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Outra vez o trabalho de campo: reflexões sobre etnografia que se impõem à

Antropologia contemporânea.1
Sabrina Sales Araújo

O trabalho de campo ou a etnografia é hoje parte consolidada do trabalho do


antropólogo e, muitas vezes, é interpretado como sinônimo de antropologia.
Institucionalizado pelo que DaMatta (1987) nomeou de “revolução funcionalista” 2
sobretudo com Malinowski e a sua observação participante, o método para obtenção de
dados ganhou tamanha relevância pela importância que teve na constituição da
Antropologia como ciência no século XX.
Foi a partir desse momento que a separação entre o trabalho do etnólogo e do
antropólogo se uniram na pessoa do antropólogo que passou a viver a experiência no
campo para relatar culturas distintas da sua, buscando identificar o seu funcionamento a
partir de seus elementos internos. Para Clifford (2002), a autoridade etnográfica se
constituiu no momento dessa união que convergiu com a institucionalização do
pesquisador como um profissional treinado nas modernas técnicas analíticas e modos de
explicação com uma atitude prescrita de relativismo cultural3; que estabelecia estadia
curta no campo4; focado em captar o conjunto de comportamentos, cerimônias e gestos
passíveis de registro e explicação por um observador treinado 5. Esse profissional tinha
em seu auxílio poderosas abstrações teóricas para auxiliá-lo na busca do cerne de uma
cultura mais rapidamente, pois podia ir atrás de dados selecionados que permitiam a
construção de um arcabouço central ou “estrutura” do todo cultural6.
Desde então, o trabalho de campo tem sido interpretado e mencionado como um
“ritual de passagem”7 que envolve a saída do pesquisador de sua cultura, a inserção na
cultura que pretende estudar e o seu retorno à sua cultura. Na segunda etapa, que
consiste na chegada e permanência do pesquisador no campo a ser estudado, há uma
série de dificuldades que a ele se impõem. Fora das certezas e do comodismo da sua
cultura, ele se encontra em um processo de alfabetização cultural e ele demanda, por sua
vez, a necessidade de criar relações de confiança dentro da comunidade, bem como, por
1
Trabalho requisitado na disciplina de Teoria Antropológica II do Programa de Pós Graduação em
Antropologia Social da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
2
DAMATTA, Roberto. Trabalho de Campo In Relativizando: uma introdução à Antropologia Social.
Rocco, Rio de Janeiro, 1987, p. 144.
3
CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. 2 ed. Editora
UFRJ, Rio de Janeiro, 2002. p.28
4
Ibid., p. 28.
5
Ibid., p.29
6
Ibid., p. 29-30.
7
DAMATTA, op cit., p. 150
vezes, a troca de produtos materiais ou serviços com os interlocutores, além de passar
por várias experiências impensáveis para o antropólogo ao idealizar o seu campo antes
mesmo de deixar a sua própria sociedade. Esses aspectos românticos, extraordinários ou
carismáticos são tomados como anedóticos, e na descrição das rotinas etnográficas –
feitas geralmente no momento da escrita da monografia, fora do campo – elas são
excluídas.
Esses diferentes momentos do “ritual de passagem” demonstram como se
configurou a rotina metodológica dos antropólogos. É no processo de alfabetização na
cultura que se estuda que todos os eventos e acontecimentos são descritos, mas é apenas
no retorno a cultura de origem e no momento da escrita que eles serão interpretados
através de um arcabouço teórico. Assim, a etnografia serve à Antropologia como
método de coleta de dados que serão interpretados de forma objetiva. Nesse último
processo de interpretação e escrita, ao excluir as formas de aquisição das informações –
o diálogo com os interlocutores, as negociações para participação em determinado
evento ou para conseguir determinada informação – o pesquisador exclui também o
próprio interlocutor tão caro ao seu estudo. Sendo assim, a validade das informações é
legitimada na autoridade etnográfica que está ancorada na experiência e interpretação
individual do antropólogo. Mas há nisso uma grande contradição apontada tanto por
Clifford (2002) quanto por DaMatta (1987). Para este último,
[...] tudo é fundado na alteridade em Antropologia: pois só existe
antropólogo quando há um nativo transformado em informante [ou
interlocutor]. E só há dados quando há um processo de empatia
correndo de lado a lado. É isso que permite ao informante contar mais
um mito, elaborar com novos dados uma relação social e discutir os
motivos de um líder político de sua aldeia [...] o etnólogo [ou
etnógrafo] nunca está só [...].8

