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BIBLIOGRAFIA

A definição dessas políticas, contudo, não se dá de forma


automática nem linear, tendo em vista que se situam no
AGUIAR, MÁRCIA ÂNGELA DA SILVA [ET. interior de processos políticos e sociais complexos e con-
AL.]. CONSELHO ESCOLAR E A RELAÇÃO traditórios onde sobressaem interesses diversificados de
ENTRE A ESCOLA E O DESENVOLVIMENTO diferentes grupos e classes sociais.
COM IGUALDADE SOCIAL. BRASÍLIA: Nesse cenário, não surpreende que o debate sobre as
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, SECRETARIA DE políticas públicas seja demarcado por posições conflitantes
EDUCAÇÃO BÁSICA, 2006. em relação à sociedade, ao mundo do trabalho, ao Estado
e aos direitos do cidadão e que se manifestam com muita
clareza nas lutas sociais. Essas visões estão presentes na
definição do papel do Estado nos diferentes contextos so-
Introdução ciopolíticos, na formulação das políticas de desenvolvimen-
to que se materializam nos programas e projetos governa-
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da Repúbli- mentais e nas iniciativas da sociedade civil. Estão presentes
ca Federativa do Brasil: também nas concepções sobre o mundo do trabalho, e nas
I. construir uma sociedade livre, justa e solidária; orientações que predominam no tocante à destinação dos
II. garantir o desenvolvimento nacional; frutos do trabalho humano. Estão presentes ainda nas de-
III. erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as cisões que afetam todas as esferas da convivência social e
desigualdades sociais e regionais; humana.
IV. promover o bem de todos, sem preconceitos de ori- O princípio da igualdade integra também o ideário da
gem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de “educação para todos” e tem sido objeto de variadas in-
discriminação. CF 1988 terpretações com desdobramentos nas práticas sociais e
educativas. No Brasil, nos anos recentes, a igualdade re-
A igualdade é um tema que tem exercido enorme fas- ferenciada à educação é um dos princípios da Constitui-
cínio entre os homens e mulheres, desde que os gregos ção Federal de 1988. Cury, ao analisar o direito à educação,
atenienses instituíram a ágora – a praça pública na qual os destaca que “o pressuposto do direito ao conhecimento é a
cidadãos se reuniam para discutir e deliberar as questões igualdade. Essa igualdade pretende que todos os membros
políticas que diziam respeito à polis, à sua cidade. O ideal da sociedade tenham iguais condições de acesso aos bens
de igualdade tem sido perseguido pela humanidade e está trazidos pelo conhecimento, de tal maneira que possam
presente em todas as épocas e em todos os países, em que participar em termos de escolhas ou mesmo de concorrên-
pesem as inúmeras controvérsias e polêmicas que sempre cia no que uma sociedade considera como significativo e
suscita. Nos tempos atuais, no Brasil, o ideal da igualdade onde tais membros possam ser bem-sucedidos e reconhe-
também emerge no debate sobre as políticas públicas di- cidos como iguais”.
recionadas ao atendimento da população em um país mar- Garantir, portanto, o princípio da igualdade social em
cado pela injustiça e por desigualdades socioeconômicas. um projeto de desenvolvimento que tenha o homem como
De fato, no Brasil, com uma população de quase 180 cerne constitui um desafio para todos aqueles que lutam
milhões, verifica-se que é muito grande o número de pes- por uma sociedade justa, o que compreende a luta por
soas que vivem em condições de extrema pobreza – mais uma escola que se constitua efetivamente um espaço de
de 20 milhões, estimado em 2003, o que corresponde a formação para a cidadania. É evidente que uma escola que
“mais de duas vezes a população de Portugal”. O contin- busque cumprir o papel acima destacado desenvolve ritos
gente de pessoas pobres no país foi estimado em 54 mi- e práticas no seu cotidiano que vão além do processo de
lhões em 2003, ou seja, “mais do que a população total ensino e aprendizagem de conteúdos reservados a cada ní-
combinada dos outros três países do Mercosul (Argentina, vel e modalidade de ensino. A questão central, nesse caso,
Paraguai e Uruguai)”. Além disso, a distância entre os mui- é o modo como se desenvolve o processo educativo, no
to pobres e os ricos no Brasil permanece: “o quinto mais que está implicado desde as formas de exercício da gestão
rico da população tem uma renda 30 vezes maior do que da escola até as relações professor-aluno em sala de aula.
a renda do quinto mais pobre da população”. Esse quadro Dessa perspectiva é que se pode entender a importância
faz o Brasil ser considerado uma das cinco sociedades mais em compreender e debater a vinculação entre o Conselho
desiguais do mundo. Escolar, a gestão da educação, os processos de ensino e
Nessa situação de exclusão encontra-se também parte aprendizagem e a busca de padrões de igualdade na rela-
significativa das crianças e dos 35 milhões de jovens entre ção entre educação e desenvolvimento social.
15 e 24 anos que enfrentam a violência, o desemprego, Neste caderno, intitulado Conselho Escolar e a relação
o tráfico, a gravidez indesejada e precoce, a ausência de entre a Escola e o Desenvolvimento com Igualdade Social,
oportunidades para o seu pleno desenvolvimento pessoal procura-se, junto aos Conselhos Escolares, ampliar o de-
e sociocultural. bate em torno do princípio da igualdade e do desenvolvi-
Reverter esse quadro exige esforços gigantescos dos mento focalizando algumas questões cruciais para a edu-
governos e da sociedade e requer a definição e o desen- cação no cotidiano das escolas, a saber:
volvimento de políticas públicas que visem à superação
das desigualdades que se manifestam em todos os setores.

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BIBLIOGRAFIA

Como combater a exclusão e a discriminação? tores, muito embora seja portadora de uma crítica ao ca-
Como promover um clima de acolhimento para crian- pitalismo globalizado e seus impactos sobre a autonomia
ças e jovens? Como reforçar a construção do projeto po- dos Estados nacionais, propõe uma volta ao passado e o
lítico-pedagógico considerando o entorno da escola e homem é visto em posição de subserviência em relação à
a comunidade local sem perder de vista a relação com o natureza. Por fim, uma terceira concepção de desenvolvi-
mundo? mento sustentável tem como perspectiva a “sustentabili-
O aprofundamento desse debate na escola é potencial- dade democrática”. Tal concepção supõe uma mudança na
mente rico por possibilitar a todos os profissionais da edu- orientação do desenvolvimento econômico, contemplando
cação, aos pais e aos estudantes ampliarem a compreen- a justiça social, a superação da desigualdade socioeconô-
são das vinculações da escola com a sociedade e com os mica e os processos democráticos. A questão da sustenta-
projetos socioeducativos, bem como o (re)conhecimento bilidade é discutida no campo das relações sociais e há o
dos mecanismos de exclusão e discriminação de quaisquer entendimento de que “as noções de sustentabilidade e de
ordens, presentes na sociedade e na escola, para melhor desenvolvimento sustentável são construções sociais fru-
enfrentá-los e superá-los. Como afirma Cury, “a igualda- to do embate político entre os vários atores em busca de
de torna-se, pois, o pressuposto fundamental do direito à hegemonia de suas posições” (idem). Nesta perspectiva, o
educação, sobretudo nas sociedades politicamente demo- mercado e a visão economicista deixam de ter a centralida-
cráticas e socialmente desejosas de uma maior igualdade de e cedem lugar “a uma perspectiva de desenvolvimento
entre as classes e entre os indivíduos que as compõem e democrático, que se realiza na partição da riqueza social
as expressam”. e na distribuição do controle sobre os recursos, inclusive
os provenientes da natureza, explicitando o cunho político
I – Desenvolvimento com igualdade social: de quê desta apropriação” (idem). Em tal concepção de desenvol-
estamos falando? vimento, que tem “a equidade como princípio da sustenta-
Para ampliar a compreensão a respeito da temática bilidade”, fica claro que a desigualdade social e a degrada-
focalizada neste caderno – educação e desenvolvimento ção ambiental têm suas raízes no sistema capitalista.
com igualdade social –, é necessário, inicialmente, alertar
Considerando esta última visão, entende-se, neste tex-
o leitor sobre a existência de perspectivas diversas sobre o
to, que a consolidação de um projeto de desenvolvimento
que seja desenvolvimento. Com efeito, existem óticas dife-
no Brasil requer: a) a articulação entre democracia partici-
renciadas a respeito desse tema decorrentes de posiciona-
pativa e democracia representativa; b) a inclusão social nos
mentos político ideológicos diversos. Isso também ocorre
processos concernentes à ampliação das oportunidades
quando o debate focaliza a temática do desenvolvimento
produtivas e à melhoria da qualidade de vida; e c) a articu-
local sustentável. Dentre estudiosos do tema, Deluiz e No-
lação institucional entre os entes e as diversas instâncias da
vicki apontam para três concepções de desenvolvimento
Federação que seja expressa nos processos de formulação,
sustentável.
Uma primeira concepção de desenvolvimento susten- implementação e avaliação das políticas públicas.
tável pode ser encontrada no Relatório Brundtland, de 1987, Esta posição apoia-se, de um lado, no pressuposto de
produzido pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e que o desenvolvimento se situa num campo de conflitos
Desenvolvimento da ONU. Neste relatório, o desenvolvi- de interesse de grupos e classes sociais e, portanto, não
mento sustentável é aquele que “atende às necessidades é um fenômeno ou processo neutro; e, de outro lado, que
do presente sem comprometer a possibilidade de as ge- o desenvolvimento, por não se constituir em um fenôme-
rações futuras atenderem às suas próprias necessidades”, no padronizado, é uma possibilidade aberta de construção
ou seja, aquele que “garante um crescimento econômico de novas regras e práticas institucionais, a partir do en-
vigoroso e, ao mesmo tempo, social e ambientalmente sus- volvimento de múltiplos atores sociais. Essa compreensão
tentável”. Esta concepção de desenvolvimento sustentável está subjacente aos conceitos de desenvolvimento local e
tem como princípio norteador o crescimento econômico e desenvolvimento local sustentável, termos que aparecem
a eficiência na lógica do mercado. Nessa concepção, o livre constantemente na mídia, nos discursos e nos programas e
mercado é o instrumento que permite a distribuição efi- projetos de desenvolvimento. São termos igualmente po-
ciente dos recursos planetários e, neste sentido, a relação lissêmicos, ou seja, termos que têm muitas significações e
trabalho e meio ambiente está subordinada ao capital, com que geram múltiplas interpretações.
sérias consequências para o mundo do trabalho e para os Nessa concepção de desenvolvimento local é atribuído
recursos naturais. ao indivíduo, na sua inter-relação com a sociedade local, o
Uma segunda concepção de desenvolvimento susten- protagonismo no desencadeamento de ações que visam à
tável entende que a sustentabilidade seria alcançada, por mudança. Esse assumir de responsabilidade é considerada
um lado, com a preservação e construção de comunidades como uma das formas de garantir a sua sustentabilidade, o
sustentáveis “que desenvolvem relações tradicionais com que implica uma mudança de postura e de comportamen-
o meio físico natural de que depende sua sobrevivência” to do indivíduo em sua relação com o contexto social e da
e, por outro lado, com o fortalecimento dos Estados na- comunidade na qual está inserido. Têm sido várias as inicia-
cionais, que poderiam implementar políticas em oposição tivas oficiais e de instituições da sociedade civil que visam
aos objetivos do livre comércio e à erosão das fronteiras estimular as comunidades a assumirem um papel central
nacionais. Esta concepção, como observam os citados au- na história de construção de seu território. Isso tem sido

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feito mediante o investimento em situações que propiciem segmentos que a integram. Assim, quando se faz referên-
a formação da consciência crítica e induzam a ampliação cia à possibilidade de a escola, no Brasil, contribuir efetiva-
da democracia representativa no sentido da ampliação da mente para o combate à exclusão social não se pode dei-
democracia participativa. xar de levar em conta que tal situação só será modificada
Contudo, essas situações somente são viabilizadas quando questões de ordem social, política e econômica
quando há o reconhecimento de parte das comunidades forem equacionadas. Nessa direção, um passo importante
envolvidas que não se trata de uma questão a ser condu- será dado quando os governos, numa ação de colaboração
zida de forma individual, mas na ação coletiva, abrangen- entre os entes federados, forem efetivamente capazes de
do as dimensões social política, econômica e cultural. Isso estabelecerem políticas globais que favoreçam a inclusão.
implica o reconhecimento da necessidade de investimen- Muito embora o Brasil, nas últimas décadas, tenha
to em processos formativos que favoreçam o domínio de avançado no tocante à garantia dos direitos econômicos,
conhecimentos para alargar a compreensão dos processos sociais e culturais, há certamente um longo caminho a
históricos sociais e ampliar a capacidade de intervenção na percorrer para que sua aplicabilidade seja universal. É im-
sociedade tendo em vista a construção da justiça e igual- portante reconhecer o fosso que existe entre aqueles que
dade social. gozam plenamente dos direitos de cidadania e aqueles que
Essa é, sem dúvida, uma das razões da centralidade da não desfrutam das mínimas condições de sobrevivência. E
educação para as estratégias de desenvolvimento defendi- esses cidadãos, que constituem um grande contingente
da por diversos grupos no mundo, ao lado daqueles que da população brasileira, estão a clamar por justiça social e
consideram a importância da educação seja em função das igualdade de oportunidades em todos os campos.
exigências decorrentes das mudanças científico-tecnológi- Para diminuir essa distância, é necessário que o poder
cas que ocorrem no mundo da produção e do trabalho, público, nas diversas instâncias, desenvolva políticas públi-
seja em função de novas condições que as sociedades cada cas em todos os campos, de modo a garantir a efetiva-
vez mais complexas impõem à efetivação da cidadania. ção desses direitos, e que a população, mediante ação dos
Dessa forma, espera-se da educação e da escola que, setores organizados, participe ativamente da formulação
além do cumprimento das funções sociais e pedagógicas e implementação das políticas que tenham a igualdade
que lhes são próprias, sejam indutoras de novas formas de
como cerne. Nesse processo, vale destacar, a educação é
sociabilidade humana que influenciem o padrão de desen-
portadora de uma promessa fundamental: contribuir para
volvimento e democracia.
dotar a sociedade de mecanismos e instrumentos que pos-
Há autores que advogam uma articulação estreita en-
sibilitem acessar e cobrar legitimamente os direitos da ci-
tre a ação pedagógica e o desenvolvimento, daí decorren-
dadania, os quais, no Brasil, estão inscritos na Constituição
do uma agenda a ser cumprida pela escola. Nessa visão,
Federal.
a escola teria um papel central a desempenhar no projeto
O retrato da escola no Brasil revela com muita nitidez a
de desenvolvimento. Todavia, muito embora seja uma va-
existência desse enorme fosso social e as estatísticas mos-
riável importante num projeto de desenvolvimento o en-
volvimento da escola com a comunidade, é necessário ter tram em que medida a desigualdade tem decrescido no
cautela nessa questão para evitar que a finalidade última país. O conhecimento desses dados e a discussão contex-
da escola – a aprendizagem dos estudantes e a sua for- tualizada sobre os mesmos constituem requisitos impor-
mação como cidadãos –, seja subordinada aos objetivos tantes para a construção solidária de caminhos que per-
de projetos econômicos. Defende-se a tese de que quan- mitam à escola cumprir a sua função social em favor da
to mais cumpre sua função social mais a escola contribui formação cidadã.
para a formação de homens e cidadãos íntegros, críticos e Muito embora o Brasil, nas últimas décadas, tenha
participativos. Dessa forma, a inserção da escola na comu- avançado no tocante à garantia dos direitos econômicos,
nidade orienta-se por objetivos pedagógicos e valores da sociais e culturais, há certamente um longo caminho a per-
cidadania. correr para que sua aplicabilidade seja universal.
Com essa perspectiva, abordaremos, neste tópico,
aspectos importantes da escola pública, considerando o 1.1 Manchete de jornal: “Rico empobrece e desi-
contexto sócio-político-econômico e os processos de glo- gualdade diminui”
balização em curso no mundo e no Brasil, com seus desdo- “Rico empobrece e desigualdade diminui”. Essa é a
bramentos no plano educacional. Para tanto, procuramos manchete publicada no jornal noticiando, mais uma vez,
refletir sobre os limites e as potencialidades de a escola os resultados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra
pública exercer sua função na realidade brasileira, median- de Domicílios) de 2004, divulgada em 25 de novembro de
te o levantamento de indicadores que sinalizam, de um 2005, pelo IBGE. Tal manchete poderia induzir o leitor a ver
lado, para a continuidade do padrão excludente e seletivo com otimismo a situação nacional, nos primeiros anos des-
vigente na sociedade e, de outro lado, para as mudanças te século, se não atentasse para o que esses números reve-
positivas que estão ocorrendo em muitas esferas. lam sobre a situação dos brasileiros e brasileiras no tocante
Vale a pena, contudo, enfatizar que debater a respon- à renda, ao trabalho e à educação, entre outros indicadores.
sabilidade da escola quanto à inclusão social significa, no A PNAD traça um retrato bem detalhado do país. Va-
fundo, discutir a possibilidade de uma nova organização mos ver o que dizem as estatísticas para que se possa
societal capaz de garantir a plena cidadania de todos os melhor entender o cenário no qual se insere a escola no

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Brasil. Os dados sobre a taxa de desemprego, a renda do menos o ensino médio completo) ocorreu um crescimento
trabalhador, escolaridade, dentre outros, possibilitam uma de 8,1% em relação a 2003. Analisando esses dados, o eco-
compreensão mais ampliada dos fatores socioeconômicos nomista Marcelo de Ávila, do IPEA (Instituto de Pesquisa
que interferem na escola frequentada pelos brasileiros e os Econômica Aplicada), chama a atenção para o lado perver-
caminhos que se vislumbram para sua melhoria. so deste movimento, tendo em vista que “a grande oferta
de trabalhadores qualificados impede o avanço do rendi-
Diminuiu o desemprego no Brasil? mento, já que sobra mão-de-obra de qualidade e as firmas
Nesse sentido, uma primeira pergunta se impõe: será podem contratar esses profissionais pagando menos”. Os
que diminuiu o desemprego no país? Vamos procurar a dados comprovam que o contingente com menos de sete
resposta na PNAD: esta mostra que, muito embora tenha anos de estudo perdeu espaço no mercado de trabalho:
aumentado o número de empregos (3,3% em relação a a taxa passou de 50,6% em 2003 para 48,6%. Esses dados
2003), com o acréscimo de 2,7 milhões de trabalhadores mostram, de uma determinada perspectiva, a necessidade
ocupados, durante o ano de 2003, o que fez cair a taxa que o país tem de ampliar a oferta da escolarização básica,
de desemprego de 9,7% para 9%, o país ainda apresenta ou seja, de garantir que o estudante efetivamente cumpra
um quadro preocupante, com 8,2 milhões de desempre- as etapas do Ensino Fundamental e Médio, muito embo-
gados. Diante desse quadro, pode-se perguntar: quais são ra todos saibam que as razões que geram essa situação
os principais fatores que concorrem para o desemprego no estão situadas no plano econômico-político. Examinemos
país? Muitas são as respostas que os analistas da política um pouco mais a PNAD e vejamos como se comportam as
econômica apresentam, contudo, duas explicações, dentre estatísticas em relação à situação da mulher no mercado
outras, parecem ser mais convincentes. Na perspectiva de de trabalho.
alguns analistas, deve-se essa taxa de desemprego no país,
principalmente, a dois fatores: a) as mudanças que ocorre- O nível de ocupação das mulheres foi o mais alto
ram na economia brasileira provocadas pela abertura co- desde 1992
mercial, com ganhos expressivos de produtividade e corte Quando a análise focaliza a situação da mulher no
de postos de trabalho; e b) o baixo crescimento econômico mercado do trabalho, os dados permitem constatar que
apesar de ter elevado a presença no emprego, esse é de
que marcou a segunda metade da década de 1990 e o co-
pior qualidade e menor remuneração. Com efeito, o em-
meço dos anos 2000.
prego feminino cresceu mais (4,5%) do que o masculino
A indústria procurou se modernizar para se adaptar à
(2,4%), no entanto, o emprego sem carteira, que paga
competição, demitindo mais ou contratando menos e ele-
salários menores, aumentou 12,3% em 2004. Uma outra
vando a produtividade. Como demanda serviços de outros
situação correlata chama a atenção: persiste a diferença
setores, o ajuste da indústria se espalhou por toda a eco-
de renda – os homens ganhavam, em média, R$ 835, e as
nomia. Um dos desdobramentos dessa situação pode ser mulheres, R$ 579. Permanece ainda a discriminação com
visto em relação aos jovens, às mulheres e aos negros: são relação à participação das mulheres no mercado de tra-
os mais afetados no que tange aos problemas relacionados balho quando se observa que tal participação ainda está
ao emprego. Os jovens, que representam 47% da popula- 20 pontos abaixo da taxa masculina. Essa diferença ganha
ção desempregada, continuam com grandes dificuldades cores vivas quando se verifica que, muito embora a oferta
de encontrar oportunidades de emprego, mesmo quan- de emprego seja crescente para as mulheres, “há nichos
do terminam a universidade. Os empregos mais acessí- ocupacionais de pouco prestígio, pouco poder e salários
veis são, em geral, de baixa remuneração, precários e sem baixos que concentram muito da força de trabalho femi-
atrativos. No caso das mulheres e dos negros, além de se nina. O principal dentre tais nichos é a área de serviços
defrontarem, frequentemente, com práticas preconceituo- domésticos, onde 95% do setor é composto por mulheres”
sas e discriminatórias, que se traduzem nas dificuldades de (UNCT, p. 9). É, também, reduzido o acesso das mulheres
conseguirem emprego, ainda recebem baixos salários ao às posições de gerência e os salários são mais baixos para
realizarem o mesmo trabalho. Analisando-se esse quadro, as mulheres nos mesmos cargos. Observa-se que, dada
observa-se que a taxa de desemprego das mulheres é 50% esta permanente discriminação, quanto mais elevado o ní-
mais alta do que a dos homens e que o desemprego é mais vel educacional, maior a diferença. As mulheres enfrentam
alto entre mulheres e negros do que entre homens bran- também taxas mais elevadas de desemprego e subempre-
cos, com os mesmos níveis de escolaridade. go. Passemos a observar, a seguir, o que vem acontecendo
em relação à renda obtida pelo trabalhador, o que nos per-
Diminui o número de empregos na faixa com ensi- mite refletir sobre a qualidade de vida numa economia de
no fundamental incompleto mercado, considerando o quadro de desigualdade do país.
Analisando-se a situação de emprego no país, verifi-
ca-se que o mercado de trabalho se fecha para os traba- O que muda na desigualdade da renda do traba-
lhadores com menor índice de escolaridade: de 2003 para lho?
2004, o número de empregos na faixa com ensino funda- Os dados revelam que a renda média do trabalhador
mental incompleto (até sete anos de estudo) caiu 1,1%, permaneceu estagnada, sem apresentar recuperação das
equivalente a 436 mil vagas a menos nesse contingente. O perdas que ocorrem desde 1996, quando a renda atingiu
ganho de emprego se concentrou entre os que estudaram seu ponto mais alto. Todavia, considerando esse quadro,
mais. No segmento com mais de 11 anos de estudo (ao analistas mostram que, mesmo não ocorrendo um cresci-

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BIBLIOGRAFIA

mento na renda, outros fatores como o recuo da inflação e Acréscimo de 1 milhão de novos estudantes entre
o aumento real do salário mínimo contribuíram para uma 2002 e 2004
melhor distribuição da renda e do trabalho. Com efeito, a Em relação ao ensino, constata-se que o setor privado
renda média cresceu 3,2% para a metade dos trabalhadores ampliou seu espaço na educação brasileira de 2001 a 2004.
que ganham menos e caiu 0,6% nos 50% que ganham mais. As escolas e universidades particulares atendiam, em 2001,
a 9,1 milhões de alunos. Quatro anos depois, passaram a
A participação na renda dos 50% mais pobres cres- atender a 10,3 milhões, ou seja, sua participação no total de
ceu entre 2002 e 2004
estudantes passou de 17,9% para 19,4% do total. Contudo,
Os dados apresentados reforçam o que tem sido uma
essa variação foi diferenciada entre os níveis de ensino. No
das características do Brasil: a permanência da forte concen-
tração de renda mesmo quando se observa alguma variação nível superior, as instituições de ensino particulares cres-
em relação àqueles que se encontram na base da pirâmide ceram 36,4% em número de alunos, passando a absorver
social. Com efeito, em relação à concentração de renda, ve- 948 mil estudantes a mais. Já no ensino médio, o efeito foi
rifica-se uma queda no rendimento dos mais ricos: de 1966 justamente o contrário, e o setor privado diminuiu 24,9%,
a 2004, a renda média dos 10% com maiores ganhos caiu perdendo 477 mil alunos. Com isso, as escolas privadas de
22,7% e o rendimento médio dos 50% de trabalhadores com ensino médio, que antes atendiam a 21,4% do total de es-
menor renda teve uma queda menor, de 4,31%. Esse quadro tudantes, perderam espaço para as públicas e representa-
mostra que, embora ambos os grupos tenham perdido, hou- vam, no ano passado, apenas 15,1% do total de alunos. Al-
ve uma melhoria na distribuição de renda, tendo em vista guns analistas, para explicarem esta situação, consideram a
que os mais pobres perderam menos do que os mais ricos. possibilidade de estar havendo alguma migração das esco-
Todavia, é importante destacar que ainda estamos longe de las particulares para as públicas, tendo em vista a dinâmica
um patamar de equidade de renda no Brasil, considerando o de expansão da educação pública que pode absorver parte
elevado grau de concentração de renda e a magnitude das
da demanda que era da rede privada. A PNAD 2004 mostra
desigualdades sociais que ainda imperam no país.
também que o ritmo de redução na taxa de analfabetismo
A população brasileira está mais velha adulto continua lento.
Em relação à estrutura etária da população, a tendência
revelada nas pesquisas do IBGE mostra que a população Cai a taxa de analfabetismo das pessoas acima de
brasileira está mais velha. O país já tem 120 idosos para 15 anos
cada 100 crianças. O número de idosos passou a ser maior De fato, observa-se que o número de analfabetos com
do que o de criança a partir de 2002. Em 2004, a relação já mais de 15 anos de idade, que era de 14,788 milhões em
era de 120,1 idosos para cada 100 brasileiros com menos 2002, caiu para 14,654 milhões em 2004, o que constituiu
de cinco anos de idade. Tal quadro interfere nas opções uma redução de 134 mil analfabetos. Com isso, a taxa foi
concernentes às políticas públicas. diminuída de 11,8% em 2002 para 11,2% no naquele ano.
Alguns analistas observam que se há um contingente Analisando esta situação, José Marcelino Pinto observa que
menor de crianças, poderão sobrar mais recursos para au- “A redução do analfabetismo parece ocorrer muito mais
mentar o gasto com a escola pública. Por outro lado, ha- por um movimento inercial, em razão da morte das gera-
verá um contingente crescente de aposentados que devem ções mais velhas, do que pelo efeito de eventuais políticas
ser sustentados, do ponto de vista da previdência pública, para a área, que são inconsistentes e intermitentes”. Con-
por um número cada vez menor de jovens e adultos em tudo, de outro lado, não se pode deixar de reconhecer que
idade ativa, o que é um fenômeno mundial. Uma das expli- ocorreram algumas mudanças positivas.
cações para este fenômeno é a queda na taxa de fecundi-
dade da mulher brasileira. Neste ano, assim como já havia Aumentou o número de anos médio de estudo
acontecido no ano anterior, ela chegou a 2,1 filhos por mu- Todos os dados de alfabetização e escolarização de-
lher. Ao mesmo tempo em que nascem menos brasileiros, monstraram avanços quando comparados com os da dé-
aumenta também a expectativa de vida dos mais idosos. cada passada. Na comparação de 2003 para 2004, a única
A queda na fecundidade e o aumento da população idosa faixa etária do ensino básico onde foi verificado avanço foi
são uma tendência verificada em todas as regiões do Brasil, na de 5 e 6 anos, onde a porcentagem de crianças fora da
mas seus efeitos estão mais acelerados nas regiões Sul e escola caiu de 21,3% para 18,2%. Na faixa de 7 a 14 anos
Sudeste. Tendo em vista que esse fenômeno é decorren- não houve variação de 2003 para 2004 nesse percentual,
te, sobretudo, do acesso às informações entre as mulheres que ficou em 2,8%. De 15 a 17 anos também houve ten-
em termos de opção do controle da natalidade e, de outro dência de estabilidade, mas com ligeiro aumento de 17,6%
lado, por conta do acesso aos serviços de saúde pública para 17,8%. Esses dados levam o mesmo pesquisador a
e avanços das ciências médicas no controle das doenças, considerar que “a estabilidade na taxa de escolarização de
melhor padrão de alimentação, cuidado com o corpo, dis- 7 a 14 anos é preocupante. O aumento de 9.400 no número
seminação das informações sobre saúde e doença, pode- de crianças fora da escola de 2003 a 2004 de 7 a 14 não
-se afirmar que é necessário investir nesse segmento para é nada positivo, já que o ensino nesta faixa é obrigatório
sua maior qualificação, o que tem a ver com as condições desde 1971”. Mas aponta um dado positivo importante:
socioeconômicas e com a educação. “O que é positivo é a melhora da média de anos de estu-

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BIBLIOGRAFIA

do, fato que provavelmente está ligado aos programas de Um dos caminhos para efetivar tal análise é considerar o
correção de fluxo escolar”. Esses dados relativos à educa- que reza a Constituição Federal de 1988 sobre a educação.
ção que foram aqui retratados traduzem, de certo modo, A educação é definida no artigo 205, transcrito a seguir,
a desigualdade no país e induzem a uma reflexão crítica como um direito de todos e um dever do Estado: A educa-
a respeito da máxima anunciada, ao longo das décadas, ção, direito de todos e dever do Estado e da família, será
que a educação, como direito inalienável dos seres huma- promovida e incentivada com a colaboração da sociedade,
nos, é indispensável para promoção do desenvolvimento. A visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu prepa-
análise do padrão educacional brasileiro suscita perguntas ro para o exercício da cidadania e sua qualificação para o
quanto à situação da educação básica de outros países. trabalho. Isso significa que todo cidadão tem direito ao
acesso, à permanência e de ser bem-sucedido na educa-
1.2 O que ocorre com a educação em outros países? ção escolar básica.
Com efeito, se nos reportarmos aos objetivos de de- A responsabilidade de assegurar este direito é, sobre-
senvolvimento que os Chefes de Estado e de Governo de tudo, do Estado e, por conseguinte, dos governos nas três
189 países se comprometeram a cumprir, para o ano de esferas jurídico-administrativas: União, estados e municí-
2015, durante a Cúpula do Milênio das Nações Unidas, ce- pios. Sem dúvida, a ação do Estado, com a colaboração
lebrada em 2000, ficaremos com a sensação de otimismo. da família e da sociedade, é imprescindível neste campo,
Naquela ocasião foram priorizados como Objetivos do Mi- principalmente em um país que apresenta um quadro de
lênio – componentes da agenda global do século XXI, o desigualdades sociais como o Brasil, produzidas que são
que segue: no âmbito do capitalismo mundial. O Estado intervém no
1. Erradicar a extrema pobreza e a fome; campo educacional mediante um conjunto de políticas
2. Atingir o ensino básico universal; públicas que são formuladas e desenvolvidas nessas três
3. Promover a igualdade entre os sexos e a autonomia instâncias, muitas vezes com a participação da sociedade
das mulheres; civil (comunidades, entidades não-governamentais, sindi-
4. Reduzir a mortalidade infantil; catos, entre outros) e que são traduzidas em programas,
5. Melhorar a saúde materna; projetos e ações, sejam de abrangência nacional, estadual
6. Combater o HIV/AIDS, a malária e outras doenças; ou municipal. A Constituição Federal atribui ao Estado a
7. Garantir a sustentabilidade ambiental; obrigatoriedade de garantir os direitos econômicos, sociais
8. Estabelecer uma parceria mundial para o desenvol- e culturais para todos os brasileiros. Isso significa que a
vimento. Constituição brasileira incorpora a universalidade e a in-
divisibilidade dos direitos humanos que se expressam na
Contudo, o otimismo logo diminui quando se tem em garantia dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao
mãos, cinco anos depois, os números apresentados pela lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à mater-
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência nidade e à infância e à assistência aos desamparados.
e a Cultura (Unesco) em seu último informe, no qual res- Cada governante, ao assumir o cargo, tem, como é de
salta que ainda falta muito para se alcançar um direito bá- praxe (pelo menos, formalmente), um programa a ser exe-
sico: a alfabetização. A Unesco aponta, neste trabalho, que cutado e, ao mesmo tempo, é chamado a decidir sobre a
a quinta parte da população adulta do planeta não tem continuidade de certas ações iniciadas no governo ante-
acesso à educação e, portanto, não sabe ler nem escrever. rior. Tem ocorrido, com muita frequência, com a mudança
Destaca que em 12 países se reúnem as três quartas partes dos governos, uma interrupção nas ações pedagógico-
dos analfabetos do mundo. A Ásia meridional e ocidental -administrativas que vêm dando certo, o que prejudica o
apresenta uma taxa de alfabetização de apenas 58,6%, se- atendimento das demandas da população. Constatada tal
guida pela África Subsahariana (59,7%) e os estados árabes situação, cabe aos setores organizados da sociedade me-
(62,7%). A situação na América Latina e Caribe também é diar o processo de demandas da população junto a essas
preocupante. Segundo este informe, mais da metade dos instâncias, especialmente no que diz respeito à garantia de
países da região investem em educação menos de 5% de acesso e permanência bem-sucedida dos estudantes nas
seu produto interno bruto (PIB), e alguns governos apenas
redes escolares. As obrigações do poder público em rela-
1% a este setor. Como podemos verificar, a problemática
ção ao campo educacional estão também definidas na Lei
relativa à educação dos povos constitui uma preocupação
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Em relação ao
mundial o que se explica pela centralidade que o conhe-
acesso à escola, a LDB, no art. 5º (incisos I, II, III), é muito
cimento assumiu nos processos produtivos e nos desafios
clara ao definir as responsabilidades das diversas instâncias
para o exercício da cidadania plena no mundo contempo-
e dos gestores da escola, a saber:
râneo.
I – recensear a população em idade escolar para o en-
sino fundamental, e os jovens e adultos que a ele não tive-
1.3 As políticas e a gestão da educação básica no
cenário de desigualdades ram acesso;
Considerando essas informações que nos permitem II – fazer-lhes a chamada pública;
ter mais clareza sobre diversos aspectos da educação no III – zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela frequên-
contexto mundial, vamos analisar de modo sucinto o que cia à escola;
tem sido feito pelo poder público nesta seara, no Brasil.

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BIBLIOGRAFIA

Cumprir essas exigências da LDB requer dos sistemas participam da vida nacional, reivindicando e exercendo di-
de ensino e das escolas capacidade pedagógica e admi- reitos, conhecendo e praticando deveres, a partir de um
nistrativa para a instituição de condições favoráveis ao de- conjunto de normas jurídico-políticas que regulamentam
sempenho das mencionadas responsabilidades. Isso não o convívio social, determinando os limites entre o indivi-
constitui, no entanto, uma tarefa simplesmente técnica, dual e o coletivo, entre o público e o privado. E caberia à
dado que implica tomada de decisão política de governos escola a transmissão e consolidação desses novos valores”
nas diversas instâncias. (Fogaço 1998: 11). A educação escolar, ao internalizar prin-
Vejamos alguns exemplos: se em um determinado cípios e valores, teria como um de seus principais objetivos
município não ocorreu, nas instâncias competentes, uma contribuir a socialização, em sentido amplo, envolvendo
definição política no sentido de priorizar investimentos na todos os aspectos da vida em sociedade. Tendo em vista o
rede de ensino, como poderá ser ampliado o parque es- cumprimento deste papel, a escola não deve se descurar da
colar ao ser constatado um aumento de demanda por en- preparação para o exercício da cidadania. Nessa direção, a
sino fundamental? Se não forem criados mecanismos que história mostra que nos países que investiram na educação,
permitam acompanhar o desempenho pedagógico dos os sistemas nacionais de educação chegaram, mais rapi-
estudantes como um dos requisitos do Projeto Político- damente, à universalização do ensino elementar, inclusive
-Pedagógico da escola, como será possível “zelar pela fre- como um produto das lutas sociais por maior igualdade de
quência à escola” exigida em lei, sem que isso se torne uma oportunidades.
tarefa meramente burocrática sem efeitos relevantes para De fato, nos países do capitalismo avançado, ainda que
a aprendizagem? Nessa mesma linha de raciocínio, passe- a universalização do ensino elementar não tenha significa-
mos a analisar o artigo 12, incisos VII e VIII da LDB, quando do para todos o mesmo patamar de ascensão social, cer-
explicita mais uma vez as obrigações e responsabilidades tamente garantiu a disseminação de princípios e valores
dessas instâncias, ou seja: relativos ao exercício da cidadania, bem como a base de
VII - informar os pais e responsáveis sobre a frequência conhecimentos necessária a todos os indivíduos, o que in-
e o rendimento dos alunos, bem como sobre a execução de fluenciou a estruturação de sociedade menos desiguais. De
sua proposta pedagógica;
fato, “sem querer atribuir à escola uma influência maior do
VIII – notificar ao Conselho Tutelar do Município, ao
que ela possa ter, pode-se afirmar que, no mundo desen-
juiz competente da Comarca e ao respectivo representante
volvido, a educação escolar colaborou fortemente para que
do Ministério Público a relação de alunos que apresentem
quantidade de faltas acima de cinquenta por cento do per- se estruturassem sociedades menos desiguais, instrumen-
centual permitido. talizando os indivíduos para uma participação mais efetiva
Atender ao disposto no inciso VII deste artigo da LDB tanto no nível sócio-político quanto no nível produtivo”
implica, para as redes de ensino e para as escolas, o com- (idem). Na América Latina, este movimento ocorreu dife-
prometimento com a construção de um projeto político- rentemente. Como afirma Fogaço, ao subdesenvolvimento
-pedagógico cujas dimensões pedagógicas e administrati- econômico correspondeu um “subdesenvolvimento sócio-
vas sejam contempladas em ações concretas do cotidiano. -político”, gerando sociedades marcadas pelas desigualda-
Nessa perspectiva, o fato de manter os pais e responsáveis des, nas quais CIDADANIA quase sempre é sinônimo de
atualizados quanto ao desempenho escolar do estudante PODER ECONÔMICO. A educação escolar se implantou
já se configura como resultado de determinadas concep- com um caráter altamente seletivo, transformando-se em
ções, opções e práticas pedagógicas efetivadas no dia-a- importante instrumento de legitimação das desigualdades
-dia da escola. Sabemos todos que, por várias razões, nem existentes. O que ocorreu no Brasil não foi diferente.
sempre a lei é cumprida. Em relação a tal circunstância, o
povo é sábio quando menciona que a “lei é morta”. Ora, é 2.1 A escola e o desenvolvimento local: a interação
preciso atentar ao fato de que manter viva a lei que traduz possível
o direito à educação não só depende do nível de organiza- Com as críticas crescentes à globalização neoliberal
ção da população como também da capacidade que tenha que aprofunda a desigualdade social e que se expressa na
esta população organizada de exigir a sua aplicação. Não exclusão social, o desenvolvimento local passa a ser con-
podemos esquecer: foi fruto dessa organização e das lutas siderado uma saída para a questão da pobreza, das de-
sociais que se configuraram ao longo do tempo os siste- sigualdades pessoais e regionais e da própria questão da
mas educacionais. sustentabilidade. Mesmo que o debate sobre esta questão
ainda mostre muitas ambiguidades, importa destacar que
II – A garantia do acesso a uma escola de qualidade o tema desenvolvimento local sustentável está na pauta.
como uma das condições de desenvolvimento do país Esta proposta, que contempla uma concepção de desen-
Os sistemas nacionais de educação, no formato que te- volvimento “de baixo para cima”, incorpora uma visão mais
mos hoje, surgiram, no mundo ocidental, no momento em orgânica do desenvolvimento. Tem como característica
principal a valorização da identidade sociocultural de cada
que despontavam os Estados Nacionais e se firmavam as
território, apoiando-se nas associações comunitárias e nas
bases da moderna sociedade democrática. “A emergência
instituições locais. Visa ao fortalecimento e à diversificação
do indivíduo – o ser livre para tomar decisões, ter e exprimir
da economia local como condição para alcançar uma ver-
opiniões – e a de um ideal de igualdade conduziram à cons-
dadeira melhoria na qualidade de vida das pessoas.
trução de um conceito de cidadania onde todas as pessoas

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BIBLIOGRAFIA

Os setores que defendem essa concepção afirmam que cessário tomar conhecimento e pôr em discussão o Plano
uma proposta dessa natureza não pode ser concretizada Diretor da cidade que lhe permita identificar a projeção de
apenas pelo Estado. Ela requer a congregação de esforços empreendimentos que vão alterar a vida do bairro, quer
de outros agentes e instâncias e a participação dos setores seja em decorrência da implantação de indústria ou de pólo
organizados da sociedade civil. Nessa dinâmica, a escola industrial, comercial ou de serviço, quer seja em virtude da
também é envolvida no que se relaciona com os proces- implantação de projeto de urbanização ou construção de
sos formativos. A escola está situada em um determinado rodovias de grande porte que terá impacto no bairro, entre
espaço e pode desempenhar um papel importante no seu outros. Impõe-se, do mesmo modo, o conhecimento das
entorno visando contribuir para o exercício coletivo da ci- potencialidades locais, das riquezas materiais e culturais,
dadania. Dependendo do nível de inserção e compromisso da vocação econômica local, da economia informal, dentre
com a comunidade, a escola constitui um espaço estraté- outras. Apreender a dimensão sociocultural implica o co-
gico para o desenvolvimento de ações coletivas que mate- nhecimento de lugares de aprendizagens diversos, sejam
rializam o exercício de sua função social. Esse papel não é institucionais – como espaços culturais governamentais, as
fácil de ser exercido, haja vista que a escola, no Brasil, está organizações não-governamentais (ONGs) que desenvol-
imersa nas relações sociais capitalistas que põem limites à vem projetos socioeducativos na busca da atenção e do
sua ação. Contudo, de modo contraditório, a escola pode reforço da aprendizagem escolar – ou não institucionais.
contribuir, sobretudo, com a indução sistemática quanto à Neste caso, há diversas comunidades de interesse or-
necessária articulação entre as ações pedagógicas e políti- ganizadas pelos jovens que promovem as festas do bairro,
cas para a formação de um cidadão crítico e criativo capaz a vida religiosa, a comunicação ( jornais, rádio comunitária,
de concorrer para as mudanças profundas na sociedade. novenas, cultos religiosos diversos, associação de amigos),
Daí a importância de se buscar a construção coletiva do entre outras. Em se tratando de esportes e lazer, é possível
projeto político-pedagógico que se constitua efetivamente encontrar diversos grupos de jovens executando ou inte-
o norte das ações pedagógicas e curriculares desenvolvi- ressados em iniciar algum tipo de atividade dessa natureza.
das pela escola. É importante considerar como lugares de aprendizagens o
A realidade socioeconômica brasileira traz para o in- movimento ecológico, de gênero, étnico ou de defesa de
terior da escola situações e problemas que ultrapassam a direitos, a exemplo do movimento de defesa dos direitos
sua capacidade de atuação, a exemplo do desemprego es- dos meninos e meninas de rua e do movimento dos sem-
trutural que atinge os jovens. Como já referido, os dados -terra. A escola deve estar atenta, também, ao fato de que
nas periferias das grandes cidades, particularmente, crian-
do IBGE mostram que parcela significativa dos jovens não
ças e jovens vivem em contextos socioeconômicos que os
encontra trabalho. Os jovens são vítimas desse processo e
colocam em situação de vulnerabilidade e risco social. Nas
são atingidos em sua autoestima, tomando, muitas vezes,
ruas, ou imersos no mundo do trabalho infantil, crianças
caminhos que deságuam na violência. Apresenta-se, assim,
e jovens transformam-se em ambulantes, biscateiros, ca-
nesse contexto, um grande desafio para a escola: contri-
tadores de lixo, carregadores de compras, marisqueiros,
buir com a formação cidadã dos jovens. O desafio maior é
empregadas domésticas, babás, ajudantes de oficinas etc.,
exercer essa função em ambientes desfavoráveis. Todavia, muitos deles constrangidos a fazer “bicos” para auxiliar o
em que pese a baixa expectativa que reina na sociedade orçamento familiar ou participar de outros tipos de ativi-
em função da falta de oportunidades de trabalho, a escola dades que se conflitam com a lei. São circunstâncias deter-
precisa participar no esforço de favorecer a construção de minadas pela conjuntura sócio-histórica que estão a exigir
perspectivas para os estudantes, bem como para a comuni- medidas políticas que garantam às crianças e aos jovens a
dade em que está inserida. A cidade e o bairro são espaços inserção no mundo do trabalho, na convivência social e fa-
sociais que compõem, juntamente com a escola, o ambien- miliar exercitando a sua cidadania. Isso, por certo, constitui
te de formação das crianças e jovens matriculados no siste- um processo, mas, enquanto não avança a escola de tempo
ma público de ensino. A escola precisa nesse território pro- integral, é importante a construção de espaços que opor-
mover o debate do contexto social, das políticas públicas, tunizam sua ocupação cidadã. Espaços que contribuam
com a finalidade de contribuir para a ampliação de espaços para que estes se tornem sujeitos de direito capazes de
onde a juventude possa exercitar uma ocupação cidadã. intervenção no espaço público e na organização da popu-
Projeto de vida do estudante, projeto de desenvolvimen- lação juvenil; que ampliem a sua capacidade de sonhar, de
to local e projeto político-pedagógico precisam ter estreita defender seus direitos, de exercer a cidadania e de projetar
relação. A escola precisa saber o que está acontecendo no o futuro.
seu bairro. A escola precisa saber e colaborar com a cons-
trução de novas perspectivas para os estudantes. III – Conselho Escolar: incentivador da articulação
escola/sociedade
2.2 A realidade local como objeto de atenção e es- Pretende-se neste tópico possibilitar aos diferentes
tudo da escola segmentos que compõem a unidade escolar e a comuni-
Para exercer um papel ativo junto aos estudantes, no dade local, especialmente aos membros do Conselho Esco-
sentido de assegurar condições satisfatórias às aprendi- lar, identificar na sociedade brasileira práticas emergentes
zagens significativas, a escola precisa debater os aspectos que favorecem a construção da cidadania. Práticas sociais
econômicos, políticos e sociais do local em que está inseri- as mais diversas, que são traduzidas numa intensa eferves-
da. Desse modo, em relação à dimensão econômica, é ne- cência cultural e social, passam despercebidas ou não são

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BIBLIOGRAFIA

legitimadas ou apoiadas não só pela escola, como também Quantas e quantas vezes os estudantes se deparam,
pelos sistemas de ensino, ou mesmo, pela sociedade. O em seu dia-a-dia, com paisagens portadoras de beleza
que mais se evidencia é a existência de um discurso institu- que suscitam emoções, como uma árvore florida que reluz
cional que insiste em ignorar a capacidade de intervenção quando os raios de sol iluminam sua copa, e não chegam
e as ações que estão em marcha, organizadas pelas comu- a perceber essa dádiva generosa que a natureza oferece
nidades, visando à construção de um mundo mais igual, pois não tiveram a oportunidade de aprender a observar e
ético, fraterno e solidário. a curtir o que de valioso lhes cercam? Cabe à escola propi-
Perceber, compreender, criticar e, se necessário, alterar ciar tais oportunidades de vivências de experiências posi-
a sua prática pedagógica constitui um desafio para a es- tivas e gratificantes, concorrendo, assim, para, de um lado,
suavizar um pouco o desgastante cotidiano da maioria das
cola, o que pode ser efetivado mediante um conjunto de
crianças e jovens do Brasil e do planeta e, de outro lado,
ações norteadas pelo projeto político-pedagógico cons- suscitar nos estudantes o desejo de lutar para transformar
truído coletivamente. Nessa direção, pode-se considerar a as condições adversas que tanto dificultam a realização
multiplicidade de formas de atuação ao alcance das escolas plena dos homens e das mulheres nessa sociedade marca-
e de seus profissionais, tais como: ν mapear as organiza- da pelo signo da exploração econômica.
ções populares existentes no bairro; ν promover assem- É necessário atentar que para possibilitar um ambien-
bleias externas, em parceria com as entidades da sociedade te favorável às aprendizagens significativas das crianças e
civil, para analisar ou propor políticas de desenvolvimento jovens que se encontram em situação de maior vulnerabi-
local; ν inventariar a situação do bairro com o objetivo de lidade (como bem evidenciam as manchetes que apontam
compreender o contexto social, econômico e político, o para as estatísticas de violência, desemprego, gravidez in-
que significa entender o bairro, suas perspectivas, poten- desejada e precoce e restritas oportunidades culturais e de
cialidades, projetos do setor público e do setor privado que lazer), a escola depende, em boa parte, da ação solidária e
modificarão a vida local. colaborativa da comunidade local em relação às suas pro-
Há um razoável consenso entre os educadores que o postas pedagógicas. Crianças e jovens, habituados e fas-
projeto político-pedagógico, construído de forma coleti- cinados pela vida livre das ruas, sem limites e regras, têm
va e participativa, constitui o norte orientador das práticas dificuldade de adaptação à “estrutura tradicional” da esco-
curriculares e pedagógicas na escola. De fato, no âmbito da la. Ou seja, encontram sérias dificuldades em cumprir os
escola, o exercício da participação que caracteriza a ges- rituais característicos da escola, tais como observar os ho-
tão democrática abre novas possibilidades de organização rários, acatar determinações superiores, respeitar as regras
pedagógica que favorecem, de um lado, a instauração do de convivência social, realizar tarefas de forma disciplinada
respeito à individualidade do estudante e ao seu percur- etc. Fazer da escola um ambiente atrativo, que mobilize a
so de aprendizagem e, de outro lado, contribuem para o
atenção desse contingente de estudantes, não constitui
crescimento profissional dos educadores que partilham
certamente uma tarefa fácil para os profissionais da educa-
do trabalho coletivo. O Conselho Escolar pode exercer um
ção. Mesmo porque esses profissionais também enfrentam
papel relevante na gestão escolar (pedagógico-administra-
tiva) contribuindo para a construção e implementação do situações desgastantes na luta pela sua afirmação pessoal
projeto político-pedagógico da escola e para o alargamen- e profissional numa sociedade competitiva e excludente.
to do horizonte cultural dos estudantes. Nesse processo, O que pode contribuir para alterar esse quadro de in-
o Conselho Escolar, ao atuar plenamente, no sentido de certezas e de dificuldades de toda ordem é levar todas essas
contribuir com a ampliação das oportunidades de aprendi- questões ao debate no coletivo da escola, expor as contra-
zagens dos estudantes, não só se fortalece como instância dições que afloram permanentemente na prática pedagó-
de controle social como também auxilia a escola pública no gica, não se deixar intimidar pelo volume dos problemas e
cumprimento de sua função social. pela precariedade de recursos que poderiam ser acionados
visando à sua superação. Debater as situações problemáti-
3.1 Conselho Escolar e a articulação com a comu- cas, tomar decisões, desenvolver e avaliar as ações pedagó-
nidade gicas e administrativas, nos colegiados, parecem ser formas
Nessa direção, a escola pode propiciar a organização bem-sucedidas de lidar com as inúmeras questões sociais e
de situações que favoreçam ao estudante efetivar aprendi- pedagógicas que emergem no cotidiano da escola.
zagens que o leve a valorizar a história do seu bairro, dos
líderes populares do seu lugar, da sua raça, do seu gênero
3.2 A participação nos projetos comunitários
e da sua classe social. Incentivar no corpo discente o de-
senvolvimento de posturas solidárias, críticas e criativas e Nessa perspectiva, a escola pode procurar interagir com
propiciar a organização de situações que induzam o estu- os projetos comunitários, de natureza socioeducativa, que
dante a lutar pelos seus sonhos são tarefas de uma escola visem promover o ingresso, o regresso, a permanência e o
comprometida com a formação cidadã. Nesse sentido, a sucesso dos estudantes na escola. Estrategicamente, a es-
escola pode realizar atividades que despertem o senso es- cola e o sistema de ensino podem aproveitar a existência
tético, concorrendo, assim, para a vivência mais plena dos desses projetos para discutir, apreciar e avaliar as condições
estudantes, como seres humanos sensíveis, mesmo que de infraestrutura e pedagógicas locais, com o propósito de
estes convivam em ambientes pouco estimuladores da be- implantar de forma progressiva e criativa o tempo integral,
leza que a natureza e a produção cultural da humanidade já sinalizado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na-
oferecem. Incentivar e desenvolver atividades pedagógicas cional e, de há muito tempo, uma realidade em países que
que permitam aflorar a sensibilidade e o bom gosto dos alcançaram melhores patamares na oferta da escolarização
estudantes pode ser um objetivo relevante da escola. às suas populações.

