de nossas p r a i a s o feroz d e m a g o g i s m o , d e s e m p e n h a r (nós o con-
fiamos) t o d a s as condições d e u m a M o n a r q u i a independente, respei-
t a d a , livre e feliz.

Aquele D e u s , q u e vela i n c e s s a n t e m e n t e s o b r e os destinos do Brasil


e q u e t e m na sua m ã o os Corações dos Reis, q u e i r a escutar propício
estes votos de u m povo fiel q u e olha a Religião de seus P a i s e o T r o n o
de seus M o n a r c a s como os p r i n c i p a i s elementos e as m a i s sólidas bases
da sua existência política.
D. ROMUALDO ANTÔNIO DE SEIXAS

Discurso que recitou, como Arcebispo d a Bahia,


no ato da instituição da Confraria de S. Vicente
de Paula.

Senhores

A i m p o r t â n c i a do objeto q u e o r a nos r e ú n e neste l u g a r é j á tão


manifesta e p a t e n t e q u e eu a b u s a r i a da vossa p a c i ê n c i a e faria injúria
à vossa p i e d a d e , se p r e t e n d e s s e a i n d a d e m o n s t r a r as v a n t a g e n s d a Ins-
t i t u i ç ã o sublime d a s I r m ã s d a C a r i d a d e . Com efeito, elogiar as vir-
tudes destas V i r g e n s angélicas, imagens visíveis da Providência que
vela incessantemente s o b r e a sorte d o p o b r e e do infeliz é fazer o elogio
da m e s m a c a r i d a d e , r a i n h a de todas as v i r t u d e s , o m a n d a d o novo p o r
excelência, e o laço D i v i n o q u e u n e os h o m e n s e n t r e si e p r e n d e o
Céu com a Terra. Percorrei os c a r a c t e r e s da verdadeira caridade
t r a ç a d o s p e l a m ã o do g r a n d e Apóstolo das N a ç õ e s e vós tereis o tipo
e m o d e l o d e u m a F i l h a de São Vicente de P a u l a . A c a r i d a d e é pa-
ciente e b e n i g n a ; ela n ã o é ambiciosa, não busca seus próprios inte-
resses, n ã o se i r r i t a , n e m suspeita mal, n ã o folga com a injustiça, mas
regozija-se com a v e r d a d e ; os obstáculos e resistências longe de a en-
fraquecerem, n ã o s e r v e m senão d e d a r - l h e m a i o r a l e n t o e f e r v o r ; ela
t u d o tolera, t u d o crê, t u d o espera, t u d o sofre. Enfim, a caridade nunca
h á de a c a b a r , p o r q u e ela é u m a fonte v i v a q u e n ã o se esgota, m a s q u e
se estende pelo í m p e t o d a sua corrente; é uma chama sempre ativa
q u e se n ã o e x t i n g u e , m a s q u e se m u l t i p l i c a pela sua ação, p o r q u e ela
vem de D e u s (1).

(1) Vide a 1* carta aos Coríntios, cap. 13, e o erudito Comentário


de M. de Genoude a este lugar, no tomo 5 da sua tradução da Bíblia.
DISCURSOS BRASILEIROS 71

Q u e m n ã o divisa, S e n h o r e s , neste q u a d r o m a g n í f i c o o fiel retrato


dessas ínclitas V i r g e n s d e d i c a d a s p o r estado a e m p r e g a r - s e sem reserva
e sacrificar com a l e g r i a a p r ó p r i a v i d a n o exercício de u m a ilimitada
caridade? O n d e se viu n u n c a n o m e i o de tantos perigos a q u e uma
tal profissão e x p õ e u m sexo fraco e delicado, m a i o r p u r e z a de costu-
mes, a b n e g a ç ã o , desinteresse, a s s i d u i d a d e ao t r a b a l h o , e s o b r e t u d o essas
v i r t u d e s q u e , n a frase d e u m judicioso escritor, m a r c h a m a p ó s a p a i x ã o
sublime d a c a r i d a d e , a paciência para s u p o r t a r os males alheios, a
c o m p a i x ã o p a r a os l a s t i m a r e a condescendência para os suavizar e
curar (1)? É impossível c o n t e m p l a r a Irmã da Caridade junto ao
leito do e n f e r m o ou do m o r i b u n d o , sem ser p r o f u n d a m e n t e t o c a d o da
sua t e r n a solicitude e d a u n ç ã o celeste q u e r e s p i r a m suas p a l a v r a s .

A h ! só u m Deus, q u e é o m e s m o a m o r , p o d i a o p e r a r tão i n a u d i t a
m a r a v i l h a : só a Religião, e m a n a d a do seu m e s m o seio, p o d i a revelar
este s e g r e d o até e n t ã o desconhecido. Sim, foi o C r i s t i a n i s m o q u e reabi-
litou e r e s t i t u i u a d i g n i d a d e d a m u l h e r aviltada e n t r e as m a i s polidas
X a ç õ e s d a a n t i g ü i d a d e p a g a , c o n f i n a d a n o i n t e r i o r do Gineceu, e re-
d u z i d a à d u r a condição de escrava. Os seus P o e t a s , Filósofos e Legis-
ladores a rebaixaram até supô-la i n c a p a z de instrução, de v i r t u d e e
l i b e r d a d e , e sem o u t r o destino q u e a p e r p e t u i d a d e da espécie. Ainda
hoje, nos P a í s e s onde n ã o r a i o u a luz d o E v a n g e l h o , é tão miserável
a sua sorte q u e em u n s se lhe e n c u r t a m b a r b a r a m e n t e os pés desde
a infância, para impossibilitá-la de a n d a r , em outros, o b r i g a m - n a a
precipitar-se e p e r e c e r n a fogueira o n d e é l a n ç a d o o c a d á v e r do m a r i -
do, em outros, finalmente, a d e i x a m t r i s t e m e n t e v e g e t a r n a p r i s ã o do-
méstica de u m Harém. A civilização Cristã, S e n h o r e s , dissipou um
tão funesto e r r o . Ela n ã o só r e i n t e g r o u a m u l h e r nos seus naturais
direitos e a elevou a u m a o r d e m m a i s n o b r e e d i g n a da h o n r a inefável
de conceber em u m seio v i r g i n a l o F i l h o do Altíssimo revestido da
nossa n a t u r e z a , como t a m b é m a divinizou de a l g u m a sorte, escolhen-
do-a p a r a d e p o s i t á r i a d a t e r n u r a de Jesus Cristo p a r a com os p o b r e s ,
objetos da sua p r e d i l e ç ã o e nos q u a i s êle q u e r q u e se r e c o n h e ç a e se
ame a sua própria pessoa •— Quandiu fecisti ini ex his fratribus

(1) Vide o citado Comentário no v. 8? da m e s m a c a r t a aos Co-


ríntios.
72 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

meis, minimis, mihi fecistis (1). E u m e l e v a n t a r e i , disse o S e n h o r ,


p o r causa d a m i s é r i a d o s desvalidos e g e m i d o s dos p o b r e s ( 2 ) ; e logo»
o seu espírito b a i x o u s o b r e u m o b s c u r o e h u m i l d e P a d r e d a França
e formou dele o p r o d í g i o e o t a u m a t u r g o d a C a r i d a d e . S e m meios,
sem poder, n e m o u t r a s r e c o m e n d a ç õ e s q u e a s u a v i r t u d e , êle a b r a ç a ,
n a extensão d o seu zelo e a b r a s a d o a m o r d o p r ó x i m o , toda a q u a l i d a d e
de males a q u e está sujeita a h u m a n i d a d e . N ã o h á dor, miséria ou
i n f o r t ú n i o q u e n ã o e n c o n t r e u m asilo. A F r a n ç a e q u a s e toda a E u -
r o p a é c o b e r t a d e m o n u m e n t o s d a s u a infatigável c a r i d a d e . Êle fala
e n i n g u é m resiste à s u a v o z ; os corações se comovem e as l á g r i m a s
c o r r e m de todos os olhos; as bolsas se a b r e m e como p o r e n c a n t o s e
m u l t i p l i c a m os recursos, j á p a r a recolher e salvar d a m o r t e a s inocen-
tes v í t i m a s do a b a n d o n o d e í m p i a s e c r u é i s M ã e s , j á p a r a tratamento
e alívio dos p o b r e s enfermos, j á p a r a a i n s t r u ç ã o religiosa dos h a b i -
tantes d o c a m p o , j á enfim p a r a l i v r a r dos h o r r o r e s d a fome p r o v í n c i a s
i n t e i r a s , m a i s desoladas q u e o u t r o r a a infeliz J e r u s a l é m , com este es-
pantoso flagelo.

Sabeis, Senhores, q u e m é este P a d r e h u m i l d e , m a s poderoso e m


o b r a s e p a l a v r a s , este novo José q u e salvou a F r a n ç a e a Lorena?
É o nosso Glorioso P r o t e t o r , F u n d a d o r e P a i d a s I r m ã s d a C a r i d a d e ,
o i m o r t a l S ã o Vicente d e P a u l a . A i m e n s i d a d e do seu generoso cora-
ção n ã o se p o d i a satisfazer só c o m o p r e s e n t e , e n ã o m e n o s solícito
do futuro, este h o m e m d e m i s e r i c ó r d i a i m p r i m i u o seu espírito e p e r -
p e t u o u o m i n i s t é r i o d a c a r i d a d e q u e o i n f l a m a v a , nessa piedosa Con-
g r e g a ç ã o , u m dos m a i s belos o r n a m e n t o s d a I g r e j a Católica. Que di-
ferença, Senhores, entre a C a r i d a d e Cristã, fecunda, magnânima e
d i v i n a , e essa t ã o i n c u l c a d a filantropia, estéril, fria, interesseira, inefi-
caz e s u b o r d i n a d a aos cálculos d a ciência e d e u m a legislação p u r a -
mente h u m a n a , que n e m ao menos tem podido atalhar a horrível chaga
d o p a u p e r i s m o em u m dos m a i s cultos P a í s e s d a E u r o p a , o n d e foram
s u p r i m i d o s os a n t i g o s Estabelecimentos da C a r i d a d e ! Os próprios Fi-
lósofos r e c o n h e c e r a m esta v e r d a d e , t r i b u t a n d o públicos e n c ô m i o s e u m a
espécie de culto ao incomparável S ã o Vicente de P a u l a e às s u a s

(1) Mat. cap. 25, v. 40.


(2) Sahn. 11, v. 5.
DISCURSOS BRASILEIROS 73

m a g n í f i c a s fundações, q u e eles n u n c a p u d e r a m i m i t a r , n ã o lhes s e n d o


d a d o pela J u s t i ç a D i v i n a senão o fatal p o d e r d e d e s t r u i r ; m a s suas
a p a r a t o s a s h o m e n a g e n s longe de r e a l ç a r e m , f o r a m antes u m insulto à
m e m ó r i a deste H e r ó i do C r i s t i a n i s m o , associando-o aos seus p r e t e n d i -
dos oráculos com a p o m p o s a i n s c r i ç ã o d e Filósofo Francês do Século
XVII, e colocando sua estátua no m e s m o A l t a r c o m a do famoso
Rousseau! Que injúria! Q u e pasmoso contraste e n t r e estes dois ho-
m e n s c é l e b r e s : " e n t r e o a m i g o e benfeitor dos d e s g r a ç a d o s , q u e t a n t o s
e t ã o d u r a d o u r o s serviços p r e s t o u ao seu P a í s e à H u m a n i d a d e , e o
C i d a d ã o indiferente, q u e confessa n ã o t e r p r a t i c a d o e m toda s u a v i d a
u m a só a ç ã o d e q u e a P á t r i a se pudesse g l o r i f i c a r ; entre o homem
prodigioso que funda e e n r i q u e c e i n u m e r á v e i s asilos p a r a os m í s e r o s
expostos, e o b á r b a r o P a i q u e , a b u s a n d o d e suas luzes, v a i e x p o r nesses
m e s m o s asilos os frutos d a s u a l i b e r t i n a g e m " ( 1 ) .

Desculpai-me, S e n h o r e s , d e h a v e r f a t i g a d o a vossa a t e n ç ã o a des-


peito do p r o p ó s i t o q u e eu a n u n c i a r a . S e m d ú v i d a n ã o foi c o m inten-
ção de vos i n s t r u i r e a i n d a m e n o s d e fazer u m novo apelo a o vosso
c o r a ç ã o , q u e j á assaz se t e m p r o n u n c i a d o . M a s vós sabeis q u e , n a
p r e s e n ç a dos m a i s caros interesses d a R e l i g i ã o e d a H u m a n i d a d e , n ã o
é s e m p r e fácil m o d e r a r e conter d e n t r o dos limites q u e se h á p r e s c r i t o ,
os acentos, q u e p a r t e m dos seios d ' a l m a .

E u v o u , p o r t a n t o , concluir, depois d e p a g a r u m t r i b u t o d e louvor e


a g r a d e c i m e n t o a o s ilustres r e p r e s e n t a n t e s d a nossa P r o v í n c i a , dos q u a i s
u m , a impulsos do seu r e c o n h e c i d o p a t r i o t i s m o , ofereceu h á oito a n o s
u m projeto, q u e n ã o p ô d e e n t ã o ser levado a efeito, p a r a a v i n d a d a s
Irmãs da Caridade ( 2 ) e outros m o v i d o s d o m e s m o n o b r e sentimento
a c a b a m d e o r e p r o d u z i r e s u b m e t e r à discussão ( 3 ) , projeto q u e n ã o
d e i x a r á de m e r e c e r , e u o espero, a u n â n i m e a p r o v a ç ã o dos nossos Le-

(1) V. a obra intitulada ''Anais Filosóficos, Morais e Literários",


tomo 6, págs. 61 e segs.
(2) O Sr. Des. João José de Oliveira Junqueira.
(3) Os Srs. Drs. Aprígio José de Souza e Francisco Olegário Ro-
drigues Vaz e os Srs. Cura d a Sé, Vicente Maria da Silva, Cônego
Vigário d a Vitória Dr. Joaquim d'Almeida, Cônego Vigário d a Sau-
bará Pedro da Silva Freire e Cônego Vigário do Pilar José Joaquim
da Fonseca Lima.
74 ANTOLOGIA DE FAMOSOS

gisladores. É com atos desta natureza que os Eleitos do Povo se


t o r n a r ã o c r e d o r e s d a s s u a s Bênçãos, e avançarão a grande obra da
civilização do seu P a í s , q u e só p o d e consolidar-se s o b r e a base e t e r n a
d a Religião e d a M o r a l .

Só resta a g o r a d e l i b e r a r m o s s o b r e a o r g a n i z a ç ã o da Irmandade
d e S ã o V i c e n t e de P a u l a , q u e hoje vimos instituir, e cujo fim, como
vos p o n d e r e i n a P a s t o r a l de 5 do c o r r e n t e , é o b t e r os meios de con-
s e g u i r a v i n d a das I r m ã s da C a r i d a d e , e realizar o seu estabelecimento
nesta Capital. A o ver em t o r n o do i n d i g n o P a s t o r desta Diocese tan-
tos conspícuos v a r õ e s a n i m a d o s de u m santo e n t u s i a s m o , eu m e acho
possuído de í n t i m o j ú b i l o e n ã o posso j á d u v i d a r d o feliz êxito desta
e m p r e s a , a o m e s m o t e m p o religiosa e e m i n e n t e m e n t e social. Senhores,
o P a i das M i s e r i c ó r d i a s vos delega hoje os seus p o d e r e s p a r a a defesa
e p r o t e ç ã o d o p o b r e , d o órfão e de todos os q u e sofrem. — Tibi dere-
lictu est pauper, orphano tu eris adjuter (1). F o i sob i g u a i s auspí-
cios e pelos valiosos auxílios de distintos C i d a d ã o s e respeitáveis Ma-
t r o n a s q u e Vicente de P a u l a dotou o U n i v e r s o com esta providentíssi-
m a Instituição. Ah! o doce prazer que produz em uma alma bem
formada a prática d a beneficência, os votos de reconhecimento do
p o b r e q u e se elevam até os ouvidos d o E t e r n o , e s o b r e t u d o as celestiais
r e c o m p e n s a s p r o m e t i d a s à simples esmola de u m copo d á g u a fria (2)
vos r e t r i b u i r ã o com u s u r a todos os sacrifícios q u e fizerdes p o r uma
t ã o bela causa.

9
Nesta f i r m e confiança p r o p o n h o : l ) Q u e se p r o c e d a à eleição de
u m a M e s a c o m p o s t a de 9 m e m b r o s , e n t r a n d o neste n ú m e r o o P r o v e d o r ,
Vice-Provedor, Escrivão e T e s o u r e i r o . Esta M e s a a p r e s e n t a r á com a
9
possível b r e v i d a d e u m p r o j e t o de C o m p r o m i s s o d a I r m a n d a d e . 2 ) Que
se elejam igualmente Agentes encarregados de p r o m o v e r , desde já,
subscrições p a r a o b t e r os socorros com q u e a p i e d a d e de c a d a u m q u i s e r
contribuir p a r a u m a obra tão salutar e meritória.

(1) Salm. 10, v. 17.


(2) Mat. cp. 10. v. 42.
D. ROMUALDO ANTÔNIO DE SEIXAS

Discurso pronunciado em 3-7-1827 n a Assem-


bléia Geral Legislativa, sobre o Tratado p a r a a
abolição do t r á f i c o da escravatura.

Parecerá talvez t e m e r i d a d e , q u e depois d o e r u d i t o discurso, que


ouvi o n t e m a u m ilustre o r a d o r s o b r e o T r a t a d o da abolição do co-
mércio de escravos, eu apareça em campo sem possuir os mesmos
c a b e d a i s de luzes e c o n h e c i m e n t o s , p a r a c o m b a t e r as opiniões q u e êle
tão s a b i a m e n t e e x p e n d e u ; m a s é necessário q u e eu justifique a diver-
gência das nossas idéias n o p a r e c e r da Comissão de q u e a m b o s temos
a h o n r a de ser M e m b r o s . C o m e ç o u o n o b r e D e p u t a d o p o r fazer a sua
protestação de fé política, d e c l a r a n d o q u e êle r e p r o v a v a como justo
e c r i m i n o s o o tráfico da e s c r a v a t u r a ; m a s n a série d o seu discurso
explicou-se d e tal f o r m a q u e , se eu n ã o conhecesse os seus l i b e r a i s e
filantrópicos s e n t i m e n t o s , a s s e n t a r a q u e êle e r a u m dos m a i s ardentes
defensores e apologistas de tal c o m é r c i o . Disse q u e d a abolição deste
comércio r e s u l t a r i a a total d e s g r a ç a d a N a ç ã o Brasileira, e concluiu
que o T r a t a d o e r a nulo, a p o i a n d o a sua asserção com o exemplo da
F r a n ç a n o t e m p o de L u í s X I I . C o n v e n h o nesse p r i n c í p i o , g e r a l m e n t e ,
r e c o n h e c i d o da n u l i d a d e dos T r a t a d o s ruinosos à N a ç ã o , pois n u n c a se
pode p r e s u m i r q u e ela q u e i r a a u t o r i z a r o seu Chefe ou C o n d u t o r p a r a
:azer t r a n s a ç õ e s q u e p o d e m c a u s a r a sua d e s g r a ç a ; mas cumpria ao
iiustre D e p u t a d o d e m o n s t r a r q u e o T r a t a d o e m q u e s t ã o se a c h a v a neste
c a s o ; e é o q u e m e p a r e c e q u e êle n ã o p r e e n c h e u ; e pelo c o n t r á r i o ,
q u a n d o confessa q u e o T r a t a d o p r o í b e a c o n t i n u a ç ã o de u m a cousa
.r.justa ou c r i m i n o s a , ou se c o n t r a d i z m a n i f e s t a m e n t e , ou s u p õ e q u e a
:r.;ustiça e o c r i m e p o d e m fazer a felicidade de uma Nação. Mas
quem n ã o vê q u a n t o s e m e l h a n t e p r i n c í p i o é falso e perigoso, e q u e a
76 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

política, s e p a r a d a d a justiça, n ã o p o d e ser s e n ã o u m laço a r m a d o c o n t r a


a s e g u r a n ç a e p r o s p e r i d a d e d a s n a ç õ e s , o u u m a b a s e r u i n o s a q u e cedo
ou t a r d e l a n ç a r á por terra o edifício social? Todas a s n a ç õ e s são
o b r i g a d a s sem d ú v i d a a p r o c u r a r o m e i o d a s u a c o n s e r v a ç ã o e b e m
ser, e evitar a sua destruição; mas é preciso q u e estes meios n ã o
sejam injustos, n e m r e p r o v a d o s e p r o s c r i t o s pelo D i r e i t o N a t u r a l . Isto
é o q u e diz Vattel, e todos aqueles q u e e n s i n a m os p r i m e i r o s elementos
d o D i r e i t o N a t u r a l e das Gentes. E h a v e r á q u e m d i g a q u e os m e i o s
fornecidos pelo C o m é r c i o de escravos n ã o são injustos, ou q u e este co-
m é r c i o n ã o é ilícito, v e r g o n h o s o , d e g r a d a n t e d a d i g n i d a d e do h o m e m ,
anti-social, oposto a o espírito do C r i s t i a n i s m o , e s o m e n t e p r ó p r i o p a r a
r e t a r d a r os progressos d a civilização d a espécie h u m a n a ? (Apoiado).
E u f a r i a c e r t a m e n t e i n j ú r i a aos n o b r e s sentimentos desta A u g u s t a Câ-
m a r a , se m e fizesse c a r g o d e m o s t r a r a injustiça de u m t r á f i c o q u e se
a c h a e m c o n t r a d i ç ã o com as luzes do século e com os p r i n c í p i o s d e
filantropia a l t a m e n t e p r o c l a m a d o s e professados pela N a ç ã o Brasileira.

Apresentou depois o ilustre o r a d o r u m triste e m e d o n h o quadro


d a s g u e r r a s e hostilidades q u e c o m e t e m r e c i p r o c a m e n t e as t r i b o s afri-
c a n a s , e fêz v e r q u e a t é e r a u m a t o d e h u m a n i d a d e a r r a n c a r os des-
g r a ç a d o s n e g r o s à m o r t e ou e s c r a v i d ã o , a q u e e r a m c o n d e n a d o s n o seu
p a í s n a t a l ; m a s eu creio, S r . P r e s i d e n t e , q u e n e n h u m desses africanos
a g r a d e c e r i a ao ilustre D e p u t a d o este a t o de c o m p a i x ã o e humanidade
q u e os a r r e b a t a d a c o m p a n h i a d e s u a s m u l h e r e s , d e seus filhos, e de
sua P á t r i a , p a r a os v i r e n t r e g a r , com a m a i s h o r r í v e l d e g r a d a ç ã o e
z o m b a r i a , a o açoute d e u m s e n h o r i m p l a c á v e l ; quanto mais que é
constante, pelo t e s t e m u n h o de todos os viajantes, q u e essas guerras
n u n c a f o r a m m a i s freqüentes e cruéis como depois d a i n t r o d u ç ã o d e v

tão abominável tráfico; q u e foi desde t ã o funesta época q u e a escra-


v i d ã o c o m e ç o u a ser n a j u r i s p r u d ê n c i a dos africanos a p e n a do c r i m e ;
q u e desde então, a confiança e a p a z f u g i r a m d a q u e l a s r e g i õ e s ; e q u e
a p r e s e n ç a d e u m n a v i o s o b r e a costa se t o r n a c o m o o sinal d a m a i s
b á r b a r a p e r s e g u i ç ã o , e s t i m u l a n d o a cobiça, a p e r f í d i a , e a vingança,
q u e d e s p e g a m e e x e r c i t a m sobre a s p o v o a ç õ e s v i z i n h a s a s u a fatal in-
fluência. E q u e m serão os c u l p a d o s dessas g u e r r a s , hostilidades, efu-
são d e s a n g u e , suicídios, e de t a n t o s h o r r o r e s , q u e revoltam a n a t u r e z a ,
se n ã o os a r m a d o r e s , o u antes os governos q u e os c o n s e n t e m e a u t o r '
DISCURSOS BRASILEIROS 77

zam? P a r a colorar o c r i m e , invocam-se as leis d a h u m a n i d a d e atroz-


mente suplantada, assim como j á se t e m i n v o c a d o sacrilegamente o
n o m e d a religião, com o p r e t e x t o d e c o n v e r t e r os africanos, c o m o se
u m a religião celestial e d i v i n a , u m a religião q u e p r o c l a m a os p r i m i -
tivos direitos do h o m e m , q u e o restituiu à s u a dignidade, mostrando
e s t a m p a d a n o seu ser a f o r m o s a I m a g e m d a D i v i n d a d e , u m a religião
enfim, q u e r e p r o v a a violência e a força, q u e n a frase do s á b i o Fe-
nelon n ã o p o d e fazer senão h i p ó c r i t a s , se pudesse p r o p a g a r por tais
meios diametralmente opostos ao seu prodigioso estabelecimento.
(Apoiado). Sabe-se, além disso, q u a l é o zelo Evangélico de tais mer-
cadores, e q u a n t o o seu b á r b a r o p r o c e d i m e n t o t e m c o n t r i b u í d o para
a l i e n a r , e i n d i s p o r os africanos c o n t r a o C r i s t i a n i s m o , de cujas máxi-
m a s , eles n ã o p o d e m j u l g a r s e n ã o pelo exemplo dos q u e o p r o f e s s a m ;
sabe-se, t a m b é m , q u a l é o zelo e c u i d a d o d a m a i o r p a r t e dos senhores
na i n s t r u ç ã o religiosa desses miseráveis, q u e eles t r a t a m como bestas
de c a r g a , o l h a n d o u n i c a m e n t e p a r a o p r o d u t o de seu t r a b a l h o .

Declamou-se, depois, c o n t r a a intervenção do G o v e r n o Britânico,


q u a n d o exige d a N a ç ã o Brasileira a abolição final d o tráfico da escra-
vatura. E u sei, S r . P r e s i d e n t e , q u e n e n h u m a N a ç ã o , p o r m a i s pode-
rosa q u e seja, t e m d i r e i t o de ingerir-se nos negócios de o u t r a , ainda
q u e seja p a r a p r o m o v e r o seu m e l h o r a m e n t o e perfeição, e a i n d a m e n o s
de e m p r e g a r a coação ou a m e a ç a s , n e m mesmo para punir excessos
ou faltas e n o r m e s c o n t r a a lei n a t u r a l : tal é a d o u t r i n a de todos os
escritores, à exceção de Grócio, q u e , neste último caso, a d m i t e a inter-
venção a r m a d a ; m a s vejamos como t e m procedido a nação inglesa.
Todos s a b e m q u e a s u a i n t e r v e n ç ã o a este respeito t e m sido r e c o n h e c i d a
por todos os governos interessados n o c o m é r c i o de escravos, pela F r a n -
ç a . Suécia, Estados U n i d o s , pelas novas R e p ú b l i c a s d o c o n t i n e n t e ame-
r i c a n o , e pelo a n t i g o g o v e r n o p o r t u g u ê s , r e s i d e n t e n o Brasil, q u e se
c o m p r o m e t e u solenemente à g r a d u a l abolição d a q u e l e c o m é r c i o ; e, se
se diz q u e estes T r a t a d o s e p r o m e s s a s n ã o p o d e m l i g a r o Brasil depois
d e p r o c l a m a d a a sua I n d e p e n d ê n c i a , permita-se-me, e n t ã o dizer, q u e j á
este negócio se h á t o r n a d o i n t e i r a m e n t e brasileiro, depois q u e a As-
sembléia Constituinte acedeu, como é constante, ao voto geral da abo-
lição de tal comércio, e autorizou o governo para tratar sobre este
a s s u n t o com o g o v e r n o b r i t â n i c o . J á p o d i a e n t r e t a n t o estar abolido,
78 ANTOLOGIA DE FAMOSOS

há muito tempo, o tráfico da escravatura; e não há razão para in-


vectivar c o n t r a o governo inglês p o r e x i g i r o c u m p r i m e n t o de p r o m e s -
sas t ã o solenes, o b r a n d o de a c o r d o com o s e n t i m e n t o de todas as N a -
ções civilizadas, que tão energicamente se h a v i a m pronunciado pelo
ó r g ã o do Congresso d e V i e n a , q u a n d o d e c l a r o u q u e o c o m é r c i o de es-
cravos desolava a África, degradava a Europa, e ultrajava a huma-
nidade.

M a s a i n d a s u p o n d o , q u e seja ilegal a i n t e r v e n ç ã o da Inglaterra,


e fora da esfera do d i r e i t o das gentes, é p r e c i s o a t e n d e r à m e s m a na-
t u r e z a da c o u s a : se a r e q u i s i ç ã o d o g o v e r n o inglês é f u n d a d a n a Jus-
tiça Universal, e c o n f o r m e aos p r i n c í p i o s da religião e d a natureza,
c o m o fica d e m o n s t r a d o , n ã o devemos h e s i t a r u m só m o m e n t o e m satis-
fazê-la, a i n d a q u a n d o u m a tal i n i c i a t i v a partisse d o nosso m a i o r ini-
m i g o — fas est ab hoste doceri — e n ã o q u e i r a m o s i m i t a r as n a ç õ e s
protestantes, q u e r e j e i t a r a m , a p r i n c í p i o , a r e f o r m a do c a l e n d á r i o , a p e s a r
da sua r e c o n h e c i d a u t i l i d a d e , só p o r q u e e r a o b r a d o Pontífice R o m a n o .

D a s i n c r e p a ç õ e s feitas aos ingleses passou o n o b r e o r a d o r a p i n t a r


a d e s g r a ç a , a q u e fica r e d u z i d o o Brasil com a abolição do tráfico
d a e s c r a v a t u r a , e o golpe fatal q u e ela vai d e s c a r r e g a r s o b r e o comér-
cio, a g r i c u l t u r a , i n d ú s t r i a e m a r i n h a do I m p é r i o . T a i s são, Sr. P r e -
sidente, as q u e i x a s e protestos q u e o r d i n a r i a m e n t e alega a cobiça e o
interesse c o n t r a inovações e r e f o r m a s aliás s a u d á v e i s e necessárias, m a s
q u e ferem os lucros e v a n t a g e n s de a l g u n s p a r t i c u l a r e s . E q u a l seria
o prazo q u e satisfizesse aos seus insaciáveis desejos? Desenganemo-
- n o s : se o T r a t a d o estipulasse a c o n t i n u a ç ã o d a q u e l e tráfico a i n d a p o r
m a i s 2 0 anos, ao finalizar esta época, r e n a s c e r i a m as m e s m a s queixas
e se j u l g a r i a q u e o Brasil precisava o u t r o t a n t o t e m p o desta execrável
importação. F o i assim q u e , q u a n d o as colônias inglesas s a c u d i r a m o
j u g o d a m e t r ó p o l e , m u i t a gente n a I n g l a t e r r a e até m u i t o h á b e i s eco-
n o m i s t a s , a s s e n t a r a m q u e a n a ç ã o ficava p e r d i d a , q u e d e c a i r i a neces-
s a r i a m e n t e a sua m a r i n h a , o seu comércio e o seu p o d e r n a v a l ; mas
b e m depressa se r e c o n h e c e u q u e isto e r a u m t e m o r p â n i c o e nunca
a I n g l a t e r r a p r o s p e r o u m a i s em p o p u l a ç ã o , e m c a p i t a i s e p r e p o n d e r â n -
cia m a r í t i m a , d o q u e depois d a e m a n c i p a ç ã o das colônias. O mesmo
h á de acontecer a o Brasil, q u a n d o a falta de b r a ç o s africanos o o b r i g a r
a l a n ç a r m ã o de m e d i d a s m a i s sólidas e p e r d u r á v e i s , q u e até a g o r a se
DISCURSOS BRASILEIROS 79

t ê m d e s p r e z a d o ; sentir-se-ão a l g u n s i n c o n v e n i e n t e s inevitáveis em tais


m u d a n ç a s , ou alterações m e r c a n t i s ; m a s eles serão p a s s a g e i r o s e logo
r e p a r a d o s pela m e l h o r d i r e ç ã o dos c a p i t a i s , h o j e c o n s u m i d o s n o rui-
noso c o m é r c i o dos escravos. B e m q u e o p r a z o de 3 anos a i n d a p o d e
t r a n s p l a n t a r m e t a d e d'África p a r a o Brasil, a final abolição deste trá-
fico p r o d u z i r á o g r a n d e b e m de se m e l h o r a r a sorte dos escravos, q u e
o r a existem, ou forem i m p o r t a d o s , p r o m o v e n d o - s e os seus casamentos
e c o n s e q ü e n t e m e n t e a s u a r e p r o d u ç ã o , e a e d u c a ç ã o de seus filhos, evi-
tando-se deste m o d o a espantosa m o r t a l i d a d e desta r a ç a infeliz. Um
liberal sistema de colonização e s o b r e t u d o a e s t a b i l i d a d e e firmeza das
nossas instituições políticas, a t r a i r á ao nosso belo p a í s , n ã o colonos
a r m a d o s , ou facinorosos t i r a d o s das cadeias, pois n ã o creio q u e sejam
n a E u r o p a t ã o fáceis os meios de subsistência, q u e d e i x e m de q u e r e r
v i r p a r a o Brasil m u i t a s famílias honestas, e h o m e n s laboriosos, q u a n -
d o se c o n v e n c e r e m q u e n e n h u m país do m u n d o lhes oferece tantos
r e c u r s o s e t a n t a facilidade de m e l h o r a r a sua f o r t u n a ; e quanto a
esses m e s m o s colonos t i r a d o s das cadeias, n e m s e m p r e se verifica a
s e n t e n ç a de H o r á c i o — Coelum non animum mutant, qui tans mare
currunt; — pois a e x p e r i ê n c i a m o s t r a q u e m u i t o s d e n t r e eles se t ê m
t o r n a d o p r o b o s e úteis ao E s t a d o , f u n d a n d o g r a n d e s casas e estabe-
lecimentos.

A civilização dos índios finalmente, esta grande obra, que faz,


m u i t o t e m p o , o objeto das votos dos b o n s b r a s i l e i r o s e desta Augusta
C â m a r a , a c a b a r á de e n c h e r o vazio q u e vai d e i x a r a abolição do trá-
fico de escravos. Só os b o s q u e s d a m i n h a P r o v í n c i a (a Província do
P a r á ) a p r e s e n t a m m a i s de 200 mil indígenas aptos p a r a todo o g ê n e r o
de t r a b a l h o e i n d ú s t r i a ; m a s cujos b r a ç o s t ê m sido infelizmente per-
d i d o s p a r a o E s t a d o p o r falta de u m b o m sistema de catequese e colo-
n i z a ç ã o , e talvez pelas falsas idéias q u e o r d i n a r i a m e n t e se f o r m a de
sua indolência ou i n c a p a c i d a d e intelectual. E u posso a f i r m a r q u e eles
são h a b i l í s s i m o s p a r a o c o m é r c i o e n a v e g a ç ã o ; q u e m u i t a s tribos, co-
m o p o r exemplo a dos M o n d u r u c u s , são excelentes p a r a a agricultura
( a p o i a d o ) , e suscetíveis, enfim, de todo o g ê n e r o de a p l i c a ç ã o ; pois
vê-se q u e no A r s e n a l e n a s fábricas, q u a s e sem ensino, eles l a v r a m ma-
d e i r a s e fazem todo o t r a b a l h o q u e se lhes i n c u m b e . (Apoiado). Não
será possível p o r t a n t o transformá-los em l a v r a d o r e s , artistas e m a r i n h e i -
80 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

ros, i n f i n i t a m e n t e m a i s úteis do q u e esses d e s g r a ç a d o s n e g r o s , de cuja


existência se faz d e p e n d e r a p r o s p e r i d a d e do comércio, i n d ú s t r i a e
marinha brasileira?

C o n t i n u a n d o o m e s m o ilustre o r a d o r as suas reflexões s o b r e o


c o m é r c i o dos n e g r o s , a v a n ç o u q u e a e s c r a v i d ã o n ã o p r o d u z i a a imo-
r a l i d a d e , c o m o g e r a l m e n t e se p e n s a .

Confesso, S r . P r e s i d e n t e , q u e é a p r i m e i r a vez q u e ouço tal pro-


posição! S e m p r e estive p e r s u a d i d o q u e a p a l a v r a e s c r a v i d ã o desperta
as idéias de todos os vícios e c r i m e s (apoiado); assim como q u e o
doce n o m e d e l i b e r d a d e d e s p e r t a as sensações e as idéias d e todas as
v i r t u d e s e de todos os b e n s ( g e r a l m e n t e a p o i a d o ) sempre entendi que
a e s c r a v i d ã o é u m estado violento q u e a b a t e o espírito, e m b o t a as fa-
c u l d a d e s do e n t e n d i m e n t o , p e r v e r t e o c o r a ç ã o , destrói o b r i o e toda
a e m u l a ç ã o d a v i r t u d e ; s e m p r e lastimei, finalmente, a sorte dos t e n r o s
m e n i n o s brasileiros q u e , n a s c e n d o e v i v e n d o e n t r e escravos, recebem
desde os seus p r i m e i r o s a n o s as funestas impressões dos contagiosos
exemplos desses seres degenerados; e oxalá q u e eu m e e n g a n a s s e !
O x a l á q u e fossem m a i s r a r o s os t r i u n f o s d a s e d u ç ã o e os n a u f r á g i o s d a
inocência. O x a l á q u e t a n t a s famílias n ã o tivessem d e p l o r a d o a i n f â m i a
e a v e r g o n h a e m q u e as t ê m p r e c i p i t a d o a i m o r a l i d a d e dos escravos!
(Apoiado). Convenho c o m o ilustre Deputado nos elogios q u e fêz
aos pretos e p a r d o s , m u i t o s dos q u a i s se fazem c r e d o r e s d a m a i o r es-
t i m a ; eu n ã o avalio os h o m e n s pela c ô r d a pele, m a s pelo seu com-
portamento e caráter; o escravo p o r é m não tem caráter; êle n ã o é
m a i s d o q u e u m cego i n s t r u m e n t o d a s vontades d e seu s e n h o r ; um
escravo virtuoso é u m prodígio na ordem moral. (Apoiado geral-
mente)

C u m p r e - m e , enfim, r e s p o n d e r a o s desejos m a n i f e s t a d o s pelo n o b r e


o r a d o r , d e q u e a N a ç ã o Brasileira n ã o fizesse T r a t a d o a l g u m com a s
p o t ê n c i a s e u r o p é i a s e se t o r n a s s e t ã o i n c o m u n i c á v e l c o m o a C h i n a . Se
esta idéia p o d e s e r admissível n o m e i o d e u m povo q u e t e m s a b o r e a d o
as d o ç u r a s d a civilização, é precioso a o m e n o s confessar q u e ela é in-
teiramente prematura. A C h i n a conta p a r a c i m a d e 2 0 0 milhões d e
h a b i t a n t e s e o Brasil c o n t a a p e n a s 4 m i l h õ e s d i s s e m i n a d o s p o r u m a
i m e n s a superfície. Deixemos, pois, q u e o Brasil t e n h a u m a p o p u l a ç ã o
DISCURSOS BRASILEIROS 81

s u p e r a b u n d a n t e e e n t ã o f a r e m o s c o n s t r u i r a nossa m u r a l h a de 5 0 0 lé-
g u a s de c o m p r i m e n t o ; p u b l i c a r e m o s leis severas c o n t r a o e u r o p e u que
tiver a o u s a d i a de p i s a r o nosso t e r r i t ó r i o ; e a d o t a r e m o s as belas insti-
tuições d o povo c h i n ê s ; t e r e m o s os nossos l e t r a d o s , os nossos m a n d a -
rmos, e o muito p a t e r n a l despotismo d o seu I m p e r a d o r . Até que
c h e g u e essa época, v a m o s c o n t i n u a n d o as nossas relações com os euro-
peus, q u e têm sido os nossos mestres e g u i a s n a s artes, n a s ciências,
e n a s m e m a s instituições l i b e r a i s ; este c o m é r c i o é, de certo, m a i s v a n -
tajoso q u e o dos selvagens africanos.

R e s t a - m e só falar da p e n a de p i r a t a r i a i m p o s t a pelo t r a t a d o em
q u e s t ã o e sinto, n a v e r d a d e , depois de t e r p a g o à m a g n â n i m a nação
b r i t â n i c a o justo t r i b u t o de louvor q u e m e r e c e a s u a filantropia e os
seus esforços a b e m d a h u m a n i d a d e , q u e eu m e veja c o n s t r a n g i d o a
d e s a p r o v a r a sua i n g e r ê n c i a na imposição de semelhante pena. É
m u i t o doloroso p a r a u m b r a s i l e i r o a m a n t e d a d i g n i d a d e d o seu p a í s ,
que, e n q u a n t o os corpos legislativos das o u t r a s n a ç õ e s d e l i b e r a m livre-
m e n t e s o b r e u m a t ã o i m p o r t a n t e m a t é r i a , só o Brasil se veja privado
desta p r e r r o g a t i v a e d i r e i t o inauferível, fazendo o sacrifício de sujeitar
os c i d a d ã o s brasileiros às p e n a s infligidas p o r u m a n a ç ã o estrangeira!
Reconheço, Sr. P r e s i d e n t e , q u e a querer-se abolir de boa-fé o i n f a m e
tráfico de escravos, n ã o h á talvez u m a m e d i d a m a i s eficaz, pois de
o u t r a m a n e i r a , serão ilusórias t o d a s as p r e c a u ç õ e s c o n t r a a fecunda
e desenfreada cobiça dos a r m a d o r e s ; m a s n ã o e r a ao g o v e r n o b r i t â n i c o
q u e c u m p r i a classificar delitos e estabelecer p e n a s c o n t r a os súditos de
u m a nação independente. Todavia, a comissão p o n d e r a n d o t u d o com
a m a i s s i s u d a e m a d u r a reflexão e r e c o n h e c e n d o pela n o t a d o M i n i s t r o
a triste posição d o G o v e r n o e n t r e dois g r a n d e s m a l e s ; v e n d o , p o r ou-
tra parte, que o tratado se a c h a v a concluído e ratificado, faltando
a p e n a s a a s s i n a t u r a d o M i n i s t r o b r i t â n i c o , n ã o d u v i d o u f i r m a r o seu
p a r e c e r pela f o r m a q u e se a c h a concebido, p o r e n t e n d e r q u e tais cir-
c u n s t â n c i a s n a d a m a i s i n c u m b i a a esta C â m a r a , s e g u n d o o § do A r t i g o
102 d a C o n s t i t u i ç ã o .

Eis a q u i o q u e eu t i n h a a dizer s o b r e esta m a t é r i a , protestando


com a q u e l a f r a n q u e z a e candura que me é própria que, ainda quando
o t r a t a d o exigisse a abolição d o tráfico j á e já, eu s u b s c r e v e r i a e a p r o -
v a r i a esta s a l u t a r m e d i d a c o m infinito gosto e r e c o n h e c i m e n t o .
R A M I Z GA L V Ã O (BENJAMIN FRANKLIN)

Discurso p r o n u n c i a d o em sessão solene no dia


11-8-1907 no Asilo Gonçalves de A r a ú j o .

E x m o . Sr. P r o v e d o r .

Minhas Senhoras.

Meus Senhores.

N a d a n o m u n d o vive e p r o s p e r a senão à s o m b r a d o a m o r . Correi


a série o r g â n i c a i n t e i r a e encontrá-lo-eis p o r t o d a a p a r t e e p r e s i d i n d o
aos destinos da v i d a . E x a m i n a i os a r c a n o s m a i s íntimos das ciências
q u e e s t u d a m os fenômenos da m a t é r i a , e a c h a r e i s em todos eles o p r e -
d o m í n i o visível, claro e irrefutável d a a t r a ç ã o e da a f i n i d a d e , q u e são
m e r o s sucedâneos do a m o r . Subi às regiões etéreas, o n d e os astros
colossais p e r c o r r e m e m ó r b i t a s infinitas a rota q u e a m ã o d o C r i a d o r
lhes i m p r i m i u , — subi n a s a s a s do p e n s a m e n t o , e vereis q u e os m u n d o s
n ã o se p r e c i p i t a m nos abismos i n c o m e n s u r á v e i s d o espaço, p r o d u z i n d o
a m a i s p a v o r o s a d a s catástrofes, antes g i r a m h a r m ô n i c o s e submissos
à lei s u p r e m a d a o r d e m , p o r q u e os d i r i g e u m a força misteriosa e so-
berana — a atração universal, outra forma do amor.

Que é de fato o r a d i a n t e a s t r o d o d i a , senão u m c o r a ç ã o que


a r d e p a r a , e m o n d a s c a r i n h o s a s de luz e calor, dispensar-nos o gozo
da vida? Q u e é a p á l i d a p r i n c e s a d a s noites s e n ã o u m a a l m a , q u e ,
a m o r o s a d a T e r r a , a segue de c o n t í n u o , m e r e n c ó r i a p o r q u e foi con-
d e n a d a ao a p a r t a m e n t o , l â n g u i d a e p l a n g e n t e p o r q u e n ã o p o d e a b r a ç a r
a sua a m a d a , m a s e m b e v e c i d a s e m p r e n a c o n t e m p l a ç ã o m u d a d o ser
que adora?
DISCURSOS BRASILEIROS 83

Percorra-se o mundo q u e habitamos, e cada página de sua história


será a c o n f i r m a ç ã o deste m e s m o p r i n c í p i o . A agulha magnética que
p r o c u r a o pólo e n ã o se desvia d o s e u N o r t e ; — o gorjeio d o p á s s a r o ,
q u e e m d e s c a n t e afetuoso seduz a c o m p a n h e i r a , e a s p l u m a s formosas
d e q u e se a r r e i a p a r a d e s l u m b r a r - l h e os o l h o s ; o colear da planta
volúvel, q u e foge d a s o m b r a d a m a t a e sobe, sobe, a p e g a n d o - s e aqui
e acolá à p r o c u r a d a luz solar p a r a desabotoar-se em flores; — a
Vallisneira spiralis, q u e vive s u b m e r s a e presa a o fundo das águas,
m a s , a d u l t a , e x p e d e longos pedicelos p a r a c e l e b r a r a o a r livre os seus
e s p o n s a i s ; todos o b e d e c e m à m e s m a lei indefectível.

S a i a m o s d o m u n d o d a m a t é r i a , e v e r e m o s a í , c o m o e m toda a
p a r t e , o p o d e r o s o móvel. O santo m i s s i o n á r i o q u e esquece os cômo-
dos d a v i d a p a r a i r a o f u n d o d o s sertões c o n q u i s t a r a s a l m a s pagas
p a r a o r e i n o d o E v a n g e l h o , a f r o n t a n d o u r z e s e feras, t o r r e n t e s e tem-
pestades, rios caudalosos e p e n e d i a s b r a v a s , a fome, a sede, a s enfer-
midades e a própria morte, — q u e é que o alenta e conduz?

A filha h e r ó i c a d e S ã o V i c e n t e d e P a u l a q u e e n t r a s e r e n a n u m
c a m p o de b a t a l h a , o n d e g e m e m feridos e s o l u ç a m m o r i b u n d o s , — q u e
visita descuidosa a m a n s a r d a l ô b r e g a d o pestífero o u a s salas d o hos-
pital c o a l h a d o d e c h a g a s a s q u e r o s a s , — q u e d e b r u ç a d a s o b r e o leito
dos e n f e r m o s c u r a a s feridas d o m a i s grosseiro dos h o m e n s como se
t r a t a r a d e u m i r m ã o q u e r i d o , e l h e r e a n i m a a c o r a g e m c o m o sorriso
angélico d e m ã e , — q u e é q u e a robustece e i n f l a m a ?

A v i r g e m c â n d i d a e bela q u e a b n e g a o s p r a z e r e s do mundo e
sacrifica todas a s delícias d a v i d a social p a r a p r o c u r a r n a solidão d o
claustro, e j u n t o dos a l t a r e s d o S e n h o r , a consolação s u p r e m a d a u n i ã o
com D e u s e os gozos inefáveis d a a l m a piedosa e contemplativa, —
que é que a domina?

Só e s e m p r e o a m o r , d e b a i x o d e m i l formas, m a s p o r toda a p a r t e
o amor.

N a s relações d o p r ó p r i o Céu c o m a débil h u m a n i d a d e , q u e h o u v e


e q u e h á s e n ã o p r o d í g i o s d e u m a m o r infinito, q u e m a l p o d e m o s com-
preender e valiar? D e u s , p a r a salvar-nos, m a n d a à T e r r a seu p r ó p r i o
Filho. Este, p a r a d a r c u m p r i m e n t o a o p r o g r a m a s o b r e n a t u r a l d a R e -
84 ANTOLOGIA D E FAMOSOS

d e n ç ã o , sujeita-se a p a d e c e r as abjeções d o P r e t ó r i o e os t o r m e n t o s do
Calvário; e na hora suprema d a a g o n i a , n ã o satisfeito de tamanhas
p r o v a s , oferece-nos sua d i v i n a M ã e p a r a M ã e dos h o m e n s i n g r a t o s , q u e
o haviam desconhecido, n e g a d o e v i l i p e n d i a d o com b r u t a l e indizível
vilania. Q u e foi t o d o esse d r a m a s u b l i m e senão u m d r a m a d e a m o r ?
Q u e é t o d a a nossa consoladora Religião senão u m p o e m a d e amor?

N ã o há, Senhores, não há na Terra senão esta grande palavra


p a r a explicar todas as c r i a ç õ e s generosas, as m a i s sublimes dedicações,
os m a i s i n g e n t e s sacrifícios q u e se fazem a b e m da criatura.

