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ESTADO DE MINAS

SEXTA-FEIRA, 4 DE ABRIL DE 2020

“O modo de funcionamento da
humanidade entrou em crise”
Em entrevista exclusiva, o líder indígena Ailton Krenak reflete sobre o significado da pandemia e faz um
alerta:“Se voltarmos à chamada ‘normalidade’, não valeram de nada as mortes de milhares de pessoas”

MARCOS VIEIRA/EM/D.A PRESS


esse luto conosco. Está todo mundo parado. Todo
mundo. Quando os engenheiros me disseram que
BERTHA MAAKAROUN iriam usar a engenharia, a tecnologia para recupe-
rar o Rio Doce, perguntaram a minha opinião. Eu
disse: a minha sugestão é impossível de colocar em
prática. Pois teríamos de parar todas as atividades
humanas que incidem sobre o corpo do rio, a 100
O mundo está em suspensão. O momento é de quilômetros na margem direita e esquerda do rio,
recolhimento, de silêncio. A experiência do isola- até que voltasse a ter vida. O engenheiro me disse:
mento social, para enfrentar o horror do novo coro- ‘Mas isso é impossível’. O mundo não pode parar. E
navírus, pode trazer lições valiosas à humanidade. o mundo parou. Desde muito tempo a minha co-
“Se essa tragédia serve para alguma coisa é mostrar munhão com tudo o que chamam de natureza é ex-
quem nós somos. É para nós refletirmos e prestar periência que não vejo muita gente que vive na cida-
atenção ao sentido do que venha mesmo ser huma- de valorizando. Já vi pessoas ridicularizando, ele con-
no. E não sei se vamos sair dessa experiência da versa com árvore, abraça árvore, conversa com o rio,
mesma maneira que entramos. Tomara que não”, contempla a montanha, como se isso fosse uma es-
afirma o escritor Ailton Krenak, de 66 anos, um dos pécie de alienação. Essa é a minha experiência de vi-
mais destacados ativistas do movimento socioam- da. Se é alienação, sou alienado no sentido comum
biental e de defesa dos direitos indígenas e doutor que as pessoas. Há muito tempo não programo ati-
honoris causa pela Universidade de Juiz de Fora. vidades para depois. Temos de parar de ser conven-
Recolhido em sua aldeia no Rio Doce, o autor de cidos. Não sabemos se estaremos vivos amanhã. Te-
Ideias para adiar o fim do mundo (Companhia das mos de parar de vender o amanhã.
Letras) observa que o ser humano descolou-se da na-
tureza e da sintonia com a terra, “devorada” por Agora o prognóstico, ou algo do tipo: se continuarmos
grandes corporações que controlam os recursos fi- ao ritmo de sempre, em sua avaliação, que fim nos
nanceiros do planeta e persistem na concepção eu- aguarda?
ropeia colonizadora de que exista uma “humanida- O ritmo de hoje não é o da semana passada nem o
de”, enclausurada na maior parte de sua vida em do ano novo, do verão, de janeiro ou fevereiro. O
ambientes artificiais. “Essa chamada humanidade, mundo está agora numa suspensão. E não sei se va-
na verdade, constitui um grupo seleto que exclui Ailton Krenak: “A Terra está falando para a humanidade: ‘silêncio’. Esse é também o significado do recolhimento” mos sair dessa experiência da mesma maneira que
uma variedade de sub-humanidades, caiçaras, ín- entramos. Desconfio que não vai ser a mesma coisa
dios, quilombolas, aborígenes, que vivem agarradas desse organismo que é a Terra, vivendo numa abs- depois. Se tiver depois. Tem muita gente que sus-
à terra, aos seus lugares de origem, que são coletivos tração civilizatória que suprime a diversidade, nega pendeu projetos, atividades que estavam fazendo.
vinculados à sua memória ancestral e identidade. a pluralidade das formas de vida, de existência e de As pessoas acham que basta mudar o calendário. Es-
Esse grupo exclui também 70% das populações ar- hábitos. Os únicos núcleos que ainda consideram tão enganadas. Pode não haver o ano que vem. Em
rancadas do campo e das florestas, que estão nas fa- que precisam ficar agarrados nessa terra são aque- artigo que li sobre a pandemia, o sociólogo italiano
velas e periferias, alienadas do mínimo exercício do les que ficaram meio esquecidos pelas bordas do Domenico de Masi cita a obra profética A peste, de
ser, sem referências que sustentam a sua identidade. planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos ocea- Albert Camus: a peste pode vir e ir embora sem que
São lançadas nesse liquidificador chamado huma- nos, na África, na Ásia ou na América Latina. Esta é a o coração do homem seja modificado. Ele cita tre-
nidade”, acredita. sub-humanidade: caiçaras, índios, quilombolas, cho inteiro do romance em que o personagem diz,
Para Ailton Krenak, os seres humanos têm neste aborígenes. Existe, então, uma humanidade que in- aquele bacilo que trouxe aquela mortandade, que
isolamento social pelo qual passa a maior parte do tegra um clube seleto, vamos dizer, bacana. E tem parece que tinha sido dominado, podia continuar
planeta uma oportunidade para a pausa e correção uma camada mais rústica e orgânica, uma sub-hu- oculto em alguma dobra, algum corrimão, janela,
