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CAPÍTULO IV.

SISTEMAS ABSTRATOS E TRANSFORMAÇÃO DA INTIMIDADE

Anthony Giddens concebe a modernidade enquanto uma máquina - o carro de Jagrená


- sobre a qual não possuímos um controle absoluto e, consequentemente, não somos capazes
de obter uma sensação plena de segurança. Mas é um período que traz também novos arranjos
e possibilidades. Os aspectos que compõem esse cenário e suas consequências têm impactado
de forma significativa as relações de cunho intimo e pessoal, havendo uma alteração nessas
interações. O autor pretende dar conta, nesse capítulo, das relações entre as consequências da
modernidade, mais especificamente os sistemas abstratos, e a intimidade.
A confiança básica é oriunda da confiança pessoal, que necessita da confiança nos
outros. Essa confiança nas pessoas, como nos mostrou Giddens, é de extrema importância
para a confiança pessoal, pois estabelece de um “sentimento de integridade e autenticidade do
eu”. Esse tipo de relação, na qual se estabelece uma mutualidade, não é algo presente nos
sistemas abstratos, apesar destes produzirem uma segurança na vida cotidiana. Os sistemas
abstratos estão associados a aspectos impessoais no que diz respeito a confiança que
mobilizam.
Nesse sentido, é possível perceber que o novo cenário, com contextos de confiança
modificados, tem impactado amplamente as relações de intimidade pessoal e sexual. De
acordo com o autor, os sistemas abstratos estão diretamente ligados às dimensões intimas da
vida dos sujeitos e essa conexão se acentuou a partir da segunda metade do século passado,
com a intensificação da globalização. Nesse contexto, as formas de vida foram reorganizadas
em conjunto com outras transformações sociais e as rotinas, que são estruturadas pelos
sistemas abstratos, apresentam-se de forma vazia e com ausência de moral. Essas questões
têm implicações sobre a confiança pessoal e o novo cenário se torna de extrema importância
para se pensar as transformações da intimidade no século XX.
Com a modernidade, a confiança pessoal se modifica e passa a ser um projeto, ou seja,
ao invés de dada previamente, ela precisa ser trabalhada por aqueles que integram a relação e
necessita de uma abertura de ambos. É preciso ganhar a confiança que fundamenta nossos
relacionamentos e, o processo para adquiri-la demanda uma auto-revelação mútua.
Os envolvimentos eróticos, para Giddens, são o âmago da auto-revelação e o
surgimento do amor romântico é visto como um processo de transição das formas pré-
modernas às formas modernas de relação erótica, numa fase ainda inicial, não estando
associado propriamente à emergência das instituições modernas. Esses tipos de envolvimento
trazem consigo um processo de descoberta mútua que vai progredindo, além de envolver um
processo de auto-revelação que faz parte tanto da própria experiência quanto do crescimento
da intimidade entre os envolvidos. A confiança pessoal é estabelecida através do
autoquestionamento, estando o ato de se auto descobrir intimamente relacionado a
reflexividade da modernidade.
Ao tratar da intimidade e a sua relação dialética com a impessoalidade, Giddens
afirma que não se pode dizer que no mundo moderno, a impessoalidade substitui a
pessoalidade. Houve, ao contrário, uma alteração dessas relações, uma intersecção entre a
confiança pessoal e os laços impessoais. O autor explica que, em contextos pré-modernos, as
relações no cotidiano, estavam baseadas numa dimensão familiar oriunda daquele lugar
específico. Com a emergência da “transformação da intimidade”, consequência do surgimento
e difusão dos mecanismos de desencaixe e modificação dos ambientes de confiança, essas
relações e as formas com as quais elas se “concretizam”, se modificam.
A modernidade traz consigo um aspecto “deslocador”, mas, em contrapartida,
possibilita uma reestruturação, ou nas palavras do autor, uma alteração no tecido da vivência
social. Nessa alteração, são “associados” o distante e o próximo, estando, nesse processo,
presente a relação entre estranhamento e familiaridade. Assim, relações intimas podem ser
mantidas a longas distancias e laços pessoais são constituídos com sujeitos que antes eram
desconhecidos e localizados até mesmo do outro lado do mundo. Os sistemas abstratos são de
suma importância nesse sentido, pois propiciam as possibilidades para que as relações
ocorram e se mantenham.
O correlativo do deslocamento é o reencaixe. Os mecanismos de desencaixe
tiram as relações sociais e as trocas de informação de contextos espaço-
temporais específicos, mas ao mesmo tempo propiciam novas oportunidades
para sua reinserção.

Giddens afirma que, nessas relações a confiança é ambivalente. Os agentes tem em


vista a possibilidade de separação, pois esses laços podem ser rompidos e voltar a dimensão
do impessoal. A confiança pressupõe uma abertura, através do estabelecimento da ideia de
que nada deve ocultado do outro, misturando a renovação da confiança e ansiedade. A
confiança, de acordo com o autor, vai exigir auto-entendimento e auto-expressão, fontes de
tensão psicológica. Além da auto-revelação, os sujeitos necessitam de reciprocidade e apoio
que, em conjunto, são incompatíveis. Assim, tormento e frustação vão se associar com a
necessidade de confiança como provedor de cuidados e apoio.
A perícia também tem impactado de maneira importante, já que se configura como
parte da intimidade e isso é evidenciado pela gama de livros, programas de televisão e
terapias direcionados aos relacionamentos. Segundo o autor, isso não significa que a vida e as
decisões pessoais estejam subordinadas a perícia técnica, como afirmou Habermas, primeiro
porque as mudanças na natureza da vida cotidiana também afetam os mecanismos de
desencaixe e, segundo, em razão da constante reapropriação da perícia pelos leigos no seu
contato diário com os sistemas abstratos. Tornar-se perito é algo que só pode ocorrer em
relação a uma parcela muito pequena de alguma área do conhecimento; ninguém pode se
tornar perito em tudo. Mas é necessário que se tenha um conhecimento mínimo para poder
interagir com os sistemas abstratos.
Giddens elenca, então, os elementos envolvidos na transformação da intimidade. Para
o autor, existe uma relação intima entre as tendências globalizantes da modernidade e eventos
localizados do dia-a-dia dos sujeitos, a já mencionada tensão entre o global e o local. O
projeto reflexivo do eu também é importante, por ser parte da reflexividade da modernidade,
faz com que o individuo busque sua identidade entre estratégias e possibilidades
proporcionadas pelos sistemas abstratos. A auto-realização se fundamenta na confiança
básica e, deve ser buscada a partir de uma abertura do eu para o outro e o estabelecimento de
uma revelação mútua, que vai orientar os laços pessoais e eróticos. A auto-satisfação se torna
importante, pois vai ser um elemento não só para defesa em relação ao mundo externo, mas
também um apoderamento de aspectos possibilitados pelas tendências globalizantes, aspectos
esses que impactam a vivência rotineira dos sujeitos.
Em suma, é possível evidenciar que a ligação dos sistemas abstratos e a transformação
da intimidade não se dá pela substituição de laços impessoais, característico desses sistemas,
mas resulta na emergência de novas formas de relações, que interagem com esses sistemas
cotidianamente, e de novas “formas” de confiança, alicerçadas em mecanismos distintos: a
confiança deve ser construída, trabalhada. Além disso, os sistemas especializados/peritos
impactam na medida em que produzem conhecimento acerca dos relacionamentos e, com
isso, influem na forma como eles acontecem e se mantêm. Os relacionamentos se constituem,
também, de forma reflexiva.

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