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Número 7 - Novembro de 2009

Editorial — Jornada Internacional do CIEN 2


Apresentação — As crianças impelidas a serem belas... 5
Hífen — Responsabilidade sem culpa? 11
Entre-Vista — Lacan responde a perguntas sobre o tempo 17
LABOR(a)tórios — Sujeito da psicanálise, sujeito do direito 20
Ponto de Vista — O tempo de Pato Fu 26
CINECIEN — O tempo da segregação 27
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Editorial
Maria Rita Guimarães mediata. A dimensão de urgência adquire estatuto de sintoma
CIEN Digital n. 7 chega neste exato momento, trazido pelos social frente à gula deste Cronos insaciável. Como não ser de-
bons ares que sopram entusiasmo e alegria à realização da vorado por este Outro da exigência?
Jornada Internacional do CIEN – A pressa em responder – no
dia 27/11/2009.
O Boletim dos Laboratórios do CIEN no Brasil – CIEN Digital
– ensaiou muito para participar deste acontecimento, anteci-
pando-se à reflexão e debate que se anunciam na Jornada In-
ternacional. Esta antecipação é quase inconfessável, pois con-
têm uma vaidade: estar à altura de funcionar como prelúdio à
sinfonia que esperamos escutar no salão Patagônia do Hotel
Panamericano em Buenos Aires. Ele gostaria de se encontrar
por ali, no hall de entrada, apresentando os “créditos” (quem
sabe transformados em notas musicais?) dos temas/eixos “to-
cados” na Conversação que ocorrerá durante todo o dia.
A pressa em responder interrogará a velocidade da vida
social e a confrontará em seus modos de compressão do tem-
po que,inelutavelmente, provoca a aceleração dos processos
de respostas aos modos de vida do ser falante. Modalidades de
respostas prêt-à-porter, prontas justamente para que nenhum Adriane Galinari
intervalo se faça entre tempos. Não se pode perder tempo com
intervalos, pois corresponderia à perda de uma satisfação i-
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Editorial
Não será uma resposta prêt-à-porter. Vamos aos traba- Este é um dos “princípios diretivos para a condução de in-
lhos. tervenção junto a jovens infratores ou em conflito com a lei”,
Os textos que compõem este número se iniciam com Pressa propostos com rigor e delicadeza no texto Responsabilidade
em responder. “Reborn-Babies” – do que se trata? Teresa Pa- sem culpa.
vone, nos fala das crianças impelidas a serem sadias e belas,
tragadas pelo imperativo do
[...] ideal de perfeição de “funcionamento” e da imagem perfeita do
corpo, e sofrem efeitos devastadores, como é o caso das jovens mo-
delos que marcam uma época onde a anorexia faz-se um sintoma
generalizado entre elas.

A Criança-objeto na TV, nos estúdios fotográficos, nas pas-


sarelas da moda é o título do texto assinado por Ana Lydia
Santiago e Tânia Ferreira, pelo qual nos damos conta da condi-
ção de trabalhadoras “de baixo cachê” em que se transformam
as “crianças-modelos” pelo ideal e narcisismo paternos.
Sigamos o Lacan de 1969, na rubrica Entre-vista, através
do extrato de uma entrevista na qual ele nos fala de suas for-
mulações sobre tempo, sujeito e inconsciente Hélio Oiticica
Naturalmente, há conseqüências em cada ato realizado
Mas há a justa medida? Cristiana Pittella apresenta a in-
pelo sujeito do inconsciente.
terrogação que está na pauta dos trabalhos do Laboratório
Célio Garcia, na rubrica Hífen, nos diz que Medidas de Liberdade e Responsabilidade. Como um adoles-
Sendo o inconsciente atemporal, no dizer de Freud, as conexões en- cente, a partir de seu encontro com o dispositivo da lei, poderia
tre um fragmento e outro não obedecem a restrições de tempo ou responder se tal experiência constituiu, para ele, um “ganho de
marca cronológica; pode-se acrescentar que (nos sonhos, por exem- tempo de/na vida”, ou se foi um “tempo perdido”. Ainda pelo
plo) referidos fragmentos são provenientes de diversas origens. Na
verdade, eles são reempregados, ou, se se preferir, reciclados a cada mesmo Laboratório, Dr. José Honório de Resende, Juiz da In-
vez. fância e Juventude, oferece-nos uma exposição sobre o Direito
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Editorial
e os laços sociais, para tratar da análise jurídica do conflito de seu desejo de achar um lugar que lhe coubesse, no qual se legi-
interesses, ilustrada pelo exemplo que segue: timar no arranjo das ficções disponíveis naquela sociedade.
Um casal vem a ter um filho, mas o relacionamento se rompe. Esse Mais CINECIEN: Um filme sobre meninos e meninas que vi-
filho encontra-se sob a guarda com a mãe. O pai vem a juízo pre- vem a pressa de saber quem são ”Assim Ângela Negreiros nos
tender a educação de seu filho, segundo as suas crenças. A mãe não
se opõe de forma absoluta à convivência do filho com o pai, mas
indica do que se trata no filme “Pro dia nascer feliz”, de João
discorda da proposta educacional dele. Acredita que o filho estará Jardim. Já o final do comentário, lemos o bonito verso: “Eu de-
desprotegido, em situação de riscos. Qual a solução? veria ter uma péssima impressão da vida se não fosse a paixão
Três tempos verbais, três tempos do sujeito. Maria Rita que tenho pela arte de viver”, escrito por uma jovem adoles-
Guimarães comenta o filme Va, vis et deviens, Ser digno de cente.
ser, ou, ainda, Um herói de nosso tempo (títulos em francês, E Ponto de Vista?
espanhol e português) cuja uma narrativa do diretor Radu Mi- Escutem o do Pato Fu.
haileanu, ganhador de vários prêmios em diversos festivais, Convidamos você a encontrar o “tempo de ler” CIEN Digi-
fala do esforço de um sujeito/criança em tomar parte da con- tal!
versação humana, mesmo em episódios de extrema segrega-
ção e racismo. A Controvérsia é um belo momento, exemplo de

