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APRENDIZAGEM

MOTORA E
PSICOMOTRICIDADE
Eduardo Okuhara Arruda

E-book 1
Neste E-Book:
INTRODUÇÃO����������������������������������������������������������� 3
O QUE É PSICOMOTRICIDADE?������������������������� 4
ANTROPOMORFISMO E ADAPTAÇÕES
HOMINÍDEAS�����������������������������������������������������������12
APRENDIZAGEM MOTORA, LINGUAGEM
E EDUCAÇÃO FÍSICA��������������������������������������������28
CONSIDERAÇÕES FINAIS���������������������������������� 40

2
INTRODUÇÃO
Este e-book está organizado em três tópicos. No
primeiro, você conhecerá um campo de estudo mul-
tidisciplinar, a Psicomotricidade, que é uma área de
conhecimento importantíssima para a Educação
Física, visto que é uma área que estuda o corpo em
movimento em todas as fases da vida e, em especial,
o que acontece com o ser humano ao se movimentar.

No segundo tópico, você analisará a motricidade de


nossos ancestrais, isso mesmo, nossa motricidade
ancestral de milhões de anos e sua evolução, além da
evolução do corpo e, ainda, nossa evolução cerebral.

Por fim, no terceiro e último tópico, vamos abordar o


desenvolvimento das habilidades motoras e da lin-
guagem, como habilidades indissociáveis que atuam
de forma integrada com um alto nível de organização.

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O QUE É
PSICOMOTRICIDADE?
Você já ouviu falar em Psicomotricidade? Bem, va-
mos lá. Vamos fazer um exercício cognitivo. Procure
pensar nessa palavra, mentalize-a e descreva uma
frase mentalmente que possa compor um significa-
do sobre a mesma. A essa altura, imagino que você
tenha pensado em aspectos psicológicos junto com
o movimento do corpo. Se foi nessa direção, muito
bem, é por aí mesmo.

Para este início de estudo, vale considerarmos que


nossa condição corporal é vivenciada integralmente.
Ou seja, uma corporeidade vivida em nossa totalida-
de enquanto experiência integral – portanto viven-
ciada de modo cognitivo (pensamento), emocional
(sentimento) e motor (movimento) na relação com o
meio social, cultural e, ainda, dentro de um contexto
histórico, político e econômico – constitui a base
evolutiva de nossa espécie humana.

Então podemos dizer que tudo começa pelo corpo


e pelo movimento, as bases evolutivas da humani-
dade. Assim, perante esse início de nossa conversa,
perguntamos: a Educação Física é só jogar bola?

Após essa primeira análise sobre o corpo como a


base do desenvolvimento humano, torna-se neces-
sária uma compreensão deste corpo que se move
no mundo. Nesse sentido, vale destacar-se que foi
justamente o corpo em ação que permitiu à espécie

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humana alcançar tão sublimado nível de sofisticação
em termos sociais e culturais.

Com efeito, o ser humano possui quatro importan-


tes núcleos que integrados contribuíram para esse
desenvolvimento extraordinário: o corpo, o cérebro,
a motricidade e a mente. Mas voltemos ao termo
Psicomotricidade. Como já sinalizado anteriormente,
Psicomotricidade é a junção dos termos psiquismo
e motricidade, o que nos remete a uma ideia neuro-
funcional e neurodesenvolvimental do ser humano.

A partir dessa primeira análise, de uma estruturação


conceitual sobre a Psicomotricidade, agora cabe-nos
entender o termo psiquismo. O psiquismo pode ser
entendido pelo conjunto de operações mentais, inte-
grando sistemicamente sensações, percepções, ima-
gens, emoções, afetos, medos, simbolizações, ideias
etc., bem como os processos sociais que envolvem
as interações humanas. Já a motricidade tem a ver
com o movimento humano, isto é, um movimento
impregnado de cognição e emoção, objetivo e inten-
cionalidade. Desse modo, o próprio desenvolvimento
psíquico ou mental tem como ponto de partida o cor-
po. Portanto, podemos falar de um desenvolvimento
psicocorpóreo ou psicomotor, tendo em vista que o
cérebro se constitui como um órgão que integra o
corpo (FONSECA, 2018).

Nessa perspectiva, é possível falarmos sobre uma


evolução psíquica ou mental decorrente da própria
motricidade do corpo, o que equivale a dizer que sem
a motricidade, sem o corpo em ação na relação com

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o meio, não haveria psiquismo e tampouco lingua-
gem e cultura. Dentro desse campo de análise, a
motricidade tem que ser compreendida como uma
ação humana dentro de um contexto sociolinguístico,
de modo que o movimento carrega em si aspectos
culturais e, portanto, códigos linguísticos.

Com maior grau de profundidade, podemos falar


que a Psicomotricidade tem como campo de estudo
uma matriz teórica multidisciplinar e transdisciplinar
(o conhecimento para além das disciplinas, isto é,
sendo construído a partir da complexidade e de múl-
tiplos saberes), que investiga as complexas relações
da motricidade com a totalidade da personalidade
que caracteriza o sujeito em suas intrincadas rela-
ções afetivo-emocionais e psicossociocognitivas
(FONSECA, 2018).

A partir das considerações que foram até aqui apre-


sentadas, imaginamos que tenha sido possível com-
preender a Psicomotricidade como um campo de co-
nhecimento que estuda as relações complexas entre o
corpo e o movimento e, assim, o entendimento de que
o movimento é estruturante da personalidade deste
ser que se move no mundo dentro de um contexto
social e cultural, portanto, o ser humano em ação.

De todo modo, cabe reiterarmos, então, que o objeto


de estudo da Psicomotricidade é o ser humano que
por meio de seu corpo em movimento interage com
o mundo interno e externo, ou seja, psíquico e físi-
co. A Psicomotricidade, portanto, está relacionada
ao processo maturacional do ser humano, onde o

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corpo é base das aquisições motoras, cognitivas e
afetivas e tem como ponto de partida o movimento,
o intelecto e o afeto, dimensões indissociáveis da
nossa corporeidade.

