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ARQUÉTIPO DE SATURNO OU A TRASFORMAÇÃO DO PAI

A. Vitale
Capítulo 1 do livro “Pais e Mães”, organizado por James Hillman.

Na maioria das vezes não e fácil empreender a descrição de uma região do inconsciente
coletivo, como pretendo fazer, porque o tema , não sendo racional, não pode ser sistematicamente
ordenado de maneira lógica. Somente a lembrança de suficientes fatos empíricos poderá ocasionar
a intuição de um motivo arquetípico, conduzindo-nos a uma região de nossa psique onde cada
elemento pode ser usado como ponto de partida para sua descrição. Os quando tivermos
completado o percurso e que poderemos compreende-la de modo adequado.

ALGUNS ASPECTOS DA MELANCOLIA

Onde poderemos encontrar a experiência da melancolia? Indicarei apenas um esboço, em


poucas linhas, da melancolia, tal como se apresenta na psiquiatria e em algumas condições
peculiares da assim chamada vida normal, como no luto, na nostalgia e na adolescência - e que
também se expressa em campos especiais da atividade humana, da Arte, da Weltanschauung
filosófica e da religião.
Posteriormente, procuraremos um motivo comum, que poderá nos introduzir, por
amplificação, na investigação psicológica dos arquétipos. Escolhemos o arquétipo de Saturno, o
pai negativo. Outros motivos e imagens arquetípicas poderão se revelar igualmente validos, mas
esse aspecto ficara mais claro ao final do artigo.
Os estados psíquicos a que chamamos de melancolia tem todos algumas características
comuns. Objetivamente, ocorre uma diminuição do nível de energia na maioria das funções
psíquicas conscientes; os relacionamentos e todas as suas expressões são reduzidos, assim como
desacelerados os processos e as atividades mentais. A melancolia vai desde a total inibição, como
em algumas depressões psicóticas, ate as mais leves gradações de animo. Porem, em todos os
casos, existe uma consciência subjetiva de tristeza, ligada a um sentimento de impotência ou
incapacidade de se usar as próprias faculdades.
Consideremos alguns aspectos da melancolia que podem ser facilmente observados. Num
extremo, encontramos a depressão da psicose maníaco-depressiva, freqüentemente chamada de “
melancolia” . Eis o que Jaspers, filosofo e psicopatologista , escreve sobre as características da
depressão melancólica :

Seu ponto central e uma tristeza profunda e sem motivos, acrescida de uma inibição de
todas as atividades psíquicas. Alem de ser subjetivamente experimentada de forma dolorosa, e
também observável no comportamento objetivo da pessoa. Todos os impulsos instintivos são
inibidos; o paciente ano deseja nada. A melancolia vai desde a diminuição do desejo de
movimento e atividade ate a imobilidade completa. Nenhuma decisão ou atividade pode ser
empreendida pelo paciente. Faltam-lhe associações psicologias. Nada lhe vem a mente; queixa-se
da sua memória perturbada; sente falta de sua capacidade produtiva e lamenta sua insuficiência,
insensibilidade e esvaziamento. Experimenta essa aflição profunda como uma sensação peculiar
no peito e no abdômen, quase como se pudesse agarra-la ali. Na sua profunda tristeza, o mundo
lhe parece cinza dentro do cinza, indiferente e desconsolado. Procura apenas o lado desfavorável
e infeliz de tudo. Sente que teve muitas culpas no passado; o presente oferece apenas infortúnio e
o futuro parece aterrorizador, com visões de ruína e depauperamento. Nesse estagio de
melancolia, a ansiedade, o enfado e o desespero levam ao suicídio como saída.
Se tomarmos a melancolia no sentido quotidiano ou literário, observaremos que tem o
significado de um estado de alma sombrio e indolente, uma condição de magoa, um afundar-se em
meditação e irritabilidade ou, mais romanticamente, um estado de abatimento vago e resignado,
uma dor meditativa e intima.
Embora nos casos extremos da melancolia a inibição prevaleça, em todos os outros ha,
alem da aparente inatividade e apatia, um intimo anseio, uma procura sem descanso, um trabalho e
um tormento constantes, e também fantasias e pensamentos que ano conhecem seus fins nem suas
necessidades. Se um objetivo desejável e vislumbrado, o indivíduo choca-se contra uma inibição
dolorosa, uma inexplicável impotência ou um rodeio indeciso e inconclusivo.
Saudades sem esperança, perda de um bem insubstituível, tal como num exílio ou na dor do
luto - sentimentos desse tipo estão contidos, por assim dizer, no estado de melancolia,
possibilitando-nos a amplificação de seu significado.
Da mesma forma que a saudade e o luto, a felicidade, que se conheceu vivendo naquela
terra ou perto daquele precioso ser, esta presente no ilimitado da memória. No presente tudo e
sombrio, tendo em vista tal felicidade outrora experimentada; toda a existência e condicionada, as
experiências quotidianas são sempre mensuradas e obstinadamente comparadas com a memória,
como se para confirmar que o que se experimenta hoje ano vale a sombra do que já se perdeu.
E como se existisse uma espécie de poder que se opõe a reunião com o que foi perdido, um
poder opressivo, adverso e inflexível que parece paralisar a vontade, provocando um sentimento
doloroso de impotência.
Tudo isso e muito bem exemplificado na melancolia que afeta freqüentemente os
adolescentes. O mundo adulto e percebido pelo adolescente como a dura realidade, espinhosa, sem
poesia e ao mesmo tempo inevitável, em oposição a um mundo de sonhos e poesia
sentimentalmente colorido e apreciado, geralmente associado a lembranças fabulosas e nostalgia da
infância. O adolescente melancólico experimenta a irresolução, a perplexidade e a depressão de se
situar entre dois lados opostos de sua existência: prá ele, tornar-se adulto e inevitável, mas significa
ser despojado do mundo brilhante nostálgico da infância. Vê o mundo adulto como algo
representado por pessoas que ano podem entender esses valores e, mais do que isso, caçoam deles.
Contrariamente ao adolescente, os adultos tem poder, forca de vontade e autoconfiança e, mediante
sua simples existência, enfatizam a insuficiência e incompletude do jovem; afirmam uma realidade
que parece ao adolescente descolorida e dura.
O adolescente melancólico experimenta sentimentos de inferioridade, impotência e culpa,
porque ano aceita os “ valores “ do mundo adulto, e ao mesmo tempo experimenta amargura e
desprezo por um mundo ao qual se sente, apesar de tudo, atraído por uma irresistível corrente
subterrânea. Refugia-se no que sente ser uma atmosfera mais aceitável, mística, artística ou
filosófica. Na vida pratica, experimenta desperdício, inconcusso, indecisão, confusão como
conseqüência da contradição e da perplexidade, porque a tentativa de resolver os dois aspectos da
vida fracassou. O adolescente melancólico freqüentemente cede a idéia da morte como o “
almejado naufrágio “ que poderia livra-lo da realidade cruel.
Na nossa experiência encontramos outras formas de melancolia que ajudam nossa tarefa
de desdobrar e amplificar esse estado psicológico, na tentativa de descobrir seus componentes
inconscientes.
O pessimismo filosófico pode ser considerado uma manifestação sistemática de uma
melancolia de temperamento que se reflete no pensamento e se torna uma Weltanschauung. Pode
ser apenas um aspecto do caráter, uma tendência obsessiva a ver apenas o lado errado da vida.
Todos os aspectos da vida trazem idéias de decadência, desordem, desperdício, perigo e
imprevidência, ate mesmo morte por esquecimento. Existe, naqueles que experimentam esse
pessimismo, a impressão de que alguém deve ser responsável; como disse Leopardo , o poeta do
pessimismo: “ ... o poder fatal e oculto que determina a danação geral, “ ou como Hamlet em seu
monologo: “ ... o acoite e o escárnio do tempo ... “ ( III, I, 70).
Nessas formas de melancolia, o mundo e a realidade aparecem, por um lado, dotados de
um poder insuperável, e por outro, de uma inabalável negatividade; o homem e visto como um
brinquedo nas mãos de um destino irônico. Toda a criatura viva, na qual deveria aparecer a beleza
e a bondade, suscita, ao contrario, imagens de morte, destruição, e corrupção. O frágil traz a mente
a destruição e o efêmero, a ilusão e a dor.
Ate agora abordamos os aspectos negativos da melancolia. No entanto, ha outras
manifestações que trazem a tona seu lado positivo, através das quais o indivíduo experimenta, na
sua memória, imaginação ou intuição, um aspecto da vida dos mais desejados, embora sempre
negado. Refiro-me a melancolia associada a experiência do belo, também aquela, talvez muito
semelhante a primeira, que se apodera do homem em suas experiências místico-religiosas.
De um lado, o encontro com a frágil flor da beleza provoca, uma vez mais, pensamentos
ligados a fragilidade de tudo o que e humano. Como diz Petrarca , “ tudo o que e belo e mortal, não
perdura “ .Ou, nas palavras de Heine: “ murchar, ser despido das folhas e mesmo esmagado sob os
rudes pés do destino; tal e, meu amigo, o destino de tudo o que e belo na terra “ . Assim , o estado
de contemplação melancólica toma corpo com a união do bem mais desejado e sua inevitável
condenação.
No entanto, a conexão entre a beleza e a melancolia parece ser ainda mais profunda e
secreta. Seguramente, o elo entre a beleza e a melancolia tem sido experimentado pelo homem-
talvez somente por um certo tipo, através dos tempos. Podemos citar Sócrates em Fedro: “ quando
alguém vê a beleza aqui embaixo, evocando a verdadeira beleza, estende suas asas e inflama-se no
desejo de voar; mas, como não pode, lança seu olhar aos céus, como um pássaro, esquecendo-se
das coisas daqui da terra, sendo acusado de viver num estado de loucura ... “ Ou, como disse
Baudelaire: “ A melancolia e a nobre companheira da beleza, na medida em que não consigo
conceber qualquer beleza que não contenha em si alguma infelicidade “ .
Marsilio Ficino, humanista do século XV e fundador da Academia Platônica em Florença,
deu especial relevo a estreita conexão entre beleza e melancolia. Em seu trabalho De vita tríplici,
coloca a melancolia como passo intermediário numa espécie de processo de individuação que
começa com o conhecimento da beleza e por sua vez provoca tristeza por causa de sua
transitoriedade. Os membros da Academia diziam que este estado de melancolia estava sob o signo
de Saturno, o deus planeta que também era patrono da Academia. Melancolia e amor pela beleza
provocam o desejo ode gerar a fim de imortalizar a vida. Em outras palavras, a melancolia pode
abrir o caminho para a vida criativa.
Podemos mencionar, resumidamente, o tipo de melancolia encontrado na vida religiosa .
Em algumas pessoas a experiência religiosa aparece como uma crise súbita. Em tais casos e muitas
vezes precedida por um estado de melancolia extraordinariamente semelhante a “ melancolia “
patológica “ .