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Apresentação
A PRESSA EM RESPONDER
Como a experiência do CIEN constata que as sintoma generalizado entre elas. Por outro lado, pais, ou seus substitutos, neste momento do
crianças e adolescentes estejam impelidos a temos as crianças impedidas de serem sadias e movimento civilizatório onde o discurso da ci-
serem sadios e belos e de que modos sua belas, não no sentido ideacional, mas sim no ência e o discurso capitalista imperam e, a cri-
atuação prática, via os laboratórios, conse-
sentido de não conseguirem dar outra resposta ança, muitas vezes, ocupa o lugar de “objeto de
gue intervir no movimento civilizatório que
impele? ao mal estar contemporâneo senão pelo pior: consumo emocional”, como denomina Zyg-
eles estão envolvidos desde cedo com o aban- munt Bauman.
Teresa Pavone dono, com a negligência do Outro, mergulha- O que quer dizer Bauman ao enunciar isto?
dos na criminalidade, com o tráfico de drogas, O que ele nos aponta deste cenário tão real?
A resposta a esta pergunta pode ser refleti-
com a gravidez precoce, com a inibição escolar, Tive a oportunidade de materializar a ver-
da por vários ângulos. A pergunta se refere a
etc.. E, são impelidas a maltratarem sua exis- dade implicada neste enunciado de Bauman a-
um tema de pesquisa em aberto e que será de-
tência, maltratarem seus corpos, a serem muti- través de um artigo intitulado: A criança na
batido na IV Jornada Internacional do Cien em
lados, a se ferirem e ferir o semelhante, a serem contemporaneidade: sujeito ou objeto? da
Buenos Aires. Inicialmente, ocorre-me ressaltar
inclusive mortos muito precocemente. (Sabe- psicanalista Leny Magalhães Mrech (membro da
o paradoxo que experimentamos frente aos e-
mos que o número de mortes entre os jovens é EBP/AMP) e de outros autores docentes da Uni-
nunciados dos discursos contemporâneos que
alarmante). Toda esta situação se evidencia na versidade de São Paulo.
incidem sobre os modos de vida dos sujeitos.
prática dos laboratórios. Os autores citam uma prática contemporâ-
Com relação às crianças e aos jovens, por um
Considero, portanto, importante a tarefa, nea inusitada chamada “Reborn-Babies":
lado são impelidas a serem sadios e belos, ou
que temos em nossa prática, de interrogar per-
seja, também afetados pelo imperativo do ideal [...] em português, bebês-renascidos, ou seja,
manentemente qual a condição do sujeito in- uma prática que vem se tornando comum e
de perfeição de “funcionamento” e da imagem
fanto-juvenil hoje. que consiste na aquisição de bonecas que
perfeita do corpo, e sofrem efeitos devastado-
Algumas indagações iniciais se colocam: reproduzem cada vez com maior fidedigni-
res, como é o caso das jovens modelos que
Qual é o lugar da criança no mundo contempo- dade os traços de um bebê humano, que vão
marcam uma época onde a anorexia faz-se um
râneo? Como a criança é acolhida pelos seus desde o cuidado com a textura da pele, con-
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Apresentação
fecção de unhas e cabelos, ao desenvolvi- A Referência a Eric Laurent, neste mesmo negada. Estes seriam os filhos objetos- sadios e
mento de mecanismos que reproduzem o artigo, é uma das formas que elucidam como “a belos – objetos – submetidos ao capricho do
peso, a respiração e os batimentos cardía-
criança na contemporaneidade cai do lugar de Outro?
cos.
ideal, de desejo, sendo tomada como corpo e, Acredito que a psicanálise, ao compartilhar
Trata-se de um artigo muito interessante portanto, na ordem do gozo próprio e do gozo as questões da atualidade junto aos outros dis-
que aborda de forma esclarecedora a diferença de seus pais”. curso e práticas que atingem a criança e o ado-
entre a posição de objeto da criança frente ao Diz o enunciado: lescente de nosso tempo, poderá sim, muitas
Outro Materno e Paterno na atualidade e o lu- vezes, interferir neste destino de permanente
Neste caso, a criança viria a suturar a falta
gar simbólico ocupado pela criança no tempo e materna, havendo realização não do objeto exclusão do sujeito que o movimento civilizató-
que foi descrito por Freud, na época em que vi- que responde à castração, ao simbólico, à rio impõe através de seus discursos dominan-
goravam os ideais e a função paterna como re- representação, mas à angústia ligada à pri- tes. Isto, não sem muitos esforços, é o que
guladora do gozo. vação, um objeto, portanto, que aparece no constatamos nas apresentações dos laborató-
real. rios CIEN em nossas Jornadas.
O tamponamento, a sutura da falta é viabi-
lizada pelo avanço científico na construção
destes sofisticados bebês-gadgets a serem con-
sumidos – que podem ser adquiridos por sites
na internet. Do lado do discurso capitalista, este
tipo de invenção da ciência proporciona ao su-
jeito a ilusão cada vez mais real de que é possí-
vel encontrar o objeto capaz de realizar seu
fantasma, segundo as autoras.
Chamou-me ainda a atenção, neste mesmo
artigo, o depoimento de uma das “mães” con-
sumidoras desse produto que aponta para o lu-
gar da criança como objeto de gozo: "elas não
dão trabalho, só felicidade".
Seriam, estes os “Reborn-Babies” – os filhos
Amílcar de Castro – bons/belos, os modelos de filhos aos que seri- Marcos Coelho Benjamim
am impelidos a ser as crianças e jovens de hoje?
Indivíduos onde o sujeito, é excluído e a falta é
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Apresentação
bição aqui, em nosso país, por lei, do trabalho do da moda e condena se ele acontece na la-
A CRIANÇA-OBJETO infantil para crianças e adolescentes menores voura, no comércio, na indústria.
NA TV, NOS ESTÚDIOS de 16 anos, salvo aos 14 anos, na condição de A autora descreve as meninas de 12 e 13
aprendiz. anos, chamadas de “cabides” pelos estilistas,
FOTOGRÁFICOS, NAS como “ossos e altura, meras coisas. E para man-
PASSARELAS DA MODA ter essa condição de puro objeto, não comem,
dormem pouco, tratam mal o corpo e a saúde,
Tânia Ferreira e Ana Lydia Santiago cultivam a anorexia e a bulimia”. A autora nos
adverte também que elas ficam fora da escola
“Tudo começou com um olhar” diz a mãe de ou arrumam colégios que aceitam abonar suas
uma menina de dez anos de idade que trabalha faltas se fizerem em casa suas atividades e con-
desde os quatro anos, como modelo fotográfi- seguirem freqüentar até dois meses de aula,
co, faz comerciais na Tv, está sempre em algum privilégio que os malabaristas mirins dos sinais
Outdoor, nas passarelas da moda, referindo-se de trânsito não têm.
a um “caça talentos” que a abordou nas férias,
num hotel, dizendo que sua filha era “linda e Maquiagem, vestuário, imitação de gestos
sensuais podem, nelas, provocar a ilusão da
tinha muito jeito para modelo”. A mãe imedia-
idade. Parecem mais velhas do que são. Pa-
tamente a inscreve numa Agência e desde en- recem mais adultas. Já os meninos são fisi-
tão “ela não parou mais de trabalhar”. camente menos formados e aos 13 anos,
Diz um menino: “eu perguntava a minha pelo menos, não estão aptos a ter seus cor-
mãe, quando eu tinha 3, 4 anos: “como faz para pos de crianças disfarçados. Quando come-
entrar aí dentro da Tv, mãe?”, ao que a mãe çam a servir para essa profissão, já estão
prontamente respondeu levando-o à primeira mais escolarizados, mais amadurecidos. Aos
treze anos, uma garota pode ter seus capri-
Agência de Publicidade onde iniciou sua saga chos, mas dificilmente sabe, de fato, o que
na TV, com contratos para novela em grande quer para si mesma, o que espera da vida.
emissora e vários comerciais, além do cinema, chio maisriml Não tem história pessoal suficiente em que
numa “carreira” que já dura oito de seus doze alicerçar suas decisões e posições. Por isso
anos. Critelli (2006) acompanhando o movimento mesmo aceita, em nome de ser famosa ou
Estas são algumas das crianças que mos- da mídia no Fashion Week em São Paulo, per- de ser conhecida, tornar-se mero objeto
tram a face de milhares de outras que traba- gunta-se porque a sociedade aceita sem qual- nesse universo. (CRITELLI, 2006).
lham no mundo e no Brasil, a despeito da proi- quer discussão o trabalho de crianças no mun-
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Apresentação
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Da oferta de palavras a estas crianças sur- “falta de tempo de brincar” e o descaminho de
giram várias indagações que trazemos aqui pa- “viver sem outro”, que responda suas questões,
ra introduzir o debate sobre esta questão no em que suponham saber, e que, como nos diz
campo da psicanálise, questão delicada, inter- Freud referindo-se ao adulto responsável pela
rogando especialmente se estas crianças seri- educação de uma criança e um jovem: que pos-
am, com todo seu ser de objeto, aquelas que sa “dar-lhes o desejo de viver e lhes oferecer a-
por excelência “são impelidas a serem vazias e poio e amparo, além de despertarem seu inte-
eficazes” e aquelas que nos ensinam a ler as e- resse pelo mundo externo” (FREUD, 1970,
vidências na contemporaneidade, com seu e- p. 218) – as crianças e adolescentes atrizes e
xemplo vivo, os efeitos da pressa em responder. modelos, estão alheias, tanto quanto os adultos
O que pudemos recolher destes relatos da que as lançam nessa experiência, às questões
criança sobre seu trabalho artístico, no mundo que atravessam esse modo de ser e viver, dei-
midiático2, é que são crianças sem perguntas, xando em suspensão o tempo da infância e tu-
sem sinal de incômodo com este lugar de certo do que esse tempo implica.
“objeto dado a ver”, com suas imensas jornadas Tais crianças são no dizer de seus pais e
de trabalho, com sua participação como perso- educadores, “lindas, inteligentes, falantes, ex-
nagens de programas e filmes desaconselháveis trovertidas, disciplinadas, com muito bom de-
para crianças de sua idade, vestidas e pentea- sempenho escolar, além de ótimas em sua “pro-
das à moda adulta e gestos esteriotipados. fissão”. Nenhum sintoma colocado a nu no so-
Diferentemente das crianças das favelas3 – cial, nenhum deslize quanto a serem “modelos”,
que interrogam a “exploração de toda ordem”, a tampouco, nenhuma falha na tarefa de objetos
do narcisismo dos pais – que elas não ousam chio maisriml
1 interrogar. Um profundo silêncio sobre sua
No decorrer de uma pesquisa de doutorado na Fa- No filme americano “A Pequena Miss Sun-
culdade de Educação da UFMG, sob orientação de condição de trabalhador(a), sobre o baixo “ca- 4

Dra.Ana Lydia Santiago, estas crianças puderam falar chê” que muitas recebem por cada trabalho, in- shine” , podemos localizar esse silêncio na per-
de suas experiências. dependentemente do número de horas traba- sonagem Olive, menina de sete anos de idade e
2
São crianças que trabalham na TV, cinema, estúdios lhadas, sobre os personagens que são chama- a saga de sua família para chegar a um concur-
fotográficos e passarelas da moda.
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das a encarnar, sobre os efeitos disso em sua
Trata-se das crianças moradoras de uma das maio- vida e seus laços sociais, pode ser notado entre 4
res favelas da Região Centro –Sul de Belo horizonte, essas meninas e meninos. Produção cinematográfica dos americanos Jonathan
também participantes da pesquisa. Dayton e Valerie Faris..

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Apresentação
so de beleza infantil. O filme enfatiza o que te- lhares de crianças brasileiras que trabalham –
mos considerado o ponto de partida para mui- nem para o seu próprio, mas por trás da ima-
tas crianças chegarem ao mundo do trabalho gem da menina há o sonho velado de uma as-
sob o véu do estrelato e da fama, nos meios censão social, como nós poderemos constatar
midiáticos – daí seu interesse aqui. nas crianças sujeitos de nossa pesquisa.
No tecido da imagem, a de Olive, em big Pudemos ler no Brasil, uma matéria intitu-
close, se precipita na tela da TV que ela observa lada a “Pequena Miss Sunshine brasileira” que
através da lente de seus olhos míopes Ali o o- deu certo. Kauane Pyl, paranaense de 10 anos
lhar dela se fixa no olhar das misses televisio- que coleciona títulos nacionais e internacionais.
nadas de quem quer captar os gestos. Foi ganhadora do Mini Ambar World no Con-
Nas telas do cinema, a menina Olive retrata curso Mini Universe 2007, recebido na Repúbli-
o real em jogo. Os concursos de beleza, os bo- ca Dominicana ou da pequena Jhenyklis Santa-
oks, o olhar dos Agentes publicitários, são como na, Mini Miss Planet 2008, que recebeu o prê-
preâmbulos – aquilo que está na origem do mio na Bulgária em 12 a 18 de junho – em ple-
trabalho de milhares de crianças nas passarelas no ano escolar brasileiro.
da moda, nos meios publicitários, na televisão e Uma destas recebeu prótese dentária para
no cinema – trampolins para as crianças serem tampar os buracos da queda dos dentes de lei-
introduzidas nesse universo. te.
Olive, encarnando o ideal construído para Essa “oscilação necessária entre pressa e
ela, caminhando no caminho feito para ela – espera” de que fala Lacan no “tempo lógico” e
traduzidos no concurso de beleza – encontra a chio maisriml lembrada por Beatriz Udênio no texto: “Nosso
sensualidade fora de lugar, ensaiada pelo avô tempo, tirano” a que a infância nos faz apelo,
Na cena do concurso de beleza, Olive com
na coreografia que culmina no show de strep- está absolutamente excluída da vida de tais cri-
seu corpo de criança lançado à dança erótica,
tease. O show é olhado com perplexidade pelos anças.
se esgueirando no chão, testemunha com as
adultos promotores do espetáculo e pela platéia Assim, as contingências a que estão sub-
outras crianças no palco, seu ser de objeto. A
constituída essencialmente de pais das concor- metidas nos fazem interrogar: Que estragos a
coreografia do avô a faz encenar gestos sensu-
rentes de Olive, que a enxergaram boquiabertos, pressa em introduzir tais crianças, por essa via,
ais esteriotipados, sobre uma roupa de vedete,
sem contudo verem suas próprias filhas: crian- no mundo dos adultos, poderá trazer na vida e
gesticulando como a de uma tigresa rugindo e
ças exageradamente maquiadas e vestidas co- nos laços sociais de tais crianças?
mostrando as garras frente a um suposto ho-
mo bonecas barbies, com seus cabelos armados. Esta não seria uma das faces da tirania do
mem. No filme, Olive não precisa contribuir
com o sustento de sua família – tal como mi- tempo que incide sobre a infância e adolescên-
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Apresentação
cia na contemporaneidade – que passe depres- mento, de deixar de ser o objeto que tampa o
sa – e que desconhece a infância tal como a furo do Outro e que busca encontrar a causa de
psicanálise a compreende: como um tempo de seu desejo – a criança é lançada ao imperativo
muitas “peculiaridades”. Na Conferência XXXIV do estrelato e da fama imposto pelos pais ou
de 1932, Freud refere-se à existência de “parti- pelo social – com sua aquiescência – e isso viria
cularidades psíquicas da idade infantil” enten- dar consistência a esse seu ser de objeto no lu-
dendo que os primeiros anos da infância (até o gar de ir desvencilhando-se dele.
quinto mais ou menos) têm para nós, “especia- Operar um desalojamento da criança desse
líssima significação” por que contêm “a flor lugar de objeto do Outro e do qual é condensa-
primeira da sexualidade” a qual deixa atrás de si dora de gozo, fazendo surgir, um sujeito, mes-
marcas decisivas na sexualidade futura, e nos mo que de maneira mínima – desafio de um
adverte de que as “tempestades de afetos” que psicanalista atento à situação dessas “estrelas”.
os traumas infantis desencadeiam na infância Não seria exatamente nestas circunstâncias
incidem sobre a criança que não tem como se a que estas crianças, em particular, estão imer- Camila Macedo
defender deles. sas, que é preciso levar às últimas conseqüên-
Compreendemos que se, no momento em cias o dizer de Lacan na “Alocução sobre as psi-
que poderia se dar o trabalho do sujeito de des- coses da criança” de “opor a que seja o corpo da
colar-se da identificação ao objeto pequeno a criança que corresponda ao objeto a” ? Eis a
que foi chamado a encarnar desde seu nasci- aposta da psicanálise.

