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VISTA PANORÂMICA
1. Introdução
O mundo vê-se a braços com uma pandemia avassaladora que atinge praticamente todos
os países. Portugal não é exceção. Sendo o direito um dever-ser que é, que não é alheio à
realidade que o circunda – quer porque esta o provoca, suscitando casos novos e eivados
de uma intencionalidade diversa dos anteriores, quer porque não as especificidades da
tessitura social não deixam intocável a decisão judicativa –, o impacto pessoal, social e
económico da epidemia que se enfrenta não pode deixar de ter reflexos ao nível jurídico.
Muitas são as questões que se colocam, a implicar a mobilização dos mais variados ramos
do direito. O direito civil não é exceção. Neste quadro, os problemas são também
múltiplos. Não pretendemos trata-los a todos. Nas páginas que se seguem, limitar-nos-
emos a apontar algumas ideias-chave em matéria de responsabilidade civil. O nosso
propósito é tentar perceber, em primeiro lugar, se, em situações hipotéticas por nós
consideradas, poderá algum sujeito ser responsabilizado pela contaminação de outros
com a doença covid-19, e, em segundo lugar, qual o impacto que a presença (contida ou
disseminada) do vírus pode ter na dogmática da responsabilidade civil. Para cumprir o
nosso desiderato, partimos de hipóteses concretas, embora ficcionadas, e orientar-nos-
emos pelas diversas fases de proliferação da doença.
Repare-se que o tema é relevante não só do ponto de vista pessoal, mas também
corporativo. De facto, como veremos, os danos que se verificam – real ou hipoteticamente
– não resultam, apenas, da repercussão negativa da lesão da integridade física ou da vida,
mas experimentam-se também no plano puramente económico, o que suscita outro tipo
de considerações.
A questão não pode ser respondida sem mais. Pelo contrário, haveremos de ter em conta
diversas sub-hipóteses. Pode ou não o Estado ser responsabilizado pela lesão da saúde
e/ou da vida de uma pessoa contagiada? Pode ou não o Estado ser responsabilizado pelas
perdas patrimoniais sofridas por uma sociedade comercial que, fruto desse mesmo
contágio, teve de suspender a produção de uma unidade fabril de que é proprietária?
Vejamos.
Permanente de Concertação Social sobre a figura da responsabilidade civil, contratual e extracontratual do Estado e demais pessoas
colectivas públicas, Lisboa, 1997, 5.
3 Cf. Maria da Glória GARCIA, A responsabilidade civil do Estado, 7-8.
4 Cf. Maria da Glória GARCIA, A responsabilidade civil do Estado, 8
5 Cf. Maria da Glória GARCIA, A responsabilidade civil do Estado, 13.
6 Estamos aqui a referir-nos a uma esfera de responsabilidade como correlativa da liberdade/autonomia. Mas,
como veremos, tudo dependerá da específica conformação da hipótese de responsabilidade com que se lide.
As eventuais diferenciações que se possam estabelecer autorizar-nos-ão, como veremos, a estabelecer cisões
categoriais.
7 Cf. Vaz SERRA, “Responsabilidade civil do Estado e dos seus órgãos ou agentes”, Boletim do Ministério da Justiça,
85, 1959, 453, sintetizando duas das ideias chave apontadas pela doutrina: “(…) sempre que, prosseguindo uma
finalidade pública, se cause dano especial e grave de interesses particulares lícitos, pelos menos se houver
verdadeiros direitos, afigura-se-lhe justo que se redistribua o sacrifício e tal é o que deriva do princípio da
igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos e da necessidade de impedir um como injusto
locupletamento da coletividade à custa do prejudicado”.
A limitação dessa responsabilidade, por via da exigência da ilicitude/ilegalidade e culpa, prende-se, também de
acordo com o testemunho do autor, com o facto de “as soluções mais justas não [poderem] por vezes ser
praticamente efetivadas, obstando, por exemplo, o encargo financeiro excessivo que importariam”.
8 Cremos, pois, que a razão de ser do agravamento da situação do funcionário nas situações em que atue com
dolo ou culpa grave se prende com o paulatino abandono, pelas características do seu comportamento, da esfera
de conexão administrativa, a qual permite estabelecer este jogo contributivo comunitário.
Historicamente, parecem encontrar-se razões que depõem não num sentido de agravamento da posição
subjetiva do agente individual, mas no sentido da flexibilização da sua responsabilidade nos casos inversos (de
culpa leve). Contudo, não só não cremos que tal corresponda ao melhor entendimento da norma, no cotejo
com os princípios que a informam e enformam, como interpretação historicista está arredada do nosso
horizonte de referência.
