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ELAS
A
NO FRONT
Roteiros previsíveis: racismo e justiçamentos no Brasil
Por Ana Flauzina e Thula Pires
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Coluna: Elas no front
mais contundente o desprezo à vida negra que pelas mãos de policiais, agentes penitenciários,
se mantém inalterado desde o início das filma- promotores/as, procuradores/as, defensores/
gens da película lusitana das colonizações. Nes- as, juízes/as, desembargadores/as e minis-
se contexto, o dado histórico aponta o sistema tros/as de forma solidária. Como personagem
de justiça criminal como um dos instrumentos ilustrativa dessa dinâmica, Moro aparece como
preferenciais para a consecução do que pode símbolo dos homicidas togados que atuam con-
ser tomado como um genocídio (NASCIMENTO, fortavelmente nas comarcas de todo o Brasil
1978; FLAUZINA, 2008). sentenciando o povo negro à morte, direta e
Aqui, nos parece fundamental lançar lu- indiretamente.
zes sobre a complexidade do sistema, aten- Materializando esse processo, o feste-
tando para a atuação das diversas agências do jado pacote anti-crime1 que ele apresentou
controle penal na produção em série de mortes como principal ato de seu exercício no Minis-
que tem vitimado pessoas negras. Se focarmos tério da Justiça, só pode ser entendido como
nossa atenção no dilema das execuções sumá- a concretização das demandas da branquitu-
rias, podemos enxergar essa problemática. Via de pela legalização dos extermínios. Se o tex-
de regra, ao tratar do envolvimento das esferas to apavora pela afronta aos princípios consti-
institucionais nessas práticas, estas têm sido tucionais básicos, em especial na relativização
creditadas quase que exclusivamente às agên- do instituto da legítima defesa, é revelador do
cias policiais. Dentro dessa linha interpretativa papel decisivo que cumpre a esfera judicial na
hegemônica, ficamos diante de uma cena em conformação do campo minado em torno da
que pessoas negras se aniquilam autofagica- vida negra no Brasil2.
mente. A imagem cravada no imaginário proje- Se os ciclos da história nos demonstram
ta policiais e “bandidos” se consumindo numa que o direito sacrossanto de decretar a mor-
guerra selvagem, que, ao fim, está sustentada te de pessoas negras é o bem mais protegido e
na natureza violenta de homens negros. zelado pelas elites no país, é importante usar a
Esse tipo de abordagem tem servido à
continuidade das práticas genocidas no país, 1
Não iremos tratar dos termos do pacote após
na medida em que encerra o debate do terror negociações no Congresso Nacional. Para os efeitos
de Estado nas práticas policiais, exonerando as desse artigo, interessa-nos entender a proposta que
demais engrenagens do sistema de justiça de partiu do Ministério da Justiça, cuja íntegra do projeto
suas responsabilidades nesse processo. está disponível em <https://politica.estadao.com.
É importante lembrar, entretanto, que a br/blogs/fausto-macedo/wp-content/uploads/
sites/41/2019/02/MJSP-Projeto-de-Lei-Anticrime.
chancela judicial cumpre um papel decisivo na
pdf>, acesso em 15 de março de 2019.
produção da morte negra no país. 2
Ainda que se reconheça que o pacote “anti-crime”
E aqui não se trata somente de denunciar as recebeu duras críticas de determinados setores da
decisões que concretamente imunizam policiais magistratura, como as realizadas pela Associação de
de suas práticas homicidas, mas do entendimen- Juízes pela Democracia (AJD), estamos atribuindo
to mais amplo que o próprio recrutamento de centralidade a responsabilidade que toda a comunidade
pessoas negras para o cárcere, com aplicação de togada tem sobre os números de encarceramento,
penas rígidas e desproporcionais, ajuda a criar sobre os indeferimentos de prisões domiciliares a
as condições para o sufocamento das periferias mulheres que têm esse direito garantido por lei e
e a consequente instalação de ambientes belico- por decisões do Supremo Tribunal Federal, sobre as
sos nesses territórios. violações dos direitos previstos na lei de execuções
A partir dessa perspectiva, entende-se a penais, sobre todos os demais casos em que o racismo
institucional sentencia efeitos desproporcionais e
necessidade de situar o Judiciário com lentes
constitucionalmente injustificáveis para a população
que o posicionem dentro da maquinaria do
negra no Brasil. Para maiores detalhes acerca das
genocídio. É preciso, portanto, retirar o Judi-
críticas encaminhadas pela AJD ao pacote “anti-
ciário desse espaço de instância civilizatória crime”, ver matéria de Frederico Vasconcelos na
que ocupa de forma tão desmedida, situando Folha de São Paulo do dia 19 de fevereiro de 2019.
sua atuação como propagadora da barbárie. Disponível em < https://blogdofred.blogfolha.uol.com.
Com esse olhar, podemos entender que, br/2019/02/19/ajd-considera-inaceitavel-o-pacote-
de fato, não estamos diante de execuções su- anticrime-do-ministro-sergio-moro/>, acesso em 22
márias, mas de justiçamentos que são assinados de março de 2019.
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ANA FLAUZINA
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