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BIBLIOGRAFIA

Enfim, incentivar a constituição de projetos de vida dos as demais práticas sociais. Assim, perceberá que o projeto
estudantes articulados aos movimentos que visam à cons- político-pedagógico da escola tem suas bases de susten-
trução coletiva do projeto de bairro, da cidade e da nação tação num projeto social mais amplo cujo ponto central
é um desafio. Projetos de vida que significam crescimento é sempre o respeito à dignidade do ser humano. Nesse
pessoal e profissional, considerando a sociedade complexa sentido, o Conselho Escolar buscará formas de incentivar a
e contraditória na qual o estudante se situa. Contribuir para participação de todos os segmentos envolvidos no proces-
que o estudante se reconheça como ser histórico e que faz so educativo, de modo a assegurar a sua adesão e compro-
a história em suas ações cotidianas e em interação com o metimento com os ideais de renovação democrática dos
outro é papel da escola. Esse reconhecimento do estudan- espaços e das práticas escolares.
te como ser histórico, capaz de, ao longo do tempo e em Fonte
processos de lutas coletivas, mudar as condições de vida e AGUIAR, Márcia Ângela da Silva [et. al.]. Conselho Es-
as relações sociais de trabalho nessa sociedade, valoriza a colar e a relação entre a escola e o desenvolvimento com
ação da escola. Nessa direção, são variadas as atividades de igualdade social. Brasília: Ministério da Educação, Secreta-
cunho pedagógico que podem ser desenvolvidas na escola ria de Educação Básica, 2006.
e na comunidade com a participação decisiva do Conselho
Escolar. São atividades propostas, discutidas, desenvolvidas
e avaliadas por docentes em sua relação com os estudantes, ARÊAS, CELINA ALVES. A FUNÇÃO SOCIAL
bem como por outras instâncias da escola e pelo Conse-
lho Escolar. Atividades essas que mantém um vínculo direto DA ESCOLA. CONFERÊNCIA NACIONAL DA
com os objetivos e propósitos do projeto político-pedagó- EDUCAÇÃO BÁSICA.
gico, como pode ser observado nos itens que seguem.

Algumas considerações finais FUNÇÃO SOCIAL DA ESCOLA


Ficou claro ao longo do texto que a escola vive per-
manentemente contradições que resultam da sua própria
Princípios
inserção no mundo capitalista. De fato, a escola, no Brasil,
1. Defesa da escola pública, gratuita e laica em todos
atende a um grande contingente de estudantes oriundos de
os níveis;
famílias que vivem em situação de pobreza e em ambientes
socialmente degradados. Contudo, ao mesmo tempo em 2. Educação como direito de todos e dever do Estado;
que reproduz as estruturas de dominação da sociedade, a 3. Regulamentação do ensino privado sob o controle
escola é um campo aberto à possibilidade de questiona- do Estado;
mento desse padrão de dominação. 4. Não inclusão do setor na Educação na OMC;
Quando a escola oferece situações de desafio e de 5. Não intromissão dos organismos internacionais nos
aprendizagens que levam ao questionamento do senso co- rumos da educação nacional;
mum, ao desenvolvimento das capacidades de argumenta- 6. Defesa de um Sistema Nacional de Educação (rede
pública e setor privado).
ção, de crítica e da criatividade, ela possibilita a mudança
para patamares superiores. Tudo isso implica decisões po-
Texto referência da CONEB
lítico-pedagógicas. Quando há uma decisão política de si-
• Educação é:
tuar a educação escolar com qualidade social, isso significa
a) Processo e prática social constituída e constituinte
optar por um projeto educativo que contempla a maioria
das relações sociais mais amplas; b) Processo contínuo de
da população e tem como pressupostos a igualdade e o
formação;
direito à educação. Nessa perspectiva, as iniciativas e po-
c) Direito inalienável do cidadão.
líticas que apontam para a inclusão social não se confun- • A prática social da Educação deve ocorrer em es-
dem com ações compensatórias e localizadas que pouco paços e tempos pedagógicos diferentes, para atender às
alteram as condições de desigualdade da sociedade. Le- diferenciadas demandas
vam em consideração o local e o agora, mas ultrapassam • Como prática social, a educação tem como lócus
essa visão restrita projetando-se para o todo social e para privilegiado a escola, entendida como espaço de garantia
o futuro. Nessa perspectiva, um projeto educacional que de direitos;
possibilita a articulação de todos os segmentos, que esti- • Devemos trabalhar em defesa da educação pública,
mula práticas coletivas de solidariedade e que proporciona gratuita, democrática, inclusiva e de qualidade social para
as condições de desenvolvimento de práticas pedagógicas todos;
inovadoras é portador de uma mensagem de mudança da • É fundamental a universalização do acesso, a amplia-
sociedade que se revela na superação dos preconceitos e ção da jornada escolar e a garantia da permanência bem-
de todos os fatores que têm contribuído historicamente -sucedida para crianças, jovens e adultos, em todas as eta-
para a negação do direito do acesso e da permanência na pas e modalidades de educação básica.
educação escolar. Participar da construção de um projeto
educacional dessa magnitude requer do Conselho Escolar a É indispensável à escola, portanto:
organização de situações de debate e de estudos que per- • Socializar o saber sistematizado;
mita a todos os segmentos da comunidade escolar avançar • Fazer com que o saber seja criticamente apropriado
na compreensão das vinculações do fazer pedagógico com pelos alunos;

10
BIBLIOGRAFIA

• Aliar o saber científico ao saber prévio dos alunos • “Parece que, como sempre, os responsáveis pelas po-
(saber popular); líticas sociais (entre elas a da educação), em nosso país,
• Adotar uma gestão participativa no seu interior; encontraram um novo ‘bode expiatório’: as unidades esco-
• Contribuir na construção de um Brasil como um país lares. No passado, foram ou os alunos (por suas carências
de todos, com igualdade, humanidade e justiça social. e/ou dificuldades) ou os professores e a sua falta de forma-
ção (como se essa falta de formação não fosse produto das
Constituição Federal 1988 políticas educacionais). Agora, parece que se transfere essa
• Artigo 205 função social à escola”.
“A educação, direito de todos e dever do Estado e da • Pablo Gentili:
família, será promovida e incentivada com a colaboração a) Visão neoliberal da função social da escola: “Na
da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pes- perspectiva dos homens de negócios, nesse novo modelo
soa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua quali- de sociedade, a escola deve ter por função a transmissão
ficação para o trabalho”. de certas competências e habilidades necessárias para que
as pessoas atuem competitivamente num mercado de tra-
- LDBEN - 1996 balho altamente seletivo e cada vez mais restrito.
b) A educação escolar deve garantir as funções de clas-
TÍTULO I sificação e hierarquização dos postulantes aos futuros em-
Da Educação pregos (ou aos empregos do futuro). Para os neoliberais,
nisso reside a ‘função social da escola’. Semelhante ‘desafio’
Art. 1º A educação abrange os processos formativos só pode ter êxito num mercado educacional que seja, ele
que se desenvolvem na vida familiar, na convivência huma- próprio, uma instância de seleção meritocrática, em suma,
na, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos um espaço altamente competitivo”.
movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas
manifestações culturais. Conclusão
§ 2º A educação escolar deverá vincular-se ao mundo • Função social da escola:
do trabalho e à prática social. Compromisso com a formação do cidadão e da cidadã
com fortalecimento dos valores de solidariedade, compro-
TÍTULO II misso com a transformação dessa sociedade.
Dos Princípios e Fins da Educação Nacional

Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspi-


rada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidarie- AUAD, DANIELA. EDUCAR MENINAS E
dade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento MENINOS – RELAÇÕES DE GÊNERO NA
do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e ESCOLA. SÃO PAULO: EDITORA CONTEXTO,
sua qualificação para o trabalho. 2016.

- Outras Concepções
• Paulo Freire:
a) A formação do sujeito deve contemplar o desenvol- Em Educar meninas e meninos: relações de gênero na
vimento do seu papel dirigente na definição do seu desti- escola, Daniela Auad discute a questão da escola mista
no, dos destinos de sua educação e da sua sociedade; relacionando-a com a ideia de coeducação com base na
b) Formar o cidadão, construir conhecimentos, atitudes análise de práticas escolares e no debate contemporâneo
e valores que tornem o estudante solidário, crítico, ético e sobre o tema, dialogando com estudiosas feministas que
participativo; teorizam sobre a questão. Seu argumento central é o de
• José Geraldo Bueno (PUC SP) que a escola mista pressupõe a coeducação, mas não é su-
a) construção de um sistema de ensino que possa se ficiente para a efetivação da mesma. Ao longo da obra, a
constituir em fator de mudança social militante feminista Daniela Auad defende a igualdade com
b) responsável pela formação das novas gerações em respeito às diferenças e mostra como isso pode ocorrer na
termos de acesso à cultura, de formação do cidadão e de prática escolar, numa linguagem acessível a qualquer pes-
constituição do sujeito social. soa que se interesse pela questão.
c) distinção entre a função da escola em relação à ori- O livro é dividido em dez capítulos, sendo que no pri-
gem social dos alunos trouxe importantes contribuições meiro destes a autora faz uma apresentação dos temas
para uma melhor compreensão da complexidade dessa trabalhados nos capítulos subsequentes, destacando que o
instituição, por outro, parece ter desembocado, novamen- objetivo do livro é revelar que a escola, através das práticas
te, numa concepção abstrata de escola, em particular em escolares, pode se constituir como um espaço privilegiado
relação à escola pública, como sendo aquela que, voltada para o “aprendizado da separação” que discrimina meninos
fundamentalmente para a educação das crianças das ca- e meninas de forma a justificar desigualdades ou pode, ao
madas populares, cumpre o papel de reprodutora das rela- contrário, promover transformações no sentido da igual-
ções sociais e de apoio à manutenção do status quo. dade a partir do respeito às diferenças. Assim a autora se

11
BIBLIOGRAFIA

propõe a discutir a relação entre igualdade e desigualdade pelo professor para conduzir a classe e manter a disciplina,
entre meninas e meninos, homens e mulheres no espaço o que pode ser exemplificado com as diferentes maneiras
escolar, chamando a atenção para a função privilegiada de se distribuírem meninos e meninas no espaço da sala de
que a escola possui no que diz respeito à aprendizagem de aula. Confrontando suas próprias pesquisas no Brasil com
papéis sociais e sexuais por parte dos alunos. estudos que descrevem a realidades escolares em outros
No segundo capítulo, temos uma breve síntese da his- países da América Latina e da Europa, demonstra que os
tória que perpassa a construção da categoria gênero en- meninos, diferentemente das meninas, tendem a ocupar
quanto instrumento de análise. A autora demonstra como grandes espaços e se envolvem mais do que elas em ati-
a apropriação do conceito de gênero na área de ciências vidades dinâmicas que requerem uma expressão corporal
humanas foi importantíssima para o questionamento das mais ampla. Assim, as relações de gênero influenciam o
supostas desigualdades “naturais” entre os sexos, tão vei- modo como meninos e meninas se expressam corporal-
culadas pelos discursos positivistas. Destaca que a catego- mente e aproveitam diferentemente as possibilidades de
ria gênero ao revelar que muitas diferenças entre homens movimentos, jogos e brincadeiras.
e mulheres são socialmente construídas pode ser utilizada Assim, o tradicional sistema educacional brasileiro co-
para desvendar relações de poder desiguais dentro da es- loca o desafio de se combater a promoção das desigual-
cola. O texto chama a atenção para o aspecto relacional, dades de gênero, uma vez que tais desigualdades não são
constitutivo das masculinidades ou feminilidades, num de- condizentes com uma sociedade democrática. A autora
terminado contexto social e cultural, expressando-se nos constata que alunas, alunos, professoras, agentes escola-
discursos e práticas sociais. Conduz assim ao questiona- res, diretoras, coordenadoras e pesquisadoras podem estar
mento de compreensões generalizadas de relações preten- na fronteira entre, de um lado, as práticas escolares nas
samente naturais sobre o masculino e o feminino para se quais as relações de gênero ainda são desiguais e, de ou-
pensar o gênero como dispositivo privilegiado na análise tro, a possibilidade de construção de um projeto de coedu-
das significações das relações de gênero e de poder que cação. Para a efetiva concretização desse projeto de polí-
constituem processos políticos e se constroem reciproca- tica educacional, Daniela Auad propõe uma transformação
mente. de diversos níveis da educação, englobando não apenas
Os quatro capítulos seguintes tratam dos resultados a legislação, o sistema educativo, as unidades escolares e
encontrados por Daniela Auad em sua pesquisa de douto- os currículos, como também a capacitação e formação do
rado, que objetivou o estudo das relações de gênero nas profissional, a paridade do professorado, os livros didáticos
práticas escolares. As observações nos pátios e salas de e a interação entre professoras, professores, alunos e alu-
aula das séries ou ciclos iniciais de uma escola pública de nas. Delineia assim um possível caminho para uma política
Ensino Fundamental da cidade de São Paulo, realizadas du- pública de igualdade de gênero a partir da escola.
rante quatro anos, juntamente com o trabalho de revisão Diante do que foi dito, pode-se dizer que Educar me-
bibliográfica acerca dos temas “Educação Escolar e Rela- ninas e meninos: relações de gênero na escola nos adverte
ções de Gênero”, “Coeducação” e “Mixité”2, evidenciaram para a importância de uma ampla reflexão sobre as rela-
certos modos em que as relações de gênero são elementos ções de gênero na escola. A autora estabelece um diálo-
significativos nas vivências de meninas e meninos. Ao lon- go profícuo com estudiosos no campo do gênero, sendo
go dos referidos capítulos, a autora demonstra como uma importante destacar a contribuição de Louro (2003) que
análise do cotidiano escolar pode revelar a existência de argumenta que a escola por meio de símbolos e códigos,
diferenças, polaridades e assimetrias de gênero, presentes delimita espaços, institui modos de ação e produz identi-
em atividades que definem para as crianças o que é mas- dades de gênero ao informar o lugar dos meninos e das
culino e o que é feminino, gerando assim o “aprendizado meninas. Nessa perspectiva, as práticas escolares encerram
da separação”. múltiplos e discretos mecanismos que escolarizam e distin-
A temática que envolve escola mista e coeducação é guem os corpos e as mentes de alunos e alunas, que vão
focalizada nos próximos capítulos, onde fica demonstrado construindo seus padrões diferenciais de comportamento
que embora as escolas brasileiras sejam mistas, e isso seja e assimilando o modelo com o qual se devem identificar
uma das premissas da existência da coeducação, a mistura para serem mais homens ou mais mulheres.
dos sexos não determina a ocorrência de práticas e políti- Entendendo que as identidades de gênero são cons-
cas públicas coeducativas. Ao longo de sua argumentação, truídas pelos sujeitos ao se identificarem, social e historica-
a autora aponta questões que geram reflexões acerca da mente, como femininos ou masculinos, o texto de Daniela
escola mista e sua relação com uma proposta de coedu- Auad nos instiga ao questionamento e à reconstrução de
cação. ideias sobre a constituição de femininos e masculinos, sen-
Analisando a história da implantação da escola mista do que devem ser vistos como elementos não necessaria-
no Brasil, Daniela Auad verifica que conteúdos de ensino, mente opostos ou essenciais, uma vez que a oposição não
normas, uso do espaço físico, técnicas e modos permitidos é inerente, mas sim, construída, e pode ser subvertida. Cha-
de pensar, sentir e agir se constituíram como mecanismos ma a atenção para a importância que as práticas escolares
que perpetuam a separação e a hierarquização entre ho- adquirem nesse cenário, pois são práticas políticas, histo-
mens e mulheres. Conforme a autora, as supostas diferen- ricamente contingentes e podem ser transformadas pelos
ças sexuais naturais entre meninos e meninas são utilizadas sujeitos que as constroem.

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BIBLIOGRAFIA

Dessa maneira, o livro faz parte de um conjunto de es- o pessoal das escolas põe-se a procurar o erro e a bus-
forços acadêmicos de feministas e pesquisadoras dos estu- car culpados. Algumas professoras veteranas acharam que
dos de gênero que assumem a igual valorização de homens tudo aquilo evidenciava a conhecida má vontade e desin-
e mulheres como prática, bandeira de luta e tema de estudo, formação dos familiares. Pois certamente, se procurassem
buscando aporte teórico na perspectiva pós-estruturalista. com carinho, encontrariam um lugarzinho para plantar a
Esse campo de estudos destaca-se por seu caráter político mudinha. Diante de tal ingratidão, era melhor não tentar
e contemporâneo, estando em constante construção, uma mais esse tipo de aproximação, defenderam. Outro gru-
vez que propõe o autoquestionamento e a subversão de pa- po de professoras tratou de apontar suas críticas para a
radigmas científicos. Nesse sentido, os estudos de gênero coordenação, a direção da escola e a Secretaria Municipal
têm se mostrado fundamentais para a elaboração de teorias de Educação pela ideia da planta. Como esqueceram que
férteis e de diversas formas de intervenção social, com des- estamos na área mais pobre e densamente povoada do Es-
taque para o campo educacional. tado?, repreendiam. Claro que ninguém tem onde plantar
Fonte: LIMA, A. G. Baseado em AUAD, Daniela. Educar uma árvore, todas foram cortadas justamente para dar es-
meninas e meninos: relações de gênero na escola. São Paulo: paço para mais gente.
Contexto, 2006. Enquanto o debate prosseguia, a sobrevivência das mu-
das estava por um triz. Será que morreria toda a promessa
de floresta? Os muitos saquinhos pretos enfileirados, como
CASTRO, JANE MARGARETH; REGATTIERI, que prontos para o funeral, chamaram a atenção de um
MARILZA. RELAÇÕES CONTEMPORÂNEAS grupo de alunos. Eles perguntaram aos adultos: o que vo-
cês vão fazer com as plantas? Fez-se silêncio. Todos sabiam
ESCOLA-FAMÍLIA. P. 28-32. IN: CASTRO,
que também na escola não havia onde plantar todas aque-
JANE MARGARETH; REGATTIERI, MARILZA.
las árvores. Nem em seu entorno, com poucas ruas urba-
INTERAÇÃO ESCOLA-FAMÍLIA: SUBSÍDIOS nizadas. Devolvê-las a quem fez a doação seria uma prova
PARA PRÁTICAS ESCOLARES. BRASÍLIA: cabal de incompetência. Abandoná-las, um ato insensível e
UNESCO, MEC, 2009. totalmente antieducativo. Como proceder? Alguém então
sugeriu que se tentasse saber o que a escola mais próxima
pensava em fazer, já que o problema era comum.
INTERAÇÃO ESCOLA-FAMÍLIA:
Na procura por soluções, descobriram que o último
SUBSÍDIOS PARA PRÁTICAS ESCOLARES
grande terreno existente na região acabara de ser desa-
propriado pela prefeitura – para que se construísse ali per-
I – INTRODUÇÃO
to uma área integrada de equipamentos sociais. Conversa
Professoras da rede pública de uma típica cidade de
vai, conversa vem, gestores municipais, diretores de escola,
periferia metropolitana começam a visitar as casas de seus
professores, pais, avós, tios e alunos conseguiram liberar
alunos para ver mais de perto a vida das crianças e de seus
pais. Conhecendo o ambiente doméstico, esperam com- parte do terreno para o plantio das mudas e assim inicia-
preender melhor seus alunos e passar a contar com a aju- ram o que viria a se transformar na maior área verde do
da dos familiares para melhorar o desempenho escolar das município. Até lá, compartilhariam, sem perceber, o equi-
crianças. Como toda visita gentil, cada professora leva para valente a muitas e muitas aulas de Ciências e aprenderiam
a família uma lembrança: uma muda de árvore. Os educa- bem mais do que uma lição de Ecologia. E não pararam por
dores optaram por este brinde porque o município perdeu aí: depois de garantir que as mudas crescessem, as famílias
quase toda a sua cobertura vegetal. Eles consideram válida e os profissionais da escola abandonaram antigos hábitos
qualquer iniciativa para tentar reflorestá-lo. Mesmo honrada e renovaram seu dia a dia – tudo para que, todos os anos,
com o presente, a mãe (ou o pai ou a avó ou outro respon- continuasse a florescer em seus filhos/alunos o desejo de
sável), dias depois, é obrigada a devolvê-lo à escola porque aprender.
simplesmente não há onde plantar a árvore. Lembrem-se:
é uma típica periferia de nossas grandes cidades, onde se PARA ALÉM DAS SEMELHANÇAS E COINCIDÊNCIAS
amontoam, de forma desordenada, milhares de pequenas
moradias. Sem quintal, jardim, muro, portão ou mesmo rua. Esta história, uma ficção de final feliz, levemente ins-
Nos poucos dias em que, hesitantes, os responsáveis pelas pirada em fatos reais, espelha o que vem acontecendo na
crianças decidiam que destino dar à nobre mudinha, ela rede de ensino das pequenas ou grandes cidades brasi-
murchou e desfolhou. Estava seca, quando chegou de volta leiras: cada vez mais as redes de escolas públicas buscam,
ao pátio da escola. E foi colocada ao lado de outras centenas por diferentes meios, aproximar-se das famílias de seus
como ela. Nas várias escolas municipais, o mesmo se repetiu: alunos, conhecer suas condições de vida e envolvê-las na
via-se um mundo de arvorezinhas raquíticas em saquinhos produção de bons resultados educacionais. Projetos, ideias
pretos, um quase cemitério de plantinhas recém-nascidas... e práticas inovadoras, como a visita domiciliar da história,
Como esta história poderia continuar? Há diferentes nascem nos gabinetes das Secretarias, nas salas de aula e
possibilidades de desfecho, dependendo das escolhas feitas até em iniciativas isoladas de professores.
pelos principais personagens. Podemos partir da mais pre- Como construir uma relação entre escola e família que
visível: desolado com o insucesso de suas boas intenções, favoreça a aprendizagem das crianças e adolescentes?

13
BIBLIOGRAFIA

Esta pergunta é o fio condutor deste estudo. As informações sobre tais experiências foram obtidas
O presente trabalho faz parte de um esforço de gerar por meio de fichas preenchidas por Secretarias Municipais
conhecimentos educacionais, por meio de estudos, pesqui- e escolas e de entrevistas por telefone. O passo seguinte foi
sas, avaliação e projetos piloto, que contribuam para as prá- selecionar experiências a serem visitadas, para uma análi-
ticas educativas em sala de aula e para a formulação de pro- se mais aprofundada daquela iniciativa. Adotaram-se como
jetos e políticas públicas. A participação das famílias na vida critérios de seleção: projetos centrados no tema da relação
escolar de seus filhos, sobretudo nos primeiros anos do en- escola-família, articulados com a aprendizagem dos alunos
sino fundamental, é destacada como estratégia importante e coordenados pelas Secretarias Municipais de Educação.
de apoio à aprendizagem em publicações técnicas e nas Privilegiamos experiências que tivessem estratégias distin-
cartas e declarações internacionais resultantes de reuniões e tas entre si para obter um repertório mais amplo. Os muni-
conferências convocadas pela UNESCO desde os anos 1980. cípios visitados foram: Iguatu (CE), Itaiçaba (CE), Taboão da
Entre elas, vale lembrar como marcos a Declaração Mundial Serra (SP) e Teresina (PI).
sobre Educação para Todos (JOMNTIEN,1990), reafirmada Belo Horizonte (MG), embora não tenha sido visitada
pela Conferência de Dacar (2000), que estabeleceu como naquela ocasião, acabou impondo-se como experiência im-
um de seus objetivos assegurar, até 2015, o atendimento portante para os objetivos pretendidos. Ao longo deste tra-
das necessidades de aprendizado de todas as crianças, jo- balho, tivemos contato direto com os gestores estratégicos
vens e adultos em processo equitativo. Como país-membro do Programa Família-Escola e, como já havia informações
da UNESCO, o Brasil, por meio do Ministério da Educação, qualificadas sobre o histórico desta iniciativa, foi possível
também tem renovado, ano a ano, este compromisso. incluí-la no estudo.
O presente estudo – uma iniciativa da UNESCO e do A fim de identificar o que as pesquisas e ensaios di-
MEC – tem como objetivo oferecer aos gestores educacio- zem sobre as interações escola-família, fizemos um levan-
nais e escolares informações qualificadas para o desenvol- tamento documental, selecionando principalmente textos
vimento de projetos e políticas de interação escola-família nacionais produzidos a partir de 1990. O campo priorizado
em função da sua missão de garantir aos alunos o direito foi o da Sociologia da Educação, no qual a questão da re-
de aprender. lação escola-família entre essas duas instâncias é um tema
recorrente. Selecionamos cerca de 100 títulos entre relatos
Como construir uma relação entre escola e família que
de pesquisa, ensaios e notas de síntese. Estes foram classi-
favoreça a aprendizagem das crianças e adolescentes? Esta
ficados e lidos de forma a destacar os principais achados
pergunta é o fio condutor deste estudo. Partimos de duas
que pudessem ser incorporados ao presente trabalho. Para
crenças: a primeira é que, para entender o que se passa no
facilitar a leitura por um público amplo, optamos por utilizar
presente, é necessário um mergulho na nossa história. A se-
as informações sem mencionar a cada frase ou parágrafo
gunda é que o Brasil é muito grande e diversos para caber
sua origem. Ao final, apresentamos a bibliografia utilizada.
em uma única fórmula ou receita. O desafio ao qual nos pro- Outro aspecto metodológico a destacar é a interlocu-
pusemos foi organizar informações disponíveis em pesqui- ção com diferentes leitores e especialistas antes de finalizar
sas acadêmicas, articuladas a algumas iniciativas relevantes o estudo. Sua primeira versão foi submetida à leitura das
que vêm sendo desenvolvidas nos municípios, em escolas instituições proponentes – MEC e UNESCO – e, em seguida,
isoladas ou em coordenação com as Secretarias Municipais apresentada em seminários com dirigentes educacionais;
de Educação, e apresentá-las de forma acessível. equipes técnicas das SMEs; diretores de escolas, coorde-
A fim de identificar as iniciativas que já estão ocorrendo nadores pedagógicos e professores. Participaram ainda
no Brasil, foi feita uma chamada via internet para que as Se- especialistas que têm contribuído significativamente para a
cretarias Municipais de Educação (SMEs) e escolas relatas- construção de conhecimento sobre o tema. Desta forma,
sem suas boas experiências de parceria com famílias. Além podemos dizer que este trabalho foi escrito a muitas mãos.
de uma breve explicação sobre o propósito deste projeto, Assim, depois de entrevistar e ouvir os que criam e os
apresentamos uma ficha para coleta de informações nos que executam projetos nas escolas de ensino fundamental
sítios da UNESCO e da União Nacional dos Dirigentes Mu- Brasil afora, interagir com especialistas e pesquisar a lite-
nicipais de Educação (Undime), entre 28 de outubro e 28 ratura acadêmica, entendemos que o melhor a fazer seria
de novembro de 2008. O Conselho Nacional de Secretários compartilhar uma série de reflexões e desejar que elas ins-
de Educação (Consed) enviou correspondência a todos os pirem nos educadores ações inovadoras e responsáveis.
seus filiados. Assim foi possível disponibilizar, para a tota- Embora nossa intenção seja direcionada à construção
lidade dos municípios brasileiros, a oportunidade de apre- de novas práticas, este documento não é nem um guia, nem
sentar sua iniciativa. um manual. A relação escola-família é complexa e os as-
Outras formas de prospecção das experiências foram: suntos a ela relacionados são extensos e polêmicos demais
contatos com redes de pesquisadores, professores univer- para serem abordados numa única publicação. Assim, fize-
sitários, gestores públicos e avaliadores que conhecessem mos recortes, escolhas e decidimos propor um trabalho que
várias SMEs e pudessem indicar experiências de interação é, em boa medida, aberto ao necessitar de adaptações de
escola-família; pesquisa junto a bancos de experiências de acordo com cada realidade local. Todo esse esforço preten-
organismos governamentais, internacionais ou privados e de provocar mudanças positivas nas condições de aprendi-
busca direta na internet. Conseguimos localizar experiên- zagem de crianças e adolescentes, posicionando a escola
cias coordenadas por Secretarias Municipais de Educação também como local estratégico para a construção de uma
e realizadas por escolas sem a intervenção direta das SMEs. efetiva rede de proteção integral de seus alunos.

14
BIBLIOGRAFIA

O estudo está organizado em três partes. A primeira um processo de formação para alcançar a condição de pro-
traz reflexões históricas e conceituais, além de localizar os fissional da educação.
marcos legais que pautam esta relação. A segunda articula As crianças que chegam à escola são membros-de-
os conceitos com as lições da prática, destacando elementos pendentes de um núcleo familiar que lhes dá um nome e
para a construção de uma política de interação escola-famí- um lugar no mundo. Os professores, conectados ou não
lia. A terceira apresenta um cardápio de políticas em curso com o lugar social deste aluno, têm como principal função
que podem compor a estratégia de intersetorialidade, além garantir o direito educacional de cada menino e menina,
da bibliografia que serviu de base para as afirmações aqui guiando-se pelas diretrizes do sistema/estabelecimento de
colocadas. ensino com o qual tem vínculo de trabalho. O conjunto de
Boa leitura! professores, funcionários, coordenadores pedagógicos, di-
retores escolares e familiares configura uma comunidade
II – CAMINHOS E ESCOLHAS escolar, que tem funções deliberativas sobre vários aspec-
tos do projeto da escola.
A perspectiva deste trabalho coloca no centro da cena
os alunos da escola pública que estão nos anos iniciais do As famílias estão inseridas em uma comunidade, lo-
ensino fundamental. Ao olharmos com cuidado para esses calizada em determinado território, com seus costumes,
meninos e meninas, vemos que é impossível entendê-los valores e histórias a que chamaremos de contexto social.
sem considerar seu contexto familiar de referência. Como di- As escolas fazem parte de um sistema ou rede de ensino,
zia José Ortega y Gasset “eu sou eu e minhas circunstâncias”, sob coordenação da Secretaria Municipal de Educação, que
ou seja, não é possível dizer quem é o aluno sem considerar compartilha um mesmo marco regulatório (leis, decretos,
suas circunstâncias sociais. atos normativos do Conselho Nacional de Educação etc.)
Na nossa sociedade, a responsabilidade pela educação com as Secretarias de Estado e o Ministério da Educação. A
das crianças e dos adolescentes recai, legal e moralmente, essas relações denominaremos contexto institucional.
sobre duas grandes agências socializadoras: a família e a es- A comunidade local se organiza como sociedade ci-
cola. vil para exercer direitos e deveres, enquanto o sistema de
A educação abrange os processos formativos amplos
ensino representa o poder público que, em um Estado de-
que se desenvolvem na convivência humana ao longo da
mocrático de direito, tem obrigação de cobrar deveres e
vida. Trataremos aqui especialmente da educação escolar
garantir o exercício da cidadania também pela oferta de
obrigatória, tendo o Estado a responsabilidade de oferta pri-
serviços sociais a toda a população.
mária e as famílias o dever de matricular e enviar seus filhos
No mundo globalizado e complexo em que vivemos,
à escola.
as relações entre setores, instituições e atores sociais es-
DEFININDO OS TERMOS tão muito imbricadas. Fica cada vez mais difícil entender
os problemas educacionais apontando apenas para as
Escola: Parte do sistema público de ensino que é res- dificuldades originadas fora da escola ou somente pelos
ponsável primário pela educação escolar. Segundo a LDB processos internos a ela. Se, por um lado, não podemos
(1996), a educação escolar tem como objetivo, no ensino desconsiderar a influência da situação socioeconômica, da
fundamental, “a formação básica do cidadão compreendida violência, das mudanças de costumes sobre o comporta-
como: mento e desempenho dos alunos, por outro, não podemos
I – o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo admitir que a escola se transforme numa agência de assis-
como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita tência social e negligencie sua função específica de zelar
e do cálculo; pela aprendizagem escolar.
II – a compreensão do ambiente natural e social, do sis- É recomendável optar por uma abordagem relacional
tema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que entre educação e contexto social. Sempre com foco nos pro-
se fundamenta a sociedade; cessos de ensino-aprendizagem, enxergamos as relações pro-
III – o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, fessor-aluno em uma perspectiva ampliada que considera a
tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habilidades cadeia de relações que está por trás e entre esses dois atores,
e a formação de atitudes e valores; IV – o fortalecimento dos conforme sugere o esquema da página seguinte.
vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de
tolerância recíproca em que se assenta a vida social”.
Família: Utilizamos aqui o conceito amplo de família, no
sentido de quem exerce as funções de cuidados básicos de
higiene, saúde, alimentação, orientação e afeto, mesmo sem
laços de consanguinidade.
No mundo familiar as crianças são filhos; no mundo es-
colar elas são alunos. A passagem de filho a aluno não é
uma operação automática e, dependendo da distância en-
tre o universo familiar e o escolar, ela pode ser traumática.
Dentro da escola, o responsável direto pela condução dos
alunos é o professor, um adulto que também passou por Fonte: Néstor López et alli, 2009.

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BIBLIOGRAFIA

Podemos dizer que a relação entre escola e família está • É preciso colocar a interação escola-família em uma
presente, de forma compulsória, desde o momento em perspectiva processual que estabeleça horizontes de cur-
que a criança é matriculada no estabelecimento de ensino. to, médio e longo prazos. No primeiro momento faz-se o
De maneira direta ou indireta, essa relação continua viva e conhecimento mútuo; no segundo são estabelecidas as
atuante na intimidade da sala de aula. Assim, sempre que condições de negociação das responsabilidades específi-
a escola se perguntar o que fazer para apoiar os profes- cas sobre a educação das crianças, e, por fim, no terceiro,
sores na relação com os alunos, provavelmente surgirá a são construídos espaços de corresponsabilidade, abertos
necessidade de alguma interação com as famílias. Nesta também à participação de outros atores importantes no
corrente, cabe aos sistemas de ensino o estabelecimento de processo de educação dos filhos/alunos. Percebemos neste
programas e políticas que ajudem as escolas a interagir com estudo que geralmente o processo escola-família é desen-
as famílias, apoiando assim o processo desenvolvido pelos cadeado sem os devidos e desejáveis cuidados prelimina-
professores junto aos alunos. res: é muito comum os sistemas de ensino e escolas par-
Apesar de ser uma atribuição formal e inevitável da es- tirem direto para a negociação/cobrança de responsabili-
cola, a interação escola-família não será tratada neste estu- dades das famílias, antes de compreenderem as condições
do como um fim em si mesmo. Sabemos que ela pode estar dos diversos grupos de familiares dos alunos. Ao suprimir a
a serviço de diversas finalidades, tais como: o cumprimento etapa inicial, os projetos de aproximação podem gerar mais
do direito das famílias à informação sobre a educação dos desencontros. Por essa razão, enfatizamos especialmente o
filhos; o fortalecimento da gestão democrática da escola; movimento inicial de aproximação para (re)conhecimento
o envolvimento da família nas condições de aprendizagem mútuo, tendo em mente que ele deve ser apenas o início
dos filhos; o estreitamento de laços entre comunidade e es- de uma longa relação.
cola; o conhecimento da realidade do aluno; entre outras. Este trabalho pretende refletir como a interação das
As ideias aqui expostas não devem ser entendidas como escolas com as famílias pode ser apoiada pelas redes de
“mais um pacote pronto” que cai na cabeça de quem está ensino para incidir sobre a relação professor-aluno (que es-
nas salas de aula. Pelo contrário: ao começar a elaborar pro- trutura a relação aluno-saber escolar).
jetos e políticas, cada município ou escola estaria criando e Por isso, priorizamos, dentre todas as finalidades que a
estruturando suas próprias ações, conectadas ao conjunto interação escola-família pode ter, o conhecimento do aluno
no seu contexto social como insumo para revisão das prá-
das demais práticas educacionais consideradas válidas para
ticas pedagógicas, escolares e educacionais.
a sua realidade.
A possibilidade de várias abordagens e usos da intera-
DO ALUNO ESPERADO AO ALUNO REAL
ção escola-família exige que explicitemos algumas reflexões
e escolhas que norteiam o estudo:
Voltemos a pensar no que é necessário para que uma
• A expressão interação escola-família se baseia na
criança incorpore a identidade de aluno. Será que todos
ideia de reciprocidade e de influência mútua, considerando têm as mesmas condições de fazer essa passagem? Quais
as especificidades e mesmo as assimetrias existentes nessa características uma criança precisa trazer consigo para
relação. transitar bem pelos códigos e regras escolares? Que tipo
• O Dicionário Houaiss traz definições da palavra intera- de situação familiar facilita a entrada e permanência das
ção: a) atividade ou trabalho compartilhado, em que há tro- crianças e adolescentes na escola e que tipo dificulta?
cas e influências recíprocas e b) comunicação entre pessoas Assumimos que a educação é para todos e, sob a pers-
que convivem; diálogo, trato, contato. pectiva inclusiva, não podemos usar características indivi-
• A assimetria das posições está vinculada também às duais ou sociais para negar o acesso e progresso de qual-
diferentes responsabilidades que a família e o Estado têm quer um na escola. No entanto, não podemos ignorar que
em relação à educação escolar das crianças e adolescentes. o trabalho escolar, em geral, pressupõe que uma criança
Para assegurar a oferta de educação escolar, o Estado insti- chegue à escola com uma série de características: físicas –
tui um sistema de ensino operado por profissionais especia- deve estar saudável e bem alimentada; linguísticas – precisa
lizados, encarregados de transmitir saberes socialmente va- entender bem a língua usada pelos professores e pelos co-
lidados. A família, por sua vez, desempenha seu papel edu- legas; e atitudinais – tem de respeitar os professores, cum-
cacional a partir de um contexto sociocultural específico. prir acordos, assumir compromissos, saber se controlar etc.
• O reconhecimento dessa diferença é fundamental Parte das características fundamentais para o sucesso
para a interação: o desafio é fazer com que essa assimetria escolar, no entanto, não é ensinada pela ou na escola: ela
produza complementaridade, e não exclusão ou superposi- deve vir como pré-requisito do aluno, desde o seu primeiro
ção de papéis. dia de aula. Se a criança não está desde cedo no sistema
• Outro detalhe que faz toda a diferença é a ordem es- educacional, por falta, por exemplo, de acesso à educação
colhida para descrever a relação: escola-família e não fa- infantil, espera-se que ela aprenda estes comportamentos
mília-escola. Estamos assumindo que a aproximação com no convívio familiar.
as famílias é parte do trabalho escolar, uma vez que as Uma família cujos membros mais velhos frequenta-
condições familiares estão presentes de forma latente ou ram a escola por um tempo significativo tende a entender
manifesta na relação professor-aluno e constituem chaves e valorizar o que acontece nesta instituição. Isso facilita a
de compreensão importantes para o planejamento da ação transmissão das regras escolares aos seus membros mais
pedagógica. jovens. A importância do uniforme, a capacidade de espe-

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BIBLIOGRAFIA

rar a vez de falar, por exemplo, são normas que têm de formariam no aluno esperado e a escola poderia seguir
ser aprendidas. O acompanhamento do dever de casa é seu projeto sem grandes mudanças. As críticas à educação
outro exemplo de como a escola requisita espaço e tempo compensatória denunciaram que ela contribuía para refor-
do cotidiano familiar. Entretanto, muitas famílias simples- çar e difundir uma visão preconceituosa sobre o modo de
mente não sabem ou não conseguem realizar esse acom- vida das camadas populares, retratando-as como uma cul-
panhamento com a disponibilidade e/ou competência que tura inferior.
se espera delas. Passadas algumas décadas, a situação de desigualdade
Assim, os alunos cujas famílias têm experiências e valo- social no Brasil ainda permanece grave, mas consolida-se
res próximos aos da escola, além de recursos para investir cada vez mais a compreensão sobre as formas de se alcan-
no apoio a sua carreira escolar, ocupam o lugar do “aluno çar justiça social e se manter a conquista de direitos.
esperado”. Já os alunos cujas famílias têm culturas, valo-
res diferentes dos da escola e têm poucos recursos para Chegamos então a uma questão que é crucial na pers-
empregar no suporte à escolarização dos filhos são, mui- pectiva deste trabalho: a equidade educacional.
tas vezes, classificados simplesmente pela distância que os Desde o final dos anos 1980, as lutas pelos direitos das
separa do aluno esperado. Esta identidade marcada pelo minorias e em defesa da diversidade confrontaram os dis-
que falta à criança para se transformar no aluno dentro cursos consolidados sobre a igualdade vigentes até então.
dos “moldes desejados” tende a afetar sua relação com os A fórmula “somos todos iguais” começou a ser revista a
professores, coordenadores escolares e diretores. Como os partir do reconhecimento de que somos todos diferentes:
projetos político-pedagógicos – e as práticas deles decor- a igualdade não deve ser tomada como um ponto de parti-
rentes – irão considerar essa criança, se a comunidade es- da, mas sim como um horizonte a ser alcançado. Coloca-se
colar só a conhece pelo que ela não é e não conhece seu assim a noção de equidade como base de um projeto po-
rosto? É difícil incluir e valorizar o que não se conhece. lítico de igualdade que parte do reconhecimento das desi-
Historicamente, as práticas pedagógicas na instituição gualdades iniciais.
escolar baseiam-se com frequência na homogeneização do Mas como essa noção se aplica à educação? Inicial-
grupo de alunos: os que se encaixavam no padrão espera- mente, é preciso reconhecer que a concepção de que todos
do seguiam em frente, enquanto os que não se encaixavam somos iguais, por desconsiderar as diferenças de origem,
fracassavam até desistir. Convivemos, durante muito tem- contribuiu para converter desigualdades sociais em desi-
po, com a produção do insucesso escolar em massa, sem gualdades escolares. A oferta educativa homogênea, pen-
nos escandalizarmos. sada para atender o grupo dos alunos esperados, reforçava
Com a conquista paulatina de direitos infanto-juvenis, a desvantagem inicial dos alunos que se distanciavam des-
a simples exclusão de alunos do sistema de ensino pas- se perfil.
sou a ser uma via institucionalmente bloqueada. Os edu- No Brasil, com a quase universalização do acesso ao
cadores começaram a perceber a magnitude do problema: ensino fundamental, a desigualdade nas condições de
com a população infanto-juvenil toda dentro do sistema de aprendizagem e no alcance dos resultados educacionais
ensino, muitas crianças não sabiam transitar pelas regras
está sendo assumida como um problema de qualidade da
institucionais, não dispunham de recursos materiais neces-
escola/sistema – além de ser uma questão prioritária na
sários ou nem podiam contar, fora da escola, com apoio de
agenda social nacional.
um adulto que tivesse tempo, afeto e conhecimento para
A busca pela qualidade com equidade, ou seja, todos
lhes oferecer.
os alunos aprendendo e progredindo na carreira escolar
Entretanto, o conhecimento da realidade precária, que
na idade certa, está presente na pauta das políticas, nos
comprometia as condições de escolarização de uma gran-
projetos e também nos programas de pesquisa na área da
de parcela do alunado, em vez de abrir caminho para novas
Educação.
práticas educacionais, acabou sendo usado, muitas vezes,
como álibi: sentindo-se sobrecarregada, a escola eximiu- Na empreitada pela equidade, a relação escola-família
-se de responsabilidades e jogou sobre as crianças e suas ressurge como um fator-chave. Mesmo que não haja uma
famílias o ônus do fracasso. Muitos professores e diretores comprovação científica da influência direta da interação
apostaram que, elegendo e reforçando os alunos bem-su- escola família na melhoria do aprendizado dos alunos, inú-
cedidos, estariam incitando os demais a se esforçar para meras pesquisas no Brasil e no mundo todo têm mostrado
seguir o mesmo modelo. Neste movimento, desvaloriza- que as condições socioeconômicas, as expectativas e a va-
ram aqueles que não traziam em sua bagagem familiar os lorização da escola e o reforço da legitimidade dos educa-
comportamentos e recursos necessários para enfrentar a dores são fatores que emanam da família e estão altamente
vida escolar. As diferenças (étnicas, culturais, sociais, cor- relacionados com o desempenho dos alunos.
porais etc.) foram convertidas em carências e déficits que A proposta deste estudo é organizar uma compreen-
deviam ser compensados e ultrapassados até que o aluno são mais acurada do que está em jogo quando os agentes
real se transformasse no “aluno ideal”. educacionais tomam a iniciativa do contato com as famí-
A tese do déficit cultural gerou programas que ofere- lias dos alunos. Esperamos que contribua para o resgate
ciam às crianças das classes sociais marginalizadas condi- da disposição dos profissionais da escola em conhecer a
ções para recuperar o seu “atraso”. Aplainando as carências realidade de cada aluno e entender o alcance da sua prá-
afetivas, nutricionais, linguísticas, todos os alunos se trans- tica social.

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BIBLIOGRAFIA

Para isso, frisamos mais uma vez, os professores pre- DE ONDE VEM A ESCOLA QUE CONHECEMOS E AS
cisarão ser apoiados pela equipe de gestão escolar – que, IDEIAS QUE AINDA ACEITAMOS?
por sua vez, terá de contar nesta tarefa com o suporte da
Secretaria de Educação. Com a instituição da República em 1889, surge no Brasil
O conhecimento das condições de vida das crianças e a escola como a conhecemos hoje, considerada fundamen-
adolescentes em idade de escolarização obrigatória pode tal para a construção da sociedade: a escola contemporâ-
dar origem a ações interligadas em dois níveis: 1) a revisão nea nasce marcada pelo ideário da civilização e do progres-
dos projetos e práticas educacionais, pensando na diversi- so para todos. A ação educacional no Brasil começou, ainda
dade dos alunos e não apenas no aluno esperado; no período colonial, como uma ação para as elites, calca-
2) a convocação de novos atores e a articulação das da nos valores da cultura europeia, de conteúdo livresco e
políticas educacionais com políticas setoriais capazes de aristocrático. Para as classes populares, a educação, quando
apoiar as famílias dos alunos para que elas possam exercer existia, voltava-se para a preparação para o trabalho e era
suas funções. quase uma catequese – o objetivo principal era moralizar,
controlar e conformar os indivíduos às regras sociais.
III – PRINCÍPIOS PARA UMA PROPOSTA DE INTERA- Configurou-se assim, desde o início da história da edu-
ÇÃO ESCOLA-FAMÍLIA cação brasileira, uma proposta educacional marcada pela
diferenciação de atendimento para ricos e pobres.
O presente estudo assume uma proposta de interação Nos primeiros anos da República, as poucas escolas pri-
escola-família que está baseada nos seguintes princípios márias existentes – criadas ainda no período do Império –
norteadores: atendiam cerca de 250 mil alunos, em um país com cerca de
• A educação de qualidade, como direito fundamen- 14 milhões de habitantes, dos quais 85% eram analfabetos.
tal de todas as pessoas, tem como elementos essenciais Até o final do século XIX, o abismo entre os setores da so-
a equidade, a relevância e a pertinência, além de dois ele- ciedade brasileira no que se refere à educação manteve-se
mentos de caráter operativo: a eficácia e a eficiência. praticamente inalterado: enquanto os filhos dos fazendeiros
• O Estado (nos níveis federal, estadual e municipal) é o eram enviados à Europa para aprofundar seus estudos, for-
responsável primário pela educação escolar. mando a elite política e intelectual do país, a imensa maioria
• A escola não é somente um espaço de transmissão da da população era analfabeta. Durante todo o período impe-
cultura e de socialização. É também um espaço de constru- rial e ainda no início da República, a escolarização domésti-
ção de identidade. ca de iniciativa privada, às vezes organizada em grupos de
• O reconhecimento de que a escola atende alunos parentes ou vizinhos em áreas rurais, atendia um número
diferentes uns dos outros possibilita a construção de es- considerável de alunos, ultrapassando inclusive a rede de
tratégias educativas capazes de promover a igualdade de escolas públicas existente.
oportunidades. Foi especialmente a partir da proclamação da Repúbli-
• É direito das famílias ter acesso a informações que ca em 1889 que a escolarização ganhou impulso em dire-
lhes permitam opinar e tomar decisões sobre a educação ção à forma escolar que conhecemos atualmente. Pode-se
de seus filhos e exercer seus direitos e responsabilidades. mesmo afirmar que a escola se transforma numa instituição
• O sistema de educação, por meio das escolas, é parte fundamental para a sociedade brasileira há pouco mais de
indispensável da rede de proteção integral que visa asse- 100 anos, e nesse sentido, ela pode ser considerada uma
gurar outros direitos das crianças e adolescentes. instituição republicana. No ideário republicano a educação
• A proteção integral das crianças e adolescentes ex- escolar se associava à crença na civilização e no progresso.
trapola as funções escolares e deve ser articulada por meio A importância crescente da escola primária teve como con-
de ações que integrem as políticas públicas intersetoriais. traponto a desqualificação das famílias para a tarefa de ofe-
recer a instrução elementar, progressivamente delegada à
IV – BREVE HISTÓRIA DA RELAÇÃO ESCOLA-FAMÍ- instituição escolar, cujos profissionais estariam tecnicamen-
LIA NO BRASIL te habilitados para isso. Apesar da importância conferida à
educação pela República, não se verificou uma substancial
Tanto a escola quanto a família, as duas instituições melhoria da situação de ensino: o recenseamento de 1906
cuja relação é nosso objeto de análise, sofreram transfor- apresentou uma média nacional de analfabetismo de 74,6%.
mações profundas ao longo da nossa história. Mediador Com a criação das escolas públicas pelo novo regime,
e regulador dessa relação, o papel do Estado também foi começa-se a questionar a capacidade da família para edu-
se modificando. Ao percorrer esta história, podemos com- car os filhos. É neste quadro de contraposição da educa-
preender a origem de algumas ideias que ainda hoje estão ção moderna à educação doméstica que se consolidam as
presentes no pensamento educacional e verificar sua atua- primeiras ideias – que resistem ao tempo, mesmo fora de
lidade ou anacronismo. A recuperação deste fio de meada contexto –, de que as famílias não estavam mais qualifica-
pode inspirar cada município a identificar conexões desse das para as tarefas do ensino. Além de terem de mandar os
cenário geral com a história local, com seus traços especí- filhos à escola, os familiares precisavam também ser edu-
ficos, e assim melhor compreender o terreno simbólico no cados sobre os novos modos de ensinar. O Estado passa a
qual irá atuar. ter um maior poder diante da família, regulando hábitos e
comportamentos ligados à higiene, saúde e educação.