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Hífen

RESPONSABILIDADE SEM CULPA


Célio Garcia da paternidade por atestado de DNA, casos de O comparecimento, diante de um juiz, de
maternidade graças à gestação em útero que um portador de doença mental acusado de in-
Haveria responsabilidade quando a noção não o da mãe, que surge como adotiva, são to- fração à lei tem motivado decisões de inimpu-
de falta ao cumprimento da lei não fosse reco- das questões nas quais a responsabilidade tem tabilidade, podendo o interessado, em caso de
nhecida, por carência ou deficiência do interes- merecido atenção redobrada por parte do juiz demência ou grave distúrbio, ser encaminhado
sado? Sabemos que, tradicionalmente, a noção quando dirime questões surgidas confrontando para um hospital psiquiátrico; casos que apre-
de responsabilidade subjetiva estaria fundada os personagens dessas situações. sentam condições de acessibilidade, um trata-
na idéia de culpa e reconhecimento por parte Em nosso Código Penal, graças ao ECA (Es- mento pode ser indicado. O art. 26 do Código
do culpado. Haveria responsabilidade sem sujei- tatuto da Criança e do Adolescente), os meno- Penal isenta de pena o louco, por ser incapaz de
to da culpa? Percebe-se haver incerteza quanto res de 18 anos merecem um tratamento à par- entender o caráter ilícito de seu ato, podendo
à noção de responsabilidade quando se levanta te, estão contemplados com o Estatuto da Cri- valer-se o juiz de perícia, solicitando os serviços
a questão do rebaixamento da idade do jovem ança e do Adolescente; os índios, igualmente, de profissional habilitado.
infrator de dezoito para dezesseis anos. Pode-se recebem tratamento especial; aqueles que a- Excluída a responsabilidade penal por força
dizer que houve incerteza, ou, pelo menos, re- presentam perturbações mentais, não sendo de perturbação mental que priva a pessoa de
flexão, em se tratando de decisão recente que capazes de responder pelos seus atos no mo- discernimento, estaria o incriminado obrigado à
reconhece a figura do estupro sem violência, mento em que os cometeram, são considerados reparação dos danos provocados, ou indeniza-
caracterizada como sendo tratada à parte, e inimputáveis. A presente nota objetiva exami- ção do prejuízo devido a ato tresloucado? Te-
não simplesmente como estupro (crime hedi- nar as questões pertinentes ao terceiro caso, mos nós doutrina para definir o sujeito de di-
ondo). A adoção de filhos por parte de pais especialmente quando são confrontadas as no- reito, esse que seria responsável sem que hou-
adotivos, o retrocesso do processo de adoção ções de imputabilidade e responsabilidade. vesse culpa por inimputabilidade? Sabemos jul-
quando os pais biológicos pretendem mudar a gar pelo que é a pessoa, e não pelo que ela fez?
decisão anterior, os casos de reconhecimento
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Hífen
A noção de responsabilidade adquire cono- A dívida simbólica, diferentemente de uma
tações próprias de nossa época, atenta que é ao dívida que pode ser contabilizada, colocada em
prejuízo, ao dano, havendo ou não associação à um cofre, esquecida, negociada, é impagável e
culpa. A reparação, a compensação, a indeniza- atinge até os mais desprovidos de recursos, sem
ção parecem ser critérios decisivos que fortale- conceder a eles nenhum sursis. No entanto, ne-
cem a doutrina, que ganha foro de necessidade. cessário se faz lidar com essa dívida. Mostra-se
A vitimização, postura freqüentemente en- então importante, para que essa questão se
contrada em nossa sociedade, aliada ao espetá- torne mais clara, examinar como ela atravessa
culo propiciado pelos meios de comunicação de os tempos, chegando até nossa modernidade.
massa, exige resposta penal exemplar, só ela Diz-se que a pena surge como um direito
considerada susceptível de aplacar o sofrimento do sentenciado; ela é o atestado de que se re-
das vítimas com quem se identifica o telespec- conhece o ser racional no criminoso. O conceito
tador. Esses critérios não bastam para o exame e a medida da pena derivam do próprio ato que
que aqui se busca. os gera, donde foi possível estabelecer a sen-
Bem sabemos que aquele que comete ato tença “responsabilidade, isto é, castigo”.
de infração nem sempre avalia corretamente o Siron Franco A Psicanálise nos ensina que somos levados
limite infringido; por vezes, essas infrações ou a admitir o “delinqüente por sentimento de cul-
transgressões ecoam como uma queixa frente à Por fim, um discurso capitalista sem limite, pabilidade”; o ato criminoso é examinado como
norma da qual o sujeito se sente excluído, em sem ponto de impossível, leva ao retorno do ato autopunitivo. O sentimento autopunitivo
outros casos, na ausência de um enquadramen- real que foi recalcado, retorno sem palavras, existe antes do delito, ou, ainda, o ato delitivo
to simbólico, terminam esses sujeitos submeti- entre reivindicação e violência. Este parece ser nasce do sentimento de culpa. Após o atentado
dos, pela força, ao rigor da lei. Parece mesmo o caso da delinqüência entre jovens em conflito cometido contra sua vítima, verifica-se um cer-
que a delinqüência tem correlação com o declí- com a lei atualmente, para grande espanto dos to apaziguamento do delírio, dizem alguns.
nio de certas funções simbólicas capazes de fa- que só assim se dão conta do que acontece lá Se a atribuição da culpa já oferece reparos,
zer valer a interdição; por outro lado, apelar pa- fora, na periferia das grandes cidades. a questão da responsabilidade também terá sua
ra o respeito da ordem moral sob o pretexto de Teria a sanção valor de reparação, seria ela trajetória estudada nas cogitações do pensa-
consenso freqüentemente coincide com uma terapêutica, admitindo-se a sanção como um mento jurídico.
exigência ainda maior que aquela encontrada direito do doente mental, direito que faria da lei Reintegração, reabilitação, humanização
em conjunturas que, em outras circunstâncias, remédio, para isso podendo ele ser julgado e são perspectivas que definiriam as finalidades
constituem o sujeito. eventualmente reintegrado? Onde deveria estar do trabalho da justiça. Com isso, abandona-se a
o homem, na prisão, ou no hospital, para que idéia de uma loucura total e passa-se a vislum-
isso se realizasse?
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Hífen
brar, em um ato de desrazão, um conflito psí- acting out (“passar às vias de fato”), está ausen- tese neste texto trabalhada contempla casos
quico, uma contradição no seio da razão, res- te o sujeito? Ele, sujeito, está em seu ato, é bem em que o juiz hesita em condenar um jovem em
salvada uma reserva de razão que subsistiria. Se verdade, mas justamente na medida em que conflito com a lei, solicita dois ou mais estudos
se faz uma aposta que uma evolução é sempre seu ato está ausente dele. E é necessário exa- psicossociais, mostra impaciência diante da re-
possível, que há um potencial que pode ser re- minar cuidadosamente esse aparente paradoxo. incidência, já que se é forçado, querendo-se ou
tomado a cada vez, então compreende-se o No momento do ato, ele, sujeito, não está lá. não, a considerar a situação de dissenso. O re-
despacho do juiz solicitando um exame pericial Passa a existir como sujeito só depois do ato. gime singular em que vive e sobrevive essa po-
antes do julgamento ou que o técnico venha Sua responsabilidade como sujeito, por vezes, pulação sitiada entre o consumismo e a riqueza
testemunhar sobre a eventual evolução desde o só é assumida após a realização do delito. resguardada/exibida nos condomínios fechados
momento da prisão até o do julgamento. Im- leva à consideração de uma eventual aborda-
porta não somente o diagnóstico, mas também gem em que o sujeito é responsável, mas não
a evolução do caso. culpabilizado, nem acusado de crime de lesa-
Ora, diante do fracasso dessa abordagem majestade, sendo essa majestade a lei ou qual-
humanista e das observações recentes, uma vez quer outra instância. Antes que a hipótese que
redefinida a responsabilidade até então atrela- aqui defendo ganhe foro de jurisprudência, os
da à culpa, é preciso examinar o enfrentamento colegas com formação em Psicologia, Psicanáli-
com o juiz, com a lei, com a pena, lembrando se, Psiquiatria e alguma sensibilidade política
que, nesse sentido, a transgressão talvez não bem que poderiam começar a praticar essa
seja dirigida necessariamente contra a vítima, forma de realismo.
mas, precisamente, contra a lei. Uma ética fun-
damentalmente independe de consenso e ex- Sujeito suposto-poder
pressa o que cada sujeito põe de si frente a ca- Certa vez, ao comentar trabalho pelo qual
da situação. tenho especial apreço, indaguei se a colega que
Afinal, o sujeito responsável o é fora do di- Antônio Poteiro conduzia o acompanhamento de uma delin-
reito, fora das normas, quando a sua posição qüente em instituição teria sido percebida co-
Entre aqueles que foram distinguidos como mo alguém que poderia decidir sobre o caso,
ele avalia, julga ou resolve não obedecer a uma
dotados de um sistema cognitivo especial, a- podendo contribuir para a liberação da jovem
norma do direito. Da posição de sujeito, o direi-
crescenta-se um quarto caso, em função da si- em questão cumprindo medida de internamen-
to não saberia dar a última palavra.
tuação de dissenso conhecida no Brasil. Alba to. Donde o sintagma criado naquela ocasião,
Fala-se aqui dessa exterioridade em que se
Zaluar demorou-se em seus estudos sobre a si- “sujeito suposto-poder”.
encontra alguém que cometeu um ato, consi-
tuação de dissenso vivida pela população negra
derado ou não um crime. Por ocasião de um
que habita as favelas do Rio de Janeiro. A hipó-
13
Hífen
Estou convencido de que todos nós somos Responsabilidade sem culpa vimentos que promovem a abstenção total, em
levados a ocupar este lugar de “sujeito suposto- Está estabelecido que, mesmo em caso de se tratado de alcoólatras ou drogaditos.
poder” cada vez que nossa posição deixou de inimputabilidade, trabalha-se com a noção de Resumindo, trabalha-se com o sujeito res-
ser submetida à avaliação atenta frente aos responsabilidade. Além do que já se examinou, ponsável, em casos em que há inimputabilida-
dispositivos imaginários em voga na instituição em se tratando da posição do “sujeito suposto- de, sem se fazer apelo à noção de culpa, sem se
ou simplesmente adotados pelos usuários, até saber”, será examinada a questão da culpa. Mi- ocupar o lugar do “sujeito suposto-poder”. Se-
que uma posição de “sujeito suposto-saber” se- nha hipótese incorpora a idéia de que o jovem ria bom lembrar que a inimputabilidade não é o
ja elaborada. em conflito com a lei não terá forçosamente impronunciável; em se tratando da inimputabi-
Na presente nota, proponho-me a ir um que se sentir culpado; aliás, a experiência mos- lidade, o incriminado pode falar e escutar falas
pouco mais adiante, elaborando alguns comen- tra que, freqüentemente, esses jovens não de- sobre seu crime.
tários sobre como conduzir sessões de acom- monstram disposição para assumirem o que
panhamento de psicóticos após sentença de chamamos culpa do neurótico. Quero dizer,
condenação, infratores cumprindo medida só- culpa, caminho habitual como fonte de reco-
cio-educativa de internamento, ou ainda jovens nhecimento de uma participação no ato, segui-
em conflito com a lei, oriundos do que chamei do de arrependimento e recuperação. Em um
o “dissenso brasileiro”. documentário de Caco Barcelos, vê-se um ado-
Parte-se da consideração de que os últimos lescente, em uma favela do Rio de Janeiro, fuzil
seriam inimputáveis, tal como se disse em se em punho, ser entrevistado e declarar, em alto
tratando dos índios, dos menores e dos loucos; e bom som, que não se arrepende, em um só
havíamos, assim, enumerado um quarto com- instante, pelas mortes que causou. Tratava-se Amilcar de Castro
ponente reconhecido nesse grupo de inimputá- de um menino, pela idade, pelas feições, pelo
veis. Sei que não há doutrina reconhecida que Como conclusão, digo, mais uma vez, que o
“topete”, pela coragem com que enfrentava os
sustente minha hipótese. Porém, na expectativa sujeito em questão é efeito de um ato, ele vem
códigos estabelecidos e que norteiam a vida
de que meus colegas mais jovens busquem depois do ato. Tal como o sujeito, em outras
dos que vivem um pouco abaixo, nas avenidas
formação original, formação que, de alguma circunstâncias, já que o sujeito não precede o
daquela cidade e que estão reunidos pelo con-
maneira, se antecipe às maneiras já formaliza- ato; suas intenções, eventualmente bem inten-
senso.
das pela Psicologia ou pelos serviços públicos, cionadas, não saberiam ser garantia de uma
O sucesso de missões evangélicas em pri-
proponho-me a avançar em minha proposta. resposta cujas determinações fizessem parte de
sões e instituições para jovens infratores está
um saber fora do seu alcance.
baseado na noção de culpa. O mesmo acontece
Tudo isso pode parecer radical, longe de
com intervenções de grupos inspirados por mo-
nossa prática do dia-a-dia, já estabelecida, mas,