Para James Cliffort (2002), as tarefas da transcrição textual e tradução, junto


com o papel dialógico crucial de intérpretes e informantes privilegiados, foram
relegadas a um status secundário, ou mesmo desprezados 9 e durante a interpretação e
escrita da monografia os sujeitos são absolutizados, transformados em seres genéricos,
representantes de sua cultura. Nesse processo, a realidade das situações discursivas e os
interlocutores são filtrados, junto às “fábulas do contato”, que são as situações
inusitadas que ocorrem no campo. Para este autor,
[...] elas normalmente retratam a inicial ignorância do etnógrafo, os
mal entendidos, a falta de contato [...] um tipo de status semelhante ao
8
Ibid., p. 172
9
CLIFFORD, op. cit., p. 34
da criança numa cultura [...] estes estados de inocência ou confusão
são substituídos por um conhecimento adulto, confiante e
desabusado.10

Em razão disso, multiplicam-se as críticas à essa ciência que se propõe a


entender o outro, mas que para cumprir processos objetivos próprios requeridos pelo
conhecimento científico, excluí a parte subjetiva que lhe é cara à obtenção de dados. Por
isso,
[...] é preciso recuperar esse lado extraordinário e estático das relações
entre pesquisador/nativo. Se este é o lado menos rotineiro e o mais
difícil de ser apanhado da situação antropológica, é certamente porque
ele se constitui no aspecto mais humano da nossa rotina. É o que
realmente permite escrever a boa etnografia .11