Esta casa n ã o é senão u m a o b r a d o a m o r . A o despedir-se da v i d a ,


u m m a g n â n i m o p o r t u g u ê s sentiu as a m a r g u r a s dos órfãos e dos p o b r e s ,
q u e , d e s a m p a r a d o s n o m u n d o e expostos à t e n t a ç ã o d o vício ou da
ociosidade, c e r t a m e n t e se p e r d e r i a m , p r i v a n d o a n a ç ã o de b r a ç o s hones-
tos e de m ã o s virtuosas. Êle, q u e fora bafejado n a v i d a p o r u m a série
de c i r c u n s t â n c i a s felizes, b e m v i r a o q u e p o r aí vai de seduções e de
p e r i g o s nessa sociedade, q u e o d e l í r i o m a t e r i a l i s t a ameaça subverter,
m i n a d a pela f e b r e dos p r a z e r e s fáceis e p r e p a r a d a p a r a todos os des-
falecimentos pelo m e n o s p r e z o de D e u s e da sua lei. Êle, q u e t r i l h a r a
s e m p r e o c a m i n h o d a h o n r a , b e m c o n h e c e r a como é custoso resistir ao
canto da sereia. A ambição fascinadora dos lucros rápidos, que a
t a n t o s c e g a ; a s e d u ç ã o d o luxo e dos gozos m a t e r i a i s , q u e a f r o u x a as
a l m a s , a t i r a n d o - a s a u m d e s p e n h a d e i r o o n d e é q u a s e impossível parar,
t u d o isso s e g r e d a p r o m e s s a s e n g a n a d o r a s ao o u v i d o da m o c i d a d e ines-
p e r t a e a desvia f u n e s t a m e n t e da e s t r a d a do dever, q u e é o c a m i n h o
ú n i c o e sadio p a r a a c o n q u i s t a do futuro. Êle, q u e l i d a r a m u i t o com
os h o m e n s d a c a r r e i r a afanosa do c o m é r c i o , desde a posição s u b a l t e r n a
até à m a i s elevada, e q u e de m a i s a m a i s p e r c o r r e r a o mundo em
v i a g e n s d e v e r d a d e i r o filósofo a e s t u d a r costumes e a v i d a í n t i m a de
diferentes povos, — êle b e m o b s e r v a r a q u e p o r t o d a a p a r t e os mes-
m o s p e r i g o s s u r g e m e as m e s m a s tentações c a t i v a m . Espírito atilado
e c o r a ç ã o de o u r o , g r a t o ao Brasil, q u e o a f a g a r a , e r e c o n h e c i d o ao
R i o de J a n e i r o , o n d e se fizera opulento, q u i s c o o p e r a r p a r a o e n g r a n -
d e c i m e n t o d a s e g u n d a p á t r i a , fazendo o b e m e j>restando às g e r a ç õ e s
novas esse e x t r a o r d i n á r i o benefício.
DISCURSOS BRASILEIROS 85

Q u e m êle foi, a q u i o está d i z e n d o : ANTÔNIO GONÇALVES D'ARAÚJO,


o glorioso p o r t u e n s e . T u d o isto é o b r a s u a , é p e n s a m e n t o seu, concre-
tizado pela distinta Irmandade do SS. Sacramento da Candelária,
executado e favorecido por beneméritos colaboradores brasileiros e
portugueses. U m t e m p l o q u e levantasse, s e r i a talvez m a i s d e v o t o ; u m
n o s o c ô m i o , m a i s s e n t i m e n t a l ; u m m o n u m e n t o , fora m a i s a r t í s t i c o ; u m a
U n i v e r s i d a d e , f u n d a ç ã o m a i s espetaculosa. M a s e m n a d a disso cogitou
A r a ú j o : deixou u m Asilo p a r a a e d u c a ç ã o profissional dos p o b r e z i n h o s ,
q u e é o b r a d e m a i s lustre e p r o v a de mais ardente caridade. Obra
d e m a i o r lustre, p o r q u e i l u m i n a r e e n g r a n d e c e r o futuro vale m a i s d o
que render preitos ao passado; obra de mais ardente caridade, porque
as c r i a n ç a s desvalidas s ã o as flores m o d e s t a s q u e r e c l a m a m m a i s a m o -
roso c a r i n h o : destas v e r g ô n t e a s v i r ã o á r v o r e s p a r a d a r s o m b r a .

D o s p a ç o s r e a i s e dos solares opulentos t ê m s a í d o e s a e m c i d a d ã o s


ilustres e d a m a s n o t a b i l í s s i m a s , n ã o é lícito n e g a r ; m a s , lá, t u d e c o n c o r r e
p a r a avultar-Ihes o m é r i t o e tapisar-lhes d e r o s a s o c a m i n h o . Ao po-
b r e z i n h o , p o r é m , q u e s a i u d a s faixas d a m i s é r i a , a o ó r f ã o desamparado
q u e p e r d e u n o b e r ç o o m a i o r d o s tesouros d a t e r r a , q u e m h á d e a b r i r
a e s t r a d a h o n e s t a d a v i d a ou f a c u l t a r a o talento e à v i r t u d e os meios
d e s u r g i r e m à t o n a d a s o c i e d a d e p a r a dar-lhes todos os frutos aben-
çoados? Q u e m , s e n ã o o a m o r de u m Gonçalves d e A r a ú j o , s e n ã o u m a
a l m a a b r a s a d a neste fogo santo q u e o p e r a milagres?

A q u i está, S e n h o r e s , p o r q u e h á sete a n o s m e n ã o c a n s o d e a p r e -
goar com sincero entusiasmo a benemerência desse h o m e m extraordi-
n á r i o , q u e t ã o alto s o u b e elevar o n o m e p o r t u g u ê s , l e g a n d o todo o seu
copioso m e a l h e i r o p a r a a e d u c a ç ã o d a i n f â n c i a desvalida desta c i d a d e .

S ã o tais corifeus d o b e m os q u e m e i n s p i r a m m a i s calorosos epi-


nícios. O s K u r o k i s e A i a m a s v e n c e m b a t a l h a s a s s o m b r o s a s , e eu n ã o
sinto p o r eles s e n ã o p a s m o m e s c l a d o d e h o r r o r . Os E d i s o n s , Curies
e K o r n s d e s c o b r e m v e r d a d e s científicas, d i l a t a n d o os h o r i z o n t e s d a in-
teligência h u m a n a , e eu p o r eles n ã o e x p e r i m e n t o s e n ã o alto apreço
e respeito. O s Gonçalves D i a s e A l e n c a r e s i n u n d a m d e flores p e r e g r i -
n a s o c a m p o d a s l e t r a s n a c i o n a i s , e eu a p e n a s m e e n c a n t o c o m as s u a s
o b r a s e celebro o seu formoso e omnímodo talento. Os Andradas e
Rio-Brancos nobilitam a Pátria sempre amada, trabalhando heróica-
86 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

m e n t e pela sua i n d e p e n d ê n c i a ou pela l i b e r t a ç ã o de u m a r a ç a injusta-


m e n t e o p r i m i d a , — e eu a p e n a s sinto p o r eles elevada estima. — Os
p a l a d i n o s d a c a r i d a d e , p o r é m , d a o r d e m de Gonçalves d ' A r a ú j o , esses
a c o r d a m e m m i m V a l m a a sensação a r d e n t e de u m a a d m i r a ç ã o q u e se
n ã o define, p o r q u e c h e g a às r a i a s d o culto.
Aqueles, os g r a n d e s g u e r r e i r o s , cientistas, poetas, artistas e polí-
ticos t i v e r a m ou t ê m todos, n a v i d a , o gozo d e suas p r ó p r i a s o b r a s , o
p r a z e r de seus triunfos, q u i ç á o e n c ô m i o dos c o n t e m p o r â n e o s e a gra-
t i d ã o da P á t r i a t r a d u z i d a em apoteoses, q u e s e m p r e falam à v a i d a d e ,
ao d e s v a n e c i m e n t o p r ó p r i o . Estes, p o r é m , os benfeitores d a h u m a n i d a -
de, q u e f u g i r a m d o ouropel d a s manifestações e dos aplausos, — que
n ã o o b e d e c e m a interesse de o r d e m a l g u m a capaz d e mover-lhes a libe-
r a l i d a d e , — q u e só t i v e r a m os impulsos d e u m c o r a ç ã o m a g n â n i m o e
p i e d o s o p a r a e n x u g a r l á g r i m a s de infelizes e salvar a s g e r a ç õ e s do fu-
turo, — estes q u e d e s i s t i r a m d e t o d a s as consolações e de todos os
p r a z e r e s , e s p e r a n d o a s o m b r a do t ú m u l o p a r a d e i x a r a d e s e r d a d o s da
sorte a luz e o c a r i n h o , o p ã o do e s p í r i t o e d o corpo, o a m o r d o tra-
balho que é u m talismã, o talismã sagrado da educação que é uma
força vencedora, — a h ! estes s ã o r a r o s , são m a i s q u e h u m a n o s , são
i m o r t a i s e divinos apóstolos d o a m o r . N ã o h á glorificações q u e lhes
b a s t e m , S e n h o r e s , n e m flores q u e sejam d i g n a s d e as l a n ç a r m o s a seus
pés. Quereis a prova da c a r i d a d e ? A n t ô n i o Gonçalves d ' A r a ú j o foi
até hoje o ú n i c o q u e neste p a í s estendeu p o r esta f o r m a extraordinária
o amor à pobreza.

D e s c a n s a e m p a z , filho q u e r i d o d a b o a t e r r a p o r t u g u e s a , e b r i l h a
e t e r n a m e n t e n a constelação s i n g u l a r dos eleitos d o S e n h o r ! A tua obra
i m o r r e d o u r a está de p é e, m e r c ê d e D e u s , v i n g a r á n o t e m p o , p o r q u e
a n o b r e r a ç a q u e povoou esta t e r r a b e n d i t a , a q u e l a d e q u e tu próprio
nasceste, e o povo b r a s i l e i r o q u e é seu filho m a i s dileto, t ê m ambos
p o r divisa a C a r i d a d e , a c o m p a i x ã o pelos infelizes.

Corre-nos n a s veias o s a n g u e generoso de Isabel — a s a n t a fun-


d a d o r a d o Asilo d e Santarém.

D e s c a n s a e m p a z , e fica certo de q u e n ã o faltará o m e l h o r dos


monumentos p a r a perpetuar o teu nome. A s telas, e m q u e o a r t i s t a
r e p r e s e n t a r o t e u perfil b o n d o s o e s i m p á t i c o , p o d e r á o t e m p o escure-
DISCURSOS BRASILEIROS 87

cê-las ou d i l a c e r á - l a s ; são símbolos fugazes q u e o b e d e c e m à contingên-


c i a d a m a t é r i a ; a i d a d e consome-os. T e u b u s t o e m b r o n z e , como qual-
quer mausoléu q u e se t e n h a de erguer sobre teu sepulcro, poderá
d e s a p a r e c e r p o r causas f o r t u i t a s ; m a i o r e s de certo f o r a m os p r i m o r e s
artísticos d a Acrópole e do F ó r u m , e levou-os a o n d a dos b á r b a r o s , a
selvageria d a s g u e r r a s . Estas m e s m a s p a l a v r a s frouxas e sem colorido,
q u e aliás dedico à t u a m e m ó r i a com a s i n c e r i d a d e de u m convicto,
assim como o u t r a s m a i s eloqüentes com q u e os m e u s sucessores h a j a m
de celebrar este g r a n d e dia, — essas t a m b é m h ã o de p a s s a r e pou-
q u í s s i m o ou n a d a v a l e r ã o ante a m a g n i t u d e de t e u n o m e .

H á , p o r é m , u m m o n u m e n t o m a i s valioso do q u e telas, efígies, obe-


liscos, p a n e g í r i c o s e p e d r a r i a s ; é a g r a t i d ã o i m e n s a das m ã e s q u e a q u i
e n c o n t r a v a m o a m p a r o e a salvação d e seus filhos — pedaços vivos
de seus c o r a ç õ e s ; é a g r a t i d ã o infinita destas m e s m a s c r i a n ç a s , q u a n d o
se fizerem h o m e n s ou s e n h o r a s , e t i v e r e m conhecido pela r u d e expe-
r i ê n c i a do m u n d o q u a n t o b e m lhes fizestes desinteressada, espontânea
e nobremente.

D e t o d a s estas c r i a t u r a s e d u c a d a s nos p r i n c í p i o s d a h o n r a e da
v i r t u d e , evolar-se-á um b r a d o de r e c o n h e c i m e n t o , a c o r d e e sonoroso,
que a posteridade ouvirá sempre, porque a cadeia mágica dos teus
benefícios n ã o se i n t e r r o m p e r á jamais. De milhares destes corações
h ã o de r o m p e r e m t o d o o t e m p o g r a t í s s i m a s l e m b r a n ç a s e amorosas
referências a o ato genial com q u e a b r i s t e c a m i n h o p a r a a m a i s feliz
das imortalidades, a imortalidade do Bem.

Esse é o m o n u m e n t o q u e te a u g u r o , Gonçalves d ' A r a ú j o , e o ú n i c o


q u e se possa dizer r e a l m e n t e d i g n o d a t u a g r a n d e z a , p o r q u e será feito
de u m a s u b s t â n c i a mística, i n c o r p ó r e a e incorruptível, — a gratidão
das almas cândidas e puras.

D e s c a n s a em p a z , i m o r t a l apóstolo do a m o r . A posteridade é tua!


TOBIAS BARRETO DE MENEZES

" I d é i a do D i r e i t o " — D i s c u r s o proferido em


colação de g r a u n a F a c u l d a d e de Eecife.

SENHORES DOUTORES: •— 0 discurso, q u e nesta ocasião m e i n c u m -


b e p r o f e r i r , tem t r a ç a d a nos Estatutos a f ó r m u l a do seu p r e p a r o .

É um discurso congratulatório, é uma cousa m u i t o simples, até


o n d e p o d e c h e g a r a s i m p l i c i d a d e de u m a c o m b i n a ç ã o b i n a r i a d e este-
r e ó t i p o s prolfaças pelo r e s u l t a d o feliz dos vossos esforços, e d e velhas
c o n s i d e r a ç õ e s , j á difíceis d e classificar em u m a o r d e m d e idéias s é r i a s ,
s o b r e a i m p o r t â n c i a do g r a u q u e a c a b a i s d e r e c e b e r e o uso q u e na
s o c i e d a d e deveis d e fazer d a s vossas letras.

C o m o vedes, é u m a q u e s t ã o d e ritual e eu t e n h o o b r i g a ç ã o de m e
c i n g i r a êle.

N ã o seria pois d e e s t r a n h a r q u e m e limitasse a d i z e r : eu vos feli-


cito, S r s . D o u t o r e s ; a i m p o r t â n c i a do g r a u , q u e vos foi conferido, m e -
di-a pela m a g n i t u d e dos esforços q u e êle vos custou, e o uso q u e t e n d e s
a fazer d a s vossas letras, d e t e r m i n a i - o v ó s m e s m o s , s e g u n d o os í m p e t o s
d o vosso talento e as i n s p i r a ç õ e s do vosso c a r á t e r .

N ã o seria d e e s t r a n h a r , q u e a isto m e limitasse, e desse e n t ã o p o r


findo o meu discurso. N e m h a v e r i a r a z ã o p a r a se m e a c u s a r d e estè-
r i l m e n t e conciso, p o r excesso d e respeito a u m a disposição d e lei.

Mas, S r s . D o u t o r e s , eu creio q u e n a p r ó p r i a m e n t e do legislador


n u n c a r e p o u s o u s e m e l h a n t e idéia, a i d é i a s i n g u l a r d e s e r e m todos aque-
les, q u e se a c h a m e n c a r r e g a d o s d a h o n r o s a m i s s ã o q u e h o j e m e c a b e ,
s e m p r e c o n d e n a d o s a e n t o a r o m e s m o h i n o , a r e c i t a r o m e s m o epita-
l â m i o , p o r esta espécie de noivado científico, como diria u m romântico
DISCURSOS BRASILEIROS 89

de a n t i g a d a t a , e m u m a p a l a v r a , c o n d e n a d o s a r e p e t i r em estilo de
brinde, as m e s m a s frases c o n s a g r a d a s , p a r a a c e n t u a r a i m p o r t â n c i a d e
u m fato q u e n i n g u é m contesta, e o v e r d a d e i r o uso de u m título que
todo o m u n d o s a b e q u a l seja.

Não, Srs. Doutores, n ã o foi, nem p o d i a ser este o intuito do


legislador.

E u o creio f i r m e m e n t e .

E de a c o r d o com esta c r e n ç a , a r r a s t a d o pelo espírito d a época, e m


n o m e d a s novas idéias, q u e v o a m de o u t r o s m u n d o s , e, b o m g r a d o ou
m a l g r a d o nosso, h ã o d e e n c o n t r a r a g a s a l h o em nossas cabeças, j u l g o ,
t a m b é m , a q u i , dever e x e r c e r u m a função s u p e r i o r ao modesto papel
eclesiástico de u m mestre de cerimônias.
A ocasião é solene, s i m ; m a s j u s t a m e n t e p o r isso ela a b r e c a m i -
n h o a a l g u m a cousa de m e n o s v u l g a r d o q u e u m a felicitação, a a l g u m a
cousa de m a i s elevado m e s m o d o q u e o g r a u q u e r e c e b e s t e s ; é a defesa
d a c i ê n c i a q u e professamos, e e m q u e a c a b a i s de ser d o u t o r a d o s , a
defesa q u e lhe devemos, e m relação ao juízo desfavorável que dela
a t u a l m e n t e se f o r m a , e m r e l a ç ã o aos a t a q u e s , de q u e ela é alvo> s e m
excluir t o d a v i a a confissão dos seus defeitos e a c r í t i c a dos seus desvios.
N a presente c o n j u n t u r a , bem quer me parecer que nenhum as-
s u n t o m e l h o r prestar-se-ia a f o r m a r o conteúdo d a m i n h a elocução, n e m
eu p o d e r i a a c h a r u m m o d o m a i s a p r o p r i a d o de congratular-me con-
vosco.

Se p o r é m estou e n g a n a d o , antecipo-me e m p e d i r desculpa d o que


possa o m e u discurso conter, n ã o p o r certo de a n ô m a l o e i n c o n v e n i e n t e ,
m a s p o r v e n t u r a de excêntrico e i n a d e q u a d o às c i r c u n s t â n c i a s do m o -
mento.

E n t r e t a n t o , p e r m i t i - m e u m a leve o b s e r v a ç ã o .

A i n d a hoje, Srs. D o u t o r e s , n a s bibliotecas de velhos claustros, en-


c o n t r a m - s e palimpsestos, o n d e se vê, p o r cima, desenhada a história
d e u m t a u m a t u r g o , a h i s t ó r i a de u m santo m i r a c u l o s o , q u e m o r r e u d e
p e n i t ê n c i a e m a c e r a ç ã o , ao passo q u e , p o r b a i x o , s o r r i e m serenos os
belos versos d a Ars Amandi de O v í d i o ; o n d e a p a r e c e , n a p a r t e supe-
r i o r , u m b r e v i á r i o , cheio de melancolia, repleto de a d o r a ç ã o , e, n a
90 ANTOLOGIA D E FAMOSOS

parte inferior, uma comédia aristofânica; em c i m a , depara-se-nos o


ó r g ã o , q u e a c o m p a n h a o de profundis, e logo e m b a i x o o velho A n a -
creonte, s e d u z i n d o l i n d a s m o ç a s ; em cima, t r a ç a m - s e as r e g r a s d a g r a n -
de a r t e de t o r t u r a r h e r e g e s , e e m b a i x o u m velho p a g ã o explica o capí-
tulo do a m o r p l a t ô n i c o . . . O r a , pois, Srs. D o u t o r e s : s e r i a caso p a r a
censurar que minhas palavras produzissem uma impressão semelhante?

É u m d i s c u r s o de duas vistas, se assim posso dizer, u m palimp-


sesto, se q u i s e r e m : p o r u m lado, o c u m p r i m e n t o exato de u m sacro
p r o g r a m a de festa, m a s t a m b é m , p o r o u t r o lado, a l g u m a cousa de m a i s
p r o f a n o , q u e fica fora do h o r i z o n t e de u m a solenidade a c a d ê m i c a ; por
u m lado, a face c a l m a de u m espírito submisso, q u e p o r a m o r d a o r d e m
reconhece e confessa de joelhos a imobilidade da terra, ou o pro-
gresso dos nossos estudos, m a s t a m b é m , p o r o u t r o lado, a feição tur-
b u l e n t a de u m r e b e l d e i n t r a n s i g e n t e , q u e n ã o h e s i t a e m p r o f e r i r o seu
— eppure se muove — e dizer ao m u n d o i n t e i r o : — n ó s estamos atra-
sados.

N ã o vos e s p a n t e i s ; comecemos pelo p r i n c í p i o .

N o s dias q u e a t r a v e s s a m o s , a esta h o r a d o nosso desenvolvimento,


q u e m , c o m o vós, S r s . D o u t o r e s , m e s m o à custa de t r a b a l h o e sacrifício,
é g r a d u a d o e m ciências j u r í d i c a s e sociais, vê-se assaltado, c o m o D a n t e
e m frente d a loba, p o r u m a q u e s t ã o s o m b r i a e i m p o r t u n a .
É a s e g u i n t e : existe r e a l m e n t e , temos n ó s , r e a l m e n t e , u m g r u p o de
ciências de tal n a t u r e z a ? E m face d o a v a n ç o i m e n s o , q u e levam todos
os outros r a m o s de c o n h e c i m e n t o s h u m a n o s , n ã o soa como u m a ironia
falar de u m a ciência j u r í d i c a , falar de u m a ciência social, q u a n d o n e m
u m a n e m o u t r a estão n o caso d e satisfazer a s e x i g ê n c i a s de u m ver-
dadeiro sistema científico? A q u e s t ã o é séria, S r s . D o u t o r e s , e t ã o
séria, q u e a m e s m a consciência, a m a i s l ú c i d a consciência d o p r ó p r i o
m e r e c i m e n t o , deixa-se a b s o r v e r e a p a g a r pelo s e n t i m e n t o d a dubiedade
d o título q u e se recebe.

N ã o h á negá-lo, isto é u m fato incontestável.

M a s o n d e b u s c a r a c a u s a desse f a t o ? Qual o motivo d a estrei-


teza e a c a n h a m e n t o de vistas q u e a i n d a se n o t a n a intuição d o m o d o
de compreendê-lo e apreciá-lo? Qual a razão, em suma, por que a
DISCURSOS BRASILEIROS 91

ciência d o d i r e i t o c o r r e o risco de ser classificada n o meio dos expe-


dientes grosseiros, d e t o r n a r - s e uma ciência duramente nominal que
pode dar o pão, porém não dá honra a ninguém, ou, como diz H.
Post, u m a i r m ã d a teologia, q u e se l i m i t a a folhear o Corpus júris,
como esta folheia a Bíblia? Existe a o certo u m a razão; esta razão
v e m d e m a i s alto. N ó s v a m o s vê-la.

H á n o e s p í r i t o científico, S r s . D o u t o r e s , u m a t e n d ê n c i a irresistível
p a r a d e s p i r os fenômenos, o q u e vale dizer, p a r a d e s p i r o m u n d o in-
teiro, q u e é u m g r a n d e f e n ô m e n o coletivo, d a q u e l a r o u p a g e m poética,
em q u e a i m a g i n a ç ã o costuma envolvê-los.

A s s i m ao a n t i g o g r e g o que ouvia g e m e r a d r í a d e dos bosques,


quando u m a árvore tombava, a natureza devia mostrar incomparavel-
m e n t e m a i s cheia de poesia do q u e ao h o m e m de hoje, q u e t r a t a de
c u l t i v a r e c o n s e r v a r as florestas, s e g u n d o as leis d a e c o n o m i a florestal
e os p r i n c í p i o s da dendrologia.

E a i n d a q u e se possa l a s t i m a r , a m u i t o s respeitos, a despoetiza-


ção dos f e n ô m e n o s n a t u r a i s , p o r meio d a ciência, c o n t u d o não se deve
esquecer q u e o d o m í n i o do h o m e m s o b r e a m e s m a n a t u r e z a só se t e m
r e f o r ç a d o e e n g r a n d e c i d o n a p r o p o r ç ã o , e m q u e êle t a m b é m t e m ces-
sado de o l h a r p a r a ela com os olhos d o p o e t a .

B e m p o d e m u i t a s vezes o i n d a g a d o r sentir até confranger-se-lhe


o c o r a ç ã o , q u a n d o se vê o b r i g a d o a d e s t r u i r b e l a s ilusões e c o n t r i b u i r
com as suas r u í n a s p a r a u m a m a i s c l a r a i n t u i ç ã o d o m u n d o .

Neste t r a b a l h o êle p o d e até c h e g a r ao p o n t o de a r r e p e n d e r - s e da


s u a tarefa, q u a n d o a p l i c a os seus processos ao m a i s soberbo e gran-
dioso espetáculo q u e a n a t u r e z a desenrola aos nossos olhos, o espetáculo
d o céu d a n o i t e c a r r e g a d a d e estrelas cintilantes, pois q u e a ciência
n ã o t e m m e d o de r o u b a r a o p r ó p r i o céu a s u a poesia e r e d u z i r a pas-
m o s a beleza d o u n i v e r s o à c e g a m e c â n i c a d a s forças n a t u r a i s .

M a s n ã o é lícito r e a g i r c o n t r a essa t e n d ê n c i a , q u e é c a r a c t e r í s t i c a
d o espírito científico, e m cuja frente c a m i n h a m a d e v a s t a ç ã o e a m o r t e .

A q u i está, S r s . D o u t o r e s , o s e g r e d o d o fato q u e l a s t i m a m o s .
92 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

Q u a n d o o h o m e m da ciência a t u a l cessou de a f a g a r m a i s de u m a
ilusão de a n t i g o s t e m p o s ; quando o homem d a ciência atual cessou
de olhar, com os olhos d e p o e t a p a r a m u i t a cousa do céu, e p a r a m u i t a
cousa d a t e r r a , q u a n d o êle j á n ã o se d e m o r a n e m m e s m o , p o r exemplo,
e m c o n t e m p l a r a beleza d a lua, d i a n t e d a q u a l , com seus fulgores e
seus desmaios, sente-se t e n t a d o a d i z e r : deixa-te de coquetices, eu te
conheço, carcassa, e aos r e q u e b r o s e l a n g o r e s d a estrela m a t u t i n a , é
b e m capaz de r e d a r g u i r s i z u d o : n e m t a n t o , c o m o p a r e c e s , pois q u e fi-
cas p r e t a , p e q u e n i n a , insignificante, p a s s a n d o pelo disco do sol; em
uma palavra, quando o homem da ciência a t u a l só pisa e m terreno
firme, e t o d a v i a p o d e viver como diz T y n d a l l , n o meio de idéias, e m
p r e s e n ç a das q u a i s d e s a p a r e c e a fantasia de M i l t o n , o h o m e m d o di-
reito, o h o m e m d a ciência j u r í d i c a p a r e c e q u e n ã o sabe disso...

Tudo quebrou o primitivo envólucro poético; só o direito não


q u e r sair da s u a casa mitológica.

A despeito d e t o d a s as c o n q u i s t a s d a o b s e r v a ç ã o , a despeito de
todos os d e s m e n t i d o s , q u e a e x p e r i ê n c i a t e m d a d o a velhas hipóteses
e conjecturas fantásticas, p a r a a ciência j u r í d i c a é c o m o se n a d a exis-
tisse.

A concepção do direito, como entidade metafísica, sub specie


aeterni, a n t e r i o r e s u p e r i o r à f o r m a ç ã o d a s sociedades, c o n t e m p o r â n e o ,
p o r t a n t o , dos mamutes e megatérios, q u a n d o aliás a v e r d a d e é q u e êle
n ã o v e m de tão longe, e q u e a h i s t ó r i a d o fogo, a h i s t ó r i a dos vasos
c u l i n á r i o s , a h i s t ó r i a d a c e r â m i c a e m geral, é m u i t o m a i s a n t i g a do
q u e a h i s t ó r i a do d i r e i t o ; essa concepção r e t r ó g r a d a , q u e n ã o p e r t e n c e
a o nosso t e m p o , c o n t i n u a a entorpecer-nos e esterilizar-nos.

A í está, S r s . D o u t o r e s , o s e g r e d o do descrédito em q u e c a i u a
c i ê n c i a q u e cultivamos.

É p r e c i s o levar a convicção ao â n i m o dos opiniáticos.

N ã o se c r a v a o ferro n o â m a g o d o m a d e i r o com u m a só p a n c a d a
do martelo.

É m i s t e r b a t e r , b a t e r cem vezes, e cem vezes r e p e t i r : o direito


n ã o é u m filho do céu, é s i m p l e s m e n t e um fenômeno histórico, um
DISCURSOS BRASILEIROS 93

produto cultural da humanidade. Serpens nisi serpentem comederit,


non fit draco, a serpe q u e n ã o d e v o r a a serpe, n ã o se faz d r a g ã o ; a
f o r ç a q u e n ã o vence a força, n ã o se faz d i r e i t o ; o direito é a f o r ç a
que matou a própria força.

E u b e m sei, Srs. D o u t o r e s , q u a n t o esta d o u t r i n a fere o u v i d o s p o u c o


h a b i t u a d o s a u m a tal o r d e m de i d é i a s .

M a s o q u e dificulta a sua compreensão, é justamente a mesma


c i r c u n s t â n c i a q u e t o r n a difícil, exempli gratia, c o m p r e e n d e r o pensa-
m e n t o c o m o a t r i b u t o m a t e r i a l , c o m o função do cérebro. Quando se
fala em m a t é r i a , e m vez de se p e n s a r n a s suas m a i s altas fenomeniza-
ções, em vez de se p e n s a r , p o r e x e m p l o , n a m a t é r i a de q u e o sol é
feito, n a m a t é r i a de q u e é feito u m l i n d o cravo, u m r u b r o e fresco
l á b i o feminino, pensa-se ao c o n t r á r i o . . . n u m p e d a ç o de p e d r a bruta,
ou m e s m o n a l a m a q u e se tem d e b a i x o dos p é s ; e r e a l m e n t e n ã o é
possível q u e a inteligência r e s i d a em semelhantes c o i s a s . . .

D a m e s m a f o r m a q u a n d o se fala e m força, em vez de se p e n s a r


n o conceito capital de t o d a s as ciências, n a i d é i a genetrix de t o d a a
filosofia, p e n s a - s e . . . n u m a força de polícia, às o r d e n s de u m delegado,
c e r c a n d o i g r e j a s p a r a fazer eleições; e e n t ã o . . . quem pode admitir
q u e o direito seja isso ? . . . Ora!. . . É preciso q u e nos elevemos u m
pouco mais acima.

Assim como, de todos os m o d o s possíveis de a b r e v i a r o c a m i n h o


e n t r e dois p o n t o s dados, a l i n h a r e t a é o m e l h o r ; assim como, de todos
os m o d o s i m a g i n á v e i s de u m corpo g i r a r em t o r n o de o u t r o corpo, o
círculo é o m a i s r e g u l a r , assim t a m b é m , de todos os m o d o s possíveis
d e coexistência h u m a n a , o d i r e i t o é o m e l h o r m o d o .

T a l é a c o n c e p ç ã o q u e está de a c o r d o com a i n t u i ç ã o monística


do m u n d o . P e r a n t e a consciência m o d e r n a , o d i r e i t o é o modus vi-
vendi, é a pacificação d o a n t a g o n i s m o das forças sociais, da mesma
f o r m a q u e , p e r a n t e o telescópio m o d e r n o , os sistemas p l a n e t á r i o s são
t r a t a d o s de p a z e n t r e as estrelas.

S r s . D o u t o r e s , n a concisa e bela c a r t a em resposta à q u e lhe di-


r i g i r a o c o r p o docente desta F a c u l d a d e , o professor Holtzendorfí nos
diz q u e , se b e m c o m p r e e n d e u o seu a m i g o Bluntschli, este t i v e r a em
94 ANTOLOGIA DE FAMOSOS

m e n t e a l g u m a coisa q u e êle p o d i a d e s i g n a r pelo n o m e d e Cosmos do


direito e da moral.

Magnífica expressão!

H á r e a l m e n t e u m Cosmos d o d i r e i t o ; m a s este, n ã o m e n o s do q u e
o Cosmos físico, é u m p r o d u t o d a lei d o fieri, d a lei d o desenvolvi-
m e n t o c o n t í n u o ; e assim como n o m u n d o m a t e r i a l é p r e s u m í v e l q u e
exista a p e n a s u m a p e q u e n a p a r t e , e m q u e a m a t é r i a j á chegou a o seu
estado d e e q u i l í b r i o , assim t a m b é m n o Cosmos d o d i r e i t o só h á u m a
p a r t e d i m i n u t a , e m q u e as forças se a c h a m e q u i l i b r a d a s , e não têm
m a i s necessidade d e l u t a r .

O l h a d a p o r este lado, a p r e c i a d a desse p o n t o d e vista, a ciência do


d i r e i t o r e m o ç a e torna-se d i g n a d a s nossas m e d i t a ç õ e s .

N e m estas idéias são d e t o d o e s t r a n h a s .

A concepção m o n í s t i c a do d i r e i t o j á existia e s b o ç a d a n o pensa-


m e n t o d e Vico.

Não é q u e e u opine com o chauvinista italiano, professor Ber-


t r a n o S p a v e n t a , p a r a q u e m Vico é il vero precursore di tutta VAlle-
magna, m e s m o p o r q u e p o d e r i a s u c e d e r q u e os a l e m ã e s m e p r o v a s s e m
q u e três q u a r t o s d a r i q u e z a d e Vico p r o v i e r a m de Leibnitz; mas é
certo q u e n o a u t o r d a scienza vecchia, h o u v e c o m o q u e u m a prefigu-
r a ç ã o d o j u r i s t a m o d e r n o , d o j u r i s t a , c o m o êle deve ser, i n d a g a d o r e
filósofo, capaz d e utilizar-se d e t u d o q u e serve à s u a c a u s a , desde as
observações a s t r o n ô m i c a s de u m barão d u P r e l , a t é as m i n u d ê n c i a s
naturalistas de u m Charles Darwin.

É s o b r e isto, S r s . D o u t o r e s , q u e ouso d e p r e f e r ê n c i a chamar a


vossa a t e n ç ã o .

Convençamo-nos d a n e c e s s i d a d e d e t o m a r o u t r o s c a m i n h o s . Para
isso é m i s t e r estudar, como p a r a isso é m i s t e r ensinar. .. N o v o sis-
t e m a d e estudos, novo sistema d e e n s i n o .

E r n e s t o R e n a n disse u m a vez q u e , pelos vícios do ensino s u p e r i o r ,


a F r a n ç a c o r r i a o p e r i g o d e t o r n a r - s e u m povo de redatores, e quase
ao m e s m o t e m p o M a r k P a t t i s o n , chefe d o p a r t i d o r e f o r m i s t a d e O x f o r d ,
DISCURSOS BRASILEIROS 95

l a s t i m a v a p o r sua vez q u e as U n i v e r s i d a d e s d a Inglaterra parecessem


só q u e r e r p r o d u z i r escritores de artigos de fundo.

P o i s b e m ; é b o m q u e confessemos: pelo sistema q u e nos rege, n ó s


n ã o c o r r e m o s risco, n e m de u m a , n e m d e o u t r a coisa, p o r é m de coisa
p i o r : é d e t o r n a r m o - n o s u m povo de advogados, u m p o v o de chica-
nistas, de fazedores de petição, sem c r i t é r i o , sem ciência, sem ideal,
pois q u e nos c a b e e m m a i o r escala o q u e Rocco de Z e r b i disse da s u a
I t á l i a : Uidealismo non ha presa in questo paese di avvocati.

E a q u i , S r s . D o u t o r e s , n ã o posso o b s t a r a i n v a s ã o d a r e m i n i s c ê n -
c i a d o seguinte passus histórico:

E r a n o a n o de 1559. Ocupava a cadeira pontificai o terrível


velho, como diz u m cronista d a época, — tutto nervo con poca carne,
9
o célebre e genial P a u l o I V . No dia l d e j a n e i r o , tivera l u g a r em
Roma, na casa de A n d r é a Lanfranchi, secretário do duque de Pa-
gliano, u m a e s p l ê n d i d a ceia, e m q u e t o m a r a m p a r t e , além de outras
n o t a b i l i d a d e s d o t e m p o , o C a r d e a l I n n o c e n z o dei M o n t e , q u e fora cria-
d o de J ú l i o I I I , e o C a r d e a l Cario Caraffa, s o b r i n h o do pontífice.

Este último comensal, q u e se a p r e s e n t a v a à ceia, c i n g i d o de es-


p a d a , vestido de cavaleiro, t r a v a r a aí m e s m o u m a l u t a s a n g r e n t a , por
motivos de c i ú m e , p r o v o c a d o pela bela r o m a n a , m a d o n a M a r t u c c i a , c o m
o fidalgo napolitano Marcello Capece. O fato causara escândalo, e
t i n h a c h e g a d o até aos ouvidos do p a p a . Cinco dias depois, P a u l o IV
a p a r e c e u n a sessão d a i n q u i s i ç ã o , a i n d a m a i s terrível q u e de c o s t u m e ,
e em longo, tempestuoso discurso, profligou os a b u s o s d a I g r e j a , mas
sem p r o n u n c i a r o n o m e de seu s o b r i n h o !

A o C a r d e a l dei M o n t e êle a m e a ç o u de a r r a n c a r - l h e o b a r r e t e ver-


m e l h o , e concluiu b r a d a n d o u m a e m a i s vezes, p e r a n t e a assembléia
a t ô n i t a e silenciosa: r e f o r m a ! reforma!... Santo Padre, respondeu-
-lhe afouta e a l u s i v a m e n t e o C a r d e a l P a c h e c o , r e f o r m a , sim, m a s a re-
f o r m a deve c o m e ç a r p o r n ó s m e s m o s .

É assim, S r s . D o u t o r e s ! . . . É assim que quando ouço repetir,


c o m o se repete c a d a instante, q u e o ensino a c a d ê m i c o está d e todo
t r a n s v i a d o , p o r q u e de todo t a m b é m está p e r d i d a a f a c u l d a d e de estu-
d a r , e q u e p o r t a n t o é u r g e n t e , é u r g e n t í s s i m a u m a r e f o r m a r a d i c a l , eu
96 ANTOLOGIA DE FAMOSOS

me lembro do Cardeal Pacheco, e tenho vontade de responder com


êle: r e f o r m a , s i m , S a n t o P a d r e , m a s n ó s somos os p r i m e i r o s a t r a t a r
de r e f o r m a r - n o s ; somos os p r i m e i r o s q u e devemos m u n i r - n o s d e abne-
g a ç ã o e c o r a g e m , t a n t o q u a n t o h a v e m o s mister, d e c o r a g e m e a b n e g a -
ção p a r a despirmo-nos d a s nossas becas, m o f a d a s d e teorias caducas,
e tomarmos traje novo. Releva dizer à ciênca v e l h a : r e t i r a - t e ; e à
ciência nova: entra, moça. D a r w i n i s t a ou h a e c k e l i a n a , pouco nos im-
porta, o que queremos é a verdade. A s F a c u l d a d e s n ã o são s o m e n t e
estabelecimentos d e i n s t r u ç ã o , m a i s a i n d a e p r i n c i p a l m e n t e , c o m o diz
H e n r i q u e von Sybel, v e r d a d e i r o s l a b o r a t ó r i o s , oficinas d e ciência. É
p r e c i s o t a m b é m p e n s a r p o r nossa conta. Eis, a í , t u d o .

A g o r a vós, S r s . D o u t o r e s , ao concluir, aceitai u m conselho de


amigo. N ã o a d o r m e ç a i s s o b r e os louros, m a s t r a b a l h a i , c o n t i n u a i a
trabalhar, e trabalhar somente n a direção do futuro.

Q u a n t o a vós, especialmente a vós, S r . D r . H e r m e n e g i l d o , vós q u e


p o r meio d e escritos, q u e são outros t a n t o s atos, o u t r a s t a n t a s afirma-
ções d o vosso belo talento, j á tendes d a d o p r o v a de pertencerdes à
g r a n d e família dos t r a b a l h a d o r e s v a l e n t e s ; vós q u e a i n d a t ã o moço,
j á tivestes ocasião d e h a u r i r o cálice a m a r g o d a injustiça dos h o m e n s ,
deveis estar satisfeito: o vosso m é r i t o foi r e c o n h e c i d o . T r a t a i a g o r a só
de elevar-vos e e n g r a n d e c e r - v o s m a i s e m a i s , p a r a q u e assim possais
melhor compreender os h o m e n s e melhor perdoar-lhes as fraquezas.
Nada mais. Sede felizes.

N O T A DE SÍLVIO ROMERO: "Não conheço, em língua nenhuma, uma


oração acadêmica mais formosa do que esta, e mais profunda, ao mes-
mo tempo. E quando algum exagerado perguntar, como já houve quem
perguntasse, •— que ficará no futuro de Tobias B a r r e t o ? . . . fácil será
responder: ficará, acima de tudo, a sua ação, o seu exemplo, e, depois,
ficarão suas poesias, seus discursos, seus belos ensaios de crítica".
TOBIAS BARRETO DE MENEZES

"Projeto de u m Partenogógico" — Discurso pro-


ferido em 1879, n a Assembléia de Pernambuco.

O S R . TOBIAS B A R R E T O : — N ã o sei, S r . P r e s i d e n t e , se a dissimu-

l a ç ã o é u m a b o a q u a l i d a d e p o l í t i c a ; m a s e u n ã o posso d i s s i m u l a r : o
p r o j e t o q u e a p r e s e n t e i e q u e se discute, é u m daqueles q u e p a r e c e m
d e a n t e m ã o c o n d e n a d o s à m o r t e p r e m a t u r a , p o r q u e êle t e m p o r f i m
a. r e a l i z a ç ã o d e u m a n o v i d a d e , e n ó s n ã o estamos m u i t o habituados
a a c e i t a r d e b o m g r a d o , s o b r e t u d o n o s d o m í n i o s d a v i d a p ú b l i c a , os
t e n t a m e s d e c a r á t e r novo, q u e envolvem, s e m p r e , u m a ousadia, q u e
i m p o r t a m sempre u m a invasão arriscada no terreno d o desconhecido.
N ã o serei e u q u e m possa n e g a r q u e o p r o j e t o e m discussão está real-
m e n t e n o caso de p r o v o c a r m a i s d e u m a t a q u e , m a i s d e u m a contra-
d i ç ã o , a t é d a p a r t e daqueles q u e n ã o se d e i x a m s o m e n t e levar p o r
i d é i a s p r e c o n c e b i d a s , d a p a r t e dos poucos espíritos, q u e n ã o t r a z e m ,
c o m o d i r i a N a t h a n , o sábio, o s e u s a q u i n h o d e v e r d a d e s feitas e con-
t a d a s , a l é m d a s q u a i s , t u d o o q u e p a s s a é falsa m o e d a , é coisa n u n c a
vista, p a r a d o x a l o u a b s u r d a . D o l a d o desses mesmos, q u e assim n ã o
p e n s a m , o projeto está n o caso de suscitar i m p u g n a ç õ e s ; m a s isto só
p e l a c i r c u n s t â n c i a d e q u e êle, e m m a i s d e u m ponto, revela e t r a i a
inaptidão d a m ã o q u e o elaborou. Nesta única circunstância esgo-
tam-se os motivos razoáveis d a oposição, q u e p o r v e n t u r a êle possa des-
p e r t a r ; c o m o t a m b é m , i m p o r t a dizê-lo, é só p o r este l a d o q u e e u teria
justos receios de e m p e n h a r - m e e m q u a l q u e r luta, n a s u a sustentação,
se comigo n ã o estivessem, c o m o seus co-assinatários, alguns distintos
talentos, q u e m e l h o r d o q u e eu, p o d e r ã o m o s t r a r as v a n t a g e n s p o r êle
oferecidas. N ã o hesito, pois, e m a s s e g u r a r q u e , fazendo-se abstração
d a f o r m a , lacunosa e imperfeita, o projeto e n c e r r a n o seu fundo a sa-
98 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

tisfação de u m a das m a i s u r g e n t e s necessidades d a p r o v í n c i a , a q u a l é


sem dúvida a necessidade de i n s t r u ç ã o , e m g e r a l e particularmente,
f e m i n i n a , i n s t r u ç ã o e m m a i s alto g r a u e m e l h o r e s meios, d o q u e p r e -
sentemente existe. O projeto não tem e m vista inaugurar na pro-
v í n c i a do d o m í n i o das blue stocking ou d a s précieuses ridicules, mas
simplesmente a b r i r c a m i n h o e n t r e n ó s , à solução lenta e g r a d u a l de
u m a das m a i s graves questões d a a t u a l i d a d e : a elevação do nível inte-
lectual d a m u l h e r , ou, se assim posso dizer, a p u r i f i c a ç ã o , p e l a luz, d a
a t m o s f e r a em q u e ela g i r a .

E p a r a d e m o n s t r a r , S r . P r e s i d e n t e , a u t i l i d a d e d a coisa c o m o p r i -
m e i r o s i g n a t á r i o do projeto, eu n ã o t e n h o necessidade de altear o co-
turno, lançar m ã o da harpa romântico-revolucionária e entoar u m canto
ao belo sexo. N ã o hei m i s t e r de dizer com O l í m p i a de Gouges, u m a
célebre d e c a p i t a d a d e 9 3 : se a m u l h e r t e m o d i r e i t o de s u b i r ao cada-
falso, ela deve t e r i g u a l m e n t e o direito d e s u b i r à t r i b u n a ; o que é
d e certo u m a bonita aspiração, mas não deixa de ser também um
pedido exagerado. E t ã o p o u c o t e n h o necessidade de colocar-me no
p o n t o de vista d o emancipacionismo russo e a m e r i c a n o p a r a reclamar,
e m favor d a s m u l h e r e s , o exercício das funções, q u e elas a i n d a não
podem exercer; para fazer, em seu n o m e , exigências extravagantes,
q u e se c u l m i n a m n a p r e t e n s ã o e x t r e m a , n ã o só de u m a i g u a l d a d e de
direitos como até d e i g u a l d a d e n o t r a j e . Nem tomarei por norma ó
grito de a l a r m a d a s m a i s ilustres r e p r e s e n t a n t e s d o r a d i c a l i s m o femi-
n i n o , as P a u l i n a s Davis, as L u c r é c i a s Mott, Elisabetes S t a n t o n , e n ã o
r a r a s o u t r a s a g i t a d o r a s do t e m p o . N a d a disso é o q u e nós q u e r e m o s .

A p r e t e n s ã o c o n t i d a n o projeto é b e m diferente, m u i t o simples e


m o d e s t a : ela i m p o r t a m e n o s u m a h o m e n a g e m aos e n c a n t o s da mulher
do q u e u m a séria a t e n ç ã o p r e s t a d a ao b e m c o m u m , a o interesse g e r a l ,
ao p r o g r e s s o e desenvolvimento d a sociedade em q u e vivemos.

Se eu tivesse de filiar a m i n h a idéia n a l g u m p r i n c í p i o m a i s ele-


v a d o , n ã o filiá-la-ia p o r certo neste ou n a q u e l e a r r o u b o d e s o n h a d o r ,
mas numa verdade prática, belamente expressa por um homem prá-
tico. F r e d e r i c o Diesterweg, u m notável espírito a l e m ã o , o qual, com
Pestalozzi e Froebel, é o t e r c e i r o n a série dos g r a n d e s p e d a g o g o s da
i d a d e m o d e r n a , se e x p r i m e deste m o d o : A l i b e r d a d e d o povo e a feli-
DISCURSOS BRASILEIROS 99

c i d a d e d o povo, p e l a c u l t u r a d o povo n ã o p o d e m ser c o n s e g u i d a s p o r


m e i o d a i n s t r u ç ã o p a r c i a l , m i n i s t r a d a a u m só sexo.

E i s o q u e é incontestável, e p o s s u í d o d e tal v e r d a d e é q u e e u ouso


confiar q u e o projeto não parecerá indigno da a t e n ç ã o desta casa.
T r a t a - s e nele d a c r i a ç ã o d e u m estabelecimento d e i n s t r u ç ã o pública;
t a n t o b a s t a , creio eu, p a r a a t r a i r a s i m p a t i a e a d e s ã o d e todos. Mas
h á u m a circunstância peculiar e quase estranha; é d e ser u m esta-
b e l e c i m e n t o d e i n s t r u ç ã o p ú b l i c a s u p e r i o r f e m i n i n a ; p o d e r á ela influir
p a r a denegar-se a m e d i d a p r o p o s t a ? É d o c e e s p e r a r q u e n ã o ; e as-
sim o espero.

Julgando-me dispensado, Sr. Presidente, d e entrar em apreciações


s o b r e a m a i o r o u m e n o r c a p a c i d a d e d a m u l h e r p a r a o cultivo inte-
lectual, eu t e n h o para mim, c o m o v e r d a d e claríssima, q u e u m dos
m a i o r e s e m b a r a ç o s , c o m q u e l u t a a civilização, é a i g n o r â n c i a despro-
porcional da bela metade d e gênero h u m a n o ; ignorância que, por
c ú m u l o de infelicidade, a o s olhos d e u n s a i n d a é u m a coisa indife-
r e n t e , aos olhos d e o u t r o s u m a coisa d e s a g r a d á v e l , sim, m a s afinal fa-
t a l m e n t e d e t e r m i n a d a p o r lei d a n a t u r e z a , e a t é a o s olhos d e m u i t o s . . .
uma graça d e m a i s , u m a d o r n o poético, u m a t r a t i v o l í r i c o ! . . Não
terá entretanto chegado p a r a nós também a ocasião de a c a b a r com
estes e r r o s de velhas e r a s ? Se a s m u l h e r e s são seres h u m a n o s , que
têm u m a missão n a s o c i e d a d e e deveres a c u m p r i r p a r a c o m ela, se,
como seres h u m a n o s , a s m u l h e r e s t r a z e m consigo tesouros espirituais
q u e d e v e m ser a p r o v e i t a d o s e desenvolvidos, é p r e c i s o todo o escrú-
pulo d e u m a freira, ou t o d a a lógica d e um frade, para entender
q u e estabelecimentos d a o r d e m d o q u e se a c h a i n d i c a d o n o projeto,
n ã o p a s s a m de a p ê n d i c e s ou excrescências inúteis, q u a n d o eles são, pelo
c o n t r á r i o , c o m p l e m e n t o s indispensáveis d a e d u c a ç ã o total de u m povo
civilizado, ou m e s m o civilizável, se n ã o é q u e n ó s b r a s i l e i r o s perten-
cemos à q u e l a classe d e povos crepusculares, d e q u e fala H . Klencke,
povos q u e v i v e m n o lusco e fusco p e r p é t u o de u m a s e m i c u l t u r a b a n a l ,
; e m s a b e r o q u e são n e m o q u e d e v e m ser, a t a c a d o s d a m a i s grave
das psicoses, a fotofobia intelectual, o m e d o d a luz, o h o r r o r de cla-
ridade.