14
Hífen
esses comentários procuram dar conta do que fosse o caso; agora, pode ser mostrada em pra- nem desrespeitar a cultura embutida na capoei-
realmente acontece entre inimputabilidade e ça pública. Ela se estilizou, sem perder contato ra.
responsabilidade. com suas raízes. Isso acontece com velhas his- Posso mencionar pequenos episódios da
tórias contadas pelos mais velhos; elas são mo- época em que estive observando apresentações
Como fazer? dificadas, sem perder o sabor, e todos gostamos de capoeira. Certo dia, o mestre queria dizer a
Prefiro não contar com a reeducação, nem de ouvir. um menino que ele devia esperar algum tempo
com recuperação, evitando, assim, modelos A capoeira tem ritual, por conseguinte, sabe para ser admitido na roda, pois ele ainda era
pensados a partir da idéia de que conhecer a lei o que é lei. Ela tem regras, assim, o capoeirista muito agitado e por isso não tinha condições
é estar capacitado para se sentir culpado, arre- sabe como e por que usá-la. Ela tem o mestre. de participar; certamente, com seu comporta-
pendido. Prefiro pensar que há um novo enten- Tudo isso conforma o aspecto simbólico que ela mento, iria perturbar. Diante disso, precisei in-
dimento. Mas, como alcançá-lo? carrega. Ela possui também seus mitos, muitas tervir, mas com muito jeito. Tratava-se de um
Certamente que um psicanalista conta com coisas que são ditas a seu respeito não passam ponto crucial — a capoeira era a última oportu-
a palavra que ele escuta, com a palavra que ele de invenções, criações dos terreiros, das rodas, nidade para aquele menino. A escola já o havia
faz chegar até o interessado. Admita-se que, dos personagens lendários, míticos mesmo. Es- mandado embora; em casa, conflitos entre os
mesmo esse recurso, considerado indispensável, se é o lado imaginário que ela incorpora. adultos e com os filhos faziam do lugar ambi-
possa ser escasso. Haveria, em volta de nós, em Ela representa a realidade brasileira na sua ente insuportável, só restando a linguagem da
nosso país, atividade que congrega ricos e po- crueza, na sua rudeza, nos seus movimentos violência como forma de expressão entre eles. A
bres, atividade cujas regras são desde sempre gingados, malabarismos de equilibrista. Esse é violência e a exclusão eram as marcas trazidas
conhecidas por todos, susceptível de ser apreci- seu real, nosso real, por vezes, duro de olhar, por aquele menino. Nenhuma instituição se
ada por todos? mais duro de viver. mostrava capaz de lidar com o conflito, escutar
Certamente que logo se pensa no futebol. A capoeira é quase sem palavras, ideal para a agressividade, conter as agressões contra os
Poderia ser uma resposta, mas, continuando a quem teve pouca ou nenhuma escolaridade, outros, as agressões sofridas; a exclusão era o
examinar nossa prática social, alguma manifes- admite-se. Mas o mestre observa as evoluções único horizonte.
tação antiga que tenha atravessado nossa his- dos capoeiristas. Ele cuida dos discípulos. Aos A capoeira foi a ultima saída, essa que nada
tória, conhecido denominações diferentes, sen- poucos, os meninos vão crescendo. Seria bom indaga, em que tudo é exigido, nenhuma ajuda
do vista de diversos pontos de vista, chega-se à que um psicólogo/educador/assistente social, é oferecida. A capoeira foi o lugar do elo, do la-
capoeira. ou, melhor dizendo, trabalhador social, estives- ço, da mão estendida, da fala pouca, mas cheia.
Ela foi luta, agora é dança; ela constituía se presente, mas, respeitando a tradição, res- Não uma fala vazia, “boba”, psicológica ou as-
manifestação de revolta, agora é performance, guardada pelo mestre. Caberia, se possível, ao sistencial, pois se ele só conhecia a luta contra
ginástica, malhação. Era marginal, defesa con- psi dizer alguma coisa, pouca, para não agredir tudo e contra todos.
tra a violência ou prática da violência, quando

15
Hífen
Como praticar esse tipo de intervenção sem elementos de diversas fontes, tal como no in- veículo que rompe a ex-comunicação, mas ela
converter o mestre em técnico auxiliar? consciente. não é interativa; o canal e sua telinha trazem
Não há técnico auxiliar, nem pessoal para 6. Em vez de identidade, grandes oposições, i- mensagens, mas não leva. O termo visibilidade
médico, nem formação a curto prazo, nem a- deais, trabalha-se com a mínima diferença; a faz, provavelmente, alusão à questão ora susci-
daptação a uma situação de educação. Só há o identidade tem sido fonte de descriminação, tada.
real nu e cru, diante do qual se tem responsabi- segregação. 12. O jovem infrator pensa. O pensamento é
lidade, mas sem culpa. 7. O jovem infrator ou em conflito com a lei pensar do real imanente à situação. É possível
ter-se-á constituído em sujeito eventualmente que haja aí a marca de uma subjetividade;
Princípios diretivos para a por ocasião de seu ato infracional; ele não sen- quanto à identidade, trata-se de uma identida-
condução de intervenção te culpa ou culpabilidade pelo seu ato. Chama- de performativa, realizando-se no exato mo-
junto a jovens infratores se a esse ato de resposta. mento em que uma frase é pronunciada. Os
ou em conflito com a lei 8. O jovem infrator poderá sempre ser confron- verbos performativos são termos que realizam
1. O inconsciente é político. tado à resposta que o constituiu como sujeito. o que dizem, sem intermediação. Por exemplo,
2. Sendo o inconsciente atemporal, no dizer de Ele já deu a resposta quando foi atendido. o verbo “prometer”. Ao ser pronunciado, não
Freud, as conexões entre um fragmento e outro 9. Um projeto deverá ser construído juntamen- faz apelo para uma identificação.
não obedecem a restrições de tempo ou marca te com o jovem infrator. Um projeto e não um 13. As letras de rap constituem matéria-prima
cronológica; pode-se acrescentar que (nos so- projeto, para estabelecer uma diferença entre o de onde recolher a pensação do jovem infrator,
nhos, por exemplo) referidos fragmentos são caso do jovem em conflito com a lei, infrator, e assim como as frases enunciadas no meio fre-
provenientes de diversas origens. Na verdade, as saídas construídas a partir de identificações qüentado por ele.
eles são reempregados, ou, se se preferir, reci- estabelecidas na história familiar do sujeito. 14. A condução da intervenção junto ao jovem
clados a cada vez. 10. Graças a um projeto, o jovem infrator é lan- infrator se interessa pelas frases que ele elabo-
3. Não há, portanto, cadeia, mas conexão entre çado na vida. Um projeto não se reduz à inser- ra, pelo estatuto lingüístico, político, dessas fra-
os elementos ou fragmentos. ção, ou inclusão na sociedade de consumo. Um ses. Por exemplo: “Nasci para ser livre”. Ou ain-
4. A política vem a ser o surgimento de eventos. projeto vai além do que previa o psicólogo que da: “Sou daqui e quero ficar aqui”, frase que
Cada evento cria condições para que exista su- conduz a intervenção junto ao jovem infrator. definiria muito bem um movimento de urbani-
jeito. Contemporâneo do sujeito criativo, inven- 11. A questão da inclusão/exclusão merece e- zação de setores da periferia.
tivo, há sempre possibilidade de um sujeito rea- xame mais apurado. A zona urbana de exclusão, 15. Algumas dessas frases têm caráter decisó-
tivo, voltado para o passado. de onde provém o jovem em conflito com a lei, rio, condenatório, peremptório; equivalem a de-
5. A prática política é formada de seqüências mantém os habitantes dessa área da cidade em cisões de nosso sistema judiciário.
finitas, seus recursos provêm do reemprego de estado de ex-comunicação. A televisão é um

