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*
ESQUECIMENTO DAS MEMÓRIAS
(Publicado em: Rollemberg, Denise. “Esquecimento das memórias”. João Roberto Martins Filho (org.). O
golpe de 1964 e o regime militar. São Carlos: Ed.UFSCar, 2006, pp. 81-91).
Denise Rollemberg

“A tarefa primordial de um professor útil é ensinar os seus alunos a


reconhecer os fatos 'inconvenientes' – refiro-me aos fatos que são
inconvenientes às suas opiniões partidárias”.
Max Weber1.

Tem sido muito citada a versão dos militares sobre a ditadura, segundo a qual “se
venceram a guerra contra as organizações da esquerda revolucionária, foram derrotados na
luta pela memória histórica do período. (...). Se normalmente a história esquecida é a dos
vencidos, na questão do combate à guerrilha haveria como que um movimento perceptivo
inverso - a história ignorada seria a dos vencedores. Dessa forma, para alguns militares,
teria predominado uma situação peculiar em que o vencido tornou-se o ‘dono’ da história”2.
Este é o ponto de partida das reflexões de João Roberto Martins Filho: por que os militares
voltaram aos quartéis clamando à sociedade o esquecimento? Lembremos a inesquecível
ordem do general João Figueiredo, ao deixar o palácio: "Que me esqueçam!" - e os
vencidos, pelo contrário, continuaram o confronto, na "guerra da memória"3. Os vencedores
querem esquecer, os vencidos, lembrar. Neste duplo e contraditório movimento, de
militantes e militares, estrutura-se o texto de João Roberto Martins.
Quanto à memória dos guerrilheiros, a partir de 1979, autobiografias - e biografias -
têm sido escritas, num fluxo sem fim, lançadas nos anos seguintes, nas décadas seguintes4.

*
- O título é uma referência, invertida, ao título da belíssima autobiografia de Flávio Tavares, Memórias do
esquecimento. 3ª ed. São Paulo, Globo, 1999.
1
- Max Weber. “Ciência enquanto vocação”, in H.H. Gerth e C. Wright Mills (trads. e orgs.). From Max
Weber: essays in Sociology. Nova York, Oxford University Press, 1946, p. 147. Cit. por Alfred Stepan. Os
militares: da abertura à Nova República. 2ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986, p. 15.
2
- Maria Celina D'Araújo, Gláucio Ary Dillon Soares e Celso Castro (introdução e organização). Os anos de
chumbo. A memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1994, p. 13.
3
- João Roberto Martins Filho. "A guerra da memória: a ditadura militar nos depoimentos de militantes e
militares". Varia Historia. Belo Horizonte, nº 28, dez. 2002.
4
- Desenvolvo, atualmente, projeto de pesquisa apresentado à UFF (Universidade Federal Fluminense)-
PROPP, com apoio de duas bolsas de Iniciação Científica/CNPq, a partir das autobiografias e biografias de
ex-militantes da luta armada, com o título Memórias da luta armada; um dos objetivos do projeto é fazer o
levantamento destas publicações o mais completo possível. Cf. também Denise Rollemberg. “Esquerdas
revolucionárias e luta armada”, in Jorge Ferreira e Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano. O
2

Ainda hoje, chegam às livrarias novos títulos e, provavelmente, outros estão no prelo, nas
cabeças dos ex-militantes, germinando, elaborando-se, surgindo. São livros de editoras
grandes e conhecidas, desconhecidas, pequenas de grandes e pequenas cidades; autores
conhecidos, desconhecidos, homens e mulheres, de diferentes partes do país. Narrativas,
vivências, pontos de vista diversos, múltiplos, complementares, opostos, plurais.
A primeira autobiografia, Em câmara lenta, de Renato Tapajós, entretanto, é de
1977, cronologicamente, pouco anterior a 1979, mas uma conjuntura distante ainda do
marcante ano do fim do AI-5, da reformulação da LSN (que levou à libertação dos presos
políticos5) da lei de anistia política. Dois anos antes, nada disto era evidente. Tampouco era
o rumo que a memória dos acontecimentos ali narrados tomaria depois de 1979.
Com este romance autobiográfico, o militante da Ala-Vermelha do PC do B foi
capaz de expressar com maestria a intensidade da vivência ainda ardente na alma; o tempo
próprio da luta armada, alheio ao ritmo da vida que continuava, seguia, inocente, ao largo,
quem estivera ao largo?; a dor das perdas que esvaiam, das mortes anunciadas, para quem?,
inúteis, do horror da verdade - a barbárie - tornando a morte preferível6. A luta armada
vista por dentro, pelo avesso, sem meio-termos, sem eufenismos, tragada, tragando. A raiva
explodindo no peito, dilacerando, rompendo o medo da morte. O suicídio do
revolucionário, não o suicídio filosófico do qual falara Albert Camus, que faz da ausência
de sentido da vida um sentido para o futuro. Mas o suicídio. Não há esperança no futuro – a
esperança é um suicídio - nem no presente. Talvez nem porque a revolução esteja
derrotada, mas sim porque o que existe é a barbárie. Aí está a revelação. A revelação
construída pelo narrador para o personagem, para o leitor; a revelação já revelada para o
autor nos anos de luta. Revelada lentamente, em câmara lenta, dolorosa e mortalmente,
como a tortura infringida à guerrilheira. O Homem Revoltado (Camus) está morto. O
homem revolucionário também. Em câmara lenta é o suicídio no suicídio (filosófico). Sem
futuro sem presente, só a barbárie. A morte do tempo, como viu o narrador-guerrilheiro de

