Você está na página 1de 5

_________________________________________________________________ Colégio Portugal

AUTO - termo que, no séc. XVI, se aplicava a peças de teatro ao gosto tradicional. Os
assuntos podiam ser religiosos, profanos, sérios ou cómicos. Ao mesmo tempo que divertiam,
moralizavam pela sátira de costumes e inculcavam de modo vivo e acessível as verdades da fé.

O Auto da Barca do Inferno é um auto de moralidade que dramatiza de uma forma cómica
preceitos morais, políticos, religiosos, etc., através de uma crítica aos vícios e costumes da
sociedade.

As personagens são alegóricas (representam conceitos abstractos) – anjo e diabo – e tipos


sociais – todas as outras - que se fazem acompanhar de pessoas, animais ou objectos que
facilitam a sua caracterização e identificação.

Existe nesta peça um conflito: a luta entre o bem e o mal, entre a virtude e o vício, entre a
salvação e a perdição.

O cenário representa a margem de um rio com duas barcas prestes a partir (alusão ao mito
de Caronte), a do Céu, cujo arrais é o anjo e a do Inferno cujo arrais é o diabo. Uma série de
personagens vai chegando ao cais: são as almas dos mortos que acabam de deixar o mundo e que se
apresentam perante o Juízo Final para serem julgados. Por estas razões classifica-se também a
obra como auto alegórico. Todas as personagens vão para o Inferno, com excepção do Parvo, que é
salvo devido à sua pobreza de espírito, e dos quatro Cavaleiros de Cristo que morreram a lutar nas
Cruzadas sendo logo acolhidos na barca da Glória.

No Auto da Barca do Inferno não há propriamente um enredo, mas sim um desfile de cenas
simétricas, um conjunto de mini-acções paralelas. Cada um dos pecadores começa por dirigir-se à
barca do diabo onde existe uma breve apresentação – exposição – dirige-se depois à barca do anjo
onde é julgado e repelido, volta à barca do diabo continuando a ser julgado – conflito – e, por fim,
embarca – desenlace. Há excepções a esta movimentação como é o caso do Parvo, Judeu,
Enforcado e os 4 Cavaleiros.

O Auto da Barca do Inferno é uma evocação de certos tipos sociais do século XVI e uma
sátira feroz não só contra os grandes e poderosos mas também contra os de condição social mais
modesta, mostrando uma sociedade em crise.

9º Ano ____________________________________________________________ Prof. Laura Almeida


_________________________________________________________________ Colégio Portugal

O primeiro passageiro é um Fidalgo coberto pelo manto da


vaidade, acompanhado de um pajem (o povo que ele oprimiu e
desprezou) que transporta uma cadeira representativa da condição
social do fidalgo. Surge em cena com toda a sua vaidade, presunção
e arrogância. Habituado a gozar de todos os privilégios, o fidalgo
não pensa que poderá ir para o Inferno.
Gil Vicente não só condena este fidalgo mas todos os seus
antepassados Mandai meter a cadeira/ que assim passou vosso
paii criticando a classe em geral.
Apesar dos seus argumentos (ter deixado em vida quem reze sempre por mim e por ser
fidalgo de solar), a barca do inferno é a única que comporta a sua bagagem de pecados, e termina
por nela embarcar depois de gravemente acusado pelo Anjo: Não se embarca tirania / neste
batel divinal (...) Pera vossa fantesia / mui estreita é esta barca (...) e porque, de generoso /
desprezastes os pequenos (...) e de tentar voltar à vida ... ver minha dama querida... e
...ver minha mulher.
A figura do fidalgo presunçoso, vaidoso, arrogante mas, pesar disso, muitas vezes pobre, era
aquela que as classes trabalhadoras consideravam mais antipática dentro da constituição social do
século XV.

A segunda personagem é o Onzeneiro (agiota que empresta


dinheiro a juros de 11%); um usurário que enriquecera à custa dos
altos juros do dinheiro que emprestara aos mais necessitados.
Pertencia a uma classe que tinha algo em comum com os
Judeus: o seu amor ao dinheiro.
Após ter sido rejeitado pelo Anjo que o acusa: porque esse
bolsão tomara todo o navio, ...não já em teu coração, e tentando
valer-se da sua astúcia, pretende enganar o Diabo e retornar à
vida ... e trarei o meu dinheiro/ que aqueloutro marinheiro, /
porque me vê vir sem nada, / dá-me tanta borregada como arrais lá do Barreiro, com o
pretexto de ter de pagar a entrada ao Anjo.
Com esta personagem, Gil Vicente critica a ganância, a avareza e a exploração praticada
pelos onzeneiros.

Joanne, o Parvo, é a personagem seguinte.


Enfrenta o Diabo com uma irreverência simples,
descarregando sobre ele toda a espécie de injúrias e
ofensas, numa verdadeira enxurrada de expressões
absurdas que correspondem ao estado mental
desarticulado próprio dos "pobres de espírito", dos
bem-aventurados, a quem, por não possuírem traços de
malícia ou atitudes maldosas, será dado o reino dos céus
Tu passarás se quiseres / porque em todos teus
fazeres per malícia não erraste ... .