16
Entre-Vista
PEQUENO EXTRATO DA ENTREVISTA A JAQUES LACAN, EM 1969
xemplo, eu não me submeto ao stan- Lacan: Sim. É ele quem deve decidir o porquê.
por Pablo Caruso56 Mesmo quando invocaram muitos ar-
dard temporal que costuma ser utiliza-
Pablo Caruso: Em seus Escritos, figura um im- do de uma maneira estereotipada na gumentos sobre esta questão, resulta
portante ensaio dedicado ao “tempo prática psicanalítica. inconcebível, exorbitante, que seja pre-
lógico”. Geralmente, o problema do Pablo Caruso: Em que sentido? ciso oferecer provas concludentes. Em
tempo é um tema chave de suas pes- Lacan: Nos sentidos cronológico e terapêutico. todo caso, são os que pensam, Deus
quisas. Poderia nos resumir sua ideia? Quero dizer que os psicanalistas cos- sabe por que, que o standard deve ser
Lacan: Ainda estou muito longe de abordá-la tumam fazer sessões que duram em de 45 minutos, invariável e obrigatório,
em todas as implicações com as quais torno de 45 minutos e, logo, param. O que deveriam justificar essa invariabili-
poderei fazer no futuro. O tema do fato de que a maior parte dos analistas dade. Em troca, não puderam dar expli-
tempo me toca muito de perto. Em siga esse critério como uma referência cações distintas de “todos fazem as-
primeiro lugar porque, como todo básica com a qual se deve trabalhar, sim”. Esse costume foi copiado, trans-
mundo sabe, eu faço um uso muito va- sem que exista possibilidade alguma de crito de Freud. Ele, não obstante, teve
riável da referência temporal. Por e- discuti-la, é um fenômeno muito curio- muito cuidado quando o transmitiu,
so. Eu creio que o analista, pelo contrá- assinalando suas reservas, dizendo
5 rio, precisa conservar sua liberdade, en- mais ou menos: “eu faço assim porque
Esta entrevista em espanhol, realizada por Paolo Ca-
ruso, apareceu sob o título Conversa-ciones con Lévi- tre outras coisas, para utilizar uma ses- me parece confortável e, se outro quer
Strauss, Foucault y Lacan, à Milano, U. Murcia & C, são breve ou prolongada segundo lhe seguir um critério mais prático para si,
1969, e à Barcelona, Ed. Anagrana, 1969 (95-124?). convenha. pode fazê-lo tranqüilamente”. Esta não
6
Entrevista na íntegra disponível em: Pablo Caruso: Quer dizer, de cinco minutos a é a maneira de debater a questão, por-
http://www.ddooss.org/articulos/entrevista/. Acesso três horas? que dizer “faço assim porque me pare-
em: 20 nov. 2009. ce confortável” não é um argumento.

17
Entre-Vista
Freud deixou o problema sem solução. Lacan: É certo que existe um tempo que não é funções do inconsciente, o tempo es-
Sobre a “dosificação” do tempo, está o da inércia psicológica, ou o da pecificamente estrutural está constitu-
tudo por dizer. transmissão nervosa, mas, sim, o tempo ído pelo elemento de “repetição”. Jus-
Mas, evidentemente, quando você me da transmissão intelectual. Agora, en- tamente agora se começa a explorar se
formulava sua pergunta, não pensava quanto falo você emprega certo tempo se trata de uma temporalidade ligada
neste «tempo». Somente quis me referir para se dar conta daquilo que digo, a- essencialmente à constituição como
a este ponto porque, para mim, é muito inda que seja difícil medi-lo. Porém, tal, à chamada “cadeia significante”.
sério e não vejo razão para evitá-lo. E, tampouco não é este o tempo que lhe Estamos no terreno do ritmo, da ca-
com mais razão porque ninguém o en- interessa… dência, da interrupção (interpunción7),
frenta, como se tivessem medo de ficar dos grupos temporais nos quais se po-
sem uma base sólida para se apoiar na dem fazer distinções propriamente to-
prática. Incomoda-me deixar esse pon- pológicas – de grupos abertos e grupos
to porque poderia explicar muitas coi- fechados, por exemplo. O que uma fra-
sas Porém, tampouco posso evitar in- se é em si, o que comporta a unidade
sistir sobre isso porque, em muitas oca- essencial da frase pelo fato de ser um
siões, quando não se pode me atacar a ciclo fechado e que tem como conse-
respeito da doutrina, atacaram-me qüência ser seguido de uma aplicação
nesse terreno. Na realidade, dá no aos efeitos de caráter retroativo: todos
mesmo que façam assim ou de outra esses são temas que aponto continua-
maneira. Como em qualquer caso, os
demais também o farão a seu modo: o
7
que lhes pode importar que eu utilize Interpunción é um termo usado nos estudos da epi-
esta prática? É tão certo isso que al- grafia São signos diacríticos, segundo os estudiosos,
gumas pessoas que eu formei segundo Pablo Caruso: Ao contrário, interessa-me mui- que afirmam estarem bastante documentados na An-
tíssimo... tiguidade, em forma de pontos,às vezes triangulares,
esse critério foram recebidas com os quadrangulares, em forma de folhas de hera ou como
braços abertos na Sociedade Psicanalí- Lacan: Sim, é muito interessante, mas tam- traços oblíquos que se assemelham a vírgulas. Estes
tica Internacional com a única condi- pouco é o tempo “analítico”. Dito de signos de interpunción separavam letras, palabras ou
ção de que votaram contra mim em outro modo, é analítico no sentido de sílabas, mas sem função de pontuação. A tradução
determinada circunstância. Isso foi su- que, quando levanto um copo, por e- deste termo ao francês é interrupção.
ficiente como completa autorização. xemplo, noto seu peso: nesse sentido, Agradecemos a interlocução de Cristiana Pittella e,por
Pablo Caruso: Voltando à pergunta de antes… tudo o é. Em troca, baseando-se nas seu intermédio, a de Beatriz Udênio.

18
mente na dialética que desenvolvo mas que reside, que se inaugura o funda- Lacan: Não. Não creio que possa ser interpre-
que ainda não isolei como problemas mento próprio da subjetividade, na tado assim. Eu também creio que a
autônomos num capítulo dedicado ao medida em que se pode deduzir a ne- verdade sempre está encarnada. O âm-
problema da temporalidade, nem acre- cessidade de um inconsciente não- bito da verdade e o do saber apenas
ditei que a melhor maneira de expô-los transponível enquanto tal, de um in- começam a se distinguir quando, na
fosse “seriando-os” com base nas cate- consciente que não pode ser vivido de verdade, o verbo «se faz carne». A ver-
gorias intuitivas, segundo os modos da nenhuma maneira no plano da consci- dade é o que resiste ao saber.
estética transcendental. Introduzi uma ência. Quando essas coisas tiverem Pablo Caruso: Portanto, para o senhor, a ver-
nova dimensão no tempo lógico, a da teorizadas adequadamente, isto é, dade não é uma coisa que se situa no
“precipitação identificadora”, como coi- quando se tenha posto em evidência a tempo.
sa que, no fundo, se autodetermina e “estrutura topológica”, poderemos es- Lacan: Não. Somente posso conceber um
que somente pode atuar de certo mo- tabelecer com grande liberdade as ba- campo da verdade onde haja uma ca-
do, que chamo de a-tempo lógico. Mi- ses de uma lógica pré-subjetiva, ou se- deia significante. Se falta um lugar on-
nha contribuição é muito original e en- ja, de uma lógica que surja na fronteira de o simbólico possa se manifestar, na-
tre os especialistas de lógica teria pro- da constituição do sujeito. da se pode propor como verdade. É o
vocado um grande interesse se estes real, com toda sua opacidade e com
não trabalhassem em um nível «não- seu caráter de impossível essencial; e
saturado» como o que trabalham, dedi- apenas quando entramos no campo do
cando-se unicamente à constituição de simbólico é que se pode abrir uma di-
sistemas formais. Porém, quando se re- mensão de não importa o que. A ver-
introduz a noção de sujeito, na medida dade dificilmente pode ser qualificada
em que implica a dimensão do sujeito de dimensão porque, no fundo, tudo o
freudiano em sua reduplicação profun- que dizemos é verdade enquanto o di-
da e originária, a divisão inaugural, que zemos como verdade, inclusive no caso
Pablo Caruso: Em termos simples, esta estru-
é a do sujeito como tal, somente pode- de que haja certo matiz de falsidade.
tura, seria ela uma verdade que levaria
rá ser estabelecida pela relação entre 8 Não se trata propriamente de falsidade,
em conta o tempo?
um significante e outro significante, precisamente porque o dizemos como
que é a conseqüência retroativa do verdade. A verdade não tem nenhuma
primeiro. De fato, o sujeito propria- sorte de especificidade.
8
mente dito é o que um significante re- Agradecemos à Célio Garcia a tradução desta per-
Tradução: Maria Rita de Oliveira Guimarães
presenta para outro significante. É aí gunta.
19
LABOR(a)tórios