Veja-se, também, no quadro do direito anterior, a posição expendida por Marcello Caetano, a permitir um juízo
valorativo próximo do que inscrevemos em texto – Manual de Direito Administrativo, 4ª edição, nº178 (fala o autor
de culpa funcional, quando “a prática do ato ilegal haja decorrido em circunstâncias tais que possa considerar-
se consequência natural do exercício de funções, por oposição a culpa pessoal, quando “o agente [se afastou]
das regras essenciais disciplinadoras da sua atuação como tal, por forma que a função haja sido postergada”) e
Vaz SERRA, “Responsabilidade civil do Estado e dos seus órgãos ou agentes”, Boletim do Ministério da Justiça,
nº85, 1959, p. 455 (note-se, porém, que Vaz Serra fala expressamente de uma ideia de irresponsabilidade dos
funcionários, para proteção dos mesmos).
9 Para uma síntese, cf. A. Menezes CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, II/III, Almedina, Coimbra, 2010,
648 s.
10 Repare-se que a diferença entre a responsabilidade solidária e a responsabilidade exclusiva do Estado em
função do grau de culpa pode evidenciar, em termos dogmáticos, que se imputa diretamente ao ente público a
responsabilidade pelos atos dos seus agentes e representantes. Sobre o ponto, numa perspetiva que não é a
nossa, quanto ao artigo 165º CC, cf. A. Menezes CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, II/III, 646.
Cremos, contudo, que pode haver diferenças entre o domínio privado e o domínio público. Na verdade, se ali
a responsabilidade extracontratual se compreende como uma garantia em face do lesado, no domínio publicista,
em muitas situações, a responsabilidade, não sendo contratual, não pode ser senão explicada pelo especial papel
funcional que o ente público exerce, não podendo responsabilizar outrem que não o ente público. V.g. a
situação em que há desaplicação indevida de um regulamento válido: neste caso, ainda que o ato seja praticado
pela pessoa física, é-o como se fosse o Estado. A intencionalidade destas hipóteses e daqueloutras que
convocam a aplicação do artigo 500º CC são, portanto, absolutamente, díspares. Já não será assim naquelas
hipóteses em que a atuação da administração se consubstancia num ato material. Aí a explicação para a solução
consagrada pela Lei nº67/2007 poderá não se encontrar no plano estrutural/funcional, mas no plano
teleológico.
11 A. Menezes CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, tomo III, Almedina, Coimbra,
2010, 649.
12 Nesse sentido, no quadro da doutrina administrativista, cf. Margarida CORTEZ, Responsabilidade Civil da
Administração por Actos Administrativos Ilegais, 50; Marcelo Rebelo de SOUSA, “Responsabilidade dos
Estabelecimentos Públicos de Saúde: Culpa do Agente ou Culpa da Organização?”, Direito da Saúde e Bioética,
AAFDL, Lisboa, 1996, 172; Ana Raquel MONIZ, “A ilicitude na responsabilidade civil do Estado e demais
entidades públicas: notas esparsas sobre o problema da frustração da confiança”, Novos desafios da responsabilidade
civil, IJ, Coimbra, 2019, 33 s.
13 Para essas críticas, cf. A. Menezes CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, II/III, 649
No que à culpa respeita, de facto, determina o artigo 10º/2 Lei nº67/2007 que se presume
a culpa leve nos atos jurídicos ilícitos. A este propósito, Menezes Cordeiro refere, em tom
crítico das opções legislativas, que “a culpa é um juízo de valor: induz-se, mas não se
presume. As presunções de culpa civil são, consabidamente, presunções de factos
indutores de culpa e de ilicitude”14. Se verificada uma lesão se presume a culpa leve, está-
se necessariamente a fazer confluir a culpa e a ilicitude, tanto mais que se exige, para que
esta exista, que ocorra no mínimo a violação de um dever de cuidado, cuja preterição
afinal consubstancia a própria culpa. Nas hipóteses em que o que está em causa é a lesão
de um interesse por via da violação de uma norma legal, então a presunção de culpa já
funcionaria nos termos gerais em que a doutrina admite, pelo menos, a inversão do ónus
da prova da culpa no caso da segunda modalidade de ilicitude extracontratual. A
presunção de culpa estende-se, ainda, às situações em que há violação dos deveres de
vigilância.
Pese embora o paralelo a que se refere Menezes Cordeiro, há diferenças assinaláveis entre
a responsabilidade do Estado e a responsabilidade de direito privado. Desde logo, não
somos, ao nível da dogmática civilística, confrontados com a necessária combinação entre
a ilicitude da condute e a ilicitude do resultado15.
Por outro lado, parece que somos confrontados com uma maior amplitude quando
comparado o âmbito da ilicitude a este nível com o âmbito do conceito homólogo previsto
no artigo 483º CC. De facto, se no domínio civilístico se exige, para que o comportamento
seja ilícito, que haja violação de direitos absolutos, de disposições legais de proteção de
interesses alheios, ou que se verifique uma situação de abuso do direito, no campo da
responsabilidade do Estado, parecem acolher-se os interesses patrimoniais puros sem que
haja uma exigência tão grande quanto à qualificação da norma como disposição de
proteção16. Contudo, esta ampliação não é total. Ao exigir-se o resultado lesivo, afastam-
14
A. Menezes CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, II/III, 649.
15 A combinação entre o desvalor de conduta e o desvalor de resultado não se confunde com a articulação
conjunta entre ilicitude da conduta e ilicitude do resultado.