Ha um sentimento de vácuo, de desespero e de culpa. O mundo e percebido como se


habitado por um monstro do mal, horrível e aterrador, em cujo estômago o homem experimenta a
aflição de uma continua morte. Tudo e desprovido de sentido; o modo comum e normal de vida
parece impossível de se entender; a pessoa se sente abandonada e sem esperança.

O aspecto “ positivo “ da experiência religiosa, em tais casos, relaciona-se estreitamente


com o estado precedente, porque a pessoa tem a intuição de que pode escapar daquele muno
insuportável através de um segundo nascimento em outro mundo, onde prevalece a pureza perfeita
de Deus. Os místicos são especialmente inclinados a experimentar um estado de união com o ser
perfeito e infinito, no qual tudo e pleno de sentido e amor- um estado que pode ser considerado
como o polo oposto da melancolia.

INVESTIGAÇÃO ANALÓGICA ( AMPLIFICAÇÃO )

A repetição de certos motivos, dentro de um estado psicológico ato freqüente e ato rico de
emoções, leva-nos a pensar que nos encontramos no campo gravitacional de um arquétipo. Como
não e possível o conhecimento dos arquétipos em si, devemos procurar algumas manifestações no
mesmo campo gravitacional, em outras esferas da expressão humana.

A mitologia geralmente apresenta uma possibilidade peculiar de pesquisa desse tipo,


devido a espontaneidade, variedade e riqueza de suas expressões. Com respeito a melancolia, uma
velha tradição, respeitada ate hoje, associa-lhe o nome de Saturno. Como na mitologia greco-
romana as figuras de Saturno e Cronos se justapõem, faremos referencias a ambos os mitos.
Tentemos analisar o mito de Saturno, tendo em vista a fenomenologia da melancolia. Os elementos
míticos e psicológicos podem esclarecer, amplificar e explicar uns aos outros.
A melancolia, sendo ato diferenciada, elementar e comum, pode ser encontrada através de
uma amplificação mitológica igualmente primitiva e arcaica. E este o caso do mito de Cronos-
Saturno, que nos conta as origens primordiais da cosmogonia humana; não se trata do estagio dos
heróis nem dos deuses antropomórficos, mas sim dos Titãs e da origem da própria espécie divina.
De acordo com Hesíodo, a estória de Cronos se desdobra em três estágios. No começo ele
e “ Cronos , o astucioso “ , cujo poder consiste na artimanha e no ataque de surpresa, filho mais
novo e Urano e Rea, o casal original. Urano impede o nascimento de seus filhos do corpo da mãe.
Esta dá a Cronos a foice com a qual o filho castra e mata seu pai, dessa forma libertando-se e aos
outros Titãs do corpo materno. No segundo estágio, o próprio Cronos torna-se o Rei dos Deuses;
no entanto, prevenido pela profecia de sua mãe, teme por sua vez ser destronado por um de seus
filhos e então, para evitar esse perigo, devora todos os filhos que Rea gera.
No terceiro estágio, mediante um estratagema de Rea, os filhos são liberados do estômago
do pai. Rea dá a marido uma pedra em lugar de seu último filho. Júpiter. Este, criado em segredo
na ilha de Creta, e protegido pelos Coribantes, que ocultavam seu choro com o barulho de seus
instrumentos, destrona Cronos, liberta seus iramos e torna-se Rei dos Deuses. O velho Deus,
destrona-o, cujo símbolo continua sendo a foice, e enviado o fim do mundo, onde passa a reinar na
ilha dos bem aventurados, deus e rei da feliz Idade de Ouro
A estória de Saturno coincide com a de Cronos. Saturno e o antigo deus itálico da
agricultura, cujo símbolo e a foice. Destronado por Júpiter, encontra abrigo na região do Lacio,
onde mais tarde torna-se rei, durante uma era remota e prospera de vida feliz e pacifica. A festa de
Saturno, entre as mais importantes do ano, era celebrada do solstício de inverno. Caracterizava-se
pela troca de presentes, pelas folias e pela abolição temporária das diferenças entre escravo e
senhor. Cronos-Saturno e, portanto, o Deus da Agricultura, da colheita guardada e também da
semeadura
Na medida em que procuramos nos aproximar do mito alem do seu significado aparente e
superficial, começamos a perceber a vastidão do horizonte e das forcas que nele entram em ação.
Tentemos captar intuitivamente o sentido contido no mito.
O destino de Cronos se desenvolve em três estágios, nos quais a sua potencialidade se
desdobra e se manifesta. No primeiro estagio, o nascimento de Cronos e uma crise violenta e
revolucionaria. Consegue vir ao mundo somente as custas de uma violenta rebelião contra seu pai.
Segue-se um segundo estagio, no qual a figura de Cronos adquire sua característica central:
colocado entre o céu e a terra (seus pais) torna-se um ser independente, contraditório, perigoso e
problemático. Gera filhos destinados a destitui-lo do poder que conquistou. Experimentou no
primeiro estagio o teste severo de um pai que impediu sua liberação do ventre fértil e envolvente da
ame, e contra tal obstáculo voltou a desmedida violência de sua sede pela liberdade. Agora e ele
próprio ameaçado pela mesma forca e violência, nascidas como conseqüência inevitável de sua
vida e de seu destino. A esse estagio podemos chamar de conservador.
No primeiro e segundo estágios a estoira de Cronos e essencialmente constituída por um
relacionamento pai-filho marcado por competição mutua, desafio e violência. Assim como no
primeiro estagio Cronos sofre a dureza do pai em seu egoísmo, no segundo, por sua vez, ele
mesmo e o pai ameaçado pelas possibilidades de seus filhos, servindo-se ele também de artimanhas
e violência para sobreviver e conservar seu poder.
No terceiro estagio contemplamos o desmoronamento dessa figura dramática: Cronos e
destituído de seu reino e, enquanto a geração dos deuses Olímpicos começa, volta-se para o outro
lado de seu destino. E agora rei de uma terra muito diferente do titânico campo de batalha anterior.
A natureza do deus e transformada: torna-se o soberano saibo e benéfico dos homens felizes; a
terra produz seus frutos em abundância; homens e animais vivem em harmonia.
De acordo com outra tradição, também mencionada por Hesíodo, Cronos, após ter sido
confinado nas profundezas da terra, envia espíritos benéficos aos homens, tornando-os capazes de
sabias resoluções. Esse terceiro estagio e chamado a “ transformação “ .
Podemos agora tentar obter um conhecimento melhor do arquétipo de Cronos-Saturno,
amplificando seus conteúdos com elementos de outros contextos. Na tradição hermética, fala-se
explicitamente de Saturno, assim como na astrologia, na alquimia e no folclore. Na primeira,
Saturno, o planeta cuja orbita e a mais ampla, corresponde a razão , ou melhor, ao intelecto no
sentido não-racionalista do grego “ nous “, que e a faculdade de conhecer dando unidade e forma
ao objeto, o principium individuationis no sentido escolástico. ( Para a Academia Neoplatônica de
Florença a etimologia de Saturno era sacer nous, mente sagrada ).
Entre os metais, Saturno e o chumbo, o escuro e pesado ponto de partida na escala de
valores que leva ao ouro. Na mais antiga representação do zodíaco, cada planeta tem duas casas
situadas ao mesmo nível, nos dois lados de uma trajetória dupla, primeiro descendente, depois
ascendente. Saturno ocupa a casa no ponto mais baixo, onde o declínio termina e começa a
ascensão. Saturno corresponde aqui ao sol noturno; e o solstício de inverno, o lugar da escuridão e
da morte. Seu símbolo representa a foice da lua na mais baixa posição com respeito ao cruzeiro.
Em termos de consciência, corresponde a um estado caótico de submersão no corpo. Por outro
lado, a “ transformação “ , a mudança de declínio para ascensão ocorre realmente na casa de
Saturno. A vida do sol e do ouro esconde-se no profundo e obscuro caos do chumbo, onde a luz e
o calor parecem extinguir-se.
No mito alquímico o Rei Ouro deve ser morto e enterrado, para poder reaparecer em toda
sua gloria, e é precisamente na casa de Saturno que e enterrado. O túmulo do rei e portanto
chamado de Saturno. O adepto tem que completar todo o percurso para ter a revelação da sabedoria
hermética. Seu ponto de partida e a mais ocidental das sete bocas do Nilo, e lá vive Saturno - o
mais frio, o mais pesado e mais distante do sol, o planeta que simboliza a obscuridade, melancolia,
abandono e medo, a estrela do mau agouro, o misterioso e sinistro senis, que transforma a chegada
em domas barbe, a casa onde “ o mais sábio de todos “ , Hermes ( Trimegistos ), “ três vezes o
maior “, concede a sabedoria.
No processo de transformação da alquimia, o primeiro estagio, dominado por Saturno,
corresponde ao enegrecimento e obscurecimento, a putrefacto e mortificatio. As cores de Saturno
são o cinza e o negro, mas as cinzas que permanecem após a combustão, a calcinação dos metais
básicos e a mateira bruta também constituem a mateira preciosa, o sedimento do qual o ouro será
obtido posteriormente. Será o sal sapientiae ou sal saturni, o amargo sal da sabedoria, que torna
imbebível, embora límpida, a água da vida, a água permanens. Esta e a tintura, o útero do filias
philosophorum, a almejada substancia celestial.
T. Buckhardt, em seu comentário sobre o primeiro estagio do magistério, escreve:

No começo da realização espiritual esta a morte, como uma morte do mundo. A


consciência deve ser distanciada dos sentidos e convertida ao interior mais profundo. Mas a luz
interior não apareceu ainda: portanto essa retirada do mundo exterior e experimentada como a
noite negra e profunda., “ nox profunda “.

O misticismo cristão compara esse estado com o grão de milho, que para frutificar deve
permanecer na terra e morrer. Saturno e também chamado pelos alquimistas de “ governado da
prisão “, aquele que tem o poder de manter prisioneiro ou libertar; e o supremo juiz.
Na astrologia, Saturno e o regente do signo de Capricórnio; caracteriza-se pelas qualidades
de profundeza, austeridade e renuncia, assim como pelo pessimismo, desconfiança e egoísmo.
Saturno e representado por um velho de barbas e cabelos brancos, freqüentemente com sinais de
enfermidade física, empunhando a foice e uma ampulheta. Corresponde ao “ pai “ ou a uma pessoa
importante e idosa. Muitas de suas características convergem para um Os ponto: preocupação
apaixonada, profunda e continua com seu próprio destino, que pode se manifestar como uma
concentração e paciência no dever, ou como duvidas exaustivas introspeção sobre o dever em si,
ou como inveja, desconfiança, mau humor ou hipocondria. Saturno representa o poder impulsivo
da ação que impele um homem a viver seu próprio destino; e a tendência ao exame minucioso de
seus próprios pensamentos e sentimentos, dissecando continuamente suas próprias ações,
atormentando sem descanso a si e aos outros. Mas Capricórnio e também um signo de sabedoria e
de perseverança espiritual, de capacidade de renuncia, austeridade e concentração.
Saturno também e o regente do signo que segue Capricórnio, isto e, Aquário, que significa
astrologicamente a transformação possível em direção a valores sociais positivos de humanitarismo
e fraternidade universal. Esse fato nos faz lembrar o ultimo estágio do mito de Saturno: a Idade do
Ouro.
Nos contos de fadas encontramos freqüentemente a figura do velho. E o “ velho sábio “ , o
“ feiticeiro “, ou “ espirito da montanha “, que mora num castelo ou numa caverna. Tem uma
natureza ambígua e uma surpreendente capacidade de transformação. Em alguns contos de fadas
essa natureza ambígua e cambiante se exprime pelo fato de que o velho tem apenas um lado - um
olho, uma perna, uma mão - sendo o outro invisível, o que revela a natureza antitética do velho.
Ele exerce um papel de ajudante ou de inimigo, ou de um jovem no caminho de se tornar “ herói “
e também o papel do pai, ou aquele que mantém prisioneira a princesa a quem o “ herói “ e
destinado.

Como Jung diz :

O velho aparece sempre que o herói esta em situação desesperada e sem esperança, da
qual somente uma reflexão profunda ou uma idéia afortunada - em outras palavras, uma função
espiritual ou um automatismo endopsíquico qualquer - pode libertá-lo. ( Esta aparição e ... ) um
processo dotado de intenção com o objetivo de manter unidos todos os elementos da
personalidade total no momento crítico, quando nossas forças espirituais e físicas são desafiadas,
e com essa força de união abrir de uma vez a porta do futuro. Ninguém pode ajudar o menino a
fazer isso ; ele tem que contar apenas consigo mesmo. Não ha volta para traz. A compreensão
fornecera a necessária resolução as suas ações. Ao forca-lo a enfrentar o problema, o velho lhe
poupa a preocupação de se decidir. Na verdade, o velho constitui-se na própria reflexão dotada
de propósito e na concentração de forcas morais e físicas que surgem espontaneamente no espaço
psíquico fora da consciência, quando a reflexão consciente não é ainda - ou ano é mais -
possível.

Mas “ o velho tem também um lado mau, assim como o médico primitivo; e ao mesmo
tempo aquele que cura e ajuda e o terrível preparador de venenos “ . E “ alguém que auxilia, mas
também o articulador de um perigoso destino que pode tornar facilmente fatal “ . “ ‘E um
assassino ... e acusado de encantar toda uma cidade, transformando-a em ferro, isto e, tornando-a
imóvel, rígida e paralisada.
No seu papel de guardião da princesa, “ o arquétipo fatal do velho tomou da anima do Rei
- em outras palavras, roubou-lhe o arquétipo da vida, personificada pela anima - e forcou-o a sair a
procura do encanto perdido, o “ tesouro difícil de ser conquistado, transformando-o assim no herói
mítico, a personalidade superior que e expressão do Si-mesmo. Enquanto isso, o velho atua como
vilão e deve forçosamente ser removido... “ . “ Assim ... observamos o arquétipo do velho
disfarçado naquele que produz o mal encontrado em todos os meandros e voltas do processo de
individuação, que termina sugestivamente com o hieros gamos” , o casamento sagrado.