(a)JUSTA MEDIDA
Cristiana Pittella de Mattos precipitam-se e, outros ainda, testemunham palavra encontrou um acolhimento: tempo em
que a medida teve um tempo justo. que pôde ser escutado ao responder9.
Começamos oprimidos pela sintaxe e aca-
bamos às voltas com a Delegacia de Ordem
Política e Social, mas, nos estreitos limites a
que nos coagem a gramática e a lei, ainda 9
Faço menção aos trabalhos – de Marcela Silva An-
nos podemos mexer.
drade – psicóloga judicial da Vara da Infância e Ju-
Graciliano Ramos. ventude, Fernanda Costa – psicóloga do Programa
Liberdade Assistida e Juliana Bressanelli – psicóloga
No Laboratório Medidas de Liberdade e do Programa Liberdade Assistida, em que acolheram
Responsabilidade, temos nos interrogado sobre um adolescente que cumpria a medida sócio-
a função, para cada adolescente, de seu encon- educativa LA –, apresentados em uma Noite do CIEN,
Nazareth Pacheco com a presença de Dr. José Honório – Juiz da Vara da
tro com os dispositivos da lei.
Infância e Juventude pelo laboratório Medidas de Li-
Os jovens têm revelado usos e interpreta- Quando a medida aplicada é, para o adoles-
berdade e Responsabilidade. Trata-se de uma criança,
ções diversas do tempo em que cumprem uma cente, justa, ele testemunha ter encontrado um menino, que consegue no fino trabalho tecido
medida sócio-educativa. uma nova razão para sua vida. Medida encon- com as três profissionais, construir um lugar e um
Ganhou-se tempo na vida ou foi um tempo trada no resultado de uma operação: a respon- novo laço. Isto ele o faz através do uso do significan-
perdido? sabilização. Essa equação é montada a partir te de sua fobia. A partir de sua própria palavra ele
Para uns foi tempo demais [...]. Enquanto das respostas do adolescente nesse tempo do pôde apreender algo de sua posição de objeto para o
outros, de modos os mais diversos, solicitam cumprimento da medida, tempo em que sua Outro, podendo dele se separar e responder de outra
mais tempo [...], alguns para antecipar a saída, forma – essa é sua responsabilidade. Se antes ele es-
tava submetido à hostilidade de um desejo materno

20
LABOR(a)tórios
Essas respostas ressoarão nos laços estabe- Pois, a determinação de uma medida sócio- Foi preciso um tempo para se ir da “situa-
lecidos pelo jovem possibilitando-lhe uma aber- educativa tem conseqüências jurídicas, tal co- ção irregular”ao “sujeito de direito, em desen-
tura para novos arranjos. mo a possibilidade de regressão desta, caso ha- volvimento”12, para que a palavra da criança e
Neste sentido, a “responsabilidade é uma ja descumprimento; o que poderá implicar na do adolescente encontrasse ressonância.
promessa”10, diferentemente da culpa. A culpa aplicação de uma medida de privação de liber- Temos que fazer, em nossos tempos, ecoar
imobiliza e encerra o sujeito. dade. ainda esta conquista, não deixando que a pres-
Para aqueles adolescentes que consideram Outro aspecto relevante é o fato de que a são dos regimentos e o imperativo normativo
a medida uma injustiça, eles revelam ter sido família muitas vezes faz apelo ao Judiciário pa- nos ensurdeçam, para que possamos diante das
calados, impedidos de responder. Muitas vezes, ra que algo possa ser contido, ao ponto de respostas mortíferas, fazer uma análise e uma
por terem encontrado o aprisionamento de constatarmos que alguns jovens chegam a reflexão das consequências.
uma lei cega, em que seus representantes inter- cumprir medida sócio-educativa em função da Essa é então nossa responsabilidade, criar
vêm exigindo do adolescente prestar contas de denuncia de familiares, e sem que o ato infra- espaços para a escuta da palavra – mesmo ali
seu ato, visando assim sua culpabilidade e pu- cional tenha sido comprovado. Pudemos cons- onde os muros estão erguidos. É no sim da
nição. São os vigilantes da disciplina, do con- tatar o quanto se busca através desta medida hospitalidade ao dizer, de um olhar e um tempo
trole e da segurança: aqueles que não piscam. um modo de regulação das relações familia- para algumas palavras que carreguem o que na
Se alguns jovens revelam a justeza de uma res11. língua não cabe, que podemos nesse tempo da
medida aplicada, para outros, a medida deve ser
ajustada durante o seu cumprimento. 11
A Proteção Integral à criança e ao adolescente sig- ao judiciário, encontrar outros modos de responder
Por vezes, chega-se mesmo a interrogar: nifica também ofertar garantias constitucionais às junto a seu filho. Essa responsabilidade ela alcança ao
houve ato infracional? Levando-nos a verificar crianças e adolescentes em situações de conflito de ser também construído para ela um lugar para a sua
ser preciso proteger o adolescente das medidas. natureza jurídica, deve-se assegurar e garantir o de- palavra.
12
vido processo legal, de presunção de inocência e da Faço aqui menção ao ECA, cuja proteção integral
defesa técnica por advogado, igualdade na relação considera as crianças e adolescentes agora sujeitos de
caprichoso, ele encontra a partir de sua própria lín- processual, direito a ampla defesa. Aqui retornamos à direitos. As crianças e adolescentes deixam de ser ob-
gua, uma hospitalidade, podendo nela se alojar. vinheta referida na nota (1) em que a criança, 12 a- jetos passíveis de tutela da família, do Estado e da
10
“Nietzsche nos diz que a responsabilidade é uma nos, cumpria medida de Liberdade Assistida (medida sociedade (Código do menor), ou seja, passam da
promessa, a promessa que se faz a si-mesmo; aquele sócio-educativa) cujo ato fora qualificado de estupro condição de objetos de direito para a de sujeitos que
que considera que ser um humano, é se inscrever no e atentado ao pudor (ato não comprovado). Pudemos possuem direitos. Ser sujeito de direito implica possu-
que é constitutivo da realização do homem de ama- interrogar na ocasião o tempo da infância, em que a ir direitos e ter proteção da ordem jurídica, caso eles
nhã, condição do futuro da espécie” (in Responsabili- curiosidade e experiências da sexualidade infantil es- não sejam efetivados; ser objeto de direito implica na
tés – Vers une thématique, vers une problematique tão em cena. O trabalho realizado também possibili- situação de alguém ter o direito sobre alguma coisa
pg 204, Scérén, CRDP,2004 Bourgogne). tou à mãe da criança, que sempre entregava seu filho ou alguém.

21
LABOR(a)tórios
medida dar à vida do adolescente lugar à cons- simples e preciso. Espero atingir essa missão, de conflitos de interesses ou formas mediadas,
trução de novas respostas. mas deixo a advertência que os temas tratados como a intervenção judicial.
comportam exame bem mais aprofundado que
o que ora se apresenta. Todavia, sem essas bre-
OD IREITO E A ONS- ves C considerações teóricas não seria possível
formar uma estrutura compreensível e susten-
TRUÇÃO DOS AÇOS L tável das conclusões apresentadas.
SOCIAIS II - O direito e a sociedade
O direito pode ser conceituado como o
José Honório de Rezende
conjunto de regras e princípios impositivos que
I - Introdução rege a vida em sociedade, visando a proteção
A exposição sobre o direito e a formação da pessoa humana e o seu desenvolvimento.
dos laços sociais implica, inicialmente, o exame Como produto cultural representará os an-
da relação entre o direito e a sociedade. O que seios, as necessidades e a complexidade da vida
se observará é que não é possível a existência em sociedade num determinado momento his-
da sociedade sem o direito. Após, cabe exami- tórico. Estará sempre em permanente constru-
nar a conceituação do direito e justiça. O direito ção.
então será um instrumento para viabilizar a Não é possível a vida humana sem o direi-
realização da justiça. Em seguimento, será ana- to. Não é possível também a vida humana fora Hélio Oiticica
lisado, de forma breve, como se organiza o di- da sociedade. Daí a afirmação de que onde está
a pessoa humana, aí estará a sociedade. Onde Sem o direito a existência humana volta-se
reito neste momento, com ênfase às escolas do ao seu aspecto de primitivismo, do emprego da
direito positivo e do direito natural. Neste tópi- está a sociedade, aí estará o direito.
Sem o direito não é possível falar em for- força, de uma sociedade sem racionalidade e
co, será feita também abordagem sobre o pós- justiça, sem, portanto, qualquer condição de se
positivismo, que domina e orienta a construção mação de laços sociais em que se preserva a
respeito à dignidade humana e à liberdade, co- desenvolver.
e interpretação do direito nos países de tradi- O direito é um fenômeno histórico e pode
ção jurídica romano-germânica. Por fim, será mo valores fundamentais para o pleno desen-
volvimento humano em todos os sentidos. ser estudado em diferentes concepções. Para o
abordado o caso trazido à apreciação, à luz dos presente trabalho, limitaremos a uma aborda-
princípios jurídicos que orientam a sua solução, O direito irá conferir estabilidade e segu-
rança às relações sociais, na medida em que gem que envolva duas grandes correntes que
com o fim maior da realização da justiça. Con- ao longo dos tempos orientam a criação, a in-
siderando o escopo do trabalho, procurei ser prevê formas pacíficas de solução espontânea
terpretação e aplicação do direito. Mas, antes
22
LABOR(a)tórios
será necessária uma abordagem do que pode se tivas estão longe de realizar o fim principal do IV - A escola do direito
entender por justiça. direito, que é fazer prevalecer nas relações hu- positivo e a escola do di-
manas a harmonia e o equilíbrio, como meios reito natural
III - O direito e a justiça para atingir a paz social. Isso ocorre porque o O direito, tal como o conhecemos moder-
O direito é técnica, organizado e formado direito distancia da ideia de justiça.
namente, é uma construção recente. Data do
por critérios científicos, e se constitui em ins-
fim do século XVIII e início do século XIX. Sur-
trumento para a realização da justiça.
giu com a formação do estado moderno.
De tudo que pode ser dito sobre justiça, do
Para o surgimento deste direito, pode-se
conceito mais conciso, de dar a cada um o seu
referir a dois acontecimentos fundamentais na
direito, a abordagens que mais complexas, que
história humana: a formulação da divisão das
envolvem todo o seu funcionamento, o que
funções do Estado, em legislativo, executivo e o
mais me parece atingir uma ideia que permitir
judiciário; e o iluminismo.
atingir um entendimento sobre este fenômeno,
A divisão das funções essenciais do estado
é o direito visto como expressão de sentimento.
veio evitar o retrocesso das organizações soci-
O direito seria assim técnica, enquanto a
ais, a partir da concentração de poderes numa
justiça seria sentimento. Essa afirmação confere
única pessoa. É o modelo que se observa na
à justiça um conceito mutável, permitindo que
maior parte dos estados atuais, organizados a
uma mesma solução seja interpretada como
partir de princípios democráticos.
manifestação de justiça ou de injustiça.
A construção teórica da divisão das funções
A justiça tem em sua essência um efeito de
de governo baseou-se na construção de um
completude perante a subjetividade humana.
modelo em que o funcionamento desses pode-
Quando o direito não consegue realizar esse
Luis Paulo Baravelli res se desse de forma harmônica e independen-
sentimento de justiça, surge o vazio, que traz a
te, de modo que um poder não se sobreponha a
angustia ao ser humano. Não é sem razão que A realização da justiça pelo direito irá de- outro e que também possam controlar-se. Isso
soluções jurídicas que visam espelhar mais o pender, portanto, de como o direito se apresen-
deu origem à teoria dos freios e dos contra-
sentimento de vingança têm o efeito de incom- ta, de como se organiza. Irá depender sobretu-
pesos.
pletude e não produz a paz social, imprescindí- do da condição moral de quem o aplica. E aqui
O iluminismo lançou fortes influências so-
vel ao convívio social e consolidação de seus retomamos a abordagem sobre a construção
bre o direito. A criação de códigos expressa
laços. histórica do direito, a partir de duas de suas uma das faces desse movimento, o de reunir o
Movimentos de modificação do direito que grandes escolas do pensamento jurídico.
conhecimento existente em enciclopédias. Os
objetivem prestigiar soluções meramente puni-

