Você está na página 1de 8

DOSSIÊ FRANÇA

A comunicação
sem fim (teoria
pós-moderna da
comunicação) C OMUNICAÇÃO É UM TERMO que raro
em pre go, embora reconheça cada vez
mais a sua per ti nên cia. Trata-se da
RESUMO maneira con tem po râ nea, pós-moderna,
Neste artigo Maffesoli ressalta a importância da comunicação de fazer referência ao simbolismo (não
como cimento social e as suas implicações no mundo no sentido simples do termo, simbólico,
contemporâneo. mas na acepção freudiana e lacaniana
de simbolismo). Não seria errado também
ABSTRACT falar em comunicação por referência aos
In this paper the author emphasises the importance of novos pensamentos mís ti cos, caso se
communication as a social cement and its implications to our tome por essencial a idéia de conjunção:
times. a comunicação é que nos liga ao outro.
Para usar o meu vocabulário ha bi tu al,
PALAVRAS-CHAVE (KEY WORDS) a co mu ni ca ção é o que faz reliance
- Imaginário (Imaginary) (re li ga ção). A comunicação é cimento
- Mídia (Media) social.
- Socialidade (Sociality) Talvez eu fale tão pouco de
comunicação porque para mim essa noção
está implícita na socialidade. A comunicação
é a cola do mundo pós-moderno. Dito de
outra forma, a comunicação é uma forma
de reencarnação desse velho simbolismo,
simbolismo arcaico, pelo qual percebemos
que não podemos nos compreender
in di vi du al men te, mas que só podemos
existir e compreendermo-nos na relação
com o outro. Nesse sentido, a idéia de
individualismo não faz muito sentido, pois
cada um está ligado a outro pela mediação
da comunicação. O importante é o primum
relationis, ou seja, o princípio de relação
que me une ao outro.
Qual é o fundamento de tudo
isso? Até agora, na tradição cultural da
modernidade, prevaleceu a lógica de fazer
a História e, de acordo com o imaginário
do século XIX, só se faz História quando
se é capaz e fazer a sua própria história,
Michel Maffesoli na condição e isolamento, por assim
Sorbonne, Paris V/França
dizer, de senhor de si. Ora, na idéia de
comunicação, como na de simbolismo,
há encontro. E só pode haver encontro

Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 20 • abril 2003 • quadrimestral 13