16 De facto, importa não esquecer que os autores são particularmente cautelosos no que toca à delimitação, para
efeitos da mobilização do artigo 483º CC, do conceito de disposição legal de proteção de interesses alheios.
Sobre o ponto, cf. Claus Wilhelm CANARIS, “Schutzgesetze-Verkehrspflichten-Schutzpflichten”, in Festschrift
A posição não gera, contudo, unanimidade na doutrina. Em sentido contrário depõe Hong
Cheng Leong, que dá o exemplo de uma norma ilegal ou inconstitucional que concede
um benefício fiscal, recusando-se a AT a aplicar com fundamento na sua ilegalidade ou
inconstitucionalidade19. Para o autor, é certo que, “neste caso, como o benefício fiscal
previsto na norma é ilegal ou inconstitucional, o potencial destinatário não tem direito à
sua aplicação uma vez que ninguém tem direito de exigir à Administração a execução de
uma norma inválida”20. Contudo, adverte que “os danos não podem consistir na mora em
concessão do benefício fiscal em causa. Se existirem, os danos só podem ser os derivados
da lesão da confiança legítima que o potencial destinatário da norma investiu na previsão
da efetiva concessão do benefício fiscal, sem perceber a ilegalidade ou a
inconstitucionalidade da norma em causa, estando de boa-fé”21. Assim, continua
afirmando que, “por isso, para saber se a desaplicação indevida provoca qualquer ilicitude
de resultado (lesão da confiança legítima in casu), constitui tarefa central a compreensão
für Karl Larenz zum 80. Geburtstag am 23. April 1983, Beck, München, 1983, 49 s. („Norme di protezione, obblighi
del traffico, doveri di protezione”, Rivista Critica del Diritto Privato, Anno, I, n.º3, 1983, 574 s.); Sinde MONTEIRO,
Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, Almedina, Coimbra, 1987, 253 s.; Heinrich DÖRNER,
“Zur Dogmatik der Schutzgesetzverletzung”, Juristische Schulung. Zeitschrift für Studium und Ausbildung, 27.
Jahrgang, 1987, 522 s. Em sentido divergente, cf. Adelaide Menezes LEITÃO, Normas de protecção e danos puramente
patrimoniais, Almedina, Coimbra, 2009, 429 s.
Veja-se, quanto a esta questão, quando afirma que no campo da responsabilidade do Estado se acolhem danos
puramente patrimoniais, tanto quanto ao nível delitual – e com caráter de excecionalidade – eles já seriam
indemnizados – cf. L. Menezes LEITÃO, “A responsabilidade civil das entidades reguladoras”, Estudos em
homenagem ao Professor Doutor Sérvulo Correia, III, Coimbra Editora, Coimbra, 2010 (<http://icjp.pt/estudos>).
Repare-se, contudo, que o autor não aponta claramente esta nuance entre o regime publicista e o regime do
direito privado.
17 A esse propósito, v. a interessante análise de Ana Raquel MONIZ, “A ilicitude na responsabilidade civil do
Estado e demais entidades públicas: notas esparsas sobre o problema da frustração da confiança”, 34 s., a
propósito de uma eventual chamada à colação da responsabilidade pela confiança nas hipóteses de recusa de
aplicação (devida) de regulamentos inválidos.
18 Cf. nota anterior
19 Hong Cheng LEONG, Da imputação obietiva na responsabilidade extracontratual do estado decorrente do exercício da função
administrativa – algumas questões atinentes à delimitação em geral da esfera de responsabilidade da administração, Coimbra,
2017, 120
20
Hong Cheng LEONG, Da imputação obietiva na responsabilidade extracontratual do estado decorrente do exercício da
função administrativa, 120.
21
Hong Cheng LEONG, Da imputação obietiva na responsabilidade extracontratual do estado decorrente do exercício da
função administrativa, 120
O autor distingue, claramente, dois resultados – a lesão do direito subjetivo, que, in casu,
inexiste (por o regulamento ser inválido) e os danos da confiança. Parece-nos que bem.
Simplesmente, o dano da confiança não se pode consubstanciar – pela necessária presença
do resultado imposto pelo artigo 9º - na frustração da confiança, tendo de materializar-se,
pelo contrário, na preterição de determinados interesses legalmente protegidos. O que se
há de, então, descobrir é quais os interesses lesados (v.g. interesses económicos) e se eles
se integram ou não entre aqueles que o respeito pelo princípio da confiança visava
acautelar. Não se pode, pois, concluir que o princípio da confiança não terá qualquer papel
na dogmática responsabilizatória do Estado. O que se impõe é a investigação acerca do
resultado e a sua recondução ao núcleo de violação do princípio, donde se pode concluir
que a anteriormente chamada causalidade deve ser entendida como verdadeira imputação,
importando para a própria fundamentação da responsabilidade, tanto quanto a ilicitude
não se compreende sem ela.