CARACTERÍSTICAS DO ARQUÉTIPO DE CRONOS-SATURNO

Como explicaremos depois, de modo mais detalhado, falar sobre um arquétipo e uma
tarefa que envolve certos perigos. Arriscamos sempre perder seu significado se tentarmos apenas
explica-lo, como se fosse uma construção racional ou mecânica. Devemos nos contentar com uma
descrição. Mas, de acordo com Jung, “ o significado ultimo e central de um arquétipo pode ser
circunscrito, mas não descrito. Mesmo assim, a mera circunscrição indica um progresso essencial
em direção ao nosso conhecimento... “ Não deveríamos nos esquecer de considerar as
características peculiares do arquétipo não como conceitos definidos, mas como imagens ricas de
conteúdos emocionais e nunca isolados de seu inter-relacionamento. Tentemos então delinear o
núcleo estrutural comum, o arquétipo ativo, em todas essas expressões e criações humanas que se
referem explicitamente a imagem de Cronos-Saturno.
O mito grego se reporta a um aspecto elementar e primordial do desenvolvimento
endopsíquico: o relacionamento pai-filho. Cronos e primeiramente o filho impossibilitado pelo pai
de sair do corpo da mãe; depois, e o assassino de seu pai, e por fim torna-se ele mesmo o pai que
engole seus filhos.
A historia toda de Cronos parece guiada pelo motivo de sua busca obstinada e da defesa de
sua própria individualidade. Esse aspecto dramático e o que distingue Cronos de todos os outros
deuses - por exemplo dos Olímpicos, cujos atributos são definidos desde o começo.
Os riscos que Cronos corre são basicamente de morte: na primeira etapa, morte sob a forma
de não-nascimento, de ser impedido de nascer; na segunda, morte como perda de si mesmo. Em
ambos os casos, a ameaça da morte penetra na relação pai-filho, e o assassino e sempre Cronos,
que mata sempre em defesa própria. Existe um antagonismo fundamental e absoluto entre esses
aspectos de pai e filho, pois a existência os separa. O sentimento dominante e um pressentimento
de morte insuportável e no entanto inevitável. Pode-se reconhecer a depressão e a angustia, nos
processos herméticos e alquímicos, como a condição de ouro escondido e aprisionado no chumbo,
do sol no interior das entranhas da noite e do sepultamento debaixo da terra, que significam túmulo
e putrefação, ignorância, obscuridade e abandono.
A potencialidade de transformação e também evidente na tradição tanto alquímica quando
hermética. Saturno e o ponto mais baixo da parábola e o lugar mais profundo, onde termina a
descida e a nova ascensão começa. A direção e invertida, o significado de seu ser e transformado; a
descida torna-se a possibilidade de uma nova ascensão, o sepultamento torna-se o contato com o
fértil e profundo seio da noite, o abismo profundo torna-se a possibilidade de sabedoria, a
putrefação se torna liberação da morte. O que esta morto quebra e se dissolve, libertando o
elemento precioso que estava anteriormente vinculado ao impuro.
O conflito pai-filho de Cronos expressa, na maneira incomparável das imagens míticas, o
que os filósofos conceberem em linguagem abstrata como sendo o dinamismo essencial do ser e do
vir a ser. O velho gera o novo. Mas, essa continuidade não se d
á pacificamente, porque o velho experimenta a transformação como uma ameaça, a qual reage
engolindo toda a nova geração. As “ novas “ forcas revolucionarias se opõem a essa fase
reacionária e conservadora numa confrontação irreconciliável: um dos dois deve morrer e o
vencedor reinara. Na tradição hermética, Cronos-Saturno e o teste mais alto, a prova a ser vencida,
o governador da prisão em cujas mãos esta a liberação ou o confinamento.
Outro aspecto importante da depressão satúrnica e a inibição da vontade. Não se trata nem
de falta nem de fraqueza primitiva da vontade, mas de um bloqueio provocado por um encontro
com uma vontade contraria e mais poderosa. Sob a superfície da melancolia psicótica existe não
uma extinção da vontade ( como por exemplo parece acontecer na esquizofrenia catatônica ), mas
sim uma impossibilidade de se libertar do emaranhado e dos obstáculos que estão prendendo a
pessoa, um quebrar a cabeça tentando descobrir a saída e uma colisão continua com um obstáculo
maior e mais forte. E a condição de ter sido engolido e sepultado, tal como acontece aos filhos de
Cronos, ou ao ouro no estagio de chumbo, ou ao rei na tumba. Do mesmo modo que a água se
torna petrificada no gelo, o frio e árido Saturno interrompe o movimento e o fluxo espontâneo da
vontade. Na fase depressiva da psicose maníaco-depressiva, muitas vezes parece que a atividade
incessante da fase maníaca e revertida para dentro, manifestando-se então febrilmente como uma
lucidez exagerada na percepção dos aspectos negativos da existência, prevendo destruição e
sofrimento como desenvolvimentos inevitáveis do presente.
Pode-se dizer que a inibição satúrnica e fruto de um excesso de consciência e de uma
lucidez fatal que paralisa todas as tentativas de se caminhar, através da visão de um fracasso
catastrófico e terrível. Mas a ansiedade que dai decorre e também conseqüência do fato de que a
pessoa não perece, mas testemunha com lucidez o seu perecimento continuo. Um tipo extremo de
melancolia psicótica revela essas características em estado puro. E a síndrome de Cotard, bastante
freqüente nas formas involutivas de melancolia. Começa com idéias de transformação; a pessoa
sente seu corpo em estado de decomposição, sentada como petrificação de seus órgãos. Logo
depois vem a idéia de negação, em que o paciente exprime uma experiência monstruosa e terrível:
ele já não vive e no entanto não e capas de morrer, sentido-se destinado a testemunhar para sempre
sua própria morte e dissolução.
A inatividade melancólica associa-se a uma hiperatividade interior, bloqueada em suas
possibilidades de manifestação. Não deve ser considerado uma contradição, pois, se no folclore
encontramos na grande família dos filhos de Saturno, homens continuamente empenhados em
consertos, produzindo como artesãos e agricultores, carpinteiros e sapateiros, alfaiates e pedreiros,
artistas e poetas. Esse motivo do trabalho continuo ( embora freqüentemente não visível )
aproxima-se e se justapõe aos motivos já considerados do impulso de transformação e
individuação.
O significado do devoramento pelo pai, constante na psicologia satúrnica, pode ser
explicado como um bloqueio ao impulso de transformação. E a expressão arquétipa de um
momento peculiar do processo de diferenciação do ego. Aqui o “ solidificado “ , isto e, tudo o que
já foi feito, os poderes estabelecidos e a “ historia “ , impede o impulso do jovem em direção as
chances do futuro; e as “ chances do passado “ , fascinantes mas regressivas, ligadas ao reino da
mãe, emergem então da escuridão.
Esse estado apresenta um exagero da consciência, da lucidez mental, d perfeição nas
realizações. O poder que o puer almeja já esta nas mãos de outro; a experiência que deseja já foi
realizada; a verdade que procura já foi encontrada. Cronos mostra a sua desagradável face de senis
ao juvenes, e este sente a urgente necessidade de rejeitar tudo o que o pai fez. Saindo do ventre
materno com o frescor da manha em sua obstinada busca de transformação, o protagonista
encontra a rígida figura de Cronos, inevitável e adverso como a morte.
Continuando essa circum-ambulação em torno da figura de Cronos, outro aspecto que
podemos examinar e a onipresente consciência da morte. A morte acompanha as diversas etapas do
processo como contraponto inevitável; sem ela não ha transformação. Entre os personagens do
trágico drama do desenvolvimento da consciência parece não existir possibilidade de acordo, mas
somente através da morte de um dos oponentes. Cada vitória e afirmação de um corresponde a
derrota e morte do outro. Pai filho vêem refletido um no outro o que lhes esta reservado - velhice
inevitável e decadência para o jovem, destituição e descrédito para o velho.
Nas manifestações clinicas da psicose melancólica ha freqüentemente um delírio de culpa.
Um sentimento de culpa oculta-se nos pensamentos dos filósofos pessimistas e no ímpeto
apaixonado dos místicos. Cronos e dominado por uma “ má-consciência “. Conquistou a existência
ao preço do assassinato de seu pai e da quebra violenta da unidade indiferenciada de seus
progenitores. E o pecado original a que se referem a religião e a filosofia existencialista. Na
tradição hermética e alquímica essa culpa e a impureza do entrelaçamento do elemento precioso
com as cinzas, a terra e o chumbo. A impureza se revela como culpa original, na medida em que e
negação e ausência do estado final ao qual todo o processo almeja.
A necessidade revolucionaria de novos valores deve sofrer e vencer, ou então opor-se aos
valores estabelecidos, o que cria culpa em todo processo de transformação do novo em relação ao
velho. Mas também ha uma culpa obscura do velho em relação ao novo, porque o velho sabe que
deve sucumbir e que sua maneira de ser e de fazer contradiz esta lei superior de transformação.
Psicologicamente, parece que a culpa acompanha uma certa fase de cada processo de
transformação, em que um aspecto de culpa se associa a outros: necessidade de transformação,
inibição da vontade, consciência da morte. A necessidade de transformação parece ser uma ameaça
fundamental ao se atual. uma vez que o “ horizonte “ do ego esta ligado as suas identificações
presentes, embora se veja obrigado a mudar.
A culpa e psicologicamente associada ao castigo, ao sentimento de estar nas mãos de um
poder que pode destruir. Para o filho este poder e Cronos, o velho rei, o pai negativo. Cronos-
Saturno e o arquétipo do teste pelo qual se tem que passar, a pessoa com a qual se tem que ajustar
contas, e cujo lugar se tem que tomar. Ele e maior, mais sábio, mais poderoso, e o medo do
confronto com sua figura causa uma parada no processo de transformação e uma estagnação da
libido, ao mesmo tempo que um aumento na tensão endopsíquica.
Falando sobre Hermes-Mercúrio na alquimia e nos herméticos, Jung diz que a natureza
ambivalente dessa figura pode ser considerada como um “ processo “ que começa no mal e termina
no bem. Saturno, explica, representa o lado mau contido no Mercúrio. Em seu trabalho sobre o
Espirito Mercúrio, Jung diz também que o principium individuationis deve ser encarado como o
espirito que foi confinado e aprisionado. Aquele que aprisionou e o “ Senhor das Almas “ , mas o
fez com boas intenções, porque somente através do sentimento de culpa que e surge com a
separação do bom e do mau e que pode ser desenvolvida a consciência moral. Ele diz: “ Uma vez
que sem culpa não ha consciência moral... devemos reconhecer que a estranha intervenção do
senhor das almas era absolutamente necessária para o desenvolvimento de qualquer tipo de
consciência, e nesse sentido foi para o bem “. No mesmo trabalho, Jung nos lembra que para a
filosofia pessimista, como para Schopenhauer e para o budismo, o principio de individuação e a
fonte de todo o mal. Assim, Cronos-Saturno, a estrela da depressão, da separação, do sofrimento
moral, da culpa, senhor da prisão, representa o necessário momento negativo do processo de
individuação.
Em Mysterium Coniunctionis, Jung expressa o momento em que a culpa revela sua
possibilidade positiva: “ Somente então poderá o indivíduo perceber que o conflito esta nele, que
seu desacordo e sua atribulação são suas riquezas, que não deverão ser desperdiçadas no ataque
aos outros; e que, se o destino lhe cobrar um debito sob a forma de culpa, e uma divida para
consigo mesmo” .
Mas Cronos-Saturno torna-se deus da agricultura que reina sobre os homens, ensinando-
lhes as artes do cultivo depois de derrubado e forcado a vomitar os filhos que engoliu. A semente
que morre e a que frutifica; a foice, símbolo da morte, torna-se o instrumento que colhe os frutos e
o alimento.
Nas antigas representações do Zodíaco, Saturno e o ponto inferior e final de descida. Em
conseqüência, e o polo negativo ao qual devemos nos dirigir para podermos voltar ao polo
positivo. Em outras palavras, devemos procurar a escuridão, a dor e a morte para podermos subir
de novo a luz, a alegria e a vida. O símbolo astrológico de Saturno tem a forma de uma foice, a lua
decrescente, no ponto mais baixo do cruzeiro; e o lugar da morte para transformação, que constitui
o significado do sacrifício.
Da mesma maneira, no processo alquímico o rei deve ser morto para aparecer de novo em
plena gloria. E sepultado na casa de Saturno, que tem o duplo significado de tumba onde o velho
decai, e onde esta contida a semente que prepara o novo nascimento. Um hino órfico a Cronos fala
ao deus: “ Tu devoras, mas para aumentar “.
No final de sua estória, Cronos-Saturno, com sua ultima transformação, parece ultrapassar
o tempo, revelando dessa maneira o pleno significado de seu processo. De acordo com a tradição
transmitida por Hesíodo, Cronos reina sobre os homens da Idade do Ouro, que viviam sem
preocupações, esforço ou queixas, como deuses. A miséria da velhice não os ameaça ; com corpos
eternamente jovens, gozavam suas festas, livres das doenças. Morriam como que vencidos pelo
sono. Todos os bens lhes eram acessíveis: os campos, doadores da vida, produziam sus frutos com
grande abundância. Viviam alegremente desses frutos, em paz, numa comunidade composta
unicamente de boas pessoas. Eram ricos em rebanhos, assim como amigos dos deuses bem-
aventurados. Quando essa geração afundou, segundo a vontade de Zeus, nas profundezas ocultas
da terra, tornaram-se bons espíritos que percorrem a terra como protetores dos homens, defensores
da justiça, doadores de riquezas, presentes de forma invisível em todo lugar.
Hesíodo também conta que Cronos, depois de destronado, e designado por Zeus para
governar as ilhas dos bem-aventurados; situadas no fim do mundo, rodeadas pelo oceano, essas
ilhas são habitadas pelos heróis, após sua morte. La os campos férteis frutificaram três vezes por
ano e o “ mel goteja dos carvalhos “ . Essa e a ultima transformação do titânico devorador de seus
filhos que agora amigo dos homens, guiando-os em caminhos de amor e paz. Em tempos de
anima, todas as qualidades que caracterizam essa face do reinado de Cronos são os dons que a
sabedoria traz aos homens. A sabedoria, que e uma possibilidade criativa porque revela a riqueza
interior, e também justiça, enquanto capacidade de unidade e harmonia entre forcas e necessidades
contrarias.
A analise da depressão, dominada pelo símbolo ambíguo do velho com a foice, nos leva
portanto a um núcleo dinâmico da psique coletiva. Podemos tentar circunscrever esse núcleo
através de imagens bipolares ou conceitos de opostos - tais como morte e vida eterna, caos e
sabedoria ( para os gnósticos, Saturno e filho de Caos ), impureza e pureza, petrificação e
transformação, confusão e lucidez, culpa e glorificação, punição e recompensa, tormento enquanto
mero sofrimento e sacrifício, pobreza estéril e riqueza fértil, oposição violenta e harmonia de
justiça.

