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T exto ou pretexto

J . Guinsburg

O
surto do chamado “teatro do diretor” nos respeito por cânones previamente estabelecidos,
últimos anos valorizou sobremaneira a mas por suas virtudes cênicas, pela poesia de
invenção cênica como tal e a sua qualifica- imagem e palavra em maior ou menor propor-
ção estética, que, se de uma parte apresen- ção uma em relação à outra e pela força trágica,
tou, a partir do século XIX e principal- cômica ou tragicômica da exposição dramática.
mente com a definição do estatuto artístico do Isto posto, compreende-se que não há por
encenador, uma crescente objetivação e visibili- que impugnar, em princípio, o uso que o in-
dade crítica e pública, de outra parte, só mais ventor teatral possa fazer do legado dramatúr-
recentemente configurou-se como uma tendên- gico consagrado com o direito de permanência
cia marcante do teatro contemporâneo. clássica, ou de quaisquer outros escritos moder-
Como toda corrente que adquire direito nos ou antigos, provenientes ou não da litera-
de cidadania na arte, esta também se distingue tura dramática propriamente dita. Os acervos
por uma presença específica de realizações sin- da épica e da lírica, por exemplo, no plano da
gulares e representativas de seu modo de ser, norma culta ou popular, são provedores tão le-
cujo arrolamento e exame não cabe empreen- gítimos quanto as obras assinadas pelos mais re-
der aqui, já por sua riqueza e sua amplitude, as conhecidos gênios da locução dramatúrgica e da
quais exigiriam de uma análise mais cuidadosa imaginação encenante. Se Mnouchkine fez do
um longo acompanhamento histórico e exame relato histórico da Revolução Francesa, se Peter
crítico. Entretanto, ainda como toda corrente Brook fez do relato lendário do Mahabarata
desta natureza, este tipo de criação dramática védico e se Antunes Filho fez do relato mítico
encerra, dentre numerosas e felizes soluções, al- do Gilgamesh babilônico o que cada um deles
guns problemas que colocam em xeque não só fez, produzindo alguns dos maiores e mais
a concepção tradicional de dramaturgia, como marcantes espetáculos de nosso tempo, é evi-
o próprio texto no teatro. dente que só se poderia pôr em questão a pro-
Não há a menor dúvida de que no teatro cedência formal de seus materiais por um espí-
tudo é válido, desde que a resultante dos esfor- rito tacanho de dogmatismo estético.
ços criadores ofereça ao seu destinatário, a pla- De modo que, nas linhas que nortearam
téia, qualquer que seja ela, uma obra convin- a presente reflexão, não há lugar para as conhe-
cente, não por qualquer “fidelidade” literária ou cidas acusações com respeito à indiscriminação

J. Guinsburg é professor emérito do Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP.

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sala preta

com que os diretores buscam atualmente os também contidos na peça shakespeariana, mas
componentes textuais de suas obras no palco. aí eles estão dominados pelo vetor trágico e não
Fala-se em falta de critérios, em manipulação são dominantes. Um outro caso que é possível
arbitrária e em destruição do teatro de repertó- trazer à baila é o do repertório tchekhoviano.
rio tout court. E como resposta propugna-se até Uma tendência que vem caracterizando as suas
a volta pura e simples à fidelidade estrita à letra. montagens mais recentes em nossos palcos é o
Uma outra proposta é a do livre uso das peças de expungi-lo de sua marcação psicológica, não
mais renomadas e de eficácia cênica comprova- tanto no plano das máscaras individuais, quan-
da. Esta, aliás, é uma das que têm recebido a me- to no da “atmosfera” que as envolve. Ora, tal
lhor acolhida, mesmo porque não há homem procedimento oferece o benefício de dinamizar
de teatro, ator, encenador ou dramaturgista, que a ação e mesmo de precipitá-la por sua incor-
não queira pôr-se à prova em um confronto di- poração física imediata nos caracteres, porém
reto com um Shakespeare, um Calderon, um atinge na medula o tempo existencial que o au-
Sófocles ou um Tchekhov. Tal desafio faz parte tor suscitou a fim de consumir-lhes o sentido
da própria natureza da arte do comediante e de de suas vidas.
sua explicitação cênica nas grandes máscaras do Vê-se que, por deliberação ou como sub-
drama e da comédia. produto, a natureza da dramaticidade articula-
Mas é justamente aí que aparece um pro- da na obra e a própria organicidade de sua cons-
blema difícil de resolver e muitas vezes um trução teatral ficariam por este viés, nos autores
impasse. Até onde a criatividade e a teatralida- acima citados, gravemente atingidas e mesmo
de podem dispor a seu bel-prazer, segundo di- aniquiladas. Isto significa que o uso do texto, e
tames intrínsecos exclusivamente ao seu próprio sobretudo de um texto carregado pelo consen-
estro, das estruturas e valores de composições e so de validade estética em função de um deter-
de personagens concebidos, construídos e fir- minado perfil, não pode servir como um mero
mados de um modo definido, se não definiti- pretexto para a invenção cênica, mesmo que
vo? Quando se retira uma peripécia de menor bem sucedida. Ou melhor, nesta hipótese, o in-
importância ou uma figura secundária, que po- ventor do novo script deve assumir plenamente
dem até ter uma bela expressão no escrito canô- a sua autoria e responsabilidade, e não deferi-la,
nico, a economia geral da peça pode não ser afe- com um simples rótulo de “adaptação”, ao ori-
tada. Ou então, quando se altera o ritmo de ginal e ao seu criador. Meierhold percebeu mui-
algumas ações, ou se modificam determinadas to bem esse limite ético e artístico quando em
relações de força, ou ainda a interpretação de sua hoje lendária encenação de O Inspetor Ge-
certas características sem interferir na proposta ral, de Gógol, atribuiu a si próprio o conjunto
básica, as variações e os recortes podem até ser da versão que estava pondo no palco e no qual
benéficos para os efeitos dramáticos visados. realizou um extraordinário trabalho de refor-
Mas, como julgar uma intervenção que, por mulação intrínseca da peça, segundo propósi-
exemplo e para fins de argumentação, trans- tos específicos da sua mise en scène voltada para
mute o caráter trágico do Rei Lear em uma fei- o grotesco, com materiais do próprio novelista
ção puramente cômica ou desbragadamente de Almas Mortas.
melodramática? É claro que estes traços estão

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