O que aqui ficou dito permite-nos, já, tecer algumas considerações acerca da eventual
responsabilidade do Estado nas hipóteses de contaminação por covid-19.
A é contagiado por B, que tinha chegado a Portugal poucos dias antes, vindo de um país
de contágio. As autoridades de saúde desvalorizaram o facto e informaram-no que poderia
ir trabalhar, desde que cumprisse determinadas orientações de higienização das mãos e
de etiqueta respiratória. Verificando-se o contágio, há claramente violação de um direito
absoluto de A, o que nos permite concluir que o desvalor do resultado se cumpre. Resta,
portanto, indagar pelo desvalor da conduta. O problema está em saber se, com a conduta,
os agentes do Estado violaram ou não determinadas regras técnicas, determinados deveres
de cuidado ou mesmo (e eventualmente) um princípio jurídico, qual seja o princípio da
precaução23. A resposta que para ele se encontre passará pela descoberta das orientações
22
Hong Cheng LEONG, Da imputação obietiva na responsabilidade extracontratual do estado decorrente do exercício da
função administrativa, 120
23 Este surgiu nos anos 80, embora só tenha obtido uma consagração formal em 1992, na conferência do Rio
sobre questões ambientais. Essa e outras consagrações formais que o princípio tenha obtido até hoje levaram
a concluir que ele se desenhava como uma injunção dirigida às autoridades, não consubstanciando uma regra
jurídica com valor normativo autónomo. Mas a posição não é clara. Para os responsáveis pelo relatório dirigido
ao Primeiro-ministro francês, Geneviève Viney e Philippe Kourilsky, o princípio deve ser visto como uma regra
colocada à disposição do julgador, que deve ser concretizada caso a caso. Cf. Philippe KOURILSKY/Geneviève
VINEY, Le príncipe de précaution, rapport au Premier Ministre, Edition Odile Jacob, La documentation française,
Janvier, 2000. Outros autores vão mais longe e entendem que o princípio da precaução pode ser integrado na
ordem jurídica pela assimilação a um princípio de direito. Cf. BOUTONNET/GUEGAN, “Historique du principe
de précaution”, Le principe, annexe 1, 253. O princípio da precaução surge, então, como uma máxima ordenadora
da conduta de decisores públicos e privados, que determina a antecipação de medidas preventivas, atenta a
importância de determinados bens jurídicos que possam ser lesados com o comportamento humano. Se o
princípio da precaução era inicialmente convocado apenas no âmbito ambiental, rapidamente se estendeu a
domínios como a segurança alimentar e a saúde. Vários são os autores que afirmam não se descortinar qualquer
razão para restringir o campo de aplicação do princípio aos tradicionais casos onde ele é chamado à colação.
Assim, vemos Philippe Kourilsky e Geneviève Viney afirmarem que se tornou imperioso alargar o princípio a
diversos sectores, especialmente quando em causa esteja a proteção contra acidentes coletivos, como os que
são provocados por obras públicas com barragens, túneis, autoestradas, aeroportos. Consideram igualmente
que o princípio da precaução pode funcionar perante catástrofes naturais como inundações e sismos, no sentido
de as consequências que tais fenómenos possam ter para as populações em geral poderem ser atenuadas com a
chamada à colação de medidas de precaução consideradas adequadas. Repare-se que prevenção e precaução
não se confundem: as duas realidades podem distinguir-se em moldes que se aproximam dos que se mobilizam
para distinguir o perigo e o risco. Kourilsky e Geneviève Viney afirmam que a distinção entre os riscos
potenciais e os riscos verificados funda a diferença entre precaução e prevenção. Na verdade, continuam os
autores, a precaução é relativa a riscos potenciais e a prevenção diz respeito a riscos verificados. Tudo
dependeria, pois, do grau de probabilidade de ocorrência do prejuízo, devendo a precaução ser entendida como
um prolongamento dos métodos de prevenção aplicados a riscos incertos. Cf., também, Alexandra ARAGÃO,
O princípio do poluidor pagador – pedra angular da política comunitária do ambiente, Studia Iuridica, 23, Coimbra Editora,
Coimbra, 1997, 68.
b) O problema da causalidade
Ademais, esta causalidade vertida em imputação deve deixar de ser pensada em termos
unitários, para passar a ser compreendida em termos binários. Se, tradicionalmente, o
nexo de causalidade era entendido de forma unívoca, estabelecendo a ligação entre a
conduta ilícita e culposa e os danos sofridos pelo lesado, embora os autores acabassem
por evidenciar – de forma mais ou menos clara – que este liame era chamado a cumprir
uma dupla função: ao mesmo tempo que seria entendido como um pressuposto da
responsabilidade, era visto como um problema atinente ao cálculo da indemnização 25,
24Para uma crítica às teorias, cf. Mafalda Miranda BARBOSA, Do nexo de causalidade ao nexo de imputação. Contributo
para a compreensão da natureza binária e personalista do requisito causal ao nível da responsabilidade civil extracontratual,
Princípia, 2013, cap. II.