Já é t e m p o , m e u s senhores, d e i r m o s c o m p r e e n d e n d o q u e o belo
í ç x o em P e r n a m b u c o , b e m como n o Brasil inteiro, t e m d i r e i t o à m a i o r
100 ANTOLOGIA D E FAMOSOS

s o m a de i n s t r u ç ã o d o q u e lhe tem sido até hoje fornecida pelos pode-


res públicos. A escassa i n s t r u ç ã o e l e m e n t a r , q u e a p r o v í n c i a propor-
c i o n a às suas filhas, n ã o satisfaz, n ã o p o d e satisfazer as exigências da
época. A c h a m a d a s e c u n d á r i a , q u e é d a d a nos colégios p a r t i c u l a r e s ,
com r a r í s s i m a s exceções, está a b a i x o de q u a l q u e r c r í t i c a ; e a s u p e r i o r
é totalmente nula. P o r u m a velha m e t á f o r a consagrada, costuma-se
dizer q u e a i n s t r u ç ã o é o alimento do espírito. Dou que seja; mas
t a m b é m é força confessar q u e esse alimento, pelo q u e toca às mulhe-
res, a i n d a se l i m i t a a p o b r e s m i g a l h a s c a í d a s d a p a r c a m e s a d a c u l t u r a
masculina, ou antes, servir-me d a e x p r e s s ã o de u m a escritora alemã
contemporânea, Josefina F r e y t a a g , o a l i m e n t o espiritual d o belo sexo
— são confeitos, em vez de p ã o . Sim, n a d a mais do que confeitos;
e a r e l a ç ã o de s e m e l h a n ç a conserva-se n a p r o p r i e d a d e de enfastiar e
i n d i s p o r o espírito p a r a t o m a r o v e r d a d e i r o sustento. Assim, u m p o u c o
de música, a l g u m a s peças de salão p a r a o p i a n o , u m p o u c o de desenho,
g a g u e j a r u m a ou d u a s l í n g u a s e s t r a n g e i r a s , e ler as b a g a t e l a s literá-
r i a s do dia, eis o total da m a i o r c u l t u r a do sexo f e m i n i n o e m nossos
tempos, cultura anômala, que E. Von H a r t m a n n justamente qualifica
de i n s t r u ç ã o sistemática da v a i d a d e , e q u e , e n t r e t a n t o , n ã o é preciso
dizê-lo, r e d o b r a de esterilidade e de p e n ú r i a e n t r e n ó s . . .
JOÃO NEVES DA. F O O T 0 1 5 R Â

Discurso çroriuucia.d» "wa ^festoo M u n i c i p a l , em


sessão cívica promovida pela Liga de Defesa N a -
cional, em 7-9-1936, n o Rio d e J a n e i r o .

E s t a festa, senhores, n ã o é s i m p l e s m e n t e c o m e m o r a ç ã o anual do


m a i o r ato d a nossa v i d a coletiva.

R e s t r i t a a o culto d a efeméride d a I n d e p e n d ê n c i a , n o lapso d e c a d a


doze meses, ela p e r d e r i a o seu alto e p r o f u n d o sentido, aquele q u e
d e c e r t o l h e q u i s o u t o r g a r a L i g a de Defesa Nacional.

P e n s a n d o assim q u e a celebração d e hoje t r a n s c e n d e u m a c e r i m ô -


n i a h a b i t u a l d o culto cívico, n ã o m e limito a d e p o s i t a r sobre o m á r -
m o r e e o b r o n z e do m o n u m e n t o as flores votivas, a t é p o r q u e n ã o são
elas o ú n i c o t e s t e m u n h o d o nosso p a t r i o t i s m o .

Se, todas a s m a n h ã s , os j a r d i n s brasileiros n ã o a t a p e t a m d e rosas


a p e d r a do g r a n d e altar, n e m p o r isso a n o ç ã o d e s e r m o s u m a P á t r i a
livre d e i x a d e e n c h e r as h o r a s d o nosso d i a .

E talvez as m a i s p u r a s r e v e r ê n c i a s n ã o sejam a q u e l a s q u e esco-


lhem u m a data n o c a l e n d á r i o , m a s as g r a n d e s prestações anônimas
d e c a d a a l m a , p a g a s sem ostentação, s e m b a n d e i r a s e sem m ú s i c a .

Há u m aparente esquecimento da terra comum no homem que


d e d i c a , d e sol a sol, as e n e r g i a s à c o n q u i s t a do p ã o c o t i d i a n o . En-
t r a n d o p e l a m a n h ã n a b a t a l h a obscura, n i n g u é m d i r á q u e êle n ã o se
c o n s a g r a senão aos reclamos do egoísmo.

L á está o l a v r a d o r h u m i l d e , r a s g a n d o a superfície d a t e r r a sob


os r i g o r e s d o sol ou d a c h u v a . Ali, o o p e r á r i o e n t r e g u e às f a d i g a s
do corpo. Aqui, o magistrado que aplica os textos d a lei. Muito
102 ANTOLOGIA D E FAMOSOS

longe, nos garimpos do planalto, o olhar aguçado que busca o dia-


m a n t e nos- cascalhos d o T o c a n t i n s . O B o i a d e i r o d o sul aperfeiçoa os
rebanhos, entregando a o consumo a carne q u e alimenta, o couro q u e
calça e a l ã q u e a b r i g a . M u i t o além, n o " i n f e r n o v e r d e " d a A m a z ô -
n i a , o s e r i n g u e i r o a s f i x i a d o p e l a f o r n a l h a climática, causa, n a e p i d e r m e
da árvore, a ferida d e q u e brota a resina preciosa.

A o N o r d e s t e , e a o S u l , a l v e j a m os algodoais, e n q u a n t o q u a s e p o r
toda p a r t e os c a n a v i a i s r e v e r d e c e m e entregam ao trabalhador bron-
zeado a matéria p r i m a do açúcar. E , a doia passos d a m e t r ó p o l e , a
t e n a c i d a d e b a n d e i r a n t e p r e s e r v a , c o m u m esforço b e n e d i t i n o , a d e r r o -
cada do ouro verde. M a s olhai a c i m a d e vossas c a b e ç a s e v e r e i s d u a s
g r a n d e s a s a s , c o r t a n d o o c é u , a o TUIDOT àe motores imensos. S ã o eles,
os fíomens-pássaros d o Brasil, m a t e r i a l i z a n d o , n o d i a d e hoje, o s o n h o
do P a d r e visionário, trilhando as estradas etéreas, a p r o x i m a n d o dis-
t â n c i a s a s t r o n ô m i c a s , c o n d u z i n d o , d e s d e a l i n h a e q u i n o c i a l a t é à s fron-
t e i r a s d o h e m i s f é r i o , os h o m e n s e a s c a r t a s , c o m o l a n ç a d e i r a s d o e s p a ç o ,
q u e apertam a i n d a mais os vínculos sagrados d a unidade nacional.

Foram-se a s últimas sombras d a n o i t e ; o clarim soa à porta dos


quartéis; ali estão, n a p r i m e i r a f o r m a , os defensores da Pátria para
os l a b o r e s d o seu d i a ; a l é m , n o m a r , d i s s i p a d a s a s d e r r a d e i r a s b r u m a s
d a m a d r u g a d a , os m a r i n h e i r o s c o m e ç a m a faina. Que importam as
contingências financeiras, privando-os das unidades do último modelo,
se c a d a h o m e m a r v o r a n o s m a s t r o s d o c o r a ç ã o a f l â m u l a d e T a m a n d a r é
e de Barroso?

A p i t a m a s f á b r i c a s , a b r e m - s e os p o r t õ e s a u m a m u l t i d ã o compe-
netrada do sentimento d o dever. Bancos, comércios, tribunais, ofici-
n a s povoam-se d e a b e l h a s i n c a n s á v e i s . N ã o faltam, a o p o n t o , j o r n a l i s -
tas, intelectuais, professores — d a cátedra superior à pobre mestra-
-escola — e s t u d a n t e s e a u t o d i d a t a s , e a t é a s c i g a r r a s d a poesia, cada
u m p a g a n d o o seu i m p o s t o a o t e s o u r o d o esforço coletivo.

D i r e i s q u e t o d o s c o r r e m s o b os i m p e r a t i v o s d o g a n h a - p ã o , q u e a
f e b r e d a a m b i ç ã o i n d i v i d u a l a g i t a os s u b t e r r â n e o s d e c a d a alma.

N ã o h á conceito mais errôneo, porque n o enigma de cada aspira-


ção pessoal j a z o i m p u l s o i n c o n s c i e n t e o u v o l u n t á r i o d o b e m c o m u m .
DISCURSOS BRASILEIROS 103

A s u n i d a d e s p o d e m i m a g i n a r q u e o seu esforço se confina entre as


fronteiras d o p r ó p r i o interesse, n a s c u r v a s d a e s p e r a n ç a ou desalento,
m a s , q u e r e n d o ou n ã o , as f o r m i g a s c a r r e g a m p a r a o m o n t e u m novo
tributo à grandeza patriótica. Ganhando ou p e r d e n d o , agitando um
m u n d o de r e a l i d a d e s novas, c r i a m a r i q u e z a p e l a c i r c u l a ç ã o , e s t i m u l a m
o p r o g r e s s o geral, a m o n t o a m materiais transformadores. É a lei da
v i d a , q u e faz d a s p r ó p r i a s crises cíclicas, q u a n d o t u d o p a r e c e sosso-
brar, a antemanhã de n o v a s c o n q u i s t a s .

P o r t u d o isso, disse eu, e m t o d a s as h o r a s d e luta, festejamos o


p r ê m i o desta P á t r i a , q u e D e u s nos p r o d i g a l i z o u , servindo-a n o amor
e no trabalho, enriquecendo-a mesmo quando empobrecemos. A ener-
g i a c r i a d o r a de c a d a u m de nós conjuga-se n u m sistema d e m a t e r i a i s
— u m a p a r t e se esgota nos limites d o a p r o v e i t a m e n t o p e s s o a l ; a o u t r a
se confunde n a o b r a coletiva. São as resultantes d a lei d a solidarie-
d a d e , c a u s a e fruto de n o v a o r d e m d o m u n d o .

Fora, assim, desfigurar os objetivos desta festa imprimir-lhe o


simples s e n t i d o de u m a comemoração habitual. Um feriado, nesta
q u a d r a d e a g i t a ç ã o e t u m u l t o , seria p o u c o . Um desfile m i l i t a r , com
as c h a r a n g a s n a testa, n ã o t r a d u z i r i a a p r e o c u p a ç ã o de todos os cora-
ções sinceros. N o s dias serenos, os c a n h õ e s festivos t r o a m sem m a i o r
eco n a s ú l t i m a s raízes do s e n t i m e n t o n a c i o n a l , e os h i n o s n ã o desper-
tam a mesma vibração nervosa.

P o r q u e e n t ã o , senhores, d i s s i m u l a r m o s a r a z ã o f u n d a m e n t a l que
nos r e ú n e esta noite?

A h u m a n i d a d e t o d a desliza s o b r e u m solo n a p o l i t a n o , s e g u n d o a
velha imagem.

H á vinte anos desabou u m m u n d o sobre os clarões do incêndio


u n i v e r s a l ; o u t r o m u n d o se está g e r a n d o l a b o r i o s a m e n t e n a s entranhas
d a nossa p r ó p r i a miséria. T o d a a linha, na m a r c h a da civilização,
c o n h e c e u essas flexões inevitáveis. A p ó s as g u e r r a s , densas sombras
d u r a r a m longo t e m p o , e s c u r e c e n d o o destino d a s n a ç õ e s . E algumas
h o u v e q u e s u b m e r g i r a m n o ocaso, depois de i l u m i n a r e m a t e r r a conhe-
c i d a c o m fulgores meridianos.

C o m o c o n s e g u i r í a m o s e s c a p a r às conseqüências d a catástrofe, que


t r a g o u t a n t a s instituições seculares e a l t e r o u o sentido de t a n t a s o u t r a s ,
104 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

e n c h e n d o a atmosfera c o m o c l a m o r de r e i v i n d i c a ç õ e s i m p r e v i s t a s OL
longamente sufocadas?

Q u a n d o os q u e b r a m a r e s d a disciplina s u c u m b e m ao peso d a s a r -
m a s , a s á g u a s t r a n s b o r d a m o leito, i n u n d a m as c e r c a n i a s e só o espí-
rito realiza o m i l a g r e , n ã o d e repô-las e n t r e as m e s m a s m a r g e n s —
t a r e f a a c i m a d o h o m e m — m a s d e contê-las e m o u t r a s direções e s o b
outros signos.

O Brasil é q u e n ã o p o d e r i a assim e s c a p a r às c o n s e q ü ê n c i a s tor-


m e n t o s a s do conflito. A c a b o u a delícia d o isolamento e n t r e os p o v o s .
As m u r a l h a s d a C h i n a n ã o p a s s a m d e u m a r e c o r d a ç ã o h i s t ó r i c a . A
m e c â n i c a e a física r e v o g a r a m a geografia. F a l a m com os a n t í p o d a s ,
c o m o se n o s c o m u n i c á s s e m o s c o m os b a i r r o s d a m e s m a cidade. As
vozes r o m p e m o silêncio dos ares, e os oceanos — p o b r e s m a r e s t r e v o -
s o s ! — v a r a d o s pela m j q u i n a veloz como os v e n d a v a i s .

T o d o o u n i v e r s o h a b i t a d o é u m sistema d e vasos comunicantes.


U m instituto político, j u r í d i c o , e c o n ô m i c o ou social q u e d e s a b a ou se
t r a n s f o r m a n o O r i e n t e , influi n o s i m i l a r d o O c i d e n t e como n u m a ca-
d e i a d e reflexos. Subvertida a t á b u a dos l o g a r i t m o s h u m a n o s , todas
a s o p e r a ç õ e s p a r e c e m e r r a d a s , todas as e q u a ç õ e s m a l e n u n c i a d a s , todos
os cálculos incertos.

D a m o r a l à m o e d a , t u d o se m a n i p u l a ; e os modelos clássicos dor-


m e m nos pesados " i n fólios" como atestados d e i d a d e s l o n g í n q u a s .

A isso, senhores, m a i s do q u e aos d r a m a s s a n g r e n t o s nos c a m p o s


ou n a s r u a s , é q u e se c h a m a a R e v o l u ç ã o . D e b a i x o ou de c i m a , d a
e s q u e r d a ou d a d i r e i t a , b r a n d a ou cruel, ela a p a r e c e q u a n d o u m novo
r i t m o se i n a u g u r a n a s relações e n t r e os i n d i v í d u o s e os povos, q u a n d o
a substância d a s n o r m a s j u r í d i c a s j á n ã o é suficiente para reger o
i m p é r i o d a s novas necessidades sociais.

S u p o r t e m o s d e p é o a b a l o profundo, conscientes do r i g o r d a tem-


pestade, compreendendo-lhe os anseios renovadores, construindo as
nossas obras de a d a p t a ç ã o e defesa, nacionalizando os processos de
r e c o n s t r u ç ã o , m o b i l i z a n d o a j u v e n t u d e sob novos p a d r õ e s e d u c a c i o n a i s ,
d i r i g i n d o a e c o n o m i a , r e v i s a n d o as instituições o n d e q u e r q u e se mos-
t r e m i n a p t a s à r e g ê n c i a d a s relações político-sociais.
DISCURSOS BRASILEIROS 105

M a s , s o b r e t u d o , u r g e fugir aos p e r i g o s da inovação inconsciente


ou a n á r q u i c a e aos ricos da c ó p i a servil. J a m a i s , como hoje, foi a
o r d e m m o r a l u m i m p e r a t i v o m a i s c a t e g ó r i c o da v i d a b r a s i l e i r a . Den-
t r o dela é q u e se têm de processar as t r a n s f o r m a ç õ e s impostas pelas
exigências c o n t e m p o r â n e a s . A t r a v e s s a m o s u m deserto d e p e n i t ê n c i a s e
as á g u a s só b r o t a r ã o da r o c h a á r i d a p a r a anunciar as fronteiras da
P r o m i s s ã o , q u a n d o c a d a u m de nós — g o v e r n a n t e s e g o v e r n a d o s •—
tiver d a d o o exemplo bíblico d a p e r s e v e r a n ç a e da renúncia. Sob
essas cláusulas, o futuro será nosso, se n ã o nosso, dos nossos filhos,
aos q u a i s l e g a r e m o s , à custa do nosso sacrifício, dias de t r a n q ü i l i d a d e
e de ventura.

Bem haja a L i g a de Defesa N a c i o n a l , q u e instituiu este aposto-


l a d o p a r a a r e c o n v e r s ã o dos p e c a d o r e s c o n t r a a P á t r i a , p a r a o b a t i s m o
dos céticos, dos eternos r o e d o r e s d a m a j e s t a d e d a R e p ú b l i c a e d o ina-
valiável futuro do Brasil. Ela está e x e r c e n d o , m a i s d o q u e u m a função
p ú b l i c a , u m v e r d a d e i r o s a c e r d ó c i o cívico. Assim o seu exemplo proli-
ferasse p o r todos os recantos do t e r r i t ó r i o , a n i m a n d o os tíbios, forta-
lecendo as e n e r g i a s vacilantes. N ã o m e t e n h o c a n s a d o de r e p e t i r que
a s e g u r a n ç a p ú b l i c a n ã o é n e m p o d e ser a p e n a s u m a o b r a policial, m a s
e d u c a t i v a , u m l e v a n t a m e n t o em m a s s a de todos os corações a g u e r r i d o s
para o bom combate.

A h o r a é de n o v a s c r u z a d a s , as c r u z a d a s do espírito c o n t r a o
m a t e r i a l i s m o d e s t r u i d o r e dissolvente. Se o Brasil j á n ã o é u m vasto
hospital, de q u e falava Miguel P e r e i r a , o q u e êle n ã o p o d e ser é u m
s a n t u á r i o de pessimistas a m a r g o s ou conformistas apáticos, m a s uma
arena de g l a d i a d o r e s tenazes, c o n s t r u i n d o n a luta e n a alegria, que
c o n s e r v a m o corpo e rejuvenescem a alma. O p r o b l e m a é, antes de
t u d o , de o r g a n i z a ç ã o em todos os setores d a nossa v i d a p ú b l i c a , aca-
b a n d o com as i m p r o v i s a ç õ e s a r e t a l h o e com os exclusivismos gregá-
rios, i n d i v i d u a i s ou r e g i o n a i s .

Basta, senhores, de p l a t a f o r m a s . O m o m e n t o exige s i n c e r i d a d e de


propósitos, c a p a c i d a d e de c o m p r e e n d e r e r e a l i z a r . Compreendamos e
realizemos. M a s todo o esforço será p e r d i d o se n ã o se p r o c e s s a r e n t r e
d u a s balizas, q u e e m t o d a a h i s t ó r i a dos povos d e m a r c a r a m as fron-
t e i r a s e n t r e a lei e o despotismo — a Justiça e a L i b e r d a d e . Uma
106 ANTOLOGIA D E FAMOSOS

é o céu q u e g a r a n t e séculos d e b o n a n ç a , a o u t r a é a t e r r a d a p r ó p r i a
dignidade humana.
Eis, a í , o g i g a n t e a d o r m e c i d o . Despertai-o p a r a a luta e p a r a a
vida.

Olhai-lhe o c o r p o m a r a v i l h o s o . A c a b e l e i r a é v e r d e , n o deslum-
b r a n t e t o m d a s selvas a m a z ô n i c a s . O dorso está, às vezes, ressequido
pelas soalheiras do N o r d e s t e aflitivo. Os pés a s s e n t a m , i m e n s o s e fir-
mes, s o b r e as á g u a s azuis d a q u e l e rio U r u g u a i , c a n t a d o pelo vate de
Lindóia. Um dos b r a ç o s , com o bíceps retezado, espalma os cinco
dedos s o b r e a c a d e i r a d e g r a n i t o e f e r r o d a t e r r a dos Inconfidentes,
e n q u a n t o o o u t r o m o l h a a p a l m a n a s á g u a s do O c e a n o Atlântico.

É u m tronco sólido e nu. N ã o veste c a m i s a ; m u i t o m e n o s de


cores suspeitas. L á e m c i m a , s o b r e seus o m b r o s , u m a b a n d e i r a tre-
m u l a aos ventos b e n i g n o s . N ã o a colore o v e r m e l h o simbólico d a de-
s o r d e m , m a s o v e r d e d a s suas c a m p i n a s e o o u r o d o seu sol, e s t a m p a d o s
n o azul d o f i r m a m e n t o . . . Este é o l á b a r o de todos, sem distinções,
sem castas, s e m s e n h o r e s e sem p á r i a s .

Falta apenas o coração. Èle está a q u i p u l s a n d o s o b r e o asfalto


destas a v e n i d a s , r í t m i c o , i m e n s o , e n é r g i c o e generoso, síntese d e t o d a s
a s aspirações, d e g r a n d e s e p e q u e n o s , p o b r e s e ricos, p a t r õ e s e operá-
rios, g e n e r a i s e soldados, m e s t r e s e discípulos, n a e t e r n a c o m u n h ã o dos
q u e p a s s a r a m , dos c o n t e m p o r â n e o s e dos p ó s t e r o s .
JOÃO NEVES DA FONTOURA

H o m e n a g e m à m e m ó r i a do A l m i r a n t e T a m a n -
d a r é . Discurso p r o f e r i d o em 9-12-1941, em no-
m e da M a r i n h a de G u e r r a do B r a s i l .

A esta h o r a da m a n h ã , à b e i r a d o fim d e u m a n o t o r m e n t o s o e
g r a v e , a q u i está o Brasil, com o seu chefe s u p r e m o , os seus h o m e n s
d e G o v e r n o , os seus m a r i n h e i r o s , os seus soldados, os seus c i d a d ã o s ,
p a r a c e l e b r a r ao p é deste m o n u m e n t o , e m frente d o m a r , q u e foi o
palco d a s u a v i d a , a v i d a e a g l ó r i a d o A l m i r a n t e T a m a n d a r é .

M a s , e m v e r d a d e , c o m e m o r a ç õ e s , c o m o esta, t r a n s c e n d e m sempre
os limites d e u m a simples existência h u m a n a , p o r m a i s longa e bene-
mérita que fosse.

Os g r a n d e s h o m e n s são feitos de s u b s t â n c i a coletiva; o que os


eleva a c i m a d a c r a v e i r a c o m u m é q u e a s suas vidas e os seus atos n ã o
se p e r d e m n o a t o m i s m o i n d i v i d u a l n e m se isolam do m e i o em que
viveram. A í , a distinção e n t r e a s a n t i d a d e e o h e r o í s m o . Os santos
p o d e m ser c a n o n i z a d o s p o r v i r t u d e s i n t e r i o r e s . Ao c o n t r á r i o , a alma
dos h e r ó i s é forjada n a s c h a m a s d a v i d a p ú b l i c a . U n s refletem as luzes
d o c é u ; outros p e r t e n c e m a o d r a m a d a t e r r a , cujos lances encarnam
e d i r i g e m nos a c i d e n t e s d a s u a carreira.

P o r isso, os santos r e c e b e m n o silêncio d a s capelas a s h o m e n a g e n s


d o culto, e n q u a n t o p a r a os h e r ó i s os a l t a r e s se e r g u e m n o t ú m u l o da
praça pública.

T a m a n d a r é é u m dos h e r ó i s brasileiros e, t e n d o a t r a v e s s a d o q u a s e
todo o século X I X , desfruta o p r i v i l é g i o d e q u e as nossas lutas funda-
m e n t a i s , d o fim d a Colônia aos p r i m ó r d i o s da R e p ú b l i c a , estão s i t u a d a s
e n t r e o seu b e r ç o e o seu t ú m u l o .
108 ANTOLOGIA D E FAMOSOS

Q u a n d o n a s c e u , os soldados de J u n o t ainda não haviam jogado


deste l a d o d o Atlântico a corte p o r t u g u e s a ; q u a n d o m o r r e u , j á o p a í s
atravessava, pacificado, o s e g u n d o p e r í o d o p r e s i d e n c i a l da República.

M a s o q u e o faz g r a n d e , a o serviço d a P á t r i a , n ã o é o ter sido


t e s t e m u n h a dos nossos m a i o r e s acontecimentos. Tantas vidas anônimas
assistiram àquelas t r a n s f o r m a ç õ e s substanciais.

T a m a n d a r é é, p o r é m , u m dos construtores d a N a ç ã o .

E m 2 3 , j á estava a b o r d o d a f r a g a t a Niterói, batendo-se n o com-


b a t e de 4 de m a i o p e l a i n d e p e n d ê n c i a do Brasil e fazendo p a r t e da
e s q u a d r a , q u e levou as n a u s p o r t u g u e s a s até à e m b o c a d u r a d o T e j o .

O m a r foi a sua vocação, o seu sonho, o seu d e s t i n o . Napoleão


dizia — a sua f a t a l i d a d e . O v o l u n t á r i o d a Niterói s u b i u n a s asas d o
p r ó p r i o valor até o ú l t i m o posto, n ã o h a v e n d o o m e n o r exagero em
a f i r m a r q u e a c r ô n i c a da m a r i n h a b r a s i l e i r a , e m dois impérios, p o d e
ser t r a ç a d a com as e m e n d a s da s u a fé de ofício.

N o m a r , o gênio político e m i l i t a r de C a x i a s e n c o n t r o u em Ta-


m a n d a r é o indispensável c o m p l e m e n t o de b r a v u r a , i d e a l i s m o e espírito
d e sacrifício, de sorte q u e q u a n d o o instinto de s i m e t r i a b u s c a colocar
n u m p l a n o c o m u m as g r a n d e s l i n h a s da u n i d a d e n a c i o n a l e m u m a de
suas fases m a i s t o r m e n t o s a s , a i m a g i n a ç ã o p o d e traçá-las e n t r e duas
paralelas — o b a s t ã o d o Condestável e a e s p a d a d o A l m i r a n t e , que
manteve nas águas do Prata, desfraldada e vitoriosa a bandeira do
Brasil.

M a s as festas de hoje a d q u i r e m , p o r força dos acontecimentos desta


s e m a n a , u m sentido m a i s p r o f u n d o d o q u e o simples r e v e r d e c e r dos
louros p a s s a d o s .

H á q u a s e m e i o século, a voz profética de R u i B a r b o s a advertia


os seus c o n c i d a d ã o s de q u e '"o mar, que na p a z nos e n r i q u e c e , na
g u e r r a nos a m e a ç a " .

D e novo, a lição do e x t r e m o oriente, a p r o x i m a n d o o conflito do


nosso hemisfério, é u m t o q u e de sentido, r e v e l a n d o a i m p o r t â n c i a do
p o d e r n a v a l aos países b a n h a d o s p o r i m e n s a s extensões oceânicas.
DISCURSOS BRASILEIROS 109

A f o r t u n a d a m e n t e , n ã o estamos, a q u i , a p e n a s p r a t i c a n d o u m r i t o de
r e v e r ê n c i a p l a t ô n i c a a u m dos a r q u i t e t o s d o Brasil, indiferentes à lição
do p r e s e n t e ou com os olhos v e n d a d o s às aflitivas interrogações do
futuro.

De h á muito, t o d a s as p r e o c u p a ç õ e s d o Governo, estão voltadas,


c o m o aplauso u n i v e r s a l dos brasileiros, p a r a o r e s s u r g i m e n t o do nosso
p o d e r m i l i t a r , c o n s t r u i n d o nós mesmos, com t o d a s as nossas disponi-
b i l i d a d e s , os nossos navios de g u e r r a , f a b r i c a n d o em p a r t e os nossos
aviões, a p e r f e i ç o a n d o a i n s t r u ç ã o dos nossos soldados, dos nossos ma-
r i n h e i r o s e dos nossos pilotos, a d q u i r i n d o o m a t e r i a l necessário à defesa
d a s nossas fronteiras.

De par com esses atos de p r e v i d ê n c i a material, acertou sempre


o P r e s i d e n t e V a r g a s e m m a n t e r e desenvolver o s e n t i m e n t o de solida-
r i e d a d e d o Brasil com as N a ç õ e s do C o n t i n e n t e , p o r u m a s i n c e r a po-
lítica de c o o p e r a ç ã o e f r a t e r n i d a d e , despida de f ó r m u l a s vazias, mas
substancialmente impregnada daquele espírito continental q u e os im-
p e r a t i v o s d a nossa f o r m a ç ã o política e o império das circunstâncias
a c a b a r a m t r a n s f o r m a n d o t o d a s as R e p ú b l i c a s d o N o v o M u n d o n o feixe
d e v a r a s simbólicas.

A s irresistíveis forças m o r a i s c o n t r a a agressão e a c o n q u i s t a tor-


n a r a m m ó v e i s as fronteiras dos países a m e r i c a n o s , de m o d o q u e o ata-
q u e feito a u m deles constitui u m a a m e a ç a feita a todos.

P a r t i c u l a r m e n t e p a r a o Brasil, a a t i t u d e do seu Governo espelha


fielmente o s e n t i m e n t o nacional, c o n f o r m e os nossos antecedentes his-
tóricos, e r e ú n e , nos laços de u m a i n q u e b r a n t á v e l coerência, os a t o r m e n -
tados dias a t u a i s c o m a m a n h ã e m q u e , aos pés dos G u a r a r a p e s , ante-
cipamos a formalidade da independência, afirmando perante o mundo
a i n v i o l a b i l i d a d e d o nosso t e r r i t ó r i o .

A g o r a , o desfile dos nossos m a r i n h e i r o s j á n ã o é u m a simples con-


t i n ê n c i a ao passado, q u e a estátua de T a m a n d a r é simboliza, m a s uma
r e n o v a ç ã o de confiança p ú b l i c a nos m e s m o s i d e a i s do presente, sejam
q u a i s forem os sacrifícios do f u t u r o .
OCTÁVIO MANGABEIRA

U m "Paladino da Linguagem" — Discurso p r o -


nunciado n a Câmara dos Deputados, sessão de
16-11-1920.

O Sr. P r e s i d e n t e —- O S r . D e p u t a d o Castro Rebello r e q u e r que


se i n s i r a n a a t a u m voto d e p r o f u n d o p e s a r pela m o r t e d o filólogo
Ernesto Carneiro Ribeiro.

O S r . Octávio M a n g a b e i r a — Peço a palavra.

O Sr. P r e s i d e n t e — T e m a p a l a v r a o n o b r e Deputado.

O S r . Octávio M a n g a b e i r a — Não há, Sr. P r e s i d e n t e , n ã o p o d e


h a v e r , em ocasiões c o m o esta, m a i o r i a ou m i n o r i a n a d e p u t a ç ã o b a h i a -
na. (Apoiado; muito bem). O q u e h á é toda a b a n c a d a a t r i b u t a r
o seu culto a u m a das f i g u r a s m a i s conspícuas, m a i s a u t o r i z a d a s , m a i s
representativas, daquelas q u e edificaram ou m a n t i v e r a m , para servir
de título à B a h i a , e n t r e os i r m ã o s d a f e d e r a ç ã o b r a s i l e i r a , a t r a d i ç ã o de
A t e n a s d o Brasil.

E r n e s t o C a r n e i r o R i b e i r o , cujo n o m e n ã o declino sem a v e n e r a ç ã o


q u e nos i n s p i r a m , s o b r e t u d o a p ó s a m o r t e , as e n t i d a d e s q u e se t o r n a -
ram s a g r a d a s pela b e n e m e r ê n c i a ou pela glória, e x e r c e u , e m minha
t e r r a , p o r b e m m a i s de m e i o século, n ã o a i n d ú s t r i a , m a s , de fato, o
sacerdócio da educação de gerações bahianas, que vêm de Rui Barbosa
e C a s t r o Alves, até os q u e , a i n d a a g o r a , o r o d e a v a m , n a casa d o seu
colégio, q u e e r a o t e m p l o d o seu apostolado, nos últimos d i a s , nos der-
radeiros momentos da sua santa, querida e abençoada velhice.

Dali, p o r é m , d a q u e l e círculo estreito d e simples e m o d e s t o p r o -


fessor de ensino s e c u n d á r i o n a p r o v í n c i a , i r r a d i o u p a r a o p a í s i n t e i r o
DISCURSOS BRASILEIROS 111

— de tão p u r o q u i l a t e êle e r a —• o conceito d o seu m e r e c i m e n t o , a p r e -


g o a d o pelos seus discípulos, t e s t e m u n h a s pessoais de sua c a p a c i d a d e , e
documentado nas obras que afirmaram em Carneiro Ribeiro um dos
m e s t r e s m a i s insignes, a q u i e e m P o r t u g a l , d a nossa l í n g u a . (Muito
bem)

E s t á n a m e m ó r i a d a C â m a r a o episódio d o C ó d i g o Civil.

F o r a êle e n c a r r e g a d o d e d a r a o projeto d o C ó d i g o a b o a expres-


são v e r n á c u l a . Desempenhou-se, patriòticamente, do encargo, no curto
p r a z o q u e lhe d e f e r i r a m . R u i Barbosa, p o r é m , fêz a crítica d a reda-
ção do projeto, e m u m a das p r o d u ç õ e s mais afamadas, entre todas
com q u e , de q u a n d o em q u a n d o , nos s u r p r e e n d e o seu g ê n i o . (Muito
bem). A v a n ç a d o n a i d a d e , b a t i d o pela f a d i g a d o t r a b a l h o e pelo tra-
b a l h o do t e m p o , sem o exercício f r e q ü e n t e ou c o n t i n u a d o d a pena,
acreditou-se q u e o professor C a r n e i r o d e i x a r i a p a s s a r em silêncio as
observações de R u i Barbosa. Breve lapso, e n t r e t a n t o , decorre, e êle
e n r i q u e c e a biblioteca d a l í n g u a com esses dois grossos volumes que
hoje o r n a m e n t a m as estantes de todos os q u e , n o estudo do v e r n á c u l o ,
a m a m e cultivam as b o a s l e t r a s . (Muito bem)

A polêmica, S r . P r e s i d e n t e , a q u e m e estou r e p o r t a n d o , n ã o só
pelo b r i l h a n t i s m o , senão t a m b é m pela s u p e r i o r i d a d e com q u e se des-
dobrou, marca u m a página de o u r o n a h i s t ó r i a intelectual d a nossa
Pátria. Dela, os dois g r a n d e s b a h i a n o s , q u e nela se e n f r e n t a r a m com
t a n t o o r g u l h o p a r a todos n ó s , s a í r a m talvez m a i s a m i g o s q u e nela ha-
viam entrado, um proclamando e reconhecendo no outro aquilo que,
e m u m e o u t r o , a o p i n i ã o c o n s a g r a r a — a m e s t r i a n a ciência do as-
sunto q u e d e b a t e r a m . (Apoiado)
N ã o faz a i n d a dois anos, tive a f o r t u n a d e a c o m p a n h a r à Bahia
o S e n a d o r R u i B a r b o s a , q u e ali i a e m p r o p a g a n d a de s u a candidatura
n o ú l t i m o pleito p r e s i d e n c i a l . C h e g a m o s à noite. E r a cerca de oito
horas, quando o navio atracava. R u i B a r b o s a se d i r i g e ao portaló,
p a r a r e c e b e r as h o m e n a g e n s d a m u l t i d ã o d e l i r a n t e , q u e m a r u l h a v a p o r
t o d a a l i n h a do cais. É q u a n d o , d o seio do povo, p a r a festejar, em
seu n o m e , o excelso b r a s i l e i r o , se descobre a f i g u r a imponente, larga
fronte bronzeada e longas b a r b a s b r a n c a s , do Dr. Carneiro Ribeiro,
que, j á octogenário, f r e m i a d e entusiasmo, p a r a c a n t a r o h i n o d a B a h i a
112 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

a o m a i o r dos seus discípulos, q u e teve d e ser m a i s t a r d e o s e u incom-


p a r á v e l c o n t e n d o r , n a p o l ê m i c a do C ó d i g o Civil.

O estilo d o velho m e s t r e , nessa, c o m o e m o u t r a s o r a ç õ e s c o m q u e


c o n c o r r e u p a r a o escrínio d a s seletas d a l í n g u a p o r t u g u e s a , e n t r e elas,
p o r e x e m p l o , a s u a m e m o r á v e l conferência p o r ocasião do c e n t e n á r i o
d o P a d r e A n t ô n i o V i e i r a , t i n h a a g r a v i d a d e do seu vulto, a p u r e z a do
seu c a r á t e r , a s e r e n i d a d e d o seu espírito e a beleza d o p r o g r a m a q u e
se t r a ç o u n a existência.

Cercaram-no, por honra d a B a h i a , a t é à m o r t e , como se vissem


nele u m p a t r i a r c a , u m a espécie d e p o n t o c u l m i n a n t e n a sociedade b a h i a -
na, o afeto, o a p r e ç o , o c a r i n h o de todos os seus c o n t e r r â n e o s , quais-
q u e r q u e fossem a c o n d i ç ã o , a classe, ou m e s m o o g r ê m i o político d e
q u e fizessem parte.

A B a h i a , p o r todas as expressões d a s u a p o p u l a ç ã o , acompanhou


a o c a m p o santo os despojos de seu g r a n d e filólogo.

Tanto o nobre Deputado que m e precedeu n a tribuna, como eu,


S r . P r e s i d e n t e , p o d e m o s dizer, s e m e r r o , q u e falamos e m n o m e d o cé-
r e b r o e do c o r a ç ã o d a B a h i a (muito bem; muito bem), pedindo à
C â m a r a o voto d e p e s a r pela m o r t e do a u g u s t o , e g r é g i o a m i g o d a ju-
v e n t u d e e d a s letras q u e , e d u c a n d o a m o c i d a d e , p o r m a i s de sessenta
anos, foi útil a o seu povo, e, c u l t u a n d o , e p r o p a g a n d o o a m o r a o culto
d a nossa l í n g u a , soube s e r v i r e honrar a sua Pátria! (Muito bem,
muito bem. Palma no recinto. 0 orador é abraçado)
EPITÁCIO PESSOA

Palavras proferidas da sacada do Teatro Muni-


cipal de São Paulo, por ocasião da "Marche aux
flambeaux" promovida pelos estudantes de me-
dicina, em setembro de 1921.

Sinto-me p r o f u n d a m e n t e comovido diante das manifestações com


q u e m e s a ú d a m os alunos d a F a c u l d a d e de M e d i c i n a de S ã o P a u l o .

Sinceros e desinteressados, inspirados sempre num grande ideal


d e l i b e r d a d e e de justiça, s e m p r e d i t a d o s pelas m a i s a l e v a n t a d a s aspi-
r a ç õ e s d o a m o r d a P á t r i a , os aplausos d a m o c i d a d e são os q u e mais
sensibilizam e c o n f o r t a m os h o m e n s de g o v e r n o .

Esta festa, essas aclamações, esse e n t u s i a s m o , m o s t r a m q u e o go-


v e r n o atual está c u m p r i n d o o seu dever com c o r a g e m e patriotismo,
s u r d o às o b j u r g a t ó r i a s dos demolidores de t o d a casta, indiferente às
imprecações dos interesses c o n t r a r i a d o s , m a s dócil à o p i n i ã o esclare-
c i d a d o p a í s , acessível às sugestões de todos aqueles q u e , c o m o os m o -
ços, n ã o t e n h a m o u t r a p r e o c u p a ç ã o q u e n ã o seja a g r a n d e z a e a g l ó r i a
da República.

E u a g r a d e ç o à g a r b o s a m o c i d a d e da Escola de M e d i c i n a as de-
m o n s t r a ç õ e s de s i m p a t i a e de estima de q u e m e c u m u l a : elas desper-
t a r ã o em m i n h a a l m a novos estímulos, elas a c o r d a r ã o e m m e u espírito
novas e n e r g i a s p a r a levar p o r d i a n t e essa tarefa, q u e eu sinto muito
s u p e r i o r às m i n h a s forças, m a s q u e é, eu vos a s s e g u r o , m u i t o inferior
ao m e u a m o r pelo Brasil.
EPITÁCIO PESSOA

Discurso no lançamento da primeira pedra do


monumento aos Andradas, n a cidade de Santos,
em setembro de 1921.

E n t r e as alegrias e as h o n r a s a q u e eu p u d e r a a s p i r a r como chefe


da N a ç ã o , n e n h u m a m e p o d e r i a ser m a i s c a r a d o q u e esta — a de
l a n ç a r a p r i m e i r a p e d r a do m o n u m e n t o aos A n d r a d a s , a de a s s i n a l a r
o m o m e n t o inicial desta c o n s t r u ç ã o , q u e vai c o m e m o r a r - l h e s o cente-
n á r i o d a o b r a g r a n d i o s a , a de c o n t r i b u i r p a r a a elevação dessa coluna,
o n d e as g e r a ç õ e s a t u a i s e as f u t u r a s gerações v i r ã o p e d i r inspirações
de c o r a g e m , de a b n e g a ç ã o e de civismo.

Nos acontecimentos que prepararam a nossa i n d e p e n d ê n c i a polí-


tica, eles p r o c e d e r a m s e m p r e c o m o se fossem u m só h o m e m , unidos
pela m e s m a fé — o t r i u n f o d a l i b e r d a d e ; g u i a d o s pela m e s m a idéia
-— o p r e d o m í n i o d a j u s t i ç a ; identificados pelo m e s m o s e n t i m e n t o —
o a m o r desinteressado, vivo e p a l p i t a n t e d o nosso Brasil.

A f i g u r a central de José Bonifácio, q u e a q u i em São P a u l o a d q u i -


r i r a f u l g u r a n t e prestígio como h o m e m de ciência e p a t r i o t a ; a c o r a g e m
cívica e a inteligência de A n t ô n i o Carlos, q u e , j á e m defesa d o Brasil,
s o u b e r a e n f r e n t a r , n o d i a de s u a c h e g a d a às Cortes de Lisboa, a o n d a
a m e a ç a d o r a dos d e p u t a d o s p o r t u g u e s e s ; a f r a n q u e z a rude, o tempera-
m e n t o c o m b a t i v o de M a r t i m F r a n c i s c o , cuja inteireza m o r a l se i m p u -
n h a m e s m o aos seus m a i s a p a i x o n a d o s i n i m i g o s ; t o d a s essas qualida-
des, r e u n i d a s e m o v i m e n t a d a s c o m a m e s m a o r i e n t a ç ã o p a t r i ó t i c a , fi-
z e r a m c o n v e r g i r e m t o r n o dos A n d r a d a s as aspirações, as forças e as
e n e r g i a s de q u a n t o s s o n h a v a m com a l i b e r t a ç ã o d o j u g o estrangeiro.
(Muito bem, muito bem)
DISCURSOS BRASILEIROS 115

A José Bonifácio, p r i n c i p a l m e n t e , c o u b e a missão de c a n a l i z a r as


e n e r g i a s d o povo em favor d a i n d e p e n d ê n c i a . E s p í r i t o a d i a n t a d o , em
cujo p r o g r a m a político já se i n s c r e v i a m i d é i a s como a l i b e r d a d e abso-
luta de comércio, o t r a b a l h o l i v r e e a p r á t i c a dos desportos, como m e i o
de fortalecer a m o c i d a d e e m e l h o r a r a r a ç a , a s u a c o l a b o r a ç ã o n a o b r a
d a nossa e m a n c i p a ç ã o política, m a l g r a d o as a n i m o s i d a d e s de alguns his-
t o r i a d o r e s , foi serena, s e g u r a e decisiva. (Apoiado, muito bem)

N a Constituinte, p r i m o u a a ç ã o de A n t ô n i o Carlos. Grande ora-


dor, sóbrio, elegante, p r o n t o n a réplica, ferino nos conceitos, áspero, às
vezes, n a crítica, êle se i m p ô s como o líder de u m a assembléia e m q u e
h o m e n s de g r a n d e valor m o r a l e intelectual r e v e l a v a m as mais notáveis
q u a l i d a d e s de s a b e r e p a t r i o t i s m o .

Finalmente, Martim F r a n c i s c o foi o auxiliar eficaz, devotado e


incansável de seus dois i r m ã o s , e com o s e g u n d o constitui o eixo do
m o v i m e n t o q u e em 1 8 4 0 d e u solução à ú l t i m a das três g r a n d e s fases
da f o r m a ç ã o do I m p é r i o — a M a i o r i d a d e .

José Bonifácio e Martim Francisco formaram o primeiro minis-


tério de P e d r o I . Martim Francisco e Antônio Carlos organizaram
o p r i m e i r o m i n i s t é r i o de P e d r o I I . A dezoito anos de intervalo, fo-
r a m os A n d r a d a s os p r i n c i p a i s c r i a d o r e s de u m a n a c i o n a l i d a d e , q u e e m
b r e v e vai c o m p l e t a r cem a n o s de existência e q u e , p a r a c o m e m o r a r o
seu c e n t e n á r i o , c u i d a de e r g u e r este m o n u m e n t o c o m o u m a reparação
nacional devida àqueles cujos talentos e cujos esforços abriram en-
sejo, e m a i s t a r d e d e r a m c o r p o e v i d a , a o b r a d o m e m o r á v e l do Ipi-
ranga. (Muito bem, muito bem)
Que n o m o n u m e n t o dos A n d r a d a s p e r p e t u i , n a g r a t i d ã o do povo
brasileiro, a m e m ó r i a dos m a i o r e s vultos da s u a i n d e p e n d ê n c i a política.
(Prolongada e ruidosa salva de palmas)
EPITÁCIO PESSOA

Discurso n a Faculdade de Direito de São Paulo,


em setembro de 1921.

S i n c e r a m e n t e , eu n ã o i m a g i n a v a q u e a simples visita p a r a q u e fui


c o n v i d a d o pela a m a b i l i d a d e d o C e n t r o A c a d ê m i c o O n z e de Agosto se
convertesse nesta imponente solenidade. Diante da majestade deste
a m b i e n t e , sinto-me r e a l m e n t e c o n f u n d i d o e p e r t u r b a d o , e n ã o acho ex-
pressões p a r a t r a d u z i r com fidelidade todo o m e u d e s v a n e c i m e n t o p e l a
h o n r a i n s i g n e q u e m e confere a d o u t a C o n g r e g a ç ã o d a Faculdade de
D i r e i t o de São P a u l o , r e c e b e n d o - m e em seu seio, e associando-se às
generosas manifestações de a p r e ç o de q u e m e faz objeto a bondade
dos seus discípulos. T ã o pouco posso dizer q u a n t o m e p e n h o r a m os
ilustres colegas, Srs. Drs. Herculano de F r e i t a s e Spencer Vampré,
cumulando-me de gentilezas e d e conceitos, q u e só penso a t r i b u i r à
s i m p a t i a e a m i z a d e q u e tive a f o r t u n a de inspirar-lhes.

Dir-vos-ei, por isso, a p e n a s , Senhores Doutores, que, dentre as


n u m e r o s a s manifestações de s i m p a t i a q u e t e n h o r e c e b i d o desde a mi-
n h a c h e g a d a a esta t e r r a generosa, n ã o é esta a q u e m e n o s m e toca
o c o r a ç ã o , p a r t i n d o , c o m o p a r t e , d a q u e l e s q u e r e p r e s e n t a m o escol d a
intelectualidade paulista, daqueles p a r a q u e m o Direito, em todos os
seus aspectos sociais, t e m sido, como para mim, uma preocupação
absorvente da vida; d a q u e l e s a q u e m está confiada a missão d e l i c a d a
e temerosa de construir, a p a r e l h a r e consolidar as colunas, sobre as
q u a i s , a m a n h ã , devem r e p o u s a r a i n t e g r i d a d e , os brios e a h o n r a do
Brasil.

É sempre possuído de u m profundo sentimento de confiança e


s i m p a t i a q u e m e p o n h o e m contacto com a m o c i d a d e . É q u e eu vejo
DISCURSOS BRASILEIROS 117

na mocidade (e n ã o s u p o n h a m q u e h á n a s m i n h a s p a l a v r a s u m a sim-
ples f i g u r a de r e t ó r i c a ) , é q u e eu vejo n a m o c i d a d e a p r i n c i p a l , a
m a i s poderosa, a m a i s b r i l h a n t e d e n t r e as forças p r o p u l s o r a s d o pro-
gresso d a N a ç ã o ; é q u e eu ouço b o r b u l h a r n o seu seio o m a i s acen-
d r a d o espírito de d e v o t a m e n t o e de s a c r i f í c i o ; é q u e eu sinto p a l p i t a r
n o seu peito o c o r a ç ã o m e s m o d a p á t r i a , o n d e esta vem b e b e r alento
e v i d a , e h a u r i r , a l a r g o s sorvos, os santos entusiasmos, feitos de a b n e -
g a ç ã o e d e c o r a g e m , q u e , n a s épocas m a i s c u l m i n a n t e s d a nossa his-
t ó r i a , nos t ê m c o n d u z i d o , vitoriosos, às c o n q u i s t a s d a l i b e r d a d e e da
democracia.

A o p e n e t r a r neste recinto, senhores, o q u e m e d o m i n o u n ã o foi


somente a emoção de me encontrar neste edifício legendário, ilumi-
n a d o h á q u a s e u m século pelas m a i s vivas fulguraçôes d a inteligência
e d o s a b e r , e de o n d e , n u m a s o b e r b a i r r a d i a ç ã o de eloqüência, de in-
t e g r i d a d e e de t r a b a l h o , se t e m e s p a l h a d o p o r t o d a a n a ç ã o , pela voz
dos o r a d o r e s , pela casuística dos a d v o g a d o s , pelas sentenças dos juizes,
os m a i s n o b r e s postulados d o d i r e i t o e d a justiça.

A o p e n e t r a r neste recinto, o q u e m e d o m i n o u n ã o foi s o m e n t e a


s a u d a d e de o u t r o instituto c o n g ê n e r e , que guarda também as rnais
formosas t r a d i ç õ e s d e p a t r i o t i s m o , o n d e formei o m e u espírito e a p r e n d i
a a m a r a justiça, c o m o a p r i m e i r a c o n d i ç ã o d e v i d a , c o m o o m a i s só-
lido f u n d a m e n t o d a s instituições sociais, como o a t r i b u t o m a i s elevado
e característico da superioridade moral do homem.

A o p e n e t r a r neste recinto, tive t a m b é m a i m p r e s s ã o de q u e o fu-


t u r o d o Brasil p e r p a s s a p o r e n t r e estas vetustas p a r e d e s , a s u a s o m b r a
d i v a g a p o r estes c o r r e d o r e s solitários, às vezes c h e i a de a p r e e n s õ e s e
d e receios, m a s , q u a s e s e m p r e , r i c a de entusiasmos e de esperanças,
p o r q u e , senhores, é a q u i q u e se m o u r e j a a m o c i d a d e , é a q u i q u e se
a f i n a m os seus sentimentos d e a b n e g a ç ã o e de civismo, é a q u i q u e se
acrisola o seu culto pela l i b e r d a d e , é a q u i q u e se f o r m a m os c i d a d ã o s
a quem amanhã o Brasil e n t r e g a r á a defesa d a sua integridade, os
surtos do seu progresso, os m e l i n d r e s d a sua v i d a internacional.

