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ANESTESIA DE URGÊNCIA NO PACIENTE COM ESTÔMAGO CHEIO

Lucas de Medeiros Corbellini


Gilda Guerra
Régis Borges Aquino

UNITERMOS
ANESTESIA; URGÊNCIA; ESTÔMAGO CHEIO.

KEYWORDS
ANESTHESIA; URGENCY; FULL STOMACH.

SUMÁRIO
O objetivo deste artigo de revisão é explorar os últimos aspectos da
anestesia e das técnicas de proteção de via aérea no paciente que não consegue
completar o tempo de jejum pré-operatório mínimo devido a uma situação de
emergência, onde o risco de aspiração de conteúdo gástrico e suas repercussões
podem agravar significativamente o prognóstico e a sobrevida.

SUMMARY
In this review article will be explored the latest aspects of anesthesia and
airway protection techniques on patients who can’t complete the preoperative
fasting period due to an emergency situation, where the risk of aspiration of
gastric content and its repercussions may significantly worsen the prognosis and
survival.

INTRODUÇÃO
Procedimentos cirúrgicos de emergência constituem um desafio para o
anestesista, onde anamnese, exame físico e preparo do paciente ficam
comprometidos. Sobrepõe-se a isso, o fato deste apresentar enfermidade
crítica, necessitando de correção cirúrgica imediata. O tempo de jejum
preconizado não é observado, e a presença de restos alimentares, sangue e
outros fluidos, presumida ou não, no interior do estômago e sua consequente
migração para a via aérea pode ser catastrófica. Outras situações clínicas
podem cursar de forma semelhante, como gravidez, obstrução intestinal, hérnia
hiatal, neuropatia diabética, anestesia superficial e distúrbios motores
gastrointestinais. A aspiração maciça de conteúdo gástrico, principalmente com
pH ácido, pode cursar com pneumonite química severa, levando a destruição do
surfactante e da superfície alveolar, repercutindo em consequente hipoxemia
progressiva e insuficiência respiratória.
Serão abordados a seguir, as principais técnicas e recursos empregados
atualmente para garantir maior segurança e sucesso durante o procedimento
anestésico, diminuindo potencialmente os riscos inerentes a este cenário.

PRÉ-ANESTESIA
Deve-se checar por drogas administradas previamente ao paciente.
Possíveis interações podem orientar ao aumento ou redução de doses durante
o procedimento. O estado volêmico também pode estar alterado e talvez
demande ajustes e reposição com cristalóides ou solução fisiológica.4 Procede-
se o exame cuidadoso da cavidade oral em busca de deformidades, corpos
estranhos, e outros possíveis complicadores para a intubação. Outra ferramenta
útil, quando disponível, é a ecografia abdominal para determinar a presença de
grandes volumes de resíduos alimentares.4 Atualmente, não há consenso em
relação ao posicionamento do paciente para prevenção de aspiração.

PREPARO DO ESTÔMAGO
Drogas pró-cinéticas, protetores de mucosa e anti-ácidos: Quando
possível, devem ser aplicadas de rotina nestes pacientes, com o objetivo de
acelerar o esvaziamento gástrico e diminuir o pH do seu conteúdo. Estas drogas
em conjunto ajudam também na redução da emese durante a extubação.
Bloqueadores da Dopamina: Os principais representantes deste grupo são
a metoclopramida e a domperidona. A metoclopramida é a mais usada, em
dose de 10mg EV, 15 minutos antes.1,2 Estes fármacos atuam estimulando o
peristaltismo, reduzindo o risco de aspiração. A associação com bloqueadores
H2 promove melhor proteção contra regurgitação.1,2
Bloqueadores de receptores H2: Agem reduzindo o pH por bloqueio da
secreção ácida e levam de 60 a 90 minutos para o início de ação. Cimetidina e
ranitidina são exemplos desta classe, utilizados com frequência. A ranitidina é
usada em dose de 150mg VO, 90 minutos antes do procedimento.1,2
Inibidores da bomba de prótons: Alternativa aos antagonistas H2, também
podem ser empregados na tentativa de reduzir a secreção de ácido, aumentada
em situações de stress e trauma. Omeprazol, droga precursora de sua classe, é
utilizada em dose de 40mg EV, 30 minutos pré-anestesia.1,2
Anti-ácidos: Seu uso é controverso, pois o volume necessário para a ação
esperada, poderia gerar resíduo gástrico passível de aspiração. Quando se
decide pelo seu emprego, preferem-se os não-particulados, como o citrato de
sódio, 30 mL via oral, 15 a 20 minutos antes da anestesia.1,3
Passagem de sonda nasogástrica para esvaziamento: Deve ser utilizada de
rotina e mantida, se possível, durante todo o procedimento. A drenagem a
vácuo não garante esvaziamento completo, porém reduz substancialmente a
quantidade de líquido e ar no estômago. Antes da anestesia de emergência
deve ser realizada nova aspiração.1,2,3
Intubação esofágica: Útil em pacientes com sinais de obstrução intestinal,
distensão abdominal e outros sinais de presença de grandes volumes
estomacais. É realizada intubação proposital do esôfago sob visualização direta
durante a laringoscopia, promovendo expulsão do conteúdo em recipiente
adequado, prevenindo que volumes maciços adentrem a via aérea e aliviando a
pressão intra-abdominal.