25 Entre nós, abordando unitariamente o problema, Pereira COELHO, “O nexo de causalidade na
responsabilidade civil”, 113 a 115. Tradicionalmente o problema da causalidade era tratado ao nível da
obrigação de indemnizar. Tal corresponde à estrutura sistemática das diversas codificações e, entre nós, respeita
Por outro lado, a causalidade deixa, nesta perspetiva, de ser entendida exclusivamente do
ponto de vista dogmático, para ser compreendida do ponto de vista ético-axiológico27. A
ação, de onde se parte, deve ser vista como uma categoria onto-axiológica, o que, no
diálogo com a pressuposição do risco, nos permite inverter alguns dos aspetos tradicionais
do problema. Assim, e desde logo, podemos afirmar que o filão fundamentador da
imputação objetiva não pode deixar de se encontrar numa esfera de risco que se assume.
Mas, não basta contemplar a esfera de risco assumida pelo agente de uma forma
atomística, desenraizada da tessitura antropológico-social e mundanal em que ele está
inserido. Dito de outro modo, e relacionando-se isso com o pertinentemente aceite em
matéria de definição da conduta juridicamente relevante, salienta-se aqui que, porque o
referencial de sentido de que partimos é a pessoa humana, matizada pelo dialético
encontro entre o eu, componente da sua individualidade, e o tu, potenciador do
desenvolvimento integral da sua personalidade, há que cotejá-la com a esfera de risco
encabeçada pelo lesado, pelos terceiros que compõem teluricamente o horizonte de
a orientação expendida nos trabalhos preparatórios do diploma mãe em matéria de direito civil – cf. Vaz SERRA,
“Obrigação de indemnização. Colocação. Fontes. Conceito e espécies de dano. Nexo causal. Extensão do dever
de indemnizar. Espécies de indemnização. Direito de abstenção e de remoção”, 7.
26 Mafalda Miranda BARBOSA, “Haftungsbegründende kausalität e haftungsausfüllende kausalität Causalidade
A pessoa, ao agir, porque é livre, assume uma role responsibility, tendo de, no encontro
com o seu semelhante, cumprir uma série de deveres de cuidado. Duas hipóteses são,
então, em teoria, viáveis: ou a pessoa atua investida num especial papel/função ou se
integra numa comunidade de perigo concretamente definida e, neste caso, a esfera de
risco apta a alicerçar o juízo imputacional fica a priori desenhada; ou a esfera de
risco/responsabilidade que abraça não é suficientemente definida para garantir o acerto
daquele juízo. Exige-se, por isso, que haja um aumento do risco, que pode ser
comprovado, exatamente, pela preterição daqueles deveres no tráfego, entre os quais se
incluem os deveres de segurança no tráfego.
Estes cumprem uma dupla função. Por um lado, permitem desvelar a culpa (devendo,
para tanto, haver previsibilidade da lesão e exigibilidade do comportamento contrário
tendo como referente o homem médio); por outro lado, alicerçam o juízo imputacional,
ao definirem um círculo de responsabilidade, a partir do qual se tem de determinar,
posteriormente, se o dano pertence ou não ao seu núcleo.
Assim, para que haja imputação objetiva, tem de verificar-se a assunção de uma esfera
de risco, donde a primeira tarefa do julgador será a de procurar o gérmen da sua
emergência. São-lhe, por isso, em princípio, imputáveis todos os danos que tenham a sua
raiz naquela esfera, ou seja, todas as lesões que se inscrevam no âmbito do risco definido
ou que devessem ser evitadas pelo cumprimento do dever preterido.
No fundo, o que se procura com as categorias é retirar da esfera de risco edificada algumas
das consequências que, pertencendo-lhe em regra, pela falta de controlabilidade
(inevitabilidade, extraordinariedade, excecionalidade e invencibilidade), não apresentam
uma conexão funcional com o perigo gerado. Note-se, porém, que a judicativa decisão
acerca da existência ou não de um facto fortuito ou caso de força maior poderá implicar,
em vez de uma estanque análise das características elencadas, um cotejo de esferas de
risco. De facto, poderá haver situações em que o pretenso lesante não tem controlo efetivo
sobre a situação que gera o dano, mas pode e deve minorar os efeitos nefastos dela. Com
isto, mostramos que não é ao nível da culpa que as duas categorias derramam a sua
eficácia. No entanto, isso não nos leva a optar inexoravelmente por uma perspetiva que
Este segundo patamar terá lugar depois de se constatar que o dano-lesão pertence ao
núcleo da esfera edificada. Para tanto, é necessário que haja possibilidade do dano e que
ele se integre dentro dos eventos que deveriam ser evitados com o cumprimento do dever.
Só depois faz sentido confrontar a esfera titulada pelo potencial lesante com outras esferas
de risco/responsabilidade.