CORRELAÇÕES E DINÂMICA DO CAMPO ARQUÉTIPO DE CRONOS-SATURNO


Assim com as forcas de diferentes campos encontram-se para criar um campo complexo de
energia, podemos observar outros arquétipos convergindo sobre o do velho. Do mesmo modo,
como não se pode descrever a função de um órgão sem se ver na obrigação, em determinado
ponto, de considerar a função de um outro órgão, a figura de Cronos-Saturno pode ser em parte
superposta e associada a outros arquétipos. Essas analogias com o conceito físico de “ campo “ e
com o conceito fisiológico de “ órgão “ talvez auxiliem a melhor compreender como as coisas
realmente são no reino do inconsciente coletivo.
Quando se investiga profundamente um arquétipo, chega-se a um momento em que a
figura desaparece e, perdendo gradualmente seus contornos, dissolve-se em outras figuras
intimamente relacionadas, que parecem auxiliar na compreensão, mas ao mesmo tempo retira, do
arquétipo original seu valor individual. Todo arquétipo parece clarificado quando descobrimos sua
conexão vital com outros arquétipos; mas, nesse caso, ele e desmembrado pelos outros, neles se
dissolvendo. Isso e especialmente evidente ao se pesquisar a totalidade do Si-mesmo, a
personalidade supra-ordenada. Nesse caso, não podemos afirmar nada do arquétipo em si, exceto o
que se manifesta através das imagens dos sonhos, mitos, fantasias, etc.. Podemos apenas aborda
esses elementos psíquicos, primeiramente com nossas faculdades intuitivas e afetivas e depois
cada vez mais com nosso pensamento, uma vez que não mais experimentamos os mitos de uma
forma ingênua, mas desejamos ser científicos em nossa atitude. Nossa analise, no entanto, não
chega ao fim. Tão logo tentamos abstrair a verdadeira essência de uma imagem arquetípica, esta
desaparece e evapora. Somente a própria imagem, apresentada no seu próprio contexto, e clara,
nítida e inequívoca. A experiência mais importante que temos ao estudar um arquétipo não e
somente sua possibilidade infinita de ser analisado, mas também a sua perda de singularidade e
individualidade. Percebemos a relação fundamental com outros arquétipos, descobrimos as
identificações subterrâneas entre opostos, e a sempre presente estrutura dialética entre eles. Em
conseqüência, devemos sempre, quando confrontados com a tarefa difícil de falar sobre o arquétipo
, fazer referencia primeiramente as suas linhas fundamentais de relacionamento com os arquétipos
vizinhos, e depois, a sua transformação no processo de individuação.
Tendo isso em mente, voltemos de novo a Saturno junto ao qua encontramos outros dois
arquétipos que lhe estão diretamente relacionados. Na medida em que Saturno e o velho, une-se e
opõe-se ao puer; na medida em que e o pai , une-se e opõe-se a mãe. Puer e Senex são
personificações dos dois extremos em que a libido, sob certas condições, se fragmenta. No velho, o
processo estancou num excesso de diferenciação egocêntrica que exauriu o potencial de
transformação. Tornou-se petrificado, e, detendo o poder, tende a bloquear e petrificar o processo
em torno de si. Nessa altura Cronos e endurecido por sua sede de poder e por seu medo do que e
novo. O jovem representa necessidade de se tornar o novo homem, mas só pode consegui-lo na
medida em que colide com a parede petrificada do Senex. Os dois arquétipos são os pólos de um
único aspecto dinâmico.
O arquétipo da mãe esta em relação mutua com o do pai ( a mitologia, a alquimia e a
hermética estão repletas de material a esse respeito ). Mas a mãe e também aliada do filho na luta
deste contra o pai, como mostram a estória de Cronos e, repetidamente, os alquimistas. A mãe esta
ligada ao puer numa relação carregada de energia; mas o valor negativo ou positivo de tal relação
depende de como o pai e constelado. O pai negativo, o teste opressivo, a oposição ameaçadora do
rival encastelado em seu pode estabelecido, o pai petrificado como um juiz, provoca a fuga do
puer em direção a mãe todo-compreensiva e sua infinita capacidade de transformação enquanto a
indiferenciada Grande Mãe. Assim, o impulso do puer em direção ao futuro e estancado, sendo
compelido a reverter seu curso. Esse e o leit-motif da tendência a morte, que constitui um dos
aspectos do puer. Seguramente, e uma morte essencialmente diferente daquela ameaçada pelo pai
devorador, uma morte desta vez não temida, mas desejada, suicídio extático e dissolução.
Nas manifestações clinicas de melancolia não faltam exemplos concretos desse aspecto do
arquétipo: de um lado, o medo da culpa e do castigo e, de outro, o desejo de morte como saída. Na
depressão adolescente pode-se observar um vinculo ambivalente com a mãe; ela seria encarada
como um refugio protetor contra as ameaças e as excessivas solicitações do pai, enquanto este
ultimo, como principium individuationis, seria experimentado como uma ameaça porque parece
representar a perda de contato com as infinitas possibilidades da mãe. Nesse caso, esta seria uma
figura apenas pseudopositiva, porque então representaria ela mesma a petrificação do processo.
Carrega então as características de Saturno e torna-se, de uma forma ambígua e mortífera, a
negativa mãe devoradora.
Mas a mãe contem também todos os elementos da anima: uma riqueza inexaurível de
sentimentos e emoções, fertilidade e criatividade. Ela e a fonte de nascimento e renascimento, de
renovação e de transmutação. A anima personaliza a mãe, trazendo-a para um nível individual,
sendo portando guia e conexão com o inconsciente.
Quando puer e senex colidem irredutivelmente, a quebra no processo pode ser vencida
através da anima. O puer teme o velho precisamente porque sente em si próprio a dureza e a aridez
derivadas da falta de contato do velho com eros, da sua ausência de instinto e de emoção criadora.
De acordo com os alquimistas e necessário que o elemento petrificado seja dissolvido,
desmembrado e sepultado na matéria primitiva e informe, a fim de ser capaz de reaparecer como
um novo homem. Naturalmente o velho teme esse fato, pois seu significado e o contrario do que
não tem forma, do mutável, do multiforme, e do ainda não constituído e não individualizado. Ele e
o poderoso impulso da libido para formas definidas - justamente o que o puer teme como a morte!
Poder-se-ia dizer que tanto o puer quanto o senex projetam sua sombra um sobre o outro. Entre
parênteses : esta afirmação deve ser puramente analógica e corre o risco de uma certa confusão. “
Sombra “ deve talvez se referir a uma pessoa e “ projeção “ a um relacionamento pessoal. Mas,
tratando-se de um arquétipo, toda personificação arquetípica tem uma sombra sui generis que
poderia ser chamada apropriadamente de Sizigia, um termo que Jung tomou da astrologia.
Significa a posição da lua em conjunção ou em oposição ao sol. Astrologicamente falando, Sizigia
tem o significado de um par ligado.
A mistura da esfera pessoal com arquetípica pode levar o psicólogo junguiano a uma
confusão perigosa. E aconselhável não desperdiçar nenhuma possibilidade preciosa de
esclarecimento quão se lida com um campo ato complexo e tão difícil de compreender.
A resolução do conflito puer-senex encontra-se na função mediadora da anima. No mito de
Cronos, a resolução e a transformação de Cronos-Saturno em deus da agricultura, fundador e
dirigente da Idade de Ouro, ou Senhor dos Tártaros e aquele que envia bons espíritos. Aqui a
relação com o feminino e fundamental, porque o velho tem que ser dissolvido. No perpetuo
processo de transformação, toda forma completada deve decair, todo poder conquistado deve ser
pedido, tudo o que nasceu deve morrer.
O Senex pode significar que o processo parou, que a pessoa não tem a coragem necessária
de sacrificar o que foi conquistado e não confia no misterioso e antitético poder regenerador do
informe, o inconsciente, cujo mensageiro e a anima.
Para o puer, não se trata de evitar a influencia do velho, nem de opor-se a ele. Isto seria
impossível, se refletirmos que senex e puer, aspectos sizigiais do arquétipo, nasceram um do
outro! O puer deve aceitar sua própria morte, e este e o significado de sua colisão com o velho. O
jovem apenas nasceu e ainda carrega a memória fascinante das profundezas infinitas e imortais da
mãe. Não tem forma, e sim possibilidades ilimitadas. Teme qualquer forma como a morte. Tal
atitude peculiar ao puer aeternus, uma vez que a criança quer permanecer tal como esta e não
tomar nenhuma forma. No entanto, quando a inevitável necessidade da vida obriga o puer a tomar
uma forma, a luta com o senex, o pai negativo, começa. Este e o principium individuationis, tal
como o puer aeternus o experimenta. A inconsciente tendência suicida nada mais e do que o forte
impulso a transformação, constituinte essencial do puer. A morte tem para o puer o aspecto
desesperado e aterrorizador do velho com a foice, ou, como alternativa, o reino fascinante da mãe.
Mas o “ cálice amargo “ oferecido pelo pai e também a poção que pode transformar o jovem em
herói. Então a própria morte pode ser transformada numa “ morte de tudo o que sou agora para me
tornar tudo o que quero ser !” A transformação e redenção pelo sacrifício são a vocação do puer. O
símbolo unificador e a personificação redentora que pode aparecer então a ele e justamente kore ou
anima. Esta atua como mediadora entre as necessidades que o velho impõe e os valores que a mãe
representa.
Nos contos de fadas, se o jovem aceita o sacrifício, ou seja, a luta e o risco da morte ( na
verdade o jovem sempre morre na luta, mas para ressurgir transformado ) então, tendo vencido,
pode casar-se com a filha do velho rei - a jovem anima eterna possibilidade criativa contida como
Sofia no ancião que dissolve. Esse casamento com a filha do velho rei pode ser comparado com a
Idade de Ouro ou da agricultura de Cronos-Saturno, quando este envia espíritos inspiradores das
profundezas da terra.
John Pordage, alquimista inglês citado por Jung em “ Psicologia da Transferencia “, diz,
com referencia ao opus:

... a Tintura, essa suave filha da vida... precisa descer a escuridão de Saturno, onde
nenhuma luz de vida pode ser vista; lá deve permanecer cativa, presa as cadeias da escuridão ...

Mas, prossegue ele :

... na escuridão desse negror esta escondida a luz das luzes na qualidade de Saturno... e a
tintura da vida esta nessa putrefação ou dissolução e destruição. Não deveis desprezar esse
negror, ou essa cor negra, mas perseverar nele com paciência, sofrimento e em silencio, ate que
os dias de atribulação se completem, quando a semente da vida ira acordar para a vida, levantar-
se, sublimar-se ou glorificar-se, transformar-se em brancura, purificar-se... Quando a obra e
levada ate esse ponto, torna-se uma obra fácil; porque os sábios filósofos disseram que a
fabricação da pedra e então um trabalho de mulher e um brinquedo de criança.

E sobre o ultimo estagio do processo diz :

Então vereis o começo de sua ressurreição do inferno, da morte e do túmulo mortal, aparecendo
primeiro na qualidade de Vênus ... e o suave fogo de amor da qualidade de Vênus ganhara a
superioridade e a tintura do fogo amoroso será preferida na direção e terá o supremo comando.
E então a suavidade e o fogo de amor da Divina Vênus reinara como senhor e rei sobre todas as
qualidades.

No estagio final, o opus terá adquirido então um espaço purificado e brilhante, onde o arquétipo da
anima aparece. Meister Eckhart diz :

O primeiro dos sete planetas e Saturno; saibam que ele e o purgador ... No céu da alma,
Saturno adquire pureza angélica, trazendo como recompensa a visão d Deus; como o Senhor
disse, “ abençoados os puros e coração, porque verão Deus “ .

Em termos psicológicos, diríamos que o velho utiliza a função de anima como elo entre o
inconsciente e o ego consciente. Esta conexão tem o poder de inspirar boas decisões, ações
positivas e concretas. E o poder peculiar de Sofia ou de Atenas, a filha que nasceu da cabeça do
pai.

Esta síntese final entre o masculino e o feminino e também observada no Hermafrodita,


como os alquimistas chamam o trabalho final do processo. Em relação a isso Jung cita um poema
alemão escrito na primeira metade do século XVI, na qual a natureza do Hermafrodita e explicada.
No poema a rainha fala o seguinte:

Aconteceu então que eu primeiro conheci meu filho - e nos dois vivemos juntos como um
só. Então fui engravidada por ele e dei a luz numa região árida da terra. Tornei-me mãe e
permaneci donzela- e minha natureza foi estabelecida. Assim, meu filho foi também meu pai -
como Deus ordenou, de acordo com a natureza.

Também em Zósimo : “ sua mãe ( da pedra ) e uma virgem e o pai não se deita com ela “ .
E Petrus Bonus em Theatrum Chemicum :

cuja mãe e virgem e cujo pai não conheceu mulher alguma ... Deus deve se tornar homem,
porque no ultimo dia de sua obra, quando se completa o trabalho, criador e criatura tornam-se
um só, velho e jovem, pai e filho tornam-se um só. Assim, todas as coisas velhas tornam-se novas

Isso pode lançar alguma luz sobre o destino do ancião e do jovem, no seu estagio final.

Como vimos, não e possível descrever esse aspecto de Cronos-Saturno sem mencionar os
essenciais aspectos sizigiais do puer e da mãe e sem chegar a Kore como correlativa da ultima
transformação. Para fins de exposição, podemos dizer que essa jornada tem três fases. Na primeira,
a consciência e formada como uma função de conhecimento que só atua quando ha uma separação
e tensão entre polaridades. Esse e o “ nascimento “ do ego e do conhecimento. A partir desse
ponto, a estória do ego e caracterizada por dois relacionamentos: um com a Mater, da qual tem
que sair, desabrochar, crescer, expressar-se ; Outro com o Pater, a quem tem que prestar contas e
que e a forca e a resistência a conquistar, um obstáculo a ser ultrapassado, um teste a ser aceito.
Esses dois relacionamentos são os mesmos que são chamados em outras escolas de psicologia,
talvez de uma maneira mais estática e dogmática, de principio do prazer e principio do poder, ou de
Id e Super-Ego.

Na segunda fase do movimento do ego em direção ao Si-mesmo, e representado o “vir-a-


ser da consciência. Cronos e devorado pelo pai. Aqui também, o protagonista esta “ encarcerado “ ,
“ dentro “, preso na barriga - mas qual pode ser o significado do que acontece agora dentro do pai?
Será uma questão de “ consciência de ser engolido “, ou do estado de se estar dentro procurando a
possibilidade de sair ?