tempo da ditadura. Regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Vol. 4. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 2003.
5
- Os presos políticos foram libertados em 1979 com a reformulação da LSN e não com a lei anistia como,
em geral, se imagina e, inclusive, freqüentemente, aparece na imprensa até hoje.
6
- Em outro texto, propus uma reflexão sobre o texto Em câmara lenta, contrapondo-o a outra autobiografia
sobre a luta armada, A fuga, de Reinaldo Guarany, publicado em 1981. Cf. Denise Rollemberg. “Esquerdas
revolucionárias e luta armada”, in Jorge Ferreira e Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano. O
3

Renato Tapajós7. Talvez como viu Renato Tapajós. A síntese mais dilacerante da luta
armada ou a maneira mais dilacerante de lembrá-la.

* * *

Por que tantas biografias e autobiografias de ex-militantes da luta armada? Esta é a


primeira e inevitável pergunta. Entre várias possibilidades de responder a pergunta, duas
mais óbvias. Da parte dos que viveram a luta armada, a necessidade de contar a história, a
sua história. Muitos associam falar, narrar à resistência, a dar sentido aos que não
sobreviveram, à sobrevivência individual ou social de uma geração ou de uma época.
Enquanto lembram e contam o passado, o elaboram, dão um sentido a si mesmo, aos
outros, ao passado e ao presente. Da parte dos leitores das autobiografias, a quantidade
responde - ou responderia - ao interesse de se conhecer uma história silenciada. Num
primeiro momento, muitos destes leitores eram os que não sabiam, esta espécie de
personagem constante da história que atravessa os tempos em diferentes partes do mundo
assistindo a toda espécie de crime sem nada ver. Em seguida, vieram as novas gerações.
Assim, no encontro do precisar falar e do querer ouvir, a explicação para a quantidade de
autobiografias. Um ponto de interseção entre segmentos da sociedade que seguiram
caminhos diferentes e, não raro, opostos.
Entretanto, a segunda resposta, talvez, não seja tão evidente. Isto porque há uma
contradição nesta história. Apesar da grande quantidade de memórias e de sua diversidade,
uma alcançou uma espécie de unanimidade na opinião pública8 a respeito da experiência.
Esta versão, O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira, escrito em 1978 e
publicado em 1979, mantém-se hoje, passados 25 anos, uma espécie de senso comum do
que foi a luta armada, renovando-se ante as novas gerações. Creio que a riqueza das
autobiografias e biografias, as "vozes variadas e opostas", a "heteroglossia", de que falou

tempo da ditadura. Regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Vol. 4. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 2003.
7
- Cf. Renato Tapajós. Em câmara lenta. São Paulo, Alfa-Omega, 1977, p. 15.
8
- Para opinião pública, ver Jean-Jacques Becker. “A opinião pública”, in René Remond (org.). Por uma
história política. Rio de Janeiro, Ed. FGV, Ed. UFRJ, 1996.
4

