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8 Porfírio usa o termo apokhé (abstinência) para referir-se à alimentação sem carne
(ásarkos). Também uso a expressão seres dotados de alma (empsýkoi), que aliás aparece
já no título do texto: Peri apokhés empsýkon, cuja tradução latina de Felicianus (1547) é
De abstinentia animalium. É de uso comum, todavia, nos comentários e introduções ao
DA o termo “vegetarianismo” e seus cognatos. De fato, “vegetarianismo” é uma palavra
anacrônica para o mundo grego, embora o sentido geral do termo também possa
indicar adequadamente motivos que levam à opção pela abstinência de carnes na
Antiguidade. Segundo Kheel (2004, 1273) a palavra vegetariano é geralmente reservada
para a decisão consciente de se abster de comer carne, com bases filosóficas, éticas,
metafísicas, crenças científicas ou nutricionais. O termo apareceu pela primeira vez na
década de 1840, derivado da raiz vegetus, que significa “todo e vital”.
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inclusive pelos pobres, contra sua vontade. Dito de outro modo, a frugalidade
é o regime habitual de redução dos alimentos, seja em quantidade, ou em
qualidade9. Aqui, surge um outro problema, segundo o qual a carne é difícil
de preparar, agradável ao paladar e pesada para a digestão, em consonância
com argumentos de Plutarco10. Além desse, existe a crença de que comer
carne representa uma injúria à saúde do corpo ou da alma. Este é um
pensamento derivado da antiga medicina, que associa a moderação ou o
ascetismo à cura das doenças, e não é estritamente vegetariano, pois em
certos casos, implica na supressão de outros alimentos, e não diz respeito
ao problema específico de matar um animal.
O vegetarianismo, no entanto, permite caracterizar um modo de
vida que se opõe ao dos homens comuns, que é expressão da sabedoria,
ou ao menos uma via de acesso a ela (Bouffartigue; Patillon, 1979, LXV).
Para Porfírio, a abstinência de carnes faz parte de um certo modo de vida
filosófico, o qual ainda merece ser explicado sob outros aspectos.
9 Um regime frugal evita alimentos muito pesados, mas também muito saborosos, dentre
os quais as carnes ocupam um papel de destaque. Platão, por exemplo, recomenda
um regime frugal aos guardiães da cidade que não é absolutamente vegetariano: eles
podem comer carne assada (Rep., II, 372 c-d; III, 404 a-c).
10 Por exemplo, em I, 46, 2. Mas ao longo da série argumentativa a favor do vegetarianismo,
no livro I, são desenvolvidos tais argumentos. Até I, 27, Porfírio menciona argumentos
pró-carne, que vai refutar parcialmente depois. Já Plutarco, por sua vez, relaciona a carne
ao luxo, aos excessos do prazer do paladar e ao requinte e dificuldade da preparação.
Este último ponto é interessante, porquanto ele insiste que é preciso matar, limpar e
temperar para disfarçar o gosto do cadáver, e cozinhar. Segundo Plutarco, em De Esu
Carnium, 995 b-c, a carne não é um alimento natural para o homem, que não possui
bico, ou dentes pontudos e garras para destroça-la e comer crua, além de exigir uma
preparação requintada, diferente da alimentação frugal à base de cereais, legumes e
verduras, que dispensaria cozinheiros e maîtres, podendo ser facilmente preparada.
Ademais, não estufaria o estômago, sendo de fácil digestão, e não atiçaria os prazeres
corporais do paladar.
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imitação do divino (DA, II, 3, 1)13. Deste modo, Porfírio não parece propor um
modo de vida amplamente subversivo, mas antes, ele tenta encontrar uma
solução coerente com o modo de vida filosófico, a que convoca Castrício,
e as práticas religiosas da cidade, que são também políticas, o que é um
dado importante, porquanto Castrício mantinha um vivo interesse pela vida
política, tendo optado por ela14. Assim sendo, por um lado Porfírio tentará
encontrar uma solução para o problema do sacrifício, por outro, manterá
os filósofos como uma categoria específica, que não necessita seguir os
mesmos preceitos de outras.
