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Universidade Lusíada – Norte – Porto

Ano Letivo 2020/2021


Direito Processual Penal

Caso prático n.º 791


“Na cidade de Matosinhos, em plena tarde de sábado, Arsénio comete o
crime de violação contra Beatriz. Seguidamente dirige-se a Penafiel e aí a
abandona num lugar ermo, não sem antes lhe subtrair a carteira que continha
valores que ascendiam ao montante de €5.000.
Carla, amiga de Beatriz, tendo conhecimento do sucedido, relatou os
factos ao Ministério Público que decidiu abrir inquérito. Dez dias depois,
Beatriz, ganhou coragem, e relatou os mesmos factos ao Ministério Público.
No final do inquérito, o Ministério Público acusou Arsénio, entretanto
constituído arguido, pelos seguintes crimes:
 Violação, nos termos do artigo 164º do CP;
 Furto qualificado, nos termos do artigo 204º, número 1, alínea a) do
CP;
 Exposição ou abandono, nos termos do artigo 138º, número 1, alínea
a) do CP;
Beatriz, entretanto constituída assistente, requereu a abertura da
instrução invocando que durante a viagem entre Matosinhos e Penafiel foi
repetidamente agredida na fase por Arsénio que dizia não gostar de ver uma
mulher a chorar, pelo que entende que o arguido deveria ser pronunciado
também pelo crime de ofensa à integridade física qualificada, nos termos do
artigo 145º do CP, com remissão para o artigo 132º, número 2, alínea e) do
mesmo diploma, por considerar que as ofensas foram causadas por motivo torpe
e fútil.
Arsénio requereu também a abertura da instrução negando a existência
quer da violação, quer da exposição ou abandono. Realmente ocorrera o furto
dos €5.000, mas atendendo a que não tinha antecedentes criminais pede ao juiz
de instrução que promova a suspensão provisória do processo disponibilizando-

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Caso citado da obra de Fernando Torrão, “Casos Práticos de Direito penal e Direito Processual
Penal”, 7ª Edição, Almedina, 2020, p. 211-212. Com a introdução das 3 últimas questões que constituem
uma inovação.

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se, desde logo, a indemnizar Beatriz e a pagar uma elevada quantia a uma
instituição de solidariedade social.
Durante a instrução, o juiz ordenou uma análise ao sangue de Arsénio
cujo resultado mostrou que o arguido era portador do vírus da SIDA.
Finda a instrução, Arsénio foi pronunciado pelos seguintes crimes:
 Violação agravada, nos termos do artigo 177º, número 3 do CP.
 Ofensa à integridade física qualificada, nos termos do artigo 145º do
CP, com remissão para o artigo 132º, número 2, alínea e) do mesmo
diploma.
 Furto qualificado, nos termos do artigo 204º, número 1, alínea a) do
CP.
 Exposição ou abandono, nos termos do artigo 138º, número 1, alínea
a) do CP.
Arsénio pretendeu reagir ao despacho de pronúncia, mas o seu defensor
disse-lhe que nada havia a fazer e que só no julgamento poderia contestar
aqueles factos.
O juiz de julgamento condenou o arguido pelos factos constantes no
despacho de pronúncia.
Responda, fundamentadamente, às seguintes questões:
1. Para o início do inquérito poderia haver conexão processual?
2. Qual (ou quais) a comarca (s) territorialmente competente para o
início do (s) inquérito (s)?
3. Podia o Ministério Público acusar por aqueles crimes?
4. É legalmente admissível o requerimento para abertura da instrução
por parte de Beatriz?
5. É legalmente admissível o requerimento para abertura da instrução
por parte de Arsénio?
6. Podia Arsénio impugnar o despacho de pronúncia? De que forma (s)?

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7. Qual (ou quais) o (s) tribunal (ou tribunais) territorial e


materialmente competente (s) para o (s) julgamento (s)?”
8. Estaria Beatriz obrigada a constituir-se assistente?
9. Imagine que, na fase de julgamento, o tribunal deu como provado que
Arsénio não chegou a atuar em Penafiel, aquando das práticas do furto
e exposição ou abandono, mas sim em Paredes. Quid Juris.
10. Suponha que Amílcar, agente policial, vendo Arsénio a abandonar
Beatriz naquele local, aproxima-se do automóvel e, perante aquele
aparato, detém Arsénio. A sua atuação é lícita?