Contemplando, prima facie, a esfera de risco geral da vida, diremos que a imputação
deveria ser recusada quando o facto do lesante, criando embora uma esfera de risco,
apenas determina a presença do bem ou direito ofendido no tempo e lugar da lesão do
mesmo. O cotejo com a esfera de risco natural permite antever que esta absorve o risco
criado pelo agente, porquanto seja sempre presente e mais amplo que aquele. A pergunta
que nos orienta é: um evento danoso do tipo do ocorrido distribui-se de modo
substancialmente uniforme nesse tempo e nesse espaço, ou, de uma forma mais simplista,
trata-se ou não de um risco a que todos – indiferenciadamente – estão expostos?
O confronto com a esfera de risco titulada pelo lesado impõe-se de igual modo. São a
este nível ponderadas as tradicionais hipóteses da existência de uma predisposição
constitucional do lesado para sofrer o dano. Lidando-se com a questão das debilidades
constitucionais daquele, duas hipóteses são cogitáveis. Se elas forem conhecidas do
lesante, afirma-se, em regra, a imputação, exceto se não for razoável considerar que ele
fica, por esse especial conhecimento, investido numa posição de garante. Se não forem
conhecidas, então a ponderação há de ser outra. Partindo da contemplação da esfera de
risco edificada pelo lesante, dir-se-á que, ao agir em contravenção com os deveres do
tráfego que sobre ele impendem, assume a responsabilidade pelos danos que ali se
inscrevam, pelo que haverá de suportar o risco de se cruzar com um lesado dotado de
idiossincrasias que agravem a lesão perpetrada. Excluir-se-á, contudo, a imputação
quando o lesado, em face de debilidades tão atípicas e tão profundas, devesse assumir
especiais deveres para consigo mesmo. A mesma estrutura valorativa se mobiliza quando
em causa não esteja uma dimensão constitutiva do lesado, mas sim uma conduta dele que
permita erigir uma esfera de responsabilidade, pelo que, também nos casos de um
Não se estranha, por isso, que o pensamento jurídico – mormente o pensamento jurídico
transfronteiriço – tenha gizado como critério guia do decidente o critério da provocação.
Tornam-se, também, operantes a este nível ideias como a autocolocação em risco ou a
heterocolocação em risco consentido. Do mesmo modo, chamam-se à colação outros
critérios, como o critério da autoridade, o critério do desnível informacional.
Havendo essa atuação livre do lesado, temos que ver até que ponto os deveres que
oneravam o lesante tinham ou não como objetivo obviar o comportamento do lesado.
Tido isto em mente, bem como a gravidade da atuação de cada um, poderemos saber que
esfera de risco absorve a outra ou, em alternativa, se se deve estabelecer um concurso
entre ambas. Chama-se à colação, a este nível, o problema do concurso de culpas do
lesado.
O artigo 570º CC abre-nos, de facto, uma dupla possibilidade interpretativa: deve ser
mobilizado ao nível da fundamentação da responsabilidade e ao nível do cálculo da
indemnização. No que ao primeiro segmento respeita, os critérios de apreciação da culpa
do lesado – que não pode ser entendida num sentido culpabilístico – inserem-nos no
modelo de imputação objetiva, baseado no cotejo de esferas de risco. Este primeiro
segmento estará em causa sempre que o que esteja em debate seja o agravamento do dano-
lesão/dano-evento. O segundo segmento entrará em cena quando esteja em causa o
comportamento do lesado depois de verificada a lesão e, portanto, ao nível do cômputo
da indemnização. Aí, os critérios a mobilizar deverão ser diferentes, remetendo-se a sua
explicitação para um momento posterior do programa da disciplina.
Maiores problemas se colocam, portanto, quando existe uma atuação livre por parte do
terceiro que conduz ao dano. Há, aí, que ter em conta alguns aspetos. Desde logo, temos
de saber se os deveres do tráfego que coloram a esfera de risco/responsabilidade
encabeçada pelo lesante tinham ou não por finalidade imediata obviar o comportamento
do terceiro, pois, nesse caso, torna-se líquida a resposta afirmativa à indagação
imputacional. Não tendo tal finalidade, o juízo há de ser outro. O confronto entre o círculo
de responsabilidade desenhado pelo lesante e o círculo titulado pelo terceiro –
independentemente de, em concreto, se verificarem, quanto a ele, os restantes requisitos
delituais – torna-se urgente e leva o jurista decidente a ponderar se há ou não consunção
de um pelo outro. Dito de outro modo, a gravidade do comportamento do terceiro pode
ser de molde a consumir a responsabilidade do primeiro lesante. Mas, ao invés, a
obliteração dos deveres de respeito – deveres de evitar o resultado – pelo primeiro lesante,
levando à atualização da esfera de responsabilidade a jusante, pode implicar que a lesão
perpetrada pelo terceiro seja imputável àquele. Como fatores relevantes de ponderação
de uma e outra hipótese encontramos a intencionalidade da intervenção dita interruptiva
e o nível de risco que foi assumido ou incrementado pelo lesante. Entre ambas, pode
também estabelecer-se o devido concurso28.
