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FICHAMENTO

Rosa María Torres. Educação popular- um encontro com Paulo Freire. Tradução de Luiz João Gaio. 2 ed.
São Paulo: Edições Loyola, 2002.

P. 26.

 “Compartilhamos com Paulo Freire o interesse e a necessidade de encontrar um método de


aprendizagem – em geral – que seja, ao mesmo tempo, instrumento do ‘educando’ e não apenas do
‘educador’, e que identifique o conteúdo da aprendizagem com o próprio processo de aprender 9...0
Nosso método – e nisto nos afastamos bastante da mecânica seguida por Paulo Freire – baseia-se
85% sobre a lógica da linguagem em suas dimensões visual e auditiva, e apenas 15% sobre as
exceções da linguagem” (materiais necessários”, Operación Uspantan, Guatemala, mimeo., s.d., PP.
6-22-23).

Um Freire que continua sendo recuperado ou rejeitado a partir de sua noão inicial de
“conscientização”, por ele mesmo criticada, denunciada e abandonada há muitos anos.
Nota sobre ‘conscientização’: Fortemente carregado de conotações culturalistas e subjetivistas, o
termo “conscientização” foi gradualmente perdendo terreno no cenário da alfabetização e da
educação popular, embora continue vivo na prática – e no discurso – de muitos grupos de base,
frequentemente diante da falta de um termo alternativo. Mas, com freqência, observamos que aqueles
que o mencionam, com sentimento de culpa, sentem-se obrigados a esclarecer que não se estão
referindo a uma ‘conscientização no estilo de Freire”.
Por outro lado, o peso e a ênfase que um dia se pôs na “conscientização” foram transferidos
para a “participação”, conceito tão impreciso quanto difundido hoje no campo da educação popular.
“A retórica participativa – observa Paiva – invadiu os movimento sde educação popular nos últimos
anos. ‘Participação’ substituiu ‘conscientização’ como palavra mágica do período, terminando por
constituir-se numa fórmula retórica de conteúdo difuso e ambíguo, capaz de legitimar e avaliar as
práticas e propostas mais diversas”.
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Não obstante, ainda que se possam criticar suas posições políticas e a debilidade teórica de seus
primeiros trabalhos, o que hoje pode ser facilmente adjetivado de reformista foi, de fato, altamente
subversivo e inovador no Brasil da década de 60. Questionar a educação tradicional, promover a
conscientização e a libertação dos oprimidos, propugnar um novo tipo de educação dialógica crítica,
participativa, mostrar a eficácia de um método que, em 45 dias, se propunha conseguir que um
analfabeto aprendesse a “dizer e escrever sua palavra”, rompendo seu silênci e sendo “dono de sua
própria voz”, valeu a Freire a prisão e o exílio quando do golbe de Estado no Brasil, em 1964. “Fui
considerado – relata Freire – um ‘subversivo intencional’, um ‘traidor de Cristo e do povo
brasileiro’. “Você nega – perguntava um dos juízes – que seu método é semelhante ao de Stalin,
Hitler, Perón e Mussolini? Você nega que com seu pretenso método o que queria era tornar o país
bolchevique?”
“Logicamente – explicava Júlio Barreiro na introdução à A educação como prática da liberdade – as
classes dominantes não iam tolerar esta transformação de uma sociedade que, chegando às fontes do
conhecimento e tomando consciência, mudaria radicalmente a estrutura do Brasil. Esta mesma lógica
demonstra, contrario sensi, que a pedagogia de Paulo Freire corresponde admiravelmente à
emergência das classes populares na história latino-americana e à crise definitiva das velhas elites
dominantes.”
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O certo é que, mesmo com suas limitações e sua reconhecida ingenuidade e idealismo iniciais, “seu