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BIBLIOGRAFIA

A construção dos grupos escolares durante o período cola, que foi a primeira também a fornecer almoço para os
da Primeira República (1889-1930) colocava em circulação alunos, dispunha de uma biblioteca e um museu. Esses es-
o modelo das escolas seriadas. O novo sistema educacional paços eram desconhecidos numa época em que os alunos
permitia aos republicanos romper com o passado monár- só aprendiam o que estava nos livros e nem se falava em
quico e projetar um futuro. A arquitetura com dimensões pesquisa escolar.
grandiosas, a racionalização e a higienização dos espaços A professora Armanda Álvaro Alberto fazia parte do
faziam com que o prédio escolar se destacasse em relação Movimento dos Pioneiros da Escola Nova, que surgiu na
às outras edificações que o cercavam. O objetivo era incutir década de 1920 e teria forte presença e influência no cená-
nos alunos o apreço à educação racional e científica, valori- rio educacional das décadas seguintes. Os escolanovistas
zando uma simbologia estética, cultural e ideológica cons- lutavam pela garantia de educação como direito básico e
truída pela República. A cultura elaborada tendo como eixo trabalharam pela modernização não apenas dos espaços
articulador os grupos escolares atravessaram o século XX, escolares, mas também das práticas pedagógicas. Neste
constituindo-se em referência para a organização seriada período, muitos desses educadores realizaram reformas
das classes, para a utilização racionalizada do tempo e dos educacionais nos estados, como a de Lourenço Filho, no
espaços e para o controle sistemático do trabalho docente. Ceará, em 1923, a de Francisco Campos e Mario Casassan-
ta, em Minas Gerais em 1927, a de Fernando de Azevedo,
A disciplina e a moral da Era Vargas no Distrito Federal (atual Rio de Janeiro) em 1928 e a de
Carneiro Leão, em Pernambuco, em 1928 e a do próprio
No fim da Primeira República e início do governo de Anísio Teixeira na Bahia em 1925.
Getúlio Vargas, consolida-se a dimensão reformista da Já sob o governo Vargas, em 1932, os Pioneiros da Es-
escola, sobretudo no que se refere às camadas mais po- cola Nova divulgaram o Manifesto “A Reconstrução Edu-
bres. Nessa cruzada pelos bons costumes, com destaque cacional no Brasil – Ao Povo e ao Governo”. Armanda foi
para higiene e alimentação, a mulher é identificada como a uma das três mulheres signatárias do documento – que
grande responsável por garantir a boa ordem no lar e pre- retratava o inconformismo com a educação no país e de-
cisa ser reeducada para conhecer e compreender as neces- fendia a montagem de um sistema de educação pública,
laica, gratuita e obrigatória para todos. O Manifesto, marco
sidades infantis. Dá-se especial importância à estratégia de
inaugural do projeto de renovação educacional, consoli-
utilizar o próprio aluno como intermediário entre a escola e
dava a visão de um segmento da elite intelectual que via
a família, influenciando a educação dos adultos, expediente
a possibilidade de interferir na organização da sociedade
até então muito utilizado pela Igreja Católica.
brasileira a partir da educação.
Nesse contexto, a família inicialmente perde sua fun-
Entre as várias propostas, trataram da função social da
ção de educadora em favor da sociedade política, mas, em
escola, reconhecendo a importância da família como agen-
seguida, é chamada de volta ao terreno da educação para
te de educação vale destacar: “A educação não se faz so-
auxiliar o Estado educador. Enquanto a escola continua
mente pela escola, cuja ação é favorecida ou contrariada,
a comandar o processo, os pais e responsáveis passam a ampliada ou reduzida pelo jogo de forças que concorrem
ocupar uma posição de auxiliar... Com seu status de ser- ao movimento das sociedades modernas. Numerosas e va-
viço de interesse público, a educação passa a ser exercida riadíssimas são as influências que formam o homem atra-
por profissionais com saberes, poderes, técnicas e métodos vés da existência. Há a herança que é a escola da espécie,
próprios. Essa demarcação separa familiares e profissionais a família que é a escola de pais, o ambiente social que é a
da educação, distinguindo leigos e doutos na promoção da escola da comunidade”.
aprendizagem escolar. A escola afirmava-se como institui- À medida que o regime de Vargas se fechava e cami-
ção especializada na socialização das crianças, sobrepon- nhava para a ditadura, a educação voltava-se cada vez mais
do-se à família, às igrejas ou a quaisquer outras iniciativas para o culto da nacionalidade, da disciplina e da moral. As
de organização social. concepções, os formatos e as práticas da Era Vargas molda-
As famílias, também atingidas pela complexidade que ram o ensino brasileiro por várias décadas. Estabeleceu-se
tomou conta do mundo e da escola, também se reorgani- no Estado Novo a associação entre educação e segurança
zam. Não surpreende então que família e escola, obrigadas nacional, sendo a educação utilizada como instrumento
a conviver e partilhar desigualmente a responsabilidade de controle, dentro de um projeto de mobilização vigiada,
pela educação das novas gerações, às vezes conduzam o para a implantação dos conceitos fundamentais de disci-
trabalho de forma substancialmente diferente e até mesmo plina, hierarquia, solidariedade e cooperação, vistos como
conflitante. garantia de segurança da nação.

Uma experiência dos pioneiros da escola nova A campanha pela escola pública

Em 1921, em plena República Velha, uma professora Após a queda do Estado Novo, a Constituição de 1946
chamada Armanda Álvaro Alberto fundou a Escola Prole- concedeu grande autonomia aos estados e restabeleceu
tária de Meriti, localizada em Duque de Caxias, onde criou o ensino primário obrigatório e gratuito, mantido por um
o Círculo de Mães – uma experiência institucional inédita percentual da receita dos impostos dos estados e municí-
na busca de aproximação entre a escola e a família. A es- pios. Os governos municipais e estaduais responderam à

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BIBLIOGRAFIA

crescente demanda educacional da população em acele- A necessidade de formação da força de trabalho que
rado processo de urbanização (na década de 1950 a po- pudesse subsidiar o crescimento econômico dos anos 1970
pulação urbana já representava 35% do total no Brasil), favoreceu a construção de inúmeros estabelecimentos de
expandindo a rede de escolas, ao mesmo tempo em que o ensino, e a escola chegou a partes significativas da clas-
ensino particular também se ampliava. Em 1948, o Ministé- se trabalhadora, que até então quase não se escolarizava.
rio da Educação e Cultura passa a ter atuação independente A rede pública de ensino passa a atender crianças prove-
do Ministério da Saúde e lança-se o primeiro Plano Nacio- nientes de famílias com muito pouca ou nenhuma escola-
nal de Educação, propondo um modelo único de educação ridade. Para lidar com as diferenças sociais e culturais da
para todo o país. Ainda assim, em fins dos anos 1950, meta- nova clientela, surge a proposta da “educação compensa-
de da população do país ainda era analfabeta e apenas 50% tória”, que se dispunha a aplainar as deficiências advindas
das crianças na faixa de 7 a 14 anos frequentavam a escola das condições sociais dos filhos de famílias pobres.
primária (séries iniciais do atual ensino fundamental). Nessa Nas décadas de 1970 e 1980 os setores urbanos, cada
época, diversos grupos organizados da sociedade se arti- vez mais numerosos, continuaram a pressionar pela am-
culam em torno da Campanha de Defesa da Escola Pública, pliação da oferta de escolarização básica, demanda que
liderada por educadores aos quais se juntam profissionais seguia sendo muito superior à capacidade e à vontade
liberais, estudantes, intelectuais e líderes sindicais. Frente à política do poder público de atendê-la. Nesse contexto,
participação tímida e ineficiente do Estado para atender a cresce o movimento das famílias de classe média de enviar
demanda por matrículas pressionada pela industrialização e suas crianças para escolas particulares, iniciando-se uma
urbanização do país, a expansão do ensino privado garantiu forte associação entre escola pública e ensino para pobres.
o aumento quantitativo na escolarização.
Mesmo com a expansão das matrículas no sistema
O Plano de Metas do governo Juscelino Kubitschek
educacional desde as décadas de 1960 e 70, o Censo De-
(1956-1961) quase não contemplou os investimentos so-
mográfico de 1980 dava conta que, de uma população em
ciais em educação. Em 1961 foi aprovada a primeira Lei de
idade escolar de 23 milhões, cerca de um terço não fre-
Diretrizes e Bases da Educação. A lei tratava dos fundos na-
quentava a escola. Na área rural, onde a população em
cionais e da aplicação e distribuição de recursos financeiros
idade escolar era na época de cerca de nove milhões, me-
destinados à educação. No início dos anos 1960, foram de-
nos da metade frequentava a escola. Também em 1980, o
finidos um novo Plano Nacional de Educação e o Programa
Nacional de Alfabetização, inspirado no Método Paulo Frei- índice de analfabetismo no Brasil era de 25,5%.
re de alfabetização de adultos. Este programa, percebido Criada como instituição especializada, dotada das
como um ato político por privilegiar a educação popular, competências específicas, a escola assumiu a função de
viria a ser extinto logo após o golpe militar. promover o ensino. Família e escola compartilharam, ao
longo do século XX, a responsabilidade por criar condi-
A ditadura militar e a desvalorização da profissão ções para que o aluno pudesse aprender.
docente A partir dos anos 1950, crescem a importância que as
famílias atribuem à educação e a aproximação entre escola
O índice de analfabetismo no Brasil era de 32,05% no fi- e família. Esse processo, entretanto, esteve sujeito a idas e
nal da década de 1960. Durante a ditadura militar, o repasse vindas: durante os períodos autoritários, por exemplo, a
às escolas privadas de recursos do salário-educação como escola pública brasileira esteve menos permeável ao diá-
“amparo técnico e financeiro” contribuiu para a expansão da logo com as famílias e as comunidades.
rede privada de ensino, em um ambiente de confiança na Por outro lado, as várias mudanças políticas, econô-
eficácia da competição empresarial como instrumento de micas e culturais ocorridas, sobretudo na segunda metade
ampliação da oferta educacional reclamada pela sociedade. do século XX, tiveram forte impacto sobre o papel da mu-
A Constituição de 1967 classificou a educação como lher e sobre a configuração das famílias, que se tornaram
dever do Estado e ampliou a obrigatoriedade do ensino de menos numerosas e menos sujeitas ao controle patriarcal.
quatro para oito anos, porém suprimiu o preceito que obri- Assim as famílias contemporâneas assumem novos
gava a destinação de um percentual de recursos públicos formatos com mães responsáveis pelo sustento dos filhos,
para a educação. Sem financiamento contínuo e garanti- pais solteiros, madrastas e padrastos de segundos casa-
do, as instalações e condições físicas das escolas públicas mentos, união entre pessoas do mesmo sexo com direito a
pioram e a qualidade do ensino também cai. Ainda assim adoção de filhos etc. A organização das famílias passa a in-
observa-se a gradativa expansão da rede pública de ensi- cluir novos arranjos que refletem mudanças socioculturais.
no, que prioriza a construção de novas unidades escolares, Dessa forma, não tem sentido fazer referência a essas
mesmo à custa da precarização da manutenção e da garan- diferentes configurações como “famílias desestruturadas”,
tia de condições dignas de trabalho para os profissionais da uma vez que na verdade elas configuram novas estrutu-
educação. As longas jornadas, os baixos salários e uma mu- ras e não a falta de estrutura. Isso não significa dizer que
dança no perfil da clientela contribuíram para que a carreira não existam famílias negligentes ou omissas, nem implica
de professor primário (séries iniciais do ensino fundamen- em negar a situação de vulnerabilidade de muitas – mas
tal) perdesse o encanto e parte do reconhecimento social. é preciso discernir entre o que realmente traz problemas
Observou-se o progressivo declínio da dignidade e do valor para as crianças e o que é apenas sinal de novos tem-
da profissão docente, particularmente na educação básica. pos. Vale lembrar que estas transformações e rearranjos

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BIBLIOGRAFIA

familiares se encontram atualmente presentes em todos A escola brasileira continua a reproduzir desigualda-
os grupos sociais e nem todas as crianças oriundas destas des, uma vez que meninos negros e pobres são mais re-
novas estruturas familiares vivenciam problemas escolares provados, abandonam mais os estudos e concluem menos
ou sociais. o ensino fundamental. De acordo com o Relatório de Mo-
Nas últimas décadas do século XX, a revolução tecnoló- nitoramento Global de Educação para Todos, lançado pela
gica, a globalização, a comunicação e a computação criam UNESCO em abril de 2008, o Brasil precisará de um grande
novos costumes e demandas. Nesse período, especialmen- esforço para cumprir, até 2015, o conjunto de metas do
te nos grandes centros urbanos do Brasil, os altos índices de compromisso da Conferência Mundial de Educação em
violência e de conflitos sociais impactam a vida das famílias Dacar, Senegal, em 2000. O combate ao analfabetismo, a
e a rotina das escolas públicas. Ao mesmo tempo, a consoli- paridade de gênero – o Brasil tem mais meninas do que
dação da democracia e a busca conjunta pela qualidade do meninos na escola –, a educação infantil e a qualidade da
ensino parecem abrir espaço para o maior entendimento e educação são metas nas quais o país está mais atrasado.
colaboração entre escola e família. Atualmente, portanto, a democratização do ensino se
Estudos sociológicos recentes iluminam de modo mais traduz pela qualidade do ensino oferecido que viabiliza a
específico essa relação, buscando, entre outros objetivos, permanência com sucesso do estudante na escola e contri-
identificar os efeitos do envolvimento dos responsáveis na bui para sua formação cidadã.
escolaridade dos filhos. Os estudiosos do tema atestam que
hoje a escola e a família intensificaram como nunca suas V – RELAÇÕES CONTEMPORÂNEAS ESCOLA-FAMÍLIA
relações. A presença e a participação dos responsáveis nas
atividades escolares são cotidianas e acontecem além das MARCOS LEGAIS
instâncias formais. A relação entre responsáveis e profissio-
nais da educação é cada vez mais individualizada, em favor Ao longo das últimas décadas, a criança foi sendo des-
não apenas do desenvolvimento intelectual da criança, mas locada da periferia para o centro da família. Do mesmo
de seu bem-estar emocional. modo, ela passou a ser o foco principal do sistema edu-
cativo. O deslocamento é fruto de uma longa história de
A democracia e a busca da qualidade emancipação, na qual as propostas educacionais têm peso
importante. Esse movimento alinha-se ao dos direitos hu-
Com a redemocratização do país na década de 1980
manos e consolida-se na Carta Internacional dos Direitos
e a convocação da Assembleia Nacional Constituinte, os
da Criança, de 1987, que registra o acesso da criança ao
direitos sociais da população são evidenciados. A Carta
estatuto de sujeito de direitos e à dignidade da pessoa. Tais
de 1988, que pela primeira vez incorporou ao sistema de
conquistas invertem a concepção de aluno como página
ensino a educação infantil e retomou o direito à educação
em branco, encerrada no projeto inicial da escola de mas-
para todos, inclusive os adultos, definiu a educação como
direito social (artigo 6º) “fundante” da cidadania e instituiu sa e que organizava a hierarquia das posições no sistema
o ensino fundamental gratuito e obrigatório universal (para escolar. Estas mudanças incidem diretamente nas transfor-
crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos de qualquer mações das relações entre as gerações, tanto de pais e fi-
idade) como direito público subjetivo (artigo 208, parágra- lhos quanto entre professores e alunos. Com relações mais
fos 1º e 2º). horizontais, o exercício da autoridade na família e na escola
A partir de então, atendendo democraticamente à pres- como estava configurado até então – adultos mandavam e
são da sociedade, os governos passaram a dar mais atenção crianças/adolescentes obedeciam – tende a entrar em crise.
à área da educação, estabelecendo novos planos e estra- Na consolidação dos direitos das crianças, as responsabi-
tégias para financiar o sistema educacional – que a partir lidades específicas dos adultos que as cercam vão sendo
da nova Constituição volta a ter garantia de percentuais de modificadas e a relação escola-família passa a ser regida
impostos para seu desenvolvimento e manutenção –, quali- por novas normas e leis. No Brasil, em termos legais, os
ficar professores e avaliar os resultados das escolas públicas. direitos infanto-juvenis estão amparados pela Constituição
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), e desdobrados no Estatuto da Criança e do Adolescente
promulgada em 1996, traz pela primeira vez a dimensão da (ECA), Lei nº 8.069, de 1990, e na nova Lei de Diretrizes e
autonomia das escolas para concepção do projeto políti- Bases da Educação Nacional (LDB), promulgada em 1996.
co pedagógico, com apoio das Secretarias Municipais de Segundo a LDB, os profissionais da educação devem ser os
Educação. Até então, as escolas eram um espaço de imple- responsáveis pelos processos de aprendizagem, mas não
mentação de políticas e programas e não respondiam pela estão sozinhos nesta tarefa. A lei prevê a ação integrada
construção de seus projetos. das escolas com as famílias:
Como resultado da obrigatoriedade constitucional e
das novas políticas públicas desenvolvidas a partir da rede- Ação integral das escolas com as famílias prevista
mocratização do país, a taxa de escolarização da população na LDB
de sete a 14 anos subiu em 2000 para 97%. Dessa forma,
o desafio prioritário no ensino fundamental deixa de ser a “Art. 12. Os estabelecimentos de ensino, respeitadas
garantia do acesso à escola. Superada a exclusão pela falta as normas comuns e as do seu sistema de ensino, terão
de capacidade de atendimento, visualiza-se a exclusão pelo a incumbência de: (...) VI – articular-se com as famílias e a
aprendizado insuficiente. comunidade, criando processos de integração da socieda-

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BIBLIOGRAFIA

de com a escola; (...) Art. 13. Os docentes incumbir-se-ão ou seja, não apenas crianças e adolescentes têm direitos
de: (...) VI – colaborar com as atividades de articulação da a serem respeitados, mas também seus educadores e de-
escola com as famílias e a comunidade. Art. 14. Os sistemas mais profissionais. As discussões em torno do tema devem
de ensino definirão as normas da gestão democrática do ocorrer a partir de uma compreensão acurada da doutrina
ensino público na educação básica, de acordo com as suas da proteção integral, que precisa estar incorporada à for-
peculiaridades e conforme os seguintes princípios: (...) II – mação inicial e continuada de professores, gestores escola-
participação das comunidades escolar e local em conselhos res e educacionais. Com o envolvimento consciente desses
escolares ou equivalentes”. profissionais, a realização do direito à educação da criança
Como a educação básica é dirigida, em princípio, a alu- e do adolescente certamente será mais facilmente alcan-
nos de zero a 17 anos, o ECA se aplica às escolas e diz çada. Outra questão é que, para a efetivação do Estatuto,
explicitamente: novos atores, como o Conselho Tutelar – órgão permanen-
te e autônomo, não jurisdicional – e o Ministério Público,
Capítulo IV – passam a ser interlocutores dos agentes educacionais e das
Do Direito à Educação, à Cultura, ao Esporte e ao famílias. Essas mediações afetam o equilíbrio das relações
Lazer. de poder dentro das escolas, das famílias e entre escolas e
famílias. Conflitos antes tratados na esfera privada ganham
“Art. 53. A criança e o adolescente têm direito à edu- os holofotes e os rigores da esfera pública. Atualizando os
cação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, marcos existentes, o Plano de Metas Compromisso Todos
preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o pela Educação, do Plano de Desenvolvimento da Educação
trabalho, assegurando-se-lhes: (PDE), formalizado pelo Decreto nº 6.094, de 24/4/2007,
I – igualdade de condições para o acesso e permanên- reforça a importância da participação das famílias e da co-
cia na escola; munidade na busca da melhoria da qualidade da educação
II – direito de ser respeitado por seus educadores; básica. O Plano de Metas estabelece as seguintes diretrizes
III – direito de contestar critérios avaliativos, podendo para gestores e profissionais da Educação:
recorrer às instâncias escolares superiores;
IV – direito de organização e participação em entida- Diretrizes do Plano de Metas
des estudantis;
“XIX – divulgar na escola e na comunidade os dados re-
V – acesso à escola pública e gratuita próxima de sua
lativos à área da educação, com ênfase no Índice de Desen-
residência. Parágrafo único. É direito dos pais ou responsá-
volvimento da Educação Básica – Ideb, referido no art. 3º;
veis ter ciência do processo pedagógico, bem como parti-
XX – acompanhar e avaliar, com participação da comu-
cipar da definição das propostas educacionais. (...)
nidade e do Conselho de Educação, as políticas públicas na
Art. 55. Os pais ou responsável têm a obrigação de ma-
área de educação e garantir condições, sobretudo institu-
tricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino.
cionais, de continuidade das ações efetivas, preservando a
Art. 56. Os dirigentes de estabelecimentos de ensino
memória daquelas realizadas;
fundamental comunicarão ao Conselho Tutelar os casos de: XXI – zelar pela transparência da gestão pública na área
I – maus-tratos envolvendo seus alunos; da educação, garantindo o funcionamento efetivo, autôno-
II – reiteração de faltas injustificadas e de evasão esco- mo e articulado dos conselhos de controle social; (...)
lar, esgotados os recursos escolares; XXIV – integrar os programas da área da educação com
III – elevados níveis de repetência”. os de outras áreas como saúde, esporte, assistência social,
cultura, dentre outras, com vista ao fortalecimento da iden-
Tanto no ECA quanto na LDB, a efetividade do direito à tidade do educando com sua escola;
educação das crianças e dos adolescentes deve contar com XXV – fomentar e apoiar os conselhos escolares, en-
a ação integrada dos agentes escolares e pais ou respon- volvendo as famílias dos educandos, com as atribuições,
sáveis. Esse novo ambiente jurídico-institucional inaugura dentre outras, de zelar pela manutenção da escola e pelo
um período sem precedentes de consolidação de direitos monitoramento das ações e consecução das metas do
sociais e individuais dos alunos e suas famílias. De todos compromisso;
os equipamentos do Estado, a escola é o que tem o mais XXVI – transformar a escola num espaço comunitário
amplo contato contínuo e frequente com os sujeitos destes e manter ou recuperar aqueles espaços e equipamentos
direitos, daí sua responsabilidade de atuar junto a outros públicos da cidade que possam ser utilizados pela comu-
atores da rede de proteção social. Isso não significa mudar nidade escolar”.
o papel da escola e transformá-la em instituição assisten-
cialista, mas sim dar relevo a seu papel de ator fundamen- NOVAS FRONTEIRAS ESCOLA-FAMÍLIA
tal – embora não exclusivo – na realização do direito da
criança e do adolescente à educação. É comum se ouvir No movimento histórico apresentado anteriormente,
discussões acaloradas entre professores sobre o ECA, prin- vimos que houve transferência de parte das funções edu-
cipalmente quando ocorre alguma infração envolvendo cativas da esfera familiar para a estatal. Nesse deslocamen-
adolescentes que recebem a proteção indicada pelo Esta- to, ao mesmo tempo em que o saber familiar, sobretudo
tuto. De fato, o respeito deve ser exercido em “mão dupla”, das famílias pobres, foi desqualificado, ocorreu a profissio-

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BIBLIOGRAFIA

nalização das funções educativas, reorganizando a interse- Mais recentemente, além de representantes dos filhos,
ção de funções e responsabilidades entre as famílias e as os familiares têm sido estimulados – inclusive pela legis-
escolas. É importante ressaltar que ainda hoje mães, pais e lação educacional – a interagir com os profissionais da
os demais agentes escolares se encontram em condições educação também como cidadãos que compõem a esfera
bastante distintas dentro do processo educativo. Como pública da instituição escolar. A participação em conselhos
instituição do Estado encarregada legalmente de conduzir escolares (ou associações de pais e mestres), em conselhos
a educação formal, a escola, por meio de seus profissionais, do Fundeb, conselhos de merenda etc. é parte desta tare-
tem a prerrogativa de distribuir os diplomas que certificam fa de representação da sociedade civil e de controle social.
o domínio de conteúdos considerados socialmente rele- Essa dupla função – representante do filho e representante
vantes. Esses certificados são pré-requisitos para estudos da comunidade – torna mais complexa a delimitação dos
futuros e credenciais importantes no acesso das pessoas às lugares reservados aos pais e mães na escola, mas abre pos-
diferentes posições de trabalho na sociedade. Essas duas sibilidades importantes de exercício democrático de partici-
instituições, que deveriam manter um espaço de interse- pação que podem beneficiar todos.
ção por estarem incumbidas da formação de um mesmo Quando falamos em interação, pensamos em atores
sujeito, podem, dependendo das circunstâncias, se distan- distintos que têm algum grau de reciprocidade e de aber-
ciar até chegar a uma cisão. Normalmente, quando o aluno tura para o diálogo. Nessa perspectiva, é importante iden-
aprende, tira boas notas e se comporta adequadamente, tificar e negociar, em cada contexto, os papéis que vão ser
mães, pais e professores se sentem como agentes comple- desempenhados e as responsabilidades específicas entre
mentares, corresponsáveis pelo sucesso. escolas e famílias. Por exemplo, considera-se que o ensino é
Todos compartilham os louros daquela vitória. Mas, uma atribuição prioritariamente da escola. Esta, porém, divi-
quando os alunos ficam indisciplinados ou têm baixo ren- de essa responsabilidade com as famílias, quando prescreve
dimento escolar, começam as disputas em torno da divisão tarefas para casa e espera que os pais as acompanhem. Em
de responsabilidades pelo insucesso. O insucesso escolar um contexto de pais pouco escolarizados, com jornadas de
deveria suscitar a análise de causas dos problemas que trabalho extensas e com pouco tempo para acompanhar a
interferiram na aprendizagem, avaliando o peso das con- vida escolar dos filhos, essa divisão pode mostrar-se inefi-
dições escolares, familiares e individuais do aluno. O que caz. Por isso, da mesma forma como procura diagnosticar
se constata é que, em vez disso, o comportamento mais as dificuldades pedagógicas dos alunos para atendê-los de
comum diante do fracasso escolar é a atribuição de cul- acordo com suas necessidades individuais, a escola deve
identificar as condições de cada família, para então nego-
pas, que geralmente provoca o afastamento mútuo. Para
ciar, de acordo com seus limites e possibilidades, a melhor
ilustrar essa questão, colocamos lado a lado duas falas
forma de ação conjunta. Assim como não é produtivo exigir
recorrentes nas entrevistas realizadas para este estudo: –
que um aluno com dificuldades de aprendizagem cumpra
Dos professores, ouvíamos: “os pais dos alunos que mais
o mesmo plano de trabalho escolar dos que não têm difi-
precisam de ajuda são sempre os mais difíceis de trazer
culdades, não se deve exigir das famílias mais vulneráveis
até a escola”. – Dos pais desses alunos que mais precisam,
aquilo que elas não têm para dar.
ouvíamos: “nós, que mais precisamos de ajuda, somos os
mais cobrados pelas escolas”. E uns não escutam os outros. VI – TIPOS IDENTIFICADOS DE RELAÇÃO DAS ESCO-
Neste jogo de busca de culpados, a assimetria de poder LAS COM AS FAMÍLIAS
entre profissionais da educação e familiares costuma pesar
a favor dos educadores, principalmente quando temos, de O levantamento realizado para este estudo revelou ser
um lado, os detentores de um saber técnico e, de outro, pequeno o número de iniciativas (projetos, programas ou
sujeitos de uma cultura iletrada. Novamente, se essas dife- políticas) em curso no Brasil desenhadas especificamente
renças são convertidas em desigualdade, a distância entre para estimular a relação escola-família. Constatamos tam-
alguns tipos de famílias e as escolas que seus filhos fre- bém que várias experiências, localizadas via internet, ha-
quentam se amplia. Podemos dizer que usar a assimetria viam sido interrompidas com pouco tempo de duração. Isso
de poder para transferir da escola para o aluno e sua família pode indicar tanto que tais experiências foram projetadas
o peso do fracasso transforma pais, mães, professores, di- como eventos pontuais – dia da família na escola, ação co-
retores e alunos em antagonistas, afastando estes últimos munitária, festividades –, quanto a dificuldade de conceber
da garantia de seus direitos educacionais. É uma armadilha e implementar uma proposta mais consistente. Estes fatos
completa. Mas seria possível, ou desejável, anular a assi- contrastam com o discurso difundido por pesquisadores,
metria entre os familiares dos alunos e os profissionais da educadores, gestores educacionais e legisladores sobre
educação? Entendemos que por trás da assimetria há di- a importância de se trabalhar em conjunto com a família
ferenças reais. Os educadores escolares são profissionais dos alunos. Como ler esta distância entre o suposto con-
especializados que têm autorização formal para ensinar e, senso sobre a relevância de aproximação das escolas com
conforme já mencionado, para emitir certificações escola- as famílias e a dificuldade de se conceber e implementar
res. Eles formam um coletivo com interesses profissionais programas ou políticas nessa direção? Parte da explicação
e institucionais a zelar, enquanto os familiares, geralmente parece estar na conjunção da complexidade do tema e das
pouco organizados, são movidos por interesses individuais inúmeras dificuldades que as escolas públicas brasileiras
centrados na defesa do próprio filho. enfrentam para acolher o universo das crianças em idade
de escolarização obrigatória.

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BIBLIOGRAFIA

As pesquisas mostram também que esta interação nem sempre é cordial e solidária. Ela pode ser uma relação arma-
dilhada, onde nem tudo o que reluz é ouro ou um diálogo (im)possível, como descrevem alguns teóricos mais influentes
sobre a questão. Um agravante da dificuldade do empreendimento pode ser, justamente, a falta de referências concretas
de experiências municipais e escolares que obtiveram resultados comprovados de uma interação que resultasse em melho-
ria na qualidade educacional. O presente estudo pretende avançar, mesmo que de forma exploratória, na remoção deste
último obstáculo. Com base nas informações coletadas, fizemos uma leitura transversal que aglutinou as experiências em
quatro tipos de intencionalidade.

TIPOS DE PROPOSTA DE INTERAÇÃO ESCOLA-FAMÍLIA

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BIBLIOGRAFIA

Toda tipologia deve ser tomada como uma das possíveis interpretações dos dados e tem efeito simplificador que
redunda em perdas. Perdem-se a riqueza dos contextos, as nuances de situações muito distintas e os detalhes de cada
experiência concreta. Na realidade, uma mesma experiência pode ter simultaneamente objetivos, estratégias e resultados
de diferentes tipos, de forma que eles não são mutuamente excludentes. Nossa expectativa com esta classificação é ajudar
os gestores e educadores a reconhecer em que medida já realizam atividades de interação escola-família e refletirem como
podem ampliá-las, redirecioná-las ou iniciar novos cursos de ação segundo as necessidades diagnosticadas.

Educar as famílias

Praticamente todas as escolas e redes de ensino fazem reuniões de pais e promovem debates sobre as mudanças
sociais que afetam as crianças, jovens e consequentemente escolas e famílias. Nessas ocasiões apresentam seus projetos
pedagógicos, falam de seus planos e convidam palestrantes para esclarecer sobre o perigo do envolvimento com drogas,
o risco de uma gravidez precoce, a dificuldade de impor limites e manter a autoridade do adulto etc. Às vezes, as reu-

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BIBLIOGRAFIA

niões são organizadas de forma mais lúdica, com técnicas cional. Sendo assim – e sem deixar de reconhecer que os
de dinâmica de grupo para que as pessoas se sintam mais mecanismos de participação e gestão democrática são
acolhidas. Mas, na medida em que a escola defende seu conquistas preciosas e relevantes –, a forma como eles são
lugar de protagonista e abre poucos canais de escuta sobre praticados deve ser objeto de atenção cuidadosa por parte
o que os pais têm a dizer, esse acolhimento fica num nível das escolas e redes de ensino.
muito superficial. A legitimidade é uma moeda importante na gestão es-
Não estamos negando a importância desse tipo de ati- colar/educacional. Além disso, cabe lembrar que há hoje
vidade, mas é importante também analisar alguns de seus programas de formação de conselhos municipais de edu-
limites. A ideia de educar as famílias costuma ter por base cação, conselhos escolares e outros, que ajudam a quali-
a suposição de que elas são omissas em relação à criação ficar esses processos de decisão coletiva. Interagir para
de seus filhos. Essa “omissão parental” que alguns auto- melhorar os indicadores educacionais Uma das principais
res nomeiam como um mito, aparece reiteradamente no causas diagnosticadas da fragilidade da interação das
discurso dos educadores como uma das principais causas famílias com as escolas é que a maioria dos usuários do
dos problemas escolares. Esse tipo de explicação incorre ensino público não tem a cultura de exigir educação de
numa inversão perigosa de responsabilidades: uma coisa é qualidade para seus filhos. Pesquisas envolvendo pais de
valorizar a participação dos pais na vida escolar dos filhos; alunos de escolas públicas atestam que, para a maior parte
outra é apontar como principal problema da educação es- destes, o direito à educação continua sendo confundido
colar a falta de participação das famílias. com vaga na escola, acesso ao transporte, ao uniforme e à
merenda escolar. Em resposta a isso, cartilhas orientando
Abrir a escola para a participação familiar sobre os direitos e deveres das famílias e sugerindo formas
de envolvimento dos pais e mães na educação dos filhos
Essa é uma das formas de aproximação mais difun- têm sido largamente divulgadas. Igrejas, empresas e ONGs
didas hoje no meio escolar. É onde se inscrevem políticas conclamam seus fiéis, empregados e beneficiados a atuar
federais como o Escola Aberta, o Mais Educação e também na busca por uma escola pública mais eficaz. Mais recente-
as ações que visam cumprir as diretrizes de gestão demo- mente, com a criação do Ideb, estamos vendo uma série de
crática da escola. O espaço da escola é visto como equi- iniciativas governamentais e não governamentais de mobi-
pamento público a serviço da comunidade cuja utilização lização da sociedade civil (familiares incluídos) para moni-
deve ser ampliada com a realização de atividades comuni- torar as metas estabelecidas para cada município e escola.
tárias, como oficinas para geração de renda e trabalho. Os Muitas redes de ensino começam a estabelecer incentivos
responsáveis pelos alunos são tratados como parte da co- com base nestas medidas.
munidade escolar representando seus pares em conselhos Cumprindo a determinação legal, neste tipo de intera-
ção as informações são compartilhadas com os familiares e
escolares, associações de pais, e até participando escola
as metas estabelecidas para os alunos são colocadas como
família como voluntários em ações cotidianas da escola,
um horizonte de interesse comum. Profissionais da educa-
inclusive em alguns casos como auxiliares das professoras
ção orientam familiares a atuarem complementarmente ao
em salas de aula.
trabalho da escola, valorizando e acompanhando a vida es-
Os eventos abertos ao público costumam ser plane-
colar dos filhos. Ajudam também a encontrar alternativas,
jados conjuntamente por representantes de pais e equi-
quando a família não consegue auxiliar nas atividades de
pe escolar. No entanto, a ação propriamente pedagógica
apoio escolar. Coloca-se assim o princípio de responsabili-
continua sendo uma questão de especialistas e um peda-
zação de cada parte para a mesa de negociações e novos
ço da conversa onde não cabe bem a opinião familiar. Em- atores entram em cena, como o Conselho Tutelar – convo-
bora o diálogo neste tipo de interação seja mais fecundo cado para ajudar no combate à infrequência e ao abando-
do que no tipo descrito anteriormente, os estudos que no escolar, por exemplo. Neste tipo de interação, o foco
focam especificamente a participação dos pais na esco- está posto nos resultados da educação escolar. Mediada
la revelam que as oportunidades e espaços destinados a por resultados de avaliações escolares, este tipo de intera-
esta participação costumam privilegiar um tipo de família, ção ajuda a organizar um diálogo mais produtivo. As ques-
que geralmente já se encontra mais próxima da cultura tões de disciplina são tratadas como um problema comum
escolar, em detrimento de outros20. Em outras palavras: e não como falha da educação familiar. As funções e metas
são sempre os mesmos e poucos pais e mães que parti- de ensino ajudam a estabelecer os compromissos a serem
cipam da gestão escolar. Nesse sentido a ideia de repre- assumidos pela escola. A dificuldade que se apresenta é
sentação é questionada diante da dificuldade em reunir que isso exige dos professores e gestores escolares segu-
um número realmente significativo de pais para a tomada rança para defender seu trabalho educacional e abertura
de decisões coletivas. Assim, aqueles familiares que as- para ouvir críticas em caso de resultados negativos, além
sumem os postos de representação tendem a defender da necessária disposição para buscar soluções de forma
visões particulares, muitas vezes a favor dos seus próprios compartilhada.
filhos – e não exatamente os interesses de seus pares. Isso No contexto atual, as ações de interação com a fa-
pode contribuir para manter afastadas as famílias menos mília para melhorar os indicadores educacionais tendem
escolarizadas e reforçar as desigualdades sociais dentro a se multiplicar. Incluir o aluno e seu contexto. Este tipo
da escola, barrando oportunidades de equidade educa- foi identificado em apenas três das experiências realizadas

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BIBLIOGRAFIA

pelas Secretarias – e mesmo assim de forma parcial. Essas mais igualitária dos diversos grupos familiares. Destaca-
experiências, ainda que raras, incorporam de maneira mais mos também que a presença de familiares na escola nem
completa os princípios propagados neste estudo, apon- sempre é um bom indicador de uma interação a serviço da
tando para possibilidades de interação escola-família me- aprendizagem dos alunos/filhos.
nos difundidas, mas promissoras. Nesse tipo de aborda- Uma escola que promove muitos e concorridos eventos
gem, a aproximação das famílias tem como ponto inicial pode estar se comportando mais como um centro cultural/
o conhecimento sobre as condições de vida dos alunos social e perdendo de vista o que lhe é específico, isto é, ga-
e sobre como elas podem interferir nos processos de rantir uma educação escolar de qualidade. Assim, é impor-
aprendizagem. Para estabelecer o diálogo, a escola tanto tante fazer uma diferenciação entre participação familiar
recebe as famílias quanto vai até elas por meio de visitas nos espaços escolares e participação na vida escolar dos
domiciliares, entrevistas com familiares, enquetes, troca filhos – o que também nem sempre depende da presença
de informações com outros agentes sociais que intera- dos responsáveis no estabelecimento de ensino. Chama a
gem com as famílias, como os agentes de saúde do Pro- atenção o fato de que em boa parte das experiências iden-
grama Saúde da Família etc. A equipe de gestão escolar tificadas a interação com as famílias não é pensada como
atua na preparação dessa aproximação e no planejamen- uma estratégia de conhecimento da situação familiar para
to das atividades pedagógicas a partir do que foi apreen- a construção de um diálogo em torno da educação esco-
dido sobre os alunos e seu contexto familiar. A interação lar, mas sim como uma intervenção no ambiente familiar
com as famílias é universal, isto é, atinge todos os alunos, para que ele responda de forma mais efetiva às deman-
mas as consequências do programa dão origem a formas das da escola. Essa diferença pode parecer sutil – porém
diferenciadas de atendimento aos alunos. Por exemplo: os é bastante significativa. Para ilustrá-la, vamos pensar em
casos de vulnerabilidade e abuso são notificados, encami- posturas diferentes diante de uma atividade que está pre-
nhados e acompanhados em conjunto com outros órgãos sente em todos os estabelecimentos de ensino: as reuniões
públicos. de pais na escola. Uma reunião pode ter elementos muito
A partir daí, serviços de atendimento educacional aos semelhantes, mas, dependendo da sua condução, pode au-
alunos com menos apoio familiar podem ser organizados mentar a distância entre os participantes ou abrir canais de
e assumidos pelas escolas. Este é um tipo de relação que diálogo.
requer uma disposição de revisão permanente das práti- A reunião poder ser marcada no horário de conveniên-
cas e posturas da instituição escolar e também a articu- cia da escola sem consultar a disponibilidade dos respon-
lação de outros profissionais para compor uma rede de sáveis, ter como conteúdo mensagens que a escola quer
proteção à criança e ao adolescente que seja realmente passar aos familiares, independentemente de qualquer tipo
integral. Reflexões sobre a prática A diversidade de expe- de demanda destes, e a dinâmica pode ser os profissio-
riências que encontramos reforça o que já dissemos sobre nais da educação falarem e os familiares escutarem. Nes-
as múltiplas funções e possibilidades que a interação es- ses casos, os cuidados com acolhimento e participação são
cola-família pode cumprir. Podemos fazer uma aproxima- pequenos e podem acontecer situações nas quais os pais
ção desta tipologia com uma outra, proposta por Jorge se sentem excluídos, como a projeção de textos escritos
Ávila de Lima, que classifica o envolvimento dos pais na para uma plateia com muitos analfabetos ou o uso de lin-
escola em três tipos: guagem técnica que não é compreendida pela audiência.
1) Mera recepção de informação; A equipe escolar, ao fim desse tipo de encontro, só sabe o
2) Presença dos pais nos órgãos de gestão da escola; e que quis dizer e não o que foi compreendido pelas famílias.
3) Envolvimento significativo na vida da sala de aula. É A consequência é continuar trabalhando com suposi-
oportuno fazermos aqui uma observação: na construção ções sobre as famílias, sem ter avançado no conhecimento
de uma interação escola-família, importa mais o tipo de sobre elas e muito menos na construção de uma agenda de
relação que a atividade favorece do que a modalidade da colaboração mútua. Numa reunião em que há uma preocu-
atividade em si. Nas duas formas de classificação de ativi- pação maior com a interação, a equipe da escola organiza
dades citadas anteriormente, percebemos que a interação informações sobre o desempenho dos alunos (geral e indi-
com as famílias ou participação parental pode ser mais ou vidual) e também orientações sobre como as famílias po-
menos superficial, dependendo do objetivo estabelecido dem estimular os alunos a se empenharem nas atividades
por cada escola ou rede/sistema de ensino. Há casos em escolares. Esse tipo de interação exige maior clareza dos
que a comunidade se impõe no espaço escolar, mas, na papéis dos agentes educacionais, que ajudam a delinear
maioria das situações, o tipo de interação é decidido pe- para pais e mães os lugares que podem ocupar no apoio/
los educadores. complementação da educação escolar. Como a interação
Algumas conquistas formais, como a participação de pretende influenciar positivamente o desempenho dos alu-
representantes de pais e mães e mesmo alunos na gestão nos, toma-se mais cuidado com a linguagem e procura-se
escolar, muitas vezes não passam de rituais burocráticos criar espaços de manifestação e esclarecimento de dúvidas.
travestidos de democracia. Para que um programa de in- Os horários das reuniões são normalmente marcados
teração cumpra seus objetivos de igualdade de oportuni- após consulta aos familiares, os assuntos são registrados
dades entre os alunos, é preciso analisar que participação em ata e os compromissos de cada um são estabelecidos
é essa, em que medida ela é representativa do conjunto e acompanhados tanto pela escola, como pelos responsá-
das famílias, e que fatores podem inibir a participação veis junto com a avaliação processual dos alunos. Nos ca-

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BIBLIOGRAFIA

sos onde a relação escola-família já está mais desenvolvida, VII – ELEMENTOS PARA UMA POLÍTICA DE INTERA-
os motivos apresentados pelas famílias para não participar ÇÃO ESCOLA-FAMÍLIA
dos encontros das escolas são pesquisados e utilizados
para o planejamento das próximas atividades. Em vez de Esta seção aponta alguns elementos para a elabora-
uma série de respostas, os profissionais da escola fazem ção de uma política ou programa de interação escola-fa-
também perguntas e dialogam com os pais antes de pro- mília, reconhecendo que a base empírica do estudo não
por ações de responsabilidade conjunta. nos permite ir muito além disto. Inicialmente retomaremos
Para os pais ausentes, são pensadas estratégias não aspectos mais estratégicos, como a definição de ações (que
somente para disseminar as informações da reunião, mas podem configurar um projeto, um programa, uma política),
também para apoiá-los, se for o caso, com ações da rede para, num segundo momento, detalharmos aspectos que
comunitária ou de proteção social disponível. Os familia- ajudem a pensar a operacionalização do programa/políti-
res podem propor temas para a reunião com a escola. Os ca. Reiteramos que este estudo não pretende ser normati-
agentes escolares se posicionam claramente como respon- zador e sim sinalizar um caminho de reflexões para repen-
sáveis pelo ensino e negociam com as famílias suas pos- sar as práticas estruturantes do fazer pedagógico a partir
sibilidades de ajudar na escolarização dos filhos. Obser- da interação entre escolas e famílias.
va-se, enfim, nesse tipo de reunião, uma efetiva abertura
para tomar os pais como sujeitos e parceiros do processo VII. 1 – Pensando estrategicamente a Interação Es-
de escolarização, buscando compreender seus pontos de cola-Família
vista e evitando-se exagerar nas expectativas em relação
a eles. Os argumentos sobre a importância e necessidade do
Concluindo, queremos dizer que vão existir sempre re- trabalho integrado entre essas duas instituições são tão
uniões e reuniões – poderão ser produtivas ou infrutíferas, numerosos que, muitas vezes, nos esquecemos de fazer al-
dependendo da forma como são construídas. Ao organizar gumas perguntas simples, porém fundamentais:
encontros e palestras, a escola precisa ter em seu hori-
zonte algumas questões, como por exemplo: qual lugar é AS ESCOLAS PODEM TRABALHAR SEM AS FAMÍ-
reservado para as famílias? A atividade reforça a assimetria LIAS?
entre quem sabe/quem não sabe, quem é especialista ou
formado/quem não é, ou estabelece um espaço efetivo de É claro que o trabalho conjugado entre as duas ins-
diálogo em que todos são interlocutores válidos? Nessa tâncias socializadoras favorece o desenvolvimento integral
segunda perspectiva, educadores escolares e famílias po- (incluindo a carreira escolar) das crianças e adolescentes.
dem ter a chance de se educarem juntos. Mas não podemos esquecer que, sendo o Estado o respon-
O calor não dava trégua, mesmo no final da tarde. Não sável primário pela educação pública, deve procurar meios
havia nem ventilador, muito menos ar refrigerado. Mes- para priorizar e garantir esse direito. Ou seja, o sistema de
mo assim cerca de 60 mães/pais/avós de alunos da Escola ensino que deposita todas suas expectativas ou a culpa dos
Municipal Santa Maria de Vassouras se reuniram para ouvir resultados escolares de seus alunos exclusivamente na fa-
um texto, assistir a um filme e, depois, bater um papo so- mília está de alguma forma renunciando a sua missão. O
bre o que ouviram e viram com a diretora e técnicos da Se- dever da família quanto à educação escolar obrigatória é
cretaria de Educação. O texto Nó do Afeto dizia que, mes- matricular e enviar regularmente seus filhos às escolas. O
mo com pouco tempo, um pai e uma mãe podem mostrar não cumprimento deste dever caracteriza negligência pas-
ao filho que o amam e se interessam por sua vida escolar. sível de punição legal.
O filme Vida Maria mostrava o efeito do trabalho precoce É preciso que as escolas conheçam as famílias dos alu-
e da falta ou interrupção da escola na vida de crianças de nos para mapearem quantas e quais famílias podem ape-
um meio rural. nas cumprir seu dever legal, quantas e quais famílias têm
O legado de uma geração para a outra era só a mi- condições para um acompanhamento sistemático da es-
séria. A tristeza do filme emudeceu um pouco as mães. colarização dos filhos e quantas e quais podem, além de
Mas uma avó logo soltou a voz: “no meu tempo, era assim acompanhar os filhos, participar mais ativamente da gestão
mesmo. A gente não ia para a escola porque era longe e escolar e mesmo do apoio a outras crianças e famílias. É
porque precisava trabalhar. Ninguém aprendia nada”, dis- nesse sentido que a interação com famílias para conheci-
se. Perguntada se via mudanças, afirmou: “hoje tem escola mento mútuo destaca-se como uma estratégia importante
em todo o lugar e ajuda para estudar”, resumiu. Esta reu- de planejamento escolar e educacional.
nião foi uma das várias realizadas em 2008 nas escolas de O levantamento sistemático de informações objetivas
Teresina, dentro do projeto “Conversando a Gente se En- sobre os recursos e as atitudes das famílias frente à es-
tende”. O pessoal das escolas e os familiares têm gostado colarização dos filhos deve substituir ações baseadas em
dessas reuniões: dizem que são diferentes, interessantes e suposições genéricas do que, em tese, toda família deveria
agradáveis. Depois de sensibilizar os pais para o debate, a fazer para o bom desenvolvimento dos filhos. De novo, te-
estratégia do “Conversando a Gente se Entende” tem sido mos que passar da “família esperada” à “família real” para
exortar a participação deles na busca de uma educação de traçar estratégias mais eficazes visando o envolvimento fa-
qualidade para os filhos. miliar na vida escolar dos alunos. Uma política ou progra-

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BIBLIOGRAFIA

ma de interação escola-família é uma forma de estabelecer Numa outra história, a professora de educação física
uma racionalidade produtiva para essa delicada relação, de contou que não conseguia envolver vários de seus alunos
modo a tirá-la tanto do lugar de bode expiatório – situação nas atividades de dança. Ela argumentava com a turma o
na qual a ausência das famílias é, reiteramos, motivo alega- quanto soltar o corpo era bom e prazeroso e tinha como
do para os maus resultados da rede de escolas –, quanto do resposta os olhares desconfiados de boa parte da turma.
otimismo ingênuo – segundo o qual basta haver vínculos Quando se aproximou das famílias, percebeu que a orien-
amistosos entre professores, gestores, mães, avós e demais tação religiosa da maioria das mães e pais pregava que a
parentes para se julgar que há complementaridade entre os dança era um ato pecaminoso. Assim, a professora perce-
dois universos de referência das crianças. beu que, ao insistir na atividade, gerava um sério conflito
moral em seus alunos. Os exemplos acima sinalizam que
UMA POLÍTICA PARA QUÊ? uma compreensão mais apurada das condições de vida e
da cultura dos alunos pode gerar mudanças produtivas no
Guiada pelos princípios já expostos, a política de inte- planejamento pedagógico e na relação professor-aluno.
ração deve estar alinhada com objetivos gerais, tais como: Este ponto merece especial atenção, pois, desde o fim dos
• Garantir aos alunos o direito a educação de qualidade anos 1960, pesquisas já constatavam que as expectativas
e a salvo de toda forma de negligência e discriminação; dos docentes funcionam como uma profecia autorrealiza-
• Promover ensino de qualidade, compreendendo e in- dora para seus alunos.
cluindo o contexto familiar e social do aluno no processo A profecia autorrealizadora, também conhecida como
educativo; efeito pigmaleão, foi fundamentada por Rosenthal e Jacob-
• Conhecer as situações das famílias dos alunos, bus- son (1968). O estudo mostrou que os professores tendem
cando envolvê-las, na medida de suas possibilidades, na a tratar os alunos conforme expectativas prévias que termi-
educação escolar dos filhos. O que a interação com as fa- nam por influenciar o desempenho efetivo dos estudantes.
mílias tem a ver com a qualidade de ensino-aprendizagem? Por exemplo, um professor classifica um aluno como desa-
Recuperando a ideia de que a relação escola-família come- tento e passa então a agir em relação a este aluno sempre
ça pelo tratamento que é dado aos alunos em sala de aula, segundo este pensamento. Com o tempo, o aluno acaba
vemos que as iniciativas de interação podem ter conexão se convencendo de que é mesmo desatento, intensifican-
direta com as práticas pedagógicas propriamente ditas.
do comportamentos nesse sentido. Se a percepção de um
Independentemente da estratégia de aproximação das
professor sobre cada um de seus alunos é decisiva para a
escolas dos contextos familiares dos alunos, é importante
promoção de uma boa relação escola-aluno, um diagnós-
que ela seja pensada para incidir diretamente no conheci-
tico baseado em suposições e não em evidências sobre os
mento que a escola tem sobre as condições de apoio educa-
fatores que estão interferindo nos problemas de aprendi-
cional que cada aluno tem na dinâmica do seu grupo familiar.
zagem pode gerar intervenções pedagógicas pouco efica-
Ao conhecer as condições reais das famílias – simbólicas e
materiais –, as escolas conseguem delimitar melhor o seu es- zes e com resultados possivelmente desastrosos.
paço de responsabilidade específica e planejar de forma mais Além disso, os julgamentos escolares costumam in-
concreta os apoios necessários para o grupo de alunos cujas fluenciar a expectativa das famílias – o que, por sua vez,
famílias não têm condições (mesmo que temporariamente) impacta consideravelmente as chances de uma criança,
de se envolver na escolaridade dos filhos. Além disso, quan- adolescente ou jovem ter sucesso como aluno. O círculo vi-
do os alunos percebem que seus professores os conhecem, cioso se quebra quando “a escola abraça até o mau aluno”,
sabem com quem moram, em que situação vivem, sentem- como disse uma coordenadora pedagógica entrevistada. A
-se mais seguros para expressar seus medos e dúvidas na interação com as famílias nos moldes como estamos con-
sala de aula. Esse conhecimento pode vir por meio de visita cebendo aqui é recente na história da educação brasileira,
domiciliar, realizada pelo próprio professor ou outro agente por isso ela requer mudanças de mentalidade de todos os
educacional, por informações organizadas via questionário, envolvidos. Segundo várias pesquisas, as escolas frequen-
pela presença de pais nos espaços escolares e mesmo por temente representam as famílias como uma extensão de
atividades realizadas diretamente com os alunos. si mesmas, sem perceber as diferenças de lógica de um
Muitos professores ouvidos nesse estudo afirmam que, espaço a outro. Esse traço, de colocar a lógica da instituição
ao verem com mais nitidez a realidade de alunos, modifica- escolar no centro do diálogo, é chamado escolacentrismo e
vam sua interpretação sobre seu comportamento em sala costuma impedir que os agentes escolares escutem e com-
de aula, deixando de lado a expectativa de aluno ideal e preendam o ponto de vista das famílias.
abraçando o aluno real. Vários exemplos apareceram nos O estudo Participación de las familias en la educación
municípios visitados. Em um deles, uma professora relatou infantil latino-americana destaca alguns fatores que costu-
que tinha dificuldades para lidar com um aluno que atra- mam inibir uma boa interação com algumas famílias. Todos
palhava o ritmo dos colegas: ficava sempre brincando, cir- esses fatores podem, de alguma forma, ser relacionados
culando pela sala, e não se concentrava nos seus afazeres. com a ideia de “escolacentrismo”:
Quando conversou com sua mãe, se deu conta de que ele • Os professores sentem-se incomodados quando os
tinha uma série de atribuições domésticas e era responsá- pais opinam na área que julgam de sua competência ex-
vel, na ausência dos adultos, pelos irmãos mais novos. As- clusiva. Não veem importância ou não acreditam que as
sim, o único espaço que ele tinha para relaxar e ser criança famílias possam participar dessa relação de contornos mais
era a escola. pedagógicos.