MANEJO DE VIAS AÉREAS


Pré-oxigenção: Esta etapa consiste em fornecer oxigênio em altas
concentrações para garantir a saturação durante o período de apnéia.
Idealmente preconizam-se 5 minutos de ventilação com oxigênio em alta
concentração. É importante que se obtenha ventilação pulmonar eficiente, pois
em situações de emergência o consumo de oxigênio está elevado. A ventilação
com pressão positiva por máscara está contra-indicada pelo risco de distensão
gástrica e migração do conteúdo para a traquéia. Está justificada apenas em
caso de falha na intubação para corrigir eventual dessaturação.2,3
Manobra de Sellick: Manobra de Sellick ou pressão cricóide, consiste em
uma força de aproximadamente 10 pounds (~4,5 kg) aplicada com a mão sobre
a cartilagem cricóide, com o objetivo de comprimir e ocluir o esôfago do
paciente, prevenindo o refluxo de conteúdo gástrico para a faringe durante a
entubação. Deve ser mantida até o balonete estar completamente insuflado e
ser confirmada a posição do tubo. É tentativa válida também em vias aéreas
projetadas anteriormente ou presumidamente difíceis. Apesar de amplamente
utilizada, estudos recentes questionam a validade deste método, argumentando
não haver comprovação científica, além da possibilidade de acarretar lesões e
outras complicações.2,4

DROGAS
Relaxantes musculares: Reconhecidamente as drogas de escolha nesta
situação são os agentes despolarizantes, que agem bloqueando a junção neuro-
muscular de forma não-competitiva. A principal droga é a succinilcolina,
utilizada em dose de 1,0-1,5mg/kg. Apresenta relaxamento de instalação rápida,
aproximadamente 60 segundos, e meia-vida curta, com o efeito cessando em 10
minutos. Pode causar fasciculações durante a indução. A prevenção com
agentes adespolarizantes é controversa devido a efeitos indesejados. É também
causadora de efeitos colaterais graves, como hipercalemia, bradicardia, reação
anafilática e hipertermia maligna. Em casos de contra-indicação formal ao uso
de succinilcolina, como em trauma raquimedular e doenças neuromusculares, o
rocurônio é alternativa.3,4

Agentes indutores: Não existe droga de escolha, porém algumas


apresentam vantagens em certas circunstâncias.
Tiopental: Barbitúrico de ação ultracurta, diminui o consumo de oxigênio
pelo cérebro e a pressão intracraniana, usualmente mantendo pressão de
perfusão cerebral. Empregam-se doses de 3-5mg/kg em adultos e 5-8mg/kg em
crianças, que devem ser reduzidas à metade na suspeita de hipovolemia.
Principais efeitos colaterais incluem vasodilatação e depressão miocárdica,
podendo levar a hipotensão severa.2,4
Propofol: Também pode ser utilizado, mas também promove hipotensão
pelos mesmos fatores que o tiopental. A indução é obtida com 1,5-2,5mg/kg EV,
dose que deve ser diminuída em quadros hipovolêmicos.2,3
Etomidato: Este agente apresenta a melhor estabilidade cardiovascular,
boa alternativa em pacientes instáveis. Tem características semelhantes ao
tiopental em relação ao metabolismo cerebral, sendo útil também em casos de
pressão intracraniana elevada. Obtém-se indução satisfatória com níveis de 0,2-
0,3mg/kg EV. Contraindicado na sepse por causar supressão adrenal.3,4

Analgésicos opióides: Essenciais para promoção de analgesia adequada,


seu uso deve ser cauteloso devido a depressão cardiovascular em pacientes já
comprometidos. Fentanil, alfentanil, sufentanil e remifentanil são exemplos de
opióides modernos, com características farmacológicas individuais, escolhidos a
critério do profissional.4,5

SEQUÊNCIA DE INTUBAÇÃO RÁPIDA


É o padrão-ouro na prevenção de aspirações nos pacientes de risco, com
instabilidade hemodinâmica e via aérea difícil. O principal objetivo desta técnica
é minimizar o intervalo de tempo entre via aérea desprotegida e balonete
insuflado. Quando presente, a sonda nasogástrica deve ser aspirada e removida
se interferir com a boa adaptação da mascara. A incidência de aspiração diminui
com a permanência da sonda durante indução e manutenção da anestesia. Caso
opte-se por desfasciculação, um bloqueador neuromuscular adespolarizante
deve ser administrado, pelo menos, 3 minutos antes da succinilcolina. A
anestesia é induzida com o agente hipnótico escolhido, dependendo da
estabilidade cardiovascular. O indutor é seguido da succinilcolina (1-2mg/kg).
Um auxiliar encarrega-se de aplicar pressão sobre a cartilagem cricóide,
comprimindo a porção cervical do esôfago contra o corpo da sexta vértebra
cervical. Esta pressão só deve ser aliviada quando houver via aérea garantida e
protegida. O paciente não deve ser extubado sem nova aspiração, estar
acordado e apresentando reflexos protetores das vias aéreas.1,2,5