Em suma, a Psicomotricidade parte de uma concep-


ção de um movimento humano que tem como carac-
terística ser organizado e integrado, justamente em
função das experiências vividas pelo sujeito no qual
a ação é o desdobramento do seu eu consciente, da
sua linguagem dentro de um contexto sociocultural
(ASSUNÇÃO; COELHO, 1997).

Assim, para Assunção e Coelho (1997), por meio


das experiências lúdicas como jogos e brincadeiras,
o sujeito desenvolve aspectos simbólicos como a
imaginação e a interpretação, mas também habilida-
des motoras coordenadas e, sobretudo, formas de
coordenar o relacionamento social e cultural mediado
pela linguagem.

Vamos fazer um exercício cognitivo? Quais as ha-


bilidades que podem ser desenvolvidas a partir da
atividade lúdica com uma corda?

Bem, vamos imaginar um grupo de crianças entre


seis e sete anos brincando com corda sob a media-
ção de adultos responsáveis pela coordenação da
atividade. Os adultos estarão batendo a corda em
um determinado sentido e solicitam que as crianças
apenas passem com sua habilidade motora básica
de deslocamento seguindo a direção da corda. Elas
podem passar à vontade e voltar para a sua posição
com liberdade, de forma bem descontraída e prazero-

7
sa. São orientadas apenas no sentido de não deixar
a corda bater no corpo delas, para tanto, precisam
agir estrategicamente em termos de noção espaço-
-temporal, coordenação motora, planejamento das
ações e motivação para a ação.

Após um tempo com essa habilidade motora de des-


locamento sendo desenvolvida, tendo como objetivo
passar de um ponto a outro, seguindo o sentido da
corda, os adultos agora solicitam que façam a mes-
ma coisa, todavia a tarefa agora é mais complexa
porque o sentido da corda mudará, ou seja, a corda
agora estará sendo batida na direção das crianças.
Dessa forma, indo na direção delas, a habilidade
motora não será apenas a de deslocamento, mas
integrará a tarefa motora do salto para transpor a
corda, uma vez que a corda irá na direção dos pés
das crianças, exigindo, dessa maneira, um salto.

Temos, agora, além de uma nova demanda em ter-


mos de habilidade motora básica, uma outra deman-
da cognitiva, além da noção espaço-temporal, uma
reorganização mental estratégica para uma possível
resolução de um problema, notadamente mais com-
plexo. Nessa ordem das coisas, é possível falarmos
também em ajustes emocionais como coragem, mo-
tivação, resiliência, autoconfiança e autoestima, ne-
cessárias para a atividade, sem contar com a alegria
e o prazer na ação. Na maioria das vezes, as crianças
gostam de atividades como essa.

Assim, com essa simples descrição de uma ativida-


de prática, lúdica, mas riquíssima em termos de de-

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senvolvimento psicomotor, talvez tenha ficado mais
compreensível para você a importância da Educação
Física no desenvolvimento psicomotor das crianças.

Figura 1: Crianças em atividade psicomotora com corda. Fonte:


Goiana.gov

Bem, vamos aprofundar mais um pouco. Em síntese,


costumo apresentar esse exemplo para identificar-
mos o quanto as atividades na Educação Física são
psicomotoras e contribuem, a partir da ação corporal,
com o desenvolvimento integrativo das crianças.

A Educação Física é uma fonte de reintegração do cor-


po e a Psicomotricidade, notadamente, é a educação
pelo movimento, com atuação sobre a cognição, em
uma relação indissociável entre pensamento e ação,
englobando funções neurofisiológicas e psíquicas.

Vale frisarmos que a Psicomotricidade, com base na


psicogenética, compreende o ser humano de uma

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maneira ativa em relação ao meio, aproveitando, den-
tre muitas formas, as atividades lúdico-corpóreas ou
ludomotrícias para o desenvolvimento de habilida-
des sociocognitivas como um amplo campo a ser
potencializado.

Vale ressaltarmos que essa maneira lúdica, prazerosa


e com entendimento de corpo na sua integralidade
pode ser desenvolvida em todas as disciplinas es-
colares, não apenas na Educação Física. A partir do
corpo em movimento, do fazer, é possível construir
uma multiplicidade de saberes.

Rocha e Zagato Neto (2012) asseveram que o corpo


opera como porta de entrada (input) e saída (output)
da aprendizagem; utiliza-se, portanto, o psicomotor
como fonte de experiências lúdico-expressivas e,
assim, como atividades formadoras e integrativas.

Mediante essas análises, pode-se pressupor que a


qualidade da relação afetiva está associada à psico-
motricidade, bem como à mediação, à disponibilidade
tônica, à segurança gravitacional e ao controle postu-
ral, à noção corporal, sua lateralização e direcionali-
dade e, ainda, à planificação práxica (do movimento
consciente), componentes essenciais e globais da
aprendizagem e do seu ato mental concomitante
(FONSECA, 2008 apud ROCHA; ZAGATO NETO, 2012).

Em última instância, vale considerarmos que a es-


timulação neuropsicológica pode ser citada como
fator que faz parte do processo de desenvolvimento.
Dito isto, claro está que a motricidade se funda na
ideia de que os conceitos básicos de aprendizagem,

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como dentro/fora, alto/baixo, perto/longe, esquerdo/
direito, grande/pequeno etc. são experimentados
inicialmente no corpo para que na sequência pas-
sem a ser representados cognitivamente (SOARES
et al., 2012).

Nesse contexto, o desenvolvimento dos dispositi-


vos sensoriais está relacionado ao desenvolvimento
psicomotor e ambos são indissociáveis. O desenvol-
vimento psicomotor da criança deve ser compreen-
dido como uma integração sensorial em construção
contínua e coordenada. De toda forma, é tarefa do
professor ou professora de Educação Física ensinar
a criança a experienciar o próprio corpo como um “Eu
sou” a ser descoberto, desenvolvido e potencializado
(ROCHA; NETO, 2012).