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BIBLIOGRAFIA

• Educadores culpam a família pelas dificuldades O papel dos agentes educacionais é identificar as de-
apresentadas pelos alunos e alunas. É comum ouvir: a mandas e encaminhá-las aos serviços de apoio social exis-
mãe não se preocupa, abandona o filho, não estabelece tentes no município/bairro, estruturados especificamente
limites em casa. para as necessidades não escolares, por exemplo: grupos
• Professores criticam os pais (principalmente as mães) de alcoólicos anônimos, programas de erradicação de
por não ajudarem no dever e nos pedidos da escola, igno- trabalho infantil, serviços de saúde etc. Ou seja, é preci-
rando as mudanças do papel da mulher na sociedade. Assim, so que os gestores e demais responsáveis pela educação
o aluno que se apresenta sem o apoio do adulto é despresti- tenham uma visão intersetorial. No desenho de políticas
giado em sala de aula e tende a piorar seu rendimento. e ações intersetoriais, a coordenação costuma ficar a car-
• Gestores e docentes desqualificam aspectos da cul- go do prefeito municipal, já que exerce poder de articu-
tura familiar sem sequer conhecer o sentido das práticas, o lação entre os diversos setores governamentais e pode
espaço e a rotina familiar. ainda mobilizar organizações não governamentais, meios
• A escola persiste com atividades dirigidas a modelos de comunicação e a população em geral. Essa liderança é
de famílias tradicionais, apesar das mudanças na sociedade. um respaldo fundamental e até mesmo um pré-requisito
• A escola mantém a mesma rotina de reuniões, ofi- para desencadear as ações multissetoriais necessárias ao
cinas, palestras e atividades, sem consultar os pais sobre desenvolvimento de uma política educacional de interação
temas de seu interesse, necessidade e horários adequados. responsável e eficiente.
A identificação das práticas e atitudes que distanciam as Significa dizer que, se dos prefeitos espera-se o papel
famílias de um diálogo focado no desenvolvimento escolar de coordenador das políticas intersetoriais, do gestor edu-
dos seus filhos é importante para, por exemplo, rever os cacional esperam-se iniciativa, disposição e capacidade
conteúdos de formação dos docentes, reorganizar a forma de articulação horizontal com seus pares da Saúde, Assis-
como as escolas convocam e recebem familiares dos alu- tência Social etc., pois muitas vezes é necessário agilidade
nos, repensar as instâncias de participação na gestão da para que os problemas sociais não se alojem apenas nos
escola, entre outras providências. estabelecimentos de ensino. Caso o serviço não esteja dis-
ponível, mas seja uma demanda legítima da população, a
QUEM PROPÕE A POLÍTICA? secretaria ou órgão responsável deverá ser apoiado, com
dados coletados pela rede educacional, para pleitear junto
Ao considerarmos as instituições escolares como ini-
à administração municipal a instalação deste serviço ou
ciadoras do movimento de aproximação com as famílias, as
política. Como alertam os estudos de casos de articula-
orientações aqui contidas se dirigem prioritariamente aos
ção intersetorial, a construção de compromissos comuns
gestores educacionais, gestores escolares e professores.
a partir de referências disciplinares, técnicas, políticas e de
Embora tenhamos encontrado experiências interessantes
foco distintos é um grande desafio.
acontecendo em escolas, percebemos que a interferência
Apesar das dificuldades, constata-se que se a colabo-
direta ou a liderança da Secretaria de Educação aumenta
ração de vários setores é bem- -sucedida, ela oferece uma
as chances de sucesso de um programa de interação. Além
disso, é importante que a política conte com a participação série de vantagens para a população tais como: aumenta
da sociedade, representada, por exemplo, pelo Conselho o conhecimento e a compreensão entre os setores; evi-
Municipal de Educação, Conselho Municipal da Criança e ta superposição de funções que geram rivalidades; ajuda
do Adolescente etc. a estabelecer uma matriz de papéis e responsabilidades;
assegura o planejamento baseado no conhecimento am-
UMA POLÍTICA COM QUEM? pliado das necessidades da comunidade; e disponibiliza
para o público informações mais coerentes e uniformes.
A experiência tem mostrado que, quando a escola Programas como o Bolsa Família, de Erradicação do Traba-
vai ao encontro das famílias dos alunos, principalmente lho Infantil (Peti), Saúde na Família (PSF), Saúde na Escola
quando há contato direto como nas visitas domiciliares, (PSE), entre outros, são exemplos de aplicação da estraté-
os educadores se deparam com situações e demandas de gia intersetorial em interface com a educação.
várias ordens: alcoolismo, vício em drogas, violência, pre- Tal estratégia é reforçada pela Diretriz XXIV do Plano
cariedade das condições das moradias, necessidade de de Metas Compromisso Todos pela Educação do PDE –
atendimento médico, trabalho infantil doméstico etc. Esses “integrar os programas da área da educação com os de
problemas extrapolam a função dos educadores e, muitas outras áreas como saúde, esporte, assistência social, cultu-
vezes, causam-lhes uma sensação de impotência que os ra, dentre outras, com vista ao fortalecimento da identida-
fragiliza emocionalmente. Não se espera que a Educação de do educando com sua escola”. “Gente, é o mesmo me-
resolva todos os problemas sociais. A Assistência Social do nino!” Benjamin é um menino de 11 anos, bem alto para
município geralmente tem a atribuição de formar a Rede sua idade, que aproveita, todas as tardes, as atividades de
de Proteção Integral para crianças e adolescentes, confor- lazer oferecidas por um dos Centros de Referência de Ação
me prevê o ECA. As Secretarias de Educação e as escolas Social (Cras) de Teresina, onde sua família credenciou-se
são uma parte estratégica desta rede de proteção, espe- para receber o Programa Bolsa Família. O pessoal do Cras
cialmente porque têm contato cotidiano com as crianças e conhece Benjamin, sua preferência por basquete e acos-
jovens e, por meio deles, também com suas famílias. tumou-se a ouvir, todas as tardes, sua risada alta, quando

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BIBLIOGRAFIA

faz uma cesta. Para eles, Benjamin, e também sua família, Essa estratégia orienta a descentralização em adminis-
são participantes ativos do programa. Entretanto, o boletim trações regionais, a formação dos gestores escolares – para
de controle de frequência da escola do bairro, que fica ali se verem como agentes de ações intersetoriais –, e chega
perto do Cras, mostra que Benjamin faltou às aulas muito até as crianças de muitas formas. Um exemplo de desdo-
mais do que o permitido. bramento possível de um olhar mais de perto e em con-
Ele corre, portanto, o risco de ter o benefício suspenso. junto sobre cada aluno é o fornecimento de merenda dife-
Os gestores sabem que o dinheiro fará falta à família e não renciada para os alunos com problemas metabólicos, alér-
querem fazer isso, mas têm de cumprir as regras. E não gicos ou outros. Numa articulação entre as Secretarias de
entendem uma coisa: por que o menino está presente no Abastecimento, Saúde e Educação, alunos com restrições
Cras e não na escola? E por que não souberam disso antes? alimentares foram identificados e passaram a ter um car-
Na escola, a surpresa é a mesma: por que o menino e sua dápio montado exclusivamente para eles. A dieta passou
família prestigiam o Cras e não a escola? E por que não também a fazer parte do planejamento e da distribuição
souberam disso antes? Na realidade, professores e assis- alimentar nas escolas. Assim, os alunos se sentem incluídos
tentes sociais nem saberiam a reação e as dúvidas uns dos e atendidos nas suas necessidades específicas.
outros. Por quê? Porque simplesmente não conversavam A Secretaria Municipal de Educação (SMED) apoia,
uns com os outros. Assim como também não saberiam di- além das atividades internas a cada escola, o Fórum Famí-
zer se Benjamin está em dia com o posto de saúde. Já que lia-Escola – encontros nos quais os familiares expõem suas
faltou tanto, comprometendo seu desempenho escolar, dúvidas, queixas e sugestões sobre a educação e a escola
poderia estar doente. E olha que o posto, encarregado de de seus filhos. Todas as famílias também recebem trimes-
verificar o calendário de vacinas, fica bem ao lado da esco- tralmente o Jornal Famíla-Escola e contam com o serviço
la. Localizados no mesmo território, os gestores municipais de relacionamento por telefone chamado Alô, Educação!
de educação, saúde e assistência social cuidavam de suas Todas essas atividades orientam-se, segundo a SMED, para
atribuições, mas não entendiam o que tinham em comum. criar uma rede de colaboração, diálogo e parceria entre fa-
“Gente, é o mesmo menino”, resumiria a diretora da escola, mílias, escolas, comunidades e serviços públicos, garantin-
quando o grupo finalmente sentou-se à mesma mesa para do não só a permanência dos alunos em sala de aula, mas
conversar. Sim: o mesmo menino – de manhã na escola, de também o aprendizado de crianças, adolescentes e jovens.
tarde no Cras, e com passagens pelo posto de saúde. No
caso de Teresina, como 80% dos alunos da rede municipal UMA POLÍTICA COM QUE RECURSOS?
estão inscritos no Programa Bolsa Família, a necessidade de
articulação desses serviços é ainda maior. Sabemos que a descontinuidade dos programas na
Mas, como cada área só cuidava de sua parte, ninguém mudança de gestores públicos é um problema grave na
via o Benjamin inteiro: para uns ele estava bem, para ou- gestão educacional. Quando a política envolve custos ele-
vados, fica mais vulnerável a cortes orçamentários. Nas
tros, mal. Teresina decidiu encarar o desafio da interseto-
experiências visitadas para esta pesquisa, os recursos ma-
rialidade – tarefa que já se consolida em outras capitais,
teriais e humanos necessários para implementar ações de-
como Belo Horizonte (MG), como veremos a seguir. Em ou-
pendiam diretamente da estratégia de aproximação com as
tubro de 2008, os principais gestores municipais de Teresi-
famílias. Encontramos iniciativas com custo mínimo, ape-
na – pedagogos, médicos e assistentes sociais – estavam se
nas com a cessão de técnicos da SME para acompanhar
transferindo para o mesmo prédio para facilitar o trabalho
esporadicamente os trabalhos nas escolas. Já as iniciativas
conjunto. O município havia realizado também nessa épo-
que incluíam visitas domiciliares contavam com a provisão
ca um inédito Ciclo de Oficinas de Integração entre esses de recursos para custear os deslocamentos e o trabalho
profissionais, para organizar a rede de proteção social. A dos agentes educacionais. A frequência e abrangência des-
proposta é construir um planejamento conjunto de atendi- sas visitas definem o custo do programa. Chama atenção a
mento às famílias, por território. existência de decretos municipais amparando legalmente
A iniciativa tem o nome de Ciclo de Oficinas de Arti- esse tipo de função.
culação e Integração das Ações dos Centros de Referência Esse procedimento institucional fortalece as ações de
da Assistência Social (Cras) com as Políticas de Educação interação escola-família, tornando-as menos sujeitas a mu-
e Saúde. Resultou da parceria entre a Secretaria Munici- danças conjunturais. Além dos encontros diretos com fa-
pal de Educação e Cultura (Semec), a Secretaria Municipal miliares, é preciso prever recursos e prazos também para
do Trabalho, Cidadania e Assistência Social (SEMTCAS) e a atividades de formação dos profissionais de educação
Fundação Municipal de Saúde (FMS). A expectativa é que, envolvidos, e também para reuniões periódicas de troca
ao fazer o encaminhamento familiar para a rede de prote- de experiências, cursos ou outras atividades de formação
ção social, a escola estará também garantindo as condições continuada, reuniões ou fóruns de pais, além da avaliação
de educabilidade de seus alunos. Com 177 mil alunos e 118 dos resultados e replanejamento das ações. Em municípios
mil famílias, Belo Horizonte (MG) consolidou nos últimos maiores, publicações enviadas às casas das famílias, fórum
anos, a partir da criação do Programa Família-Escola, ações de pais, serviços de ouvidoria (0800), programas de rádio
integradas no território. São quatro grandes linhas de atua- e outras estratégias de comunicação também foram loca-
ção: controle da frequência escolar, transferência de renda, lizadas.
promoção da saúde e mobilização social.

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BIBLIOGRAFIA

VII. 2 – Pensando a Operacionalização do Progra- O projeto produziu ainda efeito cascata, ativando e re-
ma/Política vitalizando outras ações no ambiente escolar. Um desses
programas é o Laboratório de Redação, onde pais, mães,
FORMAS DE ATUAÇÃO DA SME JUNTO ÀS ESCOLAS alunos e professores escrevem sobre temas eleitos em con-
junto e debatem semanalmente suas produções. Depois
Sabemos que nem todos os programas educacionais do Laboratório de Redação, a visita dos alunos à Biblioteca
começam com um projeto escrito, mas em algum momento Pública, uma iniciativa do Governo do Estado denomina-
seus proponentes percebem a importância e a necessida- da Amigos da Leitura, virou programa familiar. Junto com
de de colocar as ideias no papel. Pode acontecer também as professoras, seguem para a biblioteca pais, mães, avós,
que, depois de implementado, um projeto ou programa tias, primas, irmãs mais velhas. Não só para ouvir a leitura
passe a ser uma atividade permanente, um eixo transversal das crianças, mas também para desfrutar, em sossego, de
do trabalho escolar/educacional. No levantamento reali- um bom livro. A experiência de Itaiçaba tem um contexto
zado, encontramos projetos criados por iniciativa de uma muito particular de envolvimento comunitário que facili-
ou mais professoras, projetos elaborados por SMEs, assim tou a mobilização espontânea de pais e mães e a abertura
como outros originados pela pressão da comunidade local completa das escolas a sua participação em todos os espa-
que, com o tempo e os bons resultados, acabaram virando ços. Essa não é uma estratégia simples de se implantar nem
política municipal. livre de problemas de delimitação de competências entre
professores e familiares sobre a tarefa de ensino.
DO NÃO ESCRITO A UMA POLÍTICA MUNICIPAL No entanto, naquele município, essa experiência tem
sido um estímulo para a renovação das práticas peda-
Itaiçaba é uma pequena cidade do Ceará com apenas gógicas e, junto com uma série de outros programas de
2.500 alunos, distribuídos em sete escolas municipais e uma formação, avaliação e fortalecimento da gestão, tem con-
estadual. Dividem as mesmas salas de aula da rede pública tribuído para a melhoria dos indicadores educacionais. As
os filhos de trabalhadores do campo e de fazendeiros, de experiências identificadas neste estudo foram implantadas
comerciários e comerciantes, das domésticas e das profes- pelas SMEs de duas formas básicas. Na primeira, a Secre-
soras, dos dirigentes e dos funcionários municipais. Há dois
taria, ouvindo as equipes escolares, elaborou o projeto e
anos, não só os filhos, mas também os pais e os parentes
apresentou-o às escolas para que manifestassem o interes-
começaram a frequentar todos os dias a escola, dispostos
se em aderir a ele. Dependendo do porte da rede, pode ser
a contribuir como pudessem para diminuir os altos índices
necessário dimensionar a proposta fazendo um projeto pi-
de evasão, de repetência e absenteísmo verificados no mu-
loto, envolvendo poucas escolas e, depois de analisar os re-
nicípio. A ideia de chamar os pais para a escola não estava
sultados, ampliar para as demais. Neste e em outros casos
escrita em lugar algum. Partiu da Secretaria Municipal de
Educação a iniciativa de reunir as famílias para algo além de seleção de escolas, os técnicos da Secretaria elaboram
da divulgação periódica dos boletins. critérios para priorizar os estabelecimentos de ensino que
O primeiro encontro para propor uma parceria escola- têm problemas mais agudos relacionados à aprendizagem,
-família ocorreu na escola Dom Aureliano Matos, na zona abandono ou vulnerabilidade das condições de vida dos
rural. A reunião, descrita como descontraída e prazerosa, alunos.
terminou com oito mães se prontificando para irem diaria- Na segunda, a SME constata que as escolas já estão
mente à escola. Basicamente, sentiram-se capazes de rea- desenvolvendo, por conta própria, ações de interação com
lizar as seguintes atividades: organizar brincadeiras com as as famílias de seus alunos e resolvem apoiá-las. Implan-
crianças na hora do recreio, ajudar no reforço escolar do tam uma coordenação técnica para que os projetos não
contraturno e levar um grupo de crianças para casa para ocorram de forma isolada e mantenham suas especificida-
que fizessem juntas o dever. des. Este é o caso de Itabuna (BA), que tem a integração
Nas outras escolas, o mesmo processo foi se repetin- escola-família como uma política pública aplicada nas 127
do: além de pais e mães, avós, tias e primas mais velhas escolas urbanas e 37 rurais que compõem a rede. Cada
foram se apresentando à escola como responsáveis pelos escola apresentou uma proposta e a SME designou três
alunos e se colocando à disposição para ajudar, dentro de coordenadoras, dentro da gerência de ensino básico, para
suas possibilidades e horários. Já havia algum tempo que cuidar da interação com a comunidade, além de organizar
os adultos podiam ser vistos nos pátios e salas de aula das uma coordenadoria exclusiva das relações escolas-famílias.
escolas quando o projeto Família Presente, Aluno Ideal foi Sudmenucci (SP), cuja rede é constituída de apenas sete
escrito. Ele passou então a ser apresentado nas igrejas, escolas, também preferiu não ter um projeto único e sim
quadras, auditórios e divulgado por um grupo de alunos apoiar os projetos de cada escola. Seja qual for a opção,
por meio da Rádio Itinerante, espaço semanal dos alunos uma aprendizagem importante é que essa política não
na rádio comunitária local, nas sete escolas municipais. Em pode ser imposta. As Secretarias precisam informar e dar
Itaiçaba, os envolvidos no projeto veem muitos benefícios. condições para que as escolas se posicionem.
“Eu estudo mais porque minha mãe está ali me olhando e Antes de aderirem, os gestores escolares devem avaliar
ajudando a professora”, disse um aluno. “Até a merenda sua relação com as famílias de seus alunos e com a co-
está melhor”, completa uma mãe. “Eu vi quando minha fi- munidade do entorno, sua estrutura funcional e, principal-
lha aprendeu a ler e escrever as primeiras palavras”, teste- mente, o engajamento de seus profissionais na proposta.
munhou um pai emocionado. Essa não é uma política sem riscos que possa ser executada

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BIBLIOGRAFIA

de forma burocrática. Como a base de uma boa interação Vimos também iniciativas nas quais os familiares dos
é a relação de confiança, se os compromissos subjacentes, alunos se fazem presentes em vários espaços escolares: au-
a esta política, não forem bem compreendidos, ela pode xiliam no recreio, apoiam os professores em sala de aula,
gerar o efeito inverso ao pretendido, ou seja, afastar ainda abrem suas casas para a realização de reforço escolar para
mais o universo escolar do universo familiar de referência seus filhos e vizinhos etc. É importante salientar, conforme
dos alunos. indicam outras pesquisas, que a participação das famílias
nas atividades escolares pode gerar conflitos com profes-
FORMAS DE APROXIMAÇÃO DAS ESCOLAS EM DIRE- sores, que veem suas salas de aula ocupadas por adultos
ÇÃO ÀS FAMÍLIAS que não têm as mesmas responsabilidades institucionais
nem a formação requerida para desempenhar funções de
No levantamento que fizemos, encontramos diversas es- ensino. Além disso, a presença voluntária de mães e pais no
tratégias de aproximação dos agentes escolares das famílias cotidiano escolar tem de respeitar a disponibilidade destes
dos alunos. Essa diversidade de estratégias nos parece válida para não gerar uma pressão extra sobre a carga de respon-
e necessária num país tão plural quanto o nosso. É impor- sabilidades parentais.
tante pensar nos riscos e possibilidades de cada uma dessas Na experiência de Itaiçaba, no entanto, como esta apro-
estratégias. Em alguns lugares, os professores fazem visitas ximação foi feita de forma paulatina e fruto da boa relação
se deslocando até o domicílio dos alunos. Em outros, quem escola comunidade, os efeitos dessa presença foram relata-
está encarregado da visita domiciliar é o agente da educação. dos como benéficos para alunos, responsáveis e docentes.
Essas visitas precisam ser bem preparadas e são atividades Seja qual for a estratégia de aproximação, é fundamental
formadoras muito importantes. preparar todos os profissionais envolvidos no programa
No entanto, questiona-se até que ponto os professores, para que atuem com segurança. Para isso, o dirigente mu-
que já têm uma vida profissional tão atribulada, têm condi- nicipal e sua equipe técnica devem estruturar linhas de for-
ções de assumir mais essa função e até que ponto ela deve- mação continuada, apoio e monitoramento das atividades
ria fazer parte de suas atribuições profissionais. No debate que serão planejadas e executadas pelos professores e ges-
da versão preliminar deste documento, que contou com a tores escolares. Algumas decisões prévias são definidoras
participação de professores, coordenadores e diretores es- do escopo do plano de ação.
colares, as vantagens desse tipo de ação foram consideradas Por exemplo: numa ação de aproximação com as famí-
mais relevantes quando ela é percebida como estruturante lias, todos os alunos serão contemplados? Comparando as
do planejamento do trabalho pedagógico com os alunos. In- experiências, concluímos que, desde que as famílias permi-
versamente, se esta ação não está articulada com os demais tam, todas devem ter a oportunidade de um encontro no
programas da Secretaria e da escola, ela foi considerada pou- qual possam se apresentar e conhecer melhor o ambiente
co importante. e as pessoas encarregadas da formação escolar de seus fi-
Deve-se observar que outras políticas setoriais também lhos. Esse é o momento para a família se dar a conhecer.
costumam utilizar a estratégia da visita – o que pode acabar Observamos que, quando a aproximação está ligada ape-
sobrecarregando o mesmo grupo familiar com perguntas, nas a problemas como infrequência, evasão e mau desem-
tarefas e orientações diversas. Há riscos de se gerar procedi- penho, ela ganha uma conotação negativa que estigmatiza
mentos duplicados, confusos e ineficazes. Nesse sentido, ou- os alunos visitados e faz com que os demais não queiram
vimos sugestões de formar os agentes do Programa Saúde os agentes escolares em seus lares. Pais e mães, quando
da Família como parceiros da Educação para, por exemplo, sentem que a escola só pensa na repreensão, costumam se
verificar motivos de infrequência escolar. Além disso, fatores afastar do ambiente escolar.
como a distância da casa dos alunos, risco de circulação em Como a experiência mais sistematizada que encontra-
áreas inseguras, são reais e precisam ser levados em consi- mos foi a de Taboão da Serra (SP), que está em vigor há
deração ao se optar pela visita domiciliar. Algumas Secreta- mais de cinco anos, disponibilizamos a seguir um exemplo
rias criaram serviços especiais, com psicólogos e assistentes mais operacional da estratégia de aproximação escolhida,
sociais, encarregados de fazer a ponte entre as escolas e as que no caso se realiza por meio da visita domiciliar realizada
famílias. A vantagem alegada é que estes profissionais têm por professores a todos os alunos. Ressaltamos, mais uma
uma formação mais adequada para a aproximação domiciliar vez, que essa é apenas uma das possibilidades de interação
e conseguem mediar relações tensas entre famílias e escolas. escola-família. É sempre importante que as famílias tenham
A desvantagem é que geralmente esses profissionais são o direito de dizer se desejam ou não receber uma visita, por
pouco numerosos e não conseguem cobrir o universo das exemplo, e possam participar de outro tipo de atividade.
famílias. As informações coletadas por eles não são também
imediatamente repassadas às escolas e professores. Em redes PASSO A PASSO DA PREPARAÇÃO DAS VISITAS NO
maiores, os mecanismos para falar e ouvir as famílias incluí- PROJETO DE TABOÃO DA SERRA
ram fóruns, serviços de telefone gratuito e publicações dis-
tribuídas em domicílio. Iguatu (CE) e Pedras de Fogo (PB) são 1) Envio de correspondência da escola para as famílias,
municípios que selecionam e formam jovens universitários informando da intenção da visita e solicitando que a família
ou concluintes do ensino médio para irem periodicamente responda, autorizando formalmente a realização desta.
à casa dos alunos, ajudando a controlar a infrequência, eva- 2) Agendamento da visita, de acordo com as disponi-
são e mesmo informar sobre problemas de aprendizagem bilidades do professor e da família, sempre fora do horário
e comportamento. escolar.

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BIBLIOGRAFIA

• As visitas podem ser marcadas pelo(a) professor(a) Para os alunos que participam do Programa Bolsa Famí-
aleatoriamente – por ordem alfabética dos alunos, por lia, que pertencem aos grupos familiares mais vulneráveis,
exemplo – ou priorizando as crianças que apresentam al- está disponível um banco de dados com as informações
gum problema de aprendizagem ou comportamento. necessárias ao acompanhamento do seu contexto social.
• Em qualquer situação, a orientação é de não fazer vi- Mas nem sempre as informações geradas em nível local
sitas “de surpresa”, sem agendamento prévio. 3) Realização são apropriadas neste mesmo nível. Isso ocorre, muitas ve-
da visita na data marcada (obs.: Cada visita tem a duração zes, porque a capacidade de analisar as informações não
aproximada de uma hora). está instalada na escola ou até mesmo na Secretaria. Assim,
• O professor da turma vai até a casa do aluno e esta- é importante localizar parceiros (universidades, por exem-
belece uma conversa informal sobre a família e o aluno, de plo) para investirem na formação profissional dos técnicos
acordo com as orientações gerais fornecidas pela Secretaria ou apoiarem o desenvolvimento desse tipo de competên-
de Educação. cia. É preciso levantar as informações que a escola/rede já
• O professor deve fornecer informações sobre o de- dispõe para então definir quais dados devem ser buscados
sempenho escolar do aluno e ouvir da família sua percep- junto às famílias. Há dois blocos de questões interligadas
ção sobre o mesmo, assim como entender as principais de- a se considerar: um bloco ligado às características sociais,
mandas de ajuda (serviços sociais públicos) daquele grupo econômicas e culturais e outro às formas de apoio para a
ou comunidade. escolarização.
• O professor é orientado a não fazer anotações duran- Para uma primeira abordagem das condições de vida
te a visita, a fim de manter o caráter informal. das famílias, é importante organizar informações sobre:
• Pode ser marcada nova visita, ou tantas outras quan- • Configuração familiar – número de membros e rela-
tas o professor julgar serem necessárias. 4) Elaboração do ções entre eles;
relatório após a visita, o professor faz um relatório e entrega • Condições de moradia – número de cômodos e con-
à coordenação da escola. dições de conservação das instalações;
• Cada escola estabelece seu modelo e/ou roteiro para • Renda per capita familiar;
elaboração do relatório. • Situação de escolaridade e de trabalho dos respon-
• Os relatórios são discutidos com a coordenação pe- sáveis;
dagógica da escola para identificar as necessidades de in- • Participação em programas governamentais (ex.: Bol-
tervenção (escolar ou não) e orientar as decisões sobre os sa Família). Caso estes dados já estejam disponíveis e orga-
encaminhamentos que sejam necessários. nizados na secretaria ou na escola, eles podem orientar a
• Os relatórios são confidenciais e arquivados na pró- organização e roteiro das visitas, reuniões coletivas e indi-
pria escola. viduais e entrevistas. Estas, por sua vez, podem atualizar as
5) Leitura e discussão coletiva dos relatórios e troca de ex- informações obtidas anteriormente.
periências que ocorrem uma ou duas vezes por mês; os relató- O contato mais permanente pode captar acontecimen-
rios são socializados com os demais professores, nos horários tos familiares – separações, nascimentos, morte, doença
coletivos utilizados para planejamento do trabalho pedagógico. – que são dinâmicos e não são captados apenas no mo-
Nestas ocasiões, os professores podem tratar de situações espe- mento da matrícula. Uma referência para eleger dados que
cíficas detectadas nas visitas e recebem sugestões dos demais. permitem relacionar a influência do contexto familiar no
6) Mensalmente a equipe de direção/coordenação da desempenho dos alunos é o Estudo Internacional Com-
escola encaminha ficha de controle das visitas realizadas parativo entre vários países – inclusive o Brasil –, que se
pelos seus professores à Secretaria, para que seja efetuado propôs a identificar os fatores associados ao desempenho
o pagamento da ajuda de custo correspondente aos profes- em linguagem e matemática para alunos do terceiro e do
sores. Caso sejam detectadas situações que a escola não se quarto anos do ensino fundamental. O estudo construiu
sinta apta a resolver, pode ser encaminhado relatório espe- um índice correlacionando o desempenho dos alunos em
cífico descritivo dos problemas para a Secretaria. testes padronizados com aspectos do contexto familiar tais
como:
VII. 3 – ASPECTOS A SEREM CONSIDERADOS NA • O nível de educação dos responsáveis;
OPERACIONALIZAÇÃO DO PROGRAMA OU POLÍTICA • O número de horas que os responsáveis passam em
casa nos dias de trabalho;
A seguir apresentamos mais algumas aprendizagens da • Os recursos de leitura que estão disponíveis na mo-
interlocução entre teoria e prática, que indicam aspectos a radia; e
serem considerados na operacionalização de programas, • A estrutura do núcleo familiar (se tem pai e mãe, mes-
políticas ou práticas de interação escola-família: Coleta e or- mo que não sejam formalmente casados).
ganização das informações sobre alunos e familiares A qua-
lidade de informações que as redes municipais têm sobre A análise das respostas mostrou que o aumento da
seus alunos é um fator importante para seu planejamento média de anos de escolaridade dos responsáveis resul-
geral e também das formas de aproximação das famílias ta no aumento dos rendimentos escolares de seus filhos.
dos alunos. Hoje, não faltam questionários contextuais di- Mostrou também que as crianças/adolescentes cujos res-
recionados a alunos, professores e gestores e aplicados nas ponsáveis leem para eles, costumam ganhar entre três a
avaliações externas efetuadas pelos governos federal, esta- seis pontos, especialmente em linguagem, acima daqueles
dual e municipal. cujos responsáveis não o fazem.

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BIBLIOGRAFIA

O efeito combinado de ler com frequência para os fi- apoiar as escolas para que aposentem gradualmente o
lhos e dispor de livros em casa é poderoso para melhorar o discurso da família desestruturada como disfunção a ser
rendimento na escola. Essas informações ajudam a pautar tratada e comecem a construir nas escolas competências
práticas pedagógicas que não deixem em desvantagem as para discernir situações de negligência e vulnerabilidade
crianças e adolescentes que não contam em casa com os socioeconômica que precisam ser encaminhadas, de arran-
recursos (família nuclear, pais escolarizados e disponíveis, jos familiares pouco usuais.
livros em casa) de apoio para sua escolarização. Além dis- O fundamental é que a escola consiga integrar ao seu
so, conhecer os hábitos da criança, o que gosta de fazer planejamento um saber sobre: quais grupos familiares são
– que atividades culturais frequenta, que responsabilidades capazes de cumprir bem a função de pátrio poder (e isso
assume em casa e como faz as tarefas escolares -, são in- não depende apenas da condição socioeconômica) e quais
formações relevantes para a equipe escolar organizar seu grupos familiares são capazes de dar suporte à vida escolar
trabalho. dos filhos. A inclusão dos saberes mais aprofundados so-
bre o aluno e seu contexto social no planejamento do tra-
Ações de formação dos educadores. balho pedagógico é especialmente importante, pois, sem
mudanças na cultura escolar e em suas práticas, todo esse
Embora as informações dos questionários sejam muito esforço pode se perder no meio do caminho e não bene-
importantes, elas não são suficientes para preparar os pro- ficiar de fato os alunos. Como grande parte das escolas
fissionais da educação para tomar a iniciativa de se apro- brasileiras já tem instituído o horário de trabalho pedagó-
ximar das famílias dos alunos. A formação dos educadores gico, sugere-se que o tema da interação escola família seja
deve ser pensada no seu conjunto, desde a preparação de incluído na pauta dessas reuniões e demais atividades de
informações sobre o desenvolvimento do aluno que serão formação na escola.
levadas até as famílias, passando pelo tipo de informação Ou seja, todo o conhecimento sobre os alunos deve ser
que a escola precisa observar/coletar sobre o contexto de incorporado ao trabalho cotidiano da equipe escolar. Ele
vida familiar, até a capacidade dos agentes escolares traba- deve servir para rever a comunicação com os familiares, os
lharem com essas informações para, enfim, incorporá-las contatos com a comunidade, os mecanismos de participa-
ao planejamento das práticas pedagógicas e/ou de gestão. ção na gestão da escola, as atividades e linguagem utiliza-
Nos encontros de formação, recomenda-se que os
da junto aos alunos, a avaliação dos alunos e a retroalimen-
educadores discutam as pesquisas que trabalham a revisão
tação da interação permanente das relações que incidem
dos mitos sobre o descaso das famílias em relação à educa-
sobre as condições de vida e aprendizagem das crianças.
ção dos filhos, sobre as novas configurações familiares e as
Isso pode exigir, num primeiro momento, um trabalho mais
transformações sociais que impactam as instituições escola
intenso dos coordenadores pedagógicos, equipe de dire-
e família. O presente estudo pode ser um subsídio inte-
ção, professores e funcionários da escola. Mas escola com
ressante para organizar conteúdos de formação. Na parte
inicial, a síntese histórica, os marcos legais e as reflexões o passar do tempo esse trabalho tende a ser absorvido pela
podem ser um ponto de partida para as discussões. rotina e, melhor, pode renovar o repertório de práticas pe-
Além disso, no final desta publicação está apresentada dagógicas e estimular a revitalização do trabalho escolar.
uma extensa bibliografia sobre o tema. Professores e coor- Concluímos que, para lidar com as famílias dos alunos
denadores pedagógicos entrevistados que participaram de sem reproduzir os mecanismos que reforçam a desigualda-
programas de interação direta com as famílias relataram de, a formação dos educadores não deve ser pensada ape-
seu crescimento pessoal e a conquista de um novo lugar nas como mais informação técnica: ela deve ser um espaço
profissional, considerado importante e relevante por seus de revisão de pressupostos e de exposição de conflitos e
alunos, familiares e comunidade. Mas ouvimos também receios, ou seja, deve abranger também as dimensões pes-
histórias de dificuldade, frustração e desencontro. Por isso, soais, éticas e políticas. Acompanhamento, apropriação das
na preparação de profissionais para o encontro com as fa- aprendizagens e avaliação das ações Os três efeitos mais
mílias dos alunos, seja indo até elas, seja abrindo o espaço importantes da aproximação com as famílias nas experiên-
escolar para sua maior presença e participação, duas ques- cias contatadas foram: a incorporação das aprendizagens
tões merecem atenção: de um lado, a idealização que cos- obtidas no contato com as famílias dos alunos para orga-
tuma haver sobre o arranjo parental que as famílias devem nizar serviços e atendimento a necessidades específicas; a
ter; de outro lado, a idealização de si mesmo que, muitas ampliação da participação das famílias na vida escolar dos
vezes, coloca os agentes escolares como detentores de alunos e na relação com os agentes escolares; e a articu-
uma posição cultural supostamente superior à da família, lação de programas e instituições para ajudar a escola a
impedindo que ela expresse seu saber sobre si e sobre o apoiar os alunos em situação mais vulnerável. Estes efeitos
mundo. geraram encaminhamentos em duas direções – para den-
É preciso reconhecer ainda que, muitas vezes, faltam tro e para fora da rede de escolas. Na direção intraescolar,
aparatos conceituais que permitam aos profissionais da a possibilidade de tirar o aluno real da sombra do aluno
educação enxergar os novos arranjos de convivência hu- esperado abre muitas oportunidades de transformação.
mana como estruturas familiares legítimas. O trabalho de Pode implicar a revisão da linguagem, metodologias e
formação deve sempre alertar os professores de que o conteúdos utilizados em sala de aula, que, por sua vez, al-
julgamento moral do outro baseado nos valores pessoais teram os projetos político-pedagógicos, podendo impactar
pode gerar mais preconceito. As redes de ensino precisam até os planos municipais de educação. Embora trabalhosa,

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BIBLIOGRAFIA

essa revisão das práticas é gratificante pois, afinal, há algo VIII – CONSIDERAÇÕES PARA FINALIZAR
mais frustrante para um professor do que não conseguir se
comunicar e interagir com seus alunos? Desse ponto de vis- Este estudo se propôs a dar um passo para a articu-
ta, a experiência de Taboão da Serra sinalizou um avanço ao lação de esforços teóricos e práticos a partir do levanta-
organizar um Grupo de Apoio Pedagógico (GAP) em cada mento de experiências já implementadas e de pesquisas
escola. O GAP promove encontros quinzenais de formação sobre a relação escola-família no Brasil. Será bem-sucedido
e apoio aos professores, além de atendimento individua- na medida em que conseguir mostrar que, apoiados pelas
lizado para os alunos que não têm suporte no ambiente Secretarias de Educação, os programas de interação têm
familiar para realizar suas atividades escolares. possibilidades de realmente impactar o trabalho cotidia-
Outro encaminhamento interno da aproximação com as no da escola. Não encontramos nem criamos um modelo
famílias é a necessidade de aperfeiçoamento dos instrumen- pronto de interação. Organizamos um conjunto de infor-
tos de avaliação. É avaliando que podemos prestar contas do mações e reflexões que podem ser úteis se bem adapta-
que estamos fazendo, disseminar boas experiências e corri- das às situações de cada município brasileiro. Vimos que
gir rumos. Embora a avaliação da aprendizagem dos alunos
as fronteiras e as relações entre escola e família mudaram
esteja hoje consolidada nos sistemas de ensino, o monito-
vertiginosamente no Brasil e no mundo nos últimos 60
ramento e a avaliação das políticas e dos projetos especiais
anos. De uma escola para poucos, chegamos a uma escola
das Secretarias e escolas nem sempre são realizados. Embora
seja comum a alegação de falta de tempo e de excesso de de massas com um alunado com características comple-
funções burocráticas, constatou-se também que ainda faltam tamente diferentes daquelas apresentadas nos tradicionais
instrumentos e capacidade técnica em muitas secretarias de cursos de formação de professores. Esse novo aluno e essa
educação para avaliar internamente ou contratar avaliações nova família desafiam os educadores. No passado recente,
externas. Este foi o ponto mais frágil das experiências loca- quando nos deparamos com os problemas sociais do en-
lizadas neste estudo. Mesmo as já consolidadas. A avaliação torno, trazidos para a escola na bagagem de seus novos
é uma atribuição eminentemente de Gestão Educacional e alunos, cometemos alguns erros que devem ser evitados:
está contemplada no PAR por meio do indicador: Existência, 1 – Não podemos retomar a mítica de que a escola
acompanhamento e avaliação do Plano Municipal de Educa- como sistema educativo é o único e principal fator da mu-
ção, com base no Plano Nacional de Educação não haviam dança social. Uma das poucas certezas que temos hoje é
passado por uma avaliação, apesar de este mecanismo estar que o desafio de garantir o direito de todas as crianças a
previsto em vários dos projetos e de sua importância ser re- uma educação de qualidade transcende as políticas educa-
conhecida. Por isso enfatizamos a importância e o cuidado tivas e se inscreve no centro das políticas sociais de desen-
que é preciso ter com os registros sobre as experiências: sem volvimento. Isso não significa retirar da escola seu papel
registros não há memória e muito menos avaliação ou apren- específico na socialização do saber e na formação de ati-
dizado consistente e cumulativo para o aperfeiçoamento das tudes compatíveis com a vida em sociedade, mas sim atri-
ações. O registro organizado e sistemático das atividades buir-lhe novas funções de articulação de outros atores para
possibilita a sistematização do conhecimento adquirido, bem que não se sobrecarregue tentando resolver os problemas
como a possibilidade de socialização e integração das novas do mundo, que atravessam as salas de aulas.
informações no planejamento continuado da ação educativa. 2 – Não podemos persistir em práticas homogêneas
Participação no grupo articulador das políticas intersetoriais. que desconsiderem as diferenças dos alunos e obriguem
Com relação aos aspectos relacionados aos alunos, todos a se conformar a um modelo de aluno esperado.
que extrapolam a alçada da escola e da educação, é preci- Além de não ser desejável, isso não é possível. As diferen-
so acionar as instâncias que compõem o grupo de gestão ças linguísticas, culturais, étnicas, econômicas, físicas etc.
intersetorial. Como já abordado anteriormente, deve haver
não podem ser convertidas em desigualdade de desempe-
vontade política do executivo municipal para liderar e sus-
nho e de oportunidades. Isso significa pensar em projetos
tentar um grupo de trabalho com representantes das di-
político-pedagógicos, políticas e programas que contem-
versas secretarias e demais órgãos de governo. Um avanço
plem todos e cada um dos alunos – o que não impede
em relação a este ponto é a promoção do planejamento
integrado de escolas, postos de saúde e centros de assis- que se pense em atendimentos e serviços diferenciados
tência social, por território. Os diretores de cada um des- de acordo com suas necessidades. Vivemos um momento
ses estabelecimentos públicos se reúnem periodicamente em que todas as crianças e adolescentes dos mais diversos
para traçar juntos metas de atendimento às demandas da grupos familiares têm reconhecido o seu direito de serem
população local. A combinação desses dois vetores de en- bem acolhidos pela escola. Como já destacamos, a relação
caminhamento – intra e extraescolares – potencializa que escola-família é inevitável, compulsória (no caso do ensino
os profissionais da educação sintam-se seguros para ajudar fundamental, pelo menos) e importante. Ocorre que não é
seus alunos a enfrentar eventuais adversidades vividas pelo fácil para as escolas lidar com tantos públicos diferentes.
seu grupo familiar, assumindo seu papel na rede de prote- Professores, coordenadores e diretores simplesmente não
ção social. A família, por sua vez, pode passar a ter, além de foram preparados nas faculdades para isso. Além disso,
maior respeito pela instituição escolar, a confiança necessá- a velocidade das transformações socioculturais foi maior
ria para assumir tarefas para as quais se julgava incapaci- fora do que dentro do sistema educacional, o que gerou
tada. Como diz um slogan bastante propagado na área de escola anacronismos nas relações escola-família que pre-
projetos sociais, é preciso ajudar a família a se ajudar. cisam ser revistos.

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BIBLIOGRAFIA

Boa parte desses profissionais, infelizmente, atribuiu 6 – Os familiares têm mesmo poder de interferência
ou ainda atribui o insucesso escolar à ausência ou omissão nos conselhos, assembleias, colegiados?
dos responsáveis. Dizer que as condições para o sucesso da 7 – A escola utiliza o conhecimento mais acurado que
educação escolar estão nas mãos das famílias é o mesmo tem ao se aproximar das famílias para se planejar, rever
que admitir que a escola só é capaz de ensinar a alunos que suas práticas e formas de tratar os alunos?
já vêm educados de casa. As pesquisas revelam que há um 8 – Quando a escola se aproxima das famílias e percebe
conhecimento ainda precário sobre os alunos e suas con- situações de vulnerabilidade social, ela consegue convocar
dições de vida. Isso significa que o trabalho desenvolvido novos atores para encaminhar os apoios necessários? Re-
nas escolas pode não estar considerando a diversidade e as conhecemos que relacionar diretamente as ações de um
reais necessidades de seu público. Iniciar um movimento da projeto ou política de interação escola-família com os in-
escola em direção às famílias está no escopo da responsa- dicadores de qualidade educacionais é um grande desafio
bilidade legalmente atribuída aos sistemas de ensino, mas que ainda está por ser encarado.
o conhecimento gerado nesta aproximação e sua utilização Os resultados que conseguimos evidenciar neste es-
no planejamento pedagógico têm sido pouco enfatizados. tudo – maior compromisso dos professores com seus alu-
Por isso, das várias funções que a interação escola-fa- nos, maior conhecimento da SME e das escolas sobre as
mília pode ter – informar os pais, orientá-los para se envol- condições que interferem na aprendizagem de seus alunos,
verem na vida escolar dos filhos, fortalecer a participação maior participação dos pais e comunidade na escolariza-
em conselhos e outras instâncias de democratização da ção dos alunos, menor evasão e infrequência etc. – foram
escola etc –, privilegiamos o conhecimento dos alunos no captados por meio de depoimentos de agentes e das in-
seu contexto como um primeiro passo necessário para o formações fornecidas pelos coordenadores dos projetos/
estabelecimento de uma relação que vai se desenvolvendo programas.
ao longo do tempo. Muitos se perguntam se a estratégia O que ajudou a dar lastro para sugerir alguns caminhos
de deslocar os educadores do seu espaço institucional para de ação foram pesquisas que investigaram políticas públi-
compreender o território no qual está situada a escola e cas ou outras experiências ligadas ao tema. Como este tipo
seus alunos não produzirá uma perda de foco da função de política ainda está em estágio de maturação no país,
específica da educação escolar, chamando para si deman-
o acompanhamento das experiências em curso torna-se
das que a ultrapassam. Isso não seria assistencialismo, ou
particularmente relevante. O monitoramento e a avaliação
seja, um retrocesso? No contexto aqui proposto, aproxi-
podem ajudar a aprimorar a tecnologia social de interação
mar-se da vida de cada um dos alunos é uma forma de
escola-família em favor da garantia do direito de aprender.
conhecer, reconhecer e utilizar as lições da realidade a favor
Desejamos a todos os educadores que se sintam inspirados
de sua aprendizagem.
por esse estudo que sejam zelosos e que guardem fôlego
Está, portanto, intrinsecamente relacionada com a mis-
para avaliar suas iniciativas e compartilhar suas aprendiza-
são da instituição escolar. Devemos sempre lembrar que o
gens.
fato de a escola não ter como lidar sozinha com todas as
questões que afetam a vida de seus alunos não fará com Assim poderemos consolidar uma política de interação
que esses problemas deixem de existir ou de desafiá-la. escola-família bem estruturada e capaz de gerar avanços
Pelo contrário: se não forem enfrentados, eles tenderão a importantes na garantia de uma educação de qualidade
se agravar e continuarão a se manifestar dentro da escola. para todos. Um indicador chamado alegria Watson não
Pois é para a escola que as crianças e adolescentes dia- aguentava mais. Todo dia, tinha de ficar ouvindo os colegas
riamente trazem seus pedidos de ajuda, ainda que balbu- se exibindo: “a professora foi lá em casa ontem, conversou
ciantes ou silenciosos. E é na escola que pode ser garanti- um tempão com mãe e pai, comeu bolo de chocolate, to-
do o direito a uma aprendizagem de qualidade. Diante da mou café e falou bem de mim”. O problema é que parecia
complexidade que afeta a vida dos alunos, e para cumprir que nunca chegava a sua vez. “Isso é que dá ter nome que
sua missão de assegurar um ensino público de qualidade, começa com W, fica no fim da fila, depois dele na chamada
a estrutura educacional deve assumir a iniciativa da apro- só X-Y-Z. Deve ser por isso que a professora está demoran-
ximação com as famílias, tendo sempre em seu horizonte do tanto para ir lá em casa”, pensava o menino. Na volta do
a articulação de políticas com outros atores e serviços so- recreio, o menino finalmente recebeu o que tanto esperava:
ciais. Para isso, as escolas e os sistemas de ensino poderiam a autorização, que deveria ser assinada pela mãe ou pai,
responder perguntas simples, tais como: para que a professora Vânia, a sua professora, visitasse sua
1 – Por que chamar as famílias à escola? casa. Eufórico, lia o papel, mas quando terminou seu sorri-
2 – Quando e por que ir às famílias? so havia murchado. E se o pai ou a mãe não quisessem, por
3 – Nos encontros programados pelos educadores, os algum motivo, a visita? Watson resolveu pôr fim à dúvida:
familiares têm oportunidades para falar o que pensam? assinou seu nome na autorização e entregou-a na mesma
4 – As situações de interação contribuem realmente hora para a professora. “Eles sempre dizem que eu também
para aproximar escola e famílias, ou acabam aumentando sou dono da casa”, justificou, abrindo novamente o sorriso.
as distâncias sociais e culturais entre elas? Falamos, durante todo este estudo, dos efeitos favoráveis
5 – A escola está aberta para conhecer e respeitar a da implantação de um programa de interação entre profis-
cultura, a organização e os saberes dos grupos familiares sionais da educação e familiares, para o processo educacio-
mais distanciados do padrão tradicional? nal e até para a consolidação de políticas sociais.

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BIBLIOGRAFIA

Mas reservamos para o final destacar a mudança mais deve ser entendida como a atribuição de significado pes-
visível, imediata e incontestável: a elevação da autoestima soal aos conteúdos concretos, produzidos culturalmente.
dos alunos. Quando ocorre um bem conduzido processo Pensando especificamente o trabalho do professor, o cons-
de aproximação entre escola e família, as crianças tornam- trutivismo é uma concepção útil à tomada de decisões
-se mais participativas em salas de aula, animadas com os compartilhadas, que pressupõe o trabalho em equipe na
estudos e alegres com a escola. Ou seja: alunos felizes. construção de projetos didáticos e rotinas de trabalho.
Por fim, é importante ressaltar que o construtivismo não
Fonte é um referencial acabado, fechado a novas contribuições;
Interação escola-família: subsídios para práticas esco- sua construção acontece no âmbito da situação de ensino/
lares / organizado por Jane Margareth Castro e Marilza Re- aprendizagem e a ela deve servir.
gattieri. – Brasília: UNESCO, MEC, 2009.
2. Disponibilidade para a aprendizagem e sentido
da aprendizagem
COLL, CÉSAR. O CONSTRUTIVISMO NA SALA A aprendizagem é motivada por um interesse, uma ne-
DE AULA. SÃO PAULO: EDITORA ÁTICA, 1999. cessidade de saber. Mas o que determina esse interesse, essa
(CAPÍTULOS 4 E 5). necessidade? Não é possível elaborar uma única resposta
a essa questão. No entanto, um bom caminho a seguir é
compreender que além dos aspectos cognitivos, a aprendi-
1. Os professores e a concepção construtivista zagem envolve aspectos afetivo-relacionais. Ao construir os
significados pessoais sobre a realidade, constrói-se também
O construtivismo não é uma teoria, e sim uma refe- o conceito que se tem de você mesmo (autoconceito) e a
rência explicativa, composta por diversas contribuições estima que se professa (autoestima), características relacio-
teóricas, que auxilia os professores nas tomadas de deci- nadas ao equilíbrio pessoal. O autoconceito e a autoestima
sões durante o planejamento, aplicação e a avaliação do influenciam a forma como o aluno constrói sua relação com
ensino. Ou seja, o construtivismo não é uma receita, um os outros e com o conhecimento; reconhecer essa dimensão
manual que deve ser seguido à risca sem se levar em conta afetivo-relacional é imprescindível ao processo educativo.
Em relação à motivação para conhecer, é necessário
as necessidades de cada situação particular. Ao contrário,
compreender a maneira como alunos encaram a tarefa de
os profissionais da educação devem utilizá-lo como auxílio
estudar, que pode ser dividida em dois enfoques: o enfo-
na reflexão sobre a prática pedagógica; sobre o como se
que profundo e o enfoque superficial. No enfoque profun-
aprende e se ensina, considerando-se o contexto em que
do, o aluno se interessa por compreender o significado do
os agentes educativos estão inseridos. Essas afirmações
que estuda e relaciona os conteúdos aos conhecimentos
demonstram a necessidade de se compreender os conteú-
prévios e experiências. Já no enfoque superficial, a intenção
dos da aprendizagem como produtos sociais e culturais, o
do aluno limita-se a realizar atarefas de forma satisfatória,
professor como agente mediador entre indivíduo e socie- limitando-se ao que o professor considera como relevan-
dade, e o aluno como aprendiz social. te, uma resposta desejável e não a real compreensão do
Tendo em vista uma educação de qualidade, enten- conteúdo. Importante ressaltar que o enfoque com que o
dida como aquela que atende a diversidade, o processo aluno aborda a tarefa pode variar; dessa forma, o enfoque
educativo não é responsabilidade do professor somente. profundo pode ser a abordagem de uma relação a uma
Desse modo, o trabalho coletivo dos professores, normas tarefa e o enforque superficial em relação a outras pelo
e finalidades compartilhadas, uma direção que tome de- mesmo aluno. A inclinação dos alunos para um enfoque ou
cisões de forma colegiada, materiais didáticos preparados outro vai depender, dentre outros fatores, da situação de
em conjunto, a formação continuada e a participação dos ensino da qual esse aluno participa.
pais são pontos essenciais para a construção da escola de Entretanto, o enfoque profundo pode ser trabalhado
qualidade. com os alunos de maneira intencional. Para isso, é preciso
A instituição escolar é identificada pelo seu caráter so- conhecer as características da tarefa trabalhada, o que se
cial e socializador. É por meio da escola que os seres hu- pretende com determinado conteúdo e a sua necessidade.
manos entram em contato com uma cultura determinada. Tudo isso demanda tempo, esforço e envolvimento pes-
Nesse sentido, a concepção construtivista compreende um soal. Outro ponto importante a ser ressaltado é que o pro-
espaço importante à construção do conhecimento indivi- fessor, ao entrar numa sala de aula, carrega consigo certa
dual e interação social, não contrapondo aprendizagem visão de mundo e imagem de si mesmo, que influenciam
e desenvolvimento. Aprender não é copiar ou reprodu- seu trabalho e sua relação com os alunos. Da mesma for-
zir, mas elaborar uma representação pessoal da realidade ma, os alunos constroem representações sobre seus pro-
a partir de experimentações e conhecimentos prévios. É fessores. Reconhecer esses aspectos afetivos e relacionais
preciso aprender significativamente, ou seja, não apenas é fundamental para motivação e interesse pela construção
acumular conhecimentos, mas construir significados pró- de conhecimento, tendo em vista que o autoconceito e a
prios a partir do relacionamento entre a experiência pes- autoestima, ligados às representações e expectativas so-
soal e a realidade. A pré-existência de conteúdos confere bre o processo educativo, possuem um papel mediador na
certa peculiaridade à construção do conhecimento, que aprendizagem escolar.