As vozes que têm se levantado questionando a qualidade de não reciprocidade


da interpretação etnográfica12 e apontado que os antropólogos contam tudo errado13,
sinalizam a necessidade de trazer não apenas os procedimentos utilizados para o alcance
de diferentes discursos dentro de uma comunidade, mas exigem a sua inserção e autoria
na redação do trabalho., isto é, preconizam uma etnografia multivocal.
Apesar de coerente à uma ciência que tem como base a alteridade, essa mudança
coloca sérias questões ao fazer antropológico. Para James Cliffort (2002) se a
autoridade interpretativa está baseada na exclusão do diálogo, o reverso também é
verdadeiro: uma autoridade puramente dialógica reprimiria o fato inescapável da
textualização e pior, não impediria os processos de representação dialógicas, pois a
escrita dos diálogos continuaria a passar pelas mãos do antropólogo, pelas quais haveria
um deslocamento, mas não eliminação da autoridade monológica que é característico de
qualquer abordagem que retrate o etnógrafo como um personagem distinto na narrativa
da trabalho de campo. Ingold (2015), aponta ainda que se a etnografia não é um meio
para o fim da antropologia, isto é, se ela não serve para a obtenção de dados a serem
interpretados a posteriori, então a antropologia também não é o criado da etnografia,
que se coloca nesse caso como um estudo de como escrever etnografia 14, ocupando-se
10
Ibid., p. 42
11
Ibid., p. 173
12
Ibid., p. 43
13
Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/549667-os-antropologos-contam-tudo-errado-nos-
somos-as-autoras-das-nossas-falas
14
Strathern (2014) apresenta o atual retorno a Frazer, autor desprezado pela antropologia moderna por ser
considerado literário demais. Atualmente, as reflexões sobre o fazer antropológico estão focadas no
aspecto da transformação da experiência e dos discursos em texto através de subterfúgios da língua que
criam necessariamente narrativas fictícias e persuasivas. STRATHERN, Marilyn. Fora de Contexto: as
ficções persuasivas da antropologia. In O efeito etnográfico e outros ensaios. São Paulo: Cosac e Naify,
2014, p. 159-209.
das problemáticas reflexivas acerca da transformação da observação para descrição.
Para ele a antropologia é uma investigação sobre as condições e possibilidades da vida
humana no mundo15, é uma filosofia viva16 e por isso mesmo não é apenas a arte da
descrição, mas sim uma prática que por ser dialógica pode ser comparada à uma
correspondência verbal e que pode ocorrer em qualquer lugar, independentemente de se
encontrar como pesquisador fora ou dentro do campo, pois os antropólogos, pensam,
falam e escreve no e com o mundo.17
E não apenas isso, os debates sobre a etnografia estão a ser estendidos para além
da observação, participação, descrição ou escrita narrativa. Para Giumbelli (2002) a
sacralização do trabalho de campo obstaculizou a incorporação de outras técnicas de
pesquisa, que, efetivamente, poderiam se combinar e complementar a prática
etnográfica como um método de obtenção de dados, como por exemplo, a análise de
arquivo. Para esta autora, é possível enxergar outras técnicas utilizadas por Malinowski
que não foram evidenciadas por que a “sinceridade metodológica” deste antropólogo
estava centrada mais na organização e apresentação dos dados obtidos do que nos
procedimentos de sua obtenção18.
A partir do que foi exposto temos no horizonte um dos principais debates atuais
dentro da Antropologia, surgido no bojo de uma crise que de longe já vinha sendo
delineada: em algum momento a antropologia seria um trabalho não exclusivo dos
ocidentais e os pressupostos de sua autoridade incorreriam a esse risco 19. Essas
discussões estão longe de serem encerradas, mas servem para que busquemos novas
propostas de descrições etnográficas que sejam profícuas a construção de trabalhos
polifônicos, bem como novas formas de obtenção de dados que incorporem ao fazer
antropológico outros métodos.
A antropologia social é certamente a disciplina social que mais tem posto em
dúvida e risco alguns de seus conceitos e teorias básicas. Será que estas palavras de Da

15
INGOLD, Tim. Antropologia não é etnografia In: Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento
e descrição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015, p. 21.
16
Ibid., p. 22.
17
Ibid., p. 19-20.
18
GIUMBELLI, Emerson. Para além do “Trabalho de Campo”: reflexões supostamente malinowskianas.
In Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 17, nº 48, fev/2002, p. 102.
19
Levi-Strauss (1961) apontou em sua fala em 1961 que se a Antropologia quisesse sobreviver no mundo
moderno, ela sofreria mudanças profundas, tanto no alargamento de seus limites, quanto em sua
metodologia. Parte dessas mudanças ocorreriam devido ao fato de que os próprios estrangeiros antes
estudados teriam cada vez mais acesso à formação antropológica, deixando de se tornar objeto de estudo
para virar sujeito do conhecimento. LEVI-STRAUSS, Claude. A crise moderna da Antropologia. Revista
de Antropologia, 10(1-2), p. 19-26.
Matta (1987) servirão também aos métodos? Melhor, será que essa transformação dos
objetos de estudo em sujeitos coletivos que implica a conversão de finalidades e
métodos antropológicos como apontou Levi-Strauss (1961) será aceita com satisfação
conforme ele presumiu?
Defendo assim como Ingold (2015) que por ser a Antropologia uma filosofia
viva, deve ser feita com as pessoas e, por isso, o trabalho de campo deve seguir sendo a
principal forma de acesso e de obtenção de dados das sociedades estudadas. Ao mesmo
tempo, sendo a Antropologia uma ciência aberta, novas formas de representar e
descrever a experiência etnográfica e as diferentes vozes que emergem no campo devem
ser aceitas assim como a inserção de estratégias e métodos complementares a ela, desde
que facilite o trabalho do antropólogo conforme os objetivos próprios de sua pesquisa.

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