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Coluna

ELAS
A

NO FRONT
Roteiros previsíveis: racismo e justiçamentos no Brasil
Por Ana Flauzina e Thula Pires

O mote Aprendemos com o então candidato à Presidên-


cia da República que a violência não é algo que
14 de março de 2018. Treze disparos. se controle. Ela se expande para fora da caixa
Duas vidas. dos que a manipulam e resulta em queimaduras,
Marielle Franco e Anderson Silva são já que é fogo que se alastra a esmo. O destino do
executados dentro de um carro no metalúrgico que ousou inspirar as massas ensi-
Estácio. na que o ostracismo é destino certeiro dos gru-
Os três tiros na cabeça da vereadora pos que perdem as disputas políticas para/da
sepultam muitos sonhos. branquitude. O exílio forçado, para dentro das
O racismo, uma vez mais, assina seu grades ou no estrangeiro, é a sentença dos que
protagonismo na história. não pactuam. A preta ponta firme das denúncias
incansáveis nos lembra que a morte segue sendo
7 de abril de 2018. Prisão. a parceira dileta da negritude, sentenciando de
Luis Ignácio Lula da Silva se entrega forma irreversível os/as que com bandeiras em
à Polícia Federal em São Bernardo riste ou não, trafegam pelas ruas com a letra es-
do Campo. carlate da pele escura.
Confisca-se, junto com a liberdade
do ex-presidente, a esperança dos A síntese do ano é clara: os brancos pade-
que apostaram no projeto. cem suas agonias em vida, aos negros, cabe a
rotina dos cemitérios.
6 de setembro de 2018. Atentado.
Jair Bolsonaro é esfaqueado no A crítica
abdômen em Juiz de Fora.
A hemorragia que ameaça a A leitura dos episódios que compõe a nove-
vida do candidato é estancada la chamada Brasil nos remete à atuação de inú-
pelas preces dos que vestem meras personagens. No atual contexto político,
verde e amarelo. além dos/as protagonistas naturais, nos parece
O discurso de ódio atinge seus importante destacar a atuação de um aparente
enunciadores. coadjuvante. Sérgio Moro, principal juiz da lava
jato e atual Ministro da Justiça, é um símbolo de
O roteiro extrema importância para o entendimento da
trama, em especial se queremos tratar dos dile-
O ritmo frenético que acelerou os dias do mas do povo negro no país.
ano de 2018 foram marcados por eventos ne- Não porque Moro tenha capacidade técni-
fastos. A lição é simples e direta: a violação dos ca, política e moral acima da média, como pen-
corpos de importantes nomes na arena política sam os camisas verdes e amarelas. Mas, porque
obedece à gradação de nossa estrutura social. Moro talvez seja o ator que referende de forma