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RESOLUÇÃO DO CASO PRÁTICO:

1. Sim. Havendo, in casu, um concurso efetivo de crimes praticado por Arsénio,


em sintonia com o disposto nos artigo 30º, número 1 e 78º, número 1, ambos do CP,
coloca-se a problemática da conexão de processos.
Ora, de acordo com o disposto no artigo 24º, número 1, alínea b) do CPP, o
mesmo agente (Arsénio) cometeu diversos crimes na mesma ocasião e lugar,
verificando-se o critério de conexão previsto neste artigo.
E, do disposto do caso prático estamos perante o início do inquérito, não se
colocando assim a questão do artigo 24º, número 2 do CPP, nem existindo nenhuma
exceção à conexão, nem havendo limites à conexão (artigo 26º do CPP). É assim
possível um enquadramento de conexão de processos.

2- Ao nível do crime de violação, como se deduz do caso prático, este foi


praticado na cidade de Matosinhos, de acordo com o artigo 19º, número 1 do CP, então,
é territorialmente competente para apreciar este crime o tribunal da comarca de
Matosinhos.
Já em relação aos crimes de furto e exposição ou abandono, estes foram
praticados na cidade de Penafiel, então, segundo o artigo 19º, número 1 do CP, é
territorialmente competente para apreciar este crime o tribunal da comarca de Penafiel.
Uma vez que já vimos existir uma conexão de processos, torna-se necessário
apreciar de entre aqueles dois qual o competente para apreciar aquela conexão. Aqui
temos de atender ao artigo 28º, alínea a) do CPP, “se os processos devessem ser da
competência de tribunais com jurisdição em diferentes áreas ou com sede na mesma
comarca, é competente para conhecer de todos: a) O tribunal competente para
conhecer do crime a que couber pena mais grave”. Ora, atendendo a este artigo, como o
crime de violação é mais grave (atendendo à pena máxima), a comarca territorialmente
competente é a comarca de Matosinhos.

3- Não. Em relação ao crime de furto praticado por Arsénio, temos de ver que o
disposto no artigo 204º, número 1, alínea a) do CP, não se aplica em termos concretos.
Isto porque o valor de €5.000 não preenche o conceitos jurídico-penal de valor elevado

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(que seria €5.100). Assim, in casu, não estamos perante um crime de furto qualificado,
mas sim perante um crime de furto simples.
Temos ainda de ver que o crime de violação tem natureza semipública, o que
pressupõe a necessidade de apresentação de queixa por parte do respetivo ofendido
(Beatriz, de acordo com o artigo 113º, número 1 do CP). Embora Beatriz tenha
apresentado queixa posteriormente.
Já em relação ao crime de exposição ou abandono tem natureza pública, não se
colocando problemas.

4- Beatriz tinha legitimidade para se constituir como assistente, coisa que fez, e
assim tem, igualmente, legitimidade para apresentar o requerimento de abertura da
instrução segundo o artigo 287º, número 1, alínea b) do CPP. Esse requerimento é
válido porque Beatriz vem introduzir um facto novo no processo que altera
substancialmente a acusação do MP (atendendo ao disposto no artigo 1º, alínea f) do
CPP), ou seja um facto correspondente pelo qual o MP não deduziu acusação, dispondo
para isso do prazo de 20 dias, de acordo com a articulação entre os artigos 287º, número
1, e 284º, número 1, ambos do CPP, atendendo ao elemento sistemático e literal da
interpretação.
Conclui-se, assim, que em termos de direito adjetivo é admissível o
requerimento para abertura da instrução por parte de Beatriz.

5- A instrução visa comprovar se se verificam (ou não) os pressupostos da


acusação formulada, nada obstando que o arguido exerça o seu direito de impugnar a
decisão do MP de não optar pelo modelo consensual.
Aqui o agente vem requerer a abertura da instrução (artigo 287º, número 1,
alínea a) do CPP) referindo que não praticou aqueles crimes (para além do crime de
furto), bem como pedindo a suspensão provisória do processo. Tal requerimento é
claramente legítimo de acordo com o direito adjetivo. Naturalmente, a posterior análise
da prática destes crimes, bem como da possibilidade de aplicação da suspensão
provisória do processo, caberá ao JIC.

