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AUTO - termo que, no séc. XVI, se aplicava a peças de teatro ao gosto tradicional. Os
assuntos podiam ser religiosos, profanos, sérios ou cómicos. Ao mesmo tempo que divertiam,
moralizavam pela sátira de costumes e inculcavam de modo vivo e acessível as verdades da fé.
O Auto da Barca do Inferno é um auto de moralidade que dramatiza de uma forma cómica
preceitos morais, políticos, religiosos, etc., através de uma crítica aos vícios e costumes da
sociedade.
Existe nesta peça um conflito: a luta entre o bem e o mal, entre a virtude e o vício, entre a
salvação e a perdição.
O cenário representa a margem de um rio com duas barcas prestes a partir (alusão ao mito
de Caronte), a do Céu, cujo arrais é o anjo e a do Inferno cujo arrais é o diabo. Uma série de
personagens vai chegando ao cais: são as almas dos mortos que acabam de deixar o mundo e que se
apresentam perante o Juízo Final para serem julgados. Por estas razões classifica-se também a
obra como auto alegórico. Todas as personagens vão para o Inferno, com excepção do Parvo, que é
salvo devido à sua pobreza de espírito, e dos quatro Cavaleiros de Cristo que morreram a lutar nas
Cruzadas sendo logo acolhidos na barca da Glória.
No Auto da Barca do Inferno não há propriamente um enredo, mas sim um desfile de cenas
simétricas, um conjunto de mini-acções paralelas. Cada um dos pecadores começa por dirigir-se à
barca do diabo onde existe uma breve apresentação – exposição – dirige-se depois à barca do anjo
onde é julgado e repelido, volta à barca do diabo continuando a ser julgado – conflito – e, por fim,
embarca – desenlace. Há excepções a esta movimentação como é o caso do Parvo, Judeu,
Enforcado e os 4 Cavaleiros.
O Auto da Barca do Inferno é uma evocação de certos tipos sociais do século XVI e uma
sátira feroz não só contra os grandes e poderosos mas também contra os de condição social mais
modesta, mostrando uma sociedade em crise.
A decisão do Anjo de o acolher na sua barca provem da lógica da doutrina cristã: não pode
ser condenado pelos seus actos quem nasceu irresponsável e pobre de espírito, logo terá direito ao
céu ... Tua simpreza t’abaste pera gozar dos prazeres.
Os parvos têm, no teatro vicentino, uma função cómica ocasionada pelos disparates que
proferem. Assim acontece neste auto, embora em certos passos, o Parvo se junte às personagens
sobrenaturais para criticar os que pretendem embarcar e sirva algumas vezes de comentador.
açoutes tenho levados / e tormentos soportados / que ninguém me foi igual (...) e fiz cousas
mui divinas.
Apresenta-se ao Diabo e ao Anjo como uma mártir que dedicara a vida a seduzir meninas para
os prazeres dos cónegos da Sé e dos homens em geral, a todas arranjando dono, compara a sua
missão divina à dos apóstolos, dos anjos, de Sta. Úrsula.
A linguagem da Alcoviteira funciona também como elemento caracterizador: é uma linguagem
lisonjeira, sedutora, hipócrita, através da qual tenta cativar o Anjo ... anjo de Deos, minha
rosa... que, no entanto, a vota ao desprezo Ora vai lá embarcar / não estês emportunando.
Recebida de novo pelo Diabo, embarca, não sem antes ouvir a sentença se vivestes santa
vida, / vós o sentirês agora.
Pêro de Lisboa, um homem que morrera Enforcado condenado pela justiça, apresenta-se no
cais com um baraço ao pescoço, convencido que vai para o céu. Admira-se com a condenação do
Diabo, pois viera iludido por Garcia Moniz, que lhe garantira ser honroso morrer na forca e que,
uma vez que já tinha passado pelo Purgatório que era a forca e o Limoeiro, iria direitinho para o
céu. Portanto, ao deparar-se com aquele cenário, sobre o qual não tinha sido informado,
surpreende-se.... Agora não sei que é isso./ Não me falou em ribeira,/ nem barqueiro, nem
barqueira, / senão — logo ò Paraíso...
Nesta cena, é nítida a intenção de Gil Vicente criticar mais a doutrina e a mentira do que o
próprio ladrão.
O teatro de Gil Vicente é, assim, um teatro de tipos, figuras colectivas que sintetizam as
qualidades e defeitos de uma classe social ou profissional.
Para além dos objectos que transportam, a linguagem funciona também como elemento
distintivo e caracterizador de certos tipos como é o caso do Parvo, Sapateiro, Alcoviteira,
Corregedor e Procurador. É, em todos os casos, uma linguagem viva e realista, notando-se a
preocupação de adaptar as palavras que mais se ajustam às personagens e à sua condição.