9º Ano ____________________________________________________________ Prof. Laura Almeida


_________________________________________________________________ Colégio Portugal

A decisão do Anjo de o acolher na sua barca provem da lógica da doutrina cristã: não pode
ser condenado pelos seus actos quem nasceu irresponsável e pobre de espírito, logo terá direito ao
céu ... Tua simpreza t’abaste pera gozar dos prazeres.
Os parvos têm, no teatro vicentino, uma função cómica ocasionada pelos disparates que
proferem. Assim acontece neste auto, embora em certos passos, o Parvo se junte às personagens
sobrenaturais para criticar os que pretendem embarcar e sirva algumas vezes de comentador.

O Sapateiro Joanantão apresenta-se em seguida, carregado com


formas de sapatos, acusado pelo diabo e pelo anjo de roubar o povo e
ser desonesto, Tu roubaste/ bem trint’anos o povo/ com teu mester
(...) Essa barca que lá está / leva quem rouba de praça (...)
O sapateiro pretende livrar-se da condenação do Diabo, alegando
como defesa as missas a que assistira, as esmolas que ofertara, as
horas dos finados, as confissões.
Com esta cena procurou Gil Vicente demonstrar que o
cumprimento dos deveres religiosos só ajuda quem leva uma vida
honesta. É, portanto, mais uma cena moralista de carácter religioso do
que, propriamente, a condenação de um sapateiro.

Aparece um Frade, o tipo social mais insistentemente


observado e criticado por Gil Vicente que lhe censura a
desconformidade entre os actos e os ideais; em lugar de praticar a
austeridade, a pobreza e a renúncia ao mundo, o frade busca os
prazeres da corte, tem mulher, é espadachim, ambiciona honras e
cargos, procedendo como se o hábito fosse o suficiente para o
salvar do Inferno E este hábito não me vale?
Entra em cena a cantar e a dançar com a namorada Florença e
carregando os símbolos que representam os seus pecados: uma
espada, um escudo e um capacete. Interpelado pelo Diabo, ensaia golpes com a espada, mostrando-
se exímio esgrimista. O diálogo que ambos travam é cheio de trocadilhos e ironias mostrando-se o
frade contraditório nas suas defesas Um padre tão namorado / e tanto dado a virtude? (...)
Por ser namorado / e folgar com ˜ua mulher / se há um frade de perder, / com tanto salmo
rezado?
O Anjo não se digna falar com ele e acaba condenado pelo Parvo embarcando na barca do
Inferno com a moça.

A Alcoviteira Brígida Vaz apresenta-se para


julgamento. Representa as mulheres que se dedicavam
não só a desencaminhar jovens para a prostituição mas
também praticavam feitiçaria, roubo, mentira. É o tipo
que surge com mais elementos caracterizadores: não só
as meninas mas também a casa movediça onde traz toda
a carga representativa dos seus pecados. A defesa
posta em prática pela alcoviteira revela mentira,
hipocrisia e descaramento, Eu sô ua mártela tal, /

9º Ano ____________________________________________________________ Prof. Laura Almeida


_________________________________________________________________ Colégio Portugal

açoutes tenho levados / e tormentos soportados / que ninguém me foi igual (...) e fiz cousas
mui divinas.
Apresenta-se ao Diabo e ao Anjo como uma mártir que dedicara a vida a seduzir meninas para
os prazeres dos cónegos da Sé e dos homens em geral, a todas arranjando dono, compara a sua
missão divina à dos apóstolos, dos anjos, de Sta. Úrsula.
A linguagem da Alcoviteira funciona também como elemento caracterizador: é uma linguagem
lisonjeira, sedutora, hipócrita, através da qual tenta cativar o Anjo ... anjo de Deos, minha
rosa... que, no entanto, a vota ao desprezo Ora vai lá embarcar / não estês emportunando.
Recebida de novo pelo Diabo, embarca, não sem antes ouvir a sentença se vivestes santa
vida, / vós o sentirês agora.

Chega o Judeu carregando um bode e dirige-se à barca


do Inferno pretendendo nela embarcar. Recusado pelo Diabo,
tenta suborná-lo com mais outro tostão, mas nem o Diabo o
quer Nenhum bode há de vir cá (...) Judeu, lá te passarão
/ porque vão mais despejados.
O Judeu roga-lhe pragas mas despachado pelo Diabo
para a barca do Anjo, é acusado pelo Parvo. Acaba por
embarcar com o bode num bote, indo "a reboque" da barca do
Inferno. Gil Vicente, como se pode perceber, tem certa
dificuldade em condenar o Judeu - ou absolvê-lo - optando por uma solução intermédia: deixá-lo ir
"à toa".
No seu retrato são exagerados dois aspectos: o seu apego ao dinheiro Passai-me por meu
dinheiro e à sua religião simbolizada no bode Sem bode, como irei lá?.
O pormenor de nem o Diabo querer o Judeu e de não lhe permitir a entrada na barca
marginaliza-o de tal modo que o coloca num plano inferior ao dos restantes condenados Vós,
Judeu, irês à toa, / que sois mui ruim pessoa (...).
Deve-se ter em mente que, à época da encenação da peça, acontecia em Portugal uma
verdadeira perseguição aos judeus pela Igreja Católica.