quando se participa de um destino comum. participativo, a partilha, o laço social.
Heidegger concebeu uma bela fórmula para O fato de que essas palavras se
sintetizar tudo isso: “Compreender é vibrar”. imponham, contra os que as utilizam e
As conseqüências epistemológicas, de controlam, é um indício, um sintoma, de
conhecimento, dessa idéia são enormes. algo importante: a prevalência do vivido
Compreender, no sentido etimológico da em relação aos protagonistas do terreno
palavra, significa pegar com, tomar junto, in te lec tu al. Na verdade, os intelectuais
reunir, abordar o mundo na sua totalidade, moralistas e politicamente corretos são
abrir-se aos outros. Essa forma de vibração obrigados a utilizar esses termos, pois o
remete essencialmente à comunicação. A espírito do tempo está na forma comum,
palavra comunicação serve também para impregna esse comportamento relacional e
encarnar o retorno dessa velha idéia que é estabelece um modo de vida. Comunicação
o imaginário, ou seja, o fato de que se vibra e informação descrevem um modus vivendi
com outros, em torno de alguma coisa, seja característico da pós-modernidade. Cabe
qual for essa coisa. empregar tais elementos pertinentes
Não se deve cair em fetiches de descrição do real, mas com astúcia,
conceituais, mas é possível precisar certas subvertendo as palavras, transfigurando a
palavras ou, ao menos, tentar encontrar forma banalizada, superficial, em benefício
termos mais adequados para expressar do sentido profundo, com a convicção de
situações realmente vividas. Comunicação que se algumas fórmulas se disseminam no
e informação são etiquetas em voga. tecido social é por encontrarem substância
Ambas expressam conteúdos importantes no existente. Nesse sentido, elas nunca
da época atual. Caso se dê à palavra são neutras. No caso, exprimem o desejo
informação o seu ver da dei ro sentido de estar com outro, desejo de participação,
etimológico — dar forma —, não haveria de interação e de troca.
diferença entre informação e comunicação. Estabelecida essa linha de
Informar significa ser formado por. Trata- con ti nui da de entre comunicação e
se da forma que forma, a forma formante. informação, nu an ças são possíveis. A
Quer dizer que numa era da informação, comunicação, antes de tudo, remete ao
talvez a de hoje, não se pensa por si estar-junto; à informação, ao utilitário.
mesmo, mas se é pensado, for ma do, O essencial, contudo, reside no oposto,
inserido numa comunidade de destino. Vale na ausência de diferença pro fun da
repetir: a forma é formante. A informação entre informação e comunicação,
também liga, une, junta. contrariando as noções dominantes em
A comunicação põe em relação, cer tos meios e entre muitos dos ditos
pri mum relationis, o que remete para especialistas do tema. Há redundância na
essa sociedade da informação, pela qual expressão informação e comunicação ou
se é formado num mundo comum, onde comunicação e informação. Mesmo que o
o indivíduo só é o que é na relação com termo informação seja instrumentalizado,
outras pessoas. O grande problema é tornando-se alvo de críticas, há todo um
o monopólio das pa la vras informação substrato, uma potência “societal” que
e comunicação pela in te lli gent sia, os força, em de ter mi na do momento, uma
intelectuais hegemônicos, que não presta concepção ou termo a ocupar novamente
atenção ao sentido profundo des ses o centro da cena, o primeiro plano no
termos. Assim, fala-se de informação sem palco das prá ti cas sociais. A potência,
pensar no que significa pôr em forma; e ao contrário do poder que é instituído ou
fala-se de comunicação sem referência à forma de controle, corrói subterraneamente
criação desse destino comum. O essencial as estruturas calcificadas e expressa um
é deixado de lado. Desaparece o elemento modo anárquico do social. Trata-se de uma

14 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 20 • abril 2003 • quadrimestral


resistência permanente. No interior do quadro geral
Mesmo, portanto, que a informação (informação), disseminado por um suporte
seja apropriada e instrumentalizada técnico (jornal, veículo), abrigam-se os
temporariamente, a potência subterrânea imaginários locais. Zero Hora e Correio do
tende a impor a força comunicativa Povo, Tribuna do Norte e A Tarde, entre
(relacional) dessa informação, ou seja, a outros que acompanho em minhas viagens
capacidade de estabelecer comunhão e constantes ao Brasil, articulam o abstrato
partilha de algo entre indivíduos e grupos. (informação global) com o substantivo (o
Como se diz no jargão da sociologia vivido local). Aniversários, casamentos,
da comunicação, a emis são não pode fofocas de celebridades, mas também de
controlar efetivamente a recepção. notáveis locais, seções chamadas “Gente”
A instrumentalização da in for ma ção e tantas outras desse gênero, continuam
aconteceria se essa informação fosse total, a conviver com o pretenso racionalismo
global, capaz de dar nova substância ao utilitário da informação.
velho fantasma do universalismo. Ora, na Por mais que isso horrorize os críticos
prática, a informação só consegue unir politicamente corretos, as pessoas não
mi cro gru pos, microcosmos, universos que rem só informação na mídia, mas
segmentados. também e fundamentalmente ver-se, ouvir-
No Brasil, muito mais ainda que na se, participar, contar o próprio cotidiano
França, os jornais (informação) seduzem para si mesmas e para aqueles com quem
microgrupos. Primeiro são jornais regionais. convivem. A informação serve de cimento
Mesmo os de alcance nacional, como Folha social. Mais do que saber se Bush vai ou
de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo não invadir o Iraque, um leitor, um ouvinte,
e Jornal do Brasil, conservam marcas de um telespectador distante da área desse
inserção regional muito fortes. O Jornal do conflito quer saber, com freqüência, de
Brasil e O Globo encarnam, até certo ponto, coisas muito menos sérias, mas não menos
um espírito carioca. Folha de S. Paulo e O importantes para a coesão social. Os
Estado de São Paulo expressam, como se jornalistas gostam de imaginar o contrário
diz, principalmente os interesses paulistas e de ver-se como protagonistas de grandes
ou, ao menos, um modo de ver, um estilo aventuras. O leitor está louco para saber o
dito paulista. Depois, dentro de cada jornal, final da novela ou como foi tal festa num
as diferentes seções conquistam públicos clube da moda. A sociedade da informação,
específicos. Raramente a in for ma ção portanto, pode até fazer crer que o mais
alcança todos ao mesmo tempo. Quase importante são os seus jornais, televisões
nunca ela é universal. Esse é um mito do e rádios, mas no fundo o que conta é
jornalismo ocidental. a partilha cotidiana e segmentada de
No fundo, o leitor interessa-se pelo emoções e de pequenos acontecimentos.
que lhe diz respeito. Não por acaso, Mesmo na internet o aspecto interativo
sur gem cadernos de bairro, edições predomina sobre o utilitário. De alguma
regionais de revistas nacionais e coberturas forma, o mais interessante é o grau zero da
mais intensas das ações de figuras locais. informação.
Numa Olimpíada, cada jornal quer cobrir Nisso tudo, claro, há informação. No
os feitos do “herói” local. Para além das entanto, o essencial está em reconhecer-
qualidades esportivas do competidor, se, em ver-se, em fazer parte de uma
a sua principal qualidade é a de ser o co mu ni da de presencial ou virtual. Há
representante de uma cidade, de um país, sempre muito de espetáculo e de fait divers
de uma comunidade, de uma aldeia. Mais na informação. Na França, relativizados
do que ver a gente quer se ver na tevê. os jornais nacionais, Le Figaro, Le
Todo mundo sabe disso. Monde, Libération, etc., vê-se a mesma

Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 20 • abril 2003 • quadrimestral 15


coisa. Em jornais como Midi Libre, Les referência, um elemento de identificação,
Dernières Nouvelles dʼAlsace, etc., o um totem em torno do qual comungam
que realmente importa são as pá gi nas esses ho mos se xu ais. No caso, há
regionais. Interessante é que essas segmentação, mas o fator de relação
páginas entram num sanduíche, entre a entre os integrantes desse público-alvo e o
capa e a contracapa dedicadas aos temas veículo é de ordem emocional.
mundiais. Na primeira página aparecem Os cursos de Comunicação, em
as grandes manchetes internacionais. Na países como o Brasil, são importantes,
última, especialistas comentam os assuntos entre ou tras coisas, pelo fato que
da primeira. O nível de leitura de ambas permitem uma re fle xão diferenciada e
é ínfimo. Não são lidas. Num sanduíche, prospectiva sobre um tema que em outros
como se sabe, o que realmente alimenta departamentos está comprometido pelos
está dentro, entre duas camadas menos vícios da ideologia e da obsessão política.
nutritivas. Nas parte de fora; predomina Em lógica, quando se observa que uma
a obsessão política; dentro, tudo aquilo determinada forma ganha importância,
que faz a vida de todos os dias e de essa forma tem uma lógica de modalidade.
todas as pessoas. Nisso, evidentemente, A modalidade é uma espécie de pequeno
há informação no sen ti do etimológico afastamento em relação a uma forma geral.
já indicado aqui. O público absorve, do Mas ela só existe na relação com essa
conjunto das informações, aqui lo que forma geral. Comunicação e informação
faz vibrar e estabelece co mu ni da de. A não passam de modalidades de uma
informação é qualificada em função da sua mesma forma global, a da relação, do
capacidade de gerar proxemia. estar-junto, do contato social. A partir daí
A comunicação é cada vez mais são possíveis muitos tipos de pesquisa de
segmentada, dirigida a um público-alvo. De campo dando conta dos vários aspectos
qualquer maneira, os interessados, ainda e das várias práticas em torno do par
que teorizem sobre isso, não possuem comunicação/informação.
os instrumentos teóricos para pensar os Novas palavras surgem para rotular
seus alvos. Conseguem esboçá-los para velhas práticas ou velhas palavras são
oferecer produtos, mas não percebem que ressignificadas para caracterizar a nova
algo escapa, justamente a dimensão pós- força de práticas sempre existentes.
moderna do fenômeno, o aspecto tribal. A Co mu ni ca ção e informação dão nova
informação e a comunicação, no sentido potência a um dos mais sólidos arcaísmos:
da partilha de emoções e de sentimentos, estar em relação. Mesmo se agora se trata
só podem dirigir-se a tribos que comungam de relações mediadas tecnologicamente.
em torno de um totem. A comunicação, As ditas ciências da comunicação e da
portanto, é forma contemporânea de informação têm dificuldade para pensar
exprimir essa ve lha forma arquetípica o mundo sensível e compreender essa
de comunhão em tor no de um totem. vibração em comum. Prefere-se então
Em qualquer forma de co mu ni ca ção e focalizar coisas apa ren te men te mais
de informação há essa possibilidade de objetivas, deixando-se de lado o cerne da
criação, em dado momento, de um totem, questão: o que comunicar quer dizer? Estar
seja pelas lembranças de família, pelo junto, estar em relação, estar em vibração
desejo de criação de um grupo a partir comum.
de um elemento comum, por exemplo, Continua a existir uma imensa
a identificação sexual. Existem jornais di fi cul da de de pensar sensitivamente,
dirigidos à comunidade homossexual que, incluindo a parte sensível da vida. A vida
para além das informações veiculadas, social ba seia-se quase inteiramente
oferecem um ponto de encontro, uma na atração e na repulsão. Vibra-se em