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mais contundente o desprezo à vida negra que pelas mãos de policiais, agentes penitenciários,
se mantém inalterado desde o início das filma- promotores/as, procuradores/as, defensores/
gens da película lusitana das colonizações. Nes- as, juízes/as, desembargadores/as e minis-
se contexto, o dado histórico aponta o sistema tros/as de forma solidária. Como personagem
de justiça criminal como um dos instrumentos ilustrativa dessa dinâmica, Moro aparece como
preferenciais para a consecução do que pode símbolo dos homicidas togados que atuam con-
ser tomado como um genocídio (NASCIMENTO, fortavelmente nas comarcas de todo o Brasil
1978; FLAUZINA, 2008). sentenciando o povo negro à morte, direta e
Aqui, nos parece fundamental lançar lu- indiretamente.
zes sobre a complexidade do sistema, aten- Materializando esse processo, o feste-
tando para a atuação das diversas agências do jado pacote anti-crime1 que ele apresentou
controle penal na produção em série de mortes como principal ato de seu exercício no Minis-
que tem vitimado pessoas negras. Se focarmos tério da Justiça, só pode ser entendido como
nossa atenção no dilema das execuções sumá- a concretização das demandas da branquitu-
rias, podemos enxergar essa problemática. Via de pela legalização dos extermínios. Se o tex-
de regra, ao tratar do envolvimento das esferas to apavora pela afronta aos princípios consti-
institucionais nessas práticas, estas têm sido tucionais básicos, em especial na relativização
creditadas quase que exclusivamente às agên- do instituto da legítima defesa, é revelador do
cias policiais. Dentro dessa linha interpretativa papel decisivo que cumpre a esfera judicial na
hegemônica, ficamos diante de uma cena em conformação do campo minado em torno da
que pessoas negras se aniquilam autofagica- vida negra no Brasil2.
mente. A imagem cravada no imaginário proje- Se os ciclos da história nos demonstram
ta policiais e “bandidos” se consumindo numa que o direito sacrossanto de decretar a mor-
guerra selvagem, que, ao fim, está sustentada te de pessoas negras é o bem mais protegido e
na natureza violenta de homens negros. zelado pelas elites no país, é importante usar a
Esse tipo de abordagem tem servido à
continuidade das práticas genocidas no país, 1
Não iremos tratar dos termos do pacote após
na medida em que encerra o debate do terror negociações no Congresso Nacional. Para os efeitos
de Estado nas práticas policiais, exonerando as desse artigo, interessa-nos entender a proposta que
demais engrenagens do sistema de justiça de partiu do Ministério da Justiça, cuja íntegra do projeto
suas responsabilidades nesse processo. está disponível em <https://politica.estadao.com.
É importante lembrar, entretanto, que a br/blogs/fausto-macedo/wp-content/uploads/
sites/41/2019/02/MJSP-Projeto-de-Lei-Anticrime.
chancela judicial cumpre um papel decisivo na
pdf>, acesso em 15 de março de 2019.
produção da morte negra no país. 2
Ainda que se reconheça que o pacote “anti-crime”
E aqui não se trata somente de denunciar as recebeu duras críticas de determinados setores da
decisões que concretamente imunizam policiais magistratura, como as realizadas pela Associação de
de suas práticas homicidas, mas do entendimen- Juízes pela Democracia (AJD), estamos atribuindo
to mais amplo que o próprio recrutamento de centralidade a responsabilidade que toda a comunidade
pessoas negras para o cárcere, com aplicação de togada tem sobre os números de encarceramento,
penas rígidas e desproporcionais, ajuda a criar sobre os indeferimentos de prisões domiciliares a
as condições para o sufocamento das periferias mulheres que têm esse direito garantido por lei e
e a consequente instalação de ambientes belico- por decisões do Supremo Tribunal Federal, sobre as
sos nesses territórios. violações dos direitos previstos na lei de execuções
A partir dessa perspectiva, entende-se a penais, sobre todos os demais casos em que o racismo
institucional sentencia efeitos desproporcionais e
necessidade de situar o Judiciário com lentes
constitucionalmente injustificáveis para a população
que o posicionem dentro da maquinaria do
negra no Brasil. Para maiores detalhes acerca das
genocídio. É preciso, portanto, retirar o Judi-
críticas encaminhadas pela AJD ao pacote “anti-
ciário desse espaço de instância civilizatória crime”, ver matéria de Frederico Vasconcelos na
que ocupa de forma tão desmedida, situando Folha de São Paulo do dia 19 de fevereiro de 2019.
sua atuação como propagadora da barbárie. Disponível em < https://blogdofred.blogfolha.uol.com.
Com esse olhar, podemos entender que, br/2019/02/19/ajd-considera-inaceitavel-o-pacote-
de fato, não estamos diante de execuções su- anticrime-do-ministro-sergio-moro/>, acesso em 22
márias, mas de justiçamentos que são assinados de março de 2019.

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explicitação do terror para denunciar de for- alinham materializando processual e juridica-


ma clara e objetiva as instituições envolvidas mente o roteiro dos massacres quotidianos no
nesse processo. Nesse cenário, a implicação do país. Uma vilania que não terminará no capítu-
Judiciário é a implicação da branquitude, que lo final da novela pastelão que está em curso,
insiste, apesar de seu apetite pela violência, em mas que marca a formação desse país ancorada
projetar sua autoimagem como sinônimo de no racismo que, sem dúvida, encontrará meios
benevolência e temperança. e mentes para viabilizar sua continuidade. A
Diante dessas constatações ilustrativas do nós, resta encontrar novas formas de dirigir
roteiro televisivo tipo B que configura o atual esse enredo na esteira das militâncias negras
estado da vida política do Brasil, é preciso dis- que têm, apesar de tudo, apostado na vida e na
putar tanto as práticas quanto os sentidos das potência da resistência política.
narrativas. Nesse cenário, pautar o sistema de
justiça como um todo no acumpliciamento da REFERÊNCIAS
produção em série de mortes parece tão funda-
mental quanto a denúncia de atores de segunda FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no
que posam na arena pública com ares de cele- chão. O sistema penal e o projeto genocida do Estado
bridade. Por isso, apesar das pretensões de fi- brasileiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
gurar como galã sofisticado da trama, é a vilania ABDIAS DO NASCIMENTO, O Genocídio do Negro
truculenta e gratuita o papel que cabe a Sérgio Brasileiro: processo de um racismo mascarado. São
Moro, aos/as magistrados/as e aos/às demais Paulo: Paz e Terra, 1978.
membros do sistema de justiça que com ele se

ANA FLAUZINA

É mulher preta que aposta nos movimentos: da vida e das batalhas.


Doutora em Direito pela American University Washington College
of Law e com pós-doutorado pelo African and African Diaspora
Studies Department na University of Texas at Austin. Professora da
graduação da Faculdade de Educação da UFBA e da pós-graduação de
Direito da UFBA.
THULA PIRES

É mulher preta de axé,


mãe da Dandara e bailarina.
Professora da graduação/
pós-graduação em Direito da
PUC-Rio e coordenadora do
NIREMA (Núcleo Interdisciplinar de
Reflexão e Memória Afrodescendente)
na mesma Instituição. Associada de CRIOLA
e integra a Assembleia Geral da Anistia
Internacional no Brasil.

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