Dessa maneira, dentro de um contexto do brincar e


jogar, as atividades ludomotrícias, como pega-pega,
amarelinha, barra-manteiga, mãe da rua, quatro-can-
tos, vivo ou morto, brincadeiras de roda, corre-cotia,
entre outras, são autênticas expressões de desen-
volvimento integrativo, neuropsicomotor e, portan-
to, de uma formação saudável em que o corpo em
movimento é a base para a construção de si mesmo
e, ainda, para a composição de diferentes saberes,
fazeres e quereres.

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ANTROPOMORFISMO
E ADAPTAÇÕES
HOMINÍDEAS
Você já ouviu falar em antropomorfismo? Trata-se,
naturalmente, de uma palavra não muito presente
em nossas conversas cotidianas, é verdade. O pre-
fixo “antropo”, do grego ánthropos, tem a ver com o
humano, e morfismo, de morfo, remete-nos à ideia
de forma, portanto, estamos diante de uma palavra
que nos dá uma perspectiva da formação do huma-
no. É isso mesmo, como nós humanos fomos nos
formando a partir de milhões de anos num processo
ininterruptamente evolutivo.

Como nos aponta Neves (2006), cientista de expres-


são no campo das pesquisas paleoantropológicas e
da Biologia Evolutiva, vale lembrarmos que os chim-
panzés atuais resultaram, da mesma forma que nós,
de um processo evolutivo de sete milhões de anos,
tendo em vista que, a partir dos chimpanzés comuns,
diferenciou-se, há cerca de 2,5 milhões de anos, uma
outra linhagem, ainda viva, como os bonobos ou
chimpanzés pigmeus.

Dessa forma, o termo antropomorfismo estabelece


uma conjunção entre os grandes símios e o humano.
Todavia, ao nos referirmos ao antropomorfismo es-
tamos falando de um corpo bípede e todas as suas
múltiplas morfofuncionalidades (FONSECA, 2009).

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Para iniciarmos essa aventura da motricidade nos
seus mais diversificados contextos, ambientes e
cenários para a motricidade se potencializar, vale
começarmos com algo denominado de adaptações
hominídeas (processo de hominização, de um tornar-
-se humano). Em princípio, cabe destacarmos uma
adaptação pouco comentada, mas de muita relevân-
cia para a compreensão das aprendizagens motoras
do humano: a adaptação arborial.

A motricidade arborial tem relação com algumas


características motoras no processo evolutivo da
motricidade hominídea, algumas caracterizações
antropomórficas, como o desenvolvimento dos mem-
bros como órgãos de preensão; desenvolvimento dos
membros anteriores como órgãos de exploração,
desenvolvimento dos sistemas herbívoro e carnívoro
de digestão e consequentemente estrutura cranio-
dental; redução do sentido olfativo; desenvolvimento
da atividade visual; mudanças no esqueleto pós-cra-
niano; desenvolvimento do cérebro, aprendizagem,
linguagem e fabricação de instrumentos e a redução
do número de descendentes por nascimento, de-
pendência material e organização social (FONSECA,
2009). Para efeito didático e ilustrativo, preparamos
uma tabela para você poder acompanhar com facili-
dade visual as características de nossos ancestrais
viventes nas árvores.

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Adaptação Arborial hominídea e suas caraterísticas
antropomórficas

1 Desenvolvimento dos membros como órgãos de preensão;

Desenvolvimento dos membros anteriores como órgãos de


2
exploração;

Desenvolvimento dos sistemas herbívoro e carnívoro de


3
digestão e consequentemente estrutura craniodental;

4 Redução do sentido olfativo;

5 Desenvolvimento da atividade visual;

6 Mudanças no esqueleto pós-craniano;

Desenvolvimento do cérebro, aprendizagem, linguagem e


7
fabricação de instrumentos;

Redução do número de descendentes por nascimento,


8
dependência material e organização social.

Tabela 1: Adaptação Arborial hominídea e suas caraterísticas antro-


pomórficas. Fonte: Elaboração Própria.

A partir da Tabela 1 podemos notar que o corpo deste


hominídeo vivente no ambiente arborial, em função
do nicho ecológico e, portanto, das demandas que
esse habitat exigia, foi desenvolvendo uma reconfi-
guração estrutural da sua corporeidade/motricidade,
de modo que podemos notar que o meio interfere em
nossa corporeidade ao mesmo tempo que interferi-
mos no meio, de modo dinâmico e circular.

A vida no contexto arborial reivindica, obviamente,


que os animais que fazem parte desse ambiente
desenvolvam uma corporeidade/motricidade que
favoreça a manutenção desse microcenário. Nesse
contexto, a preensão manual se destaca como uma

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aquisição filogenética (evolução da espécie) de gran-
de importância para a motricidade hominídea, haja
vista que representa a libertação da cintura esca-
pular, a rotação do rádio e do cúbito, a mobilidade
independente dos dedos e, consequentemente, uma
dissociação entre as falanges e os metacarpos e os
ossos do carpo (FONSECA, 2009).

Figura 2: Primata exercendo sua motricidade arborial com a preensão


manual e dos pés. Fonte: Sylvaincordier

Com efeito, nota-se, portanto, um substancial proces-


so evolutivo decorrente de uma relação corpóreo-mo-
triz com um ambiente arborial, isto é, uma evolução
de uma motricidade dos membros superiores, espe-
cialmente das habilidades manuais de suspensão.