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BIBLIOGRAFIA

As interações, no processo de construção de conheci- 2) Adquirir os conhecimentos relevantes: Nessa con-


mento, devem ser caracterizadas pelo respeito mútuo e o cepção, entende-se que o aluno aprende quando apreende
sentimento de confiança. É a partir dessas interações, das informações necessárias. A principal atividade do professor
relações que se estabelecem no contexto escolar, que as é possuir essas informações e oferecer múltiplas situações
pessoas se educam. Levar isto em consideração é com- (explicações, leituras, vídeos, conferências, visitas a mu-
preender o papel essencial dos aspectos afetivo-relacionais seus) nas quais os alunos possam processar essas informa-
no processo de construção pessoal do conhecimento sobre ções. O conhecimento é produto da cópia e não processo
a realidade. de significação pessoal.
3) Construir conhecimentos: Os conteúdos escolares
3. Um ponto de partida para a aprendizagem de no- são aprendidos a partir do processo de construção pessoal
vos conteúdos: os conhecimentos prévios do mesmo. O centro do processo educativo é o aluno, con-
siderado como ser ativo que aprende a aprender. Auxiliar a
Quando se inicia um processo educativo, as mentes construção dessa competência é o papel do professor.
dos alunos não estão vazias de conteúdo como lousas
em branco. Ao contrário, quando chegam à sala de aula A primeira concepção está ligada às concepções tra-
os alunos já possuem conhecimentos prévios advindos da dicionais, diferenciada em relação às duas restantes por
experiência pessoal. Na concepção construtivista é a partir enfatizar o papel supremo do professor na elaboração
desses conhecimentos que o aluno constrói e reconstrói das perguntas. As outras duas concepções, pelo contrário,
novos significados. Identificam-se alguns aspectos globais ocupam-se de como os alunos adquirem conhecimentos;
como elementos básicos que auxiliam na determinação do no entanto, entendem de formas diferentes esse proces-
estado inicial dos alunos: a disposição do aluno para rea- so. Compreendendo-se que aprender é construir conhe-
lizar a tarefa proposta, que conta com elementos pessoais cimentos, identifica-se a natureza ativa dessa construção
e interpessoais com sua autoimagem, autoestima, a repre- e a necessidade de conteúdos ligados ao ato de aprender
sentação e expectativas em relação à tarefa a ser realizada, conceitos, procedimentos e atitudes.
seus professores e colegas; capacidades, instrumentos, es- Nesse sentido, é preciso organizar e planejar intencio-
tratégias e habilidades compreendidas em certos níveis de nalmente as atividades didáticas tendo em vista os con-
inteligência, raciocínio e memória que possibilitam a reali- teúdos das diferentes dimensões do saber: procedimental
zação da tarefa. (como a observação de plantas); conceitual (tipos e parte
Os conhecimentos prévios podem ser compreendidos das plantas); e atitudinal (de curiosidade, rigor, formalidade,
como esquemas de conhecimento, ou seja, a representa- entre outras). O trabalho com esses conteúdos demonstra
ção que cada pessoa possui sobre a realidade. É impor- a atividade complexa que caracteriza o processo educativo,
tante ressaltar que esses esquemas de conhecimento são trabalho que demanda o envolvimento coletivo na escola.
sempre visões parciais e particulares da realidade, deter- 5. Ensinar: criar zonas de desenvolvimento proxi-
minadas pelo contexto e experiências de cada pessoa. Os mal e nelas intervir.
esquemas de conhecimento contêm, ainda, diferentes ti-
pos de conhecimentos, que podem ser, por exemplo, de O ensino na concepção construtivista deve ser entendi-
ordem conceitual (saber que o coletivo de lobos é alcateia), do como uma ajuda ao processo de ensino-aprendizagem,
normativa (saber que não se deve roubar), procedimental sem a qual o aluno não poderá compreender a realidade e
(saber como se planta uma árvore). Esses conhecimentos atuar nela. Porém, deve ser apenas ajuda porque não pode
são diferentes, porém não devem ser considerados melho- substituir a atividade construtiva do conhecimento pelo
res ou piores que outros. Para o ensino coerente, é preciso aluno. A análise aprofundada do ensino enquanto ajuda
considerar o estado inicial dos alunos, seus conhecimentos leva ao conceito de “ajuda ajustada” e de zona de desen-
prévios e esquemas de conhecimentos construídos. Esse volvimento proximal (ZDP). No conceito de “ajuda ajusta-
deve ser o início do processo educativo: conhecer o que se da” observa-se que o ensino, enquanto ajuda o processo
tem para que se possa, sobre essa base, construir o novo. de construção do conhecimento, deve ajustar-se a esse
processo de construção. Para tanto, conjuga duas grandes
4. O que faz com que o aluno e a aluna aprendam características:
os conteúdos escolares? A natureza ativa e construtiva
do conhecimento. 1) a de levar em conta os esquemas de conhecimen-
to dos alunos, seus conhecimentos prévios em relação aos
Entre as concepções de ensino e aprendizagem susten- conteúdos a serem trabalhados;
tadas pelos professores, destacam-se três, cada uma consi- 2) e, ao mesmo tempo, propor desafios que levem os
derando que aprender é: alunos a questionarem esses conhecimentos prévios. Ou
1) Conhecer as respostas corretas: Nessa concepção seja, não se ignora aquilo que os alunos já sabem, porém
entende-se que aprender significa responder satisfatoria- aponta-se para aquilo que eles não conhecem, não rea-
mente as perguntas formuladas pelos professores. Refor- lizam ou não dominam suficientemente, incrementando
çam-se positivamente as respostas corretas, sancionando- a capacidade de compreensão e atuação autônoma dos
-as. Os alunos são considerados receptores passivos dos alunos.
reforços dispensados pelos professores.

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BIBLIOGRAFIA

O conceito de zona de desenvolvimento proximal pessoas; processo que necessita da contribuição da pessoa
(ZDP) foi proposto pelo psicólogo soviético L. S. Vygotsky, que aprende, implicando o interesse, disponibilidade, co-
partindo do entendimento de que as interações e relações nhecimentos prévios e experiência; implica também a fi-
com outras pessoas são a origem dos processos de apren- gura do outro que auxilia na resolução do conflito entre os
dizagem e desenvolvimento humano. Nesse sentido, a ZDP novos saberes e o que já se sabia, tendo em vista a realiza-
pode ser identificada como o espaço no qual, com a ajuda ção autônoma da atividade de aprender a aprender.
dos outros, uma pessoa realiza tarefas que não seria capaz O problema metodológico para o fazer educativo não
de realizar individualmente. A contribuição do conceito de se encontra no âmbito do “como fazemos”, mas antes na
ZDP está relacionada à possibilidade de se especificar as compreensão do “que fazemos” e “por que”. Na elabora-
formas em aula, ajudando os alunos no processo de signifi- ção das sequências didáticas que devem auxiliar a prática
cação pessoal e social da realidade. educativa deve-se levar em consideração os objetivos e os
meios que se tem para facilitar o alcance desses objetivos.
Para o trabalho com os conceitos acima arrolados, indi-
cam-se os seguintes pontos: 7. A avaliação da aprendizagem no currículo escola:
uma perspectiva construtivista.
1) Inserir atividades significativas na aula;
2) Possibilitar a participação de todos os alunos nas di- A questão da avaliação do processo educativo tem sido
ferentes atividades, mesmo que os níveis de competência, muito discutida. Com o desenvolvimento de propostas teó-
conhecimento e interesses forem diferenciados; ricas, metodológicas e instrumentais, expressões e concei-
3) Trabalhar com as relações afetivas e emocionais; tos como o de avaliação inicial, formativa e somatória po-
4) Introduzir modificações e ajustes ao logo da realiza- voam o vocabulário educacional. Junto a isso, construiu-se
ção das atividades; o consenso de que não se deve avaliar somente o aluno,
5) Promover a utilização e o aprofundamento autôno- mas também a atuação do professor, o planejamento de
mo dos conhecimentos que os alunos estão aprendendo; atividades e também sua aplicação. No entanto, muitas
6) Estabelecer relações entre os novos conteúdos e os questões ainda se encontram sem respostas e se configu-
conhecimentos prévios dos alunos; ram como desafios aos envolvidos com o tema.
7) Utilizar linguagem clara e objetiva evitando mal-en- Uma primeira questão a ser levantada é a relação en-
tendidos ou incompreensões; tre a avaliação e uma série de decisões relacionadas a ela,
8) Recontextualizar e reconceitualizar a experiência. como promoção, atribuição de crédito e formatura de alu-
nos. Essas decisões não fazem parte, em sentido estrito,
Trabalhar a partir dessas concepções caracteriza desa- do processo de avaliação, porém essas decisões devem ser
fios à prática educativa que não está isenta de problemas e coerentes com as avaliações realizadas. O desafio é alcan-
limitações. No entanto, entende-se que esse esforço, mes- çar a máxima coerência entre os processos avaliativos e as
mo que acompanhado de lentos avanços, é decisivo para a decisões a serem tomadas. Todo processo avaliativo deve
aprendizagem e o desenvolvimento das escolas e das aulas. levar em conta os elementos afetivos e relacionais da ava-
liação. Desse modo, o planejamento das atividades avalia-
6. Os enfoques didáticos tivas parte do entendimento de que o aluno atribui certo
sentido a essa atividade, sentido que depende da forma
A concepção construtivista considera a complexidade como a avaliação lhe é apresentada e também de suas ex-
e as distintas variáveis que intervêm nos processos de en- periências e significações pessoais e sociais da realidade.
sino na escola. Por isso, não receita formas determinadas É preciso levar em conta também o caráter sempre parcial
de ensino, mas oferece elementos para a análise e reflexão dos resultados obtidos por meio das avaliações, devido à
sobre a prática educativa, possibilitando a compreensão de complexidade e diversificação das situações de aprendiza-
seus processos, seu planejamento e avaliação. Um méto- gem vivenciadas pelos alunos. Assim, as práticas avaliativas
do educacional sustenta-se a partir da função social que privilegiadas devem ser aquelas que consideram a dinâmi-
atribui ao ensino e em determinadas ideias sobre como as ca dos processos de construção de conhecimentos.
aprendizagens se produzem. Nesse sentido, a análise das Ao contrário das concepções que buscam neutralizar
tarefas que propõem e conteúdos trabalhados, explícita ou as influências do contexto nos resultados das avaliações, a
implicitamente (currículo oculto), requer a compreensão do concepção construtivista ressalta a necessidade de consi-
determinante ideológico que embasam as práticas dos pro- derar as variáveis proporcionadas pelos diversos contextos
fessores. A discriminação tipológica dos conteúdos, ou seja, particulares. Para isso, recomenda-se a utilização de uma
a análise dos conteúdos trabalhados segundo a natureza gama maior possível de atividades de avaliação ao longo
conceitual, procedimental ou atitudinal, mostra-se como do processo educativo.
importante instrumento de entendimento do que acontece Partindo da consideração que é na prática que se uti-
na sala de aula. liza o que se aprende, um dos critérios, que devem ser le-
Outro instrumento importante para a compreensão do vantados nas atividades avaliativas, é o menor ou maior
processo educativo é a concepção construtivista da apren- valor instrumental das aprendizagens realizadas, ou seja,
dizagem, que estabelece a aprendizagem como uma cons- em que grau pode-se utilizar o que se aprendeu, o que se
trução pessoal que o aluno realiza com a ajuda de outras construiu na significação dos saberes. Na medida em que

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BIBLIOGRAFIA

aprender a aprender significa a capacidade para adquirir, Esta é a pretensão deste livro. Esclarecer o significado
de forma autônoma, novos conhecimentos, avaliar os as- da autonomia de professores, tentando diferenciar os di-
pectos instrumentais, é de suma importância a qualidade versos sentidos que lhe podem ser atribuídos, bem como
da educação. Por fim, ressalta-se a necessidade da aborda- avançar na compreensão dos problemas educativos e po-
gem da avaliação em estreita ligação com o planejamento líticos que encerra. Deve-se compreender, no entanto, que
didático e o currículo escolar. Dessa forma, “o quê”, “como” apesar da pretensão de esclarecer os diferentes significa-
e “quando” ensinar e avaliar se unem configurando uma dos da autonomia, isto não quer dizer que o propósito seja
prática educativa global, na qual as atividades avaliativas puramente conceitual. Contreras pretende captar a signi-
não estão separadas das demais atividades de construção ficação no contexto de diferentes concepções educativas
de conhecimento pelos alunos. e sobre o papel daqueles que ensinam. O esclarecimento
da autonomia é por sua vez a compreensão das formas
Fonte ou dos efeitos políticos dos diferentes modos de conce-
COLL, César. O construtivismo na sala de aula. São Pau- ber os docentes, bem como as atribuições da sociedade
lo. Editora Ática, 1999 na qual esses profissionais atuam. Ao falar da autonomia
do professor, estamos falando também de sua relação com
a sociedade e, por conseguinte, do papel da mesma com
CONTRERAS, JOSÉ. A AUTONOMIA DE respeito à educação.
PROFESSORES. SÃO PAULO: CORTEZ
EDITORA, 2002. (CAPÍTULOS 3 E 7). O presente texto está estruturado em três partes:
• na Parte I, analisa-se o problema do profissionalismo
no ensino, situando essa questão no debate sobre a prole-
tarização do professor, as diferentes formas de entender o
A AUTONOMIA DOS PROFESSORES que significa ser profissional e as ambiguidades e contradi-
ções ocultas na aspiração à profissionalidade.
CONTRERAS, José. A autonomia dos professores. São • na Parte II, o autor discute as três tradições diferentes
Paulo: Cortez, 2002. com respeito à profissionalidade de professores: a que en-
tende os professores como técnicos, a que defende o ensi-
A Autonomia dos professores, bem como a própria no como uma profissão de caráter reflexivo e a que adota
ideia de seu profissionalismo, são temas recorrentes nos
para o professor o papel do intelectual crítico.
últimos tempos nos discursos pedagógicos. No entanto,
A Parte III é dedicada a estabelecer uma visão global
sua profusão está se dando, sobretudo, na forma de slo-
do que se deve entender por autonomia de professores,
gans, que como tal de desgastam e seus significados se
mostrando o equilíbrio necessário requerido entre dife-
esvaziam com o uso frequente. Pode-se dizer que, por se-
rentes necessidades e condições de realização da prática
rem slogans, são utilizados em excesso para provocar uma
docente, e propondo as condições pessoais, institucionais
atração emocional, sem esclarecer nunca o significado que
se lhes quer atribuir. e sociopolíticas que uma autonomia profissional deveria
Há casos em que este sentido de slogan, de palavra ter que não signifique nem individualismo, nem corpora-
com aura, é muito mais evidente. Tomemos o exemplo da tivismo, tampouco submissão burocrática ou intelectual.
qualidade da educação. Atualmente, todo programa, toda Segundo o autor, este não é um livro no qual se façam pro-
política, toda pesquisa, toda reivindicação educativa é feita postas concretas, se entendermos por isso planos de ação.
em nome da qualidade, porém citá-la sem mais nem me- Ao contrário, o livro possui, sim, um sentido muito prático,
nos é, às vezes, um recurso para não defini-la. Remeter à se aceitarmos que a forma com que pensamos tem muito a
expressão “qualidade da educação”, em vez de explicitar ver com a forma com que encaramos a realidade e decidi-
seus diversos conteúdos e significados para diferentes pes- mos nela nos inserir. A Autonomia não é isolamento e não
soas, e em diferentes posições ideológicas, é uma forma de é possível sem o apoio, a relação, o intercâmbio.
pressionar para um consenso sem permitir discussão. Evi- Nem sempre as sugestões provêm das leituras dos ras-
dentemente esse é um recurso que pode ser utilizado por cunhos. Provêm também, e neste caso especialmente, do cli-
quem tem poder para dispor e difundir slogan como forma ma intelectual e profissional no qual se criam oportunidades
de legitimar seu ponto de vista sem discuti-lo. para discussões interessantes ou para análise de nós mesmos
Em relação à autonomia dos professores, estamos dian- como docentes e de nossas circunstâncias profissionais.
te de um caso parecido. Uma vez que a expressão passou
a fazer parte dos slogans pedagógicos, já não podemos A AUTONOMIA PERDIDA: A PROLETARIZAÇÃO DOS
evitá-la. Porém, usá-la como slogan é apoiar os que têm PROFESSORES
a capacidade de exercer o controle discursivo, os que se
valem da retórica para criar consenso evitando a discussão. Uma das ideias mais difundidas na atualidade com res-
Deste modo, temos que aproveitar o processo de es- peito aos professores e, ao mesmo tempo, uma das mais
clarecimento para recuperar e repensar aqueles significa- polêmicas é a sua condição de profissional. Uma das razões
dos que supõem uma defesa expressa de certas opções; que torna esse assunto problemático é que a palavra “pro-
e que, mais do que nos limitarmos a repeti-las, possamos fissional”, e suas derivações, embora em princípio pareçam
descobrir seu valor educativo e social. apenas referir-se às características e qualidades da prática

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BIBLIOGRAFIA

docentes, não são sequer expressões neutras. O tema do Esta lógica racionalizadora transcendeu o âmbito da
profissionalismo – como todos os temas em educação – empresa, como âmbito privado e de produção, enquanto
está longe de ser ingênuo ou desprovido de interesse e processo de acumulação de capital para invadir a esfera do
agendas mais ou menos escusas. O ensino, enquanto um Estado. No caso do ensino, a atenção a essas necessidades
ofício, não pode ser definido apenas de modo descritivo, realizou-se historicamente mediante a introdução do mes-
ou seja, pelo que encontramos na prática real dos profes- mo espírito de “gestão científica”, tanto no que se fere ao
sores em sala de aula, já que a docência se define também conteúdo da prática educativa como ao modo de organiza-
por suas aspirações e não só por sua materialidade. Por ção e controle do trabalho do professor. Assim, o currículo
isso, se quisermos entender as características e qualidades começou a conceber também uma espécie de processo
do ofício de ensinar, temos de discutir tudo o que se diz de produção, organizado sob os mesmos parâmetros de
sobre ele ou o que dele se espera. E também o que é e o decomposição em elementos mínimos de realização – os
que não deveria ser; o que se propõe, mas que se torna, ao objetivos -, os quais corresponderiam a uma descrição das
menos, discutível. atividades particulares e específicas da vida adulta para as
Esta é a razão pela qual, se quisermos abordar o tema quais haveria que se preparar (Bobbit, 1918).A determina-
da autonomia profissional, precisamos discutir os aspec- ção cada vez mais detalhada do currículo a ser adotado nas
tos contraditórios e ambíguos que encerra. A aspiração do escolas, a extensão de todo tipo de técnicas e diagnóstico
autor com essa discussão é, portanto, conseguir manter o e avaliação dos alunos, a transformação dos processos de
confronto ideológico, com o objetivo de resgatar uma po- ensino em microtécnicas dirigidas à consecução de apren-
sição comprometida com determinados valores para a prá- dizagens concretas perfeitamente estipuladas e definidas
tica docente. O tema da proletarização dos professores nos de antemão, as técnicas de modificação de comportamen-
oferece uma perspectiva adequada para essa preocupação. to, dirigidas fundamentalmente ao controle disciplinar dos
A tese básica da proletarização de professores é que o tra- alunos, toda a tecnologia de determinação de objetivos
balho docente sofreu uma subtração progressiva de uma operativos ou finais, projetos curriculares nos quais se esti-
série de qualidades que conduziram os professores à perda pula perfeitamente tudo o que deve fazer o professor passo
de controle e sentido sobre o próprio trabalho, ou seja, à a passo ou, em sua carência, os textos e manuais didáticos
perda da autonomia. O debate sobre a proletarização dos que enumeram i repertório de atividades que professores
professores e alunos devem fazer etc. (Jimenez Jaen, 1988). Tudo isso
Embora não se possa falar em unanimidade entre os reflete o espírito de racionalização tecnológica do ensino.
autores que defendem a teoria da proletarização de pro- A degradação do trabalho, privado de suas capacida-
fessores, a tese básica dessa posição é a consideração de des intelectuais e de suas possibilidades de ser realizado
que os docentes, enquanto categoria, sofreram ou estão como produto de decisões pensadas e discutidas coletiva-
sofrendo uma transformação, tanto nas características de mente, regulamentado na enumeração de suas diferentes
suas condições de trabalho como nas tarefas que realizam tarefas e conquistas a que se deve dar lugar, fez com que os
as quais os aproxima cada vez mais das condições e interes- professores fossem perdendo aquelas habilidades e capa-
ses da classe operária. Autores como Apple (1987; 1989b; cidades e aqueles conhecimentos que tinham conquistado
Apple e Jungck, 1990), Lawn e Ozga (1988; Ozga, 1988), e acumulado “ao longo de dezenas de anos de duro traba-
ou Densmore (1987) são representantes de tal perspectiva. lho” (Apple e Jungck, 1990:154).
Este tipo de análise, segundo Jimenez Jaén (1988),
tem como base teórica a análise marxista das condições Profissionalismo e proletarização
de trabalho do modo de produção capitalista e o desen- Um dos mecanismos que, segundo teóricos da pro-
volvimento e aplicação dessas propostas realizadas por letarização, tem sido utilizado entre os professores como
Braverman (1974). Com o objetivo de garantir o controle modo de resistência à racionalização de seu trabalho e à
sobre o processo produtivo, este era subdividido em pro- desqualificação, tem sido a reivindicação de seus status
cessos cada vez mais simples, de maneira que os operários de profissionais (Densmore, 1987). Para Densmore, a pre-
eram especializados em aspectos cada vez mais reduzidos tensão dos docentes de serem reconhecidos como profis-
da cadeia produtiva, perdendo deste modo a perspectiva sionais não reflete mais que uma aspiração para fugir de
do conjunto, bem como as habilidades e destrezas que an- sua assimilação progressiva às classes trabalhadoras. Com
teriormente necessitavam para o seu trabalho. O produ- efeito, a base social que se nutriu do trabalho dos profes-
to dessa atomização significava, por conseguinte, a perda sores foi evoluindo também à proporção que este se foi
da qualificação do operário. Agora, o trabalhador passa a degradando.
depender inteiramente dos processos de racionalização e Segundo Apple (1989b), não se pode explicar o surgi-
controle de gestão administrativa da empresa e do conhe- mento do profissionalismo como defesa ideológica diante
cimento científico e tecnológico dos experts. Deste modo, da desqualificação, sem entender a forma de evolução do
os conceitos-chave que explicam esse fenômeno de racio- sentido de responsabilidade entre os professores. Con-
nalização do trabalho são: forme aumenta o processo de controle, da tecnicidade e
a) A separação entre concepção e execução no proces- da intensificação, os professores e professoras tendem a
so produtivo; interpretar esse incremento de responsabilidades técnicas
b) A desqualificação; como um aumento de suas competências profissionais. A
c) A perda de controle sobre o seu próprio trabalho. tese definida por Lawn e Ozga sobre este particular: “Entre

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BIBLIOGRAFIA

os professores, o profissionalismo pode ser considerado há um aspecto mais importante que o da desqualificação
uma expressão do serviço à comunidade, bem como em técnica e que é mais de natureza ideológica. No contexto
outros tipos de trabalho (...). Também se pode considerar educativo, a proletarização, se ela significa alguma coisa,
uma força criada externamente que os une numa visão par- é sobretudo a perda de um sentido ético implícito no tra-
ticular de seu trabalho (...). O profissionalismo é, em parte, balho do professor. Há processos de controle ideológico
uma tentativa social de construir uma “qualificação”; a au- sobre os professores que podem ficar encobertos por um
tonomia era, em parte, a criação por parte dos professores aumento de sofisticação técnica e pela aparência de uma
de um espaço defensivo em torno da referida ‘qualificação’”. maior qualificação profissional. Um determinado resgate de
(Lawn e Ozga, 1988:213). habilidades e decisões profissionais pode se transformar em
Em contrapartida, isso permitiria entender fenômenos uma forma mais sutil de controle ideológico. Se a posição
segundo os quais, em algumas ocasiões, os professores se clássica da proletarização era a perda da autonomia ocasio-
comprometem com as políticas de legitimação do Estado, nada pela redução de professores a meros executores de
por meio de seus sistemas educativos: “Muitos mestres se decisões externas, a recuperação de determinado controle
comprometerão com elas (as metas de políticas reformis- pode não ser mais que a passagem da simples submissão a
tas) acreditando que vale a pena alcançá-las, e investirão diretrizes alheias à “autogestão do controle externo”.
quantidades excepcionais de tempo necessárias, tratando
de assumi-las com seriedade. Estes mestres explorarão a si A RETÓRICA DO PROFISSIONALISMO E SUAS AM-
mesmos trabalhando inclusive mais duramente, com baixa BIGUIDADES
remuneração e em condições intensificadas, fazendo tudo
para vencer as contraditórias pressões às quais estarão sub- A discussão sobre o profissionalismo dos professores
metidos. Aos mesmo tempo, porém, a carga adicional de está atravessada de ponta a ponta pelas ambiguidades que
trabalho criará uma situação na qual será impossível alcan- a própria denominação “profissional” acarreta, bem como
çar plenamente essas metas” (Apples e Jungck, 1990:169). pelos interesses no uso desse termo. Algo desse assunto
pode ser observado ao analisar o modo conflitivo e con-
A Proletarização em nosso contexto recente traditório com que o termo é usado quando os professores
Outro aspecto crítico que convém considerar com res- tratam de fugir da proletarização. Passa a ser ambíguo por-
peito à análise da profissão do professor afetada por um que sua fuga é tanto uma resistência à perda de qualidade
em suas atividades de docência, como uma resistência a
processo de proletarização é que a maioria dos estudos
perder – ou não obter – um prestígio, um status ou uma
sobre essa questão provêm de uma realidade social e edu-
remuneração que se identifique com a de outros profis-
cacional muito diferente da nossa, a maioria dos estudos é
sionais.
realizada na Europa. Estão se perdendo muitas das habili-
dades e conhecimentos profissionais que possuíam e estão
Imagens e características
sendo afastados de funções para determinação do currículo
Em geral, parece que a reivindicação de profissionalis-
que anteriormente lhes correspondiam. mo ou o sentimento de “profissionais” por parte dos pro-
O professor do ensino fundamental passa atualmente fessores obedece a uma série de características que normal-
por sucessivas transformações que elevam sua categoria até mente eles expressam como se pertencessem por direito
transformá-lo em estudos universitários, enquanto que para próprio a seu trabalho. É o caso, por exemplo, da reivindica-
o professor do ensino médio se institui também uma for- ção de condições de trabalho como a remuneração, horas
mação pedagógica ainda mínima. (Varela e Ortega, 1984). de trabalho, facilidade para atualização como profissionais
O certo é que essa requalificação permite transformar e reconhecimento de sua formação permanente, tudo isso
e ocultar a forma de controle, ao justificar-se por seu valor em conformidade com a importância da função social que
técnico para a eficácia, “neutralizando” o conteúdo anterior cumprem. Mas é também um pedido de reconhecimen-
puramente ideológico. Desta maneira, embora pudéssemos to “como profissionais”, isto é, como dignos de respeito e
falar de um processo de regulação, burocracia e tecnicidade como especialistas em seu trabalho e, portanto, a rejeição à
cada vez mais detalhadas, isto não ocorre em um processo ingerência de “estranhos” em suas decisões e atuações. Isso
de anterior domínio e independência profissional. O modo significa, ao menos em certo sentido, “autonomia profissio-
de assegurar o controle e a dedicação dos professores, nal”, mas também dignificação e reconhecimento social de
como vimos, reside em obter sua colaboração nos proces- seu trabalho, sobretudo em épocas em que se sentem ques-
sos de racionalização, os novos mecanismos de racionaliza- tionados pelos pais nos conselhos escolares. São muitos os
ção que a reforma pôs em prática conseguirão eliminar as quadros elaborados tentando expor quais são esses traços
possíveis resistências dos professores à medida que consi- determinantes de uma profissão. Para Skopp, são eles:
gam sua aceitação. • Um saber sistemático e global (o saber profissional)
• Poder sobre o cliente (disposição deste de acatar suas
O controle ideológico e controle técnico no ensino decisões)
Em primeiro lugar, embora a análise dos processos de • Atitude de serviço diante de seus clientes
proletarização costume fazer referência fundamentalmente • Autonomia ou controle profissional independente
à perda das competências técnicas e a seu desprendimen- • Prestígio social e reconhecimento legal e público de
to das funções de concepção, com as quais se atribui sig- seu status
nificação ao trabalho, o certo é que no âmbito educativo • Subcultura profissional especial

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BIBLIOGRAFIA

Já Fernandez Enoita (1990), por sua vez, assinalou os O resultado é que os professores ocupam uma posi-
seguintes traços: ção subordinada na comunidade discursiva da educação.
• Competência (ou qualificação num campo de conhe- Quem detém o status de profissional no ensino é, funda-
cimentos) mentalmente, o grupo de acadêmicos e pesquisadores
• Vocação (ou sentido de serviço a seus semelhantes) universitários, bem como o de especialistas com funções
• Licença (ou exclusividade em seu campo de trabalho) administrativas, de planejamento e de controle no sistema
• Independência (ou autonomia, tanto frente às organi- educacional.
zações como frente a seus clientes
• Autorregulação (ou regulação e controle exercido As armadilhas do profissionalismo
pela própria categoria profissional). Em nome da profissionalização, ou de atributos que lhe
Assim quando se compara os professores com essas são associados, com o objetivo de garanti-la, ou ampliá-la,
características, a conclusão mais habitual que se chega é justificam-se transformações administrativas e trabalhistas
que a única denominação possível a ser atribuída é a de para os docentes, exigindo-se sua colaboração. Evidente-
semiprofissionais. mente, não se pode defender a oposição a uma reforma
se, como consequência da mesma, começarmos a ser reco-
O profissionalismo como ideologia nhecidos como melhores profissionais ou, se nós negamos
Estudos de Larson (1977) colocaram em evidência que a fazê-la, estaremos abandonando nossas responsabilida-
as teorizações sobre os traços não são senão formalizações des profissionais.
de supostos ideológicos que as próprias profissões susten- Smyth (1991a), por exemplo, explica a forma em que
tam, com o objetivo de manter a legitimidade de seu status o profissionalismo dos professores está se redefinindo e
e privilégios, e para manter sua diferenciação com respeito utilizando, como fator de legitimação, as novas políticas
a outras ocupações. de reforma, as quais se caracterizam por uma combinação
No entanto, segundo Larson, esse suposto poder autô- entre as decisões centralizadas e pelas metas curriculares
nomo não corresponde à realidade e hoje menos do que claramente definidas e fixadas pelo Estado, por um lado,
nunca. A necessidade de depender do poder do Estado e a participação local e a decisão colegiada nos centros
para a defesa de seus interesses e do capitalismo mono- escolares por outro.
polista modificaram as condições de trabalho dos profis- Dessa perspectiva, a profissionalização atua como
sionais, tornando-se agora um especialista assalariado em modo de garantir a colaboração sem discutir os limites de
uma grande organização empresarial ou burocrática. atuação. Isto é o que Hargreaves e Dave (1990) chamam de
Essa transformação fez com que o status tradicional de “colegização artificial”.
muitos profissionais não seja agora mais que o de trabalha-
dores assalariados e burocratizados. Autonomia no profissionalismo
Além disso, se o profissionalismo como ideologia se A reivindicação de autonomia do profissionalismo pa-
encontra ligado à capacidade de impor um conhecimento rece mais uma defesa contra a intrusão. É previsível que
como exclusivo, despolitizando e tornando tecnocrática a essa reação contra a intervenção externa possa se susten-
atuação social, está longe de ficar claro que isso seja uma tar com mais facilidade diante dos setores mais fracos da
conquista social, esta é uma advertência que Popkewitz sociedade, do que frente às organizações ou aos poderes
(1990) faz. públicos; isto é, ante os receptores de seus serviços e não
frente a seus empregadores (Fernandez Enguita, 1993; Gil,
O controle sobre o conhecimento e as profissões do 1996). Nesse sentido, os movimentos de profissionalização
ensino. podem obter mais êxito em preservar suas atuações da crí-
A profissionalização encontrou seu processo mais forte tica e da participação social, do que na determinação do
de legitimação na posse do conhecimento cientifico. O pro- conteúdo ou das condições de seu trabalho nas instituições
fissionalismo, como assessoria de experts no planejamento nas quais se integram. A autonomia como não intromissão
e regulação escolar, transformava a administração política costuma ser, por um lado, uma descrição equivocada da
educativa em um problema meramente racional, que po- função desempenhada pelo ensino, já que este se situa no
deria ser resolvido mediante habilidades técnicas adquiri- terreno da transmissão de valores e saberes sancionados
das pelos especialistas graças ao caráter científico de seu socialmente.
conhecimento. (Popkewitz, 1991)“A formação de professo-
res existe e está historicamente ligada ao desenvolvimento OS VALORES DA PROFISSIONALIZAÇÃO E A PRO-
institucional do ensino. Conforme o ensino evoluiu como FISSIONALIDADE DOCENTE
forma social de preparar as crianças para a vida adulta,
também se desenvolveu um grupo ocupacional especia- A profissionalidade docente e as qualidades do tra-
lizado em elaborar o plano de sua vida diária. Este grupo balho educativo
desenvolveu algumas corporações especializadas em ima- Como afirmaram Lawn e Ozga (1988), ou Carlson
gens, alegorias e rituais que explicam a ‘natureza’ do en- (1987;1992), as exigências profissionais que os professores
sino e sua divisão do trabalho. A formação de professores podem fazer não se diferenciam em muitas ocasiões das
pode ser entendida, em parte, como um mecanismo para que podem ser feitas por outros trabalhadores. Pretender
fixar e legitimar as pautas ocupacionais de trabalho para os um maior controle sobre o próprio trabalho não é privativo
futuros professores” (Popkewitz, 1987) dos trabalhadores da área de ensino, porém essa reivindi-

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BIBLIOGRAFIA

cação não se reduz a um desejo de maior status. A educa- A competência profissional


ção requer responsabilidade e não se pode ser responsável A obrigação moral dos professores e o compromisso
se não é capaz de decidir, seja por impedimentos legais ou com a comunidade requerem uma competência profissio-
por falta de capacidades intelectuais e morais. Autonomia, nal coerente com ambos. Temos que falar de competên-
responsabilidade, capacitação são características tradicio- cias profissionais complexas que combinam habilidades,
nalmente associadas a valores profissionais que deveriam princípios e consciência do sentido das consequências das
ser indiscutíveis na profissão de docente. E a profissionali- práticas pedagógicas. Dificilmente, pode-se assumir uma
zação pode ser, nessa perspectiva, uma forma de defender obrigação moral ou um compromisso com o significado e
não só os direitos dos professores, mas da educação. as repercussões sociais do ensino se não se dispuser desta
competência (Sockett, 1993).É necessário destacar, de qual-
A obrigação moral quer modo, que a atenção a competências profissionali-
A primeira dimensão da profissionalidade docente de- zadoras que requerem um distanciamento dos contextos
riva do fato de que o ensino supõe um compromisso de imediatos para entender os fatores de determinação da
caráter moral para quem a realiza (Contreras, 1990). Este prática educativa há de ser compensada e simultaneamen-
compromisso ou obrigação moral confere à atividade de te sustentada com a atenção e cuidado às pessoas concre-
ensino um caráter que, como assinalou Sockett (1989:100), tas que se deduz da obrigação moral. Da mesma maneira,
se situa acima de qualquer obrigação contratual que possa podemos dizer que a competência profissional é o que
ser estabelecida na definição do emprego. É preciso atender capacita o professor para assumir responsabilidades, mas
o avanço na aprendizagem de seus alunos, enquanto que ele ou ela dificilmente pode desenvolver sua competência
não se pode esquecer das necessidades e do reconheci- sem exercitá-la, isto é, se carecer de autonomia profissio-
mento do valor que, como pessoas, merece todo o alunado. nal, porque, como afirmou Gimeno: “(...) um professor não
É inevitável o fato de que o trabalho de ensinar consista na pode se tornar competente naquelas facetas sobre as quais
relação direta e continuada com pessoas concretas sobre as não tem ou não pode tomar decisões e elaborar juízos
quais se pretende exercer uma influência, com a bondade arrazoados que justifiquem suas intervenções” (Gimeno,
das pretensões e com os aspectos mais pessoais de evo- 1989:15).
lução, os sentimentos e o cuidado e atenção que podem
exigir como pessoas (Noddings, 1986). O aspecto moral do
MODELOS DE PROFESSORES:
ensino está muito ligado à dimensão emocional presente na
EM BUSCA DA AUTONOMIA PROFISSIONAL DO
relação educativa. Na verdade, sentir-se compromissado ou
DOCENTE
“obrigado” moralmente reflete este aspecto emocional na
vivência das vinculações com o que se considera valioso. O
A Autonomia Ilusória: o professor como profissio-
professor ou professora, inevitavelmente, se defronta com
nal técnico
sua própria decisão sobre a prática que realiza, porque ao
ser ele ou ela quem pessoalmente se projeta em sua relação Trata-se mais precisamente de aprofundar o entendi-
com alunos e alunas, tratando de gerar uma influência, deve mento da autonomia como chave para compreensão de
decidir ou assumir o grau de identificação ou de compro- um problema específico do trabalho educativo, caracterís-
misso com as práticas educativas que desenvolve, os níveis tica que se mostrará essencial na possibilidade de desen-
de transformação da realidade que enfrenta etc. volvimento das qualidades essenciais da prática educativa.

O compromisso com a comunidade A prática profissional do ensino a partir da raciona-


A educação não é um problema da vida privada dos lidade técnica
professores, mas uma ocupação socialmente encomenda- Como afirmou Schön (1983;1992), o modelo domi-
da e responsabilizada publicamente. É também necessário nante que tradicionalmente existiu sobre como atuam os
entender que a responsabilidade pública envolve a comu- profissionais na prática, e sobre a relação entre pesquisa,
nidade na participação das decisões sobre o ensino. Se a conhecimento e prática profissional, foi o da racionalidade
educação for entendida como um assunto que não se re- técnica. A ideia básica deste modelo é que a prática profis-
duz apenas às salas de aula, mas que tem uma clara di- sional consiste na solução instrumental de problemas me-
mensão social e política, a profissionalidade pode significar diante a aplicação de um conhecimento teórico e técnico,
uma análise e uma forma de intervir nos problemas socio- previamente disponível, que procede da pesquisa científi-
políticos que competem ao trabalho de ensinar. Todos os ca. Segundo essa perspectiva, Schein identificou no conhe-
campos de compromisso social da prática docente supõem cimento profissional três componentes essenciais:
para os professores, em muitas ocasiões, um conflito com a) Ciência ou disciplina básica, sobre o qual a prática se
as definições institucionais da escola, a regulação de suas apoia e a partir do qual se desenvolve.
funções e as inércias tradições assentadas. Já não estamos b) Ciência aplicada ou de engenharia, a partir do qual
falando do professor ou da professora, isolados na sua sala deriva a maioria dos procedimentos cotidianos de diagnós-
de aula, como forma de definir o lugar da sua competência tico e de solução de problemas.
profissional, mas da ação coletiva e organizada e da inter- c) Habilidade e atitude, que se relaciona com a atuação
venção naqueles lugares que restringem o reconhecimento concreta a serviço do cliente, utilizando para isso os dois
das consequências sociais e da política do exercício profis- componentes anteriores da ciência básica e aplicada. “A ra-
sional do ensino. cionalidade técnica impõe, então, pela própria natureza da

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BIBLIOGRAFIA

produção do conhecimento, uma relação de subordinação baseando-se no saber do senso comum, que se manipula
dos níveis mais aplicados e próximos da prática aos níveis na cultura profissional. Um dos efeitos evidentes da con-
mais abstratos de produção do conhecimento, ao mesmo cepção dos professores como “experts técnicos” é o que
tempo em que se preparam as condições para o isolamen- se refere às finalidades do ensino. Em termos da prática de
to dos profissionais e seu confronto gremial” (Pérez Gómez, ensino, tanto a fixação externa de objetivos educacionais
1991). como sua redução a resultados, não resolvem os proble-
mas de obrigação moral, os quais os professores necessa-
Domínio Técnico e dependência profissional riamente enfrentarão.
No campo da educação, a falta de aplicação técnica
de grande parte do conhecimento pedagógico, junta- O DOCENTE COMO PROFISSIONAL REFLEXIVO
mente com a natureza ambígua e, por vezes, conflituosa
de seus fins, levou a que se considere o ensino como uma O que o modelo de racionalidade técnica - como con-
profissão somente em um sentido muito fraco e limitado. cepção da atuação profissional - revela é a sua incapacida-
O reconhecimento que, como profissionais, os professores de para resolver e tratar tudo o que é imprevisível, tudo o
possuem, sob essa concepção, relaciona-se com o domínio que não pode ser interpretado como um processo de deci-
técnico demonstrado na solução de problemas, ou seja, no são e atuação regulado segundo um sistema de raciocínio
conhecimento dos procedimentos adequados de ensino e infalível a partir de um conjunto de premissas. Por isso, é
em sua aplicação inteligente. O conhecimento pedagógico necessário resgatar a base reflexiva da atuação profissional,
relevante, a partir da mentalidade da racionalidade técnica, com o objetivo de entender a forma pela qual realmen-
é sobretudo aquele que estabelece quais os meios mais te se abordam situações problemáticas da prática. A partir
eficientes para levar a cabo alguma finalidade predetermi- da descrição que Schön realizou, observando a forma com
nada, ou seja, aquele que se pode apresentar como técnica que diferentes profissionais realizam realmente seu traba-
ou método de ensino (Holiday, 1990). lho, foi se caracterizando essa perspectiva, apresentada a
seguir.
A irredutibilidade técnica do ensino.
O professor, como profissional técnico, compreende Schön e os profissionais reflexivos
que sua ação consiste na aplicação de decisões técnicas.
Ao reconhecer o problema diante do qual se encontra, ao A ideia de profissional reflexivo desenvolvida por Schön
ter claramente definidos os resultados que deve alcançar, (1983;1992) trata justamente de dar conta da forma pela
ou quando tiver decidido qual é a dificuldade de aprendi- qual os profissionais enfrentam aquelas situações que não
zagem de tal aluno ou grupo, seleciona entre o repertório se resolvem por meio de repertórios técnicos; aquelas ativi-
disponível o tratamento que melhor se adapta à situação dades que, como o ensino, se caracterizam por atuar sobre
e o aplica. A prática docente é, em grande medida, um en- situações que são incertas, instáveis, singulares e nas quais
frentamento de situações problemáticas nas quais conflui há um conflito de valor. Essa ideia de reflexão na ação habi-
uma multidão de fatores e em que não se pode apreciar tual, na vida cotidiana, adota determinadas características
com clareza um problema que coincida com as categorias próprias na prática profissional. Conforme sua prática fica
de situações estabelecidas de situações para as quais dis- estável e repetitiva, seu conhecimento na prática se torna
pomos de tratamento. Aqueles professores que entendem mais tácito e espontâneo. É esse conhecimento profissio-
que seu trabalho consiste na aplicação de habilidades para nal o que lhe permite confiar em sua especialização. Os
alcançar determinadas aprendizagens, tendem a resistir à professores podem se encontrar em processos imediatos
análise de circunstâncias que ultrapassa a forma pela qual de reflexão na ação no caso de terem de responder a uma
já compreenderam seu trabalho. Por outro lado, os que alteração imprevista no ritmo da classe. Este processo de
se sensibilizam diante dessas questões, terão de aceitar o reflexão na ação transforma o profissional, segundo Schön,
contexto mais amplo nas origens e consequências de sua em um “pesquisador no contexto da prática” (1983:69). A
prática educativa como parte de seu compromisso profis- prática constitui-se, desse modo, um processo que se abre
sional, embora percam necessariamente a segurança que não só para a resolução de problemas de acordo com de-
lhes dava a redução de sua competência profissional, e se terminados fins, mas à reflexão sobre quais devem ser os
abrirão à complexidade, à instabilidade e à incerteza. fins, qual o seu significado concreto em situações comple-
A autonomia ilusória: a incapacitação política xas e conflituosas, “que problemas valem a pena ser re-
Eliot (1991b) denominou de “expert infalível” aquele solvidos e que papel desempenhar neles” (ibid.:130).“Um
tipo de professor que demonstra uma preocupação pelo profissional que reflete na ação tende a questionar a defi-
rigor maior do que pela relevância. Segundo este autor, o nição de sua tarefa, as teorias na ação das quais ela parte
expert infalível não está preocupado em desenvolver uma e as medidas de cumprimento pelas quais é controlado. E,
visão global da situação na qual atua, mas, sim, em função ao questionar essas coisas, também questiona elementos
das categorias extraídas do conhecimento especializado da estrutura do conhecimento organizacional na qual estão
que possui. Ainda segundo Elliott, dada a lacuna existente inseridas suas funções (...). A reflexão na ação tende a fazer
na epistemologia positivista, da prática entre o domínio do emergir não só os pressupostos e as técnicas, mas também
conhecimento técnico e seu uso nas situações reais, o “ex- os valores e propósitos presentes no conhecimento orga-
pert infalível” aplica esse conhecimento de forma intuitiva, nizacional”. (Schön, 1983:338-9)

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BIBLIOGRAFIA

Stenhouse e o professor como pesquisador Autonomia das decisões profissionais e responsa-


bilidade social
A concepção do ensino como prática reflexiva, e dos Ser sensível às características do caso, e atuar em rela-
professores como profissionais reflexivos, transformaram-se ção ao mais apropriado para o mesmo, é algo que requer
em denominações habituais na atual literatura pedagógica, processos reflexivos, os quais não podem manipular ele-
de tal maneira que, como veremos mais adiante, chegou-se mentos que não estiverem assimilados por seus protago-
inclusive, a obscurecer algumas vezes o sentido que Schön nistas, seja a partir de sua própria experiência ou da pro-
quis dar a esses termos. Para Stenhouse, o ensino é uma posição de uma tradição. Se a deliberação é sobre a forma
arte, visto que significa a expressão de certos valores e de de realizar o bem, nenhum professor poderá evitar agir em
determinada busca que se realiza na própria prática do en- relação à sua própria concepção do que é o bem na edu-
sino. Por isso, pensa que os docentes são como artistas, que cação, independentemente das restrições ou das ordens às
melhoram sua arte experimentando-a e examinando-a cri- quais estejam submetidos. A conclusão que se extrai é a de
ticamente. E compara a busca e experimentação de um pro- que a educação não pode ser determinada a partir de fora;
fessor com a que realiza, por exemplo, um músico tentan- entenda-se a partir disto a ideia de que a prática educativa
do extrair o que há de valioso em uma partitura, tentando não pode ser a realização de valores educativos formula-
experimentá-la, pesquisando possibilidades, examinando dos por agentes externos à própria ação. São os próprios
efeitos, até encontrar o que para ele expressa seu autêntico profissionais do ensino que, em última instância, decidem
sentido musical. (Stenhouse, 1985). Tanto Stenhouse com a forma com que planejam suas aulas, por meio das quais
Schön expõem sua posição em relação aos professores ou as tentativas de influência externa são transformadas em
aos profissionais como resistência e oposição aos modelos práticas que nem sempre têm muito a ver com a essência
de racionalidade técnica. Uma das ideias básicas no pensa- das mudanças pretendidas. “Como poderemos nós, profes-
mento de Stenhouse foi a da singularidade das situações sores, conhecer o que se deve fazer: Uma resposta possível
educativas. Não é possível saber o que é, ou o que será, é que teremos de receber instruções em forma de currículo
uma situação de ensino até que se realize. Desta forma, é e de especificações sobre os métodos pedagógicos.
impossível dispor de um conhecimento que nos proporcio-
Pessoalmente, rejeito essa ideia. A educação é um
ne os métodos que devam ser seguidos no ensino, porque
aprendizado no contexto de uma busca da verdade. A ver-
isso seria como aceitar que há ações cujo significado se
dade não pode estar definida pelo Estado, nem sequer por
estabelece à margem dos que o atribuem, ou que é pos-
meio de processos democráticos: um controle estrito do
sível depender de generalizações sobre métodos, quando
currículo e dos métodos pedagógicos nas escolas é equi-
o importante na educação é atender as circunstâncias que
valente ao controle totalitário da arte. Alcançar a verdade
cada caso apresenta e não pretender a uniformização dos
processos educativos, ou dos jovens. Como a prática do- por meio da educação é um assunto de juízo profissional
cente supõe o ensino de algo, a criação de determinadas em cada situação concreta, e os professores de educação
situações de aprendizagem, a busca de certas qualidades ou os administradores não podem nos indicar o que deve-
na aprendizagem dos alunos etc., é o currículo que reflete o mos fazer. As recomendações vão variar em cada caso. Não
conteúdo do ensino. O currículo necessita ser sempre inter- necessitaremos de um médico se o que este nos indicar for
pretado, adaptado e, inclusive, (re) criado por meio do en- um tratamento prescrito pelo Estado ou sugerido por seu
sino que o professor realiza. Como expressa J. Mac Donald: professor, sem sequer nos ter examinado e diagnosticado
“O ensino não é a aplicação do currículo, mas a contínua previamente” (Stenhouse, 1985:44-5)
invenção, reinvenção e improvisação do currículo.
O professor, como pesquisador de sua própria prática, CONTRADIÇÕES E CONTRARIEDADES:
transforma-a em objeto de indagação dirigida à melhoria de DO PROFISSIONAL REFLEXIVO AO INTELECTUAL
suas qualidades educativas. O currículo, enquanto expressão CRÍTICO
de sua prática e das qualidades pretendidas, é o elemento
que se reconstrói na indagação, da mesma maneira que tam- Não vivemos em uma sociedade simplesmente plu-
bém se reconstrói a própria ação. A ideia do professor como ralista, mas estratificada e dividida em grupos com status
pesquisador está ligada, portanto, à necessidade dos profes- desigual, poder e acesso a recursos materiais e culturais
sores de pesquisar e experimentar sobre sua prática enquan- (Warnke, 1992:150). A prática profissional não é só a rea-
to expressão de determinados ideais educativos. lização de pretensões educativas. Nós, docentes, em um
mundo não só plural, mas também desigual e injusto, nos
O fundamento aristotélico: a racionalidade prática. encontramos submetidos a pressões e vivemos contradi-
Tanto o trabalho de Schön como o de Stenhouse, e ções e contrariedades das quais nem sempre é fácil sair, ou
seus seguidores, podem ser assumidos perfeitamente sob nem sequer captar com lucidez.
a perspectiva da racionalidade prática aristotélica. Para Aris- É essa fraqueza ou insuficiência de argumentação do
tóteles, há uma diferença clara entre o que se chama de profissional reflexivo que conduz à busca de uma concep-
atividades técnicas e as atividades práticas. De acordo com ção que, sem renunciar ao que anuncia a pretensão reflexi-
essa ética, é evidente que a educação é um tipo de ativida- va (uma prática consciente e deliberativa, guiada pela bus-
de prática se for entendida como dirigida não à consecução ca da coerência pessoal entre as atuações e convicções), dê
de produtos, mas à realização de qualidades intrínsecas ao conta dessas preocupações em relação a qual deveria ser a
próprio processo educativo. orientação para a reflexão do professor.