Peter Burke9, mesmo que algumas tenham sido bem vendidas, sempre, porém, muito
aquém do sucesso editorial de Gabeira, se perdeu ou foi pouco aproveitada.
Neste sentido, creio que a curiosa constatação dos militares - os vencedores
perderam a “guerra da memória” e os vencidos venceram-na - é verdadeira, mas o é em
parte. E a compreensão do enigma, se não nos contenta a resposta de que abaixo do
Equador tudo se inverte, deve ser investigada em dois movimentos. Na diversidade que não
foi lida, ouvida, debatida. Ou como este esquecimento foi essencial na construção desta
memória. Em outras palavras, entre os vencidos que venceram a memória houve uma
pluralidade de memórias esquecidas, publicadas sim, mas não conhecidas ou não
incorporadas na memória coletiva10 ou incorporadas como esquecimento. Não foi esta
“depuração” que tornou possível o fato tão raro na história, de os vencidos vencerem a
memória dos vencedores? As memórias dos vencidos, no plural, na sua riqueza de
variedade, então, não teriam sido mesmo vencida? No avesso do avesso, o que haveria
nestas versões, vencidas para os vencedores e para os vencidos? Como recuperá-las no
universo das próprias esquerdas revolucionárias? Como confrontá-las com a memória
vencedora dos vencidos? Manter por vinte e cinco anos uma memória em meio a uma
diversidade também não é um esquecimento?
Entretanto, se esta reflexão procede, por que continua havendo espaço para a
publicação das autobiografias e biografias numa sociedade que jamais se identificou com a
experiência da luta armada, intensa, mas curta? E este seria o segundo movimento da
investigação. Por que a sociedade que não se interessou pela luta armada hoje se interessa
por conhecê-la? Ou ainda, será que os inúmeros depoimentos, com toda variedade e
riqueza, ainda não foram capazes de formular questões essenciais? Seriam as perguntas por
serem feitas que impulsionam a publicação de novos títulos?

Conciliação e crime

Segundo Daniel Aarão Reis Filho, as razões que explicariam o fato de a versão de
Fernando Gabeira ter alcançado tamanha receptividade na sociedade estão ligadas à
conciliação que traz em si. No final da década de 1970 e início da de 1980, no momento em

9
- Peter Burke (org.). A escrita da História. Novas perspectivas. São Paulo, Ed. Unesp, 1992, p. 15.
5

que a ditadura ia chegando ao fim num processo sob o controle dos que a implantaram,
parecia bem mais pertinente uma recuperação do passado recente que não colocasse o dedo
na ferida, não abordasse as relações de identidade ou apoio ou omissão ou colaboração de
parte expressiva da sociedade com o regime. A tragédia da luta armada, a tragédia do seu
isolamento não rimava com conciliação. Sob a égide da resistência, seria construída a
memória daqueles anos. É exatamente onde não houve muita resistência é que não se deve
remexer no passado, diz Daniel Aarão Reis. Todos resistiram, todos resistimos, assim
parecia melhor11. O momento era de volta, mas de volta para construir o futuro e não para
reencontrar o passado. O reencontro de 1979 e dos anos seguintes – com os exilados e os
presos políticos, “da sociedade com a democracia” - criou um fosso entre o passado e o
futuro, como se para fazer este fosse preciso esquecer aquele.
Na verdade, para a própria esquerda armada a volta ao passado, a compreensão do
passado colocaria em xeque elementos que estruturavam seus projetos políticos e pessoais.
Nos anos 1960 e 1970, as esquerdas - e não somente a esquerda armada - idealizaram as
relações da sociedade com o regime. Em geral, prevalecia a interpretação segundo a qual o
regime se impunha exclusivamente pela repressão ou manipulando os baixos níveis de
escolaridade das maiorias ou dominando os meios de comunicação. Daí as tarefas de
conscientização das massas e desmascaramento da ditadura a serviço do imperialismo
norte-americano. Esta missão foi assumida antes do golpe, contra a exploração, contra a
opressão e a favor dos oprimidos. Difícil admitir uma sociedade na qual a maior parte,
oprimidos inclusive, se identificasse com valores da ditadura e não se indignasse com os
crimes por ela cometidos. A volta ao passado, a construção do passado tem que lhe dar
sentido, justificar os mortos, os que estiveram na cadeia por longos anos, no exílio.
Derrotas e dores só suportadas diante de um sentido.
Neste caso, é um referencial a idéia de Maurice Halbwachs segundo a qual a
memória coletiva não seria uma imposição, e sim um elemento essencial, que dá coesão à
sociedade12: “longe de ver nessa memória coletiva uma imposição, uma forma específica de
dominação ou violência simbólica, acentua [Halbwachs] as funções positivas