Ao p e n e t r a r a q u i , a i n d a o u t r o s e n t i m e n t o m e d o m i n o u , e este m e
n c h e u de d e s v a n e c i m e n t o e de o r g u l h o o de q u e n ã o são s o m e n t e as
lasses c o n s e r v a d o r a s de São Paulo, as pessoas mais representativas
118 ANTOLOGIA DE FAMOSOS

do p r i m e i r o E s t a d o da F e d e r a ç ã o , q u e m e vêm t r a z e r o t e s t e m u n h o do
seu a p o i o ; é t a m b é m a m o c i d a d e da sua culta capital, q u e v e m fazer
justiça ao esforço, ao desinteresse e ao p a t r i o t i s m o com q u e t e n h o p r o -
c u r a d o servir ao m e u p a í s . N e m a m o c i d a d e m e acolheria com estas
manifestações de c o r d i a l i d a d e e de estima, se a l g u m d i a eu houvesse
m e n t i d o aos m e u s deveres d e c i d a d ã o ou fugido às r e s p o n s a b i l i d a d e s do
meu cargo.

Os aplausos q u e recebo t r a z e m - m e g r a n d e conforto, despertam-me


as forças necessárias p a r a p r o s s e g u i r n a s e n d a q u e v e n h o t r i l h a n d o em
meio de dificuldades sem n ú m e r o , m a s com passo f i r m e e r e s o l u t o ; os
aplausos q u e m e d i r i g e a m o c i d a d e a c o r d a m novas e n e r g i a s n o meu
espírito p a r a exaltar, no coração dos moços, o s e n t i m e n t o fecundo do
amor da pátria.

E s t r a n h a r a m já q u e seja este o m e u t e m a predileto, s e m p r e que


t e n h o ocasião de falar e m p ú b l i c o . É porque a preocupação constante
d o m e u espírito, e s t i m u l a d a de u m l a d o pelas observações de minhas
v i a g e n s e a ç u l a d a de o u t r o p e l a i n d i f e r e n ç a dos m e u s c o m p a t r i o t a s , é
q u e n ã o temos feito t u d o q u a n t o p o d e m o s e q u a n t o devemos p e l a g r a n -
deza e p e l a g l ó r i a da nossa P á t r i a . Q u a n t o m a i s viajo, m a i s m e sinto
filho do Brasil, m a i s confiança tenho n a s suas possibilidades, mais
c l a r a se m e a p r e s e n t a a visão d o seu f u t u r o . É p o r isto q u e m e esforço
p o r e s t i m u l a r o p a t r i o t i s m o dos moços, q u e são as m a i s j u s t a s espe-
r a n ç a s d a N a ç ã o , s a n g u e novo e sadio, d e s t i n a d o a acender-lhe nas
veias a sede d o progresso, o culto d a justiça, o a m o r d a l i b e r d a d e .

J á a l g u é m m e c h a m o u de " n a c i o n a l i s t a " . N ã o pode haver quali-


ficativo m a i s g r a t o ao m e u c o r a ç ã o de b r a s i l e i r o . M a s o m e u nacio-
n a l i s m o , como j á tive ocasião de dizer em público, n ã o é feito de ódios
e p r e v e n ç õ e s c o n t r a o e s t r a n g e i r o , cuja c o l a b o r a ç ã o nos é necessária,
cujo auxílio desejamos p a r a a e x p l o r a ç ã o d a s nossas inesgotáveis ri-
quezas l a t e n t e s ; m e u n a c i o n a l i s m o é feito de a m o r e de c a r i n h o por
t u d o q u a n t o se r e l a c i o n a com o Brasil, de zelo pelo seu n o m e , de es-
forço pelo seu p r o g r e s s o , de sonhos pela s u a g l ó r i a . O meu naciona-
lismo f i g u r a p a r a m i m u m Brasil novo, rico e p o d e r o s o : o seu vas-
tíssimo t e r r i t ó r i o r a s g a d o de c a m i n h o s de ferro, os seus rios imensos
coalhados de b a r c o s , u n s e o u t r o s c o n d u z i n d o p a r a seus portos, con-
DISCURSOS BRASILEIROS 119

vertidos nos m a i s vastos e m p ó r i o s comerciais da terra, os produtos


v a r i a d o s d o seu seio e x u b e r a n t e : a i n s t r u ç ã o difundida até as mais
baixas c a m a d a s s o c i a i s ; as suas artes, as suas ciências, as suas in-
d ú s t r i a s levadas ao a p o g e u do d e s e n v o l v i m e n t o ; a sua p a l a v r a r e c e b i d a
com a c a t a m e n t o e respeito pelas m a i s p o d e r o s a s n a ç õ e s do m u n d o nas
conferências i n t e r n a c i o n a i s ; a sua r a ç a u n i d a , r o b u s t a e laboriosa, pro-
c u r a n d o fazê-lo c a d a d i a m a i s forte, m a i s culto e m a i s belo.

Moços, a m a i assim o B r a s i l ! Amai-o dêses a m o r q u e absorve a


p e r s o n a l i d a d e i n t e i r a , amai-o desse a m o r q u e se faz de a b n e g a ç ã o e
de sacrifícios, de d e v o t a m e n t o e de t e r n u r a ; amai-o, e o vosso a m o r o
i l u m i n a r á , e o vosso a m o r o t r a n s f o r m a r á em b r e v e nessa g r a n d e na-
cionalidade dos m e u s sonhos, r e s p e i t a d a e t e m i d a , progressista e fe-
c u n d a , gloriosa e feliz.
ALFREDO PUJOL

H o m e n a g e m à m e m ó r i a de S a d i - C a r n o t , P r e s i -
dente da República F r a n c e s a ; discurso p r o f e r i -
do n a sessão de 26-6-1894, n a C â m a r a dos Depu-
t a d o s de São P a u l o .

"Sr. Presidente:

U m a infinita desolação a c a b r u n h a neste momento o coração de


t o d o s aqueles q u e sentem u m a fibra de s i m p a t i a p o r essa g r a n d e e
g e n e r o s a F r a n ç a , •— u m a d a s m a i s belas, u m a das m a i s gloriosas, u m a
das mais irradiantes firmações do triunfo democrático na civilização
contemporânea.

É e s m a g a d o r a a i m p r e s s ã o q u e avassalou todos os espíritos repu-


blicanos, ao divulgar-se a notícia tristíssima de h a v e r sucumbido, à
miserável a g r e s s ã o de u m a n a r q u i s t a , a p e r s o n a l i d a d e e m i n e n t e q u e re-
p r e s e n t a v a a m a i s alta m a g i s t r a t u r a d a altíssima n a ç ã o , q u e é o o r g u l h o
da raça latina e que é a legítima depositária da supremacia intelectual
no mundo moderno.

A clamorosa notícia desse golpe tremendo, inesperado, formidá-


vel, q u e assim feriu o c o r a ç ã o de S a d i - C a r n o t , — como se rasgasse
u m a a r t é r i a d a altiva p á t r i a d a L i b e r d a d e — vai percutir na Europa
i n t e i r a , vai ecoar n a s m a i s elevadas e m i n ê n c i a s d o P o d e r e d a A u t o -
r i d a d e , como u m p a m p e i r o de devastação, como o sinistro e a t e r r a d o r
p r e g ã o do desespero q u e agita, numa convulsão apavorante, todos
esses legionários d a m i s é r i a , r u g i n d o i m p r e c a ç õ e s c o n t r a a o r d e m so-
cial, p r o c l a m a n d o p o r t o d a p a r t e a d e s t r u i ç ã o e o s a q u e , a anarquia
e a d e s o r d e m , a g u e r r a a o capital, à lei, à sociedade o r g a n i z a d a , à
DISCURSOS BRASILEIROS 121

a u t o r i d a d e constituída, — g u e r r a desvairada, g u e r r a implacável, s e m


t r é g u a s , sem p i e d a d e , s e m p e r d ã o !

V e m d e longe, r e b o a n d o de espaço a espaço, esse eterno protesto


das multidões, q u e é como a epopéia d a l o u c u r a , c a n t a n d o pelas i d a d e s
e m fora o despedaçamento de todas as t r a d i ç õ e s sociais, o esfacela-
m e n t o d e toda a o r d e m constituída, o e s b o r o a r d a s instituições, o des-
prestígio, a a n u l a ç ã o , o a r r a s a m e n t o d o p r i n c í p i o d a A u t o r i d a d e e d a
s o b e r a n i a d a Lei.

Na I n g l a t e r r a , o n d e , n a frase feliz d e u m publicista, — o p o d e r


p r o c u r a a d i a r a crise social, b u s c a n d o c o n q u i s t a r povos vassalos p a r a
o b t e r povos fregueses, — é i n j u r i a d a , n a p r a ç a p ú b l i c a a velhice sa-
grada de Gladstone, a portentosa intelectualidade que representa a
convergência d a s a s p i r a ç õ e s d o século, o g r a n d e oráculo da opinião
liberal d a E u r o p a , a e s t u p e n d a f i g u r a política, q u e fêz, dos direitos
de u m povo e s c r a v i z a d o ao despotismo d e u m r e g i m e i n t o l e r a n t e , a
a r m a potentíssima com q u e combateu p o r todas as liberdades! (Muito
bem)

Na Alemanha, o p r e s t í g i o secular, o prestígio tradicional, quase


fantástico, dos Hohenzollern, — d o m i n a n d o seus dois m i l h õ e s d e sol-
d a d o s e seus p e n s a d o r e s e seus filósofos — é s u b i t a m e n t e a b a l a d o pelos
a p u p o s c o m q u e a m u l t i d ã o s u r p r e e n d e o todo poderoso G u i l h e r m e I I !

E depois, n a E s p a n h a e n a Itália, e n a H o l a n d a , e n a Bélgica


e p o r toda a superfície d o velho m u n d o , alastra impetuosamente, e
cresce, e se a v o l u m a , e d o m i n a , a o n d a d e v a s t a d o r a dessa r e a ç ã o te-
m e r o s a , dessa t r á g i c a convulção d o sofrimento h u m a n o , q u e faz ante-
ver aos a l u c i n a d o s d a fome, e m seu sonho louco, u m m u n d o futuro,
u m m u n d o a b s t r a t o , q u e se i l u m i n a c o m o c l a r ã o dos i n c ê n d i o s e c o m
a c o l a b o r a ç ã o r u b r a do s a n g u e inocente d e seus i r m ã o s . (Muito b e m ! )

E coube, ontem, à F r a n ç a , o seu q u i n h ã o doloroso nessa lúgubre


partilha do sangue!

O golpe v a i c e r t e i r o à culminância do p o d e r público e abate,


sob a l â m i n a d e u m p u n h a l c r i m i n o s o , a f i g u r a a u s t e r a e d o m i n a d o r a
de S a d i - C a r n o t , a personificação da autoridade constitucional, a su-
p r e m a corporificação d a t r a d i ç ã o R e p u b l i c a n a ! (Muito b e m )
122 ANTOLOGIA D E FAMOSOS

O â n i m o m a i s viril, cheio de espanto p e l a m o n s t r u o s a calamidade


que vitimou a imorredoura nação, abatido diante da majestade desse
c a d á v e r de u m m á r t i r , extático ante a d o r p r o f u n d a q u e i n v a d e a alma
angustiada d a q u e l e povo, perde-se em divagações contraditórias, aco-
v a r d a - s e ante i g n o t a s apreensões, e, p o r m a i s q u e p r o c u r e a diretriz
dos acontecimentos, n ã o e n c o n t r a senão o v á c u o e m t o r n o à imensa
d e s g r a ç a q u e feriu a F r a n ç a ! (Pausa)

Sr. Presidente, sinto q u e m e faltam forças para reerguer esse


cadáver extraordinário (muito bem!) e p a r a apontá-lo à Democracia,
c o m o a síntese do vigor prestigioso dessa F r a n ç a a u d a z , q u e r e n a s c e u ,
esplendorosa, depois d o cataclismo de 70, p a r a a s c e n d e r a u m a altura
imensurável.

F a l t a m - m e forças p a r a descrever a trajetória luminosa desse pa-


triota, que pôde levantar a terceira república, através dos nevoeiros
d a c o n s p i r a ç ã o d o m o n a r q u i s m o e u r o p e u , e indicá-la ao m u n d o como
o t r i u n f o imperecível e s u r p r e e n d e n t e d a g r a n d e epopéia de 8 9 !

A sua glória basta, p o r é m , essa c o n q u i s t a d a política internacio-


n a l , q u e ligou o A u t o c r a t a moscovita à D e m o c r a c i a francesa, trazendo
às á g u a s de T o u l o n u m a frota, q u e foi a m e n s a g e i r a d a a l i a n ç a e n t r e
d u a s forças capazes de a b a l a r as coligações a m e a ç a d o r a s das potências
européias.

E esse g r a n d e a c o n t e c i m e n t o político, que importa uma vitória


p a r a a F r a n ç a , significa a a f i r m a ç ã o t r i u n f a l de seus destinos e a sa-
g r a ç ã o definitiva da República! (Muito bem!)

D i a n t e , senhores, da g r a n d e z a da d o r q u e o p r i m e a gloriosíssima
n a ç ã o , a C â m a r a dos D e p u t a d o s paulistas, q u e veio de u m a revolução
e sintetiza as a s p i r a ç õ e s do p a r t i d o r e p u b l i c a n o , n ã o p o d e permanecer
indiferente. (Apoiado)

N ó s , q u e b e b e m o s o alento p a r a as lutas d a propaganda repu-


b l i c a n a n a g r a n d e Revolução q u e foi o a d v e n t o d a Lei, a r e s s u r r e i ç ã o
d o D i r e i t o e a r e a ç ã o d a Justiça, — n a b e l a expressão de M i c h e l e t ;
nós, q u e , s o n h a n d o a g r a n d e z a d e nossa p á t r i a , fizemos d a Marselhesa
o h i n o vitorioso d a I d é i a N o v a , e a o h e r o í s m o r e v o l u c i o n á r i o da F r a n ç a
fomos p e d i r a lição generosa p a r a a h o n r a t r e m e n d a dos sacrifícios
DISCURSOS BRASILEIROS 123

e d a s p r o v a ç õ e s , nós, q u e nos c o n s u b s t a n c i a m o s com a s u a h i s t ó r i a ful-


gurante para encouraçar as nossas e n e r g i a s n a p u g n a pelo mesmo
ideal, — temos o dever de nos c u r v a r h o j e p e r a n t e o i n f o r t ú n i o do
povo francês e de c h o r a r , c o m êle, a p e r d a i r r e p a r á v e l q u e a c a b a de
sofrer! (Muito bem! Muito bem!)

A expressão d a s o l i d a r i e d a d e dos republicanos paulistas c o m a


i n e n a r r á v e l a n g ú s t i a q u e p r o s t r a o h e r ó i c o povo, — está consubstan-
c i a d a n a i n d i c a ç ã o q u e vou ter a h o n r a de obedecer à C â m a r a dos
Deputados.

E l a t r a d u z o sentir coletivo do espírito r e p u b l i c a n o deste pedaço


da América, cuja liberdade foi argamassada com as inspirações do
civismo f r a n c ê s ; ela i r á dizer a esse povo i m o r t a l q u e , se é v e r d a d e
q u e a F r a n ç a é a a l m a d o século e a c u l m i n â n c i a d a civilização, só
nesse solo se p u d e r a a b r i r o t ú m u l o d i g n o do filho q u e t a n t o amou
e enobreceu sua pátria!

E, se a essa d o r e n o r m e fosse p e r m i t i d o o consolo vão das pala-


v r a s , impotentes p a r a e s t a n c a r o s a n g u e de feridas t ã o p r o f u n d a s , nós
iríamos pedir à eloqüência de C a s i m i r Périer — o sucessor, talvez,
de S a d i - C a r n o t -— esta p a l a v r a de estímulo à extraordinária nação,
m a i s c h e i a de p r o m e s s a s q u e o p r ó p r i o futuro:

— " C i d a d ã o s de u m a d e m o c r a c i a l i v r e ! Se a m a i s v e r d a d e i r a m e n t e
a F r a n ç a , l u t a i , lutai s e m p r e , a despeito de todos os sofrimentos, por
essa c a u s a , q u e d u a s p a l a v r a s r e s u m e m : PÁTRIA E REPÚBLICA".
ARMANDO DE SALLES OLIVEIRA

Saudação às classes armadas da Nação no ban-


quete que o Governo de São Paulo lhe ofereceu
em 25-1-1936.

M e u s senhores,

Agradeço calorosamente a solicitude com q u e acedestes ao meu


convite e viestes p a r t i c i p a r desta cordial demonstração de afeto, de
respeito e de r e c o n h e c i m e n t o às classes a r m a d a s d a n a ç ã o .

Agradeço ainda aos brilhantes representantes do Exército e da


M a r i n h a , q u e , v i n d o ao R i o , t i v e r a m a l e m b r a n ç a de c o n f u n d i r a ho-
m e n a g e m q u e r e c e b e m com a p r ó p r i a h o m e n a g e m q u e q u e r i a m render
a S ã o P a u l o n o d i a em q u e a q u i c o m e m o r a m o s , com alegria e confian-
ça, m a i s u m a n i v e r s á r i o d e s u a fundação.

N o q u a d r o d a v i d a n a c i o n a l , f o r m a d o de vinte e u m a paisagens
diferentes, nós, paulistas, n e m s e m p r e somos j u l g a d o s c o m justiça pelos
q u e nos c o n h e c e m de longe. A nossa fisionomia g r a v e e r e s e r v a d a , a
s e r i e d a d e q u e p o m o s n a e x e c u ç ã o d a m e n o r de nossas tarefas, a h a b i -
tual a u s ê n c i a d o sorriso, a o b s t i n a ç ã o com q u e t e n t a m o s c o n q u i s t a r a
i n d e p e n d ê n c i a i n d i v i d u a l e a a p a r e n t e p r e d o m i n â n c i a dos interesses de
o r d e m m a t e r i a l , n ã o são feitas p a r a d e s p e r t a r u m a a t r a ç ã o i n s t a n t â n e a .
O c a r á t e r p a u l i s t a é como essas casas florentinas, de altas f a c h a d a s de
p e d r a , s o m b r i a s , espessas e fortes, n a s q u a i s u m a ou o u t r a abertura
é p o r acaso t a l h a d a . Para quem as olha com a vista b a i x a , essas
casas p a r e c e m i m p e n e t r á v e i s e r e s p i r a m desconfiança e orgulho. Se,
p o r é m , o olhar sobe, t e m u m a s u r p r e s a : o q u e se via com aparência
de p r i s ã o t e r m i n a n o alto em l a r g a s j a n e l a s , o r n a d a s de colunas es-
g u i a s e h a r m o n i o s a s e de u m p u r o r e n d i l h a d o de p e d r a . Quem e n t r a r
DISCURSOS BRASILEIROS 125

e m u m a dessas casas t e m nova s u r p r e s a : a c o l h e d o r a , t r a n q ü i l a e a g r a -


dável, ela recebe o a r e a luz de u m m e s m o p á t i o i n t e r i o r , o n d e u m a
fonte c a n t a n t e d e i x a c o r r e r a á g u a e a frescura.

Precisarei acrescentar mais alguns traços, p a r a t o r n a r mais fiel


este r e t r a t o d o povo p a u l i s t a ? P r e c i s a r e i dizer q u e a s u a r u d e vita-
l i d a d e , as suas l u m i n o s a s t r a d i ç õ e s b a n d e i r a n t e s , o seu p r e s e n t e trans-
b o r d a n t e de seiva e de fé c o n s t r u t o r a , são u m a r i q u e z a p a r a o B r a s i l ?

L o n g e de a m o r t e c e r a unidade nacional, o regionalismo dá-lhe


v i d a e colorido. A integridade territorial e espiritual n ã o é incom-
patível com a existência de u m r e g i o n a l i s m o persistente e vivaz. Uni-
d a d e n ã o significa uniformidade. Cada uma das regiões do país
cultiva e r e s g u a r d a as t r a d i ç õ e s locais, os costumes e as p e c u l i a r i d a d e s
d a v i d a social, m a s p e r m a n e c e b r a s i l e i r a , v i s c e r a l m e n t e b r a s i l e i r a . As
m ú l t i p l a s c o m b i n a ç õ e s dessa d i v e r s i d a d e é q u e c o n s t i t u e m a grandeza
da pátria.

Todos n ó s , brasileiros, g u a r d a m o s n a a l m a u m ú n i c o m o d o de ser,


u m a m e s m a religião, u m m e s m o instinto de p á t r i a . Pois, foi t u d o isto
q u e q u i s e r a m r o m p e r e e x t i n g u i r h á dois meses. Uma horda brutal,
c o n d u z i d a p o r agitados, d o Brasil d e m o c r á t i c o , do Brasil c r i s t ã o .

A tempestade comunista n ã o d e s a b o u s o b r e n ó s como o dilúvio


d a Rússia ou como o b á r b a r o ciclone q u e , p o r i n t e r m i t ê n c i a s , devasta
e martiriza a China. A q u i , ela a p a r e c e u como u m a rápida tromba
de fogo, q u e i n c e n d i o u a p e n a s três p o n t o s d o p a í s . M a s foi bastante
p a r a q u e deixasse impressos, no solo brasileiro, os sinais característicos
da ação bolchevista.

C o m e ç a n d o pela t r a i ç ã o e pelo m a s s a c r e , c o n t i n u o u , o n d e conse-


g u i u d o m i n a r alguns dias, pelo s a q u e e pelo cruel r e p ú d i o de todos
os direitos e de todos os respeitos h u m a n o s .

Felizmente, j á n ã o t r a z e m n a s m ã o s esses s o m b r i o s mistificadores


as p á g i n a s a i n d a n ã o a b e r t a s de teorias cheias de s e d u ç ã o . A expe-
r i ê n c i a está feita. O q u e e m 1917 e r a desconhecido, t e m hoje dezoito
anos d e implacável aplicação e de gigantescas p r o v a s . O sistema exer-
ceu a p r i n c í p i o u m a certa fascinação s o b r e m u i t o s espíritos, a r r a s t a d o s
pela m a g n é t i c a força de v o n t a d e dos h o m e n s ousados que tentavam
126 ANTOLOGIA D E FAMOSOS

i m p o r ao m u n d o u m a o u t r a o r d e m de civilização. M a s só a v o n t a d e
dos m o r t a i s e a t r a m a d a r a z ã o n ã o b a s t a m p a r a a s s e g u r a r a existên-
cia de u m sistema político. Os resultados, q u e temos d i a n t e dos olhos,
são concludentes e n ã o p o d e m ser sofismados.

A civilização, q u e o c o m u n i s m o procura destruir, tem na reali-


d a d e p o u c o m a i s de u m século. Nesse p e r í o d o , o p a t r i m ô n i o material
e intelectual d a h u m a n i d a d e enriqueceu-se de aquisições m a r a v i l h o s a s .
I n v e n t a r a m - s e novos meios p a r a o t r a n s p o r t e de frutos do t r a b a l h o e
do pensamento. Criou-se a i n d ú s t r i a , e os seus p r o d u t o s , em número
c a d a vez m a i o r , p a s s a r a m a ser d i s p u t a d o s p o r c o n s u m i d o r e s também
em n ú m e r o c a d a vez m a i o r . A a m b i ç ã o i n d i v i d u a l exercendo-se s o b r e
vastas regiões l o n g í n q u a s ainda inexploradas, suscitou o capitalismo
q u e , se deu u m p o d e r e x a g e r a d o a a l g u n s h o m e n s e gerou u m a nova
casta de privilegiados, foi s e m d ú v i d a o g r a n d e a n i m a d o r do t r a b a l h o
e o d i s s e m i n a d o r do b e m estar.

N o e n t r e c h o q u e d a s crises políticas, sociais e e c o n ô m i c a s , desapa-


rece r a p i d a m e n t e o primado do capital. O jovem e robusto capita-
lismo, q u e espalhou alguns males, m a s incentivou m u i t a s e n e r g i a s cria-
d o r a s , é a g o r a u m p o b r e velho d e c r é p i t o e inofensivo, contra o qual
t e m i a m em investir as lanças i m p a c i e n t e s de novos deuses, ansiosos de
se r e v e l a r e m . . .

0 capitalismo, p e r d e n d o o seu i m p é r i o e t r a n s f o r m a n d o - s e , desfaz


a distinção e n t r e b u r g u e s e s e o p e r á r i o s . O o p e r á r i o t e m os seus di-
reitos a m p a r a d o s e c a m i n h a p a r a a completa satisfação d e suas aspira-
ções. Quanto à burguesia, q u e foi a magnífica semeadora do pro-
gresso social e q u e a c u m u l o u t ã o vastos tesouros q u e n ã o os consegui-
r a m esgotar as convulsões dos últimos v i n t e a n o s , a b u r g u e s i a , grande
ou p e q u e n a , é o a n i m a l a c u a d o , q u e os c a ç a d o r e s c o m u n i s t a s perse-
g u e m com t r o m b e t a s e cães

P r i m e i r a v í t i m a de todos os reveses d a s nações, a b u r g u e s i a m a n -


t é m inalterável fidelidade aos i d e a i s de o r d e m e d e aperfeiçoamento
moral. N a i m e n s a m a i o r i a desses lares b u r g u e s e s , em q u e q u a s e todos
nós nascemos, t r a v a m - s e dolorosas e o b s c u r a s b a t a l h a s , n a s q u a i s se
s a c r i f i c a m s o b r e t u d o p o b r e s e h e r ó i c a s m ã e s , p a r a q u e n ã o faltem aos
filhos a e d u c a ç ã o e o p r e p a r o intelectual. Quantos desses brasileiros,
DISCURSOS BRASILEIROS 127

q u e t r a n s v i a d o s pelo v e n e n o m a r x i s t a , estão neste m o m e n t o segregados


d o convívio social e v ã o c e r t a m e n t e t e r m i n a r os dias n u m t a r d i o e
estéril r e m o r s o , n ã o d e v e m as posições de relevo, a q u e c h e g a r a m , às
p e r n a s e à solicitude de m ã e s a b n e g a d a s , g u i a d a s p o r esse ideal b u r -
guês q u e eles a todo o t r a n s e p r o c u r a m demolir?

Essas m ã e s e n s i n a m a v i r t u d e , a religião, o p a t r i o t i s m o . Ensinam


o t r a b a l h o , a r m a m o e s p í r i t o do filho c o n t r a o devaneio e a q u i m e r a .
Infelizes h o m e n s esses q u e , e s q u e c e n d o a leve e f i r m e f i g u r a materna,
oferecem o b r a ç o e a inteligência p a r a q u e se c o n s u m e u m m o n s t r u o s o
e m o r t a l r e c u o d a consciência humana!

E n t r e t a n t o , p o u c a s consciências haverá em q u e n ã o se t e n h a m
r a d i c a d o as noções de s o l i d a r i e d a d e , de c o o p e r a ç ã o e de dever social.
Transformou-se a a n t i g a e espessa m e n t a l i d a d e d o p a t r ã o . O patrão
d e i x o u de c o n s i d e r a r c o m o p r i n c i p a l função do E s t a d o a de a s s e g u r a r
a t r a n q ü i l a posse dos seus privilégios. E s a b e q u e , s e m concessões aos
direitos do t r a b a l h a d o r , o p o d e r e c o n ô m i c o l h e e s c a p a r á d a s m ã o s .

A t r a n s f o r m a ç ã o , fora d o Brasil, n ã o se fêz s e m u m a l u t a infla-


m a d a , de sorte q u e c a d a r e i v i n d i c a ç ã o vitoriosa dos t r a b a l h a d o r e s e r a
recebida n ã o como a outorga de u m direito, f i n a l m e n t e reconhecido,
m a s como u m a concessão a r r a n c a d a p e l a força.

Ao mesmo tempo q u e as classes desfavorecidas arvoravam novas


r e i v i n d i c a ç õ e s e, e m f o r m a ç õ e s eleitorais d i a a d i a m a i s densas, au-
mentavam o seu prestígio, a demogogia ganhava novos estímulos e
tornava-se nos p a r l a m e n t o s a defensora ardente e intransigente das
medidas mais extremadas e mais perigosas.

N o Brasil, n ã o foi n e c e s s á r i a a p r e s s ã o d e p a r t i d o s poderosos, n e m


a violência e o t u m u l t o d e greves d e s e s p e r a d a s , p a r a q u e se decretasse
u m a legislação social capaz d e satisfazer os anseios d a s classes t r a b a -
lhadoras. N e l a h á defeitos e h á l a c u n a s , m a s , a i n d a assim, é uma
l a r g a , generosa e espontânea obra d e justiça social. Podemos dizer
com o r g u l h o q u e as nossas leis sociais n ã o são m o r d a ç a s d o u r a d a s , con-
c e b i d a s e a p l i c a d a s p a r a sufocar os g e m i d o s e a revolta dos d e s e r d a d o s .

C u m p r e - n o s , p o r é m , n ã o p e r d e r d e vista as r e a l i d a d e s e evitar o
p e r i g o t a n t a s vezes d e n u n c i a d o e a n a l i s a d o p o r publicistas e h o m e n s
128 ANTOLOGIA DE FAMOSOS

de E s t a d o de o u t r o s países. Sobrecarregando pouco a pouco a nação


de e n c a r g o s excessivos, fazemos o j o g o dos i n i m i g o s e resvalamos p a r a
o coletivismo.

Os a d v e r s á r i o s e x t r e m i s t a s d a d e m o c r a c i a , n a i m p o s s i b i l i d a d e de
d o m i n a r pela a ç ã o d i r e t a e fulminante, empregam outra tática. Dão
t e m p o ao t e m p o e e m p r e e n d e m a realização p a c i e n t e e g r a d u a l do seu
objetivo máximo, promovendo através das medidas orçamentárias a
transferência sistemática d a r i q u e z a p r i v a d a p a r a o E s t a d o . As des-
pesas n a c i o n a i s t o m a m p r o p o r ç õ e s i m e n s a s e as m ã o s do E s t a d o alcan-
ç a m c a d a vez m a i s longe. N ã o resistindo à p r e s s ã o das clientelas elei-
t o r a i s , os r e p r e s e n t a n t e s do povo, p r e o c u p a d o s a p e n a s com o próprio
futuro, p r o d i g a l i z a m , sem m e d i r , as g e n e r o s i d a d e s do Estado.

Se se c o n s i d e r a p o r o u t r o l a d o q u e o g o v e r n o moscovita se dispõe
a r e n u n c i a r à o r t o d o x i a de a l g u n s de seus preceitos, n ã o s e r i a de es-
p a n t a r q u e chegasse o d i a em q u e nos e n c o n t r á s s e m o s todos n a m e s m a
estrada. P o r ela c o m e ç a r i a o m u n d o u m a n o v a j o r n a d a , n a q u a l se
c a r r e g a r i a m c o m o m e r o s troféus todos os gloriosos e s t a n d a r t e s de nossa
civilização.

Se as forças que empunham esses e s t a n d a r t e s deixassem de se


u n i r , n ã o p a r a a simples resistência, m a s p a r a a ofensiva perseverante
e vigorosa c o n t r a os p a r t i d á r i o s , d e c l a r a d o s ou encobertos, conscientes
ou inconscientes, d o coletivismo m a r x i s t a , o sol de Moscou p a s s a r i a a
i l u m i n a r o m u n d o , e, n a i m a g i n a ç ã o dos povos, o t ú m u l o de L e n i n e
tomaria o lugar da Cruz...

D o r e g i m e político d o Brasil, p o r c u l p a d e S ã o P a u l o , n ã o se d i r á ,
c o m o de outros, q u e pereceu, n ã o pela força dos q u e o a t a c a r a m , m a s
pela f r a q u e z a dos q u e o d e f e n d e r a m . D e São P a u l o n ã o p a r t i r á um
gesto q u e incentive a confusão e a i n s t a b i l i d a d e , m a s a p a l a v r a e a
a ç ã o q u e d e f e n d a m u m r e g i m e como o nosso, e m i n e n t e m e n t e adequado
p a r a p r e s e r v a r a o r d e m social e a i n t e g r i d a d e d a n a ç ã o .

A superstição d a i m o b i l i d a d e política é inconciliável com o go-


verno republicano — r e g i m e de incessante a p e r f e i ç o a m e n t o . Altere-se
a Constituição q u a n t a s vezes seja preciso, m a s p a r a fortalecer o p o d e r
dos q u e t ê m o e n c a r g o de aplicá-la e n ã o p a r a e n f r a q u e c e r e anular
esse p o d e r .
DISCURSOS BRASILEIROS 129

N ã o é a i n s t a b i l i d a d e q u e nos t e m faltado, nestes últimos anos


de sobressaltos e de lutas, a l g u m a s d a s q u a i s s a c u d i r a m de alto a b a i x o
o país. Restabelecemos a o r d e m legal, fizemos a Constituição e vemos
a g o r a e m nossa frente, de a r m a s n a m ã o , u m i n i m i g o astucioso, forte
e audaz. 0 nosso dever é c e r r a r fileiras em t o r n o d o Executivo e pro-
c u r a r g a r a n t i r à n a ç ã o a paz q u e r e s t a u r e a autoridade.

0 r e g i m e p r e s i d e n c i a l é a r o b u s t a a r m a d u r a com q u e defendere-
mos as instituições republicanas. Não a trocaremos por outra, per
mais b r i l h a n t e q u e seja a s u a a p a r ê n c i a . A lição d o q u e se passa
com os povos q u e q u e r e m vencer as suas crises s e m a p e l a r para o
s u p r e m o r e c u r s o de u m a d i t a d u r a d a d i r e i t a , traça-nos o c a m i n h o . Po-
d e r e m o s , se q u i s e r e m , ajustar m e l h o r a c o u r a ç a do sistema p r e s i d e n c i a l
ao c o r p o do Brasil, m a s com o objetivo de lhe d a r u m p o d e r executivo
forte, capaz de a s s e g u r a r a o r d e m p ú b l i c a , de r e p a r a r as finanças e
d e a n i q u i l a r as investidas bolchevistas.

Faça-se a u n i ã o nacional, m a s pela colaboração dos p a r t i d o s , deci-


d i d o s a p ô r os m ó v e i s coletivos a c i m a das considerações pessoais e dos
interesses facciosos. Os nossos h o m e n s públicos t ê m a o b r i g a ç ã o de
d a r nesta h o r a a d e m o n s t r a ç ã o de q u e n ã o é necessário o bafejo vivi-
ficante de p o d e r p a r a q u e eles e x e r ç a m u m a ação vigilante e p a t r i ó -
tica.

O q u e c a r a c t e r i z a a ofensiva bolchevista é o seu í m p e t o , o seu


entusiasmo, a sua confiança. Em face dela, as democracias defen-
dem-se com moleza, fazem p r a ç a de pessimismo, a b a s t a r d a m - s e n o ce-
ticismo. Para enfrentar aquela mística a r d e n t e , aquela unidade de
doutrina, aquela disciplina integral e aqueles processos infalíveis de
i n f i l t r a ç ã o e de a t a q u e , p e r g u n t a m os céticos: q u e oferecem os p o b r e s
países burgueses ?

C a b e ao Brasil dar-lhes resposta. U m povo jovem, q u e q u e r con-


servar a sua independência, n ã o se p o d e c o n f o r m a r com u m a atitude
n e g a t i v a , s e m g r a n d e z a e sem f u t u r o . As nossas i d é i a s n ã o são novas,
m a s nós as r e n o v a m o s pela força com q u e as s u s t e n t a m o s . À famosa
mística internacional nós oporemos a mística eterna da pátria. À
d o u t r i n a d a i g u a l d a d e , m a s da i g u a l d a d e n a s e r v i d ã o e n a m i s é r i a , n ó s
o p o r e m o s a da i g u a l d a d e q u e p e r m i t e a q u a l q u e r h o m e m escalar os
130 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

p o n t o s m a i s elevados d a v i d a social e q u e p e r m i t e a livre e x p a n s ã o de


todas as forças criadoras. À disciplina feita de constrangimento e
p a r a fins m a t e r i a i s , n ó s o p o r e m o s a q u e se f u n d a n a obediência volun-
t á r i a e n a s u p r e m a c i a da o r d e m espiritual. A o c h o q u e de suas orga-
nizações t e r r o r i s t a s , nós o p o r e m o s as nossas p r ó p r i a s o r g a n i z a ç õ e s de
choque. À s u a ofensiva s a n g u i n á r i a e s e m e a d o r a de ódios, nós opo-
r e m o s o h e r o í s m o a b n e g a d o de nossas classes a r m a d a s , q u e temos de
c e r c a r de prestígio e d e respeito e de p r o v e r dos elementos m a t e r i a i s ,
q u e lhes faltarem, p o r q u e e m suas m ã o s r e p o u s a m a sorte e a h o n r a
d o Brasil.

N ã o nos c o n t e n t a r e m o s com o paliativo de simples m e d i d a s de


repressão, q u e resolvem a p e n a s os e m b a r a ç o s do presente. O q u e sen-
timos, n a raiz de t o d a s as nossas dificuldades e de todos os nossos
desentendimentos, é q u e o p r o b l e m a brasileiro é u m p r o b l e m a de edu-
cação. R e a g i n d o c o n t r a a indiferença geral e c o r r i g i n d o u m sistema
p e d a g ó g i c o q u e t e m como p r i n c i p a l objetivo o desenvolvimento do in-
d i v í d u o como célula i n d e p e n d e n t e no o r g a n i s m o social, cabe-nos esta-
belecer u m l a r g o p r o g r a m a de educação nacional. E a alma desse
p r o g r a m a será u m a estreita coesão' e n t r e a U n i v e r s i d a d e e o Exército,
q u e p a s s a r i a m a ser a l i m e n t a d o s p o r u m a ú n i c a corrente de fé p a t r i ó -
tica.

O l h a n d o p a r a o q u e se passa nos g r a n d e s países, vemos q u e , p a r a


i m p r i m i r novo e n t u s i a s m o e d a r novo s a n g u e à m o c i d a d e , os nacio-
nalismos de todos os matizes assenhoreiam-se da e d u c a ç ã o , dirigem-na
e fazem dela u m a irresistível força de disciplina e de s o l i d a r i e d a d e .

A Itália, t o r n a n d o inseparáveis as funções de soldado e de cida-


d ã o , d á c a r á t e r m i l i t a r à severa e d u c a ç ã o de seus filhos. Na Alema-
n h a , o E s t a d o apodera-se da m o c i d a d e e impõe-se-lhe o culto d a g u e r r a ,
p r o p a g a d o e e x a l t a d o e m t o d a s as U n i v e r s i d a d e s .

M e s m o n a I n g l a t e r r a e nos Estados U n i d o s , o n d e o serviço m i l i t a r


r e p o u s a n o e n g a j a m e n t o voluntário, considerável p a r t e dos h o m e n s vá-
lidos faz u m estágio completo e m o r g a n i z a ç õ e s especiais — exército
t e r r i t o r i a l na I n g l a t e r r a , g u a r d a n a c i o n a l nos Estados U n i d o s .

A F r a n ç a , em q u e o E x é r c i t o é u m fiel r e s u m o da n a ç ã o e> a sua


m a i s alta expressão espiritual, a p r ó p r i a França n ã o se descuida do
DISCURSOS BRASILEIROS 131

p r o b l e m a vital. E m escritos e conferências de p r o f u n d a repercussão,


os g r a n d e s chefes militares pregam todos os dias a necessidade d e
vivificar o sistema m i l i t a r p o r u m a política d e e d u c a ç ã o n a c i o n a l .

O p o n t o d o m i n a n t e dessa política é a a ç ã o d a m o c i d a d e pelo es-


t r e i t a m e n t o dos laços e n t r e a Escola e o E x é r c i t o .

E o Brasil? N ã o m e c o m p e t e a m i m d e l i n e a r a s bases concretas


dessa obra necessária de consolidação nacional. Mas, com toda
v e e m ê n c i a d e m e u s sentimentos, e u vos concito a p e s a r a s vossas res-
p o n s a b i l i d a d e s d i a n t e desta brilhante mocidade da Universidade de
S ã o P a u l o e d a s classes a r m a d a s , vós, chefes m i l i t a r e s e professores,
q u e tendes a m i s s ã o d e d i s s e m i n a r a preparação patriótica moral e
intelectual, s e m a q u a l o Brasil n u n c a s e r á u m a g r a n d e n a ç ã o .

P a r t i c i p a n d o dessa festa, c o n f r a t e r n i z a n d o dentro d o m e s m o pen-


s a m e n t o de defesa d a n a c i o n a l i d a d e e d a s instituições, a c h a m - s e r e p r e -
sentantes d e todas as forças m o r a i s e e s p i r i t u a i s d o p a í s . A q u i estão,
a o l a d o de professores e d e alunos d a U n i v e r s i d a d e , d e ilustres r e p r e -
s e n t a n t e s d o E x é r c i t o e d a M a r i n h a , d a saudável m o c i d a d e d a Escola
Militar, d a i m p r e n s a , d a l a v o u r a , d o comércio, d a i n d ú s t r i a , d a s cor-
p o r a ç õ e s profissionais e do funcionalismo.

A q u i estão a F o r ç a P ú b l i c a de S ã o P a u l o e as o u t r a s c o r p o r a ç õ e s
e s t a d u a i s , q u e r e s p o n d e m d i r e t a m e n t e pela s e g u r a n ç a d e nossas casas
e pela t r a n q ü i l i d a d e do t r a b a l h o coletivo- S ã o fiéis a m i g o s e servido-
res, e estão i n t e g r a d o s n a e s t i m a d o povo paulista p e l a disciplina e pela
eficácia d e suas u n i d a d e s .

Aqui estão e m i n e n t e s sacerdotes, r e p r e s e n t a n t e s dessa i g r e j a q u e


velou j u n t o d o modesto b e r ç o d e S ã o P a u l o , e g u i o u , pela m ã o d e
A n c h i e t a , os p r i m e i r o s passos paulistas. Pelo papel que desempenha-
r a m n a h i s t ó r i a nacional e pelo vigor c o m q u e d e f e n d e m a lei cristã,
são os aliados n a t u r a i s n a l u t a e m q u e p r o c u r a m o s i m p e d i r q u e p e r e ç a
a p r ó p r i a s u b s t â n c i a d o espírito.

A q u i estão os o p e r á r i o s , os modestos, inteligentes, a d m i r á v e i s ope-


rários de São Paulo. Indiferentes à p r e d i c a c o m u n i s t a , a c r e d i t a m n a
família, a c r e d i t a m e m Deus, a c r e d i t a m n a s u p r e m a c i a d a s forças mo-
rais. S ã o t a m b é m nossos aliados, e os q u e m e l h o r d i s t i n g u e m a m o e d a
132 A N T O L O G I A D E FAMOSOS

falsa d a v e r d a d e i r a , n o trágico balcão em q u e m e r c a d o r e s insidiosos


oferecem miríficos preços e v a n t a g e n s em troca de u m a a d e s ã o .

Soldados, m a r i n h e i r o s , professores, sacerdotes, o p e r á r i o s e todos


vós q u e concorreis com o vosso l a b o r e o vosso exemplo p a r a a g r a n -
deza da p á t r i a , recebei a s a u d a ç ã o de São P a u l o , n o d i a e m q u e se
festeja a sua f u n d a ç ã o e em q u e , selamos este c o m p r o m i s s o de defender,
com o c o r a ç ã o e com o s a n g u e , a b a n d e i r a da n a c i o n a l i d a d e e as in-
sígnias da civilização cristã.
ALOYSIO DE CASTRO

Saudação aos delegados nacionais ao 4? Con-


gresso Médico Latino-Americano, proferida n a
sessão solene d a Academia Nacional de Medici-
n a , em homenagem aos membros do mesmo
Congresso, em 30-7-1909.

Senhores,

A c o l h e n d o n o seu teto, a o l a d o dos egrégios r e p r e s e n t a n t e s estran-


geiros, os delegados n a c i o n a i s a o Congresso m é d i c o latino-americano,
a nossa A c a d e m i a quer exprimir a u n s e o u t r o s as s u a s profundas
simpatias.

Aqueles r e p r e s e n t a m , n a n o b r e z a d e sua l i n h a g e m , o q u e as na-


ções a m e r i c a n a s possuem d e m a i s c a r o e p r e c i o s o : eles c o n c r e t i z a m a
força do espírito científico, e n c a r n a m o vigor d a raça latina, a alma
d a s suas t r a d i ç õ e s e a opulência d o seu g ê n i o .

Vós, meus d i g n o s colegas, n ã o o fazeis menos. Personificais o


t i p o d o m é d i c o brasileiro, cujo desinteresse e l i b e r a l i d a d e n ã o s a b e m
restrições a o l a d o d o doente. Votam-vos à vossa profissão os p r i m o r e s
dos corações b e m n a s c i d o s : a q u e l a i n c l i n a ç ã o n a t u r a l p a r a a v i r t u d e ,
a q u e l a luz i n t e r i o r , q u e é o segredo d a s a l m a s a b e n ç o a d a s ; servis à
g r a n d e z a dos seus desígnios com a secreta i n s p i r a ç ã o de u m instinto
m i s t e r i o s o ; c o n s u b s t a n c i a i s n o vosso o r n a m e n t o m o r a l a s u p r e m a ex-
p r e s s ã o d e u m a beleza inefável; e a mesma imagem da vida, tantas
vezes d e s f i g u r a d a pelas m i s é r i a s h u m a n a s , se r e g e n e r a n a s vossas faces
c o m o u n s toques de s a n t i d a d e .

Esta festa, onde v i b r a o espírito d a intelectualidade brasileira, é


u m exemplo p a r a ser i m i t a d o , transmite-nos a m a g i a dos b o n s estímu-
134 ANTOLOGIA DE FAMOSOS

los, dá-nos o segredo das invencíveis e n e r g i a s , q u e h ã o de assegurar


à nossa m e d i c i n a a c o n t i n u i d a d e d o renome.

A t e n t a n d o nos propósitos q u e a q u i nos t r a z e m reunidos, a nin-


g u é m seria d a d o p e n s a r n a q u e l a s á t i r a com q u e nos fulminou a mor-
d a c i d a d e de C a m i l o Castelo B r a n c o , ao a f i r m a r ( p o b r e s de n ó s ! ) , q u e
maior do q u e o ódio dos clérigos só o dos médicos... Ainda bem
q u e desta vez p o d e m o s desmenti-la, agora que, na harmonia de tão
n o b r e s intenções, nos sobrepomos às lutas estéreis. O l h a n d o d o alto,
l e m b r a m o - n o s a p e n a s de q u e professamos todos o m e s m o culto, movidos
das m e s m a s a s p i r a ç õ e s e c r e n ç a s q u e se n ã o c o r r o m p e m , m i n e r a n d o o
o u r o dos mesmos veios, c a v a n d o n o m e s m o i n e x a u r í v e l filão.

É sob tão auspiciosas a l v o r a d a s q u e está p o r a b r i r - s e o Congresso,


a q u e vindes.

A l g u m de nós, m a i s cético, talvez esteja a rir-se, lá p o r d e n t r o , da


eficácia de tais r e u n i õ e s , e m q u e as m a t é r i a s se discutem em número
certo de m i n u t o s e os textos são m e d i d o s p o r p á g i n a s c o n t a d a s .

Mas não há para q u e se n e g u e a v a n t a g e m delas, r e a l ç a d a no


e x e m p l o dos congressos e u r o p e u s . S e m p r e nos fica, pelo menos, a q u e l a
p a r c e l a de u t i l i d a d e q u e h á n o f u n d o d e t o d a s as coisas.

B e m se d e i x a v e r q u e n ã o lhes h a v e m o s p e d i r m a i s do q u e po-
d e m d a r , l e v a n d o d e m a s i a d o longe os seus p r o p ó s i t o s . Servem à di-
fusão d a s idéias, e m b o r a m u i t a s vezes os fatos q u e aí se assentam,
v e n h a m a ficar, c o m o a n d a r do t e m p o e à luz do estudo, nulos, írritos,
nenhuns.

M a s n e m de o u t r a f o r m a se fêz, e se faz, a evolução das ciências!


biológicas. A razão indagadora, quando não recua d a s soluções in-
tangíveis, n u n c a vai direito a o f i m ; e p r i m e i r o q u e o alcance, a cor-
r e n t e d a s d o u t r i n a s sofrerá o seu v a i v é m .

Quanto mais caminham as ciências, mais necessários se fazem


esses centros p a r a o c o m é r c i o das opiniões. P e l a p e r g u n t a das i d é i a s
e pelo e x a m e i m p a r c i a l dos fatos se destecem as dificuldades. E não
r a r o é p o r g r a ç a de tais esforços disciplinados q u e a v e r d a d e se nos
e n t r e m o s t r a com a nitidez da luz.
DISCURSOS BRASILEIROS 135

O fato é q u e todos os anos, como s e a r a s q u e a m a d u r e c e m , aqui


e ali m e d r a m os congressos, o n d e se e x p a n d e a a t i v i d a d e d a s g e r a ç õ e s
lutadoras.

Neles t r i u n f a , a p a r do p r o g r e s s o científico o progresso moral,


pelo a p e r f e i ç o a m e n t o d o espírito h u m a n o . E os h o m e n s , q u e a na-
t u r e z a s e p a r o u pelas distâncias e pelos p e r i g o s d a t e r r a e do m a r , se
identificam e se a p r o x i m a m pelo p e n s a m e n t o p a r a servir às necessi-
d a d e s d a consciência universal.

N o nosso continente, tais congressos científicos n ã o valem tão-só


a expressão do nosso a d i a n t a m e n t o . Ao m e s m o passo q u e nos forti-
ficam os créditos d a cultura, consolidam a a l i a n ç a dos países a m e r i c a -
nos, são u m elemento de p a z a m e r i c a n a . Nada é mais acomodado
p a r a mantê-la, do q u e o a c o r d o dos h o m e n s de ciência. E das m a r a -
vilhas desta ação benéfica, a q u e n ã o f a l t a r ã o as glorificações d a his-
t ó r i a , p r o m a n a u m a influência imortal, q u e se p r o l o n g a r á m u i t o além
dos horizontes d a nossa época.

N o t r a b a l h o d e m ã o c o m u m c o m os sábios médicos estrangeiros,


q u e ventos g a l h a r d o s t r o u x e r a m a t é n ó s , reviverão os i n s t r u m e n t o s d a
nossa s o l i d a r i e d a d e c o m eles, n u m a h a r m o n i a de aspirações e senti-
mentos, q u e h á de m a n t e r - s e i n c o r r u p t a a t r a v é s do t e m p o .