trabalho deve ser considerado como uma das sínteses pedagógicas mais acabadas do período (...)
Como ‘sujeito pedagógico coletivo’ sintetiza pedagogicamente o espírito da época e, em tal resumo,
realiza a amálgama das principais correntes que foram abrindo caminho nas décadas anteriores”. Sua
contribuição marcou indubitavelmente o início de uma ruptura dentro do campo da educação,
questionando com força o paradigma educativo que prevalecia na época na América Latina.
Reconhecê-lo supõe, necessariamente
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, situar historicamente o pensamento freiriano e sua crítica. Revê-lo e superá-lo, além disso, vem
sendo tarefa em que o próprio Freire esteve ativamente envolvido.
b) sua evolução
“... os que me qualificam assim (como idealista, subjetivista, reformista), baseando-se em momenos
ingênuos de alguns trabalhos meus – hoje criticados por mim também – deveriam obrigar-se a seguir
os passos que dei. Na realidade, em meus primeiros estudos, ao lado de ingenuidades, há também
posições críticas. Além disso, não alimento a iluzão ingênua e pouco humilde de alcançar a
criticidade absoluta. Parece-me que se impõe, aos que me analisam, descobrir qual dos aspectos – o
ingênuo ou o crítico – está sendo sublinhado no desenvolvimento de minha prática e de minha
reflexão.”
“... neste esforço de esclarecimento contínuo hoje continuo. E é isto que vai tornando cada vez mais
difícil que eu seja recuperado (...) É por isso que as críticas que se fundamentam no conhecimento de
um ou outro de meus trabalhos não me parecem justas. Afinal de contas, ainda não morri.”
Ninguém que tenha seguido de perto a trajetória de Freire pode deixar de reconhecer sua
evolução. A importante transformação que experimentaram, ao longo destas duas últimas décadas,
muitas das suas posições teóricas e políticas levou alguns – e a nós mesmos na entrevista – a ver dois
Freires (o de “ontem” e o de “hoje”), quando, como ele mesmo nos retifica, o que há é um só Freire
em movimento. “O Paulo Freire de hoje tem certa coerência com o Paulo Freire de ontem. O Paulo
Freire de ontem não morreu. Quero dizer que estive vivo durante todos estes anos ... Mas o Paulo
Freire de hoje necessariamente traz consigo as marcas da experiência. Por exemplo, o ...
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Paulo Freire de hoje teve a oportunidade, teve a sorte, de conhecer a Nicarágua. Aos 60 anos, eu não
conhecia a Nicarágua, a não ser a Nicarágua dominada. ...
...Como assinala Carlos A. Torres, e o ratificam outros autores, “não há grandes ‘rupturas’ no
pensamento freiriano, mas sim uma evolução. Pode-se dizer que cada afirmação ‘prefigura’ a
seguinte...”
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c) Sua autocrítica
“... em A educação como prática da liberdade, tive alguns momentos que anunciavam que havia sido
picado pelo subjetivismo. O que acontece é que já me fiz esta autocrítica há treze anos, mas há
pessoas que continuam criticando este livro sem ter lido a crítica de mim mesmo.”
De maneira reiterada e até repetitiva, Freire continuou se criticando pela ingenuidade,
subjetividade, ambiguidade e falta de clareza político ideológica de seus primeiros trabalhos, e
reconhecendo sua responsabilidade na “cvooptação” de que foi objeto por parte da direita. Não
obstante, como ele mesmo assinala, seus críticos muitas vezes continuam ignorando tais autocríticas
ou remetendo-as a notas de rodapé. Assim, continuam questionando sua noção de “conscientização”,
sua falta de menção explícita à luta de classes e à dimensão político-ideológica da educação etc.; e
tudo isso já foi sobejamente reconhecido e retificado por Freire.