10
- Maurice Halbwachs. La mémoire colletive. Paris, Albin Michel, 1997.
11
- Daniel Aarão Reis Filho (org.). Versões e ficções. O seqüestro da História. São Paulo, Perseu Abramo,
1999.
12
- Maurice Halbwachs. La mémoire colletive. Paris, Albin Michel, 1997.
6

desempenhadas pela memória comum, a saber, de reforçar a coesão social, não pela
coerção, mas pela adesão afetiva ao grupo, donde o termo que utiliza, de ‘comunidade
afetiva’” 13. Esta abordagem se opõe a outra que vê a história oral como a possibilidade de
reabilitar a periferia e a marginalidade, acentuando "o caráter destruidor, uniformizador e
opressor da memória coletiva nacional” 14.
Na verdade, a memória da luta armada, vista através das autobiografias e biografias,
é como uma boneca dentro da boneca: por um lado, há uma memória coletiva no sentido
definido por Halbwachs, que não se impõe, ao contrário, dá coesão à sociedade. Assim,
considerando uma ditadura de 21 anos que se instaurou com um golpe com apoio civil, sem
resistência naquele momento, sem resistência, nestes longos anos, capaz de abalar o regime,
com um processo de distensão de 11 anos, sem que os militares tenham perdido o controle
do processo ou, ao menos, os militares e os setores civis conservadores que estiveram à
frente nos governos militares e/ou identificados com seu modelo econômico, a memória
coletiva construída na conjuntura de 1979 estava longe de ser uma imposição.
Mas havia outra boneca dentro da boneca. Mais diversificada, mais visceral quanto
à experiência da luta armada. E esta não foi capaz de participar da construção da sua
memória. Não diria que foi "destruída, uniformizada, oprimida pela memória coletiva
nacional” não. Soaria algo passivo. Mas é uma memória "periférica, marginal", que ficou
dentro de uma boneca. Assim, será preciso pensar a memória coletiva nestas duas
abordagens, simultaneamente, como "coesionador" e "marginalizador", embora mais aquele
do que este, mas sempre expressão da sociedade que se queria renovada para os novos
tempos, lembrando para esquecer. Neste processo, uma vez mais, a luta armada - agora a
sua memória ou parte substantiva dela - passava ao largo da sociedade, reafirmando-se, no
presente, sua vocação no passado.
Pensando em "periférica e marginal", termos usados por Michael Pollak, na citação
acima, é curioso perceber como a autobiografia que mais contribuiu na construção da
memória coletiva da luta armada foi escrita por alguém de certa forma "periférico,
marginal" à experiência. Aqui, no caso de Fernando Gabeira e sua relação com a luta
armada, é claro, as palavras "periférico e marginal" não têm o sentido exato ao qual se
referiam Pollak e os historiadores da história oral que recuperam os testemunhos dos

13
- Michael Pollak. “Memória, esquecimento, silêncio”. Estudos Históricos, vol. 2, nº 3. 1989, p. 3.
7

"marginais" da história oficial. Em todo caso, no processo de construção da memória da


luta armada, este militante-narrador tornou-se central, deslocando-se, deslocado. João
Roberto Martins Filho referiu-se a Fernando Gabeira como "um personagem secundário no
seqüestro do embaixador norte-americano" que, "...contou sua rápida passagem pela
esquerda armada como se lhe tivesse cabido observar as coisas de fora, ..."15.
Numa leitura mais atenta do livro, sobretudo depois da leitura de muitas outras
autobiografias, é interessante notar como “só há uma única ação” da luta armada, e, não por
acaso, a de maior impacto: a do seqüestro do embaixador norte-americano. E ao narrá-la, é
como se não houvesse ninguém ali, todos desaparecem, se diluem na 1ª pessoa do plural
que, supostamente, seria a sua organização ou as organizações que fizeram o seqüestro,
mas, na verdade, é o próprio narrador. Alguns nomes aparecem aqui e ali, ao largo,
periféricos e marginais, estranhos à narrativa, distantes da história. Sombras. Estas mesmas
sombras reaparecem nas prisões, como fantasmas, esquecidos. Lembrados e esquecidos.
Lembrados para serem esquecidos. Desconstruídos na construção da memória.
Desfigurados. Como os dois guerrilheiros vindos de São Paulo para o seqüestro, lembrados
por Gabeira, desfigurados na tortura, largados no corredor da PE, pisados pelos que
passavam.
Assim, por ironia da história, a memória mais conhecida é de alguém que a
conheceu de um ponto de vista “periférico e marginal”, fazendo dos que a fizeram
fantasmas, sombras, desfiguradas, largadas, pisadas. Estranho fenômeno - mas não raro -
que levou a que um estrondoso público, ao conhecer a história, a desconhecesse. Na
construção da memória, lembra-se esquecendo, esquece-se lembrando, desloca-se o foco,
num movimento, entretanto, não estranho à história, no qual a história, ela mesma, deixa de
ser importante, criando-lhe outros significados.
Como a síntese magistral de Serge Berstein: “na ordem da cultura política, é a lenda
que é a realidade, pois é ela que é mobilizadora e determina a ação política concreta, à luz
da representação que ela propõe”16. Assim, foi neste desconhecimento que se fez o
conhecimento, neste lembrar esquecendo, que se construiu uma representação