Para colaborar com aqueles amigos, v i n d e s , caros compatriotas,


com as vossas insígnias h e r á l d i c a s . F u l g e n a vossa fronte, com u m
disco r a d i a n t e , o símbolo d a d i g n i d a d e profissional. M a s , sois, a c i m a
d e t u d o , b r a s i l e i r o s ; a p a r e c e i s aos nossos olhos como a p á t r i a viva, o
gênio d a nossa n a c i o n a l i d a d e , q u e o n d e q u e r q u e se faça sentir, a c o r d a
d e n t r o d e n ó s as notas dos h i n o s t r i u n f a n t e s , a chama heróica das
energias imprevistas.

É t e m p o , senhores, d e e n c u r t a r a s velas a esta s a u d a ç ã o .

A delegação de q u e m e vejo i n c u m b i d o é h o n r a d a s q u e se n ã o
r e q u e s t a m , e m u i t o m e n o s se r e c u s a m . M a s t o m a r a eu l i v r a r - m e hoje
deste e n c a r g o , de falar a u m a assembléia t ã o i l u m i n a d a , q u e está a
p e d i r - m e a a u t o r i d a d e , q u e m e falece, dos cabelos b r a n c o s .

P a r a c o r r e s p o n d e r à a l t u r a do seu objeto, q u i s e r a p a r a estas pala-


v r a s os moldes b r ô n z e o s das letras clássicas, cm o v o c a b u l á r i o d a s lín-
136 ANTOLOGIA D E FAMOSOS

guas mortas. N a d a disso tive p a r a dar-vos. T e n d e s d e contentar-vos


com a m i n h a discreta l i n g u a g e m , o n d e n e m a o m e n o s soube p ô r u m
p o u c o d a q u e l e estilo h e r ó i c o e t o m g r a n d í l o q u o , d e q u e se u s a e a b u s a
n a s orações a c a d ê m i c a s . N ã o l h e faltou, p o r é m , o s o p r o d a sinceri-
d a d e ; e estou p a r a dizer q u e êle vale, à s vezes, p o r u m a i n s p i r a ç ã o
homérica.

D e i x a i a i n d a q u e vos d i g a , q u e a A c a d e m i a m e m a n d o u receber-
-vos c o m p r i m o r e s de a m i g o . Ela e m p e n h a o m e l h o r dos seus votos
pela vossa felicidade e pela p r o s p e r i d a d e incessante d a vossa v i d a pro-
fissional, concitando-vos a p r o s s e g u i r s e m descrer das maravilhas da
ciência, e s e m n u n c a arrefecer o primeiro fervor.

C o n s a g r e m o s , pois, a ela, à e t e r n a v e n c e d o r a , a r e v e r ê n c i a diu-


t u r n a a q u e t e m direito, t r a n s f u n d i n d o - n o s n o seu culto como nos alta-
res se t r a n s f u n d e , n o fulgor d a c h a m a , o óleo d a s l â m p a d a s s a g r a d a s .

M a s hoje descansemos, por comemorar, no meio de t r a b a l h o s a


v i a g e m , o regozijo do nosso encontro, à s o m b r a d o a r v o r e d o frondoso
q u e a g o r a nos acolhe. E tal como n a s h o r a s d e solidão e d e silêncio,
ficamos a cismar, contemplando, n u m s u a v e gozo d'alma, o reflexo
m o v e d i ç o d a s nossas e s p e r a n ç a s , deixemos v a g a r os olhos d e r r e d o r de
nós mesmos, e m busca d a q u e l a dose d e ilusão, t ã o p r o p í c i a à m e d r a n ç a
d e todas a s iniciativas e a o p r o g r e s s o de todas a s fundações.

P r e p a r a n d o - n o s p a r a o t r a b a l h o , sentiremos, n a p r o m e s s a d e suas
bênçãos, a s alegrias secretas, q u e a f u g e n t a m p o r instantes a s e t e r n a s
tristezas d o nosso destino melancólico, e v i b r a m nos nossos corações
c o m o u m eflúvio celeste.
ALOYSIO DE CASTRO

N a Faculdade de Direito de São Paulo, em


11-5-1927.

N ã o foi, senhores, sem u m s e n t i m e n t o de p r o f u n d o respeito que


h á pouco t r a n s p u s o p ó r t i c o desta F a c u l d a d e , o n d e a vossa gentileza
a g o r a m e recebe com tão fino p r i m o r . P o r q u e de longe, m u i t a s vezes,
pelo dever d a s m i n h a s funções e pela í n t i m a convivência d a l g u n s dos
vossos, ouço esta casa, n a g r a n d e voz do seu saber. Volvendo para
ela o p e n s a m e n t o , é a todos vós q u e a u m só t e m p o estou vendo, são
todos aqueles q u e p o r a q u i p a s s a r a m , p a r a l e v a r depois a todos os
pontos da nossa t e r r a as opulências d a intelectualidade brasileira.

A q u i a escola da lei, o templo dos j u r i s t a s ; a q u i a g r a n d e oficina


m e n t a l de o n d e s a í r a m a d m i n i s t r a d o r e s e estadistas, aqueles q u e ali-
c e r ç a r a m , n o I m p é r i o e n a R e p ú b l i c a , o progresso e a g r a n d e z a da
pátria.

Se o l h a r p a r a t r á s , de q u a n d o em q u a n d o , é o m e l h o r meio de
caminhar à frente, seja-me concedido, nestas p r i m e i r a s p a l a v r a s , re-
volver-me ao a d m i r á v e l p a s s a d o q u e é a vossa glória e a vossa força,
o fecundo estímulo dos mestres, q u e nos dias do presente perpetuem
luzidamente a fama que herdaram.

É-me d e v e r a s g r a t o , nesta o p o r t u n i d a d e , quando pela generosa


confiança do b e n e m é r i t o P r e s i d e n t e d a R e p ú b l i c a , m e acho investido
d a d i r e ç ã o geral do ensino, manifestar-vos, ao v e n e r a n d o professor q u e
com t a n t a s a b e d o r i a e distinção p r e s i d e nesta F a c u l d a d e , e a todos os
insignes m e m b r o s n a C o n g r e g a ç ã o , o justo a c a t a m e n t o em q u e t e n h o
este Instituto, e q u a n t o m e p r e z o d a sua colaboração, n a qual m e hon-
r a r e i de t o m a r conselho.
138 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

Vós tendes s a b i a m e n t e realizado o v e r d a d e i r o p r o g r a m a de envol-


v e r c o n s e r v a n d o a t r a d i ç ã o , c o n f o r m a n d o o p a s s a d o e o presente nas
sucessivas gerações, através d o incessante r e n o v a r das i d é i a s . Outros
t e m p o s , o u t r a s coisas. M a s o n t e m como hoje, a q u i e e m t o d a a p a r t e ,
n a d i v e r s i d a d e dos fatos e em m e i o às crises h u m a n a s , a i m u t á v e l so-
b e r a n i a do direito, q u e se a m p l i a , se desdobra, se fortifica, como a
ú n i c a s e g u r a n ç a d a felicidade dos povos.

T e r e m o s nós t a m b é m , através das nossas comoções políticas, du-


r a m e n t e e x p e r i m e n t a d o reveses e perigos. M a s u m p a í s q u e se r e g e
pelas bases l i b e r a i s da nossa Constituição, e o n d e a consciência jurí-
d i c a renasce fortalecida das vicissitudes q u e p a r e c i a m enfraquentá-la,
n ã o p o d e t r e m e r dos seus destinos.

N ã o é a voz dos políticos q u e a g o r a fala, é o sentir u n â n i m e do


povo q u e se l e v a n t a n a e s p e r a n ç a de u m p e r í o d o florente p a r a a nossa
história. 0 restabelecimento d a o r d e m no país, t ã o inteligentemente
levado a efeito pelo conspícuo chefe d a N a ç ã o , q u e conseguiu digni-
ficar o prestígio d a a u t o r i d a d e d e n t r o das n o r m a s l i b e r a i s e do m a i s
edificante exemplo democrático, deve c o n g r e g a r numa união sincera
todos os brasileiros, n o esforço coletivo pelo b e m c o m u m e pela pros-
peridade da pátria.

F a l a n d o nesta ilustre F a c u l d a d e , d i a n t e dos moços, oxalá pudesse


eu avivar-lhes, n o c o r a ç ã o , a luz de u m a c r e n ç a nova, despertar-lhes,
n a a l m a e m flor, a a d o r a ç ã o do ideal, n a i m a g e m dos g r a n d e s exem-
plos. Esses q u e a g o r a , com felicidade, busco d e n t r e os m o r t o s , e n i m -
b a d o de o u t r a luz se nos e r g u e a n t e os olhos, como se a q u i estivera
d e p r e s e n ç a a p r e s e n ç a , s a i n d o d o silêncio vil e cruel onde o esqueci-
m e n t o como p a r e c e velá-lo, esse, hoje vos falará de novo n a q u e l a g r a n -
diosa " O r a ç ã o aos m o ç o s " , q u e êle escreveu p a r a ser lida nesta casa,
como a a u g u s t a lição dos seus d e r r a d e i r o s d i a s .

P r o v e m o s a g o r a , nesta evocação a R u i B a r b o s a , q u e as p a l a v r a s
d o fim de s u a v i d a n ã o e r a m , q u a l a m a r g a m e n t e supôs, p a l a v r a s de
u m dia, " f o l h a s de á r v o r e m o r t a q u e talvez n ã o v i n g u e m os de a m a -
nhã". É êle q u e vos está a concitar n u m a e x o r t a ç ã o q u e se d i r i a feita
p a r a o m o m e n t o a t u a l : " M ã o s à o b r a de r e c o n c i l i a r m o s a v i d a n a c i o n a l
c o m as instituições nacionais".
DISCURSOS BRASILEIROS 139

P a r a isso, c a d a u m n o seu d e v e r . Sede observantes dos vossos,


p r a t i c a n d o em t u d o a p a l a v r a d o m e s t r e , q u e n a s p r o v a s d o l a b o r e
do patriotismo cada d i a enflorava e m s u a coroa n o v a g e m a , e medi-
tai-lhe a o b r a e o e x e m p l o .

M a s a g o r a vejo, m e u s jovens, não sou eu q u e m vos a p o n t a o


m o d e l o excelso, é o s u p r e m o m a g i s t r a d o d a N a ç ã o , q u e a p e n a s a s s u m i u
o g o v e r n o q u a n d o foi e m pessoa visitar a m o r a d a que abrigou em
v i d a a R u i B a r b o s a , a c a s a dos seus livros, o â m b i t o d o seu sonho,
a a u s t e r a m a n s ã o do seu espírito, o s a c r á r i o dos seus afetos, a c a t e d r a l
d o seu p e n s a m e n t o .

N u m p a í s o n d e é t ã o r a r o o s e n t i m e n t o das justas a d m i r a ç õ e s e
o n d e n ã o existe o culto dos g r a n d e s h o m e n s , o n d e se d i r i a q u e a todos
se q u e r nivelar, o p i n t o r de liso e o q u e d e b u x a os p a i n é i s o p i m o s , o
q u e lasca a p e d r a e o q u e l a v r a as estátuas, o q u e g a r a t u j a o abece-
d á r i o e o q u e sobe pelo estilo às formas impecáveis d a beleza s u p r e m a ,
o gesto d a S u a Excelência o P r e s i d e n t e W a s h i n g t o n Luís, c r i a n d o o
M u s e u R u i B a r b o s a , é u m a alta, n o b r e e expressiva lição.

A s s i m mostrem-se os moços do Brasil de hoje capazes de apro-


veitá-la, e m p r e g a n d o o c u i d a d o e a e s t u d i o s i d a d e n o belo p a t r i o t i s m o
d o dever, o l h a n d o s e m p r e a o alto, o peito cheio de esperanças, q u e a
v i d a e n s i n a nos devemos p r o m e t e r muitas, para conseguir realizar
algumas.
JÂNIO QUADROS

"Alocução à b a n d e i r a " — Discurso proferido


em 18-11-1953, n a P r a ç a R a m o s de Azevedo, em
São P a u l o , com a p r e s e n ç a de a u t o r i d a d e s , Go-
vernador e militares.

Estamos a q u i presentes, Governo, F o r ç a s A r m a d a s , e u m a vasta


assembléia de povo, p a r a saudar-te, p e n d ã o d a Pátria!

E v o c a m o s , n a t u a contemplação, a nossa H i s t ó r i a , seqüência so-


b e r b a de sacrifícios e de sonhos, de decepções e de fé rediviva, de
lances h e r ó i c o s e de t r a b a l h o profícuo.

A i m e n s a N a ç ã o q u e a l í n g u a , a cruz, o a m o r fraternal, e a vi-


gilância e o gênio dos estadistas, c o n s e r v a r a m inteira, p a r a o nosso
p r ó p r i o exemplo, p a r a o nosso p r ó p r i o b e m , e p a r a o m u n d o melhor,
que desejamos.

As três r a ç a s q u e a constituem, e tu r e p r e s e n t a s , e se c a s a r a m
n a t r a n q ü i l i d a d e do a b r i g o d o teu p a l i o .

Significas t u d o . A p r i m e i r a missa n a t e r r a a p a v o r a n t e e agres-


te. As e n t r a d a s , n o sertão inviolado e misterioso. A repulsa cruenta
d o e s t r a n g e i r o d a e x p e d i ç ã o invasora. 0 m á r t i r q u e foi a p a t í b u l o n a
s e r e n i d a d e dos q u e crêem, e n a certeza dos q u e s a b e m .

A d e c l a r a ç ã o do I p i r a n g a , e o Império do concidadão magnâ-


n i m o e singelo, q u e m o r r e u em país l o n g í n q u o , com a c a b e ç a recli-
n a d a n o solo n a t a l , e a s e g u r a n ç a d a justiça d a posteridade.

É a e s p a d a de Osório, o d e m o c r a t a , e a de Caxias, a cólera bí-


blica d a u n i ã o indissolúvel, e a de T a m a n d a r é , o m o m e n t o a u g u s t o da
nossa expressão oceânica.
DISCURSOS BRASILEIROS 141

És a " L e i Á u r e a " da P r i n c e s a q u e r e n u n c i o u a u m t r o n o , e satis-


fez o c o r a ç ã o e os impulsos da s o l i d a r i e d a d e .

És a R e p ú b l i c a q u e a vocação coletiva procurava. A República


de B e n j a m i m Constant, de D e o d o r o e de F l o r i a n o — as a r m a s do novo
regime.

A R e p ú b l i c a de P r u d e n t e , de C a m p o s Sales e de R o d r i g u e s Alves,
o escrúpulo n a Constituição, a mística u n ç ã o pelo p a t r i o t i s m o de todos.

És R u i a p r o c l a m a r a força do direito, e a s o b e r a n i a das r u a s e


dos c a m p o s .

És o holocausto n a Itália, e c a d a um daqueles m a r c o s brancos,


q u e nos i n q u i e t a m o sono, n a s terríveis a d v e r t ê n c i a s q u e fazem.

És o Congresso, da autoridade que emana do sufrágio l i v r e ; a


T o g a i m p o l u t a q u e aplica os d e c r e t o s ; os b o r d a d o s d o oficial q u e te
p r o t e g e , as m ã o s calosas d o o p e r á r i o q u e te e n g r a n d e c e ; o livro e o
riso d a c r i a n ç a ; a v i b r a ç ã o e a p u r e z a do u n i v e r s i t á r i o .

A q u i nos r e u n i m o s p a r a te dizer q u e a c r e d i t a m o s em ti, n a tua


destinação de símbolo d a nacionalidade.

A q u i , e n a festa das tuas cores, r e n o v a m o s à t u a presença, os


solenes compromissos comuns.

D e absoluta limpidez na honra. De absoluta exação no dever.


D e absoluta i m p a r c i a l i d a d e no Juízo. D e absoluto r i g o r n o julgado.
D e absoluta submissão à L e i .

Aqui nos congregamos para manifestar-te obediência completa


e h o r r o r a t u d o q u e t e atraiçoe, a t u d o q u e te c o n s p u r q u e , a t u d o q u e
te c o m p r o m e t a .

À mentira e à injúria. Ao furto e à violência. Ao compro-


misso e ao negócio. Ao e m b u s t e e à opressão.

Recebe, B a n d e i r a , o nosso j u r a m e n t o : se n ã o p u d e r m o s ter-te p o r


m a n t o , desejamos-te p o r s u d á r i o !

Sê bendito, P a v i l h ã o Brasileiro!
ALCÂNTARA MACHADO

" U m Homem de Outrora" — Discurso profe-


rido em nome da municipalidade de São Paulo,
a 18-5-1913, n a inauguração d a herma de João
Mendes de Almeida.

A c i d a d e de São P a u l o recebe, com religiosa e m o ç ã o , de vossas


m ã o s a m i g a s e piedosas o m o n u m e n t o q u e , em resgate de u m a d í v i d a
coletiva, a c a b a i s de v o t a r à m e m ó r i a de J o ã o M e n d e s d e A l m e i d a .

B e m fizestes em concebê-lo simples e severo. Na singeleza de


suas linhas, n a s o b r i e d a d e intencional dos ornatos, n a a u s t e r i d a d e do
conjunto, êle t r a d u z e c o n d e n s a , com a eloqüência precisa das coisas
q u e n ã o falam, a c o n s t r u ç ã o m o r a l do h o m e m e o significado social
d a v i d a q u e , com l u m i n o s a justiça, a p o n t a i s neste m o m e n t o à admi-
ração da posteridade.

N ã o p o d i a ser outro o m o n u m e n t o d e J o ã o M e n d e s . A idéia não


p o d i a e n c a r n a r - s e de m o d o m a i s perfeito.

Contemplemo-lo de perto... Homem de bronze, disse algures


Vicente de C a r v a l h o , p a r a assinalar o q u e h a v i a de inflexível naquele
c a r á t e r e de r o b u s t o n a q u e l a v o n t a d e . Realizando na m a t é r i a a ex-
pressiva i m a g e m d o poeta, fundistes n o b r o n z e a c a b e ç a i l u m i n a d a e
voluntariosa do lutador.

A f i g u r a n ã o se l i m i t a a r e p o u s a r n a esteia d o g r a n i t o : conjuga-se
com ela, c o m o q u e a i n d i c a r a í n t i m a c o n s u b s t a n c i a ç ã o d o h o m e m c o m
os postulados f u n d a m e n t a i s d a h o n r a , do t r a b a l h o e d a c a r i d a d e , em
q u e s e m p r e assentou a sua v i d a i n t e r i o r e a s u a a t i v i d a d e social.

As arestas do pedestal são a c u s a d a s e n í t i d a s , os traços retilíneos.


DISCURSOS BRASILEIROS 143

Q u e símbolo m e l h o r p a r a a nitidez d a s suas convicções, a r e t i d ã o de


seus desígnios, o d e s a s s o m b r o de suas crenças?

E a e u r i t m i a s e r e n a das l i n h a s n ã o d i r á p o r v e n t u r a o justo equi-


l í b r i o de u m a vida singularmente harmoniosa, polarizada sempre na
d i r e ç ã o do dever, e d e i x a e m q u e m a observa u m a i m p r e s s ã o de or-
dem, continuidade e coerência?

T a l é, com efeito, o selo inconfundível dessa i n d i v i d u a l i d a d e ; e


aí está p r e c i s a m e n t e o q u e , nesta época de c o n t r a d i ç ã o e de b a l b ú r d i a ,
lhe confere u m a n o b r e z a t ã o alta n a h i e r a r q u i a humana.

Vivendo num tempo de t r a n s a ç õ e s políticas, de transações reli-


giosas, de t r a n s a ç õ e s profissionais, êle n u n c a soube t r a n s i g i r . Católico,
viveu e morreu testemunhando a fé. Tradicionalista, estudou com
a l m a a n t i g a as coisas a n t i g a s , n u m m o m e n t o h i s t ó r i c o . Monarquista,
h á d e s e m p r e vê-lo a p o s t e r i d a d e n a a t i t u d e de u m a sentinela q u e , de-
pois da derrota, continua a montar guarda à fortaleza desmantelada,
e n q u a n t o ao longe, os vencidos d i s p u t a m aos vencedores os despojos
da v i t ó r i a . . .

P o r um fenômeno paradoxal, ninguém foi m a i s a m a d o n a vida


e n a m o r t e do q u e esse, cujo espírito p a r e c i a a antítese d o espírito do
tempo.

A b o n d a d e i r r a d i a n t e , a s e d u ç ã o envolvente q u e c a p t u r a v a todos
q u a n t o s se lhe a p r o x i m a v a m , e a tal p o n t o q u e se a l g u é m n ã o quisesse
amá-lo p r e c i s a v a fugi-lo, as q u a l i d a d e s de fascinação e d o m í n i o q u e lhe
p e r m i t i r a m vencer a i n é r c i a d a s massas e f o r m a r u m partido que o
a c o m p a n h o u e m todos os c o m b a t e s e (coisa e s t r a n h a p a r a n ó s ! ) sobre-
viveu a t o d a s as d e r r o t a s , os acidentes do i n d i v í d u o n ã o b a s t a m para
explicar u m prestígio que se p r o l o n g a p a r a além das fronteiras da
morte.

Não! A a ç ã o social de J o ã o M e n d e s foi intensa e durável, por-


que, apesar de insurgir-se c o n t r a as t e n d ê n c i a s aparentemente domi-
n a n t e s , e r a o p r o d u t o de u m sistema de forças e t e r n a s e salutares e
estava em consonância absoluta com as exigências d a consciência cole-
tiva. 0 vento q u e e n r u g a a superfície dos m a r e s n ã o torce a d i r e ç ã o
d a s c o r r e n t e s q u e a r r a s t a m as á g u a s profundas.
144 ANTOLOGIA D E FAMOSOS

Conservador, êle o e r a ; m a s , p a r a servir-se da frase de u m con-


vertido, J o ã o M e n d e s n ã o pecou j a m a i s c o n t r a a luz. A reforma elei-
toral, a reforma j u d i c i á r i a , a lei de 2 0 de s e t e m b r o d e l a t a m nesse
c o n s e r v a d o r u m d e m o c r a t a e u m liberal, se p o r d e m o c r a c i a e libera-
lismo se entende, n ã o o d o m í n i o d a s c a p a c i d a d e s nulas e dos apetites
formidáveis, m a s o r e g i m e q u e respeita a d i g n i d a d e dos fracos e a
c a d a u m p e r m i t e d a r o m á x i m o do seu esforço e m benefício de todos.

Tradicionalista, sim, êle o era, profunda e convencidamente.


R e n e g a r a t r a d i ç ã o r e p u g n a v a ao seu claro e direito p e n s a r . Com a
infalibilidade d o bom-senso c o m p r e e n d i a , como um pensador contem-
porâneo, que o progresso é uma translação para o futuro; que sem
p o n t o de apoio n ã o h á m o v i m e n t o possível; que na mecânica social
esse p o n t o de a p o i o é o p a s s a d o . J o ã o M e n d e s p o d i a subscrever estas
p a l a v r a s fortes de P a u l B o u r g e t : " N ã o se concebe u m país sem con-
t i n u i d a d e , p o r q u e , longe de ser a simples a d i ç ã o dos contemporâneos,
o povo se c o m p õ e dos vivos, dos m o r t o s e dos v i n d o u r o s . A pátria
l e m b r a u m c o r p o , cujas três d i m e n s õ e s fossem o presente, o passado
e o futuro". Q u e m n ã o sente, como J o ã o M e n d e s , a necessidade da
c o l a b o r a ç ã o dos m o r t o s n a o b r a dos v i v o s ? Q u e m n ã o sente q u e é
d a r u m salto d e s m e d i d o e perigoso, r e p e l i r a e x p e r i ê n c i a daqueles q u e
concorreram para o patrimônio comum com uma centelha de inteli-
gência, u m p i n g o de suor ou u m a gota de sangue?

P o i s b e m : o culto do p a s s a d o , o o r g u l h o d a r a ç a , a fidelidade aos


compromissos, a a v e r s ã o à d e s o r d e m e à indisciplina, a c o r a g e m de-
sassombrada na afirmação dos p r ó p r i o s ideais, são t r a ç o s caracterís-
ticos do espírito paulista. É p o r isso, é p o r q u e de certa f o r m a nos
revemos nele, é p o r q u e esse m a r a n h e n s e e n c a r n o u , com e s t u p e n d o re-
levo as q u a l i d a d e s f u n d a m e n t a i s d o nosso povo, é p o r isso q u e o a m a -
mos e a m o r t a l h a m o s agora no sudário magnífico do b r o n z e e do
granito.

O m o n u m e n t o de J o ã o M e n d e s d i r á aos nossos filhos q u e o glo-


rificado de hoje é o vencido de o n t e m ; é dessa floração de homens
s u p e r i o r e s q u e , d e s p r e z a n d o o sucesso contingente, t r i u n f a m p a r a sem-
p r e do tempo.
DISCURSOS BRASILEIROS 145

Desta h o m e n a g e m ressalta u m outro e n s i n a m e n t o . Esse, a quem


a c a b a m o s de d a r a c o n s a g r a ç ã o s u p r e m a , e r a u m adventício, u m fo-
rasteiro, um estranho. M a s e m São P a u l o n ã o v i c e j a m as preocupa-
ções s u b a l t e r n a s do exclusivismo r e g i o n a l . Herdeiros daqueles sober-
bos "violadores de sertões e s e m e a d o r e s de c i d a d e s " , cujo p é , "como
de u m deus, f e c u n d a v a o deserto", e que, investindo heroicamente
c o n t r a o desconhecido, d e f i n i r a m os contornos do nosso território;
descendentes dos A n d r a d a s e de Feijó, a q u e m se deve a f o r m a ç ã o da
consciência nacional, nós, paulistas, n ã o esquecemos dos deveres que
d e c o r r e m das nossas responsabilidades n a c o n s t r u ç ã o d a p á t r i a c o m u m .

S ã o P a u l o n ã o é a p e n a s u m a t e r r a de f a r t u r a e de p r o s p e r i d a d e :
é p a r a todos aqueles q u e t r a b a l h a m conosco pela g r a n d e z a d o B r a s i l ,
u m a t e r r a de h o s p i t a l i d a d e e de j u s t i ç a .
ALCÂNTARA MACHADO

Discurso aos e s t u d a n t e s combatentes d a Revo-


lução P a u l i s t a .

O milagre do rádio permite ao homem compartir com Deus o


p o d e r da o n i p r e s e n ç a . A p e r t a m o s , a t r a v é s d o espaço, c o n t r a o peito
os corações fraternos e e n t r e os dedos as m ã o s a m i g a s . Fechai os
olhos, p a r a q u e a ilusão seja completa, m e u s q u e r i d o s e i n c o m p a r á v e i s
e s t u d a n t e s d a F a c u l d a d e de D i r e i t o de S ã o P a u l o .

V e n h o convidar-vos a assistir comigo à sessão comemorativa da


d a t a l u m i n o s a de 11 de Agosto. A Congregação acaba de entrar no
salão n o b r e d a escola, t ã o vosso conhecido. E s t á completa. Compa-
r e c e r a m t o d o s : vivos e m o r t o s . R a m a l h o , C r i s p i n i a n o , José Bonifácio
o Moço, J o ã o M o n t e i r o , Brasílio M a c h a d o , P e d r o Lessa, J o ã o Mendes
s a e m d a tela, d o m á r m o r e , do b r o n z e e t o m a m assento no doutorai.
P o r q u e todos c o m p r e e n d e m q u e a sessão de hoje é a mais solene d e
q u a n t a s se r e a l i z a r a m nesta c a s a ; e q u e n u n c a se fêz m a i s oportuna
a a f i r m a ç ã o de q u e a F a c u l d a d e é o s a c r á r i o d a lei, o sensório j u r í d i c o
do país. A p a r t e r e s e r v a d a ao a u d i t ó r i o , a q u e l a q u e c o s t u m a i s enfei-
t a r com a vossa m o c i d a d e e a l e g r a r com a vossa t u r b u l ê n c i a , parece
vazia. M a s , se p r e s t a r d e s atenção, vereis q u e se vai p o v o a n d o de
sombras. S ã o os m a n e s de q u a n t o s vos p r e c e d e r a m nas arcadas do
velho mosteiro franciscano q u e , sabendo-os e m p e n h a d o s em defender
as fronteiras t e r r i t o r i a i s de S ã o P a u l o , hoje c o n f u n d i d a s com as fron-
t e i r a s m o r a i s d a n a c i o n a l i d a d e , vêm o c u p a r os l u g a r e s r e s e r v a d o s aos
estudantes. Dos corpos vaporosos só d i s t i n g u i m o s as cabeças i l u m i n a -
das pela imortalidade. Aparecem-nos todos, restituídos à juventude,
tais q u a i s f o r j a r a m o espírito, l a m i n a r a m a palavra, fortificaram a
consciência nesta f á b r i c a de h o m e n s livres, nesta oficina de c i d a d ã o s .
DISCURSOS BRASILEIROS 147

N a m u l t i d ã o q u e se acotovela n ã o custa d i v i s a r as m a i o r e s figu-


r a s d a n o b i l i a r q u i a espiritual d o Brasil. Ali estão r e u n i d o s R u i Bar-
bosa, Joaquim Nabuco, Silveira M a r t i n s . Os poetas constituem um
g r u p o n u m e r o s o , d o m i n a d o pelos t r ê s n o m e s tutelares d a Faculdade.
V e m o s c l a r a m e n t e a c a b e l e r i a r o m â n t i c a , a fronte e s c a m p a d a , os olhos
a r d e n t e s de Castro Alves, os olhos pensativos de Álvares de Azevedo,
os olhos a m o r t e c i d o s pela i n s ò n i a de F a g u n d e s V a r e l a . O u t r o s se lhes
j u n t a m : B e r n a r d o G u i m a r ã e s , P e d r o Luís, R a i m u n d o , Cepelos, R i c a r d o
Gonçalves. Em torno de Teixeira de Freitas e Lafayette... Mas
para que continuar? Nenhuma geração se esqueceu de m a n d a r os
seus delegados m a i s representativos.

Dos professores vivos, n ã o h á q u e m se a t r e v a a falar. Mas de


r e p e n t e assoma à t r i b u n a o último A n d r a d a ; e, n o silêncio, q u e m a t o u
a e s c r a v i d ã o , d i r i g e a c a d a u m de vós, r e v o l u c i o n á r i o de 9 de j u l h o ,
o m e s m o elogio, com q u e s a u d o u a G a b r i e l dos Santos, r e v o l u c i o n á r i o
de 4 2 :

"Soldado da liberdade
. . . não renegaste a bandeira
nas horas de tempestade. .."

Brasilio M a c h a d o se l e v a n t a ; e transpassando-vos a a l m a com o


o l h a r flamejante, r e p e t e a p e r o r a ç ã o de u m de seus d i s c u r s o s :

' ' P a r a nós, se é m i s t e r q u e a e s p a d a fulgure, tomemo-la, n ã o p a r a


suspender o espólio dos vencidos, mas as d u a s conchas serenas da
Justiça!"

João Mendes quer dizer-vos a l g u m a coisa. Não pode. Com um


soluço n a g a r g a n t a , l e v a n t a s i m p l e s m e n t e a m ã o t r ê m u l a e traça no
ar uma bênção...

A g o r a são os moços de todos os t e m p o s q u e têm a p a l a v r a .

Fagundes Varela:

"Basta de humilhações!...
A terra de Cabral está cansada
148 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

de ultrajes suportar. A seus clamores


no seio das florestas ressuscite
um mundo de guerreiros que não teme
o troar dos canhões. Um povo ardente
se levanta inspirando...
do pendão auriverde à sombra amiga".

Vem a seguir Castro Alves:

"... Eu sei que a mocidade


é o Moisés no Sinai.
Das mãos do Eterno recebe
as tábuas da lei. Marchai!
Quem cai na luta com glória
tomba nos braços da história,
no coração do Brasil".

E , depois, voltando-se p a r a outros, q u e n ã o os paulistas e os q u e


se b a t e m a o vosso l a d o , ei-lo q u e p r o s s e g u e :

"Basta de cobardia! A hora soa


e vós cruzais os braços.. . Cobardia!
E murmurais com fera hipocrisia:
— É preciso esperar. ..
Mas esperar o quê?"

Pedro Luís n ã o se c o n t é m ; e conclama evocando a figura de


Nunes Machado:

"Vem dizer aos guerreiros do futuro


que, se acaso o horizonte está escuro,
nem por isso eles devem vacilar.
Vem dar força dos bravos à fileira,
que eles hão de seguir tua bandeira
e com ela na frente hão de marchar".
DISCURSOS BRASILEIROS 149

Q u e m é aquele mestiço, q u e vem d e Recife trazer-vos o e s t í m u l o ?


Tobias Barreto. L á n ã o q u i s e r a m ouvi-lo. N ã o faz m a l . E s c u t a i es-
tes versos, q u e , feitos p a r a outros, são vossos, exclusivamente vossos:

"Juntemos as almas gratas


de colegas e de irmãos.
O vento que acorda as matas
nos tira os livros das mãos.
A vida é uma leitura.
E quando a espada fulgura,
quando se sente bater
no peito heróica pancada,
deixa-se a folha dobrada
enquanto se vai morrer".

U m moço f r a n z i n o , p e q u e n i n o , m o f i n o se a p r o x i m a da tribuna;
e d e s ú b i t o se t r a n s f o r m a n u m g i g a n t e . É R u i B a r b o s a , é o v e r b o do
direito, é o condestável d a l i b e r d a d e , é a voz a u g u s t a do semeador
d a s p a l a v r a s e t e r n a s : " D e b a i x o deste teto d u a s evidências h á q u e nos
consolam, nos d e s i m a g i n a m , e c h e g a m a desconvencer-nos d a m o r t e : a
continuidade da tradição e a continuidade da j u s t i ç a . . . Bolonha, fa-
m o s a o u t r o r a e n t r e as c i d a d e s l e t r a d a s . . . se c h a m a v a p o r a n t o n o m á -
sia, a u m t e m p o , a d o u t a e a livre, a s s o c i a n d o n a s suas a n t i g a s moedas"
à l e g e n d a solene d e seus direitos, " l i b e r t a s " , o foro p o r excelência d e
mestra: "Bononia docet". A São Paulo, indisputàvelmente, lhe cabem
os dois títulos n o m e s m o b r a s ã o : professa a l i b e r d a d e e ensina a jus-
tiça".

D e p o i s de R u i n i n g u é m t e m m a i s o q u e dizer. E a assembléia
se dissolve, enquanto Bittencourt Sampaio entoa acompanhado por
Carlos Gomes, u m a d a s estrofes d o h i n o a c a d ê m i c o , estrofe que vai
de q u e b r a d a e m q u e b r a d a a f i r m a r à nossa t e r r a , a i n d a e s e m p r e , q u e
hoje c o m o m a i s d o q u e o n t e m e m e n o s d o q u e a m a n h ã

"0 Brasil quer a luz da verdade


e uma d roa de louros também.
Só as leis que nos dêem liberdade
ao gigante das selvas convém".
150 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

Eis a í , o q u e foi neste a n o glorioso de 1 9 3 2 a sessão c o m e m o r a -


tiva da f u n d a ç ã o dos cursos j u r í d i c o s , m e u s q u e r i d o s discípulos. Dis-
cípulos? Não. P o r q u e a vossa a t i t u d e e m 2 3 de m a i o e e m 9 de
j u l h o inverteu os valores e destituiu de seus c a r g o s todos os mestres.
Os únicos professores q u e hoje existem n o t e r r i t ó r i o nacional, sois vós
e os vossos c o m p a n h e i r o s de a r m a s . A t r i n c h e i r a é a vossa cátedra.
E o Brasil i n t e i r o está a p r e n d e n d o convosco; o Brasil sitiado pelas
t r e v a s , a m o r d a ç a d o pela c e n s u r a , e m a s c u l a d o pelo h o r r o r das respon-
s a b i l i d a d e s , é o Brasil q u e p a r a a vossa v i t ó r i a t r a b a l h a n a s oficinas
e nos c a m p o s , nos hospitais e nos t r a n s p o r t e s ; o Brasil q u e em vão
p r o c u r a l i m p a r n a b a c i a de Pilatos as m a n c h a s d o s a n g u e d o Justo,
o Brasil q u e vos a j u d a a c a r r e g a r a cruz do sacrifício. Com o cora-
ção d i l a t a d o de o r g u l h o e os olhos rasos de l á g r i m a s , e m n o m e da
F a c u l d a d e de D i r e i t o , e u vos s a ú d o , nesta h o r a em q u e fazeis à p á t r i a
a oblação sublime de vossa v i d a , m e u s jovens professores de bravura
consciente, de d i g n i d a d e cívica e d e h e r o í s m o !
BRASÍLIO MACHADO

"Onze de Agosto" — Discurso proferido n a


sessão comemorativa da criação dos Cursos Ju-
rídicos n o Brasil (11 de agosto de 1893).

A F a c u l d a d e de D i r e i t o de São P a u l o , a q u i r e p r e s e n t a d a p o r mes-
t r e s e discípulos, e m t o d a a s u a p o d e r o s a u n i d a d e de i n s t i t u i ç ã o social,
veio c o m e m o r a r n o m e i o de vós a lei de s u a c r i a ç ã o .

I n t e r r o m p e n d o o silêncio com q u e , e m sua i n d i f e r e n ç a estranha,


o povo se vai a c o s t u m a n d o a d i s t a n c i a r d a r e c o r d a ç ã o das coisas vivas,
a m e m ó r i a das coisas m o r t a s , como se n ã o devêssemos n a s t r a d i ç õ e s de
nossa h i s t ó r i a g a n h a r alento p a r a a f r o n t a r os p e r i g o s d e hoje e eli-
m i n a r as indecisões de a m a n h ã , — a r e u n i ã o desta h o r a b e m pode
r e c o r d a r a q u e l e m á r m o r e m u t i l a d o , e m q u e u'a m u l h e r , representação
d e u m a p á t r i a piedosa, d e b r u ç a d a a r r e d a com as m ã o s o m u s g o das
r u í n a s , p r o c u r a n d o soletrar n o c h ã o m o r t u á r i o o n o m e q u a s e extinto
d o seu glorioso filho!

N ã o é r a r o nos horizontes africanos, a p a r e c e r o sol como u m disco


s e m raios, u m c o r p o sem fulgurações. É q u e o vento b a t e u as asas
s o b r e o dorso dos desertos, e a a r e i a sacudida, e n c h e n d o o espaço,
p a r e c e q u e b r a r e m l â m i n a s sutis e s a n g u i n o l e n t a s a luz d o a s t r o pode-
roso. E r g u e r , neste p e r í o d o de a n s i e d a d e s públicas, a d a t a de hoje
a c i m a dos horizontes de nossa v i d a social, é c o m o q u e refletir a i m a -
g e m d o sol africano, — u m disco sem raios, u m c o r p o sem fulgores;
e c a d a u m de nós p o d e r i a ver, n o p ó q u e , a p a t a de corcel, o g a ú c h o
r i o g r a n d e n s e sacode d a s c a m p i n a s do sul, essa m e s m a a r e i a d o deserto
q u e t r a n s f o r m a a luz em p o e i r a de s a n g u e , e o céu n u m b r a s e i r o de
cinzas requeimadas.
152 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

S a u d e m o - l a , a i n d a assim, s u s p e n d e n d o a i n s í g n i a de nossa c a i r e i
r a : d u a s conchas, q u e a justiça enche, p a r a q u e a e s p a d a simbólica
q u e as sustenta se a p r u m e c o m o a consciência e se f i r m e como o dever.
S a u d e m o - l a , a i n d a assim, p o r q u e o direito n ã o se m u t i l a , q u a n d o a lei
seja u m retalho, a justiça n ã o se e s m a g a nos t r i b u n a i s q u e se e s b o r o a m .
S a u d e m o - l a a i n d a a s s i m ; e recordemo-nos de q u e n u m a das cenas de
sua estupenda trilogia, conta Esquilo, pela b o c a de Clitenestra, que
Hefoistos p a r a e n v i a r à m o r a d a das Á t r i d a s a notícia a i n d a fumegante
d o s f u n e r a i s de T r ó i a , ateou, como fora de a n t e m ã o c o m b i n a d o , ateou
sobre o Ida um imenso clarão.

Desse m o n t e a o fronteiro H e r m a i o s , e, p o r s o b r e o m a r , de H e r -
m a i o s ao Atos, de c u m i a d a e m c u m i a d a , enfim, clarões e clarões se
i a m r e p r o d u z i n d o , em veloz c o r r e s p o n d ê n c i a , c o m o se pelo cabeço d a s
m o n t a n h a s m ã o s fantásticas a n d a s s e m a s e m e a r as faíscas l u m i n o s a s d e
u m incêndio. E assim, a luz p r o l o n g a n d o a luz, e s t r a n h a mensagem
lá se foi, l e v a n d o à t e r r a dos helenos a nova triunfal.

As c o m e m o r a ç õ e s das g r a n d e s conquistas sociais são essas men-


s a g e i r a s de luz. D e g e r a ç ã o em g e r a ç ã o , como de m o n t a n h a e m mon-
t a n h a , elas p a s s a m , p u b l i c a n d o as t r a d i ç õ e s q u e frutificam às esperan-
ças q u e florescem.

E q u e g r a n d e z a , senhores, n a vossa vocação!

O rude lavrador que, suarento, fecunda as e n t r a n h a s da terra,


e n t r e g a n d o a semente p a r a colher o f r u t o ; o m i n e i r o q u e de rastros
s o n d a n a s p r o f u n d i d a d e s do subsolo o veio onde p a l p i t a o s a n g u e q u e n -
t e dos m e t a i s ; o m e r g u l h a d o r q u e n a flora dos a b i s m o s oceânicos vai
b u s c a r as formações c o r a l i n a s ; o i n d u s t r i a l q u e n o m o v e r impetuoso
d e s u a s m á q u i n a s escuta o h i n o metálico do trabalho; o comerciante
q u e g o v e r n a a c i r c u l a ç ã o a s s o m b r o s a d a s r i q u e z a s , — t o d a s essas r a -
mificações do t r a b a l h o h u m a n o descansam d e b a i x o da égide de Mi-
nerva, a tenda incorruptível da justiça!

Q u a l q u e r q u e seja a p á g i n a e m q u e se a b r a m os nossos fastos,,


e m c a d a q u a l dos acontecimentos m a i s salientes está, como d i r i a Crí-
tias, o selo de nossa língua.
DISCURSOS BRASILEIROS 153

É d a s F a c u l d a d e s s u p e r i o r e s q u e sai o o r a d o r p a r a , n a tribuna,
cheia d a m a j e s t a d e de seu talento, d o m e s t i c a r pelo impulso irresistível
de s u a p a l a v r a as i r r e q u i e t a s m u l t i d õ e s , e subjugá-las, envoltas n a s
c a d e i a s sonoras d a eloqüência. É n a s F a c u l d a d e s s u p e r i o r e s q u e o le-
gislador a p r e n d e a c i ê n c i a q u a s e d i v i n a d o refrear, pela coerção do
direito, essa m o v i m e n t a ç ã o incessante e s e m p r e nova d a l i b e r d a d e hu-
mana, presa d e n t r o do o r g a n i s m o social. É nas Faculdades superio-
r e s q u e o m e s t r e sobe a t é às regiões m a i s á r d u a s d a ciência, para
a r r a n c a r o segredo d a s leis q u e g o v e r n a m a n a t u r e z a i n t e i r a e os m u n -
dos s i d e r a i s , como d o m i n a o m a i s sutil dos m o v i m e n t o s d a s células.
É nas Faculdades superiores que palpita a grande alma nacional, a
m o c i d a d e , e m cujos lábios c a n t a m t o d a s as e s p e r a n ç a s , e m cujas espe-
r a n ç a s floresce todo o f u t u r o d a p á t r i a !

Q u e c o n q u i s t a generosa se fêz lei, antes de ser p r o p a g a d a nos


nossos c e n t r o s a c a d ê m i c o s ? É de o n t e m a e m a n c i p a ç ã o dos e s c r a v o s ;
é d e o n t e m , ou p o r outra, começou d e o n t e m , a instituição d a R e p ú -
blica. E esses dois fatos q u e , sem d ú v i d a , constituem duas revolu-
ções, q u e à s u r p r e s a do golpe j u n t a r a m a s u r p r e s a d a p a z , esses dois
fatos q u e f o r a m eles, s e n ã o fugitiva a s p i r a ç ã o , q u e d e u m e d e outro
p o n t o d o p a í s s u r g i a , como r a i o indeciso de u m a luz l o n g í n q u a , antes
q u e a a l m a a c a d ê m i c a se abrisse, como u m h o r i z o n t e p u r o de n u v e n s ,
às c l a r i d a d e s de u m a g r a n d e aurora?

As á g u i a s , p a r a estenderem os seus longos vôos, p r o c u r a m os p í n -


caros d o n d e descortinem, e n t r e a t e r r a e o céu, o oceano t r a n s p a r e n t e
dos espaços. Assim, p a r e c e q u e as g r a n d e s idéias, q u a n d o t e n t a m a
c o n q u i s t a d o m u n d o , p r o c u r a m a a l m a d a m o c i d a d e , p a r a dali, desfe-
r i r e m , e n t r e o p a s s a d o e o futuro, o vôo de s u a d o m i n a ç ã o .

D e i x a i q u e m u r m u r e m a s vozes s u b t e r r â n e a s d a malícia, d a inve-


ja, q u e c h e g a r a m a l o b r i g a r , em nossas F a c u l d a d e s , u m a f á b r i c a can-
s a d a de b a c h a r é i s i n ú t e i s ! A ação d e nosso t r a b a l h o é lenta e silen-
ciosa, p o r isso m e s m o q u e é eficaz e d u r a d o u r a . L e n t a e silenciosa é
a gota de á g u a q u e d a s p r o f u n d i d a d e s da terra, atravessa humildes
c a m a d a s e c a m a d a s geológicas, a t é q u e b r o t a à flor do c h ã o , e t í m i d a
resvala e t â m i d a r e c u a . . . e é assim q u e n a s c e m os rios. L e n t a e si-
lenciosa é a m a t é r i a cósmica, q u e , de u m núcleo imperceptível q u e se
154 ANTOLOGIA DE FAMOSOS

esboça, c o n d e n s a n d o e c o n d e n s a n d o , se t r a n s f o r m a em n e b u l o s a . . . e
é assim q u e n a s c e m as estrelas. L e n t a e silenciosa é a coralígena, q u e
p e l a secreção d o calcáreo, vem desde o fundo dos m a r e s até à super-
fície d a s o n d a s , v e m e r g u e n d o , de átomo em átomo, montanhas de
a r r e c i f e s . . . e é assim q u e n a s c e m os continentes.

0 p é dos maldizentes n ã o p o d e a b a f a r a l e m b r a n ç a de nossas tra-


dições. U m dia, em s e g u i d a a o famoso golpe de estado, L u í s Bona-
parte m a n d o u retirar do Palácio Bourbon a legendária tribuna parla-
m e n t a r , d o n d e a voz de Guizot, de T h i e r s , de B e r r y e r t i n h a borbotado
em cascatas v i n g a d o r a s . A o r d e m foi c u m p r i d a , e momentos depois
alguém viu o I m p e r a d o r , s o m b r i o , a b a t e r o p é n o l u g a r vazio da
tribuna, como para a b a f a r os últimos ecos q u e a eloqüência l i v r e ali
d e i x a r a , n a s pelejas n o b r e s d a palavra.

0 que é mister é n ã o e s m o r e c e r na missão de responsabilidade


q u e a vossa vocação social i m p õ e . As nossas F a c u l d a d e s n ã o devem ser
relicários de r e c o r d a ç õ e s : e n t r a n h a s estéreis q u e n ã o são e n t r a n h a s de
mãe.

A nossa situação, a b a l a d a como foi do r u m o d o direito, nos con-


v i d a a u m a d e d i c a ç ã o sem limites. Aos p r o b l e m a s q u e a assaltam, às
indecisões q u e a p e r s e g u e m , aos e r r o s q u e a a n i q u i l a m , à força que
a a r r a s t a , o p o n h a m o s a a l m a da m o c i d a d e , p a r a q u e m o direito não
se fêz d o aço das e s p a d a s , m a s d o o u r o d a justiça, p a r a q u e m a p á t r i a
g r a n d e , feliz e p r ó s p e r a , é a s u p r e m a a s p i r a ç ã o d e todos.

Conheceis na história literária de Atenas, a famosa Academia,


q u e P l a t ã o t a n t a s vezes e n c h e u com os clarões de sua filosofia e com
os p e r f u m e s de s u a m o r a l . O r a , e n t r e os s a n t u á r i o s q u e p r ó x i m o s se
e r g u i a m , u m a piedosa instituição fêz d o altar c o n s a g r a d o a Prometeu
o ponto donde partia a corrida dos a r c h o t e s . A u m sinal d a d o , os
lutadores despediam a carreira, e venceria o prêmio quem primeiro
chegasse a A t e n a s com o seu a r c h o t e aceso.

F i g u r a i nesse altar d e P r o m e t e u , o n d e p e r e n e a r d i a a luz votiva,


a m i r a g e m de nossas F a c u l d a d e s ; e m A t e n a s f i g u r a i a p á t r i a ; nos ar-
chotes, vede a fé n o d i r e i t o , a e s p e r a n ç a n a justiça, a c h a m a d a liber-
dade. Os l u t a d o r e s sois v ó s !
BRASILIO MACHADO

"Centenário de Camões" — Discurso proferido


no Real Club Ginástico Português de São Paulo,
em 10-6-1880.

A o abrir-se o ciclo portentoso dos tempos m o d e r n o s , n a s e x t r e m a s


d a E u r o p a , como gigantes q u e , súbito, a o s abalos convulsivos de u m a
força e s t r a n h a , surgissem n a s p l a n u r a s , — dois povos, desdobrando
i n s í g n i a s distintas, u m em n o m e d a civilização, outro em nome do
e x t e r m í n i o , e r g u i a m - s e , pólos s u p r e m o s d a v i d a e d a m o r t e , d a t r e v a
e d a luz, d o sol e d a neve, combatendo-se, sem q u e o pensassem, e
v e n c e n d o , sem q u e o soubessem.

N o oriente, p u r p u r e a v a u m clarão s a n g ü í n e o , e m vez dos esplen-


dores d e uma a u r o r a e t e r n a q u e d e v e r i a chover cintilações s o b r e o
berço da humanidade.