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BIBLIOGRAFIA

Apropriação generalizada do termo reflexivo pesquisador, bem como a do profissional reflexivo, estamos
Desde que se publicou a obra de Schön (1983), a ideia diante do mesmo problema: define-se uma configuração
do docente como profissional reflexivo passou a ser moeda das relações entre determinadas pretensões e as práticas
corrente na literatura pedagógica. Vários autores tentaram profissionais, em um contexto de atuação, mas não se está
fazer uma revisão sobre o enfoque reflexivo. De um lado, revelando nenhum conteúdo para essa reflexão.
não se sabe, em muitas ocasiões, o que querem dizer os
autores com o termo reflexão, fora do uso comum utilizado As práticas institucionais dos professores e as limi-
pela maioria dos professores. Zeichner (1993), por exem- tações da reflexão
plo, em uma tentativa de esclarecer o campo, identificou na Não poderemos compreender as possibilidades que a
literatura pedagógica cinco variedades da prática reflexiva: reflexão tem em si mesma para detectar os interesses de
• Versão acadêmica: que acentua a reflexão sobre as dominação da prática escolar, e para transcender os limites
disciplinas, e a representação e tradução do conhecimento que esta impõe à emancipação, se não tivermos em conta
disciplinar em matérias, para promover a compreensão dos a forma com que professores e professoras, no contexto da
estudantes; instituição escolar, constroem seu papel. O ensino, enquan-
• Versão de eficiência social: que ressalta a aplicação to prática social, não é definido ex novo pelos docentes,
minuciosa de estratégias particulares de ensino que vêm mas estes se incorporam a uma instituição, a qual já res-
sugeridas por um “conhecimento básico” externo à prática ponde a certas pretensões, uma história, rotinas e estilos
e que se deduz da pesquisa sobre o ensino; estabelecidos. Contudo, a lógica do controle tecnocrático
• Versão evolutiva que prioriza um ensino sensível ao entra em contradição com a forma pela qual as instituições
pensamento, aos interesses e às pautas do desenvolvimen- expressam o sentido da missão encomendada. Enquanto
to evolutivo dos estudantes, bem como da própria evolu- que por um lado, se formulam as finalidades educativas
ção do professor como docente e como pessoa; como formas de preparação para uma vida adulta com ca-
• Versão de reconstrução social que acentua a reflexão pacidade crítica em uma sociedade plural, por outro lado
sobre os contextos institucionais, sociais e políticos, bem a docência e a vida na escola se estruturam negando essas
como a valorização das atuações em sala de aula em rela- pretensões.
ção à sua capacidade para contribuir para uma igualdade
maior, justiça e condições humanas, tanto no ensino como A crítica teórica como superadora das limitações da
na sociedade; reflexão
• Versão genética, na qual se defende a reflexão em ge-
Muitos professores, em virtude das características da
ral, sem especificar grande coisa em relação aos propósitos
instituição educacional e da forma pela qual nela se sociali-
desejados ou ao conteúdo da reflexão
zam, tendem a limitar seu universo de ação e de reflexão à
sala de aula. O excesso de responsabilidade e a inseguran-
Crítica à concepção reflexiva de Schön
ça em que vivem os levam a aceitar as concepções regula-
Liston e Zeichner (1991) apontaram os limites da teoria
mentares e tecnocráticas, que lhes oferecem uma seguran-
de Schön. Para eles, este é um enfoque reducionista e es-
ça aparente, porém, ao mesmo tempo, a regulamentação
treito, que limita, por conseguinte, o sentido do que deve-
burocrática e externa lhes impede de atender simultanea-
ria ser uma prática reflexiva. “A prática reflexiva competente
pressupõe uma situação institucional que leve a uma orien- mente às necessidades de seus alunos e às exigências de
tação reflexiva e a uma definição de papéis, que valorize a controle. Em sua insatisfação, os sentimentos de responsa-
reflexão e a ação coletivas orientadas para alterar não só as bilidade conduzem ao isolamento e ao deslocamento da
interações dentro da sala de aula e na escola, mas também culpa para os contextos mais imediatos: os alunos, os cole-
entre a escola e a comunidade imediata e entre a escola e as gas, o funcionamento da escola. Segundo expressa Giroux:
estruturas sociais mais amplas” (Liston e Zeichner, 1991: 81). “Os professores podem não ser conscientes da natureza de
A crítica de Liston e Zeichner se dirige à falta de especi- sua própria alienação, ou podem não reconhecer o pro-
ficidade de Schön em relação ao fato de que os professores blema como tal (...). Esta é precisamente a ideia da teoria
reflitam sobre sua linguagem, seu sistema de valores, de crítica: ajudar os professores a desenvolver uma apreciação
compreensão sobre a forma com que definem seu papel, crítica da situação na qual se encontram”.
pois é necessário propor a forma com que isto se constitui
como parte importante do processo de reflexão na ação. Giroux e o professor como intelectual crítico
Foi Giroux quem melhor desenvolveu essa ideia dos
Os limites do professor como artista reflexivo professores como intelectuais. Baseando-se nas ideias de
Da mesma forma que no caso de Schön, há outros au- Gramsci sobre o papel dos intelectuais na produção e re-
tores que criticaram as limitações do pensamento de Ste- produção da vida social, para Giroux, o sentido dos pro-
nhouse em relação a sua concepção do professor como fessores compreendidos como intelectuais reflete todo
pesquisador. A ideia do artista reflete o fato de que uma um programa de compreensão e análise do que, para ele,
pessoa se autoanalisa, com seus próprios recursos e sua devem ser os professores. Por um lado, permite entender
própria compreensão, para desenvolver as qualidades ar- o trabalho do professor como tarefa intelectual, em oposi-
tísticas de sua obra, dentro de uma tradição estética. Quan- ção às concepções puramente técnicas ou instrumentais.
do se define a ideia do professor como artista ou como “O ensino para a transformação social significa educar os

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BIBLIOGRAFIA

estudantes para assumir riscos e para lutar no interior das 5. A reflexão não é um processo mecânico nem tam-
contínuas relações de poder, tornando-os capazes de al- pouco um exercício puramente criativo na construção de
terar as bases sobre as quais se vive a vida. Atuar como novas ideias; é uma prática que expressa nosso poder para
intelectuais transformadores significa ajudar os estudantes reconstruir a vida social pela forma de participação por
a adquirir um conhecimento crítico sobre as estruturas so- meio da convivência, da tomada de decisões ou da ação
ciais básicas, tais como a economia, o Estado, o mundo do social (Kemmis, 1985:149).
trabalho e a cultura de massas, de modo que estas insti-
tuições possam se abrir a um potencial de transformação. O fundamento habermasiano da reflexão crítica
Uma transformação, neste caso, dirigida à progressiva hu- Todas estas discussões sobre a reflexão crítica encon-
manização da ordem social” (Giroux, 1991:90). tram seu fundamento na Teoria Crítica e, mais especifica-
mente, nas ideias de Habermas. O projeto teórico de Ha-
A reflexão crítica bermas está baseado nas ideias da emancipação, no apro-
Facilitar a ligação de uma concepção libertadora da fundamento de seu significado, na fundamentação de sua
prática de ensino com um processo de emancipação dos razão de ser e no papel do conhecimento nela contido.
próprios professores para sua configuração como intelec- A partir de sua teoria dos interesses constitutivos do
tuais críticos requer, na opinião de Smyth (1991b; 1986; conhecimento, Habermas (1982; 1984) defende que as
1987) e Kemmis (1985; 1987), a constituição de processos concepções práticas, ou seja, aquelas que supõem uma
de colaboração com os professores para favorecer sua re- ação comunicativa dirigida ao entendimento e ao acordo
flexão crítica. A reflexão crítica não se pode ser concebida (e sobre as quais se sustenta o modelo profissional reflexi-
como um processo de pensamento sem orientação. Pelo vo), não são possíveis em uma sociedade em que os mo-
contrário, ela tem um propósito muito claro de “definir-se” dos dominantes de produção, o imperativo da mentalidade
diante dos problemas e atuar consequentemente, conside- tecnológica, aplicada aos sistemas de relações humanas, e
rando-os como situações que estão além de nossas pró- dos interesses dos grupos que detêm o poder, forçaram
prias intenções e atuações pessoais, para incluir sua análise certas relações que estão enraizadas em uma comunica-
como problemas que têm uma origem social e histórica. ção distorcida, ou em sistemas diretamente coercitivos, que
Para Kemmis (1987), refletir criticamente significa co- dão lugar a consciências deformadas pela ideologia.
locar-se no contexto de uma ação, na historiada situação, Nas relações que Habermas estabelece em todo este
participar de uma atividade social e ter uma determinada plano de conhecimento dirigido à ação política, a figura
postura diante dos problemas. Significa explorar a natureza do teórico (e de sua teoria) fica esboçada de forma pro-
social e histórica, tanto de nossa relação como atores nas blemática, já que reconhece por um lado um momento de
privilégio, simultâneo à incapacidade de justificar-se con-
práticas institucionalizadas da educação, quanto da relação
clusivamente. “A reivindicada superioridade do ilustrador
entre nosso pensamento e ação educativos. Colmo essa
sobre aquele que ainda deve se ilustrar é teoricamente
maneira de atuar tem consequências públicas, a reflexão
inevitável, mas é, ao mesmo tempo, fictícia e necessita de
crítica induz a conceber como uma atividade também pú-
autocorreção: em um processo de ilustração há somente
blica, exigindo, por conseguinte, a organização das pessoas
participantes” (Habermas, 1987).
envolvidas e dirigindo-se à elaboração de processos siste-
máticos de crítica que permitiriam a reformulação de sua
Diversos entendimentos sobre crítica
teoria e prática social e de suas condições de trabalho.Com A importância deste fato para nós é que, quando se
o objetivo de poder articular a forma pela qual a prática trata de estimular professores a buscarem processos de
reflexiva se relaciona com um compromisso crítico, Kemmis emancipação guiados pela reflexão crítica, à maneira do
(1985) chamou a atenção para os elementos que configu- que propunham Kemmis ou Smyth, não é nem um pou-
ram como processo. São os seguintes: co evidente que estejamos diante de um caso semelhante
1. A reflexão não está biológica ou psicologicamente aos dos grupos organizados por interesses comuns e por
determinada, nem é tampouco “pensamento puro”; expres- intenção política. Em todo o caso, o que se propunha era
sa uma orientação à ação e tem a ver com a relação entre mais o desejo de que a reflexão crítica conduzisse à neces-
pensamento e ação nas situações reais históricas nas quais sidade de uma ação transformadora.
nos encontramos.
2. A reflexão não é o trabalho individualista da mente, Autonomia ou emancipação
como se fosse um mecanismo ou mera especulação; pres- O que o modelo dos professores como intelectuais crí-
supõe e prefigura relações sociais. ticos sugere é que tanto a compreensão dos fatores sociais
3. A reflexão não está livre de valores nem é neutra; e institucionais que condicionam a prática educativa, como
expressa e serve a particulares interesses humanos, sociais, a emancipação das formas de dominação que afetam nos-
culturais e políticos. so pensamento e nossa ação não são processos espontâ-
4. A reflexão não é indiferente ou passiva em relação à neos que se produzem “naturalmente” pelo mero fato de
ordem social, nem se reduz a discutir os valores sobre os participarem de experiências que se pretendem educativas.
quais exista acordo social; ativamente, reproduz ou trans- Do esforço também para descobrir as formas pelas quais
forma as práticas ideológicas que estão na base da ordem os valores ideológicos dominantes, as práticas culturais e
social. as formas pelas quais os valores ideológicos dominantes,

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BIBLIOGRAFIA

as possibilidades de ação do professor, mas também as formadores se moveram durante muito tempo no desejo de
próprias perspectivas de análise e compreensão do ensino, que fossem mais obedientes do que autônomos. A autono-
de suas finalidades educativas e de sua função social. Igual- mia, mais do que uma pretensão para os professores, pode-
mente o intelectual crítico está preocupado com a captação ria chegar a ser um estorvo na realização fiel das reformas
e potencialização dos aspectos de sua prática profissional, esboçadas. As modificações que os professores poderiam
que conservam uma possibilidade de ação educativamente introduzir nas inovações planejadas significavam um fracas-
valiosa, enquanto busca a transformação ou a recondução so, uma adulteração das mesmas, e era necessário contê-
daqueles aspectos que não a possuem, sejam eles pessoais, -las. Planejar bem uma inovação era reduzir ao máximo a
organizacionais ou sociais. possibilidade de que fosse “deformada” pelos professores.
As experiências de desenvolvimento do currículo ba-
3AUTONOMIA E SEU CONTEXTO seadas nos professores. Como alternativas às concepções
A CHAVE DA AUTONOMIA DOS PROFESSORES tecnológicas do currículo, nas quais o docente ficava redu-
zido ao papel do técnico aplicador de planos alheios, surgi-
Concepção da autonomia profissional ram experiências em que os professores eram protagonistas
Autonomia como status ou como atributo. Autoridade do desenvolvimento curricular. Nesses casos, não se preten-
unilateral do especialista. Não ingerência. Autonomia ilusó- dia a fidelidade dos professores ao programa curricular, mas
ria: dependência de diretrizes técnicas, insensibilidade para o contrário, apelava-se para sua capacidade de experimen-
os dilemas, incapacidade de resposta criativa diante da tação das propostas de ensino, para que eles mesmos tes-
incerteza Autonomia como responsabilidade moral indivi- tassem suas possibilidades educativas. Mudança de pers-
dual, considerando os diferentes pontos de vista. Equilíbrio pectiva na compreensão dos professores. Um dos fatores
entre a independência de juízo e a responsabilidade social. fundamentais nesta mudança de mentalidade foi a aceita-
Capacidade para resolver as situações-problema para a rea- ção, por parte da comunidade de pesquisadores, de que os
lização prática das pretensões educativas. Autonomia como professores não poderiam ser compreendidos o suficiente
emancipação: liberação profissional e social das opressões. em termos de suas condutas ou como simples aplicadores
Superação das distorções ideológicas. Consciência crítica. de diretrizes.
Autonomia como processo coletivo (configuração discursi- Com o advento do behaviorismo e o assentamento dos
va de uma vontade comum), dirigido à transformação das modelos cognitivos surgiu uma nova linha de pesquisa que
condições institucionais e sociais de ensino
entendia em uma nova fonte de compreensão dos profes-
sores como mediadores cognitivos das ideias e propostas
As novas políticas educacionais e a autonomia de
educativas, bem como pensadores dinâmicos de sua pró-
professores.
pria realidade de ensino (Clark e Peterson, 1989). A escola
Não é possível falar da autonomia de professores sem
como unidade de ação e mudança. Após sucessivas expe-
fazer referência ao contexto trabalhista, institucional e so-
riências de inovação e diversas tentativas de transformação
cial em que os professores realizam seu trabalho. As condi-
ções reais de desenvolvimento de sua tarefa, bem como o curricular, foi-se descobrindo também que era insuficiente
clima ideológico que a envolve, são fatores fundamentais pensar no ensino e em sua melhoria com professores iso-
que a apoiam ou a entorpecem. E sem condições adequa- lados em suas salas de aula. No entanto, o reconhecimento
das, o discurso sobre a autonomia pode cumprir apenas do papel mediador das escolas não se pode realizar sem
duas funções: ou é uma mensagem de resistência, de de- levar em conta que são as pessoas concretas que as habi-
núncia de carências para um trabalho digno e com possi- tam, ou seja, aqueles que vivem, interpretam, transmitem
bilidades de ser realmente educativo, ou é uma armadilha e transformam os costumes, relações e crenças que cons-
para os professores, que só pretende fazê-los crer falsa- tituem a cultura da escola. A crise das ideias de mudança
mente que possuem condições adequadas de trabalho e como solução definitiva de problemas. Uma das razões para
que, portanto, o problema é só deles. a perda de fé nos clássicos modelos de inovação encontra-
-se no fato de que cada vez mais se desconfia da aspiração
A autonomia necessária: diagnóstico de uma mu- para encontrar a solução definitiva dos problemas que afli-
dança de perspectiva sobre os professores gem a educação ou sua organização institucional. Os pro-
A comunicação ou disseminação das inovações se blemas e suas circunstâncias mudam no tempo e no espaço,
transformam em um fator-chave: como conseguir que o transformando-se e singularizando-se, e as soluções devem
receptor, os professores, as entenda, aceite e as leve a cabo. ser aceitas como aproximações provisórias que se tentam
Como vencer suas resistências. Grande parte da teoria e adequar como tentativa de circunstâncias concretas de casa
da pesquisa sobre a inovação educativa moveu-se sob os caso ou escola em particular. A realidade é sempre mutante
pressupostos anteriores, de maneira que se entendeu que e as organizações educativas devem aprender a se adaptar
a formulação de uma inovação, que emanava dos técnicos e a encontrar suas próprias estratégias de ação. Isto supõe a
e especialistas, externos às salas de aula e às escolas, signi- transformação da própria noção de mudança escolar.
ficavam um elemento em si positivo. 
Tudo isso não fizeram senão aumentar a perspectiva A descentralização administrativa das reformas
dominante sobre os professores, os quais não só tinham Um fenômeno bastante comum na maioria dos países
uma imagem de passividade, como de realizadores de ocidentais, na década de 1990, foi o surgimento de refor-
atuações que outros planejavam, e que os inovadores e re- mas educacionais que estão apresentando três âmbitos

50
BIBLIOGRAFIA

fundamentais de preocupação: o currículo, as escolas e os timidade do Estado parece se basear, ao menos em parte,
professores. Embora de forma bastante ambígua, quando em sua natureza supercentralizadora (real ou percebida),
não claramente contraditória, a descentralização e a auto- na distância entre a base e o sistema político, em seu cará-
nomia estão sendo utilizadas como princípios nos quais se ter monopolista, sua incapacidade estrutural para atender
dizem baseadas as mudanças propostas: a descentraliza- as variações importantes dentro da sociedade e na quali-
ção do currículo associada à autonomia de escolas e pro- dade amiúde impessoal, coercitiva e desumana de sua bu-
fessores. Em termos de política educativa, poderíamos di- rocracia administrativa. Se esta avaliação for correta, então
zer que uma das coisas que o princípio de descentralização tudo o que pareça com um Estado menos centralizado e
supôs foi o reconhecimento, no processo de planejamento monopolista, mais atento às variações de necessidades in-
curricular, deste fato. ternas, pode ser visto como fonte potencial de ampliação
Razão pela qual se tende a pensar cada vez mais no de legitimidade”. (Weiler, 1990:441-2).
currículo oficial como aquele documento que deve ser O currículo descentralizado e a autonomia nas escolas
adaptado, desenvolvido ou concretizado nas circunstân- podem ser, portanto, o lugar em que os conflitos se diluem
cias particulares de ensino. Este princípio passou a fazer ou se reduzem a casos particulares. As diferenças sociais
parte do discurso público e da retórica da administração da sociedade em geral são muito perceptíveis em cada es-
em relação ao currículo, e que, não sendo tão novo na ex- cola em particular. Vistas individualmente, cada uma pode
periência dos professores, não justificou por si só as atuais ser internamente mais homogênea, podendo concretizar o
tendências de descentralização curricular. Especialistas e currículo de forma aparentemente menos conflituosa. Ou,
administradores insistem na importância de que as esco- ainda, as escolas em que se produzem conflitos sociais ou
las se considerem unidades de autogestão, sensíveis a seu ideológicos podem ser menores em quantidade, ficando
contexto, tratando de atender às suas demandas e em con- isoladas do resto do sistema. É este o modelo que agora
tínuo desenvolvimento profissional e institucional. se afirma estar em crise. Tanto suas dificuldades internas
Os professores tornarão sua a reforma se tomarem o como o ataque ideológico a que foi submetido foram assi-
currículo como seu e se comprometerem com sua escola, nalando aspectos controversos do mesmo e ocasionando
conferindo-lhe um caráter próprio e singular. A qualidade mudanças ideológicas e políticas de longo alcance. Entre
da educação depende da qualidade das escolas, e estas, as múltiplas mudanças que vêm sendo produzidas, vamos
destacar três delas:
por sua vez, dependem de que os professores se compro-
A) A crise fiscal do Estado: os Estados se transforma-
metam com elas, de que trabalhem em colaboração com
ram em máquinas enormes, intrincadas e complexas, que
seus colegas para sua permanente melhoria, atendendo às
geram um gasto muito grande, e, com isso, o Estado entrou
necessidades do contexto e respondendo às demandas.
em uma crise fiscal cada vez mais difícil de ser sustentada,
Que cada escola assuma “autonomamente” a responsabili-
o que está gerando uma discussão sobre o papel do Estado
dade de seu próprio projeto educacional tem sua tradução
na cidadania.
na prática no assumir tal responsabilidade perante a “so-
B) A crise de motivação da sociedade: o modelo de Es-
ciedade”, entendendo-se, neste caso, as famílias concretas
tado de bem-estar, ao atuar como provedor das necessida-
que buscam as escolas concretas. A sociedade, particula- des sociais, o fez assumindo quais eram elas e como deve-
rizada nas famílias singulares com filhos em idade escolar, riam ser satisfeitas, dando alento ao consumo passivo da
assume as responsabilidades “devolvidas” pelo Estado, ad- provisão nacional, minando a confiança dos cidadãos em
quirindo a obrigação de exigir das escolas uma educação dirigir suas próprias vidas e aumentando continuamente à
de qualidade. burocracia, a vigilância, a imposição de ordens e o controle
A forma pela qual se entende esse princípio de par- nacional (Keane, 1992)
ticipação das famílias é, sobretudo, incentivando e facili- C) A crise de motivação dos serviços públicos: a mesma
tando a escolha das escolas. Dessa forma, a devolução de apatia que se observava na sociedade em geral pode se
responsabilidades é entendida como entrega, aos atores apreciar também nos serviços públicos. Na medida em que
concretos (as escolas específicas e as famílias envolvidas estes são organismos planejados de forma centralizadora,
em cada uma delas), da responsabilidade dos efeitos de burocraticamente complicados, dependentes de diferentes
suas decisões isoladas. Efeitos que, entretanto, por vezes só organismos, ao mesmo tempo centrais, periféricos e locais,
podem ser entendidos em sua dimensão sociológica, cul- perderam progressivamente coerência e capacidade de
tural e política, e não só na dimensão particular em que se adaptação e de mudança.
tomam estas decisões.
A autonomia aparente
O que há por trás? As mudanças ideológicas de fundo Se relacionarmos hoje as transformações ideológicas
Até o momento, as razões dessas tendências reformis- e políticas que vêm sendo produzidas ao papel do Estado,
tas, que podem ser observadas tanto na Espanha como dos serviços públicos, da cidadania e da democracia, com
internacionalmente, estão presentes, de um modo ou de as mudanças das reformas educacionais, poderemos en-
outro, nos discursos públicos e na retórica das administra- tender de forma mais global a direção em que pode estar
ções. Entretanto, devemos compreender o fenômeno da se encaminhando o sistema escolar. E, além das mudanças
descentralização atendendo às motivações profundas que legislativas (onde se pode situar a maior vitória do neolibe-
animam esse tipo de tendência. “O problema com a legi- ralismo como ideologia), poderemos também analisar qual

51
BIBLIOGRAFIA

o tipo de mentalidade que parece estar se estendendo no de Oliveira e Wallon é comentado por Dantas. A primeira
mundo educacional. Ou seja, se as escolas forem mais dife- parte traz um debate entre os fatores biológicos e sociais
renciadas entre si, isto leva às escolas à competitividade em do desenvolvimento humano sobre a linha de Piaget, o
que o mercado de oferta e procura deve se ajustar. qual faz um diálogo sobre o lugar de interação social, na
É evidente que essa discussão da competitividade e concepção de Vygotsky o debate é sobre o processo de
do ajuste entre a oferta e a demanda tem suas perversões. formação de conceitos e na teoria de Wallon, onde é discu-
Em primeiro lugar, os recursos econômicos e de influência, tido o ato motor ao ato mental do indivíduo.
para saberem se mover dentro do sistema na busca da me- Na segunda parte a questão em foco é a afetividade e
lhor escolha, devem levar em conta que as escolas são bens cognição com Piaget. O tema é o desenvolvimento do juízo
escassos ou justos no mercado; as “boas” escolas, seja elas moral e afetividade. Na linha de Vygotsky o debate é sobre
o que forem, serão ainda mais escassas; pode optar por o problema da afetividade e na visão de Wallon a afetivida-
uma “boa” escola depende da capacidade do consumidor de e a construção do sujeito na psicogenética. E finalmente,
para isso. Em segundo lugar, a competitividade como mo- na terceira parte o leitor pode tirar algumas dúvidas sobre
tivação da sociedade não é neutra. os três teólogos, pois no apêndice podem-se encontrar
O critério a partir do qual se compete não é livremente perguntas sobre a universalidade, à autonomia do sujeito
escolhido pela sociedade, posto que venha decidido pela e a falsidade das respectivas teorias na visão Vygotskyanos
capacidade de rendimento em termos fixados pelo currícu- (p. 104), Wallonianos (p. 107) e Piagetianos (p. 109).
lo oficial (Hatcher, 1994). Inicialmente faz-se uma introdução sobre o lugar das
interações sócias na obra de Jean Piaget, evidenciando que
Conclusão o mesmo não desprezou a importância dos fatores sociais
O que tudo isso reflete é efetivamente um modelo de no desenvolvimento da inteligência do indivíduo, pois, o
ajuste e demanda, mas não um modelo de diálogo social homem é impossível de ser pensado fora da sociedade em
na definição da escolaridade. A escola começa a se movi- que vive. No entanto, o homem normal não é social da
mentar para oferecer o que atrai a clientela. E a clientela se mesma maneira aos seis meses que aos vinte anos de idade
movimenta em função do que sente como competitivo no devido aos fatores biológicos e sociais que o sujeito avança
mercado social. Assim, enquanto a escola e usuários não se
qualitativamente e passa a interagir dentro da sociedade a
sentarem para discutir o que acreditam que deveria ser a
qual está inserido transformando o meio em que vive ou
prática educativa, ambos estarão fazendo movimentos de
ajustando para favorecer o seu bem-estar social.
ajuste a partir de demandas e necessidades que eles pró-
Ressaltando a existência de dois aspectos nos estudos
prios não controlam, porque não atuam enquanto grupo
do epistemológico, ou seja, o entendimento o qual se deve
que toma decisões deliberativas e compartilhadas, senão
ter por ser social e os fatores sociais que explicam o desen-
como agentes isolados guiados por interesses individuais,
volvimento intelectual, La Taille (1992) afirma que, a lógica
não sociais.
final para Piaget é o equilíbrio das ações apresentados no
Fonte período sensório motor, onde a criança vai esquematizan-
Disponível em: do a lógica das ações e das percepções, a qual será interio-
http://educacadoresemluta.blogspot.com.br/2009/12/ rizada pela mesma no processo de socialização.
contreras-jose-autonomia-dos_14.html Nesse contexto, o sujeito evolui a partir das experiên-
cias pessoais transmitidas através das interações vividas no
meio, e um bebê não tem o grau de maturação que tem
DE LA TAILLE, Y., OLIVEIRA, M.K.; DANTAS, um adulto. Para tanto, a socialização passa pela qualida-
H. PIAGET, VYGOTSKY, WALLON: TEORIAS de nas trocas intelectuais e vai evoluindo através das fases
PSICOGENÉTICAS EM DISCUSSÃO. SÃO de desenvolvimento da criança. O autor demonstra esse
PAULO: SUMMUS, 1992. raciocínio na aplicabilidade de uma equação em que para
as trocas intelectuais Piaget pressupõe um perfeito equi-
líbrio e uma interação de pensamentos. Tal equilíbrio das
reações sociais só é possível entre indivíduos que tenham
TEORIAS PSICOGENÉTICAS EM DISCUSSÃO atingido o estágio operatório de pensamento fazendo uma
panorâmica sobre as etapas do desenvolvimento cognitivo
Esta obra foi escrita por professores especialistas da relacionando o desenvolvimento das operações lógicas aos
Universidade de São Paulo que através de dois anos de estágios de desenvolvimento social.
Reuniões Anuais da Sociedade Brasileira de Psicologia de Sobre concepção de Vygotsky, Oliveira (1992) traz uma
Ribeirão Preto, traz uma discussão entre os três principais discussão sobre o processo de formação de conceitos a
teólogos da psicologia que tentam entender a evolução do respeito dos fatores biológicos e sociais no desenvolvi-
ser humano tanto nos fatores biológicos e sócios, como mento do psicológico. No entanto, as funções psicológicas
também, nos aspectos afetivos e cognitivos. do indivíduo são formadas ao longo de sua trajetória no
O livro está dividido em três partes que subdividi em contexto social em que vive. Nesse processo de formação
subcapítulos onde trata do tema em questão na visão dos de conceitos, a linguagem humana exerce um papel me-
três teóricos: Piaget na visão de La Taille, Vygotsky na visão diador entre o sujeito e o objeto de conhecimento.

52
BIBLIOGRAFIA

Segundo Oliveira (1992), isto é, além de servir ao propó- O sensório motor e projetivo inicia de 1 aos 3 anos
sito de comunicação entre indivíduos, a linguagem simplifica de idade, nesse período a criança começa a explorar o es-
e generaliza a experiência, ordenando as estâncias do mundo paço físico agarrando, segurando, sentando, engatinhado,
real em categorias conceituais cujo significado é partilhado etc. Esta fase instrumenta efetivamente e cognitivamente o
pelos usuários dessa linguagem. O estudo sobre Vygotsky indivíduo para o próximo estágio, o personalismo vai dos 3
na formação de conceitos aponta para duas linhas de inves- a 6 anos de idade, nesta etapa inicia o processo de discri-
tigação que são: o conhecimento do cérebro que opera sem minação entre o EU e o OUTRO, no categorial que vai de 6
a influência do meio, e do outro lado, a cultura contribuindo a 11 anos acontece a melhor organização do mundo físico,
para o processo de formação do fator biológico do sujeito. e de 11 anos em diante acontece à puberdade e adoles-
Em relação à Wallon, Dantas faz uma síntese sobre a cência determinada pela busca de explorar a si mesmo que
vida, ressaltando que sua principal obra surgiu a partir de tem como ponto de partida o patológico. Ao fazer essa
sua tese de doutorado que foi transformada no livro L’en- análise apresenta em seguida as síndromes psicomotoras.
faut Turbulent (Infância e Turbulência) concluído após ob- Para Wallon, a afetividade é o eixo central na constru-
servações e experiências minuciosas com 214 crianças de 2 ção do conhecimento durante todo o processo de sua vida,
a 15 anos de idade, com profundas perturbações de com- ora com ações exteriores e em outros momentos refletindo
portamento. Nesta obra o autor descreve etapas do desen- consigo mesmo. Nesse sentido, Dantas (1992) afirma que
volvimento psicomotor como estágio impulsivo, emocional, na concepção de Wallon, o ato mental - que se desenvolve
sensório-motor e projetivo, e também analisa as caracterís- a partir do ato motor - passa em seguida a inibi-la, sem
ticas e sintomas das morbidades psicomotoras, com um in- deixar de ser atividade corpórea. Para tanto, o grande eixo
tuito não só de pesquisa, também para que seja viabilizada da questão é a motricidade que trabalha no organismo
a cura para estes pacientes. como uma orquestra harmoniosa movimentando órgãos,
Dessa forma, Wallon, ao estudar a psicopatologia, de- músculos e as estruturas cerebrais em busca de conhecer
dicou-se ao desenvolvimento da criança que tinha como e interagir com dos os componentes da sociedade a qual
questão fundamental o estudo da consciência, conside- pertence, ou seja, essa busca constante do indivíduo irá fa-
rando o melhor caminho para compreendê-la e com isto, vorecer o seu desenvolvimento mental.
tendo como foco principal a sua gênese que através de sua Vale salientar que, haverá uma descontinuidade entre
pesquisa de campo explorou as origens biológicas da cons-
o ato motor e o ato mental na medida em que for se forta-
ciência do indivíduo.
lecendo com o domínio de signos culturais, enquanto que,
A partir dos apontamentos enfatizados na obra enten-
o ato motor vai reduzindo os seus movimentos a partir do
de-se que para La Taille (1992), Piaget faz uma clara distin-
segundo ano de vida que irá dá mais espaços de tempos
ção entre dois tipos de relação social: a coação e a coope-
cada vez mais longos de imobilização.
ração. Na coação o indivíduo recebe a afirmativa do adulto
Sobre o desenvolvimento do juízo moral e afetividade
como verdadeira sem refletir sobre o que foi dito, ou seja,
corresponde a um nível baixo de socialização, enquanto na teoria de Piaget, que fala em sua obra “Le jugement
que nas relações de cooperação são as que permitem esse moral chez I’ enfant”. O desenvolvimento do juízo moral
desenvolvimento efetivamente. Portanto, o autor evidencia da criança está enraizado entre a afetividade e cognição,
que se tem em Piaget uma teoria que resgata a dimensão ou seja, impossível de ser pensado separadamente, pois o
ética e política dentro do desenvolvimento da inteligência indivíduo descobre a afetividade no meio em que vive, e
do homem permitindo transparecer na sua análise uma através do contato com os outros o desenvolvimento da
perspectiva interacionista como referencial e fundamento sua personalidade é formado através de percepções, assi-
básico do seu raciocínio. milação, experiências e informações vivenciadas pelo su-
Somando a isso, Ferreiro e Teberosky (1999) pontuam jeito. Nesse sentido, Munari (2010 p.102) expressa que, “a
elementos que fazem associações condizentes e amplia a questão da influência do meio sobre o desenvolvimento e
discussão sobre desenvolvimento intelectual e socialização o fato de que as reações características dos diferentes está-
do indivíduo. Assim: gios sejam sempre relativas a certo ambiente”.
O sujeito que conhecemos na teoria de Piaget é aquele Nesse sentido, para Piaget, as vivências impõem regras,
que procura ativamente compreender o mundo que o ro- as quais só poderão ser confirmadas a partir do respeito
deia e trata de resolver as interrogações que este mundo que o sujeito tem por estas regras baseado em sua mora-
provoca. Neste contexto, o indivíduo é um ser cognoscente lidade. Pois, toda moral consiste num conjunto de normas
que está o tempo todo buscando aprimorar seus conheci- a ser seguida, e toda sua essência está no respeito a estas
mentos (FERREIRO E TEBEROSKY, 1999 p 29). normas. Para facilita a compreensão, Piaget apud La Taille
No entanto, a sua psicogenética descreve as primeiras (1992) classifica em três etapas de evolução da prática e da
etapas do desenvolvimento psicomotor como estágios im- consciência da regra que são: anomia: de 5 a 6 anos quan-
pulsivos emocionais que vai de 0 a 1 ano, quando a criança do a criança não seguir as regras coletivas criando suas
vivência atividade global ainda não estruturada, com mo- próprias normas à medida que se sentirem ameaçadas no
vimentos bruscos, desordenados de enrijecimento e rela- transcorrer do processo em que está participando; hetero-
xamento muscular que irá indicar mal-estar ou bem-estar, nomia: de 6 a 9 anos quando não compreende, mas seguir;
e a partir do terceiro mês de vida já é conhecido padrões e autonomia: de 9 a 10 anos quando seguem as regras e
emocionais diferenciados como medo, alegria, raiva, entre compreende o acordo firmado coletivamente visando fa-
outros. vorecer o bem comum.

53
BIBLIOGRAFIA

No entanto, o dever moral acontece a partir das nor- ta a chama emocional. O ser humano não conseguiria vive
mas estabelecidas pelos pais e os adultos que vivem no sem o contrato com os outros, ou seja, toda atividade que
seu dia a dia, e também pelo respeito que elas têm sobre envolva a emoção trabalha lado a lado com o social e o
tais regras que podem ser traduzidos como realismo moral biológico.
caracterizado por três etapas distintas como: é bom todo Para tanto, a emoção tem sua origem na vida orgânica
ato de obediência, culpem ao pé da letra e o julgamento é do sujeito que ao nascer é mediado pelo afeto que simul-
feito pelo ato e não pela intencionalidade. taneamente envolve o social e o biológico criando no indi-
Todavia, a noção de justiça reúne todas as noções víduo uma ligação forte com o ambiente. A emoção pode
morais que regulam e determinam as normas dentro da ser classificada de natureza Hipotética (susto e depressão)
sociedade, incluído as ideias matemáticas e outras. Fato e hiprotética (ansiedade). O sujeito é puramente afeto.
bastante curioso e equivocado é o símbolo da justiça ser Enquanto, segundo Wallon apud Dantas (1992) quando a
determinado pela imagem da balança como forma de esta- inteligência e afetividade estão misturadas e ao longo da
belecer o direito e igualdade para todos, mas não poderão vida será marcado por momentos afetivos ou cognitivos.
esquecer-se dos seus deveres e o respeito ao próximo. No De forma que, para o sujeito se desenvolva é neces-
entanto, cada cidadão que se sentir ameaçado ou prejudi- sário que afetividade e inteligência simultaneamente este-
cado poderá recorrer às leis para que a justiça seja conquis- jam juntas. A partir do momento que a inteligência evolui
tada e o seu direito prevalecido. a emoção também. Para tanto, o ser está continuamente
Sendo assim, a partir da investigação constante a em construção não podendo ser considerado um sujeito
criança desenvolve seus conhecimentos interagindo com acabado.
o meio em que vive superando obstáculos conforme o Afirma-se então que, o livro retrata uma discussão
grau de maturidade do mesmo. Nesse livro, Oliveira (1992) sobre a psicologia genética tão indispensável para com-
relata que Vygotsky aborda o problema da afetividade preender como ocorre o desenvolvimento humano neces-
no campo de pesquisa da atividade cognitiva. Segundo sário para o estudo das diversas áreas afins.
Oliveira, Vygotsky é contrário o estudo da afetividade e Identificação dos autores: Yves La Taille, professor dou-
cognição separadamente como faz a psicologia tradicio- tor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo,
nal. Ele pesquisou os processos internos do desenvolvi- na cadeira de Psicologia do Desenvolvimento. Marta Kohl
mento humano mostrando a importância de diferenciar de Oliveira, Professora doutorada Faculdade de educação
as funções mentais elementares (involuntárias) e superio- da Universidade de São Paulo, na cadeira de Psicologia da
res que são as ações conscientes (voluntária) e também Educação. Heloysa Dantas, professora doutora da Faculda-
compreende que uma está ligada a outra não podendo de de Educação da Universidade de São Paulo, na área de
ser dissociada uma da outra. Psicologia da Educação.
Entende-se que, para Vygotsky a consciência é forma-
da através de sua participação no meio em que vive, no Fonte
qual o sujeito se relaciona e aprimora seus conhecimentos SANTOS, N. T. da S.
com base nas práticas sociais dos mais experientes tendo http://artigos.netsaber.com.br/resumo_artigo_71716/
a linguagem Intersubjetividade que é a questão simbólica artigo_sobre_resenha-critica-sobre-as-teorias-psicogene-
como meio facilitador dessa integração social que vai favo- ticas-em-discussao
recer um processo de internalização deste contexto cultural
para a formação da sua própria consciência (subjetividade).
Segundo Vygotsky (1984) é a ideia de que os processos
DELIZOICOV. DEMÉTRIO; ANGOTTI, JOSÉ
mentais superiores são processos mediados por sistemas
simbólicos, sendo a linguagem o sistema simbólico básico ANDRÉ. METODOLOGIA DO ENSINO DE
de todos os grupos humanos. CIÊNCIAS. SÃO PAULO: CORTEZ, 1994.
Neste contexto, o referencial para se compreender (CAPÍTULO II: UNIDADES 2 E 3; CAPÍTULO III:
essa linguagem é verificando o sentido e o significado das UNIDADES 4 E 5).
palavras como forma de mediação para o indivíduo com-
preender o mundo, sabendo que, o significado é exclusivo
do domínio da consciência humano numa conexão entre o OS TRÊS MOMENTOS PEDAGÓGICOS NO LIVRO
cognitivo e afetivo. Em primeira estância a linguagem tem a METODOLOGIA DO ENSINO DE CIÊNCIAS
função de socialização pelo sujeito, e ao longo de sua traje-
tória ela é internalizada, passando a servir o próprio sujeito, Metodologia do Ensino de Ciências é um livro com
o que Vygotsky considera de discurso interior. foco nas séries iniciais do 1º grau, atualmente séries iniciais
Segundo Dantas (1992), a afetividade e a construção do Ensino Fundamental. Foi escrito para uso nos cursos de
do sujeito na psicogenética de Wallon é um tema central Magistério de 2º grau, hoje Ensino Médio, tendo em vista
em sua teoria que é genética (estuda o desenvolvimento oferecer uma proposta de renovação no ensino de Ciências
funcional) e dialética (indica direções e possibilidades), naturais (DELIZOICOV e ANGOTTI, 1994).
impossível de se pensar como processo direto que só vai É organizado em quatro capítulos. No 1° capítulo apre-
adiante ao contrário tem idas e vindas. Relatando assim, senta-se a proposta da relação da disciplina “Metodologia
que a plateia desempenha o papel do oxigênio que alimen- do Ensino de Ciências” com outras e suas especificidades,

54
BIBLIOGRAFIA

finalizando com o histórico do Ensino de Ciências no Brasil. àquele universo mostram que é possível, neste nível de en-
No 2° capítulo são abordados aspectos de natureza episte- sino, uma efetiva aproximação dos modelos e das abstra-
mológica relevantes para o ensino de Ciências. O 3° capí- ções contidas no conhecimento científico e sua aplicação
tulo traz a relação Ciências, professorandos e crianças com em situações reais e concretas” (53).
o intuito de subsidiar a formulação de um programa para Senso comum X Conhecimento universal sistemati-
as séries iniciais do 1º grau. O último capítulo destaca os zado: é proposto que o educador considere os conheci-
projetos de ensino desenvolvidos de acordo com o subpro- mentos que os alunos possuem, pois podem “interferir na
grama “Educação para a Ciência”, do concreto, econômico, efetiva apreensão do conteúdo veiculado na escola. [...] no
social e ideologicamente determinado. Sendo assim, resta- estudo das Ciências, situações conflitivas emergem, opor-
-lhe transformar essa situação. A busca do conhecimento é tunizando a “convivência” de duas estruturas de conheci-
imprescindível, é uma atividade inseparável da prática so- mento paralelas, que para o mesmo fenômeno estudado
cial, e não deve se basear no acúmulo de informações, mas não fornecem a mesma interpretação” (53).
sim numa reelaboração mental que deve surgir em forma Diálogo X Monólogo: a postura problematizadora do
de ação, sobre o mundo social. Assim, a escola deve ser va- educador é enfatizada como forma de superar o monó-
lorizada como instrumento de luta das camadas populares, logo. A participação tanto do aluno quanto do educador
propiciando o acesso ao saber historicamente acumulado significa “uma interação mediatizada pelo problema, o que
pela humanidade, porém reavaliando a realidade social na implica um diálogo” (53). Os autores enfatizam a necessi-
qual o aluno está inserido. A educação se relaciona diale- dade de um equilíbrio entre a postura problematizadora e
ticamente com a sociedade, podendo constituir-se em um a postura centrada num “excessivo discurso centralizador”
importante instrumento no processo de transformação da (54) cujo pressuposto é, exclusivamente, a transmissão de
mesma. Sua principal função é elevar o nível de consciência conhecimento. Desafio X Verdade: na perspectiva do livro,
do educando a respeito da realidade que o cerca, a fim de encarar “a questão, a resposta, o lúdico, a imaginação, a
torná-lo capaz para atuar no sentido de buscar sua eman- construção mental apresentada pelo aluno” (54) como um
cipação econômica, política, social e cultural. desafio constante, poderá contribuir para o estabelecimen-
Delizoicov e Angotti (1994) explicitam que o objetivo to de um clima propício para a troca de saber e de apren-
da obra é colocar nas mãos dos futuros educadores um dizagem das Ciências, tanto para educadores quanto para
“instrumento” que os ajude a “agilizar” práticas escolares educandos.
que levem a mudanças na escola básica, as quais “somente Após essas contraposições, Delizoicov e Angotti (1994)
serão concretizadas pelos próprios docentes”. Na apresen- apresentam ao educador os 3MP, explicitando as caracte-
tação da obra fica claro para quem o livro é dirigido, pois rísticas essenciais de cada um deles. Assim:
não se restringe somente aos futuros professores que cur-
sam Magistério (atual curso Normal Superior). Desta forma, Primeiro Momento: a problematização inicial
o livro também pode ser útil para as disciplinas: Metodo-
logia de Ensino, Prática de Ensino e Instrumentação para o São apresentadas questões e/ou situações para discus-
Ensino de Ciências das licenciaturas em Física, Química e são com os alunos. Sua função, mais do que simples moti-
Biologia, assim como do curso de Pedagogia. vação para se introduzir um conteúdo específico, é fazer a
Os momentos pedagógicos são explorados no 2° capí- ligação desse conteúdo com situações reais que os alunos
tulo da obra, na unidade que trata do ensino de Ciências, conhecem e presenciam, para as quais provavelmente eles
mais precisamente no tópico intitulado “Uma metodologia não dispõem de conhecimentos suficientes para interpretar
para o ensino de Ciências”. total ou corretamente (54).
Inicialmente os momentos pedagógicos são trazidos Delizoicov e Angotti recomendam que a postura do
pelos autores como uma proposta de “abordagem meto- educador “seja mais de questionar e lançar dúvidas do que
dológica” (1994: 52) que, na época, vinha sendo desenvol- de responder e fornecer explicações” (55). Enfatizam que a
vida e aplicada no projeto “Ensino de Ciências a partir de problematização pode ocorrer, pelo menos, em dois sen-
Problemas da Comunidade”, na Universidade Federal do tidos. De um lado, as concepções alternativas dos alunos,
Rio Grande do Norte, junto a professores em serviço e seus aquilo que o aluno já tem noções, fruto de aprendizagens
alunos. anteriores, que pode emergir com a discussão problemati-
Os autores apresentam algumas contraposições que se zada. De outro, um problema a ser resolvido, quando o alu-
relacionam com premissas epistemológicas e pedagógicas no deve sentir a necessidade de conhecimentos que ainda
defendidas no decorrer do livro. não possui.
Explicam ainda que o critério para a escolha das ques-
Algumas premissas subjacentes à metodologia pro- tões “é o seu vínculo com o conteúdo a ser desenvolvido,
posta ou seja, necessariamente relacionadas com o conteúdo de
Ciências a ser estudado” (55).
Cotidiano X Distante: Os autores sinalizam a necessi- Comparando-se à função do Primeiro Momento, assim
dade do professor de Ciências considerar com seriedade explicitada no livro, com a que teve nos três projetos an-
os fenômenos e as situações que constituem o universo teriores, destaca-se que não se explicita a relação que esse
dos educandos, ao enfatizar que: “esforços recentes de se momento possui com situações significativas envolvidas
trabalhar os mesmos conteúdos de ensino mais vinculados nos temas geradores. Apesar de enfatizar a necessidade

55
BIBLIOGRAFIA

de um tratamento didático-pedagógico do conhecimen- Radiação Solar, uma abordagem metodológica (Tó-


to do aluno sobre “situações reais que os alunos conhe- pico 1)
cem e presenciam”, não estabelece critérios que possam
contribuir para a seleção do que seriam e quais seriam as Nesse tópico, os autores exemplificam como os mo-
situações a que se refere. De fato, essa mudança na pro- mentos pedagógicos podem ser utilizados para o desen-
posta de uso do primeiro momento está relacionada às volvimento de uma atividade. Segundo eles, uma forma de
diferentes perspectivas didático-pedagógicas que emba- “enriquecer e amadurecer este tópico é a reflexão e a dis-
sam as proposições oriundas dos três projetos anteriores cussão conjunta com colegas professores” (56).
e a do projeto do qual o livro é parte constituinte (Coleção Assim, no primeiro momento, são sugeridas algumas
Magistério). Como se verá no decorrer da análise, as alte- questões e situações que servem para a apreensão da visão
rações dizem respeito, sobretudo, às diferenças existentes dos alunos sobre o assunto, conforme afirmam os autores.
entre uma abordagem conceitual e uma abordagem temá- Algumas das questões sugeridas são:
tica (DELIZOICOV, ANGOTTI e PERNAMBUCO, 2002). 1) Explique a forma adquirida pelos rochedos da orla
marítima;
Segundo Momento: a organização do conhecimento 2) Por que as pessoas expostas ao sol ficam bronzea-
das?
Os autores explicam que, no segundo momento: o co- 3) Por que primeiro vemos o relâmpago e só depois
nhecimento em Ciências Naturais necessário para a com- ouvimos o trovão?
preensão do tema e da problematização inicial será siste- Essas questões exploram claramente manifestações
maticamente estudado sob orientação do professor. Serão empíricas de processos naturais que precisam do conceito
desenvolvidas definições, conceitos, relações. O conteúdo físico de onda para ser compreendidas. Trata-se, portanto,
programado é preparado em termos instrucionais para de um conceito eleito para estruturar a atividade exem-
que o aluno o aprenda de forma a, de um lado perceber a plar para o uso dos 3MP, em sintonia com a perspectiva da
existência de outras visões e explicações para as situações abordagem conceitual para a estruturação de conteúdos
e fenômenos problematizados, e, de outro, a comparar programáticos escolares, uma vez que não se trata de um
esse conhecimento com o seu, para usá-lo para melhor tema, como, por exemplo, as “Ondas do mar”, que tam-
bém propiciaria o desenvolvimento do conceito físico de
interpretar aqueles fenômenos e situações (55).
ondas, no caso as mecânicas, ou “As cores do arco-íris”, que
Conforme destacado, nota-se a presença do termo
propiciaria o desenvolvimento do conceito de ondas ele-
“tema”. Ou seja, introduz-se a ideia de que a intenção é
tromagnéticas. Esses dois exemplos de temas, mesmo não
que o conhecimento científico está colocado na perspecti-
possuindo a característica dos temas geradores, exigiriam
va de compreensão da problematização e do tema, e não
uma organização do conteúdo programático que possibili-
como um fim em si mesmo.
taria exemplificar como uma abordagem temática tornaria
Para desenvolver esse momento, o professor é acon-
possível introduzir e desenvolver os conceitos científicos
selhado a utilizar como recurso diversas técnicas de ensi-
abordados no segundo momento.
no, tais como: estudo em grupo, seminários, visitas e ex-
cursões. De fato, no segundo momento, para a organização
dos conhecimentos, são apresentados alguns conceitos e
Terceiro Momento: a aplicação do conhecimento propriedades das ondas, introduzindo atividades com uma
corda para em seguida utilizar aspectos dessa unidade para
Ao apresentarem esse momento pedagógico, os auto- analisar alguns parâmetros fundamentais da onda como:
res afirmam que: comprimento, frequência, período, velocidade de propaga-
Destina-se, sobretudo, a abordar sistematicamente o ção e unidades de medidas. Nesse momento também são
conhecimento que vem sendo incorporado pelo aluno, lançados problemas e questões.
para analisar e interpretar tanto as situações iniciais que Finalmente, no terceiro momento, que se refere à
determinaram o seu estudo, como outras situações que aplicação do conhecimento, são retomadas as questões
não estejam diretamente ligadas ao motivo inicial, mas e situação da problematização inicial. De acordo com os
que são explicadas pelo mesmo conhecimento (55). autores, para “rediscuti-las e verificar se houve mudanças
Com isso, pretende-se que “dinâmica e evolutivamen- nas respostas ou se é possível responder a algumas que
te” se perceba que o conhecimento está disponível para eventualmente não puderam ser enfrentadas naquele mo-
qualquer cidadão e por isso deve ser apreendido, não sen- mento” (68). Na explicitação desse momento, os autores
do apenas uma construção historicamente determinada. fazem uma importante observação, quando afirmam que:
Com os três momentos, assim descritos, os autores, Não é obrigatória a resposta precisa a todas as ques-
conforme anunciado, apresentam uma atividade que é es- tões, nem se pode garantir todas as respostas somente
truturada com base nessa dinâmica, na unidade 3 – Con- com o conhecimento adquirido até aqui (68).
teúdo e Metodologia indissociáveis (57) da obra Metodo- Nesse momento, novas questões também são suge-
logia do Ensino de Ciências. ridas, como por exemplo, pede-se para determinar a fre-
quência da onda do rádio com diversos comprimentos de
onda, para explicar o efeito estufa, entre outras.