de rumos: “Todos precisam despertar. Se, durante manidade, que fica agarrada na terra. Eu não me sin- poltrona, só esperando o dia em que, infortúnio ou
um tempo, éramos nós, os povos indígenas, que es- to parte dessa humanidade. Eu me sinto excluído lição aos homens, a peste acordará seus ratos para
távamos ameaçados de ruptura ou da extinção dos dela. Por isso digo, no livro, que é um clube, seleto, mandá-los morrer numa cidade feliz. Este vírus que
sentidos das nossas vidas, hoje estamos todos dian- que não aceita novos sócios. nos ameaça não é o mesmo na China, na Itália, nos
te da iminência de a terra não suportar a nossa de- Estados e no Brasil. Ele muda. E se muda, não sabe-
manda. Tomara que, depois de tudo isso, não volte- Filosoficamente, como interpreta a pandemia que aco- mos o que é. Então seria muito bom parar de fazer
mos à chamada ‘normalidade’, pois se voltarmos é mete o mundo? l IDEIAS PARA ADIAR O projetos para amanhã, para o ano que vem e nos
porque não valeu nada a morte de milhares de pes- Estamos há muito divorciados desse organismo vi- FIM DO MUNDO ater ao aqui e agora. Não tenho certeza nenhuma se
soas no mundo inteiro. Aí, sim, teremos provado de vo que é a Terra. Do nosso divórcio das integrações e l Ailton Krenak no ano que vem tudo vai continuar a acontecer co-
que a humanidade é uma mentira”. A seguir, mais interações com a nossa mãe, a Terra, resulta que ela l Companhia das Letras mo se nada tivesse mudado. E tomara que não vol-
trechos da entrevista exclusiva com o escritor. está nos deixando órfãos, não só os que em diferen- temos à normalidade, pois se voltarmos é porque
l 88 páginas
te graduação são chamados de índios, indígenas ou não valeu nada a morte de milhares de pessoas no
l R$24,90
No início do livro Ideias para adiar o fim do mundo, o povos indígenas, mas todos. Enquanto a humanida- mundo inteiro. Aí, sim, teremos provado que a hu-
senhor introduz uma discussão que parte da indaga- de está se distanciando do seu lugar, um monte de manidade é uma mentira. Se essa tragédia serve pa-
ção: Somos mesmo uma humanidade?. O senhor po- corporações espertalhonas tomam conta e subme- ra alguma coisa, é nos mostrar quem nós somos. Es-
deria responder à esta provocação, particularmente tem o planeta: acabam com florestas, montanhas, tamos em suspensão. Vamos ver o que vai acontecer.
mais intrigante nestes tempos de pandemia: somos transformam tudo em mercadorias. Fomos, duran- as pessoas que amam os idosos, que são avós, pais,
uma humanidade? te muito tempo, embalados com a história de que filhos, irmãos de outras pessoas, que estão na idade Quais são as suas ideias e inspirações para adiarmos o
Eu penso que essa pergunta fica em suspenso. Vi- somos a humanidade e nos alienando desse orga- útil de trabalho. É uma palavra insensata, não tem fim do mundo?
vemos esta experiência de isolamento social, como nismo de que somos parte, a Terra, e passamos a sentido que alguém em sã consciência faça comu- Precisamos ser críticos a essa ideia plasmada de hu-
está sendo definida a experiência do confinamento, pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a nicação pública dizendo ‘alguns vão morrer’. É uma manidade homogênea em que o consumo tomou
em que o mundo inteiro tem de se recolher. Ao mes- humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coi- banalização da vida, mas também é uma banaliza- o lugar daquilo que antes era cidadania. Para que ci-
mo tempo, assistimos a uma tragédia de gente mor- sa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos ção do poder da palavra. Pois alguém que faz uma dadania, alteridade, estar no mundo de uma manei-
rendo em diferentes lugares do mundo, ao ponto de é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natu- emissão dessa está pronunciando a condenação. Se- ra crítica e consciente, se você pode ser um consu-
na Itália os corpos serem colocados em caminhões reza. Nós, a humanidade, vamos viver em ambien- ja diretamente dirigida a alguém em idade avança- midor? Essa ideia dispensa a experiência de viver
para incinerar, sem sequer ser identificados. Essa tes artificiais produzidos pelas mesmas corporações, da, com 80, 90, 100 anos. Sejam os filhos, netos, ou numa terra cheia de sentido, numa plataforma para
dor, talvez ajude as pessoas a responder a essa per- que são os donos da grana. Agora, já imaginou que todas as pessoas que têm afeto uns com outros. Ima- diferentes cosmovisões. Boaventura de Sousa San-
gunta. Nós nos acostumamos com a ideia de que so- esse organismo, o vírus, possa também ter se cansa- gine se vou ficar em paz pensando que minha mãe tos nos ensina que a ecologia dos saberes deveria
mos uma humanidade. Embora a ideia tenha sido do da gente e nos “desligado”? Sabe como faz isso? ou meu pai podem ser descartados. Eles são o senti- também integrar nossa experiência cotidiana, ins-