No oriente... esse clarão, longe d e p r e n u n c i a r o sol fecundo q u e


ativa a s g e r m i n a ç õ e s d a v i d a nas m o n t a n h a s e n o h o m e m , n a flor e
no oceano, e r a o r e b a t e l ú g u b r e d o a p a r e c i m e n t o de u m astro, cuja cla-
r i d a d e melancólica i n f u n d e tristezas, r e d o b r a o p a l o r dos mortos, realça
a b r a n c u r a dos t ú m u l o s , n a álea s o m b r i a dos ciprestes.

Das lutas medievais se d e s p r e n d e r a ; e então, m a i s temeroso d o


q u e n u n c a , p o r sobre os horizontes, se d e s d e n h a o crescente d o isla-
mismo.

Por que surgira?

A E u r o p a fora a s s a n h a r o t i g r e nos fojos d a P a l e s t i n a , e d e r a a


b e b e r o s a n g u e q u e l h e r e d o b r a v a a sede.
156 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

M a l ferido s a c u d i u o d o r s o ; e q u a n d o talvez m e n o s se apercebe:


a Europa, aquela pata sanguinolenta, sinête do e x t e r m í n i o , abateu
s o b r e as cúpulas de Bizâncio, selando a c a r t a de u m a e s c r a v i d ã o .
quase quinhentos anos.

N o ocidente, porém, eram bem o u t r a s as c e n a s d o assombros


quadro.

P o r t u g a l , essa n a ç ã o p e q u e n i n a que a Espanha comprime, ma


q u e o o c e a n o a l a r g a ; essa n o v a G r é c i a dos a r g o n a u t a s d a g l ó r i a ; êss
m e s q u i n h o átomo de t e r r a q u e n a h i s t ó r i a g a n h o u as p r o p o r ç õ e s so
b r a n c e i r a s de u m a m o n t a n h a ; P o r t u g a l , em face das o n d a s , em cujo;
t é r m i n o s só p o d e a m ã o d o g ê n i o r a s g a r a s o m b r a d o desconhecido,
sentia delinear-se, a b r i r , crescer a r o t a l u m i n o s a de seus descobrimen-
tos, q u e longe l e v a r i a a f a m a d o seu n o m e , o n o m e de seus h e r ó i s , os
h e r ó i s de s u a i m o r t a l i d a d e , a i m o r t a l i d a d e de seu p a t r i o t i s m o .

Antítese de p r o d í g i o s !

A m ã o d e v a s t a d o r a de M a o m é l e v a n t a v a n o oriente u m a muralha
de túmulos, s u p e r p o n d o c a d á v e r e s e cadáveres.
E a Europa... recuou!

A p r o a d a s n a u s p o r t u g u e s a s r a s g a v a os m u r o s de o n d a s q u e o
oceano l e v a n t a r a , superpondo descobrimentos a descobrimentos.

E a Europa... avançou!

0 t u r c o t e n t a v a c e r r a r as p o r t a s d o o r i e n t e à civilização q u e ca-
m i n h a ; e, em t o r n o , c a v a n d o l a r g o s fossos, alagou-os d e s a n g u e .

O p o r t u g u ê s , s o b r e a v a g a , r a s g a o c a m i n h o d o oriente à civiliza-
ção q u e d o i d a o a c o m p a n h a r a ; e q u a s e até ao infinito, a b r i u o sulco
d a s descobertas, e alagou-os de luz.

U m s o b r e o C á u c a s o s o e r g u e o crescente, símbolo imóvel d a soli-


dão e da morte. O u t r o , a o l a d o d a cruz, p r e n d e à c o r o a de neve d o
H i m a l a i a , o r u t i l a n t e sol d o m o v i m e n t o e d a v i d a .

O Bósforo rola s a n g u e : são c a d á v e r e s as n a u s q u e r o m p e m suas


águas!
DISCURSOS BRASILEIROS 157

O A m a z o n a s rola v a g a s de o u r o : são as q u i n a s q u e sulcam suas


ondas!

A basílica d e s a b a aos golpes p r o f u n d o s d o alfange dos otomanos,


e d e n t r e suas r u í n a s , ergue-se a m e s q u i t a , q u e os m i n a r e t e s e r i ç a m .

Mas, a l é m . . . os p a g o d e s d a í n d i a sentem q u e u m novo D e u s in-


v a d e t r i u n f a n t e o recesso de seus m i s t é r i o s . . . e q u a s e seca a fonte do
G a n g e s , q u e afoga, e r e b e n t a o n a s c e d o u r o do J o r d ã o , q u e batiza.

Ainda a l é m . . . na A m é r i c a . . . a floresta t r a v a a r a m a g e m de
suas f r o n d e s . . . e a c ú p u l a se e n c u r v a ; o vento b a l a n ç a os c o r i m b o s
da l i a n a . . . e os t u r í b u l o s f u m e g a m ; as aves soltam harmonias na
e s p e s s u r a . . . e a l i r a de D a v i r o m p e em acordes d i v i n o s . . . e de pé,
tranqüilo, o olhar mergulhado nos esplendores d o infinito e os pés
e n r e d a d o s n a s serpentes d o e s p i n h e i r o , o m i s s i o n á r i o p l a n t a n a floresta
mais uma árvore: — a cruz!

T u d o isto fizeram os p o r t u g u e s e s .

Mas quem poderá memorar a trabalhosa jornada desse p u n h a d o


de h o m e n s , q u e se a r r o j a v a m n o desconhecido, a b r i n d o o c a m i n h o da
imortalidade?

Quanto combate travado! Quantas provações sofridas! Quanta


miséria e quanta morte!

E m t e r r a , a t r a i ç ã o , a calúnia, a g u e r r a , o e x t e r m í n i o ; no mar,
a o n d a e o c i c l o n e ; n o horizonte, o n a u f r á g i o n a s asas da t e m p e s t a d e ,
a t e m p e s t a d e n a s asas d o d e s c o n h e c i d o !

Mas, q u a n d o n a l i n h a v a g a do h o r i z o n t e , c o m o a luz b r a n c a das


alvoradas, u m a mancha a p a r e c i a , e se a l a r g a v a , e se d e s p r e n d i a do
céu. e flutuava sobre o m a r , e se c o r p o r i z a v a , e se estendia e o g r i t o
salvador de — terra! terra! — v i b r a v a e n t r e os r u m o r e s do o c e a n o ;
quando, ainda m a l desperto, o olhar do m a r i n h e i r o , c a n s a d o de in-
t e r r o g a r o infinito, de d i v a g a r s o m b r i o s o b r e o e s p u m a n t e dorso de
n e t u n o , fitava, enfim, o a b r i g o do s u s p i r a d o p o r t o , quando aquelas
a l m a s alvoroçadas, e n t r e as visões d o p a t r i o t i s m o e da s a u d a d e , encon-
t r a v a m , no t o m b a d i l h o , as dulcíssimas i m a g e n s da p á t r i a e d a f a m í l i a . . .
— que c o m o ç ã o de a l e g r i a i m e n s a n ã o lhes p r e m i a o peito, q u e re-
158 ANTOLOGIA D E FAMOSOS

c o m p e n s a n ã o a p a g a v a a m e m ó r i a m e s m o dos infortúnios, e q u e subli-


m a d a coroa n ã o e r a a q u e l a p a r a d e p o r aos p é s d a p á t r i a estremecida!

As costas africanas, d e v a s s a d a s ; a M a d e i r a e m fogo, a t e a n d o o gi-


gantesco farol de u m incêndio, como que p a r a alumiar a rota das
T o r m e n t a s , esse A d a m a s t o r esfinge, p l a n t a d o nos t é r m i n o s d o m u n d o ,
p o r vezes investido, m a s u m a vez e p a r a s e m p r e d o b r a d o ; essa l o n g a
d e r r o t a d o G a m a a t é à í n d i a ; a conquista, a luta, a g l ó r i a d o triunfo,
essas m i l b a t a l h a s feridas s o b r e a s o n d a s o u n a s escaladas e m t e r r a , a
imortalidade, e n f i m . . . t u d o fazia daquela terra de Portugal a mão
fecundíssima d e m i l h e r ó i s ; e d a q u e l a n e s g a d e c h ã o . . . u m c o n t i n e n t e
de luz, n o u n i v e r s o d a h i s t ó r i a .

A t r e v i d o b a n d e i r a , d a e s p a d a e d a idéia, c a d a m a r i n h e i r o e r a u m
patriota, cada patriota u m descobridor; e cada descobridor alargava
os d o m í n i o s d e s u a p á t r i a ; r e c u a v a os limites d o m u n d o ; e s t e n d i a a
r e d e d o c o m é r c i o ; d i s t e n d i a novas a r t é r i a s à c i r c u l a ç ã o d o p e n s a m e n t o
h u m a n o ; dava mundos ao mundo e homens à humanidade, preparando
a s s i m a c o n f r a t e r n i z a ç ã o dos povos, e r a s d e a s p i r a ç ã o s u p r e m a e m q u e
as fronteiras d e todas a s p á t r i a s c a i r i a m às p l a n t a s d a h u m a n i d a d e !

N o e n t a n t o , toda a glória, c o m o o sol, t e m seus ciclos d e obscure-


cimento.

E Portugal declinava.
Depois d e u m r e i s o m b r i o , a s e n i l i d a d e ; e depois d a i m b e c i l i d a d e ,
a l o u c u r a d e u m a a m b i ç ã o cavalheiresca se r e v e z a v a m n a q u e l e trono
t ã o s u b l i m a d o , e d e o n d e o ú l t i m o r e i , a o c a i r , a r r a s t a r i a p a r a a der-
rota e para a escravidão a nacionalidade augusta.

A o d e s a b a r a m o n a r q u i a , m u i t o a n t e s q u e a o r e t i n i r d o alfange
mouro, na jornada d e Alcácer, se r o m p e s s e e m estilhaços o escudo
s e m p r e vitorioso d e Alfonso H e n r i q u e s , a o t e m p o , p o r é m , e m q u e con-
f u s a m e n t e , n a s fronteiras o r i e n t a i s j á se o u v i a r a n g e r n a s p e d r a s d a
a m b i ç ã o a g a r r a d a E s p a n h a , a a l m a i m e n s a d a q u e l e povo d e g i g a n t e s
concluía toda i n t e i r a p a r a u m h o m e m .

0 último daqueles portugueses deveria nascer nesse p e r í o d o de


d e c a d ê n c i a , n ã o p a r a g e m e r s o b r e as r u í n a s d a p á t r i a , j á q u e n ã o po-
dia a m p a r á - l a n a c o l u n a d e seus b r a ç o s , m a s p a r a , e m n o m e d o p á t r i o -
DISCURSOS BRASILEIROS 159

t i s m o , e r g u e r u m m o n u m e n t o t ã o l a r g o q u e p u d e s s e conter o c a d á v e r
da grande nação.

P o r t u g u ê s , n ã o p o d i a m a i s ser c o m p r e e n d i d o p o r a q u e l a r a ç a q u e
se c o r r o m p e r a .

P o e t a , a D e j a n i r a d a f a t a l i d a d e p r e g a r a - l h e aos o m b r o s a t ú n i c a
e n s a n g ü e n t a d a d o i n f o r t ú n i o e d a fome, d o desespero e d a m o r t e .

P o r isso r e p u d i a r a m - n o .
P o r t u g a l recusou-lhe f o r t u n a e a m o r , a l i m e n t o e mortalha.

A o a p a r e c e r n a corte, a m a r a d o u d a m e n t e essa N a t é r c i a imortali-


zada em seus cantos. Mas a muralha dos preconceitos se levantou
e n t r e os dois a m a n t e s .

Negara-lhe a fortuna meios com q u e r e s t a u r a s s e o velho solar d e


seus a v ó s , e m a n d a s s e g r a v a r , em letras de o u r o , s o b r e o escudo d a
família, os títulos de sua n o b r e z a .

No entanto, montanhas de pergaminhos, pirâmides de b r a s õ e s ja-


mais poderiam na concha da imortalidade, pesar mais que uma só
folha de s u a l á u r e a de poeta, ou b r i l h a r m a i s q u e u m a só das estrofes
de s u a e p o p é i a .

E l o q ü e n t í s s i m a lição d a h i s t ó r i a ! A auréola da linhagem apagou-


-se, como e s p u m a , d a fronte da C a t a r i n a , e hoje, n o s o m b r i o recesso
dos séculos, v i n c u l a n d o o seu n o m e a o d o m e s q u i n h o , ela a p e n a s se
destaca aos clarões g e n i a i s d a q u e l a g r i n a l d a de a m o r q u e o poeta p ô d e
tecer com a i n s p i r a ç ã o de seus versos.

L u í s de C a m õ e s , exilado, p r e s o , salteado pela d e s v e n t u r a , sentiu


q u e a p á t r i a l h e fugia de sob os p é s . . .

Partiu.

P a r a q u e revolver as cicatrizes d a q u e l a v i d a crucificada?

A g u e r r a desfigura-o, m a s volta e m b u s c a d a g u e r r a , ou, quem


s a b e m e s m o , se d a pátria.

A t r a v e s s a os oceanos a i n d a a s s o m b r a d o s pelos p r o d í g i o s do G a m a ;
a f i n a as c o r d a s d a s u a l i r a ao d i a p a s ã o d a s t e m p e s t a d e s ; c r i a Ada-
160 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

mastor; i n q u i r e a s o n d a s ; m e d e o sulco l u m i n o s o d a s n a u s n a face


convulsa desses m a r e s j á c a t i v o s : pisa a t e r r a d e p r o m i s s ã o d a í n d i a . . .
T u d o , t u d o l h e v e m falar dos h e r o í s m o s d e o u t r o r a ; e e n t r e os pal-
m a r e s , vê s u r g i r e m , a m o r t a l h a d o s pela glória, os vultos d e Castro, d e
Pacheco, de Almeida e de Albuquerque. P o r toda a p a r t e , restos d e
t r i u n f o s ; p o r toda a p a r t e , vestígios d e c o m b a t e s ; p o r toda a p a r t e ,
as t r a d i ç õ e s d o d e s c o b r i m e n t o ; p o r toda a p a r t e , a s o m b r a d e suas
bandeiras... m a s , p o r toda a p a r t e , a u s e n t e a p á t r i a . Onde estava
ela, q u e u m p o r t u g u ê s j á n ã o p o d i a encontrá-la? Quem desfigurara
t a n t o essa m ã e , q u e u m filho já n ã o p o d i a reconhecê-la?

Que mais restava?

O cavaleiro p o e t a buscou u m a b r i g o n o p a s s a d o . Ali, n a h i s t ó r i a ,


n o t ú m u l o d e s u a m ã e , estendeu a espada e pendurou a lira. Sal-
teiam-lhe a afronta, o exílio, as p r i s õ e s . . . Mas que importa? Sua
a l m a , bússola teimosa, se voltava p a r a o solo d a p á t r i a , com a insis-
tência de u m fanatismo.

M a s , q u a n d o saiu d a q u e l e p a n t e o n d e glórias e d e triunfos, a o


descer d a q u e l e S i n a i o n d e a i m o r t a l i d a d e espera o h e r o í s m o , Camões
t r o u x e r a as t á b u a s d e u m decálogo i m o r t a l , os dez cantos dos Lusíadas.

E r a u m testamento. C a m õ e s legava-o à h u m a n i d a d e , p o r q u e lhe


minguava a pátria. E r a u m a p i r â m i d e , a m a s s a d a e m estrofes d e bron-
ze, p a r a e n c e r r a r os p e r í o d o s d e m a i s fausto n a h i s t ó r i a d e u m a pá-
tria. . . já morta! A e s p a d a d a s c o n q u i s t a s , n o futuro, p o d e r i a a r r a s a r
aqueles m o n u m e n t o s . N a u s e s t r a n g e i r a s e q u e n ã o sofreriam o esplen-
d o r dos feitos d e o u t r a b a n d e i r a t e r i a m d e r e t a l h a r aqueles oceanos,
e m a r e a r talvez a esteira d e assombros, q u e o G a m a a b r i r a s o b r e a s
ondas. O u t r o s e m b a t e s d e a r m a s talvez fizessem recuar, p a r a a pe-
n u m b r a d o p a s s a d o , as b a t a l h a s p o r t u g u e s a s , s e m p r e feridas c o m t a n t o
heroísmo...

C o m o salvar a q u e l a s q u i n a s a i n d a u m a vez do n a u f r á g i o , do pro-


fundo naufrágio do esquecimento?

C o m o s u s p e n d e r a q u e l a s e n o r m e s proezas q u e f e r i a m de e s p a n t o
os povos do m u n d o , senão l e v a n t a n d o - a s n a s asas potentes d a epopéia,
DISCURSOS BRASILEIROS 161

t ã o alto q u e a p o e i r a d a s r u í n a s n ã o pudesse m a r e á - l a s , t ã o alto q u e


os êmulos n a v i t ó r i a n ã o p u d e s s e m j a m a i s ser êmulos n a i m o r t a l i d a d e ?

Eis p o r q u e as c o n q u i s t a s da í n d i a se i n s c r e v e r a m na História,
m e n o s fundo do q u e n a s p e d r a s g r a n í t i c a s do m o n u m e n t o épico de
Camões.

C a n s a d o de p e r e g r i n a r , volta o p o e t a a P o r t g a l . E ali... Cer-


r e m o s u m v é u d e b r o n z e s o b r e a a g o n i a do ú l t i m o dos p o r t u g u e s e s ,
d o ciclo glorioso dos d e s c o b r i m e n t o s . A infâmia daquele tempo, três
séculos de r e p a r a ç ã o j á devem tê-la feito esquecer. A mortalha que
a p á t r i a lhe n ã o p ô d e coser ao glorioso c a d á v e r , p o r q u e a p á t r i a , des-
p o j a d a da coroa a n t i g a , com êle p r e f e r i a m o r r e r , d e r a m - l h e trezentos
a n o s de a d m i r a ç ã o n a p ú r p u r a sublime de sua p r ó p r i a epopéia.
BRASÍLIO MACHADO

" C a r l o s G o m e s " — Discurso proferido em nome


da i m p r e n s a da C a p i t a l de S. P a u l o , por ocasião
de s a r a u lítero-musical, o r g a n i z a d o em benefício
do filho do m a e s t r o , 1880.

Maestro!

N ã o posso r e s u m i r , no molde d a p a l a v r a , a o n d a s o n o r a q u e os
aplausos l e v a n t a m d o seio desta m u l t i d ã o , q u e ao teu e n c o n t r o c o r r e ;
n e m sei c o m o d e s d o b r a r essa p ú r p u r a de ovações em q u e se envolve
a realeza d o talento.

N ã o é de hoje q u e soletras, n a s aclamações de u m a noite, a imor-


t a l i d a d e d o teu n o m e .

Nossas p a l m a s n ã o são p o r certo as p r i m í c i a s d a h o m e n a g e m .

Se a a m b i ç ã o de p r o g r e d i r n ã o fora sem p r a i a s e sem f u n d o ; se


a t r a j e t ó r i a d o gênio n o t e m p o e n o espaço pudesse e n c o n t r a r as fron-
t e i r a s d a i m o b i l i d a d e : — se n a a l m a o n d e t u m u l t u a m os m o v i m e n t o s
d o t r a b a l h o , fosse d a d o a b r i r o v á c u o d a q u i e t a ç ã o . . . p o d e r i a s , lau-
r e a d o m a e s t r o , sem c o m p r o m e t e r os teus foros de artista, esterilizar
essa b a t u t a q u e a r r a n c o u do r o c h e d o da a r t e as cascatas de h a r m o n i a
e d e i x a r q u e a s o m b r a d o teu n o m e se embalasse pela a m p l i d ã o sem
t é r m i n o s d a p o s t e r i d a d e , a r r a s t a d a , como o g u a r a n i de t u a ó p e r a , pela
t o r r e n t e dos tempos, s o b r e a p a l m e i r a d a glória!

H á cerca de vinte anos, a t r a í d o p a r a as i n c o m e n s u r á v e i s alturas,


o n d e só p a i r a m os eleitos da inteligência, te sentiste g r a n d e demais,
p a r a q u e os horizontes de t u a t e r r a p u d e s s e m circunscrever a órbita
de tuas aspirações.

N o oceano e n s o m b r a d o que pretendias acometer, q u a n t a s vezes


DISCURSOS BRASILEIROS 163

n ã o v e r i a s cair, a d o r m e c i d o de fadiga, o b r a ç o q u e e n d i r e i t a v a o leme


d o futuro, e n t o n t e c i d a a bússola da e s p e r a n ç a , irresoluta a â n c o r a da
coragem!

Querias a I t á l i a . . . essa I t á l i a o n d e a p a l a v r a t e m as m o d u l a ç õ e s
de u m c a n t o . . . essa Itália q u e até hoje e m p u n h a a r e g ê n c i a n a or-
questra do m u n d o . . . essa Itália que p a r a o artista é o Tabor das
transfigurações.

M a s esse sonho de e n g r a n d e c i m e n t o esvoaçava p o r a l t u r a s q u e n ã o


poderiam alcançar tuas m ã o s . . . vazias do d i n h e i r o . Obscura ainda,
c o n q u a n t o , a c o r o a de talento musical fizesse de t u a família u m a di-
nastia de artistas, t u a vocação talvez q u e n ã o cativasse, n a c a d e i a d a s
h a r m o n i a s , a a d m i r a ç ã o de hoje, se e n t r e os espinhos d a p o b r e z a n ã o
encontrasses o cetro d e o u r o de u m m o n a r c a , o Sr. D . P e d r o I I .

N o p l a n o elevado da g r a t i d ã o nacional, essa majestade ganhou


e n t ã o m a i s u m d i a d e m a , esse t r o n o , m a i s u m d e g r a u ; pois o cetro q u e
podia gerar n o olimpo as fulminações do r a i o , se t r a n s f o r m a r a na
v a r a d o i n s p i r a d o h e b r e u , a b r i n d o de p a r em p a r as o n d a s d o esqueci-
m e n t o , p a r a d e i x a r e n x u t o o leito d a e s p e r a n ç a , p o r o n d e tu, mesqui-
n h o , atravessaste e m busca d a s l u m i n o s a s p r a i a s da P a l e s t i n a de t u a
p e r e g r i n a ç ã o , d a p e r e g r i n a ç ã o de t u a glória, d a glória d e t u a P á t r i a !

Rasgou-se o r u m o do futuro.

E para que na sagração do gênio fosse t e s t e m u n h a a imagem


desta t e r r a , encheu-se t u a a l m a d a s agitações d o p a t r i o t i s m o , e a t u a
ó p e r a , a p r i m e i r a escala de t u a apoteose, se t r a d u z i u n a p o c e m a dos
a i m o r é s ; e o r u m o r selvagem das c a c h o e i r a s t o m o u ao m e s m o tempo
as m o d u l a ç õ e s d a b r i s a d a s florestas nessa indolente b a l a d a q u e l e m b r a
a ave m o r t a de u m sonho, a r r a s t a d a pela o n d a p l a n g e n t e d a s a u d a d e .

A g o r a vens opulento, b e m o sei, b e m o s a b e m todos.

M a s n o concerto de aclamações q u e te c o r t e j a m , faltava u m a par-


t i t u r a : a d o c o r a ç ã o ; u m a sinfonia, a d o s e n t i m e n t o ; u m a orquestra,
a o r q u e s t r a de nossos aplausos, dos aplausos de t u a p r o v í n c i a .

N ã o q u e esta t e r r a , q u e t ã o b e m personificaste n o congresso da


a r t e , ao ver t u a ascensão b r i l h a n t e , deixasse de estender, p o r sobre os
164 ANTOLOGIA D E FAMOSOS

oceanos, n a s m ã o s t r ê m u l a s de e n t u s i a s m o , a sua coroa de e s t r e l a s . . .


dessas estrelas q u e tu, l a u r e a d o m a e s t r o , u m a a uma arrancavas de
seu escudo, p a r a c r i a r u m a nova constelação, a A m é r i c a , nesse h a r m o -
nioso sistema em q u e M o z a r t e Rossini, M e y e r b e r e C h e r u b i n i , Haydn
e P a l e s t r i n a são outros tantos centros luminosos.

N ã o era, q u e esta t e r r a , com os estremecimentos de m ã e , deixasse


d e a n i m a r - s e nos incessantes c o m b a t e s q u e a v o c a ç ã o t r a v a com esse
a n j o m a u d a d ú v i d a ou da calúnia, d o preconceito ou d a inveja, q u e ,
d a s e n c r u z i l h a d a s da p o b r e z a e da s o m b r a , não r a r o , salteia o gênio,
e p r e d i s p õ e n o estreito caminho da posteridade a pedra do abismo
j u n t o ao d e g r a u d a m o n t a n h a , o m a n t o do triunfo cosido aos a n d r a j o s
do infortúnio.

N ã o q u e esta t e r r a deixasse de se comover com o d e s v a n e c i m e n t o


de u m o r g u l h o imenso, q u a n d o Milão lhe a r r a n c a r a o filho, p a r a res-
t i t u i r o m a e s t r o ; q u a n d o a a r t e lhe r o u b a r a u m c i d a d ã o p a r a , do pros-
cênio altíssimo do Scala, reenviá-lo t ã o g r a n d e q u e e n g r a n d e c e u a pá-
t r i a , e t ã o glorioso q u e j á p ô d e a f i r m a r a organização artística de
um povo.
M a s e r a m i s t e r q u e sentisse de p e r t o as expansões do m a i s santo
dos orgulhos, o p a l p i t a r febricitante de nossa g r a t i d ã o , a s u p r e m a ven-
t u r a , enfim, de te a p e r t a r m o s nos b r a ç o s .

Nossas h o m e n a g e n s n ã o f o r a m pedir ao espírito d a v a i d a d e as


pérolas opulentas, n e m a l u m i a m o s t u a p a s s a g e m com os r e v é r b e r o s da
luz q u e o d i a m a n t e e s p a l h a ; p o r q u e n ã o h á esplendores que empali-
d e ç a m o sulco de u m beijo d e m ã e , i m p r e s s o n a fronte de seus filhos;
c o m o n ã o existe a c ú m u l o de coroas q u e possa e n c o b r i r a m o d e s t a ve-
r e d a q u e nos conduz ao r e c a n t o , onde em r u í n a s c a i u o teto de nossas
primeiras alegrias.

Assim, maestro, e m b o r a a t u a v i d a se t e n h a escrito em p e r g a m i -


n h o s de l o u r o s ; p o r m a i s c o m p a c t o q u e a v a n c e o préstito de ovações
q u e te a c o m p a n h a ; por m a i s incessante q u e soe e m teus ouvidos a
m a r c h a triunfal de t u a glória, é forçoso q u e nesta noite dês em sua
fronte u m espaço p a r a q u e nele estalem os ósculos de t u a p á t r i a ; que
e m teu préstito a b r a s u m l u g a r p a r a a t u a p r o v í n c i a de São Paulo;
q u e i m p o n h a s m o m e n t â n e o silêncio ã sinfonia de teu triunfo p a r a q u e
possas ouvir as s a u d a ç õ e s de teus p a t r í c i o s .
CAMPOS SALES

F a l e c i m e n t o do M a r e c h a l Deodoro — Discurso
p r o n u n c i a d o no S e n a d o F e d e r a l , em 23-8-1892.

Cabe-me, senhores, o doloroso dever de t r a n s m i t i r ao S e n a d o a


triste nova, q u e nos c h e g a neste m o m e n t o , do falecimento do m a r e c h a l
M a n o e l D e o d o r o d a Fonseca. N ã o posso e n c a r r e g a r - m e de c o n t a r ago-
r a a h i s t ó r i a d a sua v i d a : seria o m e s m o q u e c o n t a r a h i s t ó r i a da v i d a
nacional.

0 seu n o m e ilustre encontra-se t o m a n d o l u g a r proeminente, nas


fases m a i s b r i l h a n t e s da nossa h i s t ó r i a , desde essa época memorável,
em q u e o glorioso soldado colocou-se n a s p r i m e i r a s l i n h a s d o legendá-
rio exército, a q u e m coube a s a g r a d a missão de defender a h o n r a de
nossa b a n d e i r a e o r e n o m e brasileiro nos c a m p o s do P a r a g u a i . Desde
o primeiro encontro com o i n i m i g o , disputou êle a glória aos m a i s
b r a v o s , a f r o n t a n d o c o r a j o s a m e n t e todos os perigos e todos os sofrimen-
tos d a g u e r r a , n u n c a c e d e n d o o passo aos m a i s i n t r é p i d o s e s e m p r e
oferecendo a b n e g a d a m e n t e o seu s a n g u e ao i n i m i g o , à frente dos q u e
m a i s h e r o i c a m e n t e c o m b a t i a m à s o m b r a d o p a v i l h ã o brasileiro.

M a s , salva a h o n r a nacional, vencido o i n i m i g o externo, t e r m i n a d a


a gloriosa c a m p a n h a de além d a s fronteiras, n ã o lhe p e r m i t i u o pa-
t r i o t i s m o q u e êle p r o c u r a s s e o repouso n a v i d a t r a n q ü i l a e na paz de
u m egoísmo, a q u e aliás lhe d a v a m d i r e i t o os e n o r m e s serviços q u e o
r e c o m e n d a v a m à estima e à a d m i r a ç ã o dos seus c o m p a t r i o t a s .

D e volta d a g u e r r a , viu q u e t i n h a a i n d a u m a g r a n d e missão a


c u m p r i r ; q u e , e n s a r i l h a d a s as a r m a s do g u e r r e i r o , restava p ô r em ação
as e n e r g i a s do c i d a d ã o .
166 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

Todos conhecem a generosa e i n t r é p i d a a t i t u d e do chefe prestigio-


so e i d o l a t r a d o n a perigosa c a m p a n h a militar, em q u e n ã o regateou
sacrifícios n e m d e d i c a ç ã o p a r a a m p a r a r com o valor, com as glórias
do seu n o m e os direitos dos seus c a m a r a d a s , a m e a ç a d o s pelas violên-
cias e pelas perseguições d o g o v e r n o da monarquia.

Essa luta, o país inteiro o sabe, d e i x o u de ser a simples a g i t a ç ã o


dos interesses de u m a classe, p a r a t o m a r sob a sua d i r e ç ã o as vastas
p r o p o r ç õ e s de u m a questão política i n t i m a m e n t e r e l a c i o n a d a com a v i d a ,
com as condições de existência d a sociedade brasileira.

A confiança q u e êle soube i n s p i r a r , por todo o seu passado, aos


seus c a m a r a d a s , a e s p e r a n ç a q u e despertou e m todos os espíritos pela
excepcional e n e r g i a do seu c a r á t e r , d e r a m - l h e essa g r a n d e autoridade
m o r a l q u e faz de u m homem o instrumento necessário à realização
das aspirações de u m a época. Foi assim q u e êle ficou sendo o centro
n a t u r a l do m o v i m e n t o q u e p r o d u z i u a t r a n s f o r m a ç ã o política p o r q u e
passou o nosso p a í s .

D a influência q u e êle exerceu, d a s e s p e r a n ç a s q u e êle r a d i c o u e


fêz desenvolverem-se n a a l m a dos brasileiros q u e p a t r i ò t i c a m e n t e dedi-
c a v a m os seus esforços à causa d a R e p ú b l i c a , p o d e d a r t e s t e m u n h o o
obscuro soldado da velha falange r e p u b l i c a n a , q u e a g o r a d i r i g e a pa-
l a v r a ao S e n a d o .

0 c o n g r a ç a m e n t o espontâneo e sincero d o m a r e c h a l D e o d o r o com


os p r o p a g a n d i s t a s da R e p ú b l i c a , além de d e n u n c i a r as suas vistas pa-
trióticas, foi u m ato político de e x t r a o r d i n á r i o valor, p o r q u e servirá
s e m p r e p a r a protestar, e n q u a n t o h o u v e r m e m ó r i a da h i s t ó r i a de hoje,
c o n t r a a falsidade dos q u e , despeitados e q u e r e n d o a m e s q u i n h a r a nossa
g r a n d e o b r a , dizem q u e o 15 de N o v e m b r o n ã o foi senão u m a a g i t a ç ã o
de quartéis.

N ã o ; n ã o foi u m a sedição m i l i t a r . A m o n a r q u i a foi b a n i d a por


u m esforço c o m u m dos c i d a d ã o s brasileiros, e m franca e p a t r i ó t i c a fra-
t e r n i z a ç ã o com a força a r m a d a . T a l é a significação desse sucesso
assombroso q u e provocou a a d m i r a ç ã o e os aplausos de todo o m u n d o
civilizado.
DISCURSOS BRASILEIROS 167

C o m p a n h e i r o do g r a n d e brasileiro n o G o v e r n o P r o v i s ó r i o , acom-
panhando-o d e p e r t o d u r a n t e essa fase a c i d e n t a d a da vida nacional,
posso felizmente dizer desta t r i b u n a , d e onde se fala à n a ç ã o , q u e n ã o
lhe faltavam os elevados sentimentos, n e m a l e a l d a d e de c a r á t e r , q u e
c r i a m as e s t a t u r a s dos g r a n d e s p a t r i o t a s .

Ao seu lado, todos n ó s , seus c o m p a n h e i r o s d o p r i m e i r o Governo


r e p u b l i c a n o deste país, t í n h a m o s a t r a n q ü i l a s e g u r a n ç a q u e r e p o u s a v a
a certeza de q u e , e n q u a n t o êle pudesse d e s e m b a i n h a r a s u a gloriosa
espada, e n q u a n t o êle pudesse fazer o u v i r a voz do c o m a n d o , a R e p ú -
blica teria n a s u a g r a n d e p e r s o n a l i d a d e u m g u a r d a poderoso e leal,

É possível — n ã o faço investigações — q u e o m a r e c h a l D e o d o r o ,


sm u m a existência t ã o a g i t a d a e t r a b a l h a n d o pelos m a i s graves suces-
sos, houvesse cometido erros, g r a n d e s faltas. M a s , senhores, quando
: o n d e foi q u e j á existiu u m h o m e m com p o d e r b a s t a n t e p a r a evitá-los?

Os m a i s experimentados homens de Estado têm sucumbido ao


•nfrentar os complicados p r o b l e m a s q u e envolvem os povos n a s épocas
n o r m a i s d a s u a existência. Como, pois, exigir m a i s d a q u e l e q u e d a v a
.o seu país, à s instituições q u e fundou, a s i n c e r i d a d e dos seus n o b r e s
entimentos ?

Se h á n u v e n s no h o r i z o n t e d a s u a vida, creio b e m p o d e r dizê-lo,


Ias foram a c u m u l a d a s p o r aqueles q u e e m b o s c a r a m - s e a t r á s d a p r ó p r i a
r a n d e z a do seu n o b r e c o r a ç ã o e a p o d e r a r a m - s e d a falsa fé do seu
r a n d e espírito.

E a h i s t ó r i a h á d e r e g i s t r a r os resultados deste m o n s t r u o s o crime


? abuso d e confiança p a r a estigma p e r p é t u o dos q u e o p r a t i c a r a m ,
só deles.
P o r a g o r a , só nos c u m p r e r e c o r d a r q u e foi êle, a o lado d e seu
olvidável c o m p a n h e i r o B e n j a m i m Constant, q u e m fundou a nova pa-
la brasileira, a b a t e n d o a m o n a r q u i a e l e v a n t a n d o a R e p ú b l i c a . Este
rviço r e s g a t a b e m todas as culpas.
E m h o m e n a g e m ao ilustre morto, p r o p o n h o q u e o S e n a d o s u s p e n d a
seus t r a b a l h o s hoje e a m a n h ã , e faça-se r e p r e s e n t a r nos funerais p o r
ia comissão dos seus m e m b r o s .

Acredito q u e o S e n a d o q u e r e r á b e m i n t e r p r e t a r os sentimentos d a
itidão nacional.
COELHO NETO

Discurso pronunciado n a Associação dos Empre-


gados no Comércio, n a sessão solene celebrada
pelo Aeroclube Brasileiro, em homenagem a
Santos Dumont, em 25-5-1916.

Meus Senhores:

Os dias q u e p a s s a m são os m a i o r e s d o T e m p o . Nunca a árvore


de S a t u r n o p r o d u z i u frutos como os q u e as H o r a s r á p i d a s a g o r a re-
c o l h e m p a r a o celeiro da H i s t ó r i a . Dir-se-ia q u e os ponteiros do re-
lógio olímpico são os p r ó p r i o s raios de Zeus. Cronos a d a p t o u às es-
p á d u a s as seis asas possantes dos Q u e r u b e s e bate-as v i o l e n t a m e n t e em
vôo vertiginoso.

O h o m e m agita-se n o t u r b i l h ã o , e assim como a r o d a compacta


d o c a r r o a r i a n o d a v a u m a volta lenta em u m m i n u t o e as r o d a s das
locomotivas, e m t e m p o igual, fazem duzentos a trezentos giros, assim
o h o m e m c o n t e m p o r â n e o p e r c o r r e , e m u m dia, u m a escala de emoções
q u e e n c h e r a m , à farta, a v i d a , q u a t r o e cinco vezes c e n t e n á r i a , de u m
beato patriarca bíblico.

O m u n d o vai-se t o r n a n d o a c a n h a d o p a r a o ser q u e o h a b i t a . A
t e r r a é t i d a p o r estreita n a superfície e rasa n a espessura p a r a a insa-
ciável a m b i ç ã o do seu e x p l o r a d o r ; os m a r e s entulham-se de n a v e s ; os
r i o s n ã o b a s t a m p a r a a r e g a de l a v o u r a s , p a r a o t r a b a l h o das u s i n a s
e p a r a a sede dos a n i m a i s ; as á r v o r e s são p o u c a s p a r a d a r sombra,
f r u t o e l e n h o ; exigem-se m a i s r e b a n h o s e m a i s t r i g o p a r a os m e r c a d o s
e n a vida, c a d a vez m a i s facilitada com a i n d ú s t r i a , s e m p r e espera e m
inventos e aplicações, q u e m u l t i p l i c a m o t r a b a l h o e a b r e v i a m a ativi-
DISCURSOS BRASILEIROS 169

d a d e , c o m e ç a a h a v e r p e n ú r i a e o c l a m o r dos q u e sofrem frio e fome


atroa desoladoramente.

O h o m e m olha e m volta d e si p r o c u r a n d o saída, r e c l a m a espaço,


âmbito mais amplo, ar mais puro, mais domínio onde impere. Mas
os pólos opõem-se-lhe com os seus m u r o s de gelo. A terra deu o que
t i n h a e os m a r e s j á n ã o ocultam s u r p r e s a s . E o m u n d o começa a pa-
recer u m presídio.

Os m a p a s são folhas m o r t a s , o globo é u m a colmeia o n d e n ã o h á


alvéolo vazio, e e m c a d a eivado, u m a sentinela defende a passagem
com o a g u i l h ã o mortal.

Entretanto, o enxame cresce, multiplica-se, p u l u l a e cada nasci-


mento traz u m concorrente ávido a novas necessidades: mais u m a
fome r e c l a m a n d o cibo, m a i s u m desconforto r e q u e r e n d o lã, m a i s u m a
energia pedindo campo, mais u m a imaginação a s p i r a n d o a triunfos.
E é preciso viver e, p a r a viver, l u t a r .

0 forte a c a l c a n h a o fraco e passa-lhe sobre o corpo e é p o r c i m a


d e h u m i l h a d o s ou d e c a d á v e r e s que. se c h e g a à f o r t u n a ou à glória.

É r o m p e n d o p o r u m m a r V e r m e l h o de s a n g u e q u e os novos israe-
litas c a m i n h a m p a r a Canaã.

A e r a é d a Força. A R a z ã o e o D i r e i t o valem tanto como o


p r i m e i r o casal q u e foi expulso d o É d e n p o r u m anjo a r m a d o . Hoje
g o v e r n a m os filhos de C a i m e T u b a l , o ferreiro é r e i n a sua forja lú-
g u b r e , onde c h i s p a m l i m a l h a s e c o r r e m rútilos c a u d a i s d e a ç o .

C a i m e sua p r o g ê n i e a b r e m a m a r c h a b r a n d i n d o a r m a s e agitan-
d o fachos i n c e n d i á r i o s , e se d e r r u b a m cidades, se d e v a s t a m florestas
e searas, se a r r a s a m igrejas e m o n u m e n t o s de a r t e se d e p r e d a m , se
c o n s p u r c a m , se p r o f a n a m , c o n t a n t o q u e a v i t ó r i a os ressalve e absolva,
mundificando-os, como u m b a n h o lustrai l a v a as n ó d o a s do c r i m e .

Assim, pois, é preciso ser forte p a r a p o d e r ser h u m a n o . Querer


q u e se respeite u m a a r a o n d e a p e n a s a r d e m círios bentos, é u t o p i a .
T o d o s os p r i n c í p i o s do Bem, desde a F é a t é a H o n r a , d e v e m escudar-se
e m força, e assim, e m vez de círios, cerque-se o altar d e b a t e r i a s ; e m
vez de o n d a s d e a r ô m a t a s , envolva-se o s a n t u á r i o em fumo de expio-
170 ANTOLOGIA D E FAMOSOS

s i v o s ; e m vez de antífonas e salmos, cantem-se h i n o s h e r ó i c o s e os


sacerdotes i m i t e m aquele esforçado arcebispo carolino, o belacíssimo
T u r p i n , que em Roncesvalles, confessava e u n g i a os g u e r r e i r o s mori-
b u n d o s tendo p o r m i t r a u m elmo, e à m ã o , p o r báculo, u m m o n t a n t e .

Só apoiando-se n a F o r ç a p o d e r á o h o m e m d ' o r a em d i a n t e , viver


n o m u n d o t u m u l t u á r i o , t r a n q ü i l o n a P á t r i a e senhor n o seu lar, salvo
se dessa g u e r r a m o n s t r u o s a s u r g i r a P a z com u m a nova f ó r m u l a de
H u m a n i d a d e , r e i n t e g r a n d o n o t e m p o da C o n c ó r d i a o casal de b a n i d o s :
a Razão e o Direito.

E p r a z a a D e u s q u e assim seja. Então a imensa p ú r p u r a esten-


d i d a nos c a m p o s de b a t a l h a , como tapete d a G u e r r a , a b s o r v i d a pelo
sol, f o r m a r á no oriente, diluída em ouro, o rosicler da m a d r u g a d a do
segundo Renascimento.

E desse R e n a s c i m e n t o serás tu, nos tempos vindouros, apontando


como u m dos a n u n c i a d o r e s , h o m e m p r e d e s t i n a d o , filho da t e r r a verde
e pupilo dos céus azuis, c a m i n h e i r o n o solo e i t i n e r a n t e nas nuvens;
tu, q u e realizaste o ideal nascido n o espírito do p r i m i t i v o n a madru-
g a d a d o m u n d o , q u a n d o , n o P a r a í s o , l e v a n t a n d o os olhos deslumbra-
dos, viu a á g u i a alipotente a t r a v e s s a r o espaço e viu lançar-se, d e n t r e
os trigais, c a n t a n d o , a cotovia, m a r i p o s a do sul.

N o dia em q u e , r o m p e n d o os ares, entraste a l a d a m e n t e na His-


t ó r i a pela p o r t a azul do Éter, p r i v a t i v a dos deuses, o m u n d o fremiu
n u m e s t r e m e c i m e n t o de espanto. N o fundo da t e r r a agitou-se a ossa-
meilta m i l e n a r dos Atlantes atrevidos, q u e s u c u m b i r a m n a tentativa da
escalada d o céu, e, e m alvoroço, s u r g i r a m d a Poesia e da L e n d a , for-
m a n d o elas à t u a p a s s a g e m , todos os a é r i d e s i m a g i n á r i o s , desde P é g a s o ,
o alerião de P a l a s , até í c a r o , o m a n c e b o i m p r u d e n t e , q u e investiu com
o espaço fiado em asas de c e r a ; desde o M e n i p o de L u c i a n o até às
a p s a r a s dos l u a r e s da í n d i a ; desde Elias n o seu c a r r o de fogo, até
Brunhilda n o seu á r d e g o ginete, desde as fadas e os gênios até as
b r u x a s medievais.

E subias librando-te nas asas, r e a l i z a n d o a s u p r e m a a s p i r a ç ã o do


H o m e m desde q u e , com o p e c a d o , d e i x a r a de ser anjo, ficando preso
à terra na vida e na morte. Vieste r e s g a t a r o c r i m e de Eva, quero
DISCURSOS BRASILEIROS 171

d i z e r : a c u r i o s i d a d e h u m a n a ; c u r i o s i d a d e , seiva da á r v o r e do P a r a í s o ,
seiva com a q u a l fizeste o licor s a g r a d o q u e foi, ao m e s m o t e m p o , o
óleo da t u a l â m p a d a de estudo e o e s t i m u l a n t e do teu gênio altivo.

Foi n o lenho dessa á r v o r e q u e os fariseus f a l q u e j a r a m a cruz de


C r i s t o ; com esse m e s m o l e n h o fizeste o teu símbolo de r e d e n ç ã o .

Visto da t e r r a , p a i r a n d o , o teu a p a r e l h o assemelha-se à cruz mes-


siânica, tal como a viu C o n s t a n t i n o q u a n d o a t o m o u p o r l á b a r o : In
hoc signo vinces. E com êle venceste.

Subiste d a t e r r a b a i x a em alor de á g u i a , e, à m e d i d a q u e se abru-


m a v a n a distância a geografia dos efêmeros, avistavas as c o r d i l h e i r a s
d e s l u m b r a n t e s do E m p í r e o , o n d e c a d a estrela é u m m u n d o e onde
c o r r e m rios como a Via Látea, cujas a r e i a s d i a m a n t i n a s são germes
cósmicos.

I a s p o r m a r e s n u n c a d a n t e s n a v e g a d o s em d i r e i t u r a ao sol, q u e
era a t u a t r a m o n t a n a , levando p a r a a r e g i ã o das n u v e n s u m a signa
da t e r r a . A t u a flâmula de a l m i r a n t e elíseo e r a a b a n d e i r a a u r i v e r d e ,
o n d e refulgia o Cruzeiro, como p r e n u n c i o da v i t ó r i a q u e lhe estava
r e s e r v a d a no céu.

A n t e s de ti o u t r o brasileiro, Bartolomeu de G u s m ã o , talvez pela


constância na ascese, quis, u m dia, s u b i r a Deus com as orações e
imaginou a Passarola para:

"Voar! varrer o céu com as asas poderosas


Sobre as nuvens! correr o mar das nebulosas,
Os continentes de ouro e fogo da amplidão!. . ."

A i n d a e r a cedo. A ave p e d i a t e m p o p a r a desempolhar-se. Mas


o sonho d o solitário multiplicou-se e os a r e s e n c h e r a m - s e de esferas,
houve u m f e r v i l h a m e n t o de a e r ó s t a t o s : e r a a p o e i r a d a T e r r a q u e se
levantava e o P o e t a , vendo-os ir e vir, como átomos ao sol, saudou-os
n u m canto excelso n o qual ressoa, profèticamente, a boa nova da tua
vinda:
172 ANTOLOGIA D E FAMOSOS

Oh! franchir 1'ether! songe épouvantable et beau!


Doubler le promontoire enorme du tambeau!
Qui sait? Toute aile magnanime:
Uhomme est aüé. Peut être, ô merveilleux retour!
Un Christophe Colomb de 1'ombre, quelque jour,
Un Gama du cap de 1'abime,

Un Jason de Vazur, depuis longtemps parti,


De la terre oublié, par le ciei englouti,
Tout à coup, sur Vhumaine vive
Reparaitra, monte sur cet alérion
Et montrant Sirius, Allioth, Orion
Tout pâle, dira: "Jean arrive!"

Mas que podiam fazer tais germes não incubados? Os balões


eram cativos, c o m o são inertes os ovos d a s á g u i a s n a s a c h e g a s dos
ninhos.

R o l a r a m silenciosamente os tempos q u e f e c u n d a m e n a t e r r a ou-


s a d a d a s b a n d e i r a s nasceu o esplendor d o Excelsior, q u e és tu.

A i n d a m e n i n o , q u a n d o os d a t u a i d a d e c o r r i a m pela t e r r a , tu se-
g u i a s o vôo dos p á s s a r o s . Crescestes como Hermes: com asas na
cabeça.

D e i x a n d o o solo nativo, buscaste u m p o n t o da t e r r a de o n d e pu-


desses ser visto p o r todo o m u n d o ; esse p o n t o foi a c i d a d e p o r exce-
lência, a A t e n a s de Genoveva e a de J o a n a d ' A r e : P a r i s .

U m d i a apareceste como H é r c u l e s infante, n ã o t r a z e n d o a s e r p e n t e


estrangulada, mas arrastando uma larva estranha. Cavalgaste-a e o
v e r m e d e i x o u de r a s t e j a r : voou.

N ã o o aceitou o azul, a n u v e m repeliu-o, o vento enrolou-o era


caracol e o v e r m e t o r n o u à t e r r a b a i x a .

Recolheste com êle ao mistério, à espera d a metamorfose, e, q u a n -


do reapareceste, trazias a borboleta, com asas de P s i q u e e com ela
subiste. Foi a t u a p r i m e i r a v i t ó r i a . M a i s u m dia e o inseto olímpico,
reforçado, p a r t i u da t e r r a em arranque.
DISCURSOS BRASILEIROS 173

Voaste, então, sereno, n ã o como a p l u m a q u e flutua e oscila, sobe


e desce, a esmo, m a s como ave q u e inflete d i r e i t a ao r u m o ou como
os navios e n c a n t a d o s dos feácios, " q u e p e n s a v a m , a t r a v e s s a n d o rapida-
m e n t e os m a r e s , n u b l a d o s de nevoeiros, sem t e m o r de p e r i g o s " .

A t u a o b r a está feita. Com ela conquistaste o Espaço e o T e m p o .


Fôste o p r i m e i r o a e n t r a r n o a z u l ; bebeste n a s nuvens, passaste pela
forja dos raios e fôste além, onde o a r é p u r o como a á g u a nas fontes.

T u só, com o teu gênio, realizaste o sonho de P r o m e t e u , e, do-


m a n d o o a b u t r e q u e lhe roía o fígado, fizeste dele o teu corcel a é r e o .
Conseguiste o q u e p r o j e t a r a m as r a ç a s orgulhosas c o n s t r u i n d o a t o r r e
babilônica.

O q u e n ã o logrou o A t l a n t e n e m o b t i v e r a m as tribos atrevidas,


t u realizaste n u m s u r t o .

Quiseste d a r ao h o m e m o ilimitado, pensaste em s u p r i m i r as fron-


t r e i r a s t o r n a n d o o espaço c o m u m a todos, como a nave de u m a i g r e j a .
Soltaste u m a p o m b a de aliança, e ei-la m u d a d a em corvo carniceiro.