56
BIBLIOGRAFIA

Fica evidente a importância da reflexão sobre as ques- tercoletiva ― para conceber aspectos fundamentais e es-
tões e da tentativa de aproximar o conhecimento novo da truturantes de livros da coleção, particularmente do livro
interpretação de fenômenos de nosso convívio, embora a Metodologia de Ensino, parece ter tido alguma influência
proposição 1 do primeiro momento “Explique a forma ad- mútua, quer no sentido das modificações nos 3MP quer
quirida pelos rochedos da orla marítima”, refira-se a um ao se incorporar a dimensão da problematização dos con-
fenômeno convivido apenas por alunos que vivem na faixa teúdos.
litorânea. Os que habitam as regiões brasileiras centrais, O tópico 2 é proposto por Maria Isabel Soncini e Mi-
distantes do mar, precisam abstrair a forma adquirida pe- guel Castilho Júnior, no qual a dinâmica utilizada é a da
los rochedos através de dados disponíveis em outras cir- problematização, “na qual o conceito é construído pelos
cunstâncias. Neste sentido, uma das consequências das alunos” (74). Já a atividade do tópico 3, proposta pelo pro-
alterações nos 3MP, decorrentes das interações na produ- fessor Nelson Orlando Beltran, é desenvolvida com base na
ção do livro, foi o vínculo estrito das questões do primeiro experimentação. É importante ressaltar, de acordo com os
momento com a conceituação científica desenvolvida no autores, que:
segundo momento, e não propriamente questões que se- Na aula, o professor não usou o experimento para
riam significativas para a compreensão de um tema, como mostrar que os resultados confirmavam as explicações
aquelas que se propunham nos três projetos anteriores e dadas. Ao contrário, problematizou uma situação fazendo
com as quais se problematizaria a necessidade de se in- com que os alunos fossem obrigados a levantar hipóteses
cluir e abordar a conceituação científica necessária para a sobre o que estava ocorrendo.
compreensão do tema, como é a proposta da abordagem
temática. Fonte
Nas “orientações ao professor” desse tópico (72-74), MUENCHEN, C. A disseminação dos três momentos
os autores apresentam sugestões que pretendem auxiliar pedagógicos: um estudo sobre práticas docentes na região
os professores no desenvolvimento da atividade proposta de SANTA MARIA/RS.
e estruturada pelos 3MP, além das leituras recomendadas
para o aprofundamento de aspectos relativos à perspectiva Referência
educacional que baliza o grupo de investigadores no EC. DELIZOICOV, D.; ANGOTTI, J.A. Metodologia do ensino
Nessas orientações, é possível verificar que um dos objeti- de ciências. São Paulo: Cortez, 1994.
vos da atividade (Radiação Solar) era “aplicar para um con-
teúdo específico a metodologia de ensino proposta” (72).
Com o objetivo de problematizar a atividade desenvol- DELORS, JACQUES. EDUCAÇÃO: UM
vida, os autores sugerem: TESOURO A DESCOBRIR. CAPÍTULOS: 3, 5 E 8.
Discussão da metodologia: Somente após ter aplicado 6A ED. SÃO PAULO. CORTEZ, 2001.
e praticado a metodologia durante as aulas através do con-
teúdo específico, explicite-a, promovendo uma discussão
crítica. Questões propostas para discussão: 1. Que carac- Educação: um tesouro a descobrir abrange os avanços
terísticas básicas cada momento pedagógico apresenta? 2. adquiridos no decorrer do século XX e lança perspectivas
As questões e/ou situações da problematização inicial têm em todos aspectos, para a coletividade num mundo glo-
que finalidade? 3. As conclusões da problematização inicial balizado. É um alerta dos problemas causados pelos des-
são suficientes para esgotar o conhecimento em Ciências? níveis da Educação entre o Terceiro Mundo e os poderosos
4. Que adaptações devem ser feitas caso esta metodologia blocos econômicos. O livro contém uma visão da pessoa
seja usada nas aulas de 1ª a 4ª séries? 5. Baseando-se no humana em sua totalidade e encerra com artigos de espe-
texto, ressalte a função e os pontos importantes de cada cialistas sobre o tema, numa visão cultural e multicultural.
momento pedagógico. 6. Relacione os aspectos metodoló- Fonte: http://www.cortezeditora.com.br/educacao-
gicos com as contraposições (73). -um-tesouro-a-descobrir-1168.aspx/p
Apesar da abordagem e uso dos 3MP estar mais focada
em uma abordagem conceitual, percebe-se que os autores,
a nível do discurso explícito no texto, procuram trabalhar as DOWBOR, LADISLAU. EDUCAÇÃO E
unidades de ensino, estruturando-as por parâmetros enca- APROPRIAÇÃO DA REALIDADE LOCAL.
deados às categorias dialogicidade e problematização. ESTUD. AV. [ONLINE].2007, VOL.21, Nº 60, PP.
Para complementar essa unidade, são apresentadas as 75-90.
atividades dos tópicos 2 – Fotossíntese, uma abordagem
metodológica e 3 – Combustão, uma abordagem metodo-
lógica. Essas atividades foram propostas por componentes EDUCAÇÃO E APROPRIAÇÃO DA REALIDADE LOCAL
do projeto Coleção Magistério e autores de outros livros
da coleção, como os de Biologia (Soncini e Castilho, 1992) Ladislau Dowbor
e de Química (Beltran e Ciscato, 1991). Esses autores não
pertenciam ao grupo de investigação em EC do qual Deli- NO MUNICÍPIO de Pintadas, na Bahia, pequeno muni-
zoicov e Angotti eram originários. No entanto, o processo cípio distante da modernidade do asfalto, todo ano quase
mediado pelas interações que tiveram ― a circulação in- a metade dos homens viajava para o Sudeste para o corte

57
BIBLIOGRAFIA

de cana. A parceria de uma prefeita dinâmica, de alguns É importante pensar a dimensão educativa desses pro-
produtores e de pessoas com visão das necessidades locais cessos. Há tempos, com a recomendação do Banco Mun-
permitiu que os que buscavam emprego em lugares dis- dial, promoveu-se o que se chamava na época de «educa-
tantes se voltassem para a construção do próprio municí- ção para o desenvolvimento». A visão restringia os currí-
pio. Começaram com uma parceria da Secretaria da Educa- culos, centrando-os na formação de pessoas úteis para as
ção local com uma universidade de Salvador, para elaborar empresas, em conhecimentos tidos como mais «práticos».
um plano de saneamento básico da cidade, o que reduziu Hoje essa tendência se manifesta em grandes instituições
os custos de saúde, liberou terras e verbas para a produção, privadas, como a Phoenix, nos Estados Unidos, universida-
e assim por diante. A geração de conhecimentos sobre a de de fins lucrativos, cotada em bolsa, que eliminou visões
realidade local e a promoção de uma atitude proativa para humanistas e ensina o que caracteriza como marketable
o desenvolvimento fazem parte evidente de uma educação skills, ou seja, habilidades comercializáveis. É ir contra a
que pode se tornar no instrumento científico e pedagógico corrente, na linha da velha dicotomia entre teoria e prática.
da transformação local. Essa visão de que podemos ser donos da nossa própria
A iniciativa partiu de uma prefeita eleita por uma rede transformação econômica e social, de que o desenvolvi-
de organizações sociais, portanto diretamente vinculada às mento não se espera, mas se faz, constitui uma das mudan-
necessidades das comunidades. Em retribuição, o gover- ças mais profundas que estão ocorrendo no país. Tira-nos
nador mandou fechar a única agência bancária da cidade. da atitude de espectadores críticos de um governo sempre
A resposta da comunidade foi reativar uma cooperativa insuficiente, ou do pessimismo passivo. Devolve ao cidadão
de crédito local, passando a financiar localmente grande a compreensão de que pode tomar o seu destino em suas
parte das iniciativas. E a educação nisso? Os promotores mãos, conquanto haja uma dinâmica social local que faci-
dessas iniciativas deram-se conta de que Pintadas fica no lite o processo, gerando sinergia entre diversos esforços.
semiárido, e que as crianças nunca tinham tido uma aula A ideia da educação para o desenvolvimento local está
sobre o semiárido, sobre as limitações e potencialidades da diretamente vinculada a essa compreensão e à necessida-
sua própria realidade. Hoje se ensina o semiárido nas esco- de de se formarem pessoas que amanhã possam participar
las de Pintadas. É natural que esse ensino, que permite às de forma ativa das iniciativas capazes de transformar o seu
crianças a compreensão da sua região, das dificuldades dos entorno, de gerar dinâmicas construtivas. Hoje, quando se
seus próprios pais nas diversas esferas profissionais, esti- tenta promover iniciativas desse tipo, constata-se que não
só as crianças, mas mesmo os adultos desconhecem desde
mule as crianças e prepare cidadãos que verão a educação
a origem do nome da sua própria rua até os potenciais do
como instrumento de transformação da própria realidade.
subsolo da região onde se criaram. Para termos cidadania
Em Santa Catarina, sob orientação do falecido Jacó
ativa, temos de ter uma cidadania informada, e isso começa
Anderle, foi desenvolvido o programa “Minha Escola, Meu
cedo. A educação não deve servir apenas como trampolim
Lugar”. Trata-se de uma orientação sistemática de inclu-
para uma pessoa escapar da sua região: deve dar-lhe os
são da realidade local nos currículos escolares, envolvendo
conhecimentos necessários para ajudar a transformá-la.
a formação de professores – que, em geral, pela própria
Numa região da Itália, visitamos uma cidade onde o
formação, também desconhecem as suas regiões –, a ela-
chão da praça central era um grande baixo-relevo da pró-
boração de material didático, articulação dos currículos de pria cidade e das regiões vizinhas, permitindo às pessoas
diversas disciplinas, e assim por diante. visualizar os prédios, as grandes vias de comunicação, o
A região de São Joaquim, no sul do Estado de San- desenho da bacia hidrográfica, e assim por diante. Entre
ta Catarina, era um local pobre, de pequenos produtores outros usos, a praça é utilizada pelos professores para dis-
sem perspectiva, e com os indicadores de desenvolvimen- cutir com as crianças a distribuição territorial das princi-
to humano mais baixos do Estado. Como outras regiões pais áreas econômicas, mostrar-lhes como a poluição num
do país, São Joaquim e os municípios vizinhos esperavam ponto se espalha para o conjunto da cidade, e assim por
que o desenvolvimento “chegasse” de fora, sob forma de diante. Há cidades que elaboraram um Atlas local para que
investimento de uma grande empresa, ou de um projeto as crianças pudessem entender o seu espaço, outras es-
do governo. Há poucos anos, vários residentes da região tão dinamizando a produção de indicadores para que os
decidiram que não iriam mais esperar, e optaram por uma problemas locais se tornem mais compreensíveis, e mais
outra visão de solução dos seus problemas: enfrentá-los fáceis de ser incorporados ao currículo escolar. Os meios
eles mesmos. Identificaram características diferenciadas do são numerosos e variados, e os detalharemos no presente
clima local, que constataram ser excepcionalmente favorá- texto, mas o essencial é essa atitude de considerar que as
vel à fruticultura. Organizaram-se, e com os meios de que crianças podem e devem se apropriar, por meio de conhe-
dispunham fizeram parcerias com instituições de pesqui- cimento organizado, do território onde são chamadas a vi-
sa, formaram cooperativas, abriram canais conjuntos de ver, e que a educação tem um papel central a desempenhar
comercialização para não depender de atravessadores, e nesse plano.
hoje constituem uma das regiões que mais rapidamente Há uma dimensão pedagógica importante nesse enfo-
se desenvolvem no país. E não estão dependendo de uma que. Ao estudarem de forma científica e organizada a rea-
grande corporação que de um dia para outro pode mudar lidade que conhecem por vivência, mas de forma fragmen-
de região: dependem de si mesmos. tada, as crianças tendem a assimilar melhor os próprios
conceitos científicos, pois é a realidade delas que passa a

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BIBLIOGRAFIA

adquirir sentido. Ao estudarem, por exemplo, as dinâmicas A grande diferença, para municípios que tomaram as
migratórias que constituíram a própria cidade onde vivem, rédeas do próprio desenvolvimento, é que, em vez de se-
as crianças tendem a encontrar cada uma a sua origem, rem objetos passivos do processo de globalização, passa-
segmentos de sua identidade, e passam a ver a ciência ram a direcionar a sua inserção segundo os seus interesses.
como instrumento de compreensão da sua própria vida, da Promover o desenvolvimento local não significa voltar as
vida da sua família. A ciência passa a ser apropriada, e não costas para os processos mais amplos, incluindo os pla-
mais apenas uma obrigação escolar. netários: significa utilizar as diversas dimensões territoriais
segundo os interesses da comunidade.
Globalização e desenvolvimento local Há municípios turísticos, por exemplo, onde um gi-
gante do turismo industrial ocupa uma imensa parte da
Quando consultamos a imprensa, ou até revistas téc- orla marítima, joga a população ribeirinha para o interior
nicas, parece-nos que tudo está globalizado, só se fala em e obtém lucros a partir da beleza natural da região, na
globalização, no cassino financeiro mundial, nas corpora- mesma proporção em que dela priva os seus habitantes.
ções transnacionais. A globalização é um fato indiscutí- Outros municípios desenvolveram o turismo sustentável
vel, diretamente ligado a transformações tecnológicas da e aproveitam a tendência crescente da busca de lugares
atualidade e à concentração mundial do poder econômico. mais sossegados, com pousadas simples, mas em ambien-
Mas nem tudo foi globalizado. Quando olhamos dinâmicas te agradável, ajudando, e não desarticulando, as atividades
simples, mas essenciais para a nossa vida, encontramos o preexistentes, como a pesca artesanal, que aliás se torna
espaço local. Assim, a qualidade de vida no nosso bairro é um atrativo. Tanto o turismo de resorts como o turismo
um problema local, envolvendo o asfaltamento, o sistema sustentável participam do processo de globalização, mas
de drenagem, as infraestruturas do bairro. na segunda opção há um enriquecimento das comunida-
Esse raciocínio pode ser estendido a inúmeras inicia- des, que continuam a ser donas do seu desenvolvimento.
tivas, como a de São Joaquim aqui citada, mas também Com o peso crescente das iniciativas locais, é natural
a soluções práticas, como a decisão de Belo Horizonte de que da educação se esperem não só conhecimentos gerais,
tirar os contratos da merenda escolar da mão de grandes mas a compreensão de como os conhecimentos gerais se
intermediários, contratando grupos locais de agricultura materializam em possibilidades de ação no plano local.
familiar para abastecer as escolas, o que dinamizou o em-
prego e o fluxo econômico da cidade, além de melhorar Urbanização e iniciativas sociais
sensivelmente a qualidade da comida – foram incluídas
cláusulas sobre agrotóxicos – e de promover a construção Boa parte da atitude passiva de “espera” do desenvol-
da capital social. Dependem essencialmente da iniciativa vimento se deve ao fato de a nossa urbanização ainda ser
local a qualidade da água, da saúde, do transporte coleti- muito recente. Nos anos 1950, éramos, como ordem de
vo, bem como a riqueza ou pobreza da vida cultural. Enfim, grandeza, dois terços de população rural; hoje somos 82%
grande parte do que constitui o que hoje chamamos de de população urbana. A urbanização muda profundamente
qualidade de vida não depende muito – ainda que possa a forma de organização da sociedade em torno às suas ne-
sofrer os seus impactos – da globalização: depende da ini- cessidades. Uma família no campo resolve individualmente
ciativa local. os seus próprios problemas de abastecimento de água, de
A importância crescente do desenvolvimento local en- lixo, de produção de hortifrutigranjeiros, de transporte.
contra-se hoje em inúmeros estudos, do Banco Mundial, Na cidade, não é viável cada um ter o seu poço, mesmo
das Nações Unidas, de pesquisadores universitários. Inicia- porque o adensamento da população provoca a poluição
tivas como a que mencionamos antes vêm sendo estuda- dos lençóis freáticos pelas águas negras. O transporte é em
das regularmente. O Programa Gestão Pública e Cidadania, grande parte coletivo, o abastecimento depende de uma
por exemplo, desenvolvido pela Fundação Getúlio Vargas rua comercial, as casas têm de estar interligadas com redes
de São Paulo, tem cerca de 7.500 experiências desse tipo de água, esgotos, telefonia, eletricidade, frequentemente
cadastradas e estudadas. O Cepam, que estuda a adminis- com cabos de fibras ópticas, sem falar da rede de ruas e
tração local no Estado de São Paulo, acompanha centenas calçadas, de serviços coletivos de limpeza pública e de re-
de experiências. O Instituto Brasileiro de Administração moção de lixo, e assim por diante. A cidade é um espaço no
Municipal (Ibam) do Rio de Janeiro acompanha experiên- qual predomina o sistema de consumo coletivo em rede.
cias no Brasil inteiro, como é o caso de Instituto Pólis, da No espaço adensado urbano, as dinâmicas de colabo-
Fundação Banco do Brasil, que promoveu a Rede de Tecno- ração passam a predominar. Não adianta uma residência
logias Sociais, e assim por diante. combater o mosquito da dengue se o vizinho não colabora.
É interessante constatar que quanto mais se desen- A poluição de um córrego vai afetar toda a população que
volve a globalização, mais as pessoas estão resgatando o vive rio abaixo. Assim, enquanto a qualidade de vida da era
espaço local e buscando melhorar as condições de vida no rural dependia em grande parte da iniciativa individual, na
seu entorno imediato. Naisbitt, um pesquisador americano, cidade passa a ser essencial a iniciativa social, que envolve
chegou a chamar esse processo de duas vias, de globaliza- muitas pessoas e a participação informada de todos.
ção e de localização, de «paradoxo global». Na realidade, O próprio entorno rural passa cada vez mais a se ar-
a nossa cidadania se exerce em diversos níveis, mas é no ticular com a área urbana, tanto por meio do movimento
plano local que a participação pode se expressar de forma de chácaras e lazer rural da população urbana como pe-
mais concreta. las atividades rurais que se complementam com a cidade,

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BIBLIOGRAFIA

como é o caso do abastecimento alimentar, das famílias ru- Informação, educação e cidadania
rais que complementam a renda com trabalho urbano, ou
da necessidade de serviços descentralizados de educação A pesquisadora americana Hazel Henderson traz uma
e saúde. Gera-se assim um espaço articulado de comple- imagem interessante. Imaginemos um trânsito atravancado
mentaridades entre o campo e a cidade. Onde antes havia numa região da cidade. Uma das soluções é deixar cada
a divisão nítida entre o “rural” e o “urbano” aparece o que um se virar como pode, um tipo de liberalismo exacerba-
tem sido chamado de “urbano”. do. O resultado será, provavelmente, que todos buscarão
No território assim constituído, as pessoas passam a se maximizar as suas vantagens individuais, gerando um en-
identificar como comunidade, a administrar conjuntamente garrafamento-monstro, pois a tendência é ocupar todos
problemas que são comuns. Esse “aprender a colaborar” os espaços vazios, e a maioria vai ter um comportamento
se tornou suficientemente importante para ser classificado semelhante. Outra solução é colocar guardas que irão dire-
como um capital, uma riqueza de cada comunidade, sob cionar todo o fluxo de trânsito, de forma imperativa, a fim
forma de capital social. Em outros termos, se antigamente de desobstruir a região. A solução pode ser mais interes-
o enriquecimento e a qualidade de vida dependiam dire- sante, mas não respeita as diferenças de opção ou mesmo
tamente, por exemplo, numa propriedade rural, do esforço de destino dos diversos motoristas. Uma terceira saída é
da família, na cidade a qualidade de vida e o desenvolvi- deixar a opção ao cidadão, mas assegurar, por meio de rá-
mento vão depender cada vez mais da capacidade inteli- dio ou de painéis, ampla informação sobre o local onde
gente de organização das complementaridades, das siner- ocorre o engarrafamento, os tempos previstos de demora
gias no interesse comum. e as opções. Esse tipo de decisão, democrática, mas infor-
É nesse plano que desponta a imensa riqueza da ini- mada, permite o comportamento inteligente de cada indi-
ciativa local: como cada localidade é diferenciada, segundo víduo, segundo os seus interesses e situação particular, e
o seu grau de desenvolvimento, a região onde se situa, a ao mesmo tempo o interesse comum.
cultura herdada, as atividades predominantes na região, Sempre haverá, naturalmente, um pouco de cada op-
a disponibilidade de determinados recursos naturais, as ção nas diversas formas de organizar o desenvolvimento,
soluções terão de ser diferentes para cada uma. E só as mas o que nos interessa particularmente é a terceira opção,
pessoas que vivem na localidade, que a conhecem efetiva- pois mostra que além do “vale tudo” individual, ou da dis-
mente, é que sabem realmente quais são as necessidades ciplina da “ordem”, pode haver formas organizadas e inte-
mais prementes, os principais recursos subutilizados, e as- ligentes de ação sem que seja preciso mandar nas pessoas,
sim por diante. Se elas não tomarem iniciativas, dificilmente respeitando a sua liberdade. Em outros termos, um bom
alguém o fará para elas. conhecimento da realidade, sólidos sistemas de informa-
O Brasil possui quase 5.600 municípios. Não é viável o ção, transparência na sua divulgação podem permitir ini-
governo federal, ou mesmo o governo estadual, conhecer ciativas inteligentes por parte de todos.
todos os problemas de tantos lugares diferentes. E tam- Há algum tempo, a cidade de Porto Alegre colocou em
pouco está na mão de algumas grandes corporações resol- mapas digitalizados todas as informações sobre unidades
ver tantos assuntos, ainda que tivessem interesse. De certa econômicas da cidade, que estão registradas na Secretaria
forma, os municípios formam os “blocos” com os quais se da Fazenda para obter o alvará de funcionamento. Quan-
constrói o país, e cada bloco ou componente tem de se or- do, por exemplo, um comerciante quer abrir uma farmá-
ganizar de forma adequada segundo as suas necessidades, cia, mostram-lhe o mapa de distribuição das farmácias na
para que o conjunto – o país – funcione. cidade. Com isso, o comerciante localiza as áreas onde já
Assim passamos de uma visão tradicional dicotômica, há várias farmácias, e onde há falta delas. Assim, com boa
na qual ficava de um lado a iniciativa individual e de outro informação, o comerciante irá localizar a sua farmácia onde
a grande organização, estatal ou privada, para uma visão há clientela que esteja precisando, servindo melhor os seus
de iniciativas colaborativas no território. As inúmeras orga- próprios interesses e prestando um serviço socialmente
nizações da sociedade civil organizada, as ONG, as organi- mais útil.
zações comunitárias, os grupos de interesse, fazem parte Em outros termos, a coerência sistêmica de numerosas
dessa construção de uma sociedade que gradualmente iniciativas de uma cidade, de um território depende forte-
aprende a articular interesses que são diferenciados, mas mente de uma cidadania informada. A tendência que te-
nem por isso deixam de ter dimensões complementares. mos hoje é que só alguns políticos ou chefes econômicos
A educação não pode se limitar a constituir para cada locais dispõem da informação, e ditam o seu programa à
aluno um tipo de estoque básico de conhecimentos. As cidade. Assim, a democratização do conhecimento do ter-
pessoas que convivem num território têm de passar a co- ritório, das suas dinâmicas mais variadas é uma condição
nhecer os problemas comuns, as alternativas, os potenciais. central do desenvolvimento. E onde o cidadão vai colher
A escola passa, assim, a ser uma articuladora entre as ne- conhecimento sobre a sua região se discussões sobre a ci-
cessidades do desenvolvimento local e os conhecimentos dade só aparecem uma vez a cada quatro anos nos discur-
correspondentes. Não se trata de uma diferenciação dis- sos eleitorais?
criminadora, do tipo “escola pobre para pobres”: trata-se
de uma educação mais emancipadora na medida em que
assegura à nova geração os instrumentos de intervenção
sobre a realidade que é a sua.

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BIBLIOGRAFIA

Um relatório recente do Instituto de Estudos Só- científicos e pedagógicos de um território, de uma comu-
cio-Econômicos (Inesc), uma ONG que trabalha sobre nidade. A requalificação dos professores que isso implica
o controle do dinheiro público, é nesse sentido inte- poderá ser muito rica, pois esses serão naturalmente leva-
ressante: dos a confrontar o que ensinam com as realidades vividas,
sendo de certa maneira colocados na mesma situação que
O fato de termos uma sociedade com baixo nível de os alunos, que escutam as aulas e enfrentam a dificuldade
escolaridade, constitui um desafio a mais, não só para me- em fazer a ponte entre o que é ensinado e a realidade con-
lhorar a escolaridade, mas para educar para a cidadania, creta do seu cotidiano.
para que os cidadãos saibam suas responsabilidades e sai- O impacto em relação à motivação, para uns e outros,
bam cobrar dos seus legisladores e do poder público em poderá ser grande, sobretudo para os alunos a quem sem-
geral, a transparência, a decomposição dos números que pre se explica que “um dia” entenderão por que o que estu-
não entendem. Apesar disso, e embora não haja uma cul- dam é importante. O aluno que tiver aprendido em termos
tura disseminada do controle social na população, muitos históricos e geográficos como se desenvolveu a sua cidade,
cidadãos exercem o controle social com extrema eficácia o seu bairro, terá maior capacidade e interesse em contras-
porque têm noção de prioridade e fazem comparações, em tar esse desenvolvimento com o processo de urbanização
termos de resultados das políticas, mesmo sem saber ler, e de outras regiões, de outros países, e compreenderá me-
mesmo quando o próprio poder público tenta desqualifi- lhor os conceitos teóricos das dinâmicas demográficas em
cá-los, principalmente quando se apontam irregularidades geral.
nos Conselhos. Quanto mais as informações são monopó- Envolve ainda mudanças dos procedimentos peda-
lio, ou herméticas e confusas, menor é a capacidade de a gógicos, pois é diferente fazer os alunos anotarem o que
sociedade participar e de influenciar o Estado, o que aca- o professor diz sobre D. Carlota Joaquina, e organizar de
ba enfraquecendo a noção de democracia, que pode ser maneira científica o conhecimento prático, mas fragmen-
medida pelo fluxo, pela qualidade e quantidade das infor- tado que existe na cabeça dos alunos. Em particular, seria
mações que circulam na sociedade. O grande desafio é a natural organizar de forma regular e não esporádica dis-
transparência no sentido do empoderamento, que significa cussões que envolvam alunos, professores e profissionais
encontrar instrumentos para que a população entenda o de diversas áreas de atividades, desde líderes comunitários
orçamento e fiscalize o poder público.
a gerentes de banco, de sindicalistas a empresários, de pro-
O objetivo da educação não é desenvolver conceitos
fissionais liberais e desempregados, apoiando esses conta-
tradicionais de “educação cívica” com moralismos que
tos sistemáticos com material científico de apoio.
cheiram a mofo, mas permitir que os jovens tenham acesso
Na sociedade do conhecimento para a qual evoluímos
aos dados básicos do contexto que regerá as suas vidas.
rapidamente, todos – e não só as instituições de ensino – se
Entender o que acontece com o dinheiro público, quais
defrontam com as dificuldades de se lidar com muito mais
são os indicadores de mortalidade infantil, quem são os
conhecimento e informação. As empresas realizam regu-
maiores poluidores da sua região, quais são os maiores po-
larmente programas de requalificação dos trabalhadores,
tenciais de desenvolvimento – tudo isso é uma questão de
elementar transparência social. Não se trata de privilegiar o e hoje trabalham com o conceito de knowledge organiza-
“prático” relativamente ao teórico, trata-se de dar um em- tion, ou de learning organizations, na linha da aprendiza-
basamento concreto à própria teoria. gem permanente.
Acabou o tempo em que as pessoas primeiro estudam,
Os parceiros do desenvolvimento local depois trabalham, e depois se aposentam. A relação com a
informação e o conhecimento acompanha cada vez mais
Uma educação que insira nas suas formas de educar as pessoas durante toda a sua vida. É um deslocamento
uma maior compreensão da realidade local terá de organi- profundo entre a cronologia da educação formal e a crono-
zar parcerias com os diversos atores sociais que constroem logia da vida profissional.
a dinâmica local. Em particular, as escolas, ou o sistema Nesse sentido, todas as organizações, e não só as es-
educacional local de forma geral, terão de articular-se com colas, se tornaram instituições onde se aprende, reconside-
universidades locais ou regionais para elaborar o material ram-se os dados da realidade. A escola precisa estar articu-
correspondente, organizar parcerias com ONG que traba- lada com esses diversos espaços de aprendizagem para ser
lham com dados locais, conhecer as diferentes organiza- uma parceira das transformações necessárias.
ções comunitárias, interagir com diversos setores de ativi- Um exemplo interessante nos vem de Jacksonville, nos
dades públicas, buscar o apoio de instituições do sistema S Estados Unidos. A cidade produz anualmente um balanço
como Sebrae ou Senac, e assim por diante. de evolução da sua qualidade de vida, avaliando a saúde,
O processo é de duplo sentido, pois, por um lado, leva a educação, a segurança, o emprego, as atividades econô-
a escola a formar pessoas com maior compreensão das micas, e assim por diante. Esse relatório anual é produzido
dinâmicas realmente existentes para os futuros profissio- com a participação dos mais variados parceiros e permite
nais, e, por outro, leva a que essas dinâmicas penetrem o inserir o conhecimento científico da realidade no cotidia-
próprio sistema educacional, enriquecendo-o. Assim, os no dos cidadãos. O mundo da educação tem por vocação
professores terão maior contato com as diversas esferas ensinar a trabalhar de forma organizada o conhecimento.
de atividades, tornar-se-ão de certa maneira mediadores Pode ficar fora de esforços desse tipo?

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BIBLIOGRAFIA

Aparecem como parceiros necessários as universidades - integrar a imagem fixa ou animada, o som e o tex-
regionais, as empresas, o sistema S, diversos órgãos da pre- to de maneira muito simples, ultrapassando a tradicional
feitura, as ONG ambientais, as organizações comunitárias, divisão entre a mensagem lida no livro, ouvida no rádio
a mídia local, as representações locais do IBGE, da Embrapa ou vista numa tela, envolvendo aliás a possibilidade hoje
e de outros organismos de pesquisa e desenvolvimento. de qualquer escola ter uma rádio comunitária, tornando-se
Enfim, há um mundo de conhecimentos dispersos e subu- um articulador local poderoso no plano do conhecimento;
tilizados, que podem se tornar matéria-prima de um ensino - manejar os sistemas sem ser especialista: acabou-se
diferenciado. o tempo em que o usuário tinha de aprender uma “lin-
O que visamos é uma escola um pouco menos lecio- guagem”, ou simplesmente tinha que parar de pensar no
nadora, e um pouco mais articuladora dos diversos espa- problema do seu interesse científico para pensar no como
ços do conhecimento que existem em cada localidade, em manejar o computador. A geração dos programas user-
cada região; e educar os alunos de forma a que se sintam -friendly, ou seja, “amigos” do usuário, torna o processo
familiarizados e inseridos nessa realidade. pouco mais complicado que o da aprendizagem do uso
da máquina de escrever, mas exige também uma mudança
O impacto das tecnologias de atitudes ante o conhecimento de forma geral, mudança
cultural que, essa sim, é frequentemente complexa.
É impressionante a solidão do professor ante a sua tur- Trata-se aqui de dados muito conhecidos, e o que que-
ma, com os seus cinquenta minutos e uma fatia de conheci- remos notar, ao lembrá-los brevemente, é que estamos
mento predefinida a transmitir. Alguns serão melhores, ou- perante um universo que se descortina com rapidez verti-
tros piores, para enfrentar esse processo, mas no conjunto ginosa, e que será o universo do cotidiano das pessoas que
esse universo fatiado corresponde pouco à motivação dos hoje formamos.
alunos, e tornou-se muito difícil para o professor, indivi- Somente agora, contudo, as pessoas começam a se dar
dualmente, modificar os procedimentos. Isso levou a uma conta de que o custo total de um equipamento de primei-
situação interessante, de um grande número de pessoas ra linha, com enorme capacidade de estocagem de dados,
na área educacional querendo introduzir modificações, ao impressora, modem, escâner para transporte direto de tex-
mesmo tempo que pouco muda. É um tipo de impotência tos ou imagens do papel para a forma magnética, continua
institucional, em que uma engrenagem tem dificuldade de caindo regularmente.
alterar algo, na medida em que depende de outras engre- Há um potencial de democratização radical do apoio
nagens. A mudança sistêmica é sempre difícil. E sobretudo, aos professores, e de nivelamento por cima do conjunto do
as soluções individuais não bastam. mundo educacional no país, que as tecnologias hoje permi-
Um dos paradoxos que enfrentamos é o contraste entre tem, e a luta por essa democratização tornou-se essencial
a profundidade das mudanças das tecnologias do conhe- na mudança sistêmica, que ultrapassa o nível de iniciativa
cimento e o pouco que mudaram os procedimentos pe- do educador individual ou da escola isoladamente. Não há
dagógicos. A maleabilidade dos conhecimentos foi e está dúvida de que o educador frequentemente ainda se deba-
sendo profundamente revolucionada. Pondo de lado os di- te com os problemas mais dramáticos e elementares. Mas
versos tipos de exageros sobre a “inteligência artificial”, ou a implicação prática que vemos, ante a existência paralela
as desconfianças naturais dos desinformados, a realidade é desse atraso e da modernização, é que temos que trabalhar
que a informática, associada às telecomunicações, permite: em “dois tempos”, fazendo o melhor possível no universo
- estocar de forma prática, em disquetes, em discos rí- preterido que constitui a nossa educação, mas criando ra-
gidos e em discos laser, ou simplesmente em algum ende- pidamente as condições para uma utilização “nossa” dos
reço da rede, gigantescos volumes de informação. Estamos novos potenciais que surgem.
falando de centenas de milhões de unidades de informa- No plano da implantação local de tecnologias a serviço
ção que cabem no bolso, e do acesso universal a qualquer da educação, o exemplo de Piraí, pequena cidade do Esta-
informação digitalizada; do do Rio, é importante. O projeto, de iniciativa municipal,
- trabalhar essa informação de forma inteligente, per- envolveu convênios com as empresas que administram tor-
mitindo a formação de bancos de dados sociais e indivi- res de retransmissão de sinal de TV e de telefonia celular,
duais de uso simples e prático, e eliminando as rotinas bu- para instalação de equipamento de retransmissão de sinal
rocráticas que tanto paralisam o trabalho científico. Pesqui- de internet por rádio. Assim se assegura a cobertura de
sar dezenas de obras para saber quem disse o quê sobre todo o território municipal. A partir de alguns pontos de
um assunto particular, “navegando” entre as mais diversas recepção, fez-se uma distribuição do sinal banda larga por
opiniões, torna-se uma tarefa extremamente simples; cabo, dando acesso a todas as escolas, instituições públi-
- transmitir de forma muito flexível a informação por cas, empresas. Como a gestão do sistema é pública, utili-
meio da internet, de forma barata e precisa, inaugurando zou-se a diferenciação de tarifas para que o lucro maior das
uma nova era de comunicação de conhecimentos. Isso im- empresas cobrisse uma subvenção ao acesso domiciliar, e
plica que, de qualquer sala de aula ou residência, podem hoje qualquer família humilde pode ter acesso banda larga
ser acessados dados de qualquer biblioteca do mundo, ou em casa por R$ 35 por mês. Convênios de crédito com ban-
ainda, que um conjunto de escolas pode transmitir infor- cos oficiais permitem a compra de equipamentos particula-
mações científicas de uma para outra, ou de um conjunto res com juros baixos. O resultado prático é que o conjunto
de instituições regionais em redes educacionais articuladas; do município “banha” no espaço da internet, gerando uma

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BIBLIOGRAFIA

produtividade sistêmica maior do esforço de todos, além A palavra-chave é a conectividade. Uma vez feito o in-
de mudança de atitudes de jovens, de maior facilidade de vestimento inicial de acesso banda larga de uma escola, ou
trabalho dos professores que têm possibilidade de acesso de uma família, é a totalidade do conhecimento digitalizado
em casa, e assim por diante. do planeta que se torna acessível, representando uma mu-
O que temos hoje é uma rápida penetração das tecno- dança radical, particularmente para pequenos municípios,
logias, e uma lenta assimilação das implicações que essas para regiões isoladas, e na realidade qualquer segmento
tecnologias trazem para a educação. Convivem, assim, dois relativamente pouco equipado, mesmo das metrópoles.
sistemas pouco articulados, e frequentemente vemos esco- Quando se olha o que existe em geral nas bibliotecas es-
las que trancam computadores numa sala, o “laboratório”, colares, e a pobreza das livrarias – centradas em livros de
em vez de inserir o seu uso em dinâmicas pedagógicas re- autoajuda, volumes traduzidos sobre como ganhar dinheiro
pensadas. e fazer amigos, além de algumas bobagens mais –, com-
preende-se a que ponto o aproveitamento adequado da
Educação e gestão do conhecimento conectividade pode tornar-se uma forma radical de demo-
cratização do acesso ao conhecimento mais significativo.
Com o risco de dizer o óbvio, mas visando à sistema- Ao mesmo tempo, essa conectividade permite que
tização, podemos considerar que, em relação à gestão do mesmo pequenas organizações comunitárias, ONG, peque-
conhecimento, os novos pontos de referência, ou transfor- nas empresas, núcleos de pesquisa relativamente isolados,
mações mais significativas, seriam os seguintes: podem articular-se em rede. O problema de “ser grande” já
- é necessário repensar de forma mais dinâmica e com está deixando de ser essencial, quando se é bem conectado,
novos enfoques a questão do universo de conhecimentos quando se pertence a uma rede interativa.
a trabalhar: ninguém mais pode aprender tudo, mesmo de Em outros termos, a era do conhecimento exige muito
uma área especializada; a opção entre “cabeça bem cheia” mais conhecimento atualizado e inserido nos significados
ou “cabeça bem-feita” nos deixa poucas opções; locais e regionais, e ao mesmo tempo as tecnologias da in-
- nesse universo de conhecimentos, assumem maior formação e comunicação tornam o acesso a esse conheci-
importância relativa as metodologias, o aprender a “nave- mento muito mais viável. A educação precisa, de certa for-
gar”, reduzindo-se ainda mais a concepção de “estoque” de ma, organizar essa transição, e preparar as crianças para o
conhecimentos a transmitir; mundo realmente existente.
- torna-se cada vez mais fluida a noção de área espe-
O desafio educacional local e os conselhos municipais
cializada de conhecimentos, ou de “carreira”, quando do
engenheiro se exige cada vez mais uma compreensão da
Um diretor de escola anda em geral assoberbado por
administração, quando qualquer cientista social precisa de
problemas do cotidiano, com muita visão do imediato, e
uma visão dos problemas econômicos, e assim por diante,
pouco tempo para a visão mais ampla. O professor enfrenta
devendo-se, aliás, colocar em questão os corporativismos
a gestão da sala de aula, e frequentemente está muito cen-
científicos; trado na disciplina que ministra. Nesse sentido, o Conselho
- aprofunda-se a transformação da cronologia do co- Municipal de Educação, reunindo pessoas que ao mesmo
nhecimento: a visão do homem que primeiro estuda, de- tempo conhecem o seu município, o seu bairro e os proble-
pois trabalha, e depois se aposenta torna-se cada vez mais mas mais amplos do desenvolvimento local, e a rede escolar
anacrônica, e a complexidade das diversas cronologias au- da região, pode se tornar o núcleo irradiador da construção
menta; do enriquecimento científico mais amplo do local e da re-
- modifica-se profundamente a função do educando, gião.
em particular do adulto, que deve se tornar sujeito da pró- Essas visões implicam, sem dúvida, uma atitude criativa
pria formação, ante a diferenciação e riqueza dos espaços por parte dos conselheiros de educação. Um documento
de conhecimento nos quais deverá participar; endereçado ao Pró-Conselho ressalta o respaldo formal que
- a luta pelo acesso aos espaços de conhecimento vin- essas iniciativas podem encontrar:
cula-se ainda mais profundamente ao resgate da cidadania, Importa dizer que o Conselho desempenha importante
em particular para a maioria pobre da população, como papel na busca de uma inovação pedagógica que valorize a
parte integrante das condições de vida e de trabalho; profissão docente e incentive a criatividade. Por outro lado,
- finalmente, longe de tentar ignorar as transforma- ele pode ser um pólo de audiências, análises e estudos de
ções, ou de atuar de forma defensiva ante as novas tec- políticas educacionais do seu sistema de ensino. Finalmen-
nologias, precisamos penetrar as dinâmicas para entender te, importa não se esquecer da fundamentação ética, legal
sob que forma os seus efeitos podem ser invertidos, le- de suas atribuições para se ganhar em legitimidade perante
vando a um processo reequilibrador da sociedade, quando a sociedade e os poderes públicos... Sob esses aspectos, o
hoje tendem a reforçar as polarizações e a desigualdade. conselheiro será visto como um gestor cuja natureza remete
De forma geral, todas essas transformações tendem a ao verbo gerar e gerar é produzir o novo: um novo desenho
nos atropelar, gerando frequentemente resistências fortes, para a educação municipal consoante os mais lídimos prin-
sentimentos de impotência, reações pouco articuladas. No cípios democráticos e republicanos.
conjunto, no entanto, há o fato essencial de as novas tec- Outro documento, de Eliete Santiago, insiste no papel
nologias representarem uma oportunidade radical de de- dos Conselhos Municipais de Educação como “forma de
mocratização do acesso ao conhecimento. participação da sociedade no controle social do Estado.

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BIBLIOGRAFIA

Configura-se como um espaço para a discussão efetiva da Não há “cartilha” para esse tipo de procedimentos.
política educacional e consequentemente seu controle e Em alguns municípios, o problema central é de água; em
avaliação propositiva. Nesse caso, espera-se a afirmação do outros, é de infraestruturas; em outros, ainda, é de segu-
seu caráter deliberativo de modo a avançar cada vez mais rança ou de desemprego. Alguns podem se apoiar numa
em relação à sua função consultiva”. Isso envolve “a organi- empresa de visão aberta, outras se ligarão com universida-
zação do espaço e do tempo escolar e do tempo curricular des regionais. Há cidades com prefeitos dispostos a ajudar
com ênfase na sua distribuição, organização e uso, e os no desenvolvimento integrado e sustentável; há outras em
resultados de aprendizagens com ênfase no conhecimento que a compreensão do valor do conhecimento ainda é in-
de experiências inovadoras”. cipiente, e onde as autoridades acham que desenvolver um
No quadro do Ministério do Meio Ambiente, junto com município consiste em inaugurar obras. Cada realidade é
o Ministério das Cidades, gerou-se o programa “Municípios diferente, e não há como escapar ao trabalho criativo que
Educadores Sustentáveis”, que também permite inserir nas cada conselho municipal deverá desenvolver.
escolas uma nova visão tanto do estudo da problemática
local como da responsabilização e do protagonismo infan- Isso dito, apresentamos a seguir algumas sugestões,
til e juvenil relativamente ao seu meio. Assim, por exemplo, para servir de pontos de referência, baseadas que estão
as escolas podem contribuir para elaborar indicadores re- no conhecimento de coisas que deram certo, e de outras
gionais e sistemas de avaliação para o monitoramento e a que deram errado, visando não servir de cartilha, mas de
avaliação da situação ambiental. inspiração. Em termos bem práticos, a sugestão é que um
O Programa Municípios Educadores Sustentáveis pro- Conselho Municipal de Educação organize essas atividades
põe promover o diálogo entre os diversos setores organi- em quatro linhas:
zados, colegiados, com os projetos e ações desenvolvidos - Montar um núcleo de apoio e desenvolvimento da
nos municípios, bacias hidrográficas e regiões administra- iniciativa de inserção da realidade local nas atividades es-
tivas. Ao mesmo tempo, propõe dar-lhes um enfoque edu- colares.
cativo, no qual cidadãs e cidadãos passam a ser editores/ - Organizar parcerias com os diversos atores locais pas-
educadores de conhecimento socioambiental, formando síveis de contribuir com o processo.
outros editores/educadores, e multiplicando-se sucessiva- - Organizar ou desenvolver o conhecimento da realida-
mente, de modo que o município se transforme em educa- de local, aproveitando a contribuição dos atores sociais do
dor para a sustentabilidade. local e da região.
A responsabilidade escolar nesse processo é essencial, - Organizar a inserção desse conhecimento no currí-
pois precisamos construir uma geração de pessoas que culo e nas diversas atividades da escola e da comunidade.
entendam efetivamente o meio onde estão inseridas: o - Montar um núcleo de apoio é essencial, pois, sem
mesmo documento ressalta que todos somos responsáveis um grupo de pessoas dispostas a assegurar que a iniciativa
pela construção de sociedades sustentáveis. Isso significa chegue aos resultados práticos, dificilmente haverá pro-
promover a valorização do território e dos recursos locais gresso. O Conselho poderá nomear um grupo de conse-
(naturais, econômicos, humanos, institucionais e culturais), lheiros mais interessados, traçar uma primeira proposta, ou
que constituem o potencial local de melhoria da qualidade visão, e associar à iniciativa alguns professores ou diretores
de vida para todos. É preciso conhecer melhor este poten- de escola que queiram colocá-la em prática. É importante
cial, para chegar à modalidade de desenvolvimento susten- que haja um coordenador e um cronograma mínimo.
tável adequada à situação local, regional e planetária. Quanto aos atores locais, a visão a se trabalhar é de
No município de Vicência, em Pernambuco, encontra- uma rede permanente de apoio. Muitas instituições hoje
mos o seguinte relato: “Educação é a principal condição têm na produção de conhecimento uma dimensão im-
para o desenvolvimento local sustentável. Nessa dimensão, portante das suas atividades. Trata-se, evidentemente, das
a Secretaria de Educação do Município implantou o projeto faculdades ou universidades locais ou regionais, das em-
‘Escolas rurais, construindo o desenvolvimento local’, com presas, das repartições regionais do IBGE, de instituições
a perspectiva de melhoria da qualidade do ensino e, con- como Embrapa, Emater e outras, de ONG que trabalham
sequentemente, a melhoria da qualidade de vida das co- com dimensões particulares da realidade, de organizações
munidades rurais”. O projeto permitiu “uma metodologia comunitárias.
diferenciada que leva a uma contribuição para uma melhor O objetivo da rede não é de simplesmente recolher in-
compreensão de um verdadeiro exercício de cidadania. O formação, na visão de um grande banco de dados, mas
projeto tem como objetivo tornar a escola o centro de pro- de assegurar que seja disponibilizada, que circule entre os
dução de conhecimento, contribuindo para o desenvolvi- diversos atores sociais da região, e sobretudo que permeie
mento local”.8 o ambiente escolar. Na cidade de Santos, por exemplo, foi
São visões que vão se concretizando gradualmente, criado um centro de documentação da cidade, com do-
com experiências que buscam de forma diferenciada, se- tação da prefeitura, mas dirigido por um colegiado que
gundo as realidades locais e regionais, caminhos práticos envolveu quatro reitores, quatro representantes de organi-
que permitam dar à educação um papel mais amplo de zações da sociedade civil e quatro representantes da pre-
irradiador de conhecimentos para o desenvolvimento local, feitura. O objetivo era evitar que as informações sobre o
formando uma nova geração de pessoas conhecedoras dos município fossem “apropriadas” e transformadas em infor-
desafios que terão de enfrentar. mação “chapa branca”, e garantir acesso e circulação.

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BIBLIOGRAFIA

A diversidade de soluções aqui é imensa, pois temos local e das suas potencialidades, e assim por diante, arte-
desde poderosos centros metropolitanos até pequenos sãos que podem até atrair os jovens para a aprendizagem,
municípios rurais. O essencial é ter em conta que todos e assim por diante.
os atores sociais locais produzem informação de alguma Uma dimensão importante da proposta é a possibilida-
forma, e que essa informação organizada e disponibilizada de de mobilizar os alunos e professores nas pesquisas do
torna-se valiosa para todos. E para o sistema educacional local e da região. Esse tipo de atividade assegura tanto a
local, em particular, torna-se fonte de estudo e aprendiza- assimilação de conceitos como o cruzamento de conheci-
gem.9 mentos entre as diversas áreas, rearticulando informações
Os municípios particularmente desprovidos de infraes- que nas escolas são segmentadas em disciplinas.
truturas adequadas poderão fazer parcerias com institui- Em outros termos, é preciso “redescobrir” o manancial
ções científicas regionais e apresentar projetos de apoio de conhecimentos que existe em cada região, valorizá-lo e
a instâncias de nível mais elevado. Há municípios que re- transmiti-lo de forma organizada para as gerações futuras.
correm também a articulações intermunicipais, como é o Conhecimentos técnicos são importantes, mas têm de ser
caso dos consórcios, podendo assim racionalizar os seus ancorados na realidade que as pessoas vivem, de maneira a
esforços. serem apreendidos na sua dimensão mais ampla.
Organizar o conhecimento local normalmente não en-
volve produzir informações novas. As diversas secretarias Fonte
produzem informação, bem como as empresas e outras en- DOWBOR, Ladislau. Educação e apropriação da reali-
tidades mencionadas. Temos hoje também informação bá- dade local. Estudos Avançados 21 (60), 2007
sica organizada por municípios no IBGE, no projeto corres- Disponível em https://www.revistas.usp.br/eav/article/
pondente do Ipea/Pnud e outras instituições, com diversas view/10238/11857
metodologias, e pouco articuladas, mas que podem servir
de base. Essas informações hoje dispersas e fragmentadas
deverão ser organizadas, e servir de ponto de partida para FERREIRO, EMÍLIA & TEBEROSKY, ANA. A
uma série de estudos do município ou da região. PSICOGÊNESE DA LÍNGUA ESCRITA. PORTO
Há igualmente, mesmo para as regiões pouco estuda- ALEGRE: ARTMED, 1999.
das, relatórios antigos de consultoria, monografias nas uni-
versidades da região, relatos de viagem, estudos antropo-
lógicos e outros documentos acumulados, hoje subapro- A Psicogênese da Língua Escrita é uma abordagem psico-
veitados, mas que podem se tornar preciosos na visão de lógica de como a criança se apropria da língua escrita e não
se gerar uma compreensão, por parte da nova geração, da um método de ensino. Portanto, cabe aos profissionais da
realidade em que vivem. educação, fazer a transposição desta abordagem para a sala
Sem recorrer a consultorias caras, é hoje bastante viá- de aula, transformando os estudos em atividades pedagógicas
vel contratar o apoio metodológico para a organização e De acordo com a Psicogênese da Língua Escrita, o
sistematização dessas informações, a elaboração de mate- aprendizado do sistema de escrita não se reduziria ao
rial de ensino, de textos de apoio para leitura, e assim por domínio de correspondências grafo-fonêmicas (a deco-
diante. dificação e a codificação), mas se caracterizaria como um
A inserção do conhecimento local no currículo e nas processo ativo no qual a criança, desde seus primeiros con-
atividades escolares implica uma inflexão significativa re- tatos com a escrita, constrói e reconstrói hipóteses sobre a
lativamente à rotina escolar, mais afeita a cartilhas gerais sua natureza e o seu uncionamento.
rodadas no tempo. A dificuldade central é de inserir na es- Os pressupostos dessa abordagem psicológica são:
cola um conhecimento local que os professores ainda não A alfabetização na perspectiva construtivista é concebida
têm. Nesse sentido, parece razoável, enquanto se organiza como um processo de construção conceitual, contínuo,
a produção de material de apoio para os professores e alu- iniciado muito antes da criança ir para escola, desenvol-
nos – as diversas informações e estudos sobre a realidade vendo-se simultaneamente dentro e fora da sala de aula.
local e regional –, ir gradualmente inserindo o estudo da Alfabetizar é construir conhecimento.
realidade local mediante um contato maior com a comuni- Portanto, para ensinar a ler e escrever faz-se necessário
dade profissional local. compreender que os/as alfabetizando/as terão que lidar
Há escolas hoje que realizam “trabalhos de campo” com dois processos paralelos: as características do sistema
em que alunos de prancheta vão visitar uma cidade ou um de escrita e o uso funcional da linguagem.
bairro. São atividades úteis, mas formais e pouco produti- (...) a criança procura ativamente compreender a na-
vas, quando não são acompanhadas da construção siste- tureza da linguagem que se fala à sua volta, e...tratando
mática do conhecimento da realidade regional. Qualquer de compreendê-la, formula hipóteses, busca regularidades,
cidade tem hoje líderes comunitários que podem trazer a coloca à prova suas antecipações e cria sua própria gra-
história oral do seu bairro ou da sua região de origem, em- mática. (...) ao tomar contato com os sistemas de escrita, a
presários ou técnicos de diversas áreas, gerentes de saúde criança, através de processos mentais, praticamente rein-
ou mesmo de escolas que podem explicitar como se dão venta esses sistemas, realizando um trabalho concomitante
na realidade as dificuldades de administrar as áreas sociais, de compreensão da construção e de suas regras de produ-
agricultores ou agrônomos que conhecem muito do solo ção/decodificação.