naturalizada, ninguém mais presta atenção ao sen- Tirando o nosso oxigênio. Dizem que a COVID-19, do de eu estar vivo. Se eles podem ser descartados pirar nossas escolhas sobre o lugar em que quere-
tido do que venha mesmo ser humano. É como se quando evolui para os pulmões, se não tiver bomba, eu também posso. Olhando para além do Brasil, mi- mos viver, nossa experiência como comunidade.
tivéssemos várias crianças brincando que, por ima- aparelho para alimentar de oxigênio, a pessoa mor- rando o mundo, Foucault tem uma obra fantástica: Nosso tempo é especialista em criar ausências: do
ginar essa fantasia da infância, continuassem a brin- re. Quantas máquinas dessa vamos ter de fazer? Pa- Vigiar e punir. Nesse livro, diz que essa sociedade de sentido de viver em sociedade, do próprio sentido
car por tempo indeterminado. Viramos adultos, es- ra 6 bilhões de pessoas na terra? A nossa mãe, a Ter- mercado que vivemos, essa coisa mercantil, só con- da experiência da vida. Isso gera uma intolerância
tamos devastando o planeta, cavando um fosso gi- ra, dá de graça o oxigênio, põe a gente para dormir, sidera o ser humano útil quando está produzindo. muito grande com relação a quem ainda é capaz de
gantesco de desigualdades entre povos e as socieda- desperta de manhã com sol, dá oxigênio, deixa pás- Com o avanço do capitalismo, foi criado um instru- experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de
des. De modo que há uma sub-humanidade que vi- saros cantar, as correntezas, as brisas, cria esse mun- mento que é o de deixar viver e o de fazer morrer: cantar. E está cheio de pequenas constelações de
ve uma grande miséria, sem chance de sair dela. Is- do maravilhoso para compartilhar, e o que a gente quando deixa de produzir, passa a ser um custo. Ou gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz
so também foi naturalizado. O presidente da Repú- faz com ele? Isso pode significar uma mãe amorosa, você produz as condições para você ficar vivo ou chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos
blica disse outro dia que brasileiros vivem no esgo- que decidiu fazer o filho calar a boca pelo menos por produz as condições para você morrer. Essa coisa sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer,
to. Esse tipo de mentalidade doente está dominando um instante. Não é porque não goste dele, mas quer que conhecemos como a Previdência, que existe em tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mun-
o planeta. E veja agora esse vírus, um organismo do ensinar alguma coisa para ele. Filho, silêncio. A Terra todos os países com economia de mercado, ela tem do como uma possibilidade de fazer a gente desistir
planeta, responder a essa alienação dos humanos está falando isso para a humanidade. E ela é tão ma- um custo. Os governos estão achando que, se mor- dos nossos próprios sonhos. E a minha provocação
com um ataque à forma de vida insustentável que ravilhosa que não é ordem imperativa. Ela simples- ressem todas as pessoas que representam custo, se- sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre
adotamos por livre escolha, essa fantástica liberdade mente está dizendo para a gente: silêncio. Esse é ria ótimo. Isso significa dizer: pode deixar morrer os poder contar mais uma história. Se pudermos fazer
que todos adoram reivindicar, mas ninguém se per- também o significado do recolhimento. que integram os grupos de risco. Não é ato falho de isso, adiaremos o fim. Como os povos originários do
gunta sobre o seu preço. Veja que esse vírus está dis- quem fala, a pessoa não é doida, é lúcida, sabe o que Brasil lidaram com a colonização, que queria acabar
criminando essa humanidade. Ele não mata pássa- Os idosos, chamados de grupo de risco, em algumas está falando. com o seu mundo? Quais estratégias esses povos
ros, ursos, nenhum outro ser, apenas humanos. Ape- abordagens são lembrados como algo descartável – do utilizaram para cruzar esse pesadelo e chegar ao sé-
nas a humanidade está sendo discriminada. Quem tipo, “alguns vão morrer”, como algo inevitável. Como Como está a sua rotina, agora com o isolamento social? culo 21 ainda esperneando, reivindicando e desafi-
está em pânico são os povos humanos, o modo de avalia esta abordagem que parece arrancar toda e qual- Parei de andar mundo afora, suspendi compromis- nando o coro dos contentes? Vi as diferentes mano-
funcionamento deles entrou em crise. Consolida- quer humanidade do indivíduo, tornando-o uma esta- sos. Estou com a minha família na aldeia krenak, no bras que os nossos antepassados fizeram e me ali-
ram esse pacote que é chamado de humanidade, tística? Médio Rio Doce. Já estávamos aqui de luto com o mentei delas, da criatividade e da poesia que inspi-
que vai sendo descolada de uma maneira absoluta Esse tipo de abordagem cria uma insegurança afeta nosso Rio Doce. Não imaginava que o mundo faria rou a resistência desses povos.

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