INTUBAÇÃO COM O PACIENTE ACORDADO


Com o intuito de preservar os reflexos laríngeos durante a obtenção de via
aérea definitiva, pode-se optar por intubação com o paciente acordado, se este
apresentar maior estabilidade cardiovascular e nível de consciência adequado.
Este deve ser esclarecido sobre os passos do procedimento, que pode gerar
desconforto. Após garantir monitorização adequada e acesso venoso,
prossegue-se com sedação consciente, onde o paciente segue instruções
simples, responde ao anestesista e ao ambiente. Promove a ansiólise e
atenuação dos reflexos de via aérea. Há diversas opções de indução com drogas
tradicionalmente utilizadas em anestesia geral, porém, em doses reduzidas.
Dentre as opções, benzodiazepínicos como midazolam, EV, 1-3mg/kg e
diazepam 0,1mg/kg com incrementos de 2,0-2,5mg a cada 2 a 4 minutos,
oferecem adequada sedação. Opióides também podem ser utilizados, mas com
cautela devido à depressão respiratória. O propofol é outra alternativa,
entretanto, com infusão gradual para não desencadear apnéia. É necessário
realizar anestesia local da orofaringe com spray de lidocaína 10%. O uso de
atropina previamente para reduzir secreções nas vias aéreas é discutível devido
a possíveis repercussões cardiovasculares. Procede-se então a intubação
endotraqueal.2,4,5

SÍNDROME DE ASPIRAÇÃO
A síndrome de aspiração é uma complicação grave, com incidência de 1 a 7
casos por 10.000, em todas as anestesias, e taxa de mortalidade de 5%.
Necessidades crescentes de O2, taquipnéia, roncos e sibilos, broncoespasmo,
aumento na resistência da via aérea, hipóxia, além da presença de vômito são
sugestivos do quadro, que pode passar despercebido pelo anestesista. Alguns
fatores como volume aspirado, pH menor que 2,5 e condições do paciente estão
associados a quadros mais graves. Cursa com edema intersticial, ruptura
alveolar e atelectasias. Tardiamente inicia-se resposta leucocitária difusa, que
pode conduzir a insuficiência respiratória. A destruição da arquitetura pulmonar
é menos severa em aspiração de fluidos não-ácidos. O tratamento consiste em
aspiração vigorosa da via aérea por broncoscopia e suporte ventilatório
adequado. Estes pacientes devem permanecer em observação e realizar
radiografia de tórax, alterada em até 90% dos casos. Antibióticos são úteis se
houver suspeita de aspiração com germes Gram negativos ou anaeróbios, como
na obstrução intestinal. Complicações relatadas incluem empiema, abcesso
pulmonar, SARA e insuficiência respiratória. Corticóides não tem demonstrado
utilidade em humanos.4,5

CONCLUSÃO
A migração de conteúdo gastrointestinal para a via aérea é uma das
complicações mais temidas em anestesiologia, devido à alta incidência de
desfechos graves, inclusive óbito por insuficiência ventilatória. Em
procedimentos eletivos com jejum adequado, este risco é pequeno. Entretanto,
nas situações de urgência e emergência, é mandatório que o profissional esteja
consciente desta possibilidade, alerta e preparado para conduzir a anestesia da
forma mais segura possível. Isto depende diretamente da experiência do
anestesiologista, do domínio das técnicas de proteção de vias aéreas e do
reconhecimento precoce de sinais de aspiração.

REFERÊNCIAS
1. Manica J. et al. Anestesiologia: princípios e técnicas. 3. ed. Porto Alegre: Artmed; 2004. p. 1102-3.
2. Barash P, Cullen B, Stoelting R. Clinical anesthesia. 3ª ed. Philadelphia: Lippincot-Raven; 1997. p.
1174-5.
3. Dunn P, et al. Clinical Anesthesia procedures of the Massachussets General Hospital. 7th ed.
Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins; 2007.
4. Duke J. Segredos em anestesiologia. 3ª ed. Rio de Janeiro: Grupo A; 2009. p. 72-5; 287-9.
5. Guirro UB, Martins CR, Munechika M. Assessment of anesthesiologists rapid sequence induction
technique in an university hospital. Rev Bras Anestesiol. 2012 May-Jun; 62(3):335-45.

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