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6- Atendendo ao disposto no caso prático existe uma alteração entre a acusação


formulada pelo MP e o despacho de pronúncia pelo JIC em relação ao crime de
violação. Isto porque o MP acusou pelo crime de violação (p.p. nos termos do artigo
164º do CP), enquanto o JIC, atendendo a um facto novo (uma adição, portanto) para o
objeto do processo que foi detetado na fase de instrução – o facto de Arsénio ser
portador do vírus da SIDA – que levou o JIC a agravar aquele crime.
Torna-se, então, necessário atender ao disposto no artigo 1º, alínea f) do CPP, e
ver se esta agravação do crime de violação, constitui uma alteração substancial dos
factos. Para tal temos de atender ao artigo 1º, alínea f) do CPP, que estabelece o
conceito jurídico-penal de alteração substancial dos factos, “aquela que tiver por efeito
a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das
sanções aplicáveis”. Uma agravação do crime (como a verificada quanto ao crime de
violação) preenche a segunda parte daquele artigo, existindo aqui uma alteração
substancial dos factos.
Existindo uma alteração substancial dos factos na fase de instrução temos da
atender ao disposto no artigo 303º do CPP. Ora, diz-nos o número 3 deste artigo2, “uma
alteração substancial dos factos descritos na acusação ou no requerimento para
abertura da instrução não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de
pronúncia no processo em curso, nem implica a extinção da instância”. Nesse sentido,
não poderia o JIC ter em conta aquele facto agravador para efeito de pronúncia no
processo em curso3. Poder-se-ia colocar ainda a única possibilidade tida pelo JIC de
conhecer por este facto novo, entendida por muito da nossa doutrina jurídico-penal,
quando exista acordo entre o arguido, MP e o assistente, por aplicação analógica numa
situação como esta, do artigo 359º, número 3 do CPP. Porém, do caso prático, é de
interpretar que o “caso julgado de consenso” não existiu.
Uma vez que o JIC não podia pronunciar por este novo facto por constituir uma
alteração substancial dos factos do objeto do processo, atendendo ao princípio de
vinculação temática, mas acabou por o fazer, estamos perante uma nulidade da decisão
instrutória nos termos do artigo 309º, número 1 do CPP, isto porque o arguido foi
2
Já vimos que inexiste uma alteração não substancial dos factos, o que impossibilita a aplicação
do número 1 daquele preceito.
3
Também não se mostra possível aplicar o número 4 do artigo 303º do CPP, uma vez que este
facto novo é não autonomizável face ao objeto do processo. O facto de o Arsénio ser portador do vírus
da SIDA não pode ser alvo de um processo penal autónomo.

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pronunciado por factos que constituírem uma alteração substancial dos factos na
acusação do MP e do requerimento da abertura da instrução. Devendo esta nulidade ser
deduzida em 8 dias.

7- Analisando os diversos atos criminosos (crime de violação, furto, exposição


ou abandono, ofensa à integridade física qualificada) pela sua ocorrência cronológica
em termos práticos.
Relativamente ao processo respeitante ao crime de violação, é competente
materialmente para apreciar este processo o tribunal coletivo, de acordo com o critério
quantitativo previsto no artigo 14º, número 2, alínea b) do CPP, porque o crime
apresenta uma pena superior a 5 anos de prisão. É assim competente para apreciar este
crime o tribunal coletivo. Quanto à competência territorial esta deverá ser apurada tendo
em conta o disposto no artigo 19º, número 1 do CPP, sendo competente o tribunal do
local onde se verificou a consumação. Seria competente territorialmente o tribunal de
Matosinhos.
Em relação ao crime de furto, é competente materialmente para apreciar este
processo o tribunal singular, de acordo com o critério quantitativo previsto no artigo
16º, número 2, alínea b) do CPP, porque o crime apresenta uma pena inferir ou igual a 5
anos de prisão. É assim competente para apreciar este crime o tribunal singular. Quanto
à competência territorial esta deverá ser apurada tendo em conta o disposto no artigo
19º, número 1 do CPP, sendo competente o tribunal do local onde se verificou a
consumação. Seria competente territorialmente o tribunal de Penafiel.
Em relação ao crime de exposição ou abandono, é competente materialmente
para apreciar este processo o tribunal singular, de acordo com o critério quantitativo
previsto no artigo 16º, número 2, alínea b) do CPP, porque o crime apresenta uma pena
inferir ou igual a 5 anos de prisão. É assim competente para apreciar este crime o
tribunal singular. Quanto à competência territorial esta deverá ser apurada tendo em
conta o disposto no artigo 19º, número 1 do CPP, sendo competente o tribunal do local
onde se verificou a consumação. Seria competente territorialmente o tribunal de
Penafiel.
Por fim, em relação ao crime de ofensa à integridade física qualificada, é
competente materialmente para apreciar este processo o tribunal singular, de acordo