16 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 20 • abril 2003 • quadrimestral


comunicação com al guns, obtendo-se vivências de pequenas comunidades.
também nesse processo informações, e Nisso tudo, entram motivações utilitárias,
não com outros. As relações de empatia práticas, intelectuais, mas também lúdicas,
são decisivas na estruturação do tecido oníricas, que se esgotam em si mesmas.
social. Essa vibração — real, presencial, A comunicação pode ser, como nas
fantasiosa ou virtual — ultrapassa qualquer conversas sem razão de ser de todo dia,
conteúdo, pois, antes de tudo, é forma. um ato em si: conversar por conversar,
A informação é também modalidade do para estar junto, para passar o tempo, para
continente. Na verdade, a complexidade dividir um sentimento, uma emoção, um
dos fenômenos sociais exige uma leitura momento, um pequeno nada de cada dia.
capaz de integrar o contraditorial. Cidades Comunicar por comunicar.
como México ou São Paulo parecem A informação pode até ser vista como
inabitáveis. Em princípio, não daria para uma astúcia da comunicação. A pessoa olha
viver nelas. No entanto, há muita vida nelas. um telejornal, em princípio para informar-
Pode-se sentir medo e concluir que não se, mas, em realidade, toma-o como um
pode dar certo. Contudo, com suas lógicas espetáculo, um divertimento, um jogo de
próprias, há vida, atração e mesmo paixão imagens. Depois, comenta os assuntos com
por essas cidades. Elas permanecem amigos. A informação talvez nada tenha
lu ga res de encontro e de convivência. mudado em sua vida ou não tenha tido,
Isso tudo ultrapassa o terreno das idéias e para essa pessoa, nenhum valor efetivo,
mostra-se como tal: expressões concretas operacional, mas serviu de elo, de motivo
da comunicação. para estar com outro, de assunto, de laço
A comunicação e a informação social. A maneira pela qual se lê um livro,
dão nova substância a essa função como se aprende nas escolas, subentende
comunitária, contra ou em paralelo ao que uma linearidade, uma continuidade e até
dizem os teóricos da comunicação mais mesmo notas e reflexões. Na prática, as
convencionais, ou seja, os que denunciam leituras são fragmentadoras, aos saltos,
constantemente o caráter anti-social da seletivas. Conta mesmo é descobrir, no
mídia. Para além de uma opinião pública conjunto, uma idéia sedutora, algo que faça
que a informação deve atingir, as teorias da sonhar, refletir, questionar-se. O fato de ter
comunicação nem sempre têm a coragem começado a sonhar a partir de uma frase
de estudar e de considerar as emoções (mesmo se as páginas anterior e posterior
suscitadas. O gosto atual, intenso, pelas não me chamaram a atenção) me põe em
imagens pode levar a estabelecer o relação com outros sonhos. Cria-se uma
laço entre comunicação, in for ma ção e comunidade de espírito.
imaginário. Vale tentar: o imaginário é a O mesmo vale para o universo da
partilha, com outros, de um pe da ci nho mídia. Os jornais, as emissoras de rádio, a
do mundo. A imagem não passa disso: televisão, internet, todos fornecem torrentes
um fragmento do mundo. A informação de material, mas cada um absorve algo, um
ser ve, então, para fornecer elementos fragmento que faz sonhar, estabelecendo-
de or ga ni za ção do puzzle de imagens se uma comunidade espiritual, um grupo
dispersas. Assim, as tribos de cada cultura, virtual de afinidades. Certas cenas tocam
partilhando pequenas emoções e imagens, o coração, atingem o estômago, provocam
organizam um discurso dentro do grande reação. Essa vibração, mais uma vez, cria
mosaico mundial. comunidade. Como se sabe, os programas
Nesse sentido, o universalismo cede de televisão fornecem (agendam) os
lugar às apropriações particulares do global. assuntos da manhã seguinte nos pátios
As teorias e idéias são redimensionadas das escolas, nos escritórios e por toda
pelo concreto da vida cotidiana, pelas parte. Cada um poderá dizer o que bem

Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 20 • abril 2003 • quadrimestral 17


entender, fazer comentários contra ou a lado da angústia da morte, que obceca,
favor. Apenas os assuntos estão sugeridos. cria-se comunidade e vida fértil. Essa
No dia seguinte, serão outros. concepção leva a sair da idéia de história
Mesmo no jornal Le Monde, talvez o linear da qual cada um seria o condutor e
mais sério e intelectualizado da imprensa a entrar na noção espiralada de pequenos
francesa, a seção mais lida é a dos passos, sujeitos a recuo ou a desvio, dados
necrológios. Por quê? No fundo, por uma em conjunto, em associação com outros. A
razão simples: estar em dia com o fluxo comunicação é divertimento, pois permite
da vida. À mesa, o assunto será “fulano constituir as comunidades que fertilizam a
morreu”. Ainda mais que num jornal como vida e fazem esquecer provisoriamente a
Le Monde são publicadas as notícias de morte.
morte de pessoas que integram um certo Existem coisas que não podem ser
círculo social, por exemplo, os intelectuais, di tas e outras que suscitam discursos
os políticos, os professores universitários, repetitivos, grandiloqüentes e vazios. Em
etc. É verdade que muitos intelectuais lêem relação à comunicação, conforme uma
isso quase em segredo, como se fosse herança iluminista, é preciso sempre falar
pornográfico. Só que tem lógica nisso. em educar o povo, formar os espíritos, dar
Trata-se de espiar pela fechadura, colocar cultura a todos, forjar verdadeiros cidadãos
o nariz na vida, sujar as mãos. Conclusão: e por aí afora. Disfarça-se o divertimento, o
mesmo os veículos mais universalistas e entretenimento, com uma série de nomes e
os atores sociais mais interessados numa de causas grandiosas. Nada mais do que
lógica abstrata, em tese, não resistem ao racionalizações. Hoje, embora o termo seja
concreto da existência. Di an te de uma um tanto pomposo, deve-se “desconstruir”
notícia de morte, haverá quem chore, quem os mitos da teoria crítica da comunicação.
se alegre com o desaparecimento de um À maneira de Nietzsche, cabe “suspeitar”
inimigo, quem se surpreenda. das categorias que integram a comunicação
Para que serve, então, a a uma visão iluminista, progressista, linear,
comunicação? Tradicionalmente, as pedagógica e simplesmente utilitária.
chamadas funções da comunicação Pesquisar, refletir, estudar, tudo isso
estabelecem uma hierarquia que vai da implica a coragem e a liberdade de espírito
informação à distração, pas san do pela para questionar as verdades dominantes.
formação, pela educação, pela prestação Comunicação é divertimento, inclusive
de serviços ao público e outras categorias no que se refere, muitas vezes, ao sério
“nobres”. Mesmo correndo o ris co de leitor do jornal Le Monde que espia os
provocar escândalo, ou de ser perverso, necrológios e sente-se contente por não
cabe dizer que a principal função da ser ele o morto. Claro que existem outros
comunicação é divertir, distrair, entreter. aspectos. Porém não há razão suficiente
Nisso, contudo, nada entra de pejorativo. para torná-los mais importantes do
Quan do se fala em entretenimento, de que o entretenimento. Pode haver uma
maneira geral, pensa-se em subcultura, em caricatura nisso, mas não mais do que
consumidores inconscientes, manipulados na transformação da comunicação em
e acríticos. No sentido pascaliano do termo, professor universal, em formador das boas
divertimento significa aquilo que se opõe à consciências e um pastor das boas almas.
angústia da morte. O jansenista e moralista Fenômenos de mídia, como Big
Pascal, vale lembrar, é o fundamento maior Bro ther, remetem ao mesmo tipo de
dos pensadores modernos. análise. Na França, os intelectuais disseram
Divertir-se significa pôr a morte de milhões de bobagens contra o que seria
lado. Pascal diz que o divertimento tem mais uma forma de imbecilizar o povo.
também uma função ética. Ao passar ao Combateu-se a “telerrealidade” como se ela