Vem em seguida um Corregedor (juiz) arrogante,


carregado de feitos que simbolizam os processos mal
julgados. O Diabo convida-o a entrar chamando-lhe
ironicamente de "descorregedor", acusando-o de ter sido
parcial e desonesto nos seus julgamentos ...quia judicastis
malitia..., desfavorecendo os mais ignorantes e
enriquecendo à sua custa ...A largo modo adquiristis
/sanguinis laboratorum / ignorantes peccatorum...
O Corregedor é ainda acusado de ser corrupto ...Oh
amador de perdiz.. e de ter sido conivente com a mulher,
que recebia subornos E as peitas dos judeus / que vossa
mulher levava?
Os dois discutem e argumentam num latim “macarrónico jurídico tentando o Corregedor defender-
se Semper ego justitia / e fecit bem per nivel (...)Isso eu não o tomava / eram lá percalços
seus.

9º Ano ____________________________________________________________ Prof. Laura Almeida


_________________________________________________________________ Colégio Portugal

Um Procurador (advogado) chega carregado de livros, as leis mal aplicadas, e junta-se-lhes. O


Diabo imediatamente o convida a entrar, destinando-lhe trabalho: Entrai, bacharel doutor, e
ireis dando na bomba.
Inconformados, os dois representantes da lei tentam embarcar com o Anjo, que os condena
pela justiça divina A justiça divinal / vos manda vir carregados / porque vades embarcados /
neste batel infernal.
Esta cena forma um amplo quadro da justiça humana que se opõe à justiça divina.
A magistratura é vista por Gil Vicente como corrompida e portadora de grandes defeitos. As
principais acusações feitas a ambos são a parcialidade das suas sentenças e o facto de receberem
subornos. A prática da religião também está posta em causa, uma vez que a confissão antes da
morte ou não existiu, no caso do Procurador, ou não foi verdadeira, no caso do Corregedor ...Eu
mui bem me confessei, / mas tudo quanto roubei / encobri ao confessor…
Gil Vicente critica desta forma a injustiça e a corrupção praticada por uma profissão cujos
membros deviam ser justos, responsáveis e honestos.

Pêro de Lisboa, um homem que morrera Enforcado condenado pela justiça, apresenta-se no
cais com um baraço ao pescoço, convencido que vai para o céu. Admira-se com a condenação do
Diabo, pois viera iludido por Garcia Moniz, que lhe garantira ser honroso morrer na forca e que,
uma vez que já tinha passado pelo Purgatório que era a forca e o Limoeiro, iria direitinho para o
céu. Portanto, ao deparar-se com aquele cenário, sobre o qual não tinha sido informado,
surpreende-se.... Agora não sei que é isso./ Não me falou em ribeira,/ nem barqueiro, nem
barqueira, / senão — logo ò Paraíso...
Nesta cena, é nítida a intenção de Gil Vicente criticar mais a doutrina e a mentira do que o
próprio ladrão.

Finalmente, vêm os Quatro Cavaleiros de Cristo,


mortos pelos mouros nas Cruzadas, em defesa da
Igreja. Cantam hinos em que exaltam a transitoriedade
da vida e advertem os pecadores, exortando-os à
prática das virtudes morais - único caminho para
alcançar a felicidade da vida eterna.
Deste modo, Gil Vicente opõe os cavaleiros que
morreram a combater pela fé aos que trabalham pela
vida transitória.
Sabendo que têm o céu garantido, os Cavaleiros passam pelo Diabo que se surpreende por estes
não lhe darem qualquer importância Entrai cá! Que cousa é essa? / Eu nom posso entender isto!
e dirigem-se à barca da glória onde o Anjo os recebe de imediato Ó cavaleiros de Deos, / a vós
estou esperando, (...) que quem morre em tal peleja / merece paz eternal.

O teatro de Gil Vicente é, assim, um teatro de tipos, figuras colectivas que sintetizam as
qualidades e defeitos de uma classe social ou profissional.
Para além dos objectos que transportam, a linguagem funciona também como elemento
distintivo e caracterizador de certos tipos como é o caso do Parvo, Sapateiro, Alcoviteira,
Corregedor e Procurador. É, em todos os casos, uma linguagem viva e realista, notando-se a
preocupação de adaptar as palavras que mais se ajustam às personagens e à sua condição.

9º Ano ____________________________________________________________ Prof. Laura Almeida

Você também pode gostar