23
LABOR(a)tórios
códigos significam a reunião das regras que or- do caso concreto. Com isso, o direito positivo
denam a sociedade num único corpo. passa a se organizar em regras e princípios.
Os autores iluministas acreditavam que da Por regras jurídicas deve se entender a
mesma forma em que a natureza é governada normatização do direito somente aplicável a
por leis imutáveis, assim também seria a socie- conflitos previamente definidos. Exemplo: a
dade. Uma vez formuladas estas leis e organi- maioridade começa aos 18 anos de idade com-
zadas em códigos, estaria atingido uma passo pletos. Enquanto os princípios apresentam for-
fundamental na organização social e no seu mulação genérica, possível de ser aplicada a um
pleno controle. indeterminado número de casos. Exemplo: à
Os códigos trariam assim um direito posto criança e ao adolescente se aplicam a proteção
pelo estado, controlado pelo estado, que seria a especial.
expressão da racionalidade da sociedade. A complexidade da vida moderna e as no-
O acontecimento mais importante a esse vas necessidades humanas permitiram o surgi-
respeito ocorreu com a edição do Código Civil mento de um fenômeno dos mais interessantes
Francês, de 1804, que passou para a história no direito: o surgimento de conflitos aparente
com o “Código de Napoleão”. GTO Geraldo Telles de Oliveira dos princípios.
Encontramos, portanto, o início da forma- Para o conflito de regras de direito, que o-
ção de uma escola que dominou amplamente o Surge, assim, a partir de 1930, um movi- corre quando duas ou mais regras podem inci-
direito até o fim da segunda guerra mundial. mento que veio a questionar a existência e legi- dir para solucionar a controvérsia, o direito
Não haveria direito fora da lei e portanto tam- timidade do direito estatal, defendendo o sur- clássico apresenta métodos de solução, os
bém não haveria justiça, senão aquela definida gimento de uma nova era no direito, a dos pós- quais, porém, não poderiam ser aplicados para
e posta nas leis editadas pelo parlamento. positivismo jurídico. solução dos conflitos aparente de princípios.
Esse modelo jurídico foi seguido pelos paí- V - Pós-Positivismo Jurídico O método clássico de interpretação do di-
ses de direito escrito, de tradição romana, entre reito impõe que definida a regra aplicável, as
O pós-positivismo veio a estabelecer um
eles o Brasil. demais regras não mais exercem influência so-
equilíbrio entre o direito estatal, baseado uni-
O modelo de positivismo jurídico veio a ru- bre a questão controversa. Isso, todavia, não
camente na formulação de regras para solução
ir, porém, na medida em que foi legitimador de ocorre com os princípios, essencialmente pela
de conflitos, sem preocupação com o caso con-
estados totalitários, que, em última análise, natureza de generalidade que expressam.
creto, com a escola de direito natural, que sem-
permitiram, em nome do Estado, à destruição Como solução para o impasse, a ciência ju-
pre defendeu a formulação de soluções jurídi-
da pessoa humana. rídica formulou a teoria da ponderação de valo-
cas a partir de princípios, com ênfase na justiça
res. Isso veio a significar que os princípios em
24
LABOR(a)tórios
situação de aparente conflito deveriam ser tes- que o filho estará desprotegido, em situação de Com isso, a solução veio a depender de um
tados para encontrar a solução que melhor res- riscos. Qual a solução? estágio de preparação, a fim de identificar se é
ponde aos anseios de realização de justiça na A questão controversa, submetida para a- possível harmonizar os dois princípios ou se um
ordem social. Pode-se dizer também que, com preciação e decisão judicial, não pode ser solu- deles deverá preponderar no momento da deci-
isso, a solução perfeita, da regra do direito, aqui cionada simplesmente com a aplicação de uma são.
não terá mais espaço. A ponderação irá implicar regra de direito, pois, não há uma regra que É importante observar aqui a predominân-
em soluções proporcionais, em soluções ditadas contempla a solução para esse caso. Há, porém, cia do princípio da proteção especial, mas não a
pela razoabilidade, diante do caso concreto. princípios, que orientam a solução. sua suficiência para a resolução prévia do con-
A proporcionalidade da solução sempre irá São dois os princípios em aparente conflito: flito. Atente-se que é o principio da proteção
exigir do intérprete do direito uma avaliação o da convivência familiar e a necessidade de especial que orienta todas as decisões proviso-
entre meios e fins, e a adequação da solução. A proteção da criança. Somente a equilibrada riamente tomadas, até a decisão final, que sur-
aplicação do direito torna-se mais complexa. ponderação destes dois princípios irá propor- ge permeada também pelo princípio da convi-
Como isso, acredito que já há condições de cionar a solução mais justa possível para esse vência familiar. Pode-se até afirmar que o prin-
apresentar as considerações necessárias sobre o caso. cípio da convivência familiar decorre do princí-
caso hoje comentado. A complexidade do caso, porém, se apre- pio da proteção especial. O lugar de proteção
senta na medida em que o exame em abstrato natural da pessoa humana é na família. Isso ex-
VI - Análise jurídica do con- da situação não irá permitir a definição de ne- plica todo o cuidado que se deve observar nas
flito de interesses apresen- nhuma solução. Ou seja, a justiça se encontra soluções jurídicas que envolvam o direito de
tado diante de um caso em que a decisão deverá ser família.
Retomenos o caso brevemente. construída, de modo a encontrar condições pa- Por fim, é difícil imaginar uma solução tal
Um casal vem a ter um filho, mas o rela- ra a solução ponderada dos dois princípios em como a viabilizada neste caso sem a disposição
cionamento se rompe. Esse filho encontra-se atuação. e o preparo das pessoas envolvidas. Noutro di-
sob a guarda com a mãe. O pai vem a juízo pre- O impasse que surge é que a decisão deverá zer, no mesmo sistema jurídico, para o mesmo
tender a educação de seu filho, segundo as su- procurar garantir tanto o direito do pai e do fi- fato, variando os atores, outras poderiam ser as
as crenças. A mãe não se opõe de forma abso- lho à normal convivência familiar como a pro- soluções. É esse o nosso estágio de convivência
luta à convivência do filho com o pai, mas dis- teção do filho em face desta convivência. As social. Os laços se formam em razão das pesso-
corda da proposta educacional dele. Acredita duas partes se apresentam amparadas pelo di- as. A Justiça depende sobretudo da formação
reito. não só técnica, mas moral de quem a aplica.

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Ponto de Vista
SOBRE O TEMPO
Pato Fu13
Tempo amigo seja legal Tempo amigo seja legal
Tempo, tempo mano velho, falta um tanto
ainda eu sei Conto contigo pela madrugada Conto contigo pela madrugada

Pra você correr macio Só me derrube no final Só me derrube no final... oh-oh... oh-oh ah...

Tempo, tempo mano velho, falta um tanto Ah-ah-ah ah-ah Uh... uh... ah au
ainda eu sei
Ah-ah-ah ah-ah Uh... uh... ah au
Pra você correr macio
Vai, vai, vai, vai, vai, vai
Como zune um novo sedã
Tempo, tempo mano velho, falta um tanto
ainda eu sei

Tempo, tempo, tempo mano velho Pra você correr macio

Tempo, tempo, tempo mano velho Como zune um novo sedã

Vai, vai, vai, vai, vai, vai


Tempo, tempo, tempo mano velho
13
Vídeo do Pato Fu sobre o Tempo disponível em: Tempo, tempo, tempo mano velho
<http://www.youtube.com/watch?v= ohfsksda5ti>.
Vai, vai, vai, vai, vai, vai
26
tuguês não creio que o usemos com tal fre- las ficções religiosas oferecidas pela cultura ju-
TEMPOS DO SUJEITO: qüência: “excluído” é mais conforme ao dia a daica. Vemos o esforço do sujeito em permane-
dia de nossa fala — mostra-se eloqüentemente cer parte da conversação humana, mesmo em
VA, VIS ET DEVIENS OU presente na gestão do discurso do mestre, co- episódios de extrema segregação e racismo. A
mo costumamos falar. Salomão é visto como Controvérsia é um belo momento, exemplo de
UM HERÓI DE NOSSO des-adaptado, desinserido, no momento em seu desejo de achar um lugar que lhe coubesse,
TEMPO que recusa a oferta de “entrar” no funciona- no qual se legitimar no arranjo das ficções dis-
mento social da instituição que o acolhe em Is- poníveis naquela sociedade.
Maria Rita Guimarães rael, talvez um Kibbutz. Ali, ele se recusa e esta
recusa incomoda os responsáveis, deixa-os lou- Os tempos de ruptura e
Querida Mamãe, sol de minha vida.... laço
Falar do filme Va, vis et deviens, Ser dig- cos por não saberem o que fazer para que Sa-
no de ser, ou, ainda, Um herói de nosso lomão se alinhe ao discurso universal. Reco- A odisséia começa com a diáspora dos fa-
tempo (títulos em francês, espanhol e portu- nheceremos, no entanto, que embora ineficaz, o lashas, os judeus de Etiópia, descendentes, se-
guês) não é tarefa fácil, mesmo que o tenha- tratamento institucional é muito respeitoso gundo a mitologia, do Rei Salomão e da rainha
mos assistido várias vezes. Aliás, trata-se mes- com a criança acolhida. A demanda social está Sabá. Eles foram “repatriados” a Israel em pas-
mo de vê-lo algumas vezes, sobretudo se a in- no sentido de novas identificações: a sorte de sado recente: 1984.A retirada secreta chamada
tenção for a de nos colocarmos perguntas a ser acolhido por uma família extremamente “Operação Moisés”, requereu uma travessia no
respeito dos termos inclusão, adaptação, inser- respeitosa em relação a sua particularidade – e deserto até o Sudão, na qual mais de 4.000 fa-
ção e seus respectivos contrários: exclusão, de- não “conforme a todos” — facilitou-lhe uma lashas morreram. A trama se concentra na figu-
sinserção, des — adaptação, trazidos por esta temporalidade para que a entrada do Outro ra de Salomão (Scholomo), cuja mãe cristã o
história de um exílio. desconhecido não o devastasse. Salomão se es- obriga a se passar por falasha para ser salvo da
Sobre esses termos, demarco dois pontos forçará- as cenas futuras o mostram — em se fome, miséria e, certamente, da morte. Em pou-
do filme: o significante desinserido — em por- inserir, pelo aprendizado das duas línguas e pe- cas frases: o fio narrativo mostra os arranjos