Enquanto ser engolido pela mãe e mais semelhante a inconsciência infantil, e talvez a certas
formas de silencioso estupor na psicopatologia , o segundo tipo, ser engolido pelo pai, descreve
bem a aflição da pessoa melancólica. Essa aflição pode ser também encarada como uma espécie de
mania invertida, introvertida e inibida, uma terrível lucidez e uma consciência da sua própria
condição.

Já mencionamos a síndrome de Cotard na invasão psicótica do arquétipo. Seria oportuno


citar um poema da poetisa italiana Ada Negri, que expressa comoventemente a mesma condição :
ANIVERSARIO

Não me chame, não me diga nada


Não tente me fazer sorrir.
Hoje sou como a fera selvagem
Que se confinou para morrer

Apague a luz, cubra o fogo,


Para que o quarto seja como uma tumba.
Deixe-me encolher num canto
Com a cabeça sobre os joelhos.

Deixe as horas se extinguirem em silencio


Deixe as ondas entorpecidas da ansiedade
Subirem e me afogarem;
Não peco nada, apenas perder a consciência.

Mas isso não me e assegurado.


Aquela face, aquele sorriso
Estão sempre diante de mim
Dia e noite a memória e uma farpa
Fincada em minha carne viva.

Talvez eu nunca seja capaz de morrer:


Condenada pela eternidade
A velar sobre a destruição dentro de mim,
Chorando com olhos sem pálpebras.

A consciência do próprio sepultamento, em termos filosóficos, e a experiência paradoxal da


morte, peculiar ao homem. Da morte em si não podemos ter experiência; e no entanto, ela constitui
o pensamento dominante, o pano de fundo contra o qual percebemos a vida. E justamente nesse
sepultamento que o homem parece enriquecido por seus valores mais originais e mais profundos.
Precisamente porque percebe a falta de sentido e o caráter informe da vida e que encontra a tensão
que possibilita sua vida criativa.

Cronos-Saturno, o pai negativo, e constelado no inconsciente como o pai devorador no


momento em que se forma na personalidade o impulso do crescimento rumo a individuação. E
nesse momento que a pessoa se sente engolida por formas, leis, costumes e sistemas coletivos. O
devoramento pelo pai pode apresentar vários aspectos, mas em geral relaciona-se com a depressão
consciente, um abaissement du niveau mental, acompanhado de uma consciência lúcida. Jung usa
o conceito de regressão de forma semelhante:

O herói e o expoente simbólico do movimento da libido. A entrada do dragão e a direção


regressiva e a jornada ao Oriente ( a “ jornada noturna pelo mar “ ) ... simboliza o esforço para
se adaptar as condições do mundo psíquico interior ... E característico que o monstro começa a
jornada noturna pelo mar rumo ao Oriente, isto e, em direção ao nascer do sol, enquanto o herói
esta encerrado em sua barriga. Esse fato parece indicar que a regressão não e necessariamente
um passo retrogrado no sentido de uma involução ou degeneração, mas representa antes uma
fase necessária do desenvolvimento. O indivíduo, no entanto, não tem consciência de que esta se
desenvolvendo: sente-se numa situação compulsiva que se assemelha a um estado infantil, ou a
uma situação embrionária dentro do ventre.

Esse ventre pode também ser a barriga do pai - caso em que o ego, diferenciado da mãe,
esta consciente de seu confinamento. Esse estado pode coincidir com a fase do mito do herói
definido por Neumann como “ castração patriarcal “ , caracterizado por uma vida espiritual
compulsiva assim como por aqueles motivos arquetípicos em que um poder intelectual racional
determina a exclusão rigorosa de toda e qualquer função irracional.

A essa altura e oportuno mencionar o sonho de um paciente que sofria de psicose


depressiva, um sonho recorrente que sempre aparecia alguns dias antes do começo da crise
psicótica. No sonho o paciente revivia sua experiência de prisioneiro de guerra. Encontrava-se
dentro de uma pedreira, no campo de concentração de Mauthausen. Sabia que a guerra havia
terminado mas não podia deixar o campo. O sonho com seu poder de síntese, contem muitos
elementos encontrados na estrutura arquetípica da melancolia. A pedreira significa um engolimento
satúrnico que, como um poder hostil e violento, mantém a pessoa prisioneira. Nessa impotência
dolorosa, o paciente reconhece o despertar de uma forma autônoma, um arquétipo, que o compele
para tal condição.

Um ano depois, tendo o paciente passado por um tratamento psicológico, teve mais uma
vez uma crise depressiva. Desta vez o sonho era algo diferente: o prisioneiro estava de novo na
mina, embora a guerra tivesse terminado. Uma jovem desconhecida apareceu e ambos deram
voltas para dentro e para fora da mina ate que o prisioneiro percebeu subitamente que de fato
podia sair! Mas, no momento de escapar, veio-lhe o pensamento de que, em represália, eles
machucariam sua mãe. Ainda assim, saiu da mina, esperando poder preveni-la em tempo. A
possibilidade de liberação esta ligada com o aparecimento da anima. O sentimento do paciente,
representando seu profundo estrato inconsciente, esta ainda vinculado a mãe, portanto ainda
exposto ao inimigo.

“ O homem só pode ser descrito através de antinomias “, lembra-nos Jung. Em seus livros
Psicologia da Transferencia e Mysterium Coniunctionis, Jung descreveu as correlações dinâmicas,
diretas e cruzadas, entre as mais quatro pessoas da “ quaternidade do casamento “. Em seu aspecto
alquímico original, essa quaternidade era formada pelo rei, rainha, adepto e soror mística. Essas
correlações dinâmicas correm o risco de parecer por demais intrincadas, mas na realidade,
correspondem as poucas leis fundamentais da psicologia analítica: a relação complementar e
compensatória entre o consciente e o inconsciente; a bipolaridade dos arquétipos; as diferentes
atitudes do indivíduo em relação aos arquétipos e o mundo exterior - identidade, identificação,
projeção, introjeção, integração - a possibilidade de que a relação de transferencia ocorra através
do lado consciente de um protagonista e do inconsciente do outro, ou através do inconsciente de
ambos.

Quando um arquétipo e constelado, forma-se um campo bipolar. Nesse caso, por exemplo,
o aparecimento do senex deve dar origem ao aparecimento do puer, assim como na física “ toda
ação provoca uma reação igual e contraria “ . Geralmente esse campo bipolar, e experimentado
pela mente consciente como uma alternativa inescapável. Como vimos, a oposição no interior da
Sizigia e em si mesma insolúvel, tertium non datur . Em nosso caso, ha somente duas alternativas
para o indivíduo: a identificação com o senex, com sua propensão para a lei, ordem e forma rígida.
Projetara então, naturalmente, a imagem do puer nos “outros” - os anarquistas e revolucionários,
jovens que querem somente destruir e fugir de qualquer dever. Ou então pode se inclinar a
identificação com o puere seu destino dramático. Então aparecera na sua estória o senex, que vera
projetado no mundo exterior - o egoísmo, a inveja, a repressão, a falta de imaginação da geração
mais velha.

Se sua imagem arquetípica aparece no mundo objetivo do relacionamento interpessoal, não


pode permanecer sem efeito no campo oposto da introversão, do relacionamento com o
inconsciente . Vimos que quando o senex e projetado no mundo exterior e o ego consciente se
identifica com o puer, o complexo materno e então ativado no inconsciente. Deve ser lembrado
que o puer significa o nascimento, da mãe ou do inconsciente, de um principio que e basicamente
uma necessidade de desenvolvimento, mudança e transformação; isso será detido pela figura
oposta que significa rigor, dureza, imutabilidade, necessidade de ter uma forma definitiva. Então o
puer regride a mãe, aos aspectos regressivos dela, ou seja, involução, indiferenciação e morte. Essa
ativação inconsciente da mãe negativa exerce um papel na formação da sombra do puer - seu
aspecto melancólico, inevitável como um destino.

Consideremos agora o caso em que o indivíduo tende a identificar-se com o senex,


aparecendo a figura do puer projetada no mundo exterior.

Como bem indicam a mitologia, a hermética e os contos de fada, bem como a pratica
psicológica, ha uma conexão peculiar entre senex e anima: esta e prisioneira, ou de alguma forma
sujeita ao velho, ao rei, ao feiticeiro ou deus ctônico. Essa anima encarcerada e que e ativada no
inconsciente da pessoa, cuja personalidade caiu sob o arquétipo do senex. Sob a forma de
feiticeiro, este se torna malicioso, astucioso, transformador e exaltado - o que indica uma certa
invasão da anima.

Essa explanação esquemática da relação dialética entre arquétipos - entre consciente e


inconsciente e entre realidade exterior ou extrovertida, e interior ou introvertida - pode ajudar a
entender algumas relações interpessoais : por exemplo, no mundo de hoje, a colisão coletiva entre
puer e senex, onde cada um se identifica com um aspecto da Sizigia e projeta o outro. Essas
correlações parecem confirmadas também pelos eventos subsequentes na historia de Cronos-
Saturno. No que chamamos terceira fase a solução do drama. De acordo com seu destino de
personagens trágicos, os dois protagonistas devem encontrar a morte: o velho, na dissolução,
segundo a regra alquímica de ser dissolvido; o puer, por sua vez, no sacrifício. Mas esse encontro
com a morte, esse retorno a mãe, e possível através do aparecimento de uma figura redentora ou
demiúrgica, que realiza a transformação de Cronos-Saturno.