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Figura 3: Habilidades manuais que são utilizadas na ginástica artística,
na barra fixa (desenvolvidas ancestralmente). Fonte: Olimpiadatododia

Figura 4: Habilidades manuais que são utilizadas na ginástica artística,


barras paralelas (desenvolvidas ancestralmente). Fonte: Jornalcruzeiro

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Figura 5: Habilidades manuais que são utilizadas na ginástica artística,
barras assimétricas (desenvolvidas ancestralmente). Fonte: Gazetaesportiva

FIQUE ATENTO
A mão primata, bem como a mão humana, apresenta
27 ossos, sendo oito no carpo, cinco no metacarpo,
dois no polegar e doze nos restantes quatro dedos,
sendo que o resto do membro superior tem apenas
três ossos ligados por uma multiplicidade de tendões
e músculos, conectados com a unidade motora mais
complexa do mundo animal: a mão (FONSECA, 2009).

Do ponto de vista da habilidade motora manual, cabe


salientarmos que a preensão é possível pela oposi-
ção do polegar em relação aos outros dedos, o que
possibilita por esse padrão motor manual a habili-
dade motora de suspensão, bem como os saltos.
Dessa maneira, a coordenação motora dos prima-

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tas, necessária para uma motricidade arborial, isto
é, a preensão nos ramos, constitui-se como a mais
complexa de todos os mamíferos. Assim, a agilidade
e a disponibilidade motora que são exigidas para
habilidades motoras como saltar de um ramo para
outro, bem como a sequencialização de balanços
aéreos, têm relação com um sofisticado sistema
neurológico no que se refere ao controle cerebeloso,
extrapiramidal e piramidal (FONSECA, 2009).

Diante de todo esse contexto, torna-se importante des-


tacarmos que a preensão humana não serviu apenas
para sustentações nas árvores, mas para habilidades
motoras de manipulação de objetos e, especialmente,
para a fabricação de instrumentos. Isso, portanto,
possibilitou um processo evolutivo (filogenético) da
espécie humana de um corpo rudimentar mais seme-
lhante a um corpo animal (teriomorfismo) para um
corpo com aparência de chimpanzé (pitecomorfismo)
até o corpo mais próximo ao corpo homo sapiens.
Nessa cadeia ininterrupta de alterações, torna-se
sobremaneira relevante destacar que mudanças do
padrão locomotor foram determinantes para essa
emergência da corporeidade/motricidade humana,
isto é, da locomoção terrestre horizontalizada para a
locomoção arborial vertical (FONSECA, 2009).

Você já parou para pensar qual foi um dos principais


fatores estruturantes para a configuração da motri-
cidade sapiens? Vamos lá, nesse fluxo de constante
adaptações, cabe evidenciarmos que uma das prin-
cipais diferenças entre o corpo primata e o corpo
humano é justamente os pés. Por quê?

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Porque nos primatas, conforme análise de Fonseca
(2009), tendo em vista o ambiente arborial, os pés
assumiam evidentemente a função motora própria
que o contexto exigia, a preensão dos pés, ou seja,
a oposição do polegar e uma mobilidade interna dos
pés específica para se lidar com as necessidades
próprias das árvores. Já no humano, os pés assu-
mem efetivamente uma especialização hierárquica
que estabelece uma relação com a postura bípede
(bipedismo) e, desse modo, a marcha.

Com efeito, em que pese o pé humano apresentar o


arco longitudinal idêntico ao dos primatas, o pé hu-
mano é o único que apresenta um arco transversal,
tendo em vista uma estruturação músculo esquelé-
tica que permite suportar antigraviticamente o peso
do corpo e, assim, produzir mais eficientemente sua
locomoção bípede (FONSECA, 2009).

Figura 6: Passagem da motricidade arborial para a motricidade ter-


restre. Fonte: Scielo

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A Figura 6, obtida dos estudos de Neves (2006),
explicita a transição de uma motricidade arborial,
com predominância de habilidades de preensão de
mãos e pés, compatíveis para a mobilidade nas ár-
vores, para uma configuração de outras habilidades,
como habilidades motoras de locomoção terrestre
e, consequentemente, uma nova reestruturação
anátomo-funcional.

À luz das pesquisas de Fonseca (2009), o padrão lo-


comotor bípede funciona em razão de uma estrutura
própria do pé humano, isto é, o primeiro metatarso e
o quinto são robustos, permitindo, dessa forma, que
o peso do corpo durante o padrão locomotor bípede
seja eficientemente transferido do calcanhar à borda
externa do pé e, ainda, ao terço ântero-interior e ao
dedo maior do pé (dedão do pé). Note que todos os
dedos são menores, e o dedo maior (dedão), justa-
mente pelo tamanho, ganha mais efetivamente a
especialização da função de sustentação do corpo
e não a função preênsil. Nessa direção, o pé evolu-
tivamente deixa, pouco a pouco, a função de preen-
são (necessária no ambiente arborial) para assumir
evolutivamente a especialização da locomoção no
ambiente terrestre.

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Figura 7: Figura que ilustra as mudanças no padrão corporal e as
alterações da estrutura craniana. Fonte: Megaarquivo

A figura acima serve para ilustrar as alterações que


ocorreram na estrutura corporal do hominídeo, desde
estruturas do sistema locomotor, que alteraram o
padrão de locomoção, até a coluna vertebral, que as-
sumiu uma maior verticalização e ainda as alterações
na estrutura do crânio, tendo em vista as mudanças
comportamentais na cadeia evolutiva, mudanças
sociais e culturais e o surgimento da linguagem e
da formação de uma rede de significados.

Podcast 1

Nesse campo de análise, é fundamental que faça-


mos reverência aos pés, ao padrão de locomoção
bípede. Na postura bípede, vale destacarmos que o
equilíbrio corporal reivindica que a postura verticali-

21
zada passe por um processo que integra o sistema
auditivo, como o labirinto (ouvido interno), ao sistema
locomotor (FONSECA, 2009).