18 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 20 • abril 2003 • quadrimestral


não nos encarnasse, não nos mostrasse projeção, é o que os moralistas, sempre
em nossas atitudes ridículas e obsessivas. prontos a dar lições, gostariam de fazer,
Os jovens olharam esse programa, não ou seja, controlar uma emissão poderosa e
necessariamente querendo estar lá, pois eficaz, apta a surtir efeito seguro sobre uma
havia algo de prisão naquilo tudo, mas recepção passiva. Felizmente o mundo não
mobilizados seja por um processo de funciona assim. O jornalista tornou-se o
vacinação, seja por uma atração mesclada principal herdeiro dessa visão de mundo
com repúdio. Ou simplesmente fascinados. que enfatiza o poder da emissão.
Na palavra divertimento há sempre Num artigo publicado no Figaro, sob
uma dimensão judicativa: não é bom. o título de “O tempo do desprezo”, refleti
O jul ga men to, dito crítico, marxista, sobre o que aconteceu na França em 21 de
ne o mar xis ta, coisas desse tipo, insiste abril de 2002, quando, no primeiro turno das
sobre o tema da alienação. Divertir seria eleições presidenciais, o primeiro-ministro
uma forma de imbecilizar as pessoas Lionel Jospin, para surpresa geral, mesmo
para dominá-las. Certas palavras, como das pesquisas de opinião, perdeu a vaga
alienação, estão fora de moda, mas a no segundo turno para a extrema direita
idéia persiste. Em A Conquista do presente, de Jean-Marie Le Pen. Jospin sempre
abordei o que continua sendo minha idéia fez o papel do puritano, do jansenista, do
fundamental: a astúcia. Faz de conta que... dono da verdade. A catástrofe consistia em
Como se... Já Schopenhauer trata dessa descobrir que o povo não compreendeu
habilidade de fazer com que uma parte de o bem que Jospin podia fazer por ele.
si mesmo se comporte como tendo aderido Longe de mim a idéia de apoiar Le Pen,
a algo enquanto outra parte resiste. mas, de qualquer maneira, havia algo
O analista “crítico” só enxerga a interessante na atitude do eleitor — esse
manipulação e alienação onde há também eleitor considerado incapaz de surpresas,
resistência e reserva silenciosa. Às vezes, manipulado, domesticado e morno —, uma
o indivíduo simula uma adesão ou não espécie de piada de mau gosto, remetendo
mostra interesse em opor-se a algo, mas ao se gun do turno o sujeito grosseiro,
no seu ín ti mo permanece refratário ou reacionário, caricatural, bufão... Na medida
inalcançável. Pode-se não gostar de algo, em que havia um segundo turno, logo uma
mas se preferir, para não provocar choques possibilidade de evitar a eleição de Le Pen,
de opinião, guardar um silêncio respeitoso o gesto funcionou como um tapa na cara
e polido. Na vida social, com freqüência, as dos políticos, uma reserva, perigosa, claro,
pessoas fazem de conta que são alienadas, de atitude da população contra a crescente
embora, no íntimo, permaneçam atentas, au sên cia de distinção entre direita e
reservadas, desconfiadas. Isso é válido esquerda.
para todos, inclusive para as pessoas mais Houve nisso uma astúcia do povo.
simples. Tra ta-se de uma postura, não Afo ra os eleitores de fato de extrema
necessariamente consciente, racionalizada direita, aconteceu uma utilização de Le
ou refletida. Pen pelo povo, sem qualquer adesão às
As críticas da mídia baseadas na suas idéias racistas e xenófobas, para dar
te o ria da manipulação não percebem um susto nas elites políticas pretensiosas
esse dis tan ci a men to, essa resistência e ar ro gan tes. Contra as metralhadoras
passiva, essa astúcia do popular contra as da mídia, que nunca pararam de falar do
intenções do poder. Os fins quase nunca bom senso e do equilíbrio, os eleitores
são atingidos através do conteúdo. As per mi ti ram-se exprimir, emocional e
mensagens políticas recorrem cada vez perigosamente, mas no limite, a cólera
mais à forma, à publicidade, para terem acumulada ao longo dos anos. Essa atitude
eficácia. A manipulação, no fundo, é uma é semelhante à do garoto que, saturado

Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 20 • abril 2003 • quadrimestral 19


dos discursos e dos sermões do professor, significa tomar o controle, administrar
faz uma grande besteira, com a qual ra ci o nal men te o mundo, passar da
não concorda, da qual tem consciência, contemplação à ação. É mais complicado: a
mas que lhe permite mostrar autonomia. realidade não se resume à realidade. Existe
Dado que não pode impor a sua vontade, algo que se pode chamar de surrealismo,
manifesta-se ruidosamente. Situação típica. de sobre-realidade. Em outras palavras,
Histórica. existe ação na contemplação, resistência
Há no povo uma vitalidade que na passividade, astúcia na reserva, um
escapa às teorias elitistas e abstratas. É estilo de vida na negociação com o que é.
isso que permite compreender como um Debord ainda estava na lógica do dever-
candidato de esquerda ganha uma eleição ser. A comunicação, hoje ainda mais,
depois que seu partido e seus militantes funciona no registro do aqui e agora.
sempre dis se ram que a mídia não o Isso não impede nenhuma
permitiria jamais. A população, mesmo transformação do mundo, mas desconfia
as pessoas mais simples, não é passiva de todos os projetos totalizantes de
e inventa formas de resistência contra as transformação do mundo. A comunicação
tentativas de ma ni pu la ção. É um jogo. é sempre fragmentada, negociada, jogada,
Perde-se e ganha-se. A teoria crítica julga investida de emoções e de sentimentos,
que a publicidade e a mídia enganam os articulada entre partes que ora se opõem,
seus destinatários. Estes, pontualmente, ora se com ple men tam. Reduzi-la à
resistem, deformam, desviam as manipulação significa excluir a maior parte
mensagens. do fenômeno do campo da reflexão e da
Guy Debord, em A Sociedade do pesquisa .
es pe tá cu lo, considerou a comunicação, Nota
em termos de mídia, como contemplação,
na medida em que o telespectador viveria * Reflexão concebida dialogicamente, a partir de
por procuração, graças a outros, graças proposições baseadas na obra de Michel Maffesoli, por
às ce le bri da des que encarnariam os Juremir Machado da Silva, que também traduziu o texto.
seus sonhos. Essa é uma posição agora
insustentável. De certa maneira, Jean
Baudrillard também se en con tra nesse
universo de análise. Há uma herança
marxista que aproxima os dois. Baudrillard
é brilhante. Debord, cuja importância foi
indiscutível, enraizou-se mais pela forma
que pelo conteúdo. Baudrillard e Debord
escrevem de uma forma que força a refletir.
São agudos, provocativos, polêmicos.
Ora, Debord, contra o conformismo
lógico atual, fustigou o pensamento da sua
época. Levou a crítica da contemplação,
numa lógica hegeliano-marxista, às
últimas conseqüências. No entender dele,
haveria uma realidade tangível, positiva,
positivista, passível de controle. Caberia
ser senhor da sua vida. Pierre Bourdieu
pensava da mesma forma. Debord buscou
esse domínio da própria vida até o suicídio.
Numa perspectiva social, contudo, isso

20 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 20 • abril 2003 • quadrimestral

Você também pode gostar