14
- Michael Pollak. “Memória, esquecimento, silêncio”. Estudos Históricos, vol. 2, nº 3. 1989, p. 4.
15
- João Roberto Martins Filho. "A guerra da memória: a ditadura militar nos depoimentos de militantes e
militares". Varia Historia. Belo Horizonte, nº 28, dez. 2002, pp. 183 e 184.
16
- Serge Berstein. “L’historien et la culture politique”. Vingtième siècle. Revue d’histoire, nº 35, 1992, p.
69.
8

mobilizadora, "coesionadora", impulsionadora, talvez inclusive das esquerdas que mesmo


nos longos anos de exílio ou de prisão teve muitas dificuldades de romper com as
explicações baseadas na repressão, manipulação, desinformação, ignorância etc. para
justificar a permanência do regime17.
O esquecimento era essencial no processo de abertura. Mas não somente para os
militares. A sociedade queria esquecer. A negação da história, do conhecimento do passado
no presente. A cumplicidade, a omissão, os compromissos, a colaboração, o apoio. E as
esquerdas não tinham olhos para ver isto. Nos anos pós-1979, lembrar para esquecer, olhar
sem ver. O belíssimo Em câmara lenta já era uma memória esquecida, numa censura que ia
muito além dos militares.
Nas próprias autobiografias, a reflexão sobre as relações da sociedade com o regime
é muito fragilizada. E aqui é necessário um parêntese. Segundo as teorias que orientavam a
luta armada, o isolamento das vanguardas era perfeitamente integrado à sua lógica. Apenas,
num segundo momento da guerrilha, seria preciso romper com ele, mas antes, num quadro
de intensa repressão, o trabalho teria que ser clandestino, de poucos, isolado. Não estou,
portanto, vendo uma "contradição" explicada naquelas circunstâncias. Estou tentando
pensar um outro aspecto. Inseridos numa determinada cultura política18, era difícil ver a
aceitação do regime, compreendê-lo como produto da sociedade, que não lhe era estranho,
que havia ali laços de identidade. Lembremos que as autobiografias atravessaram os anos,
chegam aos dias de hoje e, no entanto, muitas ainda recorrem a antigas justificativas quanto
a esta questão, perpetuando a incompreensão do passado. Por que, apesar de registrarem
aspectos específicos de cada momento, seus embates, questões, expectativas, isto
permanece, insiste, persiste?
A luta armada e a sociedade, dois mundo paralelos, desconhecidos um do outro; a
vanguarda querendo transformar o que desconhecia, indiferente aos valores, às aspirações
que moviam os indiferentes na direção oposta. Olhos cegos, ouvidos moucos, num contato
impossível. Passados os anos, dois mundos ainda paralelos. De um lado, a ditadura e os
crimes. De outro, a sociedade que os desconhecia. Esta dualidade tem sido um eixo
estrutural das memórias, da construção da memória coletiva da luta armada e da ditadura. O
conhecimento da tortura era de poucos, sobretudo, daqueles que a viveram, suas famílias,

17
- Cf. Denise Rollemberg. Exílio. Entre raízes e radares. Rio de Janeiro, Record, 1999.
9

seus amigos. Os demais não sabiam. Sabiam sobre - e viviam - o fechamento do congresso
nacional, a violação da constituição, os atos institucionais, as cassações etc., mas não
sabiam da tortura, dos assassinatos. Diante da barbárie - ou quando a barbárie é a
disponibilidade de convivência com a barbárie - , recorre-se à inocência. Quantas vezes a
história já nos ensinou isto? Quantas vezes a memória já foi assim formada? Quantas
autobiografias serão escritas até surgir uma que rompa com esta deformação?