Do que ficou dito, podemos concluir que a causalidade se transmuta, de acordo com um
correto entendimento metodológico do problema da realização do direito, num juízo de
Para outros desenvolvimentos, cf. Mafalda Miranda BARBOSA, Do nexo de causalidade ao nexo de imputação, cap.
28
XVIII.
29 Hong Cheng LEONG, Da imputação obietiva na responsabilidade extracontratual do estado decorrente do exercício da
função administrativa, 24
30 Hong Cheng LEONG, Da imputação obietiva na responsabilidade extracontratual do estado decorrente do exercício da função
administrativa, 24.
Há, porém, como vimos casos em que o ato lesivo de direitos ou interesses é
materialmente análogo ao ato de um particular, bem como casos em que, estando
especificamente em causa o exercício de poderes de imperium, o ente público atua no
quadro da interação generalizada dos outros sujeitos, não estabelecendo uma específica
relação de soberania com um cidadão.
Parece, então, que podemos lidar com duas situações diferenciadas na sua base de
fundamentação. Nestas últimas que mantêm uma ponte de comunicação muito forte com
o domínio privatístico, o alicerce de conformação da esfera de responsabilidade poderá
encontrar-se, ainda, numa ideia de responsabilidade pelo outro; nas outras o recorte dos
contornos externos da esfera de responsabilidade estadual deverá ser encontrado na ideia
de competência/legalidade, a implicar que os cidadãos devem ficar livres de intervenções
lesivas dos seus interesses ou direitos.
Em qualquer dos casos, porém, a ilicitude resulta, como sabemos, da violação de uma
norma, princípio ou regra.
31Hong Cheng LEONG, Da imputação obietiva na responsabilidade extracontratual do estado decorrente do exercício da
função administrativa, 24
O covid-19 faz-nos confrontar com uma situação intermédia: não está em causa uma mera
operação material, assente em critérios técnicos; não está apenas em causa o cumprimento
ou não cumprimento de uma norma habilitante. Estamos num domínio de atuação eivado
pela nota da incerteza, que convoca um nível de discricionariedade muito amplo, fazendo
confluir critérios técnico-sanitários e critérios políticos. O ponto de partida para a
construção de uma esfera de risco/responsabilidade terá de ser então encontrado numa
posição de soberania animada por uma ideia de cuidado com o outro, por ser a
salvaguarda da vida e da saúde dos cidadãos um dos aspetos prioritários da atuação do
Estado. As especificidades, contudo, não são de molde a alterar a ponderação que há de
ser feita em sede de imputação. O busílis da questão reside em saber se as autoridades
sanitárias violaram ou não algum dever. Posto isto, serão responsáveis por qualquer lesão
que abstratamente pudesse ter sido evitada pelo seu cumprimento. Fundamental é,
também, determinar até que ponto a emergência pandémica constituiria, para este efeito,
um caso de força maior ou facto fortuito. No fundo, haveremos de questionar se estava
dentro do controlo do Estado conter a epidemia ou se a inevitabilidade, a
extraordinariedade, a excecionalidade e a invencibilidade eram as palavras de ordem. No
fundo, do que se trata é, também, de aferir o grau de eficácia das medidas que não foram
adotadas.
No que à primeira diz respeito, podemos afirmar que não haverá imputação se o
comportamento do sujeito apenas determinou a presença do bem jurídico no tempo e
espaço da lesão. Tudo depende, então, como veremos mais pormenorizadamente no ponto
expositivo subsequente, do momento da epidemia em que a contaminação ocorre. Se a
entidade pública sanitária aconselha um sujeito a ir trabalhar, sabendo que tinha sido
detetado nas instalações uma infeção por covid-19, haverá responsabilidade se os factos
ocorrerem num momento de contenção da doença, em que o risco não está igualmente
disseminado por todo o lado. Mas já não numa situação de transmissão comunitária, em
que o contágio se poderia dar em qualquer circunstância.
Acresce que, em causa pode, eventualmente, não estar o contágio em si mesmo, mas o
agravamento do quadro clínico do sujeito por não haver um diagnóstico atempado, pela
recusa de submissão a testes. A predisposição constitucional do lesado – o seu estado de
32 Os autores apontam, também, consequências ao nível da causalidade, mas, como tivemos oportunidade de
sublinhar a outro ensejo, elas não devem ser sobrevalorizadas. Cf. Mafalda Miranda BARBOSA, Lições de
responsabilidade civil, Princípia, 2017, 168 s.
De todo o modo, a imputação de que se cura não pode dar-se por solucionada sem mais.