Nessa direção, por seu turno, a locomoção bípede


é a emergência de uma reestruturação do esque-
leto dessa grande jornada de hominização. Com o
endireitamento da coluna, a diminuição da coluna
lombar, o alongamento dos membros inferiores, bem
como a redução e alargamento pélvico, seguida do
encurtamento das apófises transversais da coluna
vertebral, a liberação integral dos membros superio-
res como função locomotora, a perda da função de
preensão dos pés, a diminuição das curvaturas da
coluna e, ainda, o recuo do centro de gravidade, foi
possível uma especialização da locomoção bípede
(FONSECA, 2009).

Vale a pena ressaltarmos que a marcha bípede, a


partir da verticalização postural, demonstra de forma
explícita as adaptações hominídeas que resultaram
nos antecessores do sapiens o desenvolvimento de
funções locomotoras bem diversificadas nos seus
mais diferentes padrões de locomoção, consubstan-
ciando, portanto, o desenvolvimento da motricidade
com o desenvolvimento cerebral (FONSECA, 2009).

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Figura 8: Passagem do padrão locomotor em quadrupedia para o
padrão locomotor bípede. Fonte: Deedellaterra

Algumas circunstâncias ambientais, que não são


o foco deste estudo, levaram nossos ancestrais a
abandonar o seu habitat arborial para buscar outros
nichos ecológicos e, dessa maneira, especializar o
seu padrão motor de locomoção terrestre para um
novo padrão no âmbito de habilidades motoras.

FIQUE ATENTO
Importante destacarmos que a estabilização verti-
cal da coluna foi o resultado das quatro curvaturas
que atuam com uma função anatômica compen-
satória, ou seja, a cervical para a dorsal, e a lombar
para a sacro (FONSECA, 2009).

A partir das análises de ordem mais especificamente


anatômica, passaremos a partir de agora para algu-

23
mas verificações num espectro mais funcional, isto
é, neurológico e integrativo.

Nessa linha de análise, o modo de vida arborial, além


de exigir uma funcionalidade em termos de equilíbrio,
prefigurava um cenário irregular e, nesse contexto, os
primatas foram obrigados a desenvolver um substan-
cial padrão motor de agilidade e uma exuberante co-
ordenação motora, por isso chamados por Le Gross
Clark de os acrobatas arboriais (FONSECA, 2009).

De toda forma, perante essas questões motoras no


ambiente arborial, vale ressaltarmos, conforme as-
severa Fonseca (2009), que a funcionalidade motora
arborial exigiu, como já citado anteriormente, uma
maior demanda em termos de equilíbrio e coorde-
nação em relação ao padrão locomotor terrestre.
Nesse sentido, importa frisarmos que estimulações
de ordem proprioceptiva acabaram se multiplicando
e, com outras demandas sensoriais como a visão,
estímulos cognitivos e conexões corticais e cerebelo-
sas acabaram se intercambiando progressivamente,
o que favoreceu um maior desenvolvimento cerebe-
loso, o que significa dizer, em termos neurológicos,
maior coordenação dos movimentos musculares,
tendíneos e articulares, tendo em vista que o cere-
belo é o dispositivo responsável por essa área de
controle, em suma, pela função equilibradora e pela
coordenação motora.

Em termos biomecânicos, é relevante salientarmos


que, nessa motricidade arborial, ações articulares
como a pronação e a supinação, ou seja, a rotação do

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rádio e do cúbito, eram recorrentes e houve importan-
tes alterações em níveis escapulares e claviculares,
ossos importantes na ligação do esqueleto axial ao
esqueleto apendicular da parte superior. Essas altera-
ções osteoarticulares resultaram em favorecimentos
para uma liberação progressiva dos membros ante-
riores e, ainda, para uma elevação e recuo do centro
de gravidade que permite uma melhor funcionalidade
motora no ambiente arborial (FONSECA, 2009).

A liberação dos membros superiores permite o for-


talecimento dos músculos peitoral e deltoide, que
favorece uma ação compressiva ântero-posterior
da região torácica, com um aumento do esterno e,
por desdobramento, alterações nas funções cardior-
respiratórias, com maior mobilização diafragmática
(FONSECA, 2009).

Nessa linha de compreensão, cabe verificarmos,


conforme aponta Fonseca (2009), que a liberação
das mãos, indispensáveis para o modo de habitar
o ambiente arborial, gerou novas funcionalidades
de ordem exteroceptora (sentidos físicos) e explo-
ratória do meio. Tal aquisição permite que as mãos
sejam utilizadas também para a seleção e ingestão
dos alimentos, o que contribui para evitar excessos
mastigatórios e, consequentemente, prognatismo
(alteração mandibular com anteversão do queixo).

Nesse processo de funcionalidades manuais, a partir


de padrões posturais bípedes, com uma potenciali-
zação sensorial do tato, as funções manipulativas

25
ampliam-se e, desse modo, há um substancial pro-
gresso evolutivo em termos culturais.

Figura 9: Hominídeo em ambiente terrestre exercendo sua especiali-


zação de habilidades manuais. Fonte: Jornalggn

A figura anterior ilustra o hominídeo exercitando suas


habilidades manipulativas, atribuindo uma funciona-
lidade para um osso em sua mão, seja para quebrar
ou desprender algo. Nesse exemplo, fica claro que
suas habilidades manuais estão impregnadas de
uma intencionalidade, ou seja, o movimento aqui
deve ser assumido como um movimento com sig-
nificado social.

Nessa direção, a despeito da mão assumir funções


como palpação, reconhecimento tátil e uma varie-
dade de funções de preensão, como apanhar, bater,
riscar, catar, lançar, puxar e empurrar, entre outras,
também assume significações dentro de um contexto
cultural.

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Figura 10: Crianças pequenas exercitando suas habilidades motoras
de manipulação. Fonte: Playlikemum

A Figura 10 nos mostra crianças manipulando


brinquedos e, a partir desse campo de estudo, a
Psicomotricidade, podemos entender que além de
uma especialização motora com as mãos, estão,
concomitantemente, desenvolvendo, a partir de suas
múltiplas sensorialidades, como visão, audição e
tato, atividades cognitivas fundamentais do ponto de
vista neurológico, como encaixar peças, observar o
movimento do brinquedo e, ainda, buscar estratégias
para conseguir realizar as tarefas.