Inocência e crime

Albert Camus, escreveu em 1951: "No dia em que o crime se ornamenta com os
despojos da inocência, por uma curiosa deformação que é própria do nosso tempo, é a
inocência que se vê intimada a apresentar suas justificativas"19. A compreensão do crime
amparado na inocência está na inocência, que o tornou real. Sem ela, ele não existiria. É ela
que deve ser investigada. Desloca-se o foco da observação.
Assim, a indiferença, a omissão, a cumplicidade e tudo mais que há bem antes de se
chegar ao apoio irrestrito e que se traduz, depois, em "nós não sabíamos", "nós nada
víamos", devem ser analisados.
Acredito, então, que as esquerdas, elas mesmas, têm muita dificuldade de enfrentar
a questão das relações da sociedade com a ditadura, o que, incrivelmente, corrobora com a
vontade de os militares esquecerem, embora o seu esforço seja o inverso, o de lembrar.
Assim, temos o esquecimento das memórias. Ou a não-compreensão do passado, a
ignorância de nós mesmos, de quem somos, dos valores e referências que estão nas nossas
raízes e que não podem ser desprezados, sempre transformados sim, em mudança, mas que
explicam as opções em determinados momentos.
As esquerdas, na política, na academia, na vida pública, construíram a memória
baseada na idéia de que os militares só se impuseram naqueles anos pela força, pela
manipulação dos meios de comunicação, da censura etc.20 Pouca atenção, em meio a uma

18
- Cf. Serge Berstein. “L’historien et la culture politique”. Vingtième siècle. Revue d’histoire, nº 35, 1992.
19
- Albert Camus, O mito de Sísifo. 2ª ed. Rio de Janeiro, Guanabara, 1989, p. 12; citado em O mito de Sísifo
(1ª ed. de 1942), mas se trata de Homem revoltado, de 1951.
20
- Trabalhando com história oral, percebo como ainda é forte, hoje, esta interpretação, entre ex-militantes
das esquerdas dos anos 1960 e 1970.
10

bibliografia extensa e, no caso das autobiografias e biografias, ao tema da colaboração,


palavra maldita, esconjurada21.
Em suma, acredito que não foram exclusivamente os militares que quiseram -
querem - esquecer. Mas a sociedade. E o mais curioso: as esquerdas revolucionárias, ao
narrarem a experiência da luta armada sem olhos de ver, mantendo a interpretação da
época, reafirmando-a, hoje, contribuem com o esquecimento ou com um lembrar que
esquece.
Teremos mais e mais autobiografias de ex-guerrilheiros, nos próximos anos,
aguardando que, entre elas, surjam, enfim, incômodas perguntas. Avançar agora não é falar
exclusivamente do crime. Avançar agora é também falar da inocência, compreendê-la,
romper com a interpretação que ornamenta o crime com seus despojos e nos afasta do
conhecimento de nós mesmos.

Bibliografia

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BERSTEIN, Serge. “L’historien et la culture politique”. Vingtième siècle. Revue d’histoire,
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CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. 2ª ed. Rio de Janeiro, Guanabara, 1989.
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D'ARAUJO, Maria Celina, Glaucio Ary Dillon Soares e Celso Castro (introdução e
organização). Os anos de chumbo. A memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro,
Relume Dumará, 1994.
GABEIRA, Fernando. O que é isso, companheiro? 20ª ed. Rio de Janeiro, Codecri, 1980.

21
- Com este enfoque, destaco: Daniel Aarão Reis Filho. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 2000; seus artigos em ----------- . (org.). Versões e ficções. O seqüestro da História. São
Paulo, Perseu Abramo, 1999 e Beatriz Kushnir. Cães de guarda. Jornalistas e censores, do AI-5 à
Constituição de 1988. São Paulo, Boitempo, 2004.
11

GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta
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GUARANY, Reinaldo. A fuga. São Paulo, Brasiliense, 1984.
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KUSHNIR, Beatriz.. Cães de guarda. Jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de
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------------ . Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000.
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ROLLEMBERG, Denise. “Esquerdas revolucionárias e luta armada”, in Jorge Ferreira e
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--------------- . Exílio. Entre raízes e radares. Rio de Janeiro, Record, 1999.
---------------. O apoio de Cuba à luta armada no Brasil. O treinamento guerrilheiro. Rio de
Janeiro, Mauad, 2001.
STEPAN, Alfred. Os militares: da abertura à Nova República. 2ª ed. Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1986.
TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. São Paulo, Alfa-Omega, 1977.
TAVARES, Flávio. Memórias do esquecimento. 3ª ed. São Paulo, Globo, 1999.

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