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“Eu mesmo me faço uma autocrítica e, muitas vezes, mais profunda do que a que me fazem os
críticos que me criticam”, dizia em 1972. “Nos meus primeiros trabalhos, não fiz quase nenhuma
referência – pelo menos não me recordo agora – ao caráter político da educação. Mais ainda, também
não fiz referência ao problema das classes sociais nem à luta destas. Por quê? Creio que a explicação
está em que não fui capaz de esclarecer o processo de conscientização como o fiz com a prática,
produzindo-se assim um distanciamento entre a busca de teorização e a prática que eu fiz (...) Estou
em dívida e aproveito que estou aqui para pagá-la. Essa dívida se refere ao fato de não ter dito essas
coisas, e também reconhecer que não o fiz porque estava ideologizado, ingenuizado como pequeno-
burguês intelectual. E ao não ter feito isto, abri portas para que ingênuos ou ‘vivos’ se apoderassem
do conceito de conscientização para usá-lo e defini-lo, na América Latina, em termos
indiscutivelmente reacionários (...) Não tendo esclarecido a questão das classes sociais, a
dimensão ...
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... política da educação, o pano de fundo ideológico que condiciona os próprios métodos de ação
educativa, abri caminhos para ser ‘cooptado’, embora esta não fosse a minha prática.”
“Faço a mim mesmo a crítica – dizia em 1974 – pelo fato de que, em A educação como
prática da liberdade, ao considerar o processo de conscientização, tomei o momento de
manifestação da realidade social como se fosse uma espécie de motivador psicológico de sua
transformação. Meu erro não consistia, evidentemente, em reconhecer a fundamental importância do
conhecimento da realidade no processo de sua transformação. Meu erro consistiu em não ter tomado
esses pólos – conhecimento da realidade e transformação da realidade – em sua dialeticidade.”
“As possibilidades de ser cooptado pela direita e, às vezes, por uma direita não muito
consciente de ser direita – dizia em 1979 – começaram a preocupar-me intensamente depois de
minha passagem pelo Chile (...) Comecei a preocupar-me com o uso da palavra ‘conscientização’. O
desgaste que esta palavra sofreu na América Latina e depois aqui, na Europa, foi tal que já faz cinco
anos ou mais que não a uso (...) Passei a fazer disso uma denúncia mundial, o que eu chamava de
‘desmistificação da ...
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... conscientização. Então comecei a refletir sobre isso e, na medida em que me relia, fui percebendo
uma certa responsabilidade minha também, na explicação do processo de cooptação de que era
objeto. E esta responsabilidade estava na obscuridade de certas passagens em meus primeiros
trabalhos. Estava na falta de uma maior definição político-ideológica, de um esclarecimento maior de
minha opção política.”
“Autocritiquei-me – dizia em 1985 -, quando vi que parecia que eu pensava que a percepção
crítica da realidade já significava sua transformação. Isto é idealismo. Superei essas fases, esses
momentos, essas travessias pelas ruas da história em que fui picado pelo psicologismo ou pelo
subjetivismo.”
“O Paulo Freire de ontem – diz-nos finalmente na entrevista de 1985 -, um ontem que eu
situaria nos anos 50 e começo dos 60, não via com clareza algo que o Paulo Freire de hoje vê com
muita clareza. E é o que hoje denomino de ‘politicidade da educação’. Isto é, a qualidade de a
educação ser política. Porque a natureza da prática educativa é política em si mesma, e por isso nem
se pode falar na dimensão política da educação, pois toda ela é política. Por isso, o Paulo Freire de
hoje – e este hoje eu o situo a partir do fim dos anos 60 e começo dos 70 – vê claramente a questão
das classes sociais. É por isso que, para o Paulo Freire de hoje, a educação popular, qualquer que seja
a sociedade em que se der, reflete os níveis da luta de classes dessa sociedade.”
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“No que se refere à crítica feita a Freire no sentido de ter concebido a conscientização como o
motor de mudança social e como um processo puramente intelectual, baseado no diálogo e na
reflexão, mas sem nenhuma vinculação com a aação transformadora da realidade, reclamava com
efeito já em 1969: “É necessário deixar bem claro: dado que defendemos a práxis, a teoria da ação,
não estamos propondo nenhuma dicotomia da qual pudesse resultar que esta atividade se dividisse
numa etapa de reflexão e outra diferente, de ação. Ação e reflexão, reflexão e ação dão-se
simultaneamente (...) E é precisamente quando as grandes maiorias perdem o direito de participar
como sujeitos da história que estas se encontram domnadas e alienadas. O intento de ultrapassar o
estado de objetos para o de sujeitos – que constitui o objetivo da verdadeira revolução – não pode
prescindir da ação das mas- ...
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-sas que incide na realidade, nem de sua reflexão. Seríamos idealistas se, dicotomizando a ação da
reflexão, estendêssemos ou afirmássemos que a mera reflexão sobre a realidade opressora que
levasse os homens à descoberta de seu estado de objetos já significasse ser sujeitos” (P. Freire,
Pedagocia do oprimido, op. Cit., PP. 162, 165 e 166)
Nessa mesma linha, por outro lado, declarava em 1971: “... a conscientização não consiste em
‘estar frente à realidade’, assumindo uma posição falsamente intelectual. A conscientização não pode
existir fora da práxis, isto é, sem o ato de ação-reflexão” (P. Freire, Conscientização, op. Cit, p. 30)
E mais claramente, em 1973 e 1974: “ Se não houver uma transformação radical das estruturas da
sociedade que explicam a situação objetiva em que se encontram os camponeses, eles continuarão
nela, explorados da mesma forma, por mais que muitos deles tenham até captado a razão de ser de
sua própria realidade. É que um desvelamento da realidade que não esteja orientado no sentido de
uma ação política sobre uma realidade, bem-definida e clara, não tem sentido” (Conscientización y
liberación: uma charla com Paulo Freire” Genebra, 1973 in P. Freire, La importância de leer y El
proceso de liberación, op. Cit., p. 32-33). “A conscientização não se pode deter na etapa do
desvelamento da realidade. Sua autenticidade se dá quando a prática do desvelamento da realidade
constitui uma unidade dinâmica e dialética com a prática da trasnformação da realidade.” (“Algumas
notas sobre conscientización”, Genebra, 1974 in P. Freire, ibidem, p. 86)

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