A c u l p a n ã o é tua, c r i a d o r m a r a v i l h o s o , a culpa é de S a t a n , o
E s p í r i t o d o Mal, q u e d e f o r m a e d e n i g r e t o d a s as boas o b r a s .

Dá-lhe a F é e êle m u d a r á em s u p e r s t i ç ã o ; dá-lhe a E s p e r a n ç a e


vê-la-ás t o r n a d a em a v i d e z ; dá-lhe a C a r i d a d e e êle a transformará
e m V a i d a d e , e, assim, a o r a ç ã o será sortilégio, a a s p i r a ç ã o será ga-
n â n c i a , e a esmola a m a i s vil das afrontas.

E são estas as três v i r t u d e s teologais q u e f o r m a m a T r i n d a d e p o r


excelência da Misericórdia cristã.

T u criaste a H a r m o n i a , o Mal fêz dela a D i s c ó r d i a e do q u e ofe-


r e c e s t e à P a z fêz o D e m ô n i o a r m a de G u e r r a .

A l a r v a q u e rejeitaste, recolhida do lodo e a l i m e n t a d a a explosi-


v o s , m u d o u - s e nessa i g n o m í n i a —- o "zepellin", lesma t o r p e q u e polui
a s nuvens, e s p a l h a n d o d a altura s o b r e cidades i n e r m e s a sua bala in-
cendiaria.

Criaste a cruz alada, a G u e r r a m u d o u - s e e m d a r d o , e, das asas


q u e deste ao h o m e m , reintegrando-o na angelitude, tirou a mesma
174 ANTOLOGIA D E FAMOSOS

G u e r r a as p e n a s p a r a as flechas com q u e o m a t a , t a n t a s q u e , como a


de Xerxes, obscurecem a Civilização, q u e é o sol.

Teve a m e s m a sorte o p á s s a r o d a f á b u l a :

Mortellement atteint d'une jlèche empennée,


Un oiseau déplorait sa triste destinée,
Et disait, en soufrant un sucroit de douleur:
Faut-il contribuer à son propre malhem!
Cruéis humains! vous tirez de vos aües
De quoi jaire voler ces machines mortelles!

Mas não maldigas a tua obra. Puseste-a n o céu, d e u nela o sol


e t a n t o bastou p a r a q u e l h e saísse do c o r p o a s o m b r a e foi p o r esse
d e b u x o q u e se fizeram os seus contrastes, os v u l t u r i n o s q u e e n x a m e i a m
os ares, v o a n d o e n t r e o fumo d a s b a t a l h a s e as n u v e n s .

A r e v o a d a dos pássaros d e F r a n ç a saiu t o d a do t e u a v i á r i o e é


ela q u e , neste m o m e n t o t r á g i c o , g u a r d a a Civilização, p r o t e g e a A r t e ,
defende a H o n r a , g a r a n t e o Direito, v i g i a n d o do alto o i n i m i g o a l a p a r -
d a d o e m t r i n c h e i r a s , m e t i d o n o v e n t r e d a s lesmas funambulescas ou
n o b o j o dos s u b m a r i n o s , q u e são como reflexos d a sevandija aérea.

Não maldigas a tua obra. Deste a o h o m e m u m a nova e n e r g i a , a


asa, e, c o m ela, o d o m í n i o além d a t e r r a e dos m a r e s . P o d e êle a g o r a
fazer a volta d o m u n d o s e m t o c a r n a crosta n e m p o u s a r n a o n d a .

T o r n a s t e e m r e a l i d a d e a fantasia d e Aristófanes, essa c i d a d e etérea


chamada Nefelecocigia, e hoje, acima d e t o d a s a s nações, circulam
v o a d o r e s , evoluindo e m b a n d o s como as a n d o r i n h a s n a p r i m a v e r a .

Só u m p a í s conserva a i n d a o céu azul deserto, e esse é j u s t a m e n t e


o n i n h o d a s aves h e r ó i c a s , d e o n d e saiu o i n t r é p i d o "Passarinheiro".

Esse país é o teu, é o nosso, é este: o Brasil.

Deste-lhe a glória e c o m isto êle ficou contente e d o r m e sobre os


louros. Q u e i r a D e u s q u e o n ã o despertem vozes a r r o g a n t e s .

P a í s do a b s u r d o : f u n d a d o e m m i n a s opulentas, é p o b r e ; emoldu-
r a d o e m o u r o e e m p r a t a como os dias de r a d i o s o sol e as noites d e
DISCURSOS BRASILEIROS 175

a r g ê n t e o l u a r , é t r i s t e ; c o r t a d o de rios caudalosos, estala de sede; so-


b e r b o de florestas densas, pede o lenho às selvas e s t r a n g e i r a s ; as s u a s
t e r r a s ferazes n ã o p r o d u z e m p a r a seu sustento.

Vendo-o, assim r e s p l a n d e c e n t e e rico, a esconder miséria, vem-nos


à l e m b r a n ç a a m á s c a r a de o u r o d a s m ú m i a s de M i c e n a s .

O h o m e m a r d e e m sonhos e n ã o se decide p o r u m a iniciativa;


livre, c a m i n h a com a s u b m i s s ã o de i l o t a ; ousado, retrai-se e m timidez,
resignando-se a ser h ó s p e d e n a P á t r i a , o b e d e c e n d o , q u a n d o devia im-
por. É u m d e s l u m b r a d o , e, p o r ter os olhos s e m p r e n o Além, desco-
n h e c e o q u e o cerca, descuidando-se d o q u e l h e diz respeito.

Bem s a b e êle q u e os aviões são hoje a c a v a l a r i a d o espaço, m a i s


forte q u e a das " w a l k i r i a s " , recolhedoras de h e r ó i s . Que importa a
n u v r e j ã o de aves t r á g i c a s ? Q u e m d o r m e é como q u e m está m o r t o •—
n ã o vê os corvos q u e c h e g a m .

Q u e m t i r a r á o Brasil d o t o r p o r e m q u e j a z ?

A ave sai de m a d r u g a d a , v a i ao cibato e ao c ó r r e g o , pousa no


ramo em flor, o n d e cintila o orvalho, espaneja-se ao sol, a b a l a em
flecha p a r a o silvedo, e, t o d o o d i a , voa, revoa, de fronde a fronde,
de vale a m o n t e , m a s q u a n d o a t a r d e e m p a l i d e c e e as p r i m e i r a s né-
voas a r m i n h a m a fralda dos outeiros, t o r n a l i g e i r a ao n i n h o . Assim t u .

P a r t i s t e n a m a n h ã d a v i d a , conquistaste a glória, q u e é o a l i m e n t o
dos h e r ó i s , e, ao e n t a r d e c e r , regressas ao p o u s o n a t i v o . Bem-vindo
sejas com os lauréis q u e trazes e m a i s a i n d a com a p r o m e s s a com q u e
nos a c e n a s .

Ficas com a t u a M ã e . . . Ainda bem! T r a z e s contigo o entu


siasmo, e, c o m o conheces o teu p a í s onde, n a a b u n d â n c i a , t u d o falta,
põe-te, desde já, e m a ç ã o e faze de c a d a m a n c e b o u m falcoeiro destro.
Espalha-os — uns pelos a r e s , como sentinelas n a s t e r r a s v a s t a s ; outros
pelas o n d a s , de o n d e alcem vôo, como os alciones, v i g i a n d o o longo
litoral deserto.

Dá, em lições de b r a v u r a , à gente m o ç a da nossa p á t r i a , a instru-


ção de civismo de q u e ela c a r e c e : a c o m e ç a r pelo a m o r à t e r r a m a t e r n a ,
o zelo pela s u a h o n r a , a v e n e r a ç ã o pelo seu p a s s a d o , prestígio n o seu
p r e s e n t e e confiança n o seu futuro.
176 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

São os h e r ó i s q u e c o n d u z e m os povos. D e s p e r t a os q u e d o r m e m ,
tu q u e vieste dos astros e atravessaste o p ó r t i c o de ouro de o n d e s a e m
as m a d r u g a d a s .

O t e m p o é dos fortes e dos a u d a z e s .

Eia, sus, v o a d o r ! T i r a o Brasil d a inércia, dá-lhe as t u a s asas,


leva-o em vôo. Que êle se levante, como n a ç ã o , e m surto igual àquele
com q u e tu, e m u m a l i n d a m a n h ã de p r i m a v e r a , d i a n t e de u m povo
maravilhado, estalando os grilhões q u e prendiam o homem à terra,
ascendeste ao céu nas asas do teu gênio. A abalar! a abalar para a
F o r t u n a e p a r a a Glória.
RUI BARBOSA

"Visita à Terra N a t a l " — Discurso de agrade-


cimento à manifestação prestada pelo Partido
Federalista, n a Bahia, no Teatro São João, em
7-2-1893.

Meus caros conterrâneos,

Depois d i s t o . . . diante disto... não sei c o m o p r i n c i p i e

Aos p r i m e i r o s sorrisos l o n g í n q u o s de-^ m i n h a terra na c u r v a azul


de sua e n s e a d a , e n q u a n t o o v a p o r me aproximava rapidamente destas
doces p l a g a s , onde m i n h a m ã e m e e m b a l o u o p r i m e i r o e meus filhos
m e v e l a r ã o , talvez, o último sono, v e n d o p e n d u r a r - s e d o céu, estreme-
cer p a r a m i m o n i n h o , o n d e c a n t o u C a s t r o Alves {bravos), verde ninho
m u r m u r o s o de t e r n a poesia, d e b r u ç a d o e n t r e as o n d a s e os astros, pa-
rece-me que a saudade, amado fantasma evocado pelo c o r a ç ã o , me
estendia os b r a ç o s de t o d a a p a r t e , n o longo a m p l e x o d o h o r i z o n t e .
(Sensação). Minha v i d a i n t e i r a , o r e m o t o p a s s a d o fugitivo recompu-
nha-se-me n a l g u n s instantes, de u m a infinita s u a v i d a d e triste, c o m o a
d a s g r a n d e s afeições tenazes, q u e l u t a m c o n t r a a v o l u b i l i d a d e dos su-
cessos, e p r o c u r a m fixar-se à beira da c o r r e n t e irresistível da vida,
a b r a ç a n d o - s e aos r a m o s i m o r t a i s d o ideal. [Bravos). Nesse crescer,
p o r é m , de recordações, o n d e o m e u espírito flutuava, a n e l a n t e , de v a g a
em vaga, de p e n s a m e n t o em p e n s a m e n t o , de r e s s u r r e i ç ã o e m r e s s u r r e i -
ção, m a i s vivas, m a i s insistentes, m a i s obsessivas e n t r e t o d a s , se me
d e b u x a v a m n a m e m ó r i a as impressões da m i n h a ú l t i m a visita a estes
lares. V a i p o r cinco anos. E r a em 1 8 8 8 . C o r r i a m os ú l t i m o s dias
de a b r i l . P o u c o m e e r a m d a d o s , p a r a r e s p i r a r estes a r e s , a cujo oxi-
gênio se formou a m i n h a p a i x ã o pela l i b e r d a d e . (Bravos). Eu vinha
178 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

só com a m i n h a fé, a ú n i c a força q u e a n a t u r e z a n ã o m e recusou, a


companheira fiel d a s m i n h a s provocações, o viático de m e u c a m i n h o
acidentado. A atmosfera do Império e da escravidão oprimia-nos,
a b a f a d i ç a , d e todos os lados. Os p a r t i d o s m o n á r q u i c o s b r i g a v a m , en-
fezados, n a s u a r i x a de l a g a r t o s (riso; aplausos), na raiva preguiçosa
d e velhos estélios coriáceos, à luz d e u m a p u b l i c i d a d e indiferente, ou
hostil, como os raios do sol q u e a c a r i c i a m o t o r r ã o p r ó s p e r o , m a s fla-
g e l a m a estepe escalvada, n o silêncio, n o m a r a s m o , n a solidão moral
da p á t r i a , c a l c i n a d a p o r u m a esterilidade m a l d i t a . (Aplausos)

Quisestes e n t ã o ouvir-me, amigos meus, bons conterrâneos, meus


i r m ã o s . . . i r m ã o s , p o r q u e fomos m i m a d o s todos n o m e s m o b e r ç o des-
tas encostas arredondadas e meigas como regaço de fada benfazeja
(aplausos), todos a m a m e n t a d o s aos seios d a m e s m a m ã e , a a l m a B a h i a ,
m ã e d a inteligência, d a g e n e r o s i d a d e e do e n t u s i a s m o . . . (Aplausos).
Bahia mater.. . Quisestes ouvir-me. Mandastes-me falar... E eu,
n o T e a t r o d e S. J o ã o , d e s p e d i n d o - m e d e vós, anunciei-vos a abolição
i m e d i a t a e a federação iminente.

D a í a treze dias, a abolição estava c o n s u m a d a . Não por obra da


caridade imperial. Não! 0 consórcio d o I m p é r i o c o m a escravidão,
indignamente denunciado pelo Sr. Joaquim Nabuco ainda na derra-
d e i r a fase d a p r o p r i e d a d e servil, n u n c a se dissolveu, senão q u a n d o a
d i n a s t i a sentiu r o ç a r e m - l h e o peito as b a i o n e t a s d a tropa, e a escra-
v a r i a , e m massa, t o m o u a l i b e r d a d e p o r suas m ã o s n o s serros livres d e
São Paulo. (Aplausos). A r e u m a n a ç ã o d a r a ç a n e g r a no Brasil n ã o
é u m a t o de m u n i f i c ê n c i a d a esposa do Conde d ' E u . É, pelo contrá-
rio, u m a c o n q u i s t a m a t e r i a l m e n t e e x t o r q u i d a aos p r í n c i p e s , pela rijidez
dessa o p i n i ã o b a t a l h a d o r a e irredutível, q u e se v i u a m e a ç a d a n o s atos
m a i s cristãos d a beneficência abolicionista, p o r u m a ignóbil lei dos
últimos d i a s d a realeza, c o m a calceta de l a d r a . (Sensação). Esse
ultraje sacrílego, i r r o g a d o à divina n a t u r e z a em suas a s p i r a ç õ e s mais
puras, c o m i n a d o a o apostolado e m a n c i p a d o r nos seus impulsos mais
santos, n ã o p o d e t r a n s f o r m a r - s e facilmente em louros p a r a a Coroa Real,
que o vibrou. (Bravos). A epopéia d a r e d e n ç ã o n ã o h á de p a s s a r à
p o s t e r i d a d e , escrita pela nostalgia dos c r i a d o s do p a ç o n a s r a p s ó d i a s
d i t a d a s pela c o n t r i ç ã o da covardia aos p u s i l â n i m e s , que inutilmente
DISCURSOS BRASILEIROS 179

p r e t e n d e m servir hoje ao R e i com a m e n t i r a , n ã o t e n d o ousado servi-lo


em t e m p o com v i d a . (Aplausos). A t r a d i ç ã o viva d a v e r d a d e mili-
t a n t e é q u e h á d e ser o H o m e r o dessas glórias, t ã o cedo maculadas
pela má-fé dos interesses, e c o r o a r a verdadeira redentora: a vontade
impessoal d a p á t r i a (aplausos), apoiada na organização inexpugnável
do abolicionismo, n a cooperação geral d a família b r a s i l e i r a , n o êxodo
caudaloso dos cativos, n a g a l h a r d a n o b r e z a deste Exército, q u e recusou
suas a r m a s à c a ç a d a de c r i a t u r a s h u m a n a s prescrita pelos ministros
do Imperador (aplausos), desse E x é r c i t o cuja finalidade à causa da
revolução é o desespero dos e m p r e i t e i r o s d e c e r t a s e s p e r a n ç a s incon-
fessáveis (aplausos), deste Exército e m cujo civismo a a u t o n o m i a b a h i a -
na achou impenetrável defesa contra tentativas criminosas (bravos),
deste E x é r c i t o q u e , depois d e l i d a r n a milícia t r i u n f a n t e d a abolição,
e n c a r n o u o m o v i m e n t o p o p u l a r d a R e p ú b l i c a , e depois de fraternizar
com a s a s pira çõ es n a c i o n a i s d o a d v e n t o d a d e m o c r a c i a , h á d e com-
p l e t a r a trilogia épica deste d r a m a , e v a c u a n d o o c a m p o d a s interven-
ções políticas, r e s t i t u i n d o o p a í s a o g o v e r n o civil, a s s e n t a n d o a o r d e m
p ú b l i c a n a s u b m i s s ã o d a s forças militares à m a g i s t r a t u r a constitucional
da toga, d a p a l a v r a e d a lei.

A abolição d e s a r m a r a d a m a i o r d a s suas forças a a u t o c r a c i a i m -


p e r i a l , cuja estúpida centralização tinha feito d a s nossas províncias
m e r o s c o m p a r t i m e n t o s d a casa do R e i . A r r a s a d a essa Bastilha d a es-
cravidão civil, g u a r d a formidável d a e s c r a v i d ã o política, o sopro de
1 8 3 1 , c i n q ü e n t a anos r e p r e s a d o pelas a m e i a s n e g r a s d a m o n a r q u i a , ia
e n c a r n a r v i o l e n t a m e n t e pela g a r g a n t a dessa r e f o r m a , vasta e transfigu-
r a d o r a como os d e s a b a m e n t o s d e u m a convulsão geológica. A escolha
e r a f a t a l : o u os estadistas do I m p é r i o a b r i a m p a s s a g e m f r a n c a às von-
t a d e s i m p e t u o s a s de u m a r e i v i n d i c a ç ã o n u t r i d a pela necessidade irre-
sistível dos interesses s o b e r a n o s , q u e a p r ó p r i a n a t u r e z a e s t a m p a r a n a
face deste p a í s ; ou, h a b i t u a d o s a c r e r n o p o d e r do Rei s o b r e o t e m p o
e nas vantagens da habilidade contra o direito, negociavam com o
P a ç o a l g u n s a n o s do favor i m p e r i a l , a troco d a i n c u m b ê n c i a de levan-
tarem c o m a s reações de partido uma parede contra a vontade da
nação. N o p r i m e i r o caso a t r a n s i ç ã o r e p u b l i c a n a se faria lentamente,
p o r evolução, d a n d o t e m p o a o I m p e r a d o r de fechar os olhos; n o segun-
do a revolução m u d a r i a s i m u l t a n e a m e n t e a c o n d i ç ã o d a s p r o v í n c i a s e
180 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

a f o r m a de g o v e r n o . S e m esforço se p o d i a ser profeta, como eu fui,


p e r a n t e vós ( 8 a 3 0 de a b r i l de 1 8 8 8 ) , dizendo-vos, n a m i n h a confe-
rência abolicionista:

"A grande transformação aproxima-se do seu t e r m o . A cordi-


lheira negra esboroa-se, abalada pelas comoções que operam a mu-
dança dos tempos nas profundezas da história; é p o r esse rasgão
i m e n s o , q u e se a b r e , e n t r a e m cheio o azul dos novos horizontes, o
oxigênio p o d e r o s o d a civilização a m e r i c a n a . Os velhos p a r t i d o s , coope-
radores irregeneráveis do passado, rolam desagregados para o abismo,
e n t r e os destroços d e u m a e r a q u e a c a b o u ; e, pelo espaço q u e a tem-
p e s t a d e s a l v a d o r a purifica, os ventos do n o r t e e do sul trazem, suspen-
d e m e d i s p e r s a m , p a r a c a í r e m s o b r e a t e r r a , as idéias vivificadoras d a
nossa r e a b i l i t a ç ã o : a l i b e r d a d e religiosa, a d e m o c r a t i z a ç ã o do voto, a
desenfeudação da propriedade, a desoligarquização do S e n a d o , a fe-
deração dos Estados Unidos Brasileiros... com a Coroa, se esta l h e
fôr p r o p í c i a , contra e sem a Coroa, se ela lhe tomar o caminho".

Essas, t e x t u a l m e n t e , a s m i n h a s p a l a v r a s n a q u e l a época. Elas fo-


r a m levadas a o S e n a d o , a p o n t a d a s , n a s u a t r i b u n a , com t e r r o r , pelo
B a r ã o d e Cotegipe como i n d í c i o t e n e b r o s o d e instintos revolucionários
n a o p i n i ã o liberal. Não e r a m ; eram apenas a intuição da realidade
inevitável, e m u m espírito e d u c a d o n a c r e n ç a d e q u e a conservação
das instituições e o destino dos i m p é r i o s se r e g e m p o r leis n a t u r a i s e
de q u e a f ó r m u l a geral destas é a l i b e r d a d e . (Aplausos)

Eu poderia terminar aqui, dizendo-vos:

" T e n h o p r e s t a d o a m i n h a conta. O t e s t e m u n h o i n c o r r u p t í v e l dos


acontecimentos acabará de liquidá-la. D i r e i s se sentimentos subalter-
nos m e i n s p i r a r a m falsos vaticínios, se t r a í a confiança p o p u l a r com as
reticências do medo, ou as hipérboles d a p a i x ã o , se a s m i n h a s p r e d i -
ções e r a m artifícios levianos, ou a d v e r t ê n c i a s salutares, se a l g u m a vez
economizei a minha responsabilidade, ou hesitei e m expor a minha
s e g u r a n ç a pessoal, p a r a confessar a m i n h a fé, h o n r a r a minha cons-
ciência, servir a o m e u p a í s " . (Aplausos)

M a s esta manifestação, a eloqüência f a s c i n a d o r a do seu o r a d o r , o


calor d a s vossas s i m p a t i a s m e a r r a s t a m irresistivelmente.
DISCURSOS BRASILEIROS 131

O ceticismo i n v e t e r a d o nos políticos brasileiros a p r o v e i t o u , sôfre-


go, a ocasião, p a r a a r g ü i r d e t e n d ê n c i a s subversivas o P a r t i d o L i b e r a l .
M a s o t e m p o veio mostrar-vos q u e a m i n h a voz n ã o e r a a d a s a m b i -
ções facciosas. B e m cedo o P a r t i d o L i b e r a l devia r e p u d i a r - m e , opon-
d o a e x p e r i ê n c i a e o t i n o d e seus p a t r i a r c a s às e x t r a v a g â n c i a s d a re-
belde, q u e se a t r e v i a a s u s t e n t a r a i n u t i l i d a d e , a i m p r u d ê n c i a , a sorte
desastrosa d e todos os p r o g r a m a s , cuja b a s e n ã o assentasse n a federa-
ção i m e d i a t a . Deu-me Deus a fortaleza necessária, para antepor a
t o d a s as seduções o m e u c o m p r o m i s s o p o r essa idéia, p a r a se s e p a r a r
p o r ela de todos os m e u s a m i g o s políticos, p a r a a b r i r e m s u a defesa
u m a i n d e f i n i d a c a m p a n h a , acolhida pela i m p r e n s a oficial c o m i r o n i a s
e desprezos, a c o m p a n h a d a pelos publicistas m i n i s t e r i a i s com maldições
e a m e a ç a s , c o n t r a r i a d a p o r todos os interesses poderosos, a p o i a d a uni-
c a m e n t e n a s forças m o r a i s d a convicção e do dever. (Aplausos)

E, q u a n d o a revolução, efeito n a t u r a l d a s resistências do impe-


r i a l i s m o à b a n d e i r a federalista, q u e eu l e v a n t a r a , n o congresso liberal,
com o apoio d e M a n u e l V i t o r i n o , antes de firmá-la, c o m seis meses d e
l u t a p o r d i a , n o Diário de Notícias, q u a n d o a revolução veio s u r p r e e n -
d e r n o s seus cálculos d e e t e r n i d a d e a demência da monarquia, colo-
c a d o pela f a t a l i d a d e d a s c i r c u n s t â n c i a s e n t r e os o r g a n i z a d o r e s de u m a
s i t u a ç ã o , p a r a a qual eu n ã o c o n t r i b u í r a senão como os avisos d a pre-
v i d ê n c i a , q u e a d v e r t e , p o d e m c o n t r i b u i r p a r a os desastres d e p e r t i n á c i a ,
q u e n ã o escuta, — n ã o t r e p i d e i e m subscrever a s e g u n d a alternativa
d o m e u dilema, a f e d e r a ç ã o n a r ep ú b lica, j á q u e o i m p é r i o n ã o s o u b e r a
enxergar na primeira a solução amparadora do t r o n o . (Aplausos).
E n t ã o , r e u n i d o , n o Quartel-General, a n t i g a P r a ç a d a A c l a m a ç ã o , com
os m e u s c o m p a n h e i r o s , a o escolhermos, p a r a a p á t r i a r e n o v a d a , o seu
n o v o n o m e político, o n o m e do seu b a t i s m o constitucional, passaram-se
p e l a m e n t e r e m i n i s c ê n c i a s d a m i n h a ú l t i m a entrevista com a B a h i a , a
fórmula d e 1 8 8 8 , a q u e m e tínheis ouvido n o T e a t r o de S ã o J o ã o ,
s a i u - m e d a b o c a , e, sob p r o p o s t a m i n h a , abraçada p o r todos, o go-
v e r n o p r o v i s ó r i o a p r e s e n t o u ao m u n d o , n a r e p ú b l i c a recém-nascida, a
f e d e r a ç ã o dos Estados Unidos do Brasil. (Aplausos)

C l a r i d a d e s d e a l v o r a d a a u r e o l a r a m esse n a t a l í c i o . A s nações n ã o
conheciam fato s e m e l h a n t e : uma revolução q u e n ã o tocou nem n a
consciência, n e m n a família, nem na propriedade, nem na vida, que
182 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

n ã o orfanou u m a c r i a n ç a , n e m levou à viuvez u m a m u l h e r , q u e abriu


a todos os cultos o s a c r á r i o do respeito legal, q u e apelou p a r a todas
as opiniões, e utilizou t o d a s as f o r m a s do p a t r i o t i s m o , q u e se sentiu
m e n o s n a a d m i n i s t r a ç ã o do q u e as alternações o r d i n á r i a s dos p a r t i d o s
n o p o d e r , q u e fomentou e n e r g i c a m e n t e o t r a b a l h o , a i n d ú s t r i a , a ati-
v i d a d e comercial, e que, a u m sopro, converteu as p r o v í n c i a s opressas
de u m I m p é r i o c e n t r a l i z a d o nos Estados a u t ô n o m o s de u m a democracia
f ed er ativ a. (Aplausos)

Grandes sombras vieram projetar-se nesse quadro. Quando é,


p o r é m , q u e o sossôbro de u m r e g i m e e a i m p l a n t a ç ã o de o u t r o p u d e -
r a m j a m a i s consumar-se sem crises d e s c o m u n a i s , sem t r i b u t a ç õ e s me-
moráveis? E o n d e é q u e esses descontos fatais se p r o d u z i r a m nunca,
e m escala tão r e d u z i d a , c o m o na revolução b r a s i l e i r a ? Contudo, não
foi preciso m a i s , p a r a d e s p e r t a r u m m u r m ú r i o inconsciente de aspira-
ções retrospectivas, e p o v o a r de sonhos lisonjeiros o túmulo, onde a
monarquia bragantina dorme para sempre, amortalhada na incapaci-
dade e na loucura. (Aplausos). Os vermes ev ad i d o s d o c a d á v e r re-
gressam a êle, e m p e n h a d o s na veleidade insensata de reconstituí-lo.
(Aplausos). J á r e i v i n d i c a m adesões s u b t e r r â n e a s ; e e n t r e essas (por-
q u e n ã o dizê-lo com f r a n q u e z a ? ) , e n t r e essas, vão p r o p a l a n d o à sur-
d i n a , c a b e r à B a h i a u m dos m a i s fortes c o n t i n g e n t e s . À Bahia? Não!
É u m a calúnia. P r o v a - o a presença deste a u d i t ó r i o (aplausos) . . . o
m a i s n u m e r o s o , talvez, q u e j á se r e u n i u nesta t e r r a , e n ã o menos culto,
n ã o m e n o s seleto do q u e numeroso.

A B a h i a a b r a ç o u a revolução p o r u m ato lento, reflexivo, irrevo-


gável de s u a consciência, f r a n c a e leal como a alma dos nossos sertões,
r o b u s t a e firme como as raízes das nossas florestas, serena, cristalina
c o m o o c u r s o dos nossos rios. (Aplausos). A a r r u a ç a pode m u d a r de
ídolos, como o l u p a n a r v a r i a de a m a n t e s , como a roleta v a r i a de sor-
te... (Aplausos prolongados). M a s o espírito da fidelidade e a h o n r a
v e l a m c o n s t a n t e m e n t e , como a estrela da m a n h ã e a estrela d a t a r d e ,
s o b r e essas regiões, onde a força e o desinteresse, o p a t r i o t i s m o e a
b r a v u r a , a t r a d i ç ã o e a confiança a s s e n t a r a m os seus r e s e r v a t ó r i o s sa-
grados. (Longos aplausos). A república tem hoje n a B a h i a u m de
seus m a i s vigorosos núcleos de conservação, u m a de suas m a i s sólidas
DISCURSOS BRASILEIROS 183

garantias de e s t a b i l i d a d e . (Aplausos). N o processo de cristalização


d a s novas f o r m a s d a nossa d e m o c r a c i a , as p o d e r o s a s concorrentes di-
nâmicas d a opinião bahiana entram energicamente em atividade, con-
v e r g i n d o c a d a vez m a i s intensas nesse t r a b a l h o solidificador. Nenhum
E s t a d o c o n c o r r e u com m a i s interesse à eleição d a s u a Constituinte;
n e n h u m se a p r i m o r o u com m a i s esmero d a s u a C o n s t i t u i ç ã o ; durante
o c a r n a v a l d a l e g a l i d a d e , n e n h u m soube repelir m a i s a l t i v a m e n t e a des-
v a i r a d a insolência d a s d e p o s i ç õ e s ; nos comícios populares, n e n h u m se
t e m d i s t i n g u i d o t a n t o pela afluência geral d o eleitorado. E q u e deve
a Bahia ao regime extinto? Q u e deve ela a o I m p é r i o , ela q u e o dotou
aliás c o m os seus estadistas m a i s f a m o s o s ? (Aplausos). Que o diga
o aspecto desta c i d a d e , e n t r e v a d a c i n q ü e n t a anos n a i m o b i l i d a d e dos
seus bairros primitivos. (Aplausos). Que o diga a indigência da
nossa lavoura (aplausos), a anemia solonenta do nosso comércio
(aplausos), a e d u c a ç ã o r e t r a í d a , assustadiça e a v a r a do nosso capital
(aplausos), o contraste e n t r e a nossa posição e c o n ô m i c a e a superio-
r i d a d e d a s nossas v a n t a g e n s n a escala d a o p u l ê n c i a nativa. Q u e fêz
essa m o n a r q u i a m a d r a s t a , senão m u m i f i c a r - n o s nos t r a p o s d a corte de
D . João V I . . . (aplausos) esquecer-nos, e n t r e g a n d o - n o s a o t e m p o e a o
mofo, como se esquece a c a s a r i a d e u m velho solar abandonado...
(aplausos) s u g a r aos nossos m e l h o r e s filhos a flor d a v i r i l i d a d e m o r a l ,
e dar-nos, e m troco, p o r ú n i c o sustento, o s u o r d a e s c r a v i d ã o baroni-
zada? (Aplausos). Viciosa e suicida, e m s u a ú l t i m a visita, n a pes-
soa d o g e n r o O r l é a n s , e m 1889, a esta t e r r a , q u e nos deu a m o n a r q u i a
e m espetáculo, em p r e l i b a ç ã o do T e r c e i r o R e i n a d o , senão a m a i s in-
s i g n e cena d e violência e v e r g o n h a , os esponsais d o T r o n o c o m a l a m a
ensangüentada? (Aplausos)

E é disso q u e nos l e m b r a r í a m o s s a u d o s o s ? É p a r a isso q u e vol-


veríamos alvoroçados? M a s e n t ã o esses t r ê s anos e x e m p l a r e s de p r e p a -
ração republicana, esses três gloriosos anos desta t e r r a s e r i a m u m a
miragem apenas? uma negaça? um passatempo? uma alucinação?
(Aplausos). E o gênio q u e p r e s i d i u a essa t r a n s f o r m a ç ã o , o gênio re-
juvenescente da Bahia, iria agachar-se agora satisfeito no papel d e
servilheta o c t o g e n á r i a aos pés dos bisnetos decadentes d a coroa portu-
guesa? (Longos aplausos)
184 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

Semelhante propaganda, meus caros c o n t e r r â n e o s , n ã o resiste a


c i n c o m i n u t o s d e bom-senso. Esses r e g e n e r a d o r e s representam o ele-
m e n t o , q u e , sob a m o n a r q u i a , esgotou m e i o século de vossa paciência
e d e vossa c r e d u l i d a d e , entretendo-vos com a p r o m e s s a de reformas
eternamente adiadas. Esses v e r b a d o r e s implacáveis das imortalidades
r e p u b l i c a n a s são, q u a s e todos, i n d i v í d u o s , q u e se c o n s t i t u í r a m e m a r a u -
tos d a m o n a r q u i a e d a m o r a l , à custa d a seiva f a r t a m e n t e vampirizada
ao novo regime. (Aplausos). M a i s de sessenta anos se g a s t a r a m e m
construir o Império; e q u e se nos oferecia nele? Uma dilatação
m o n s t r u o s a d a pessoa real, sobreposta à n a ç ã o : os M i n i s t é r i o s a n u l a d o s
pelos conluios d o P a ç o ; as C â m a r a s a n u l a d a s pela c o r r u p ç ã o p a r l a m e n -
t a r ; a s eleições a n u l a d a s pela pressão oficial; os p a r t i d o s a n u l a d o s p e l a
inversão habitual dos seus p a p é i s ; a s e r i e d a d e a d m i n i s t r a t i v a anulada
pelas derrubadas periódicas; a consciência política a n u l a d a pela in-
fluência p e n e t r a n t e dos filtros i m p e r i a i s n a consciência dos e s t a d i s t a s ;
as simpatias do país anuladas, nas relações internacionais, pelas
preocupações dinásticas da diplomacia cortesã. (Aplausos). E tão
h a b i l m e n t e o p e r a r a a m o n a r q u i a n a d e s t r u i ç ã o de si m e s m a q u e o Ter-
c e i r o R e i n a d o , a n t e s d e c o m e ç a r , e r a já m a i s detestado q u e o S e g u n d o .
(Aplausos)

Esses costumes s a t u r a r a m p r o f u n d a m e n t e o solo, o n d e se t i n h a d e


l e v a n t a r a r ep ú b lica, e d e v i a m empestá-la p o r m u i t o t e m p o . Os males,
que hoje nos afligem, são raízes sobreviventes das enfermidades do
Império. O p r ó p r i o m i l i t a r i s m o é u m legado seu. O m i l i t a r i s m o nas-
c e u d a violação dos direitos legais do E x é r c i t o pelo governo do R e i ;
e, g r a ç a s à f r a n q u e z a deste, r e u n i d a às i m p r u d ê n c i a s de seus secretá-
rios, foi sob os três últimos g a b i n e t e s i m p e r i a i s , o pesadelo d a C o r o a
e do Parlamento. E a r e s t a u r a ç ã o livrar-nos-ia d o m i l i t a r i s m o ? Não!
A r e s t a u r a ç ã o n ã o seria possível senão pela a n a r q u i a dos q u a r t é i s , pelo
b e n e p l á c i t o d a i n d i s c i p l i n a , e h a v i a d e g o v e r n a r a o rufo dos p r o n u n c i a -
m e n t o s , p a r a voar, pouco depois, a u m p o n t a p é deles, l e g a n d o i r r e m e -
d i a v e l m e n t e o p a í s à tutela de c a u d i l h a g e m . (Aplausos)

Recapitulai u m a u m os a g r a v o s c a r r e g a d o s à conta do r e g i m e
r e p u b l i c a n o , o u d o sistema p r e s i d e n c i a l ; a l u t a geral c o n t r a a l e i ; a
d e p r a v a ç ã o d o senso j u r í d i c o nos ó r g ã o s d a a u t o r i d a d e ; a irresponsa-
b i l i d a d e h a b i t u a l dos agentes d a a d m i n i s t r a ç ã o ; a desnaturação das
DISCURSOS BRASILEIROS 185

instituições constitucionais na hermenêutica interesseira dos sofistas


parlamentares; a idéia fixa, nos h o m e n s públicos, da conquista das
p a s t a s p o r a m o r d a s p a s t a s ; a confusão dos p o d e r e s políticos reciproca-
mente invadidos e invasores; os golpes d a t i r a n i a administrativa na
esfera d a j u s t i ç a ; as l i b e r d a d e s d a m a n i a policial c o n t r a a s g a r a n t i a s
da liberdade; as m i s é r i a s da mediocridade ministerial elevadas à al-
t u r a de c r i t é r i o s u p r e m o d a p r u d ê n c i a g o v e r n a t i v a ; o jogo d a descon-
fiança, d a a n t i p a t i a , d a esperteza m ú t u a e n t r e os m i n i s t r o s e o chefe
d o E s t a d o ; as a b d i c a ç õ e s p o p u l a r e s a n t e as v o n t a d e s e as provocações
d o p o d e r ; a d e b i l i d a d e d a v i d a n a c i o n a l nos seus centros locais de re-
sistência e r e c o m p o s i ç ã o ; o nepotismo, a p r o d i g a l i d a d e , o estulto b r i o
do e r r o ; a f r a u d e o r ç a m e n t á r i a , o déficit crônico, as devastações finan-
c e i r a s do jogo. (Aplausos). Neste l a r g o q u a d r o patológico, a p o n t a i - m e
um só t r a ç o , que não indique uma projeção da diátese imperial.
(Aplausos). Dessa política i n f a m a d a , cuja expressão consistia, para
falar como o S r . Z a c a r i a s e o S r . N a b u c o , n a " m e n t i r a d a s u r n a s " e
n a '"prostituição do voto". Com a R e p ú b l i c a mudamos de higiene;
m a s n ã o m u d a m o s de s a n g u e . (Aplausos). E os males do s a n g u e n ã o
se e s t i r p a m r a d i c a l m e n t e n a p r i m e i r a geração. A lógica ridícula do
monarquismo, porém, descobriu meios d e responsabilizar pelos acha-
q u e s h e r e d i t á r i o s do p a c i e n t e o r e g i m e r e p a r a d o r , a p e n a s c o m e ç a d o a
e n s a i a r c o n t r a eles.

T a l lógica, tal p r o g r a m a . U m a define o o u t r o . Metido na sua


l o u r a cabeleira d e r o m â n t i c o a o corte d o ú l t i m o f i g u r i n o , com os seus
a r e s d e Apoio d e salão e a s u a v i r g i n d a d e de Vestal de c o m é d i a , esse
m o n a r q u i s m o , velho gozador, q u e a d o r a E p i c u r o n a alcova, e d e d i l h a
L a m a r t i n e ao l u a r (hüaridade; aplausos), a n d a a requestar-vos, terra
m i n h a d a s s e r e n a t a s h a r m o n i o s a s , p a r a os descantes solitários ao pálido
astro d e além-túmulo, cujos raios a d o r m e c e m n a c a b e ç a m o r t a do velho
Imperador. (Aplausos). M a s o bom-senso b a h i a n o s a b e r á d a r o de-
v i d o valor a esse d e r r i ç o p ó s t u m o do a n t i g o p a r t i d i s m o pela realeza,
p o r êle p r ó p r i o a t a s s a l h a d a em vida. (Aplausos). N i n g u é m pode es-
q u e c e r , q u e esse m e s m o p l a n e t a a l u m i o u a Conferência dos Divinos (1),

(1) Panfleto político de autoria de Antônio Ferreira Viana, m a i s


tarde Ministro da Justiça. Apareceu no Rio em 1867, e provocou uma
resposta que foi a Conferência dos Humanos, aparecida no mesmo ano,
atribuída a José Alves Pereira de Carvalho.
186 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

e ouviu as i m p r e c a ç õ e s de Timandro (1). ARÍSO) . Podeis responder,


pois, aos g a l a n t e a d o r e s d a vossa sensibilidade artística q u e a r e v e r ê n c i a
c o m i s e r a t i v a pelas cãs s e x a g e n á r i a s do a v ô , que reinou entre nossos
pais, n ã o santifica a s e n i l i d a d e precoce dos netos, c r i a d o s e n t r e a nossa
a n t i p a t i a e a nossa i n d i f e r e n ç a . (Aplausos). U m p a c t o universal do
s e n t i m e n t o p ú b l i c o n o p a í s d e s i g n a r a p r e v i a m e n t e n o sarcófago, q u e se
abrisse p a r a o filho de P e d r o I, o a t a ú d e inevitável d a monarquia.
(Aplausos)

Os a d o c i c a d o s emissários d a s e d u ç ã o i m p e r i a l i s t a h ã o d e conven-
cer-se de q u e nascestes v a r o n i l pela n a t u r e z a ; d e q u e a sujeição feminil
i m p o s t a ao vosso t e m p e r a m e n t o vos d e s s e x u a v a , d e q u e , depois de be-
b e r d e s a v i r i l i d a d e n a t a ç a d a federação, f o r j a d a p a r a os continentes
novos pelos T i t ã s anglo-saxônios d a A m é r i c a d o N o r t e (aplausos), não
condescenderei em esposar os casquilhos grisalhos do I m p é r i o desen-
t e r r a d o , e r e c e b e r deles p o r enxoval de b o d a s e s e r v i d ã o d e saias, q u i -
nhoada às províncias na domesticidade dos interesses imperiais.
(Aplausos prolongados)

Renunciar o federalismo é emascular-se. Desistir do foro repu-


b l i c a n o é prostituir-se. C o n q u i s t a s destas n ã o se r e v o g a m , senão pelo
processo p o r q u e se fazem os e u n u c o s . (Aplausos). Da federação não
se retrocede para a centralização. D a A m é r i c a p r e s i d e n c i a l n ã o se
volve p a r a a realeza u l t r a m a r i n a . A transmudação das monarquias
e u r o p é i a s , nos seus renovos coloniais, e m d e m o c r a c i a s r e p u b l i c a n a s , é
u m f e n ô m e n o constante, c o m todos os c a r a c t e r e s d e u m a lei h i s t ó r i c a ,
infringida unicamente no caso singular do Brasil. Eliminada, pois,
u m a vez a exceção, a a n o m a l i a n ã o p o d e reconstituir-se. (Aplausos).
A idéia r e s t a u r a d o r a n o Brasil p e r t e n c e a o museu d a s e x c e n t r i c i d a d e s
políticas, e n t r e as q u a i s , n a vasta classe d a s patetices h u m a n a s , lhe
c a b e de jure u m l u g a r , n o c a r u n c h o s o a r m á r i o o n d e se fossilizam os
seus dois i r m ã o s p r i m o g ê n i t o s , o s e b a s t i a n i s m o e o m i g u e l i s m o , descen-
d ê n c i a todos eles, dessa m a c r ó b i a i n g e n u i d a d e a g r e g a d a à b o a r a ç a dos
nossos velhos pais p o r t u g u e s e s . (Aplausos). Restabelecer monarquias

(1) Timandro foi o pseudônimo de Francisco Sales Tôrres-Homem


n ' " 0 Libelo do Povo", panfleto contra as instituições que apareceu com
grande escândalo em 1849. 0 autor foi mais tarde ministro, Senador
do Império e aceitou o título de Visconde Inhomirim.
DISCURSOS BRASILEIROS 187

n a A m é r i c a à impossível equivalente ao de criá-las. A magnanimidade


b r a s i l e i r a p o d e r á s a c u d i r uma vez uma coroa, sem ensangüentá-la, como
em 15 de novembro. (Aplausos). M a s f o r t u n a s tais não é provável
q u e se r e p i t a m sucessivamente. D o b a n i m e n t o para a r e s t a u r a ç ã o não
sei se h a v e r i a , hoje, o u t r o c a m i n h o , a não ser o c a m i n h o d a a g o n i a ,
o c a m i n h o funesto do México, o c a m i n h o de M i r a m a r a Q u e r e t a r o ( 1 ) .
(Aplausos)

Uma Constituição sobrevivente a provas terríveis, como o golpe


d e E s t a d o que m a t o u a p r i m e i r a p r e s i d ê n c i a r e p u b l i c a n a , como os gol-
pes d e Estado, não m e n o s violentos, q u e assinalam a s e g u n d a , tem con-
traprovado a sua v i t a l i d a d e . Mancomunem-se embora contra ela a s
pestes, que c o n s p i r a m o seu d e s c r é d i t o ; n o e x t e r i o r , os franchinotes d e
"boulevard", os pisa-verdes d o ridículo francês, os estadistas d e café-
-concêrto (bravos), os e m i g r a d o s d a a g i o t a g e m , os a j u d a n t e s d a cozi-
nha do figarismo... (hilaridade; aplausos) gente, que, para alongar
d e si as f a r p a s do e p i g r a m a parisiense contra a família do macaco
b r a s i l e i r o , atafula-se no bom-tom d o desdém e d a calúnia, exercitadas
s o b r e nós c o m inconsciente elegância simiesca por essa fraternidade
típica de antropóides e n v e r g o n h a d o s . . . (aplausos) colônia o r i g i n a l en-
t r e t o d a s as colônias, cuja noção da honra patriótica se r e s u m e n a
exposição da pátria, difamada, aos labéus do e s t r a n g e i r o ; (aplausos)
n o interior, o aluvião i n c o n g r u e n t e das fezes a g i t a d a s pelo c h o q u e re-
v o l u c i o n á r i o ; os j o g a d o r e s t r o v e j a n d o c o n t r a o j o g o (riso); os baixis-
tas horrorizados da baixa (risadas); os m a n i p u l a d o r e s d a u s u r a cam-
b i a l c h a m e j a n d o c o n t r a o g o v e r n o p r o v i s ó r i o pelos desastres do c â m b i o
(aplausos); os n á u f r a g o s d a bolsa enfuriados c o n t r a as d e s i g u a l d a d e s
d o azar; os sortes-grandes das f i n a n ç a s d e 15 d e N o v e m b r o revoltados
contra as medidas bancárias da ditadura; os politiqueiros indignados

(1) Maximiliano (Fernando J o s é ) , irmão mais novo do Impera-


d o r Francisco José, da Áustria, nascido em 1832, no Castelo de Schoen-
brunn, feito por Napoleão III, Imperador do México, em 1864, foi fuzi-
lado pelos revolucionários mexicanos em Queretaro (1867). Casara-se,
e m 1857, com a Princesa Carlota, filha de Leopoldo I, Rei dos Belgas,
a qual, após a morte do marido, tendo perdido a razão, se recolheu ao
Castelo de Miramar, às margens do Adriático, a seis quilômetros de
Trieste. Faleceu em Laeken, sua cidade natal, no Castelo de Bouchout,
e m 1927.
188 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

c o n t r a a politiquice (riso) ; os refugos da monarquia (interrupção;


aplausos) . . . os refugos d a m o n a r q u i a inconsoláveis p o r n ã o desfruta-
r e m foro de p r í n c i p e s n a R e p ú b l i c a (aplausos); os a l i c i a d o r e s d a sol-
dadesca irreconciliáveis com o m i l i t a r i s m o (apoiado) ; os trânsfugas
d o P a ç o a n o j a d o s pelo p a s s a m e n t o d a d i n a s t i a ; os zângóes p r o m o v i d o s
a financeiros (risadas), os analfabetos a c a n d i d a t o s p e n s a d o r e s (hilari-
dade), os epiléticos g r a d u a d o s e m estadistas (aplausos); os coveiros
d a realeza elevados a salvadores d a d e m o c r a c i a (riso); os p u x a - x i s t a s
dos p r o g r a m a s t e a t r a i s d a Coroa, m a l contentes c o m a p o b r e z a d a s as-
sombrosas reformas d a r e v o l u ç ã o ; toda c o m é d i a d a h i p o c r i s i a contra-
-revolucionária q u e n ã o se s a b e sob q u e n o m e s dissimule a s u a desleal-
d a d e , a sua i m p o t ê n c i a e a sua l e p r a . (Aplausos prolongados)

O m a l c a u s a d o pela ação dessas influências é incalculável. Haja


vista a questão f i n a n c e i r a n a s suas p r o p o r ç õ e s a t u a i s , r e s u l t a d o lamen-
tável d a s explorações dessa deslealdade sistematizada, que principiou
por adulterar a obra do governo provisório, para a acabrunhar depois
c o m as r e s p o n s a b i l i d a d e s de u m a s i t u a ç ã o c r i a d a p r i n c i p a l m e n t e pelos
que a desfrutam. E u s u p u n h a q u e u m sistema só p u d e s s e responder
pelos efeitos d a s u a a p l i c a ç ã o . M a s o regime financeiro que inaugu-
r a m o s , n ã o t e m r e s p o n d i d o senão pelas conseqüências d a s u a d e t u r p a -
ção, s i s t e m a t i c a m e n t e exercida pelos seus executores. Imaginai (não
m e v a d e s c u i d a r pretensioso n a c o m p a r a ç ã o : ela t e m a p e n a s p o r f i m
dar-vos idéia m a t e r i a l desta d e s l e a l d a d e ) , i m a g i n a i q u e , p a r a verificar
a e x a t i d ã o dos cálculos d e Colombo, possuído do sentimento d a reali-
d a d e d a sua visão, n o m e i o d a i n c r e d u l i d a d e dos c o n t e m p o r â n e o s , l h e
t i r a s s e m a s u a n a u , e dessem p o r capitães à e x p e d i ç ã o descobridora
os a d v e r s á r i o s do grande genovês, os interessados e m desmenti-lo, e
desonrá-lo. Podia êle r e s p o n d e r pelo malogro da exploração? Fer-
n a n d o e Isabel de Castela n ã o p e n s a v a m assim. Os críticos d a R e p ú -
blica b r a s i l e i r a , n o século X I X , n ã o l u c r a r i a m pouco n a a r t e d e racio-
c i n a r e j u l g a r , se p u d e s s e m a p r e n d e r as r e g r a s u s u a i s d a e q ü i d a d e n a
escola dos déspotas e s p a n h ó i s dos séculos X V e X V I . P o r m e n o s com-
plexo q u e seja u m m e c a n i s m o , se êle j o g a c o m forças capazes d e p r o -
d u z i r explosão, q u a n d o m a l d i r i g i d a s , m a n d a a boa-fé, n o p e r í o d o d a s
e x p e r i ê n c i a s , n ã o confiá-lo a m ã o s e m p e n h a d a s e m d e s a c r e d i t a r o in-
ventor. C o m o g o v e r n o p r o v i s ó r i o o q u e se fêz, é e x a t a m e n t e o o p o s t o ;
DISCURSOS BRASILEIROS

e n t r e g a r a m , à sorte d a s o n d a s , a m á q u i n a delicada, cometendo-lhe o go-


v e r n o à p e r v e r s i d a d e ou à i n c o m p e t ê n c i a de agentes e n c a r r e g a d o s ad
hoc d e e n v e r g o n h a r o f a b r i c a n t e , d e s o r g a n i z a n d o - l h e a obra. Eis a
moralidade deste processo indecente, q u e eu desprezo, i n s t a u r a d o às
nossas m e d i d a s f i n a n c e i r a s pela m a g i s t r a t u r a d a má-fé. (Aplausos)

