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Goethe, aos 70 anos, um pequeno poema

mais profundo e mais autêntico, de início "invisível", não mais poeta, assim fecha
"Existo para admirar"; e aos 80 anos diz
é pressentido. O admirável não ocorre mais, não surge mais e (Parabase) com o verso:
"o máximo que o homem pode atingir é a
o homem não é mais capaz de se admirar. O sentido burguê para Eckermann3:
que se �ornou embotado acha tudo óbvio. O que é, poré admiração".

e do poeta - na medida
verdadeiramente óbvio? E por acaso óbvio que existimos? Essa "não-burguesice" do filósofo
óbvio que existe a visão? Quem está preso no cotidiano, n em que cons ervam o poder de admiração em forma tão pura e
cotidiano interior, não pode fazer esses questionamentos po forre - inclui em si com certeza o perigo do desarraigamento
que não consegue (quando com os sentidos despertos ou, do mundo cotidiano do trabalho. A alienação do mundo e da
máximo, quando atordoado) esquecer de uma vez os fins im vida é de faro, por assim dizer, o perigo de profissão tanto do
diatos da vida. Mas é exatamente isso que caracteriza quem filósofo como do poeta (todavia, não há propriamente filósofo

admira: para ele, para o homem surpreendido pela face profu profissional, nem poeta profissional - o homem não pode viver

da do mundo, os fins imediatos da vida silenciam, pelo men assim por muito tempo, como já foi dito). Admirar-se não tor­

quando olha surpreendido para a face admirável do mundo. na hábil; pois admirar-se significa ser abalado. Quem se decide
a existir sob o signo do antigo grito de admiração: "por que
Assim, é aquele que se admira, somente ele, quem na for
afinal existe o ser?", terá de se precaver contra a ameaça de
pura realiza aquela atitude originária para com o ser, deno
alienação que lhe vem do mundo do trabalho. Aquele para quem
nada desde Platão theoria, a percepção puramente receptiva
tudo se roma mirandum corre o risco de se esquecer do trato
realidade, não turbada por qualquer apelo intermediário
manipulador cotidiano com estas realidades que lhe vêm ao
vontade. Só há theoria enquanto o homem não se torna ce
encontro.
para o admirável que há no fato de que algo existe. Pois o q
O que é cerro, no entanto, é o seguinte: o poder de admira-
suscita a admiração do filosófico não é o que "nunca se viu",
ção pertence às supremas possibilidades da natureza humana.
anormal e sensacional, capaz de provocar alo parecido com
Tomás de Aquino vê aqui quase uma prova de que só na visão
verdadeira admiração num espírito que se tornou embotad
de Deus o homem pode ser saciado. E vice-versa: vê nessa orien­
Quem necessita do inusitado para chegar à admiração mostr
tação para o conhecimento do fundamento absoluto do mun­
se justamente nisso como alguém que perdeu a capacidade
do a causa de o homem ser capaz de se admirar. Tomás defende
dar a resposta certa ao mirandum do ser. A necessidade de se
a opinião de que na admiração começa um caminho em cujo
sação, mesmo adorando aparecer sob a máscara da Boheme,
fim se encontra a visio beatifica, a visão beatificante da causa
um sinal infalível da perda da autêntica força de admiração
última. A prova de que a natureza humana não está disposta a
portanto, da humanidade emburguesada.
nada menor que a esse fim é o fato de o homem ser capaz de
Perceber no que é cotidiano e familiar o verdadeiramen
experimentar o mirandum da criação, ser capaz de se admirar.
estranho e não-cotidiano, o mirandum: este é o começo do fil
O abalo, sentido por aquele que se admira, o abalo do até
sofar. E nisso, tal como Aristóteles e Tomás de Aquino afi
então óbvio, que agora de repente, num instante, perde sua
mam, o ato filosófico é aparentado ao ato poético. Ambos,
filósofo e o poeta, teriam a ver com o admirável, com aquil
que gera e promove admiração. Aliás, no que diz respeito 3. GOETHE, Gesprache mit Eckermann, 18/2/1829.

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