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com o critério quantitativo previsto no artigo 16º, número 2, alínea b) do CPP, porque o
crime apresenta uma pena inferir ou igual a 5 anos de prisão. É assim competente para
apreciar este crime o tribunal singular. Quanto à competência territorial pode-se colocar
uma dúvida quanto ao elemento de conexão. Podemos, desde logo, entender que se
aplicaria o artigo 19º, número 3 do CPP, considerando-se como competente o tribunal
em cuja área tiver cessado na consumação, o que, no caso, seria o tribunal de Penafiel.
Mas parecer ser ainda possível invocar o artigo 21º número 1 do CPP, considerando-se
este crime como de localização duvidosa porque as agressões foram praticadas no
momento da deslocação dentro do veículo de automóvel (dentro da viagem entre
Matosinhos e Penafiel), passando por diversas áreas, o que permite sustentar que esse
crime pode ser de localização duvidosa, e, assim seria competente o tribunal de
qualquer das comarcas, preferindo o daquela onde primeiro tiver havido a notícia do
crime.
Porém, como supra referido, estamos perante um concurso efetivo de crimes que
possibilita a conexão de processos, daí que se torne necessário apurar qual o tribunal
competente para julgar todos os crimes. De acordo com o artigo 14º, número 2, alínea b)
do CPP, quando exista um concurso efetivo de crimes superior a 5 anos é competente o
tribunal coletivo. Tal solução é ainda sufragada pelo artigo 27º do CPP, que atribui
competência ao tribunal coletivo. Seria então competente para apreciar este processo o
tribunal Coletivo.
Em relação à competência territorial, temos de atender ao disposto no artigo 28º,
alínea a) do CPP, sendo territorialmente competente aquele que seja competente para
apreciar o crime a que couber a pena mais grave, o que no caso é a comarca de
Matosinhos (remetemos a justificação para o supra exposto).
Assim, é competente para apreciar estes crimes em conexão de processos o
Tribunal Coletivo da Comarca de Matosinhos.

8- Não. A constituição obrigatória do assistente (cfr. Artigo 50º, número 1; 68º,


número 2; 246º, número 4, todos do CPP) é só para crimes particulares. E nenhum dos
crimes aqui em análise tem natureza particular.

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Atendendo ao disposto no caso prático, a constituição obrigatória foi apenas para


a necessidade do requerimento de abertura da instrução de acordo com o disposto no
artigo 287º, número 1, alínea b) e 68º, número 2, ambos do CPP.

9- De acordo com o artigo 1º, alínea f) do CPP, estamos perante uma alteração
não substancial dos factos, porque apenas existe uma discrepância quanto ao local onde
teve lugar o facto criminoso, pois não chegou a ser praticado em Penafiel mas no
conselho conexo. Portanto, o novo facto poderá integrar o objeto do processo.
Assim, como aqui já estamos perante a fase de julgamento, temos de atender ao
disposto no artigo 358º do CPP. Segundo o seu número 1, deve o tribunal comunicar tal
alteração ao arguido e conceder-lhe o tempo estritamente necessário para a sua defesa,
ou seja para que se possa defender da imputação modificada pela alteração geográfica
da prática do crime (sob pena de violação dos interesses da defesa).

10- Sim. De acordo com o artigo 256º, número 1, 1ª parte, estamos perante uma
situação de flagrante delito porque o crime acabou de ser cometido. E havendo flagrante
delito por qualquer facto punível por pena de prisão, Amílcar como entidade policial
pode proceder à detenção (artigo 255º, número 1, alínea a) do CPP). Este último
presenciou ainda um crime de denúncia obrigatória (artigo 242º, número 1, alínea a) do
CPP), razão pela qual deveria ter lavrado auto de notícia, segundo o artigo 243º, número
1 do CPP.

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