A nova forma de Cronos caracteriza-se pela criatividade, que se constitui numa relação
positiva com o concreto e com a objetividade, assim como a inconstância e a riqueza de
possibilidades. Nesse caso os dois valores opostos de senex encontram uma síntese orgânica - ou
melhor, transcendem numa nova forma. A imagem arquetípica que aparece nessa fase e a anima,
para um homem. Ela representa a mediadora individual com o mundo da mãe, que para o senex e
para o puer significa apenas morte. Mas para o herói, que conheceu sua própria morte, que
experimentou a dissolução e o sacrifício, que enfrentou a viagem noturna através do mar, ou a
descida as profundezas subterrâneas, e o encontro e o casamento com a noiva, uma fértil união de
contrários, a atividade criadora individual.

A anima parece nascida do inconsciente e apresenta-se como uma possibilidade ao ego,


resultante da tensão rumo a individuação, criada e mantida pela constelação do puere do senex.
Esta e a origem do que Jung chama símbolo - as imagens da anima que, em cada caso, são
apresentadas como produtos espontâneos do inconsciente.

A paz entre os homens e os animais na terra e o signo de um estado de harmonia interior,


conseqüência de uma harmonia cósmica, isto e, das forcas arquetipicas do inconsciente coletivo.
Céu e Terra, pai e mãe, não estão mais em conflito. A mãe e agora a boa terra rica, em frutos. O pai
e o deus-rei, ou o deus protetor de boas leis. Os homens vivem em harmonia porque estão em paz
consigo mesmos. O novo homem, nascido de novo em novam infantiam, o redimido, o reerguido.
deve sua existência ao fim da luta entre o principio do poder e o principio de transformação, entre
aquele que impõe limites e aquele que os quebra continuamente. Criatividade e o conceito que
expressa a unificação dos dois opostos.

EPILOGO

O estado final de harmonia do processo de individuação na estória de Cronos-Saturno


parece expresso esplendidamente por um gênero de pintura da Renascença, dos mais populares,
embora pouco compreendido - aquela Renascença em que alguns dos homens mais representativos
escolheram a figura de Saturno como “pai” e “ deus padroeiro “ , durante a qual a “ estória sagrada
“ costumava ser profundamente vivida pelo espirito hermético e alquímico. Refiro-me as inúmeras
representações da Madona com o menino, em geral acompanhada por figuras sagradas. A que
tomo como exemplo, e poder-se-iam tomar muitas outras, e a “ Conversação Sagrada “, de Palma il
Vecchio, que se encontra no museu de Historia da Arte de Viena, pintada no começo do século
XVI.

Perto da velha arvore onde, de acordo com a historia sagrada crista, provavelmente teve
inicio o “ processo “ e a separação primordial dos contrários, na recém-nascida consciência do
primeiro casal, a Sagrada Mãe e o menino formam o novo Homem e Mulher. O menino e “ o Novo
Homem “, o renovatum ad novam infantiam, o “ redentor redimido “. A mulher e a mãe, mais
purificada, de toda e qualquer mistura mortal, e não tocada de maneira alguma pelo pai terreno,
pelas coisas passadas ou posses materiais. Ela e a Virgem; a própria pureza em sua fonte, a origem
inexaurível.

Ao lado deles, os dois santos parecem ser imagens dos personagens principais do drama de
que falamos: o velho e o jovem na sua luta sem solução. Melancólicas pessoas condenadas a
morte, carregadores desesperados da cruz, suas expressões são de profunda nostalgia e amargo
tormento da procura. A cruz de três braços do velho relaciona-se com certeza com o enigma da
unidade e trindade, o intelecto eternamente decepcionado na busca da verdade definitiva. O
cordeiro do jovem lembra inocência e sacrifício. Ao lado de cada figura masculina ha uma
feminina: as duas jovens, que os dois personagens do drama ainda não viram, imersos na sua aflita
“ paixão “, prometem mediação individual com a mãe: parecem ser personificações da anima.

Procuram-se, em vão, traços do Grande Pai nessas conversações sagradas. Por outro lado, a
mãe e o menino parecem um par completamente auto-suficiente. Talvez a pedra quadrada na base,
um signo tipicamente satúrnico, refira-se ao começo do processo. A chave da compreensão do
relacionamento entre os dois e, portanto, apresentada pela noção de que a virgem e também “ filha
de seu filho “, e o “ pai “ esta no próprio menino.
Com efeito, o velho, o pai, esta presente em toda a cena. Seu espirito paira sobre ela, talvez
por causa mesmo de sua ausência. Mas esta concretamente presente na criança como
potencialidade de individuação, como principium individuationis, que domina sem se constituir
como pessoa separada. Não esta mais em conflito com a mãe porque na verdade nasce e é gerado
continuamente por ela, que por sua vez não e mais a indiferenciada prima matéria mas a Sofia
inspiradora ou a anima - ou então, na linguagem da psicologia analítica, o caminho ao Si-mesmo, o
“ processo de individuação “ .

Assim parece culminar a estória o velho, o pai negativo, que ao final revela sua
potencialidade positiva. Depressão e melancolia podem ser encaradas como aquela fase do
processo m que a figura do pai e constelada de forma negativa. Quanto maior a oposição ao
arquétipo, mais poderosos e destrutivos são seus efeitos. Desde uma depressão psicótica ate uma
restrição neurótica, medo de criatividade ou personalidade depressiva, as conseqüências de um
ajustamento inadequado com respeito a ação do arquétipo de Saturno são assim expressas:

Podemos ter ha muito conhecido o significado, os efeitos e as características dos


conteúdos inconscientes ... A única maneira de chegar ate eles na pratica e tentar adquirir uma
atitude consciente que permita ao inconsciente cooperar, em vez de ser levado a oposição.

Essas palavras de Jung constituem o comentário mais adequado as potencialidades ultimas


da depressão. Quando aceita, a melancolia pode se tornar o que Ficino chamou de “ melancolia
generosa “. Aceitando-se a própria solidão cósmica, com seu destino temporal e mortal e
superando sua falta de significado, poder-se-a descobrir a síntese entre duas grandes e compulsivas
entidades psíquicas que parecem, a primeira vista, contrarias; a necessidade de um estado de
liberdade sempre mutável que pode “ ir alem “ indefinidamente, e a necessidade de bloquear a
corrente da vida sob formas definidas, concretas, e possivelmente imperecíveis.

REFERENCIAS

1 - K. Jaspers, Psicopatologia generale, (Roma, 1964 ),


pags. 115 e segs. trad. do autor
2 - G. Leopardi, Anti, “ A se stesso “, trad. do autor
3- M. Petrarca, “ Sonetto in vita de madonna Laura “, son.CCV,ed. Mestica,trad.do Autor
4- H. Heine, “ Deutschland “, XXIII, trad. do autor
5- Platao, Fedro, XXX, trad. do autor
6- C. Baudelaire, Oeuvres posthumes, trad. do autor
7- W. James, The variety of religious experiences, Ed. Italiana, Milano, 1904, pags. 141 e seg.,
trad. do autor.
8- Cf. Theogonic Hesiodi.
9- Cf. Virgilio, Eneida, VIII, 1.319 e segs. trad. do autor.
10- T. Burckhardt, Alchemic: Sinn Und Weltbild, Edicao Italiana, Torino, 1961, pag. 160, trad. do
autor.
11- C.G. Jung 9, 1, “ The Phenomenology of Spirit in Fairytales “, passim. (CW e a abreviatura
convencional de Collected Works).
12- Op. Cit. § 401 - 402.
13- Op. Cit. §. 414
14- Op. Cit.§. 416
15- Op. Cit.§. 417
16- Op. Cit.§. 418
17- Ibid.
18- CW 9, i,§. 265.
19- H. Ey. Estudes Psychiatriques, Desclee de Brouwer, Paris, 1954, trad. do autor.
20- R. Klibansky: E. Panofsky: e E. Saxl; Saturn and Melancholy, New York, 1966, pags. 204-09,
217-20.
21- C. G. Jung. CW 13,§. 244.
22- C.G. Jung. CW 14,§. 511 e segs.
23- Hesiodo Opera et Dies: citado por Kerenyi, “ Gli dei e gli eroi della Grecia “, vol. 1, Milano,
1963. pag. 188
24- C. G. Jung, CW 9, i§ 301
25- John Pordage: citado por Jung em CW 16,§. 510-13.
26- Meister Eckhart: citado por Klibansky et al.
27- C. G. Jung. CW 16.§ 526
28- Zozimos: Artis auriferae: citado por Jung. CW. 16 § 529n.
29- Bonus Petrus: citado por Jung, CW. 16, § 529n.
30- C. G. Jung. CW. 8 § 68-69.
31- E. Neumann, The Origins and History of Consciousness, New York, 1954, pag.187.
32- C.G. Jung, CW. 16, §. 366.

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