27
APRENDIZAGEM MOTORA,
LINGUAGEM E EDUCAÇÃO
FÍSICA
Diante dessas questões acerca da aquisição das ha-
bilidades manuais, vale frisarmos que a mão, como
importante órgão de apropriação e relação com o
real, torna-se um instrumento imprescindível para
a estruturação psicológica da criança, portanto, ri-
quíssimo dispositivo de construção, transformação
e fabricação e, ainda, fundamental para a evolução
do cérebro (FONSECA, 2009). Nessa cadeia evoluti-
va neurológica podemos falar de importantes aqui-
sições e especializações de nossos ancestrais: a
aprendizagem motora e a linguagem.

FIQUE ATENTO
Você sabia que dois quartos da superfície do seu
córtex motor (que representa o corpo) estão sendo
direcionados, neste momento, às mãos, o que lhe
confere, naturalmente, um lugar de destaque na
hierarquia do corpo. Isto posto, cabe a nós reconhe-
cermos a importância das mãos no aumento das
aferências tátil-viso-cinestésicas. (FONSECA, 2009).

Diante das questões apresentadas em relação à ha-


bilidade manual humana, podemos considerar que
o processo de formação/transformação do humano
(antropomorfismo) foi responsável por uma estru-

28
turação corpóreo-motora que permitiu ao corpo hu-
mano a confecção de uma multiplicidade de objetos
com formas e funcionalidades das mais diversas e,
a partir dessa habilidade motora manipulativa, con-
solidar uma estruturação cognitiva, logo, um pensa-
mento reflexivo, uma capacidade de antecipação e
programação cognitiva (FONSECA, 2009).

Nessa linha de análise neurológica, a principal dife-


rença entre os primatas e os mamíferos e entre os
humanos e os primatas é, notadamente, o desenvol-
vimento cerebral.

Como citamos anteriormente, o modo de vida arborial


prefigurava-se como um habitat desafiador, exigindo
desses habitantes arborícolas uma complexa co-
ordenação motora e alto nível de equilíbrio. Diante
dessa relação com o seu habitat, esses primatas
obtiveram um substancial progresso em termos de
conexões neuronais.

Em última instância, o cérebro se constitui como


um dispositivo sem limites. Para Scott (1975 apud
FONSECA, 2009), a quantidade de ideias que um cére-
bro é capaz de produzir é de um milhar de um milhão,
isso significa dizer que a cada ideia sendo produzida
numa escala de ideia por segundo, o cérebro humano
produziria ideias durante 45 anos de tempo em situ-
ação de vigília. Nessa ordem dos fatos, numa pers-
pectiva bioantropológica evolutiva dos primatas ao
humano, temos uma robusta diferenciação em nível
cerebral, tanto na relação com o mundo físico, como
na relação com o mundo das ideias, isto é, do corpo

29
sensório-motor para a instância de uma inteligência
simbólica, reflexiva e, portanto, hipotético-dedutiva.

Assim, percebemos uma evolução biocultural, por um


lado uma evolução biológica, a maturação anátomo-
-funcional e, por outro, uma evolução social a partir
de uma condição relacional e gregária do humano
em todos os níveis de sua escalada evolutiva.

Nessa cadeia evolutiva filogenética (evolução da


espécie), torna-se importante ressaltar, para efeito de
potencial cerebral do humano, numa escalada evo-
lutiva dos primatas ao homo sapiens, que o volume
médio do cérebro humano está calculado em torno
1.400 cm³, sendo que o cérebro de um gorila está
calculado em torno de 500 cm³ e o do chimpanzé não
ultrapassa a marca de 400 cm³ (FONSECA, 2009).

No entanto, é fundamental compreendermos que a


inteligência humana não é resultado apenas de um
cérebro maior ou da quantidade de células nervosas
(neurônios), mas, especialmente, de sua organização
interna, o funcionamento sistêmico de interconexão
entre as diferentes áreas, com altíssima eficiência
bioquímica e neuroendócrina. Dessa forma, diante
dessa análise integrativa do funcionamento cerebral
humano, a evolução da motricidade humana, filo-
geneticamente, é uma emergência não apenas da
expansividade cerebral mas, e sobretudo, de uma
reconfiguração (FONSECA, 2009).

Diante desse campo de compreensão, de uma cadeia


evolutiva morfofuncional (mudanças estruturais),
bem como neurofuncional (mudanças na funcionali-

30
dade neurológica), foi possível aferir três importantes
aquisições como marcadores evolutivos, a aprendi-
zagem (a maioria do comportamento hominídeo é
aprendida e não genética), a fabricação de instru-
mentos e, por fim, uma mediação social denominada
linguagem (FONSECA, 2009).

No que se refere à aprendizagem simbólica ou não


simbólica, portanto, verbal ou não verbal, seja a fa-
bricação de instrumentos simples ou utilitários, am-
bas demandam que o cérebro use sua capacidade
cognitiva de planificar (planejar/programar) as ações
em determinado espaço ou tempo para os fins que
são objetivados.

Em relação à aprendizagem, Fonseca (2009) sinali-


za que essa importante aquisição humana pode ser
compreendida como uma mudança permanente em
termos de melhoria comportamental, decorrente da
experiência (prática) constituída por uma comple-
xa rede neuronal, sináptica, mediante uma atividade
bioquímica eficiente, para que a aprendizagem efeti-
vamente ocorra. Em vista disso, a aprendizagem se
constitui como processamento de conexões entre
estímulos (situação) e respostas (comportamento),
dentro de uma experiência de percepção, possível pela
atenção seletiva, com a concentração de estimulações
sensoriais mais centrais inibindo estimulações sen-
soriais periféricas ou irrelevantes (FONSECA, 2009).