N ã o obstante, essas influências não triunfarão. N ã o obstante, a


República não perecerá. P o r q u e a R e p ú b l i c a está i d e n t i f i c a d a à exis-
t ê n c i a d a n a ç ã o pela i m p o s s i b i l i d a d e d e substituir-se. P o r q u e , sob a
R e p ú b l i c a , a despeito de todos os elementos opostos, a v i d a p ú b l i c a v a i
a d q u i r i n d o u m a e n e r g i a desconhecida e n t r e nós d u r a n t e o o u t r o regi-
m e , e d e q u e m e l i m i t a r e i a t o m a r como exemplo m a i s p r ó x i m o a ati-
v i d a d e m u n i c i p a l neste E s t a d o . P o r q u e , enfim, n a R e p ú b l i c a , a pros-
p e r i d a d e geral se vai desenvolvendo e m p r o p o r ç õ e s a g i g a n t a d a s , ante
a s q u a i s a s do I m p é r i o s ã o as d e u m p i g m e u . Basta olhardes o r e n d i -
m e n t o a d u a n e i r o d a i m p o r t a ç ã o q u e , c o m a R e p ú b l i c a , e m três anos,
s u b i u d e c e r c a de q u a r e n t a e cinco a m a i s d e n o v e n t a mil contos, cres-
c e n d o , assim, t a n t o n o t r i ê n i o r e p u b l i c a n o , q u a n t o nos sessenta e cinco
anos de duração imperial. N o último q u i n z ê n i o desta, a ascensão
deste r a m o d a receita c o r r e s p o n d e a u m t e r m o m é d i o a n u a l de sete-
centos contos. N o s três anos iniciais d a R e p ú b l i c a , a m é d i a a n u a l desse
p r o g r e s s o se eleva, p r ò x i m a m e n t e , a q u i n z e mil contos d e réis. Admi-
tindo q u e o peso do i m p o s t o houvesse dobrado, essa a d i ç ã o apenas
elevara o produto a n u a l , n a s a r c a s do tesouro, a m i l e quatrocentos
contos. A diferença q u e vai, pois, d e mil e q u a t r o c e n t o s a q u i n z e mil.
isto é, treze mil e seiscentos contos a n u a i s , isto é, vinte vezes setecen-
tos, r e p r e s e n t a o progresso republicano. A fórmula deste progresso,
p o r t a n t o , está n a p r o p o r ç ã o g e o m é t r i c a d e u m p a r a v i n t e . (Aplausos)

I m a g i n a i a g o r a a distância a q u e n ã o t e r í a m o s c h e g a d o além, se
a política, a m á política, a política antipolítica, a política dos violentos
e dos incapazes, n ã o nos tivesse o b s t r u í d o pertinazmente o caminho.
Os fatos n ã o estão m o s t r a n d o p o r todos os m o d o s q u e o p a í s n ã o ne-
cessita senão d e ser escutado n a s suas asp ir açõ es d e paz e d e t r a b a l h o ,
e n t e n d i d o nos seus interesses econômicos e sociais, a u x i l i a d o , e m p r o -
veito destes, p o r leis q u e facilitem a administração, promovam a in-
dústria, liberalizem o comércio, beneficiem as relações civis, animem
e fortaleçam a iniciativa p a r t i c u l a r e o espírito de associação. Em
190 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

m a t é r i a de r e f o r m a s políticas n ã o se h á m i s t e r senão d a s q u e se desti-


n a r e m a l i m i t a r o p o d e r e consolidar a l i b e r d a d e , cujo o r g a n i s m o , n a
constituição r e p u b l i c a n a , é completo. (Aplausos)

Do m e u papel n a c o n q u i s t a destes resultados, o m e r e c i m e n t o b e m


longe está de ser o q u e a c a b a d e r e t r a t a r , e m cores t ã o vividas, e m
d i m e n s õ e s tão a v u l t a d a s , o a m i g o generoso, o o r a d o r potente, a q u e m
o Partido F e d e r a l i s t a cometeu a missão de s a u d a r - m e . Todo o meu
m e r e c i m e n t o é a p e n a s o de u m t r a b a l h o obstinado, o d e u m a convicção
ardente, o de u m a s i n c e r i d a d e absoluta. As benévolas amplificações
q u e se s u c e d e m n o seu discurso, estão, ainda bem! explicadas pelo
s e n t i m e n t o q u e o t r a i u n o g r a t o n o m e de i r m ã o , c o m q u e a c a r i n h o u
p e r a n t e vós, e a q u e o m e u c o r a ç ã o corresponde afetuosamente. Ir-
m ã o s somos, com efeito, n ã o só n a c o m u n h ã o do espírito republicano,
como n a c o l a b o r a ç ã o cordial pelo t r i u n f o d a revolução, q u e d e u a o
p a í s as suas instituições atuais. Irmãos espero q u e sejamos sempre
na a m i z a d e , n a s opiniões, n a s atitudes políticas, n a defesa d o p a í s con-
t r a os m a u s governos, n a m a n u t e n ç ã o d a s o l i d a r i e d a d e b a h i a n a contra
os interessados e m dissolvê-la. (Aplausos)

N o p e r í o d o o r g a n i z a d o r , q u e a R e p ú b l i c a atravessa, a B a h i a n ã o
tem s o m e n t e o papel, q u e n a t u r a l m e n t e lhe devia a t r i b u i r o seu valor
relativo e n t r e os outros Estados, a sua i m p o r t â n c i a tradicional. Seu
p r o c e d i m e n t o , sob as novas instituições, constituí-a e m e x e m p l o : exem-
plo n a r e o r g a n i z a ç ã o m u n i c i p a l , e m cuja iniciativa, m e u s ilustres a m i g o s ,
vos pertence parte heróica, fundamental, decisiva; exemplo n o vigor
d a repulsa à invasão d a s deposições, q u e d e i x a r a m n a m ó r p a r t e dos
outros Estados feridas q u a s e i n c u r á v e i s ; exemplo n a a t i v i d a d e d e mo-
v i m e n t o eleitoral, q u e tem sobressaído a q u i p o r u m a e n e r g i a crescente
s e m p r e ; exemplo n a gestação do P a r t i d o Federalista, a m a i s c o m p a c t a ,
a m a i s extensa, a m a i s p o d e r o s a o r g a n i z a ç ã o política q u e a B a h i a já
conheceu, vasta aglomeração dos elementos constitucionais, de quase
todos os elementos políticos aproveitáveis, e m t o r n o d o p r i n c í p i o vito-
rioso n a revolução e a m e a ç a d o hoje s i m u l t a n e a m e n t e pelos dois inimi-
gos d a o r d e m r e p u b l i c a n a : o militarismo e o parlamentarismo. Ora,
a honra desse exemplo está confiada particularmente à representação
da B a h i a , à sua r e p r e s e n t a ç ã o n o Congresso do Estado, à sua repre-
DISCURSOS BRASILEIROS 191

sentação nas Câmaras da União. Q u e a consciência desse mandato


faça d e nós u m só corpo, a n i m a d o pelo m e s m o p e n s a m e n t o ! (Aplausos)

A República precisa d e ser c o n s e r v a d o r a , mas conservadora, a


u m tempo, c o n t r a o r a d i c a l i s m o e c o n t r a o despotismo, c o n t r a as uto-
pias revolucionárias e contra as u s u r p a ç õ e s administrativas, contra a
selvageria a n á r q u i c a d a s facções e c o n t r a a e d u c a ç ã o inconstitucional
dos governos. P a r a isso é indispensável a liga e n t r e os fortes, entre
os convencidos, e n t r e os m o d e r a d o s , e n t r e os i n d e p e n d e n t e s . A federa-
ção política h á d e assentar nessa federação m o r a l . E p a r a ela n e n h u m
E s t a d o pode c o n c o r r e r m a i s do q u e a B a h i a , c o m h o m e n s d a capaci-
d a d e , d a vocação p r á t i c a , da educação liberal, que recomendam o
egrégio intérprete do Partido Federalista nesta manifestação deslum-
brante. (Aplausos)

0 p r o g r a m a d o P a r t i d o F e d e r a l i s t a foi n i t i d a m e n t e f o r m u l a d o no
p a c t o d a s u a Constituição. M a s esse p r o g r a m a j á se t r a n s f u n d i u vigo-
r o s a m e n t e d a s s u a s p a l a v r a s nos seus atos, e, h o j e está completo n o seu
procedimento. Se o ominoso m o v i m e n t o de 2 4 d e n o v e m b r o tivesse
p r e p o n d e r a d o , a B a h i a , d a í e m d i a n t e , n ã o seria m a i s q u e u m a p r e s a
desprezível, alternativamente disputada entre os a v e n t u r e i r o s de fora
e os a v e n t u r e i r o s d e casa. A B a h i a , a t e r r a s a g r a d a pelas coragens
h e r ó i c a s e pelos entusiasmos sublimes, viu-se a m e a ç a d a n a sua existên-
cia constitucional pela i m p e r t i n ê n c i a de u m soldado t r a n s v i a d o d a s u a
s e n d a , q u e julgou p o d e r estender p a r a ela a m ã o d e c o n q u i s t a d o r , com
a s e m - c e r i m ô n i a d e u m estroina, c o n f u n d i n d o , nas ruas, u m a senhora
com uma perdida. (Aplausos). Se essa familiaridade odiosa não
fosse c a s t i g a d a , f u l m i n a d a , c o m o foi, pela altivez d a ofendida, facili-
t a n d o o p r i m e i r o passo n a p e r d a d a h o n r a , a h o n r a e s t a r i a p e r d i d a , e,
com a h o n r a , a tranqüilidade, a prosperidade, a conservação mesma
dos interesses e l e m e n t a r e s d a v i d a . D a s m i s é r i a s desse a b i s m o , misé-
r i a s incalculáveis como as da p r o stitu ição , preservou-nos o culto do
p r i n c í p i o federalista, representado nos patriotas, que compõem hoje
esse p a r t i d o , cuja política tem sido a expressão leal do seu nome, e cujos
chefes m e r e c e m a g r a t i d ã o irresgatável d a B a h i a . (Aplausos)

Esse p a r t i d o cresce, n ã o cessa de crescer, a s s i m i l a n d o as ú l t i m a s


sinceridades, l i g a d a s a nós pelas a f i n i d a d e s í n t i m a s do espírito, mas
192 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

t r a n s v i a d a s a i n d a pelas confusões desta época o b s c u r a . C o m a s u a ex-


p a n s ã o , cresça a s u a h a r m o n i a , estreite-se a s u a disciplina, cimente-se
a sua unidade! (Aplausos)

A êle devo eu esta manifestação, cuja m a g n i f i c ê n c i a n u n c a se des-


botará da memória d a s suas testemunhas. Reeleito espontaneamente
p o r êle, restituído p o r êle à c a d e i r a , q u e eu r e n u n c i a r a , no S e n a d o d a
R e p ú b l i c a , v i n h a a g r a d e c e r - l h e , e vejo d u p l i c a r p e s a d a m e n t e a m i n h a
dívida. Como amortizá-la? N ã o t e n h o o u t r o m e i o , senão insistir n a
d i r e t r i z constante d a m i n h a v i d a política, q u e , g r a ç a s a Deus, n u n c a
se desviou d o seu r u m o p r i m i t i v o ; o a m o r d a l i b e r d a d e , s e r v i n d o pela
i n d e p e n d ê n c i a e pela d e s a m b i ç ã o . (Aplausos)

O sonho d a m i n h a v i d a n u n c a foi d i r i g i r , m a s confiar e s e r v i r ;


confiar nos m a i s fortes, servir sob os m a i s capazes, m a s servir com
inteligência, n u m a religião q u e n ã o m e a b a s t a r d e a crença, que me
esclareça, m e eleve, e m e fortifique. D o s m e u s a n t i g o s chefes polí-
ticos n ã o m e a p a r t e i , senão q u a n d o , volvendo os olhos a t r á s , vi devo-
r a d o s v i n t e a n o s d e m i n h a v i d a p o r u m a o b e d i ê n c i a c o n d e n a d a à este-
r i l i d a d e p a r a c o m a p á t r i a e inconciliável d a í e m d i a n t e com a m i n h a
razão. F u i liberal, e n q u a n t o e n x e r g u e i n o P a r t i d o L i b e r a l o instru-
mento da libertação do voto; m a n t i v e - m e liberal, e n q u a n t o acreditei
n a fidelidade dos chefes l i b e r a i s à r e d e n ç ã o d o e s c r a v o ; deixei d e ser
liberal, q u a n d o vi n o P a r t i d o L i b e r a l o obstáculo interesseiro à e m a n -
cipação das províncias. Q u a n d o u m a legião e m b r u l h a a s u a b a n d e i r a ,
a h o n r a d a s u b m i s s ã o nos legionários d e g e n e r a e m vilipendio. Eis o
m e u p a s s a d o , a d s t r i t o s e m p r e à disciplina sob todas a s formas, m e n o s
à disciplina dos r e n e g a d o s . (Aplausos). Toda essa devoção, hoje a
c o n s a g r o a o P a r t i d o Federalista, contente d e servi-lo e n t r e os seus m a i s
obscuros cooperadores.

R a d i c a l sob a m o n a r q u i a , sou e n t r e os r e p u b l i c a n o s o m a i s con-


victo dos conservadores. B a n i r d a R e p ú b l i c a a i n q u i e t a ç ã o e a insta-
b i l i d a d e : tal, neste m o m e n t o , a m a i o r p r e o c u p a ç ã o m i n h a , a p r e o c u p a -
ção d e todos os q u e se e m p e n h a r e m s e r i a m e n t e e m t o r n a r a R e p ú b l i c a
frutificativa e progressista. A essa a m b i ç ã o t e n h o s u b m e t i d o os a r d o -
res do m e u t e m p e r a m e n t o e as i m p a c i ê n c i a s d a m i n h a fé. Suspeito
às d u a s d i t a d u r a s , q u e t ê m a g o u r e n t a d o o desenvolvimento constitucio-
DISCURSOS BRASILEIROS 193

nal do p a í s desde 1 8 9 1 , alheio aos golpes de E s t a d o da s e g u n d a , c o m o


aos d a p r i m e i r a , n ã o c o n c o r r i n u n c a , todavia, p a r a agitações, q u e só
p o d e m servir de e s t i m u l a r o p r u r i d o d a d e s o r d e m , e x a c e r b a r a i r r i t a -
b i l i d a d e ao elemento d i r i g e n t e , e m i n i s t r a r - l h e p r e t e x t o a o u s a d i a s vio-
lentas. D e f e n d i , e c o n t i n u o a defender, p e r a n t e a justiça reparadora,
s e m estrépido político, o d i r e i t o , a l i b e r d a d e , a p r o p r i e d a d e das v í t i m a s
d o c r i m e de 10 de a b r i l ; p o r q u e , n o dia em q u e n ã o h o u v e r n o p a í s
quem pugne por esse p a t r i m ô n i o , os nossos foros de h o m e n s livres
v a l e r ã o m e n o s d o q u e a t a n g a dos escravos da G u i n é , a Constituição
estará reduzida, p o r conivência universal, a u m a b a r r e t i n a da tirania
militar. (Aplausos). Mas nunca estudei os atos dos governos repu-
blicanos com p r e v e n ç õ e s de i n i m i g o , n e m n u n c a p e r p e t r e i c o n t r a eles
o e r r o da oposição sistemática.

Até hoje p r o c e d i e s c r u p u l o s a m e n t e assim. Assim c o n t i n u a r e i a pro-


c e d e r , t e n d o p o r lei a m o d e r a ç ã o e a firmeza, e n q u a n t o e x i g i r d e s os
m e u s serviços. (Aplausos)

A i n d a h á pouco, escutando o Brasileiro, notável, da eminência


d e cujo t a l e n t o vimos desdobrar-se em t ã o magníficos esplendores o
manto da majestade deste a u d i t ó r i o , o m a i s e x t r a o r d i n á r i o e o mais
ilustre a q u e j á me coube a h o n r a de falar, eu s u p u n h a e n t r e v e r as
e m o ç õ e s d o espírito ateniense, nas lutas d a g r a n d e eloqüência, em q u e
a palavra dos o r a d o r e s descia olimpicamente c o m o os raios d a luz
meridiana sobre a Agora palpitante. A l i m p i d e z d a a r t e clássica d a v a
à atmosfera, o n d e i r r a d i a v a m esses gênios, u m a t r a n s p a r ê n c i a singular,
q u e r e f r a n g i a em i m a g e n s m a r a v i l h o s a s a expressão helênica da beleza
e d a força. M a s as j u n t a s intelectuais de A t e n a s e r a m c o m b a t e s mu-
nicipais. A humanidade a i n d a n ã o se r e v e l a r a ao h o m e m . A liber-
d a d e a i n d a n ã o e r a u m interesse u n i v e r s a l . A consciência a i n d a não
l e v a n t a r a esses cimos c u l m i n a n t e s , de o n d e a p a l a v r a se faz sacerdócio
n o s lábios dos m a i s h u m i l d e s , e c o m u n i c a aos a m b i e n t e s m a i s profanos
a sonoridade dos templos. (Bravos). Estamos, se m e n ã o engano,
e m u m desses m o m e n t o s de santificação p o p u l a r . Através da concen-
t r a ç ã o q u e a q u i r e i n a , a r f a m m o d u l a ç õ e s misteriosas de u m ó r g ã o in-
terior, p o r cujas teclas a h a r m o n i a dos p e n s a m e n t o s passa murmurante
c o m o o êxtase de u m a c o n t e m p l a ã o religiosa, u m ofício d i v i n o : ora,
194 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

v i b r a ç õ e s , talvez, do h i n o soluçado pelos cativos vitoriosos, cujo mar-


t í r i o povoou longos anos de ecos desta t r i b u n a ; o r a , o s u s s u r r o d a v i d a
e x p e d i e n t e nos lábios lívidos d a s v í t i m a s i n c a u t a s , sacrificadas cruel-
m e n t e , a q u i p e r t o n a s r u a s desta c i d a d e , pelas a m b i ç õ e s d a d e s o r d e m
anti-republicana. (Sensação). Sente-se a q u i a solenidade dos g r a n d e s
cultos, a i m p r e s s ã o d a s c a t e d r a i s e n o i t e c i d a s pelos séculos, elevação in-
t e r i o r p a r a o infinito. F a ç a m o s desta sessão, pois, u m a t o de a l i a n ç a
pela R e p ú b l i c a , e m p r e s e n ç a d a q u e l e D e u s q u e nossas famílias exora-
v a m pelos escravos, o D e u s q u e enlaça e n ã o divide os h o m e n s . (Lon-
gos aplausos). E n c e r r e m o s esta c e l e b r a ç ã o com u m voto fervoroso e
uma deliberação irretratável pela consolidação pacífica da liberdade
republicana. (Aplausos). E q u e essa d e l i b e r a ç ã o e esse voto se ele-
v e m de n ó s com o r e c o l h i m e n t o e a eficácia d e u m a p r e c e .

M a s , antes d e nos d e i x a r m o s , v i n d e c o m i g o d e p o r estas h o m e n a -


gens, estes troféus, estes símbolos n o altar q u e os deve r e c e b e r .

Espírito s u p r e m o daquele que me en sin o u a sentir o direito, e


q u e r e r a l i b e r d a d e ; d a q u e l e cuja p r e s e n ç a í n t i m a r e s p i r a e m m i m n a s
horas do dever e do p e r i g o ; daquele a quem pertence, nas minhas
ações, o m e r e c i m e n t o da coerência e da sinceridade; emanação da
h o n r a , d a v e r a c i d a d e e d a justiça, espírito severo d e m e u p a i . . . (sen-
sação) ; i m a g e m d a b o n d a d e e d a p u r e z a , q u e verteste e m m i n h a a l m a
a felicidade do sofrer e do p e r d o a r , q u e m e educaste n o espetáculo
d i v i n o d o sacrifício c o r o a d o pelo sacrifício, c a r í c i a do céu n a manhã
dos m e u s dias, aceno do céu n o h o r i z o n t e d a m i n h a t a r d e , anjo da
a b n e g a ç ã o e d a e s p e r a n ç a , q u e m e sorris n o sorriso de m e u s filhos,
espírito sideral d a m i n h a m ã e . . . (bravos) se o b e m desabotoa a l g u m a
vez à superfície agreste da m i n h a vida, vós sois a m ã o do s e m e a d o r ,
que o s e m e o u . . . (longa sensação), vós, cuja e n e r g i a m e criou o co-
r a ç ã o e a consciência, cuja b ê n ç ã o d e r r a m o u a fecundidade s o b r e as
urzes d e m i n h a natureza. (Bravos. Aplausos). Quando, na minha
existência, a l g u m a coisa possa i n s p i r a r g r a t i d ã o , ou s i m p a t i a , n ã o m e
t o m e m senão como o fruto, e m q u e se m i t i g a a sede, e q u e se esquece.
Vós, a u t o r e s b e n i g n o s do m e u ser, sois a á r v o r e dadivosa, cujos bene-
fícios sobrevivem no reconhecimento, que não murcha. (Sensação
DISCURSOS BRASILEIROS 195

prolongada). Estas flores, m a g i a d e u m j a r d i m i n s t a n t â n e o , o n d a es-


p a r s a de u m a a l v o r a d a b a l s â m i c a , estas flores e m q u e se d e s e n t r a n h a ,
a o contacto d a B a h i a , o b e r ç o , q u e m e afofastes c o m a vossa t e r n u r a ,
q u e m e g u a r d a s t e s c o m as vossas vigílias, q u e m e p e r f u m a s t e s c o m a s
vossas v i r t u d e s , estas flores são vossas: recebei-as. Q u e elas envolvam
n o seu a r o m a a vossa m e m ó r i a (bravos), reabram, em cada geração
de vossos netos, aos p é s d a vossa cruz (bravos), e d e i x e m c a i r o refri-
g é r i o do seu orvalho sobre as p a i x õ e s corrosivas, q u e u l c e r a m a p á t r i a ,
amofinando-lhe o presente, ameaçando-lhe o futuro. (Aplausos repeti-
dos, estrondosos e prolongados).
SÍLVIO ROMERO

Sobre o Barão do Rio Branco — Discurso pro-


nunciado na sessão de 8-12-1900, d a Câmara dos
Deputados.

Os g r a n d e s assuntos, Sr. P r e s i d e n t e , t ê m a faculdade de d e s p e r t a r


as altas idéias e os n o b r e s e elevados sentimentos.

E o assunto de q u e se t r a t a , o fato q u e se discute, é c e r t a m e n t e


u m desses.

E m n ú m e r o s de avultados feitos q u e e n c h e m a h i s t ó r i a brasileira


n o século X I X , lá b e m longe no futuro, q u a n d o nossos netos lerem as
p á g i n a s de nossos sofrimentos e de nossas e s p e r a n ç a s , ao lado da In-
d e p e n d ê n c i a , d a Revolução de 7 de abril, d a abolição da escravidão,
d o a d v e n t o da R e p ú b l i c a , t ê m de destacar-se os dois rútilos fatos de-
vidos a Silva P a r a n h o s , as d u a s estrondosas v i t ó r i a s d i p l o m á t i c a s que
nos c o n f i r m a r a m n a posse das Missões e da G u i a n a , i n t e g r a n d o ainda
m a i s , se é lícito assim falar, a nossa p á t r i a , este i d o l a t r a d o e estre-
mecido Brasil.

P r a z - m e falar em u m m o m e n t o destes, Sr. P r e s i d e n t e , p e r a n t e a


Câmara dos D e p u t a d o s , a p ó s q u a s e seis meses de ausência, q u e tive
de p a s s a r por moléstia n o Velho M u n d o ; p r a z - m e falar em u m mo-
m e n t o t a l ; p o r q u e a g o r a é u m desses r á p i d o s instantes e m q u e se realiza
a h a r m o n i a dos espíritos, o a c o r d o das a l m a s pelas p r o f u n d a s efusões
q u e b r o t a m de todos os corações brasileiros.

Este m o m e n t o , p o r t a n t o , Sr. P r e s i d e n t e , deve ser a p r o v e i t a d o para


a p r e n d e r m o s nele a g r a n d e lição q u e nos está a e n s i n a r .
DISCURSOS BRASILEIROS 197

N ã o se t r a t a t a n t o de r e n d e r u m culto de a g r a d e c i m e n t o a um
brasileiro ilustre, q u a n t o de servirmo-nos dele como exemplo, de ser-
virmo-nos dele c o m o e n s i n a m e n t o , pelo seu critério, pela s u a m o d e r a -
ção, pelo seu doce e p r o f u n d o a m o r a esta t e r r a , e, sobretudo, pela
s u a significativa c o l a b o r a ç ã o n a R e p ú b l i c a .

É inútil q u e r e r n e g a r , ou an tes e melhor, n e m s e q u e r se t r a t a de


q u e r e r n e g a r , tal é o g á u d i o q u e nisto mostram certos fautores d e
ruínas; todos, a o c o n t r á r i o , têm grande empenho e revelam imenso
alvoroço e m ostentar a todos os olhos, e m d e s c a r n a r a t o d a s as vistas
as e n o r m e s dissensões q u e d i v i d e m e e n f r a q u e c e m a República.

R a r a m e n t e , e m todos os t e m p o s e a t é n a s fases m a i s a g i t a d a s de
vossa v i d a política, a l i n g u a g e m d a oposição, n ã o só jornalística como
parlamentar, m a i s a i n d a a q u e l a d o q u e essa, t e m c h e g a d o a u m t ã o
a g u d o g r a u de aspereza n o a t a q u e dos h o m e n s e n a crítica dos fatos.

Anch'io son pittore; eu t a m b é m p o d e r i a , e m b o c a n d o a t i o r b a d o


pessimismo, o u e m p u n h a n d o a clava d a d e v a s t a ç ã o e d a r u í n a , afeiando
todos os fatos, d e n e g r i n d o todos os h o m e n s , a b a t e n d o todos os caracte-
res, c o n t r i b u i r p o r m i n h a p a r t e p a r a a u m e n t a r a d e n s i d a d e d a confusão
em q u e n o s d e b a t e m o s . . .

N ã o é disto q u e p r e c i s a a R e p ú b l i c a . A R e p ú b l i c a precisa m a s
é d a c e n s u r a q u e a d v e r t e , d a crítica q u e ensina, m a s s e m p r e ao l a d o
do conselho que encaminha e da colaboração q u e au x i l i a a tarefa
comum.

É preciso q u e reflitamos, S e n h o r e s , n o p a p e l d a oposição nos go-


vernos livres e d e m o c r á t i c o s , q u e é b e m diferente d o aspecto q u e ela
deve e fatalmente t e m de a s s u m i r n o s r e g i m e s despóticos.

Nestes n ã o se t r a t a só d e c o r r i g i r os erros e abusos q u e a n d a m


s e m p r e aliados às coisas h u m a n a s ; trata-se antes e a c i m a de t u d o de
d e i t a r a b a i x o o p r ó p r i o sistema g o v e r n a m e n t a l , q u e o p r i m e o povo e
desnatura o Estado. A í se c o m p r e e n d e q u e se lance m ã o de t o d a s as
v i o l ê n c i a s ; é u m a luta de v i d a e m o r t e ; impõe-se o fatal dilema d o —
Ceei tuera cela. ..
198 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

N ã o é assim, p o r é m , e n t r e i n d i v í d u o s do m e s m o credo, do m e s m o
sistema, d a m e s m a d o u t r i n a p o l í t i c a ; pois e m tal caso, o papel d a
oposição, p a r a ser útil, p a r a p r o d u z i r benefícios à N a ç ã o , é a p e n a s o
de p r e v e n i r ou c o r r i g i r e r r o s e j a m a i s o d e a l u i r o r e g i m e , d e i t a r p o r
terra a própria forma governamental.

É o q u e n ã o q u e r e m c o m p r e e n d e r todos aqueles q u e a t i r a m c o n t r a
os governos d a R e p ú b l i c a toda a casta d e d i a t r i b e s , sem se l e m b r a r e m
q u e destarte a u m e n t a m e tendem sempre a aumentar cada vez m a i s
o j á crescido n ú m e r o d e suas dificuldades, a mor parte das quais é
e x a t a m e n t e o r i u n d a desse n e f a n d o sistema de t u d o e n t o r p e c e r e difi-
cultar, m u i d a índole dos nossos d e s o r i e n t a d o s p o l i t i c a n t e s . . .

A v i d a de todo governo, como a d e q u a l q u e r i n d i v í d u o , como a


de q u a l q u e r classe ou a g r e m i a ç ã o , como a d e t u d o neste m u n d o , pode-se
escrever p o r p a r t i d a s d o b r a d a s : d e u m lado, está a coluna dos erros,
m a s , d e o u t r o lado, h á d e estar t a m b é m a coluna d o s embaraços...
E n ó s , q u a n d o d a m o s l a r g a s a o nosso n a t u r a l e i r r e d u t í v e l pessimismo,
em se t r a t a n d o d a R e p ú b l i c a , só r e p a r a m o s n a coluna dos erros q u e ,
p o r v e n t u r a , ela t e n h a c o m e t i d o ; temos olhos p a r a e n x e r g a r desta ban-
d a , m a s n ã o levamos e m l i n h a de conta os embaraços q u e todos os
dias estamos a o p o r à s u a m a r c h a , embaraços estes q u e são a c a u s a
eficiente d a m o r p a r t e dos e r r o s q u e somos t ã o sôfregos e m m a l d i z e r
e exagerar.

Esta fatal t e n d ê n c i a , q u e e n t r e n ó s avulta m a i s d o q u e e n t r e qual-


q u e r o u t r o povo, prende-se a d u a s c a u s a s p r i n c i p a i s , u m a geral e o u t r a
m a i s í n t i m a , m a i s p e c u l i a r a n ó s , e v ê m a s e r : o espírito reacionário
deste final do século e a espécie de noso-mania d e q u e somos afetados.

Q u a n t o a o p r i m e i r o , a n d a êle exposto às vistas a t é as m a i s m í o p e s


ou m a i s c a n s a d a s . N o final do século X V I I I , a m o d a foi o u t r a e foi
a justamente contrária: declarou-se a bancarrota de tudo q u e tinha
raízes n o passado, t u d o q u e v i n h a do l a d o d a s t r a d i ç õ e s , e, e n t r e o u t r a s ,
a bancarrota da monarquia, a bancarrota da religião... A história
de todo o século X I X a í está p a r a m o s t r a r q u a n t o os s o n h a d o r e s e os
maldizentes se i l u d i a m !

A E u r o p a c o n t i n u o u cheia d e m o n a r q u i a s , a l g u m a s c a d a vez m a i s
firmes, e a t é novos i m p é r i o s a u t o r i t á r i o s ali m e s m o v i e r a m à luz. . .
DISCURSOS BRASILEIROS 199

e, se houve t e m p o e m q u e a religião se sentisse desafogada, é exata-


m e n t e este nosso, n o q u a l , sem falar de m u i t o s credos velhos q u e a í
se o s t e n t a m vivaces e d e outros novos q u e se c r i a r a m , b a s t a recordar
o caso da Igreja Católica, cheia de p u j a n ç a sob o pontificado de
Leão XIII.

O S r . G e r m a n o H a s s l o c h e r — Infelizmente é verdade, para mal


da humanidade. (Protestos de alguns Srs. Deputados)

O S r . Sílvio R o m e r o — N ã o discuto o valor intrínseco d o cato-


l i c i s m o : l e m b r o a p e n a s a ilusão dos p r e t e n d i d o s profetas, o vaticínio
dos s o n h a d o r e s . . .

H o j e , a m a n i a é o u t r a : displicente, desiludido, a m u a d o , o século


chegou a o s u p r e m o desvario d e p r o c l a m a r a b a n c a r r o t a d e t u d o q u e
constituía os ideais d e nossos p a i s : a b a n c a r r o t a d a revolução, a m ã e
dos m o d e r n o s povos, n a frase do poeta, pela b o c a , n ã o d e a l g u m a n ô -
n i m o , ou a l g u m foliculário desprezível, s e n ã o pela b o c a de c e n t e n a r e s d e
publicistas e filósofos, e n t r e os q u a i s avulta a alta f i g u r a respeitável
de u m H i p ó l i t o T a i n e ; a b a n c a r r o t a d o liberalismo, e m n o m e do q u a l
estão m a r c a d o s todos os g r a n d e s feitos d a h i s t ó r i a m o d e r n a , desde a
m o r t e d a s e r v i d ã o pessoal e da gleba, p a s s a n d o pela l i b e r t a ç ã o d a s
c o m u n a s , pelo R e n a s c i m e n t o , pela R e f o r m a , até a i n d e p e n d ê n c i a das
r e p ú b l i c a s a m e r i c a n a s e a difusão do r e g i m e r e p r e s e n t a t i v o n a E u r o p a ;
b a n c a r r o t a do liberalismo, q u e n ã o é d e c l a r a ç ã o d e a n ô n i m o s , e sim
c r e n ç a d e u m a elite d e escritores e sociólogos, d e n t r e os q u a i s se avista
a p r e s e n ç a de u m A n a t o l e L e r o y - B e a u l i e u ; e p a r a q u e n ã o ficasse in-
completa essa trilogia d a insensatez, a b a n c a r r o t a d a ciência, o título
m a i o r de g l ó r i a d o h o m e m s o b r e a t e r r a , pela b o c a d o festejado B r u -
netière...

E eis a í como, S r . P r e s i d e n t e , facilmente se explica o inconsciente


e n t u s i a s m o d a q u e l e s q u e e n t r e n ó s , e m todos os tons, m a c u l a m a f o r m a
definitiva de g o v e r n o q u a n d o o seu d e v e r e r a viver nela e p a r a ela,
c o l a b o r a n d o e m seu seio, a d v e r t i n d o - a , a m p a r a n d o - a , servindo-a.

É q u e a R e p ú b l i c a é filha d a revolução, do liberalismo e d a ciên-


cia, as três v í t i m a s dos r e a c i o n á r i o s de nossos d i a s . . .
200 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

Bem o u t r o e m u i diverso t e m sido o p r o c e d e r desse admirável


R i o B r a n c o , q u e é hoje o alvo de nossas congratulações.

F i l h o de c o n s e r v a d o r e m o n a r q u i s t a , m a s u m desses q u e o s a b i a
ser m i s s i o n a n d o a p a z e a l i b e r d a d e , b e m diferente, b e m d i s t a n c i a d o
de tantos outros q u e , a q u i m e s m o neste recinto, faziam a o i m p é r i o a
g u e r r a i m p i e d o s a q u e hoje a l g u n s r e p u b l i c a n o s fazem à República, e
a q u i m e s m o neste r e c i n t o i n j u r i a v a m o I m p e r a d o r , aos b r a d o s descom-
pa s sa d os e i r r i t a n t e s de — César caricato!!! Príncipe nefasto e cons-
piradorü... ou c h e g a v a m a t é a c h i c a n a r a respeito d a legalidade do
dote de suas filhas!... (Prolongados aplausos cobrem as palavras do
orador. . . ) , filho de c o n s e r v a d o r , titular da monarquia, deixa todos
os seus ressentimentos e v e m p ô r a serviço d a R e p ú b l i c a os dotes i n a -
p r e c i á v e i s d e s e u espírito, e x e m p l o igual a o q u e n o s está d a n d o esse
o u t r o p e r e g r i n o talento q u e se c h a m a Joaquim Nabuco.

De exemplos tais é q u e o Brasil h á m i s t e r . Esses dois monar-


q u i s t a s d e o u t r o s tempos b e m c o m p r e e n d e r a m q u e a p á t r i a n ã o p o d e
ser a anima vilis de e x p e r i ê n c i a s de m u d a n ç a s d e formas de governos,
e q u e p a r a b e m servir a R e p ú b l i c a b a s t a a p e n a s u m pouco d e b o a von-
t a d e , de bom-senso, de p a t r i o t i s m o .

O p r o j e t o q u e se discute t e m assim, e n c e r r a destarte u m consi-


derável, u m imenso ensinamento; e bastava só isto p a r a q u e eu o
apoiasse, a p o n t a n d o aos r e a c i o n á r i o s q u e a m a m m a i s f o r m a s abstratas
do governo d o q u e a felicidade d a p á t r i a , o m o d e l o q u e h á a s e g u i r e m
Rio B r a n c o , indicando-lhes, p a r a e s c a r m e n t o seu, q u e n ã o é d e n e g r i n d o
e m a l d i z e n d o q u e se s e r v e m povos, s e n ã o t r a b a l h a n d o de c o r a ç ã o p a r a
êle, c o l a b o r a n d o n a s u a faina l i m p a e d e s i n t e r e s s a d a m e n t e ; e s u g e r i n d o
ao p o v o q u a n t o o a t o d a R e p ú b l i c a m o s t r a a m e d i d a e m q u e ela está
l o n g e de ser i n g r a t a p a r a q u e m b e m a sabe servir.

M a s , t i n h a eu dito q u e a c a m p a n h a d e descrédito m o v i d a contra


a R e p ú b l i c a prende-se a d u a s t e n d ê n c i a s : u m a geral, — o espírito
r e a c i o n á r i o deste final d e século, — e o u t r a , a espécie de noso-mania
q u e sofre h á m u i t o s anos a n a ç ã o b r a s i l e i r a . Assim é.

N ã o é só nos i n d i v í d u o s q u e a mania de doença faz estragos con-


s i d e r á v e i s ; t a m b é m terríveis c o n s e q ü ê n c i a s t e m ela n a v i d a d a s n a ç õ e s .
DISCURSOS BRASILEIROS 201

Bem como certas pessoas, sem moléstia apreciável, p o r leve e sim-


ples d e s a r r a n j o funcional do sistema nervoso, supõem-se irremediavel-
m e n t e a t a c a d a s d e todas as moléstias existentes e por existir; assim
certos povos, p o r i m p a c i ê n c i a , p o r l e v i a n d a d e , p o r p r e s t a r e m ouvidos
a o p e s s i m i s m o m a l i g n o d e u n s ou à m a l e d i c ê n c i a m u i t a s vezes inte-
resseira de outros, julgam-se feridos d e m o r t e , e d e s a l e n t a m , desanimam
e entram a definhar.

É o caso d o Brasil, p o r c a u s a d a s aves a g o u r e i r a s q u e n o s malsi-


n a m ; p o r é m n ã o é o caso do Chile, n ã o é o caso d a A r g e n t i n a , onde
p o r m a i o r e s q u e sejam as dificuldades, p o r m a i s avultados q u e sejam
os e m b a r a ç o s , existem, e m m a i o r i a , as a l m a s e n é r g i c a s q u e e s t i m u l a m ,
n a alma p o p u l a r , o e n t u s i a s m o e a i n a b a l á v e l c r e n ç a n o p o r v i r b r i l h a n t e
das duas repúblicas.. .

A i n d a p o r este l a d o , o feito d e R i o B r a n c o e o projeto q u e se


discute são d e u m a lição i n a p r e c i á v e l . Veja b e m o p a í s , note b e m
a n a ç ã o , q u e n ã o p o d e estar s e r i a m e n t e e n f e r m o q u e m o b t é m vitórias
estrondosas como essas d a s missões e d a Guiana.

T h a c k e r a y , n o Livro dos Snobs, n o s diz s e r o Almanaque do Pa-


riato o criado agaloado da história. . . M a s h á , pode-se a f i r m a r paro-
diando, um pariato da inteligência e do coração, o n d e se r e c r u t a m
essas n a t u r e z a s p e r e g r i n a s , esses a b e n ç o a d o s do futuro, esses consagra-
dos d a glória, q u e são, u n s a g u a r d a d e h o n r a e outros os v e r d a d e i r o s
príncipes reinantes da história. . .

Neste n ú m e r o , acha-se o S r . de R i o B r a n c o ; e assim, como n a


l i n g u a g e m poética d e Carlyle n o s livros dos Heróis, as ilhas desertas
n o G r a n d e Oceano, restos d e u m c o n t i n e n t e q u e afundou, são verda-
d e i r a s a t a l a i a s q u e servem p a r a m o s t r a r q u e e m o u t r o t e m p o houve
ali a v i d a com todos os seus encantos, com todos os seus anelos, c o m
todas as suas efusões; os n o b r e s feitos, como esse q u e c o m e m o r a m o s ,
esparsos n o m a r d o f u t u r o distante, s e r v i r ã o p a r a provar que neste
p a í s , nesta h o r a do século q u e finda, sentia-se a v o n t a d e latente de u m
g r a n d e povo, q u e , a despeito d e t u d o , m a l g r a d o as p r a g a s de u n s e
os c l a m o r e s de outros, q u e r i a viver e a n d a r p a r a d i a n t e . . . T e n h o dito.
B I O G R A F I A S

RUI BARBOSA

Estadista e jurisconsulto, nasceu na Bahia em 1849.

U m dos fundadores da República no Brasil, da qual foi o primeiro


ministro da Fazenda. Dotado de vasta e variada erudição e de grande
eloqüência, primoroso estilista, jurisconsulto abalizado e profundo, Rui
Barbosa foi embaixador do Brasil na Conferência de Haia ( 1 9 0 7 ) , onde
representou brilhantíssimo papel.

Entre outras obras de grande valor escreveu "O Papa e o Conci-


lio", "Habeas-Corpus", "Cartas de Inglaterra", etc.

Foi Senador Federal e Presidente da Academia Brasileira. Mor-


reu em 1923.

ALOYSIO D E CASTRO

Médico, professor e escritor, nascido no Rio de Janeiro em 1881;


realizou brilhante carreira na medicina e na literatura; professor de
medicina no Rio de Janeiro; membro honorário de. diversas instituições
médicas internacionais. Membro da Academia Brasileira de Letras, de
que já foi Presidente; suas obras são em grande maioria discursos
acadêmicos. É também compositor nacional.

HENRIQUE MAXIMIANO COELHO NETO

Notável homem de letras, nasceu em Caxias, Maranhão, em 20 de


fevereiro de 1864. Estudou preparatórios no> Colégio D. Pedro II, fre-
qüentando mais tarde a Escola de Medicina e a Faculdade de Direito
de S. Paulo. Consagrou-se muito cedo à literatura, destacando-se desde
logo pelo talento e pela originalidade das suas produções. Exerceu
ainda par algum tempo cargos públicos, tendo sido secretário do Go-
verno do Estado do Rio de Janeiro, até que a certa altura passou a
viver exclusivamente para a sua arte. Além de escritor ilustre ("O In-
verno em Flor", "O Rei Fantasma", "Sertão", "Fogo-Fátuo", e t c ) ,
foi poeta, dramaturgo, oradoir eloqüente e de puro verbo, jornalista no-
tável e admirável cronista.
DISCURSOS BRASILEIROS 203

JOÃO N E V E S DA FONTOURA

Advogado e jornalista gaúcho, nascido em 1887.

Deputado Federal do seu Estado, liderou na Câmara o movimento


da Aliança Liberal; membro da delegação brasileira à Conferência Pan-
-Americana de Ministros Exteriores em Havana ( 1 9 4 0 ) ; embaixador do
Brasil em Cuba, Panamá e Portugal; chefe da delegação brasileira à
Conferência de Paz (Paris, 1 9 4 6 ) ; membro da Academia Brasileira de
Letras.

BENJAMIN F R A N K L I N RAMIZ GALVÃO

(1846-1938 — Rio Grande do Sul)

Dotado de assombrosa capacidade de trabalho e tendo gozado ex-


traordinária longevidade, tornou-se um dos homens mais ilustres do
II Império e da República.

Profundo filólogo e brilhante literato, ocupou cargos de relevo, em


que produziu obras de valor; foi orador perpétuo do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro, diretor da Academia de Altos Estudos; presi-
dente da Comissão dos Festejos do IV Centenário do Descobrimento do
Brasil; diretor da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, catedrático
da Faculdade de Medicina; preceptor dos filhos da Princesa Isabel;
inspetor geral da Instrução do Governo Provisório e na República.

MONSENHOR MANFREDO LEITE (1876)

Religioso de grande formação intelectual, revelou-se desde cedo ora-


dor de sensibilidade e escritor de estilo.

Possui várias obras publicadas, principalmente discursos. É mem-


bro da Academia Paulista de Letras.

BRASÍLIO MACHADO

Brasüio Augusto Machado de Oliveira, Barão de Brasílio Machado,


nasceu em S. Paulo, a 4 de setembro de 1848, nela falecendo a 5 de
março de 1919.

Formou-se pela Faculdade de Direito em 1875. Foi promotor pú-


blico em Piracicaba e Casa Branca. Em 1883 foi nomeado lente de
retórica e filosofia do curso anexo à Faculdade de Direito. Conquistou
bi-ilhantemente cargo de catedrático dessa Faculdade.
204 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

Foi advogado de excepcionais qualidades. Orador de grande brilho,


de notáveis recursos de cultura e dialética; voz dulcíssima, logo absor-
via e empolgava a assistência.

Marcou a época em que viveu.

OCTÁVIO MANGABEIRA

Político, orador eloqüente e jornalista vibrante, nasceu n a Bahia.


Ministro das Relações Exteriores, abandonou o poder após a Revolução
de outubro de 1930. Foi quem, como ministro, determinou o usoi do
português nas relações diplomáticas. Ultimamente, exerceu o cargo de
governador de seu Estado natal.

TOBIAS BARRETO DE MENEZES

Nasceu a 7 de junho de 1839, em Sergipe. Formou-se pela Facul-


dade do Recife, onde pontificou pelo seu grande saber e peia sua vasta
cultura. Talento verdadeiro, revolucionou as altas esferas intelectuais
do País, agitando questões profundas de direito e filosofia. Foi poeta,
crítico literário, compositor musical e orador popular. Morreu em 1889.

FREI FRANCISCO DO M O N T E ALVERNE

Eloqüente orador sacro, nasceu na cidade do Rio de Janeiro em


1784 e morreu em 1858. Chamava-se antes de professar, Francisco
José de Carvalho, e tomou o hábito no convento de Santo Antônio do
Rio de Janeiro, em 1801.

Como orador era perfeito artista dramático. Seus discursos atraíam


sempre numerosa concorrência. Em 1836 cegou, abandonando o púl-
pito, e vivendo recolhido na sua cela. O imperador, em 1854, convidou-o
a pregar o Panegírico de S. Pedro de Alcântara na capela imperial,
que é considerada pelos modernos críticos como a mais vibrante peça
em língua portuguesa.

Seus magníficos sermões e discursos estão reunidos em 4 volumes


(2 tomos). E m 1859 foi publicado também um "Compêndio de Filo-
sofia".

ARMANDO DE SALLES OLIVEIRA

Nascido em São Paulo a 24 de dezembro de 1887, filho de tradi-


cional família paulista.

Formado pela Escola Politécnica; governou o Estado de São Paulo


até o advento do Estado Novo, que o exilou.
DISCURSOS BRASILEIROS 205

Grande democrata, deixou em seus escritos as diretrizes políticas


de seu pensamento.

Fundador da Universidade de São Paulo; introdutor da organiza-


ção racional do trabalho na administração pública.

Faleceu em 17 de maio de 1945.

JOSÉ DE ALCÂNTARA MACHADO DE OLIVEIRA

Nasceu em 1875, na cidade de Piracicaba, filho do glorioso Brasílio


Machado, e neto do general do Império, Machado d'01iveira. Herdou
de seu pai a vocação para o direito, o gosto pelas letras, e o talento
de orador.

Foi o primeiro advogado professor de medicina legal na Faculdade


de Direito. Além de jurisconsulto, interessou-se também por problemas
políticos e históricos: "Vida e morte do bandeirante" é sua grande obra,
que lhe valeu a cadeira na Academia Brasileira de Letras. Faleceu em
1941.

NILO PEÇANHA

Político. Nasceu em Campos, no Estado do Rio, em 1867. Presi-


dente desse Estado em 1903, salientou-se pela sua firmeza e inteligência
de administrador. Eleito vice-presidente da República em 1905, assu-
miu em 1909, por morte do Presidente Afonso Pena, a primeira magis-
tratura da Nação, onde se conservou até 1910. Morreu em 1922.

EPITÁCIO D A SILVA PESSOA

Bacharel em direito, professor da Faculdade de Direito do Recife


e político. Nasceu na Paraíba em 1865. Ministro da Justiça e Negó-
cios Interiores em 1898 e 1901; Senador por seu Estado em 1912, can-
didato à República em 1918; eleito, tomou posse em 1919, cargo que
exerceu até 1922, em que lhe sucedeu o Dr. Arthur Bernardes. Foi
durante a presidência de Epitácio Pessoa que se realizou a Exposição
Internacional ( 1 9 2 2 ) , que obteve grande êxito.

ALFREDO GUSTAVO PUJOL (1865-1930)

Advogado brilhante, jurista e parlamentar da primeira República,


em São Paulo.

Por suas- qualidades literárias tornou-se membro da Academia Bra-


sileira de Letras.
206 ANTOLOGIA D E F A M O S O S

M A N U E L F E R R A Z D E CAMPOS SALLES

Estadista, quarto Presidente da República. Nasceu em Campinas,


em 1841. J á durante o regime monárquico manifestara desassombrada-
mente as suas convicções republicanas. Jornalista e orador eloqüente,
não tardou, depois do advento da República, em adquirir uma situação
política preponderante. Foi Ministro da Justiça, Presidente do Estado
de São Paulo, e, finalmente, sucedeu a Prudente de Morais n a Presi-
dência da República.

O seu governo (1898-1902) assinalou-se pela operação financeira,


chamada "funding-loan" e por u m a administração! econômica e severa,
que restaurou as finanças públicas.

Morreu em 1913.

D. ROMUALDO A N T Ô N I O DE SEIXAS

Marquês de Santa Cruz

Arcebispo da Bahia, nasceu em Cametá, em 1879, e morreu em


1860. Enviado para Portugal, concluiu os seus estudos na Congrega-
ção de S. Felipe Nery.

Publicou um volume de sermões, e inseriu no "Jornal de Coimbra"


o diário de sua viagem do Rio de Janeiro ao Pará, e n a "Revista Tri-
mestral do Instituto Histórico" uma Memória relativa à naturalidade
do padre Antônio Vieira.
Este livro foi composto e impresso para
a Livraria e Editora LOGOS Ltda., na
Gráfica e Editora MINOX Ltda., à Rua
Mazzini n.° 167, em junho de 1960 —

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