Tal como vimos anteriormente, impõe-se o confronto com outas esferas de
risco/responsabilidade. Ora, é exatamente a contemplação da esfera de risco geral da vida
que nos pode conduzir a interrogações várias. O critério é o de que o lesante não deve ser
responsabilizado quando o facto do lesante, criando embora uma esfera de risco, apenas
determina a presença do bem ou direito ofendido no tempo e lugar da lesão do mesmo35.
Trimarchi oferece-nos o arrimo doutrinal aqui abraçado, justificando-o à luz da teleologia
primária da responsabilidade extracontratual e da sua finalidade essencialmente ou
primacialmente reparatória, e refratando-o em dois pontos essenciais: a vítima não tem
direito a ser garantida contra o risco a que estaria substancialmente exposta mesmo que o
33 Sinde MONTEIRO, Responsabilidade por conselhos, recomendações e informações, Almedina, Coimbra, 1989, 239 s.
34 Gert BÜGGERMEIER, Haftungsrecht. Struktur, Prinzipen, Schutzbereich zur Europäisierung des Privatrechts, Springer,
Berlin, Heidelberg, New York, 2006, 537 s. Veja-se, ainda, RÜMELIN, ““Die Verwendung der Causalbegriffe
im Straf und Civilrecht”, Archiv für die civilistiche Praxis, 90, Heft 2, 1900, 186 s.; Robert KNÖPFLE, “Zur
Problematik der Beurteilung einer Norm als Schutzgesetz um Sinne des § 823 Abs. 2 BGB”, Neue Juristische
Wochenschrift, 1967, 697-702; C.-W. CANARIS, “Schutzgesetze-Verkehrspflichten-Schutzpflichten”, Festschrift für
Karl Larenz zum 80. Geburtstag am 23. April 1983, München, Beck, 1983, 49 s; Heinrich DÖRNER, “Zur Dogmatik
der Schutzgesetzverletzung”, Juristische Schulung. Zeitschrift für Studium und Ausbildung, 27. Jahrgang, 1987, 522 s.
35 A ideia é a da mera coincidência espacial e temporal que afasta a imputação.
36 Cf., novamente, TRIMARCHI, Causalità e danno, Giuffrè Editore, Milano, 1967, 57-58. Exceção feita, segundo
o testemunho do autor, à situação em que alguém furta coisa alheia, devendo responder pelo seu perecimento
fortuito. Isto mostra-nos a incidência de juízos ético-axiológicos na ponderação feita pelo autor e ilumina-nos
no sentido de perceber que a correta solução dos problemas só pode ser encontrada num cotejo de esferas de
responsabilidade que tenha em conta o centro gravitacional de edificação de cada uma delas.
Veja-se, ainda, pág. 62. A mesma ideia conduziria, segundo o testemunho do autor, a que não haja
responsabilidade sempre que o ato ilícito leve o lesado a adotar um determinado comportamento da vida
ordinária que implique a exposição a um risco considerado tolerável.
Repare-se, contudo, que o polo de ancoragem dos subcritérios imputacionais plasmados por Trimarchi acaba
por não permitir a perfeita sintonia argumentativa. Na verdade, o autor foca-se na função reparadora da
responsabilidade civil e na ideia de que o dano há de avultar sempre como limite da obrigação ressarcitória. Por
isso, refere que, em concretização da ideia maior de que parte, a imputação também deve ser recusada quando
“o ato ilícito é concausa do dano por ter oferecido a um terceiro a ocasião e o instrumento, facilmente
substituível, para provocar o dano dolosamente”, já que o intento doloso do terceiro teria levado a realizar o
ato de qualquer forma e com efeitos análogos. A discrepância passa não só pela remissão do problema para o
ponto de cotejo da esfera de responsabilidade do lesante com a esfera de responsabilidade de um terceiro, como
pela consciência de que não é só a comutatividade que ilumina a solução que trazemos a lume, mas a própria
teleonomologia responsabilizatória. O que se procura determinar, com efeito, é a pertinência da lesão a uma
esfera que é pensável no exercício da liberdade da pessoa.
37 O primeiro patamar criteriológico aponta inequivocamente para uma ideia de validade, e portanto, de
ancoragem personalista. O segundo patamar de que aqui se fala, não perdendo, no refluxo dialético que o une
àquele, a coloração ético-axiológica, vai pensado na projeção com o dado real, matizando-se, também, com as
notas da eficácia que o direito vigente há de conter.
38Cf. a decisão de 13 de outubro de 1922 do Reichsgericht (RGZ 105, 264), citada por MARKESINIS, The German
Law of Obligations, vol. II, The Law of Torts: A comparative introduction, 3rd. Edition, Clarendon Press, Oxford, 1997,
599 s., e por Menezes CORDEIRO, Da responsabilidade civil dos administradores das sociedades comerciais, Lex, Lisboa,
1997, 534).
Do mesmo modo, haverá que ter em conta a esfera de risco de um terceiro que interfere
na situação lesiva.
Mas os problemas a equacionar não se esgotam neste elenco. O efeito exponencial dos
contágios, associado a uma letalidade ainda não totalmente definida, mas real, e à