Perante essa análise, e direcionando-a ao campo


da Educação Física, ou seja, da Cultura Corporal do
Movimento (brincadeiras e jogos, esportes, ginástica,

31
lutas, danças e práticas corporais de aventura), a
aprendizagem motora é a emergência de uma mu-
dança de comportamento mediante o processamento
seletivo de uma multiplicidade de estímulos captados
pelo nosso corpo por vias sensoriais, passando pela
percepção (rede de significações aos estímulos). É
nesse campo experiencial, integrando nível de aten-
ção e concentração e priorizando as estimulações
mais relevantes, que efetivamente ocorre uma res-
posta em termos de uma aprendizagem motora.

Desse modo, a aprendizagem motora pode ser com-


preendida como um processo que integra o corpo
na sua totalidade, não apenas a estrutura anátomo-
-funcional, corpóreo-motriz, mas as estruturas neu-
ronais e cognitivas, bem como aspectos emocionais,
integradamente, uma vez que, consubstanciadas,
serão determinantes no processo da percepção e
seleção de um amplo espectro sensorial para di-
recionar a atenção e, dessa forma, apresentar um
comportamento sensório-motor mediante a tarefa
a ser desenvolvida dentro de uma condição situada
e um determinado ambiente.

Nessa sucessão de dados, é possível conjecturar,


com base nas análises de Fonseca (2009), que o
cérebro humano tem condições de aprender muitas
tarefas, desde que consiga inibir estímulos que não
sejam os relevantes, direcionar os estímulos centrais
e inibir os periféricos. Dessa forma, a aprendizagem
motora pode ficar comprometida dada a inabilidade
de selecionar os estímulos mais relevantes para a
realização de uma tarefa. Em suma, a experiência

32
cognitiva humana pode ser entendida como a emer-
gência de uma hierarquia de aprendizagens, que põe
em jogo uma equipe de neurônios que recebem, con-
servam, combinam, associam e controlam essas
informações (multiplicidade de estímulos).

Perante essas questões, podemos compreender que


no âmbito da aprendizagem esportiva, por exemplo,
a aprendizagem das habilidades esportivas passa
necessariamente por uma capacidade de atenção, se-
leção dos estímulos, concentração, planificação, es-
tratégias e resolução de problemas, bem como emo-
ções que favoreçam a aprendizagem motora, como
motivação, interesse e satisfação pessoal da experi-
ência, entre outros aspectos emocionais relevantes
para que a aprendizagem possa se consubstanciar.

De todo modo, o que deve ficar claro é que, diante de


uma ampla possibilidade de ações corticais, essas
atividades têm como finalidade a maturação cerebral
que, por processos inibitórios (controle de impul-
sos) gerencia condutas, ou seja, as ações voluntárias
conscientes. Desse modo, no humano, o cérebro,
além de se caracterizar como um efetivo dispositivo
de ação/transformação, é um autêntico e sofisticado
módulo de informação e formação (FONSECA, 2009).

Nesse contexto, considerando-se o cérebro como


esse importante módulo informacional e formador,
cabe frisarmos que é ele o responsável pelas ati-
vidades cognitivas, pela reflexão. Para Sokolov e
Anokhine (apud FONSECA, 2009), o ato de pensar
é a justa relação entre a mão (motor) e o cérebro

33
(psíquico) por meio da exploração acompanhada
pela capacidade de observação.

A reflexão equivale à consciência da ação antecipada,


logo, tanto os primatas dentro de uma organização
cognitiva mais rudimentar quanto o humano de ma-
neira mais estruturada e complexa são capazes de
produzir um pensamento antecipatório, em forma
de imagem, que permite uma elaboração da ação,
uma estratégia da ação tendo como prolongamento
o uso das mãos (PIVETEAU apud FONSECA, 2009).

Dada essa especial conjugação entre a ação exte-


rior e a consciência (cognição), há uma sequência
sensório-motora de ações guiadas perceptivamente
que vão edificando os pensamentos. Com efeito, as
ações manuais têm correspondência com as ações
cerebrais e com as coordenações gestuais que se
integram com coordenações cerebrais, consubstan-
ciando, portanto, a ação e consciência, isto é, um
efetivo diálogo entre o sensório-motor e a cognição,
entre a mão e o cérebro.

É nesse contexto que podemos, então, destacar o


papel da linguagem. A linguagem se constitui, assim
como a ação sensório-motora, em um processo se-
quencializado simbólico inerente ao ser humano. A
linguagem compreende um processo de organização
vocal, isto é, de uma fala geradora de significados.

A linguagem, portanto, não pode ser entendida ape-


nas como um sistema de produção de sons combi-
nados, mas, sobretudo, um sistema que se legitima
dentro de um contexto social e cultural. É justamente

34
uma relação de elementos ou códigos linguístico-
-culturais dentro de um conjunto de símbolos identi-
ficados socialmente que a linguagem opera e, assim,
assume a sua função social: produzir significados.

SAIBA MAIS
Atente-se ao vídeo a seguir para identificar alguns
conceitos importantes da Psicomotricidade, bem
como para compreender como esse campo de es-
tudo é importante para a Educação Física: https://
www.youtube.com/watch?v=IFvvVJeZkcI

Mão

Motricidade

Utilização de Fabricação de
instrumentos Trabalho instrumentos

Linguagem Conciência

Socialização

Comunicação Associação

Cultura
Gereralização

Valores
Abstração

Memórias Retenção

Figura 11: Mapa mental “das mãos à socialização”, da linguagem


à cognição e da cultura à civilização sapiens. Fonte: Adaptado de
Fonseca (2009)

35
Nesse mapa mental, é importante observarmos que
a categoria mão se coloca no topo do mapa, assu-
mindo, portanto, uma condição vetorial inicial para
o desdobramento das outras categorias. A partir da
mão podemos notar o desenvolvimento de uma mo-
tricidade laboral, ou seja, o trabalho, com duas setas
laterais, uma para a fabricação de instrumentos e
outra para a utilização de instrumentos.