27
cinecien
subjetivos do menino de nove anos para seguir VA Conhecia o bosque de memória. Um dia, por
vivendo- muito além do revirão que lhe impõe Da dolorosa peregrinação até o acampa- acidente, caiu em um arbusto cheio de espi-
a nova cultura- a impostura de ser quem não é mento no Sudão só temos notícias em off. Des- nhos. Todo seu corpo ficou cheio de espinhos
e “ser” impedido de ser quem é. Trata-se de sua te ponto geográfico,o “VA” se inicia, silencioso que lhe faziam muito mal. Começou a retirá-
particular verdade e do enigma sobre a lei de caminhar com sua verdade, reforçada também los, mas logo viu que era inútil. Eram muitos. E
sua mãe biológica: enigma, a cuja resposta não pelas palavras da “ segunda mãe” ( esta sim, ju- até debaixo das unhas tinha espinhos. Sabe?
terá acesso: verdade e saber disjuntos e, ao dia etíope) que lhe diz, ao morrer: Não revele Esses eram os que mais o faziam sofrer. Devia
mesmo tempo articulados, marcarão a singula- seu segredo para ninguém. Não esqueça os no- arrancar as unhas para retirá-los?
ridade de suas respostas na vida. Perguntemo- mes de seus pais, irmãos. A enumeração e repe- Como vemos, a pergunta é crucial. Conse-
nos: Para Salomão, qual é a verdadeira ques- guirá respondê-la?
tição dos ancestrais nomes judaicos evocam a
tão? Se nos apoiarmos no pensamento da psi- fantástica cena de Blade Runner na qual o re-
canálise, para Salomão, como para cada um de plicante compõe sua família em frágil artefato,
nós, a questão é saber como colocar o objeto, sem valor simbólico, brilhantemente estilhaça-
seu corpo –digamos- corpo (da) na linguagem e do na passagem ao ato que se seguirá à per-
como se pode estabilizar o gozo pelo semblan- gunta do policial: E sua mãe? No caso de Salo-
te. Para Salomão,a contingência da vida o levou mão, somos levados a supor que a mãe falasha
a outra língua, (não materna) e, certamente, a lhe dá a família dela, compondo para Salomão
questão se impõe desde esta ruptura radical, a falsa identidade, com a qual ele enfrentará o
sem palavras: como poder temperar seu sofri- sistema imigratório e as sujas estratégias de
mento (gozo) trazido pelo trauma, pelo sem- comprovação da legitimidade étnica. A libra de
blante? Como poder se nomear pelo S1 ou por carne é quase... quase... consumada como ex-
S1s que não se desdobrem pela impostura mas tração violenta no corpo de Salomão, pelo ato
suportam o semblante? da circuncisão, e é curioso que disto o salve seu
Três fases da vida de Salomão são retrata-
pai adotivo, judeu, mas de esquerda e não reli-
das: criança, jovem e adulto e, mesmo que se-
gioso tal como se apresentara ao receber Salo-
jam tomadas na cronologia, certamente o tem-
mão.
po subjetivo é o que nos acerca dos tempos
De seu sofrimento nesse tempo, saberemos Marcos Coelho Benjamim
verbais que dão título ao filme.
através da metáfora de que se vale para confiá-
lo à terceira mãe: VIS
Era uma vez um macaco feliz que saltava De forma magistral faz-se a passagem para
de árvore em árvore. Tinha família e amigos. a etapa seguinte, a partir do encontro com a
28
cinecien
escrita. Talvez não seja abusivo homologar a os presentes à cerimônia, a ela sensíveis sob o bino-escriba –, o que sabe sobre sua origem.
juventude de Salomão ao tempo do VIS, mo- enunciado de Salomão: A cor da pele de Adão Deviens médico de fronteiras. E, nesta condi-
mento decisivo no filme. Efetivamente, Salomão não é negra nem branca: é vermelha como a ção, pisa o solo africano.
passa a viver, não apenas sobrevive. O que se argila. Trata-se de uma travessia do deserto. Al-
introduz a partir da escrita das cartas à mãe bi- Não obstante a ovação recebida ao final da guém poderá imaginar que o deserto ao qual o
ológica, ditadas por ele ao rabino africano que Controvérsia, não obteve o reconhecimento de “herói” retorna nas ultimas cenas da narrativa,
orou pelos pais que permaneceram na África, é sua condição de judeu pelo pai de Sara. Angus- seja o mesmo. A geografia, sim. Também serão
o rompimento de sua recusa à nova filiação. A tiado, joga fora a Torá e vai à delegacia de polí- os mesmos pés descalços a pisarem novamente
cena contínua é a de Salomão aceitando com cia se confessar. Sou culpado Não sou judeu. Eu a areia do solo africano,mas os passos do sujei-
gosto as refeições da casa de seus pais adoti- menti a todo mundo! O delegado, desprezando to não o encaminham ao passado. Não se trata
vos. Nota-se que o importante é a escrita e não a particularidade da confissão — poderíamos de um retorno: feita tal travessia, pisar na terra
a comunicação entre ele e a mãe biológica, pois reler Freud, a este respeito— oferta-lhe o gene- materna é sustentar este ato como responsabi-
em momento algum saberemos se as cartas roso discurso da indignação e da tolerância po- lidade subjetiva. Do —..., não voltes nunca! —,
chegam ao acampamento, se foram respondi- lítica. São as condições para que o delegado complemento dos três imperativos va, vis et de-
das... Importa aqui o Querida mamãe, sol da mi- responda de modo universal. viens, ditados pela mãe ao filho, — à experiên-
nha vida... e, sobretudo, as perguntas formula- Até vocês começaram a acreditar nisso. São cia final, o sujeito inverte sua interpretação da-
das: Necessito saber porque não tenho o direito mais judeus que todos! Mais fiéis a Torá! Não da ao paradoxo, encontrado por ele, na exigên-
de voltar. Na sucessão cronológica da escrita acredite no que falam! É vergonhoso o que fa- cia da mãe. Deviens, transformar, mudar: se o
das cartas, será ele mesmo quem as escreve e zem com vocês! consegue, como fica ? Como, transformado, ser
fará disso um ofício: passa também a escrever Rastrearam meu sangue quando cheguei reconhecido por ela, no (im)provável reencontro
as cartas para um amigo endereçar à colega, de Roma, com medo da AIDS? futuro?
que será, no futuro, sua namorada. A palavra Entre vocês há doze suicídios por mês! Ne- No momento final, ele poderá reconhecê-la
lhe permite o amor. Em nome do amor, inscre- nhuma imigração sofreu tanto! no rosto qualquer de uma mulher faminta e so-
ve-se para participar de um ato chamado Con- Ato contínuo, Salomão oferece-se ao sacri- fredora. Um uivo saído da boca da mãe ressoa,
trovérsia realizado em uma sinagoga: tentaria fício físico, oferece-se a ser violentado numa marcando o caráter impossível do encontro
provar que era judeu porque conhecia a Torá. casa noturna. com Das Ding.
Tinha averiguado que lá estaria o pai da jovem
DEVIENS
amada. Temia esse homem, figura do ódio e ra-
cismo. Salomão se lança, argumentando que Ao Nesse tempo, os laços com a família adoti-
princípio era o Verbo. Deus criou a Terra e deu va e com a nova cultura estão muito fortaleci-
alento à Palavra.. Sua enunciação surpreende dos embora seja apenas o pai simbólico, – o ra-
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cinecien
cola que João vai buscar esses adolescentes, randa, que escolheu ser apresentada sim-
“UM FILME SOBRE pois sabe que lá é um lugar privilegiado aonde plesmente como professora, chamou aten-
se faz um laço do sujeito com o social. ção para os versos de uma jovem, que falam
MENINOS E MENINAS – eu poderia ser se... eu deveria ter sido se...
E o que podemos escutar do que João en- – ressaltando a injustiça social que aparece
QUE VIVEM A PRESSA contra? na maior parte dos adolescentes en- na educação falha e sem perspectivas para a
DE SABER QUEM SÃO” trevistados, uma pergunta brota: “O que vai maioria de nossa população. A advogada
acontecer comigo?” pergunta que entende- Nanda Vieira ressaltou a violência nas esco-
Angela Negreiros mos que surge quando o encontro com o las como reflexo de um discurso punitivo, de
que chamamos de Pai Real os coloca diante vingança. A justiça vem sendo chamada a
Assim é apresentado o documentário “Pro da decepção e das quedas dos ideais. Isto os intervir nas escolas aonde uma função de
dia nascer feliz”, exibido em março no convoca a fazer algo com isso. Alguns se di- mediação da educação não consegue mais
CINECIEN-RIO. Seu diretor, João Jardim, o des- zem adoecidos por falta de resposta, outros se fazer presente. Suas posições foram apoi-
creve: “Um diário de observação da vida do encontram uma via pela escrita, uma con- adas por diferentes segmentos dos profis-
adolescente no Brasil em seis escolas, no esta- versa com um professor,outro a violência... sionais presentes.
dos de Pernambuco, Rio de Janeiro e São Pau- Nossos debatedores convidados nos trouxe- Talvez possamos continuar esse debate com
lo”. Apenas uma das escolas é uma escola pri- ram suas experiências que naturalmente fa- o verso final da mesma adolescente citada
vada, em São Paulo, sendo as outras em regiões zem parte de suas próprias respostas à acima. Valéria, de Manari, Pernambuco. “Eu
precárias e/ou violentas de nosso país. João mesma pergunta. A prof. Vera Werneck, di- deveria ter uma péssima impressão da vida
Jardim acrescenta: “É um filme de gente... A a- retora do Colégio Padre Antonio Vieira, psi- se não fosse a paixão que tenho pela arte de
cóloga, ressalta a necessidade da Escola ofe- viver”.
dolescência é um momento difícil, sofrido e pe-
recer e reafirmar valores aos seus alunos
rigoso e com emoções à flor da pele”. É na es- para orientá-los na vida. A prof. Katia Mi-

CIEN-Digital agradece a todos que contribuíram na elaboração deste número.


Envie-nos seu texto até 2.000 caracteres para mariarita.guimaraes@gmail.com.

Editor: Maria Rita Guimarães. Co-editor: Cristiana Pittella de Mattos.


Conselho editorial: Cristiane Barreto, Cristiana Pittella de Mattos, Consultor: Célio Garcia.
Maria Rita Guimarães. Comissão de Coordenação e Orientação do CIEN Brasil:
Patrocínio: Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Cristiana Pittella de Mattos (Coord. Geral), Heloísa Telles, Maria do
Gerais - IPSM-MG. Rosário Collier do Rego Barros e Teresa Pavone.
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