Com efeito, Porfírio vai elencar uma série de argumentos para que,
por um lado, não se sacrifiquem animais, por outro, para que, caso seja
licito a alguns tipos de homens, como os atletas, por exemplo, alimentar-se
de carnes, que isso não se estenda equivocadamente aos filósofos, cujas
fadigas não são as mesmas. Ele enceta então uma história dos sacrifícios,
localizando a origem do sacrifício animal nas fomes e nas guerras, que não
cabe aqui comentar, pois excederia os limites deste estudo. Todavia, é neste
contexto que Porfírio indaga: por que se deve oferecer aos deuses vítimas
que devem morrer? (DA, II, 23, 1) Há três motivos para sacrificar aos deuses,
para honrá-los, para agradecer, para obter bens. Mas, ele indaga ainda, a
divindade receberia honrada uma oferenda que manifestamente seja
resultado de um ato ultrajante? (DA, II, 24, 1-2) Ora, em um passo anterior,
Porfírio havia estabelecido que o sacrifício é um rito sagrado (hosía). Mas
não é sagrado sacrificar os bens de outrem, quando não são dados. Frutas
caídas sobre a terra, por exemplo, podem ser oferecidas em sacrifício sem
ultrajar a ninguém, porquanto caíram da árvore. A questão colocada por
Porfírio é, então, a seguinte: o sacrifício deixa de ser sagrado quando se
usurpa um bem alheio; ora, a alma é o bem mais precioso dos animais.
Logo, ao separá-los da alma, com a morte, o mal imputado a eles acaba
sendo maior que o bem ofertado aos deuses (DA, II, 12, 4). Deste modo,
no capítulo 24, ao retomar a questão, Porfírio assevera que não se deve
sacrificar animais para obter benefícios, porque não é possível receber
um benefício com uma ação injusta. O problema da justiça em relação
aos animais é assim pontuado no debate acerca do sacrifício, mas será
retomado com mais força no livro III, sob outros aspectos, como será visto.
Cabe notar aqui, no entanto, que um primeiro dever de justiça em relação
aos animais aparece ligado aos deveres humanos em relação aos deuses, e
13 No livro I Porfírio deixa claro que a dieta sem carnes (ásarkos díaita) é recomendada aos
filósofos, e não a todas as pessoas. Ver, e.g., I, 27, 1.
14 Castrício foi discípulo e amigo de Plotino, praticando durante certo tempo uma
dieta vegetariana. Admirava muito o mestre, que por ele nutria grande respeito, o
considerando um homem justo. Ele fornecia os viveres necessários à subsistência de
Plotino, vindos de sua propriedade em Minturno. Ao que parece, foi somente após a
morte de Plotino que Castrício abandonou a dieta. Sobre a relação entre Castrício e
Plotino, consultar Porfírio, Vida de Plotino, II, 22 e 33;
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17 Este ponto da identidade essencial entre a alma dos animais e a alma humana é
importante, porquanto ele ressoa na tese da familiaridade, que é apresentada adiante
no DA, justamente sob a autoridade de Teofrasto.
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18 Aqui é preciso fazer uma ressalva quanto ao pano de fundo aristotélico. Com efeito,
pode-se observar que já em Aristóteles a ausência de racionalidade dos animais é
a verdadeira base da sua exclusão do campo ético. Como mostra Lefevbre (2013,
p. 108-109), Aristóteles atribui aos animais a percepção, e em níveis diversos, a
imaginação, a memória, o acesso à experiência, e mesmo uma certa phrónesis.
Contudo, ele professa de modo constante que os animais não humanos são
desprovidos de racionalidade, e por isso entre o homem e o animal não pode haver
relações de amizade, nem de justiça. Ver p. ex., Ética a Nicômaco, VIII, 13.
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19 Este tema parece ter sido cogitado pela primeira vez por Porfírio (Dombrowski, 1984,
142)
20 “Especismo (...) é o preconceito ou a atitude tendenciosa de alguém a favor dos interesses
de membros de sua própria espécie e contra os de outras” (Singer, 2004, 8). O termo foi
cunhado em analogia aos termos racismo e sexismo.
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Considerações finais
21 Dias (2012, 90) reduz os elementos que definem a relação de parentesco entre homens
e animais à capacidade de ter sensações.
22 Trata-se provavelmente da genealogia mítica de Urano e Gaia, em Hesíodo, Teogonia.
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Bibliografia
Edições do De Abstinentia
Bibliografia secundária
KHEEL, M (2004). “The history of vegetarianism”. In: Krech III; McNeil, J. R.;
MERCHANT, C. (ed.). Encyclopedia of Woorld Environmental History. Vol. 3.
New York, Routledge, pp. 1273-1278.
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