O trabalho se desdobra para a socialização, numa


seta cruzada que aponta para as laterais, indicando
linguagem e consciência, sendo que ambas ao mes-
mo tempo apontam para a socialização, o que nos dá
uma ideia de que a socialização é consequência da
linguagem e da consciência que se interconectam.

A partir da linguagem podemos notar que ocorre a


comunicação, mediação tão importante para a orga-
nização social e para a educação. Na outra ponta,
a consciência, apresentando desdobramentos cog-
nitivos, como associação (capacidade cognitiva de
associar ideias), generalização (operação intelectual
que consiste em comparar as qualidades comuns),
abstração (capacidade cognitiva de analisar) e reten-
ção (capacidade cognitiva de reter as informações
conscientizadas).

Por fim, temos a socialização como vetor que se


desdobra na cultura, o que nos permite pensar que
a cultura é o resultado de processos interativos e
construção de valores que são socialmente produzi-
dos. Já a memória temos como uma extraordinária
capacidade humana de reelaborar o passado com a

36
percepção do presente, ou seja, a partir da ativação
de lembranças reviver as experiências do passado.
Assim sendo, torna-se clara a contribuição das habi-
lidades motoras das mãos para inaugurar e instaurar
o processo civilizatório da espécie humana, a homini-
zação, até alcançarmos a posição de homo sapiens.

Dessa análise neuropsicomotora, podemos ressaltar


que movimento e pensamento são duas instâncias
indissociáveis. O movimento é fonte geradora de pen-
samento. As ações nos levam a uma sequencialidade
de efeitos e, por fim, a ação e a representação se
interconectam e se retroalimentam (FONSECA, 2009).

Para Vygotsky (apud FONSECA, 2009), a linguagem


não é um conjunto de sonoridades aleatórias e ar-
bitrárias, mas, necessariamente, sons carregados
de significação, isto é, a palavra falada, a fonética
ordenada e sequencial, é mediação indispensável
para a interação social.

Nesse contexto de análise sobre o ser humano como


ser linguístico, vale ressaltarmos que a linguagem
antes de ser uma aquisição do cérebro é uma aquisi-
ção da motricidade ou da experiência social, uma vez
que a sequencialização de significados das ações já
está impregnada no corpo, na motricidade. Voltando
à motricidade de nossos ancestrais hominídeos, a
caça, por exemplo, já é uma prática corporal cultural
que demanda na sua ação planejamento, comporta-
mento cooperativo, organização e coordenação da
partilha e divisão das tarefas após a caçada, para
homens e mulheres (FONSECA, 2009).

37
Após a discussão sobre a temática da linguagem,
mediação tão imprescindível para a formação social
e cultural, indispensável para um desenvolvimento
motor, cerebral, afetivo e humano, você, estudante de
Educação Física, ainda pode estar se perguntando:
por qual motivo estudar linguagem?

Como estudamos, a motricidade, filogeneticamente


falando, não evoluiu isoladamente, o cérebro também
evoluiu, reestruturou-se e, assim, como o corpo e as
coordenações motoras, o cérebro também se sofisti-
cou e se potencializou e, ao se potencializar, permitiu
que os movimentos se tornassem mais harmoniosos.

Outro ponto que merece destaque é que o hominídeo


não evolui individualmente, mas em grupo, de modo
social, suas ações cooperativas é que permitiram
melhores estratégias para enfrentar situações difíceis
em relação aos seus predadores, garantir alimentos
e, ainda, preservar a espécie. Portanto, é plausível
pensarmos que toda essa organização estratégica
apenas foi possível por conta de alguma forma de
comunicação, sejam comunicações gestuais ou ver-
bais, rudimentares ou melhor elaboradas.

A linguagem foi a mediação fundamental para o sur-


gimento do simbólico, do mundo representado, da
formação das ideias, da evocação de alguma coisa,
objeto, evento, pessoa etc. e, consequentemente,
de um Eu consciente, de uma vida com significado
e, especialmente, do surgimento da cultura, da arte,
das tradições, da produção de conhecimento e da
aprendizagem.

38
Podcast 2
A linguagem, do ponto de vista neurológico, permitiu
uma especialização hemisférica – o lado esquerdo
do cérebro – e, ainda, a sofisticação do córtex ce-
rebral, que além da linguagem também é uma área
responsável por funções cognitivas como produzir
o pensamento, movimento voluntário, julgamento e
percepção.

Para finalizar, a Educação Física, a partir de 2019,


segundo as atuais diretrizes educacionais, especi-
ficamente a Base Nacional Comum Curricular, está
na área da Linguagem.

39
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste e-book, tratamos especificamente do apren-
dizado sobre a Psicomotricidade para nos dar um
entendimento de como nossa motricidade é um dis-
parador de aprendizagens.

Seja na escola ou fora dela, vivemos em sociedade,


lidamos com pessoas e toda a sua complexidade
humana e, assim como você, as pessoas têm seus
mapas mentais (percepções). Não é mais possível
pensarmos em propostas padronizadas partindo de
uma ideia homogeneizadora, pois as formas de de-
senvolvimento psicomotor não seguem um padrão,
a corporeidade/motricidade é única.

Por isso mesmo, o diálogo, a conversa, o “linguajear”,


é um processo fundamental para o nosso sucesso
profissional. A partir dessa mediação linguística é
possível estabelecermos diagnósticos e mapeamen-
tos sobre nosso estudante, por exemplo. Isso mes-
mo: quais são seus objetivos, interesses, o que já
sabem, um pouco sobre sua história de vida, trabalho,
esporte, saúde, família etc., como estão interpretando
as propostas apresentadas e, por fim, como avaliam
as ações profissionais que estão sendo produzidas,
se gostaram do brincar pedagógico ou do treinamen-
to esportivo, por exemplo.

40
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