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BIBLIOGRAFIA

Segundo Emília Ferreiro e Ana Teberosky, as crianças para a melhora do ensino, cada matéria com uma série de
elaboram conhecimentos sobre a leitura e escrita, passan- conceitos característicos, com especialistas responsáveis
do por diferentes hipóteses – espontâneas e provisórias – em transmiti-los. Cada disciplina possuía uma função a
até se apropriar de toda a complexidade da língua escrita. desempenhar, um tijolo colocado em uma grande parede.
Tais hipóteses, baseadas em conhecimentos prévios, assi- Na década de 1980, nota-se que os conteúdos precisaram
milações e generalizações, dependem das interações delas ser configurados e apresentados por meio de uma variedade
com seus pares e com os materiais escritos que circulam de linguagens (verbal, escrita, gráfica e audiovisual) para
socialmente. abrir aos estudantes os processos de pensamento de
Para a Teoria da Psicogênese, toda criança passa por ordem superior necessários para que compreendessem e
níveis estruturais da linguagem escrita até que se aproprie aplicassem o conhecimento a outras realidades. Mediante
da complexidade do sistema alfabético. São eles: o pré-si- essa conexão, vislumbramos relações conceituais entre as
lábico, o silábico, que se divide em silábico-alfabético, e o matérias curriculares e a oportunidade de transferir a outros
alfabético Tais níveis são caracterizados por esquemas con- contextos. Dessa maneira, a aprendizagem não se contempla
ceituais que não são simples reproduções das informações como uma sequência de passos para alcançar uma meta na
recebidas do meio, ao contrário, são processos construti- qual se acumula informação, mas sim como um processo
vos onde a criança leva em conta parte da informação rece- complexo mediante o qual o conhecimento se rodeia e se
bida e introduz sempre algo subjetivo. É importante salien- situa para aprendê-Io.
tar que a passagem de um nível para o outro é gradual e Em tempos atuais, ao perguntar aos professores qual
depende muito das intervenções feitas pelo/a professor/a. o aluno ideal ou qual aluno gostariam de ajudar a formar,
Os níveis de escrita, segundo a Psicogênese da Língua provavelmente não haverá discordância nas respostas. De
Escrita: acordo com um discurso enlatado, certamente diriam que
- O aprendizado do sistema de escrita alfabética não se é um aluno autônomo, consciente, reflexivo, participativo,
reduz a um processo de associação entre grafemas (letras) cidadão atuante, feliz, cooperativo e que respeite as
e fonemas (sons). diferenças. Mas o que vemos atualmente é uma educação
- O sistema de escrita alfabética não é um código que que prioriza o aprendizado pela aquisição de conteúdos,
se aprende por memorização e fixação, pelo contrário, é muitas vezes formando alunos ouvintes, passivos, “sendo
um objeto de conhecimento que foi construído socialmen- preparados para o futuro”, esquecendo-se do agora. Muitas
te escolas preocupam-se com o desenvolvimento cognitivo
Para a Teoria da Psicogênese, toda criança passa por de seus alunos – o que seria perfeitamente louvável se esta
níveis estruturais da linguagem escrita até que se aproprie não fosse a única preocupação.
da complexidade do sistema alfabético. São eles: o pré-si- Inspirado nas possíveis mudanças na Educação Física,
lábico, o silábico, que se divide em silábico-alfabético, e o relacionando-a às outras disciplinas, recorri à Pedagogia de
alfabético Tais níveis são caracterizados por esquemas con- Projetos, que propõe difundir a concepção de conhecimento
ceituais que não são simples reproduções das informações escolar, trazendo o aprender baseado na integração das
recebidas do meio, ao contrário, são processos construti- “disciplinas” com o mundo, os interesses de aprendizado
vos onde a criança leva em conta parte da informação rece- de cada grupo e velocidade de aprendizado de cada aluno.
bida e introduz sempre algo subjetivo. É importante salien- Ao pensarmos em sujeito integral, devemos conceber
tar que a passagem de um nível para o outro é gradual e um conjunto de áreas, priorizando o aprender pelas
depende muito das intervenções feitas pelo/a professor/a. experiências, com interação com o meio e o outro, uma
Texto adaptado: Emília Ferreiro e Ana Teberosky educação provocadora de desafios, visando à resolução de
problemas, expandindo-se também para as áreas motora,
afetiva e social.
O presente trabalho procura responder à seguinte
FONSECA, LÚCIA LIMA DA. O UNIVERSO questão: como a Educação Física, por meio de projetos
NA SALA DE AULA: UMA EXPERIÊNCIA EM interdisciplinares, pode proporcionar aprendizados
PEDAGOGIA DE PROJETOS. PORTO ALEGRE: significativos, no contexto escolar?
MEDIAÇÃO, 2009. Apresento a Pedagogia de Projetos como uma
ferramenta que considero consistente na educação
atual – não como a salvação da educação brasileira ou
Vivemos em tempos mudados; os debates sobre função uma receita a ser seguida, pois necessita adaptações a
da escola e o significado das experiências escolares continuam cada contexto para que seja eficaz. Espero proporcionar
sendo um dos assuntos mais polêmicos entre educadores, aos professores de Educação Física, Pedagogia e outras
juntamente com as mudanças mundiais, a globalização da disciplinas instrumentos que priorizem o educar como um
economia, a informatização e os meios de comunicação, todo, rompendo barreiras históricas de que a Educação
redescobrindo o papel da escola dentro do novo modelo de Física cuida dos corpos enquanto outras disciplinas cuidam
sociedade desenhado neste início de século. da mente. Proponho auxiliar a sociedade na formação de
Na década de 1970, o conceito de educação pautava- pessoas que possuam relações próximas com os conteúdos,
se em ferramentas que facilitassem a compreensão das sem ter a concepção de que o aprender está relacionado a
disciplinas, na escolha dos materiais que poderiam contribuir repetição sem significado.

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BIBLIOGRAFIA

Conceito de sociedade aberta e a educação os seres humanos dividiram o conhecimento em vários


interdisciplinar compartimentos, comumente chamados disciplinas:
Para compreender o conceito de interdisciplinaridade e a Comunicação e Expressão, Matemática, Ciências, Estudos
força que exerce a união das disciplinas na Educação, farei uma Sociais, Artes etc. ou, alternativamente, Português,
breve explicação sobre a formação das sociedade abertas. Matemática, Física, Química, Biologia, História, Geografia,
Baseado em Morin (2002), dizemos que, quando as pessoas Artes, Filosofia, para não mencionar Sociologia,
se reúnem, existe sinergia, pois os integrantes possuem os Antropologia, Economia etc.
mesmos objetivos, provocando efeito multiplicador, pois Segundo Miguel Arroyo (1994, p. 31), se temos como
juntas conseguem atingir resultados melhores do que se objetivo o desenvolvimento integral dos alunos numa
fizessem seus trabalhos individualmente. Essa sinergia faz realidade plural, é necessário que passemos a considerar
com que a organização obtenha melhores resultados e as questões e problemas enfrentados pelos homens e
recursos. Morin utiliza Parsons (1960) para relatar a formação mulheres de nosso tempo como objeto de conhecimento.
das organizações: O aprendizado e a vivência das diversidades de raça,
unidades sociais (ou agrupamentos humanos) gênero, classe, a relação com o meio ambiente, a vivência
intencionalmente construídas e reconstruídas, a fim de atingir equilibrada da afetividade e sexualidade, o respeito à
objetivos específicos. Isso significa que as organizações são diversidade cultural, entre outros, são temas cruciais com
propositadas e planejadamente construídas e elaboradas para que, hoje, todos nós nos deparamos e, como tal, não
atingir determinados objetivos e também são reconstruídas, podem ser desconsiderados pela escola.
isto é, reestruturadas e redefinidas à medida que os objetivos Um movimento chamado Escola Nova, inicialmente
são atingidos ou à medida que se descobrem meios melhores comandado por Ovide Decroly (1871-1932), Maria
para atingi-los com menor custo e menor esforço (p. 17). Montessori (1870-1952) e John Dewey (1859-1932), criticou
As relações conjuntas englobam, segundo Morin (2002), a escola tradicional, discutindo sua função, a do professor,
“o compreender, que significa, intelectualmente, aprender a do aluno e a organização do trabalho pedagógico.
em conjunto, em sua gene ‘comprehendere’, traduzido ao Os escolanovistas pregaram a educação que priorizava
português, “abraçar juntos”.
a globalização do ensino, o atendimento ao interesse e à
A interdisciplinaridade é esse abraçar, trazendo o aluno
participação dos alunos, uma nova organização didática e
para o centro do aprendizado, preocupando-se em ensinar,
reformulação da sala de aula.
valorizando todos os profissionais como educadores que
Em 1931, Fernando Sáinz, professor dos movimentos
educam o corpo inteiro e não um corpo fragmentado.
renovadores espanhóis, quis responder a uma pergunta:
“por que não aplicar à Escola Fundamental o que se faz na
A diferença entre multidisciplinaridade e
esfera dos negócios ou no ensino superior especializado?
interdisciplinaridade
Por que não organizar a Escola seguindo um plano de
A multidisciplinaridade ocorre a partir de um tema que
é abordado por diversas disciplinas, sem relação direta entre tarefas análogo ao que se desenvolve fora, na casa, na rua,
elas. Com a multidisciplinaridade, todos falam do mesmo na sociedade?” O que se pretende é que o aluno não sinta
tema, sem relações, ou seja, “cada um faz sua parte”; as diferença entre a vida exterior e a vida escolar; por isso, os
abordagens são específicas de cada disciplina e não há projetos devem estar próximos à vida.
interligação. Surge então uma Pedagogia que oferece a vantagem
A interdisciplinaridade, segundo Fazenda (1994), de atuar concomitantemente com o processo de
caracteriza-se pela articulação entre teorias, conceitos e desenvolvimento profissional do professor e sobre o
ideias em constante diálogo entre si. Com ela, duas ou mais processo de aprendizagem dos alunos. Essa proposta
disciplinas interagem em seus conteúdos, aprofundando os implica aprender na prática (aprender fazendo), ousar
conhecimentos. trabalhar de uma nova maneira, o que certamente abrirá
Para Fazenda (2001), a interdisciplinaridade é fundamental novas perspectivas de ensino.
numa convergência que busque a educação plena do aluno. Rosseau (apud Almeida, 1998, p. 22) demonstrou que
É a tentativa de superação da fragmentação do saber, num a criança tem maneiras de pensar e de sentir que lhe são
projeto de ensino voltado para o saber integral. próprias; demonstrou que não se aprende nada senão por
O educar que esperamos é aquele em que exista meio de uma conquista ativa.
comunicação entre os envolvidos. Não adianta todos fazerem Freire (1994) pede que, quando os pais matriculem
seu trabalho em torno de um tema central sem comunicação seus filhos na escola, matriculem também seus corpos,
entre eles, sejam pessoas de qualquer segmento; a informação rompendo a visão de que o aluno é em momentos corpo
e a união de esforços trazem benefícios incontáveis. e em momentos cérebro. Corpo, consciência e sentimentos
estão sempre juntos.
As mudanças na visão da escola e do ensinar A nova concepção de educação preza a união entre
A educação brasileira passou por grandes mudanças, disciplinas “cognitivas” e “corporais”, mostra que somos
segundo Eduardo O. C. Chaves, professor titular de Filosofia todos educadores, não importa se na quadra ou na sala de
da Educação da Universidade Estadual de Campinas aula. Como nas relações sociais, a escola deve proporcionar
(Unicamp) e consultor do Instituto Ayrton Senna (IAS). a união de forças para que cheguemos a um grande
Para facilitar a transmissão e a absorção do conhecimento, objetivo, que no nosso caso é formar pessoas.

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BIBLIOGRAFIA

Os educadores citados consideram o aluno como Os projetos cujo desafio é a própria cooperação e que
parte mais importante do processo educativo visando sua não têm prazos precisos visam a instaurar uma forma de
formação integral, mudança principal na nova roupagem da atividade profissional interativa que se assemelha mais a
educação brasileira. Baseados nestes preceitos, trataremos um modo de vida e de trabalho do que a um desvio para
mais profundamente a Pedagogia de Projetos. alcançar um objetivo preciso.
Ao invés de trabalhar um método rígido, em que
Pedagogia de Projetos o professor é o detentor do saber e único informante,
À luz das mudanças na visão de Educação, surge a dando respostas certas e cobrando sua memorização, o
Pedagogia de Projetos, que procura promover a integração professor de projetos interdisciplinares une-se às áreas de
e a cooperação entre professores e alunos, rompendo a conhecimento e intervém no processo de aprendizagem
rigidez da sala de aula e transformando todo o ambiente dos alunos, criando situações problematizadoras,
escolar, a fim de resolver problemas de interesse dos alunos estimulando novos conhecimentos.
e relacionados à vida. Reafirmado por Boutinet (1993), em Segundo Maria Elizabeth Biaconcini de Almeida
uma “cultura de projeto” todos devem estar familiarizados (1999), a aprendizagem por projetos ocorre pela interação
com a idéia de projeto, tanto alunos quanto professores. e articulação entre conhecimentos de distintas áreas,
Na vida, os conteúdos são todos integrados; ao conexões a partir dos conhecimentos cotidianos dos alunos
desempenhar qualquer atividade social ou profissional, cujas expectativas, desejos e interesses são mobilizados na
utilizamos concomitantemente saberes diversos: uma construção de conhecimentos científicos.
inspetora na escola não apenas “vigia” alunos, também Com os projetos de trabalho, os alunos interagem com
atua na educação, no auxilio da higiene pessoal dos alunos o meio; os conteúdos deixam de ser um fim em si mesmos,
menores e na resolução de conflitos entre os alunos. Da passam a ser meios para ampliar a formação dos alunos e
mesma forma, o porteiro não apenas recepciona os alunos, sua interação com a realidade, de forma critica e dinâmica,
trabalha na administração do fluxo de pessoas na escola, um modo de organizar o ato educativo que indica uma
orienta os pais sobre como proceder em determinados ação concreta, voluntária e consciente, trabalhando com
momentos. Na Educação, para facilitar a aquisição de situações-problema dos fenômenos, da realidade e não da
conteúdos, seriaram o aprendizado dos conhecimentos, recepção de conteúdo, vindo como ruptura das disciplinas
mas isso tem, por outro lado, destituído muitas vezes esses
escolares, tendo a educação como uma proposta única e
conhecimentos de seu significado.
não segmentada.
Segundo os preceitos da interdisciplinaridade juntamente
A Pedagogia de Projetos vem ao encontro das ideias de
com a Pedagogia de Projetos, podemos dar novos significados
Demo (2000), pois permite que o aluno aprenda fazendo e
ao processo de ensino-aprendizagem, pois o aprender não é
reconheça sua participação efetiva naquilo que produz por
apenas decorar determinada quantidade de conteúdo. Nessa
meio de questões de investigação que o impulsionam a
postura, o aprendizado e o conhecimento são construídos
contextualizar conceitos já conhecidos e descobrir outros
em estreita relação com o contexto em que são utilizados (a
vida real), unindo o cognitivo, o afetivo, o social, o motor e que aparecem durante o processo do projeto; nessa
o sentimento, ao aproximar-se do conhecimento. Embasado situação de aprendizagem, o aluno seleciona informações
por Nogueira (2001), significativas, toma decisões, trabalha em grupo, gerencia
Diferente dos cansativos e anacrônicos trabalhos de casa confrontos de ideias; enfim, desenvolve competências
e das pesquisas que se transformam no máximo em “bons” interpessoais para aprender de forma colaborativa com
exercícios de caligrafia, já que elas refletem apenas a cópia seus pares.
de centenas de enfadonhas palavras com os conteúdos indo Os conteúdos curriculares passam a ser concebidos
além da forma conceitual e articulando diferentes áreas do de maneira integral, articulada e dinâmica. Desta forma,
conhecimento (p. 79). ocorre a conquista de níveis mais elevados de motivação,
A Pedagogia de Projetos pressupõe características de participação e coprodução vivenciada entre os educandos,
Educação diferentes da noção de que todas as crianças seus pares e o educador.
devam aprender as mesmas coisas pelos mesmos Na prática de uma rígida divisão dos conteúdos, é como
métodos, nos mesmos ritmos e nos mesmos momentos, se existisse um muro entre as disciplinas; cada professor
independentemente de seus interesses, suas habilidades, trata de seu assunto sem sequer saber o que as outras
sua cultura; essa aprendizagem é exercida com o disciplinas abordam. Quando os professores se propõem a
acompanhamento pessoal, o que explica por que, a partir trabalhar com projetos interdisciplinares, é como se fossem
dos mesmos saberes, há sempre lugar para a construção de abertas janelas entre os muros, proporcionando aos
inúmeros significados, e não sua uniformidade. professores comunicações efetivas visando o conhecimento
Segundo Perrenoud (2000, p. 83), e o desenvolvimento integral dos alunos.
Os projetos se organizam em torno de uma atividade Uma ação de projetos desarticula os conteúdos da
pedagógica precisa, como a montagem de um espetáculo em própria disciplina; diferentemente das ações anteriores,
conjunto, a organização de uma jornada esportiva, a criação não havia, por exemplo, nenhuma integração entre a Física
de oficinas abertas, a criação de um jornal; a cooperação e Geografia. O professor de uma disciplina  exata, ao ver
é, então, o meio para realizar um empreendimento que um aluno que escreva errado, não procuraria intervir e
ninguém tem a força ou a vontade de fazer sozinho; ela se solucionar a dificuldade real do aluno, pois o docente é
encerra no momento em que o projeto é concluído. especialista na sua área. Cada professor com a sua disciplina,

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BIBLIOGRAFIA

seu planejamento preestabelecido, seu livro didático e seu Desde seu início, considera-se que não há uma única
currículo; são professores preocupados somente com a maneira de realizar o Método de Projetos. Sáinz (1950)
transmissão de conteúdos disciplinares; todas as discussões distingue quatro possibilidades:
fora do “conteúdo” com os alunos significam perda de a. globais, nas quais se fundem todas as matérias,
tempo e o não-cumprimento do conteúdo. desenvolvendo projetos complexos em torno de núcleos
O professor torna-se um consultor, mediador, temáticos como família, lojas, cidades;
orientador e facilitador do processo em desenvolvimento b. por atividades: de jogo, para adquirir experiência
pelos alunos, criando um ambiente propicio à confiança, social e na natureza e com finalidade ética;
ao respeito, ao encorajamento e à interação do aluno com c. por matérias vinculadas às disciplinas escolares;
o mundo do conhecimento. d. de caráter sintético. Fala-se também de projetos
Para o sucesso de um projeto, é necessário que o simples e complexos, relacionados às matérias ou com a
educador domine métodos de pesquisa: como fazer experiência próxima, breves ou extensos.
levantamento de dados através de diferentes tipos de Conhecendo a característica do projeto a ser executado,
fontes, como sistematizar, analisar, reelaborar e sintetizar é necessário conhecer os caminhos a percorrer:
os dados, pois o conteúdo não está preestabelecido; e os • Escolha do objetivo central do projeto; 
métodos são fundamentais para que isso ocorra. • Planejamento;
O apoio familiar é também expediente significativo, • Execução;
evitando que o processo de aprendizagem seja função • Avaliação e divulgação dos trabalhos.
única da escola; é importante que a família participe
integralmente, garantindo o apoio necessário, fazendo O problema de estudo é o ponto de partida do projeto,
cumprir a gestão democrática, a união entre escola, família antes mesmo do tema. Significa o que eu pretendo responder
e sociedade. ao final do projeto. É fundamental que todos tenham
No entanto, para que o aluno mergulhe nos projetos, conhecimento do problema a ser resolvido, pois todo o
o objeto de estudo deve ter o mínimo de significado; projeto irá girar sobre esses objetivos.
segundo Nogueira (2001), o projeto nasce de um sonho, Algumas técnicas para escolha do problema de estudo
de uma necessidade, interesse e vontade de conhecer e são: debates, rodas de conversa, questionário de análise
das necessidades da comunidade, análise dos conteúdos
investigar um assunto.
programáticos, explanação e votação de temas; assim todos
Não basta apenas pensar em construir conjuntamente
se sentem com poder de decisão no projeto.
o conhecimento, é necessária a definição concreta da
Ao escolher o tema do projeto, podemos pensar que
relação professor-aluno, do vínculo que a criança forma
o tema deva partir exclusivamente dos alunos para não
com o professor, rompendo obstáculos que ela encontra
demonstrar imposição, ou que, pela experiência do professor,
em seu processo de aprendizagem e desenvolvimento.
deva partir dele, estimulando os alunos a desenvolver-se e a
A criança é incentivada a desvendar o mundo conforme
buscar conhecimento; o critério a ser seguido depende do
seus interesses, as coisas que lhe atraem e que gostaria
grau de maturidade dos educandos.
de aprender; o educador é a pessoa a quem é dada a Hernández (1998) alerta que não basta o tema ser “do
responsabilidade de encontrar maneiras de, a partir desses gosto” dos alunos. Se não despertar a curiosidade por novos
interesses, tornar a atividade da criança útil e significativa conhecimentos, nada feito. “Se fosse esse o caso, ligaríamos
ao seu desenvolvimento. a televisão num canal de desenhos animados”, explica. Por
Para que um projeto educativo seja elaborado, isso, uma etapa importante é a de levantamento de dúvidas
devemos ter bem clara a intencionalidade. Todo projeto e de definição de objetivos de aprendizagem.
deve ter objetivos claros e bem definidos. O que pretendo O tema pode aparecer da curiosidade dos alunos em
com a realização desse trabalho? Quais resultados posso conhecer algo, de uma característica particular da escola,
esperar? Em que sentido meus alunos serão modificados? da comunidade, do grupo em particular ou da atualidade.
Não é aconselhável que os modelos sejam copiados, mas Independentemente da origem do tema do projeto, o
sim adaptados a cada realidade; depende da série dos importante é o envolvimento de todos os participantes; ele
alunos, do acesso às informações, dos materiais disponíveis, dará vida ao processo, o que importa é a significância do tema.
do envolvimento dos responsáveis pelos educandos e, No desenvolvimento do projeto é necessário
principalmente, do comprometimento da escola com essa planejamento do caminho percorrido; um bom planejamento
proposta pedagógica. torna mais sólido o caminho a ser percorrido. Nesse momento,
as metas devem ser estabelecidas, os alunos devem ter claras
Principais características na elaboração de um essas metas e as prioridades para acompanhá-las e cobrá-las.
projeto educacional Conhecer o local no qual irei intervir é fundamental; as
Aqui estão alguns passos para a elaboração de um características particulares podem levar o projeto ao sucesso
projeto interdisciplinar desde sua criação até a avaliação. ou ao fracasso: um projeto em um bairro pode ter sucesso
Um projeto é uma sucessão de atos coerentes; um total e no bairro vizinho pode demonstrar características
passo prepara a necessidade do seguinte, e na qual cada ofensivas a determinado grupo; por isso é necessária
um deles se acrescenta ao  que já se fez e o transcende de uma espécie de “etnografia”, ou seja o conhecimento das
um modo cumulativo. peculiaridades do local trabalhado.

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BIBLIOGRAFIA

No planejamento do projeto é importante tomar como Por fim, temos a avaliação recapitulativa, instrumento
preocupações básicas os seguintes itens: que oportuniza apresentar o processo de síntese de um
• Trabalhar com temas abrangentes e ricos; tema, momento que permite reconhecer se os estudantes
• Evitar enfatizar uma única disciplina, procurando alcançaram os resultados esperados.
sempre promover a interdisciplinaridade; Assim, a avaliação é ferramenta de reorientação
• Trabalhar o máximo de materiais possíveis, didático-pedagógica, esperando a aprendizagem
aproveitando toda a estrutura do local; significativa. Assim, encaminhar as discussões na escola
• Planejar atividades que trabalhem com diferentes para propostas de avaliação formativa é uma alternativa
formas de expressões, como: redação, dramatização, de quebra de paradigma dos elementos constitutivos da
artes, música, atividades corporais, apresentações orais avaliação enquanto mecanismo de repressão e exclusão.
etc. O conhecimento, por parte do professor, dos passos
Quando estamos envolvidos no trabalho, muitas vezes a serem seguidos na elaboração do projeto, de novas
não nos damos conta do percurso trilhado; o trabalho de abordagens, de instrumentos pedagógicos e novas
síntese nos dá os parâmetros de quanto já fizemos e o tecnologias é fundamental para realizar projetos em que
quanto devemos fazer. exista a participação efetiva e o aprendizado significativo
A síntese pode ser uma amostra do processo, uma dos alunos; do contrario, como citado por Nogueira (2001),
apresentação do que foi trabalhado pelo projeto, um “corremos o risco de estar praticando ‘trabalhos escolares’
resumo das experiências adquiridas. A apresentação pode que podem ficar resumidos apenas a meros cartazes com
ser feita por feiras, apresentações artísticas, exposições e ‘babadinhos de papel crepom’, em que a autonomia do
filmagens, entre outras formas. O registro pode ser feito aluno ficará restrita apenas a escolher a cor do babadinho”
por fotos, textos escritos, filmados, relatos feitos pelos (p. 187).
alunos em forma de diário, portfólio. Fonte: http://www.educacaopublica.rj.gov.br/
A avaliação deve acontecer não somente no final biblioteca/educacao/0232.html
do processo, mas durante todo ele, continuamente.
A avaliação dos projetos pretende ser instrumento de
análise para aprimoramento, e não como instrumento FONTANA, ROSELI AP. CAÇÃO.
seletivo, separando os melhores dos piores. MEDIAÇÃO PEDAGÓGICA EM SALA DE
Segundo Janssen (2003, p. 16), “há uma emergente AULA. CAMPINAS: EDITORA AUTORES
necessidade em ‘desenvolver uma nova postura avaliativa’, ASSOCIADOS, 1996 (PRIMEIRO TÓPICO
e a prática pedagógica deve estar sendo revisada à luz DA PARTE I – A GÊNESE SOCIAL DA
dos dados que emergem da avaliação”. CONCEITUALIZAÇÃO).
A avaliação inicial é importante, pois poderemos
conhecer o público com quem estamos interagindo; com a
avaliação é possível planejar melhor o processo de ensino,
O papel do professor é destacado por Fontana (1996)
com informações de grande valor para seu planejamento
como aquele responsável em transformar os conhecimen-
posterior; por isso, é recomendado seu uso, para criar
tos espontâneos carregados de significados em conheci-
parâmetros de trabalho.
mentos sistematizados. O conhecimento é algo elaborado
A avaliação contínua deve ser feita em conjunto, coletivamente nas interações entre os sujeitos e cabe ao
como roda de conversa e análise: se o projeto tem trazido profissional da educação transformar o que era espontâ-
significados importantes para o processo e o que poderia neo em algo sistematizado. Para Fontana (1996) conceitos
ser modificado, apresentando sugestões. são produtos históricos da atividade mental utilizados para
Outro instrumento eficaz é o diário de campo. Ao comunicação e conhecimento sendo indispensável à cola-
término da aula, o aluno e o professor fazem anotações, boração do adulto que apresenta graus de generalidade
sempre levando em consideração os objetivos iniciais, e operações intelectuais novos para a criança que passa a
relacionando às atividades realizadas (atividade organizar seu processo de elaboração mental através do
programada e realizada), explanando as dificuldades outro.
encontradas, o que acharam significativo, ou seja, tudo Há uma grande diferença na atividade mental coti-
que considerem importante para ser discutido com os diana e a elaboração sistematizada na escola, pois interna
alunos e outros educadores. e externamente são situações diferentes. No cotidiano, a
A educação deve ser emancipatória, analisando mediação do adulto é espontânea e imediata, sempre cen-
facilidades e necessidades; a avaliação tem como trada na situação e ato intelectual envolvido. A intervenção
objetivo criar instrumentos para verificar o que deve ser do adulto, no cotidiano, não é deliberada e nem planejada,
melhorado. O erro relacionado à avaliação é que ela não enquanto em uma relação de ensino a finalidade é ime-
pode ser considerada forma de seleção ou punição, mas, diata e explícita pela hierarquização dos papéis sociais de
sim, instrumento de análise para novas possibilidades de professor e aluno. Assim sendo, a mediação é deliberada,
conhecimento, vendo o que não está sendo alcançado, instituída e busca a indução para utilização das operações
reavaliando e estimulando o sucesso e novas intervenções intelectuais.
dos educadores.

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BIBLIOGRAFIA

Os conceitos cotidianos e científicos: o papel da escola Cotidianamente, a mediação do adulto é espontânea


Segundo Fontana (1996) um professor apaixonado que durante o processo de utilização da linguagem nas situa-
se intriga com os modos de ensinar, abandona temporaria- ções imediatas. Fontana (1996) destaca que a atenção dos
mente seu lugar “oficial” e se torna pesquisador participante adultos e crianças está centrada na situação, nos seus ele-
do cotidiano da escola. mentos e não no ato intelectual envolvido. São raras às ve-
Fontana (1996) através de seus estudos demonstra que zes em que ambos se dão conta da diferença de elaboração
ao internalizarmos as ações, papéis e funções sociais através cognitiva entre eles.
das interações, o sujeito dirigi o próprio comportamento e a No entanto, nas interações escolarizadas com orienta-
auto regulação redimensiona e reorganiza a atividade men- ção deliberada e explícita para aquisição do conhecimento
tal. Fontana (1996, p.13) através dos estudos de Luria (1987) sistematizado pela criança, Fontana (1996) diz que os pro-
destaca que “a palavra é o meio de generalização criado no cessos de elaboração conceitual modificam-se em vários
processo histórico-social do homem”. aspectos. Fontana ainda coloca que:
Portanto, para Fontana (1996), os conceitos são produ- Nesse contexto, a criança é colocada diante de uma
tos históricos, significantes da atividade mental mobilizados tarefa particular de “entender” as bases dos sistemas de
para comunicação, conhecimento e resolução de problemas. concepções científicas, que se diferenciam nas elabora-
ções conceituais espontâneas. Os conceitos sistematizados
O papel do outro (científicos na expressão de Vygotsky) são parte de siste-
O outro tem grande papel na mediação da formação mas explicativos globais, organizados dentro de uma lógica
dos conceitos cotidianos e científicos, Fontana (1996 nos socialmente construída, e reconhecida como legítima que
diz que há uma coincidência de conteúdo nas palavras que procura garantir-lhes coerência interna. (FONTANA, 1996,
crianças e adultos utilizam, a coincidência que permite a p.21).
comunicação. “Essa coincidência ocorre porque a criança Fontana (1996) segue considerando que na interação
partilhando do sistema linguístico da palavra aprende desde entre adultos e crianças, a relação de ensino tem finalidade
muito cedo um grande número de palavras que significam, imediata e é explícita aos seus participantes, pois ocupam
aparentemente as mesmas coisas para ambos”. (FONTANA, lugares sociais diferenciados e hierarquizados, sendo a me-
1996, p. 18). diação do adulto deliberada com sistemas conceituais ins-
Contudo no que diz respeito à função da palavra de- tituídos e induzindo-a a utilizar operações intelectuais dos
sempenhada na atividade mental da criança e do adulto não signos e modos de dizer que são veiculados na escola.
coincidem. Para Fontana (1996) crianças e adultos usam a A imagem que a criança tem do professor é socialmen-
palavra com graus de generalidade distintos, uma elabora- te estabelecida e Fontana (1996, p.22) diz até mesmo do
ção mental diferente que possibilita o desenvolvimento dos papel que é esperado da criança nesse contexto: “realizar as
conceitos nas crianças. atividades propostas, seguindo as indicações e explicações
O adulto, ao utilizar a palavra nas interações com a dadas”. Junto a seus conceitos espontâneos, a criança busca
criança, apresenta graus de generalidade e operações inte- raciocinar com o professor tentando reproduzir operações
lectuais novos para a criança. Mesmo que ela não elabore ou lógicas utilizadas por ele.
aprenda o conceito da palavra, a criança passa a organizar Na elaboração interpessoal, Fontana (1996, p. 22) anali-
seu processo de elaboração mental, assumindo ou recusan- sa que a criança imita a análise intelectual do adulto mesmo
do tais palavras. Portanto, a mediação do outro possibilita sem compreendê-la completamente. Ao utilizá-la passa a
a emergência de funções que faz com que mesmo que a elaborá-la articulando-se dialeticamente.
criança não domine o conceito, ela realiza uma operação Frente a um conhecimento sistematizado desconheci-
mental de forma compartilhada. do, a criança busca significá-lo através de sua aproximação
“Dentro desta perspectiva Vygotsky defende a tese de com outros signos já conhecidos, já elaborados e internali-
que o ensino precede o desenvolvimento” (FONTANA, 1996, zados. Ela busca enraizá-lo nas suas experiências consolida-
p.20), assim como o aprendizado, que está intrinsicamente das. Do mesmo modo, um conceito espontâneo nebuloso,
ligado ao desenvolvimento, abre infinitas possibilidades de que a criança utiliza sem saber explicar com, aproximando
crescimento intelectual para a criança. a um conceito sistematizado, coloca-se num outro quadro
Portanto, a relação entre aprendizado e desenvolvimen- das relações de generalização. (FONTANA, 1996, p. 22).
to é muito mais complexa dependendo de diversos elemen- Assim, Fontana (1996) vai demonstrando como a crian-
tos que são elaborados e reelaborados o tempo todo. Para ça internaliza e passa a utilizar os vários conceitos, siste-
isso, Vygotsky (1998) dá destaque principal à zona de desen- matizados ou não, os quais ela adquire nas suas relações
volvimento proximal. interpessoais realizadas na escola ou fora dela. Ambos os
conceitos (espontâneo e sistematizado) articulam-se e
O papel da escolarização transformam em uma relação recíproca, pois os conceitos
Fontana (1996) enfatiza que mesmo que a conceituali- espontâneos, segundo Vygotsky (2008), criam as estruturas
zação seja um processo único e integrado, Vygotsky destaca necessárias para a evolução dos aspectos primitivos e ele-
a necessidade de diferenciarmos a atividade mental centra- mentares dos conceitos.
da na vida cotidiana e a elaboração sistematizada na esco- Assim também são os conhecimentos sistematizados
que criam estruturas para os conhecimentos espontâneos
la, segundo condições externas e internas de elaboração
quanto à sistematização, consciência e uso deliberado de
em diferentes situações.
algo que é tão novo para a criança em idade escolar.

71
BIBLIOGRAFIA

Fontana (1996) descreve que para Vygotsky o aprendi-


zado escolar tem papel decisivo no desenvolvimento da ela- FREIRE, PAULO. A PEDAGOGIA DA
boração conceitual e tomada de consciência pela criança de
AUTONOMIA: SABERES NECESSÁRIOS À
seus processos mentais.
Por essas e muitas outras razões o professor deve sem-
PRÁTICA EDUCATIVA. RIO DE JANEIRO: PAZ
pre estar atualizado, ativo, ser comunicativo e paciente, pois E TERRA, 2000.
é ele o interlocutor, mediador da criança com o saber, mais
necessariamente o saber no âmbito escolar.
Autor
Conclusão
Torna-se relevante retomar e discutir os modos pelos Paulo Freire (1921-1997) foi educador brasileiro. O mé-
quais o processo de conceitualização tem sido produzido no todo de alfabetização Paulo Freire foi aplicado em diversos
interior das relações de ensino. Não para avaliar e/ou pres-
países. Foi membro do Conselho Estadual de Educação de
crever o que/ como se deve fazer (ou não) proceder na es-
Pernambuco. Foi professor da UNICAMP. Foi secretário de
cola, e sim como um esforço de explicitação das relações de
Educação da Prefeitura de São Paulo.
poder aí implicadas, e que nos ajudam a compreender a ela-
Paulo Freire (1921-1997) nasceu no Recife, Pernambuco,
boração conceitual como parte de uma luta constante pela
no dia 19 de setembro de 1921. Filho de Joaquim Temísto-
constituição da identidade social, num processo que é dinâ-
cles Freire, capitão da Polícia Militar e de Edeltrudes Neves
mico e passa também pela escola. (FONTANA, 1996, p.161)
Freire. Morou no Recife até 1932, numa casa localizada na
Fontana (1996) ao discorrer sobre elaboração conceitual
no campo pedagógico analisa que esta ocorre de duas ma- Estrada do Encanamento, 724. Sua primeira professora foi
neiras: “Numa relação pedagógica tradicional, professor e Eunice Vasconcelos. Mudou-se para Jaboatão, cidade vizi-
criança relacionam-se com sistemas ideológicos constituídos nha, onde permaneceu durante nove anos. Em 1932, morre
(palavras alheias) como palavras que devem ser aprendidas seu pai. Concluiu o curso primário em Jaboatão.
independente de sua persuasão anterior”. (FONTANA, 1996, Iniciou o curso ginasial no Colégio 14 de julho, no cen-
p.162). É este, ainda, o modo preponderante de ensino; os tro do Recife, no bairro de São José. Sem condições de con-
alunos não são instigados a buscar o conhecimento, a se tinuar pagando a escola, sua mãe pede ajuda ao diretor de
relacionar com ele, o professor fornece respostas rápidas e Colégio Oswaldo Cruz, que lhe concedeu matrícula gratuita
diretas, isso na maior parte do tempo, pois é uma forma mais e o transformou em auxiliar de disciplina, em seguida em
rápida e fácil de ensinar. professor de língua portuguesa.
Em um ensino não tradicional Fontana (1996, p.163) diz Em 1943 iniciou o curso na Faculdade de Direito do
que “os ‘conceitos científicos’ também são assumidos como Recife. Em 1944 casa-se com Elza Maria Costa de Oliveira,
‘conceitos verdadeiros’, mas o processo através do qual são professora primária. Depois de formado continuou como
‘assimilados’ é outro.” Esse seria um processo de ensino-apren- professor de português no Colégio Oswaldo Cruz e de Filo-
dizagem onde o conhecimento parte da criança e ela “cons- sofia da Educação na Escola de Belas Artes da Universidade
trói” com seus próprios recursos os sentidos das operações Federal de Pernambuco.
mentais e a interação com o adulto, escolar ou não, que não Demonstrava grande preocupação com o grande nú-
interfere diretamente, com conceitos já elaborados, a autora mero de adultos analfabetos. Participou do movimento de
vai ainda mais longe quando defende que as formas adultas Cultura Popular, organizado por Germano Coelho, Norma
de pensamento são internalizadas pela criança ao longo de Coelho e Anita Paes Barreto, durante a administração de
sua vida escolar. (FONTANA, 1996). Miguel Arraes de Alencar. Desenvolveu o “Método Paulo
O adulto é o mediador do processo de elaboração concei- Freire”, que se tornou famoso em diversos países. Partindo
tual da palavra, lembrando que em uma situação ideal isso seria de uma pesquisa do vocabulário usado pela população, no
constante, mas a escola como a concebemos tem pouco espaço local onde seria aplicado o método, se desenvolvia todo
para isso. Muito presa ao modelo tradicional e cumpridora de o trabalho de alfabetização. Foi usado inicialmente no Rio
“tarefas” (no caso da escola de Campo seria a apostila e as da- Grande do Norte, com o apoio do então governador, Aluí-
tas comemorativas), ainda se encontra muito preso a um ensino sio Alves.
tradicional. Não se pode negar que há momentos em que o Com o sucesso alcançado, Paulo Freire foi convidado
professor faz seu papel de “mediador”, mas a incidência é muito para trabalhar no Ministério da Educação, pelo então mi-
baixa perante o que se é esperado para uma garantia plena do nistro Paulo de Tarso, no Governo João Goulart. Fez parte
desenvolvimento do aluno, sujeito e foco da aprendizagem. também do Conselho Estadual de Educação, no Governo
Miguel Arraes. Com o golpe de 1964, o método foi proi-
Fonte bido e Paulo Freire teve seu mandato cassado. Foi exilado
MANOEL, V. K.; CRISTOFOLETI, R. C. O processo de elabo- para a Bolívia e em seguida para o Chile. Foi depois para
ração conceitual das palavras nas crianças. Revista Conteúdo, os Estado Unidos e para a Europa. Viajou aplicado o seu
Capivari, v.10, n.1, jan./jul. 2016 – ISSN 1807-9539 método por diversos países do Terceiro Mundo, publicou
livros em diversos idiomas. Privado de passaporte brasilei-
Referência ro, estabeleceu-se em Genebra, na Suíça, trabalhando para
FONTANA, Roseli Ap. Cação. Mediação Pedagógica em o Conselho Mundial das Igrejas Evangélicas. Com a anistia,
sala de aula. Campinas: Editora Autores Associados, 1996 retornou ao Brasil, estabelecendo-se em São Paulo.

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BIBLIOGRAFIA

Dedicou toda sua vida às atividades pedagógicas como desse diálogo político-pedagógico e calcadas nas virtudes
escritor e professor da UNICAMP. Foi conferencista em di- éticas, para que se estabeleçam as condições que abram a
versas universidades e eventos educacionais. Militou no possibilidade de ambos se existenciarem na autonomia, na
Partido dos Trabalhadores. Foi Secretário de Educação da cidadania responsável e na apropriação crítica do conheci-
Prefeitura de São Paulo, na gestão de Luiza Erundina. Após mento e sua recriação.
a morte de sua primeira esposa, casa-se com Ana Maria,
uma ex-aluna do Colégio Oswaldo Cruz. Paulo Freire mor- Resumo
reu em São Paulo, no dia 2 de maio de 1997.
Prática Docente: Primeira Reflexão
Sinópse Devo deixar claro que, embora seja meu interesse cen-
tral considerar neste texto saberes que me parecem indis-
A Pedagogia da autonomia de Paulo Freire é um livro pensáveis à prática docente de educadoras ou educadores
de poucas páginas, mas de uma densidade de ideias pouco críticos, progressistas, alguns deles são igualmente neces-
vista em qualquer outra de suas obras. Este poder de sín- sários a educadores conservadores. São saberes demanda-
tese demostra sua maturidade, lucidez e vontade de, com dos pela prática educativa em si mesma, qualquer que seja
simplicidade, abordar algumas das questões fundamentais a opção política do educador ou educadora.
para a formação dos educadores/as. Sua Linguagem é poé- Na continuidade da leitura vai cabendo ao leitor ou
tica e política. Calma, Tranquila e, ao mesmo tempo, in- leitora o exercício de perceber se este ou aquele saber re-
quieta, problematizadora e exuberante a serviço do pensar, ferido corresponde à natureza da prática progressista ou
do decidir e do optar para ação transformadora. Demostra conservadora ou se, pelo contrário, é exigência da prática
perseverança, ousadia e crença nos homens e nas mulhe- educativa mesma independentemente de sua cor política
res e na educação autêntica como o caminho necessário ou ideológica. Por outro lado, devo sublinhar que, de forma
para a JUSTIÇA E A PAZ. Paulo faz um chamamento aos não sistemática, tenho me referido a alguns desses saberes
educadores/as para a ética crítica, competência científica e em trabalhos anteriores. Estou convencido, porém, é legíti-
amorosidade autêntica, sob a égide do engajamento polí- mo acrescentar, da importância de uma reflexão como está
quando penso a formação docente e a prática educativo-
tico libertador, ensinarem aos seus educandos/as a serem
-crítica.
Seres Mais.
O Ato de cozinhar, por exemplo, supõe alguns saberes
Sentimentos ao ler este livro o seu corpo consciente
concernentes ao uso do fogão, como acendê-lo, como equi-
presente, com a mesma força de sua cabeça esclarecedora
librar para mais, para menos, a chama, como lidar com cer-
e justa. A sua voz terna e mansa falando apaixonadamente tos riscos, mesmo remotos, de incêndio como harmonizar os
de suas convicções. Suas mãos firmando a esperança que diferentes temperos numa síntese gostosa e atraente...
jamais abandonou. O seu escultar traduzindo a sua pos-
tura de humildade presente nas referências aos que com 1.1- Ensinar exige rigorosidade metódica;
ele dialogou. O sue olhar está o tempo todo voltado para O educador democrático não pode negar-se o dever
todos e todas que ousam ensinar-aprendendo. de, na sua prática docente, reforçar a capacidade crítica do
Quanto mais nos aprofundamos na leitura deste livro educando, sua curiosidade, sua insubmissão. Uma de suas
mais percebemos que Paulo se fez texto! O seu bem-que- tarefas primordiais é trabalhar com os educandos a rigoro-
rer pelos seres humanos, a gentidade de seu eu pessoa/eu sidade metódica com que devem se “aproximar” dos ob-
educador e a sua fé na educação estão vivamente presen- jetos cognoscíveis. E esta rigorosidade metódica não tem
tes, evidenciando ter sido um apaixonado pelo mundo e nada que ver com o discurso “bancário” meramente trans-
pela vida. Pedagogia da autonomia sintetiza a sua pedago- feridor do perfil do objeto ou do conteúdo. É exatamente
gia do oprimido e o engrandece como gente. É o livro-tes- neste sentido que ensinar não se esgota no “tratamento”
tamento de sua presença no mundo. Ofereceu-se nela por do objeto ou do conteúdo. É exatamente neste sentido que
inteiro na sua grandeza e inteireza. ensinar não se esgota no “tratamento” do Objeto ou do
Nita, Ana Maria Araújo Freire conteúdo, superficialmente feito, mas se alonga à produ-
ção das condições em que aprender criticamente é pos-
Comentário sível. E essas condições em que aprender criticamente é
possível. E essas condições implicam ou exigem a presença
Paulo Freire, um dos maiores intelectuais do sécu- de educadores e de educandos criadores, instigadores, in-
lo XX, elaborou uma teoria ou, como ele mesmo preferia quietos, rigorosamente curiosos, humildes e persistentes.
dizer, “uma certa compreensão ético-crítico-política da Faz parte das condições em que aprender criticamente é
educação”, que tem como uma de suas bases o diálogo possível a pressuposição por parte dos educandos de que
que possibilita a conscientização com o objetivo de for- o educador já teve ou continua tendo experiência da pro-
dução de certos saberes e que estes não podem a eles, os
mar cidadãos de práxis progressista, transformadores da
educandos, ser simplesmente transferidos. Pelo contrário,
ordem social, econômica e política injusta. Na Pedagogia
nas condições de verdadeira aprendizagem os educandos
da Autonomia, Paulo Freire nos apresenta reflexões sobre
vão se transformando em reais sujeitos da construção e da
a relação educadores-educandos, orientadas para prática

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BIBLIOGRAFIA

reconstrução do saber ensinando, ao lado do educador, que com a vida? Por que não estabelecer uma “intimidade”
igualmente sujeito do processo. Só assim podemos falar entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a
realmente de saber ensinado, em que o objeto ensinado é experiência social que eles têm como indivíduos? Por que
apreendido na sua casa razão de ser e, portanto, aprendido não discutir as implicações políticas e ideológicas de um tal
pelos educandos. descanso dos dominantes pelas áreas pobres da cidade? A
Percebe-se assim, a importância do papel do educador, ética de classe embutida neste descanso? “Porque, dirá um
o mérito da paz com que viva a certeza de que faz parte educador reacionariamente pragmático, a escola não tem
de sua tarefa docente não apenas ensinar os conteúdos, nada que ver com isso. A escola não é partido. Ela tem que
mas também ensinar a pensar certo. Daí a impossibilidade ensinar os conteúdos, transferi-los aos alunos. Aprendidos,
de vir a tornar-se um professor crítico se, mecanicamente estes operam por si mesmos.”
memorizador, é muito mais uma repetidor cadenciado de
frases e de ideias inertes do que desafiador... 1.4- Ensinar exige criticidade;
Não há pra mim, na diferença e na “distância” entre a
1.2- Ensinar exige pesquisa ingenuidade e a criticidade, entre o saber de pura experiên-
Não Há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. cia feito e o que resulta dos procedimentos metodicamente
Esses que fazeres se encontram um no corpo do outro. En- rigorosos, uma ruptura, mas uma superação. A superação
quanto ensino continuou buscando, reprocurando. Ensino e não a ruptura se dá na medida em que a curiosidade
porque busco, porque indaguei, porque indago e me in- ingênua, em deixar de ser curiosidade, se criticiza. Ao cri-
dago. Pesquiso para constatar, constatando, intervenho in- ticizar-se, tornando-se então, permito-me repetir, curiosi-
tervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que dade epistemológica metodicamente “rigorizando-se” na
ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade. sua aproximação ao objeto, conota seus achados de maior
Pensar certo, em termos críticos, é uma exigência que os exatidão.
momentos do ciclo gnosiológico vão pondo à curiosida- Na verdade, a curiosidade ingênua que, “desarmada”,
de que, tornando-se mais e mais metodicamente rigorosa, está associada ao saber do senso comum, é a mesma curio-
transita de ingenuidade para que venho chamando “curio- sidade que, criticizando-se, aproximando-se de forma cada
sidade epistemológica”. A curiosidade ingênua, de que re- vez mais metodicamente rigorosa do objeto cognoscível,
sulta indiscutivelmente em certo saber, não imposta que se torna curiosidade epistemológica. Muda de qualidade,
metodicamente desrigoroso, é a que caracteriza o senso mas não de essência. A curiosidade de camponeses com
comum. O Saber de pura experiência feito. Pensar certo, quem tenho dialogo ao longo de minha existência políti-
do ponto de vista do professor, tanto implica o respeito co-pedagógica, fatalistas ou já rebeldes diante da violência
ao senso comum no processo de sua necessária supera- das injustiças, é a mesma curiosidade, enquanto abertura
ção quanto o respeito e o estímulo à capacidade criadora mais ou menos espantada diante de “não eus”, com que
do educando. Implica o compromisso da educadora com a cientistas ou filósofos acadêmicos “admiram” o mundo.
consciência crítica do educando, cuja “promoção” da inge- Os cientistas e os filósofos superam, porém a ingenuidade
nuidade não se faz automaticamente. da curiosidade do camponês e se tornam epistemologica-
mente curiosos.
1.3- Ensinar exige respeito aos saberes dos educa- A curiosidade como inquietação indagadora, como
dores; inclinação ao desvelamento de algo, como pergunta ver-
Por isso mesmo pensar certo coloca ao professor ou, balizada ou não, como procura de esclarecimento, como
mais amplamente, à escola, o dever de não só respeitar os sinal de atenção que sugere alerta, faz parte integrante do
saberes com que os educandos, sobretudo os das classes fenômeno vital. Não haveria criatividade sem a curiosidade
populares, chegam a ela – saberes socialmente construídos que nos move e que nos põe pacientemente impacientes
na prática comunitária -, mas também, como há mais de diante do mundo que não fizemos, acrescentando a ele
trinta anos venho sugerindo, discutir com os alunos a razão algo que fazemos.
de ser de alguns desses saberes em relação com o ensino Como manifestação presente à experiência vital, a
dos conteúdos. Por que não aproveitar a experiência que curiosidade humana vem sendo histórica e socialmente
têm os alunos de viver em áreas da cidade descuidadas construída e reconstruída. Precisamente porque a promo-
pelo poder público para discutir, por exemplo, a poluição ção da ingenuidade para a criticidade não se dá automati-
dos riachos e dos córregos e os baixos níveis de bem-estar camente, uma das tarefas precípuas da pratica educativo-
das populações, os lixões e os riscos que oferecem à saúde -progressiva é exatamente o desenvolvimento da curiosi-
das gentes. Por que não há lixões no coração dos bairros dade com que podemos nos defender de “irracionalismos”
ricos e mesmo puramente remediados dos centros urba- decorrentes do ou produzimos por certo excesso de “racio-
nos? Essa pergunta é considerada em sim demagógica e nalidade” de nosso tempo altamente tecnologizado. E não
reveladora da má vontade de quem faz. É a pergunta de vai nesta consideração nenhuma arrancada falsamente hu-
subversivo, dizem certos defensores da democracia. manista de negação da tecnologia e da ciência. Pelo con-
Por que não discutir com os alunos a realidade concre- trário, é consideração de quem, de um lado, não diviniza a
ta a que se deve associar a disciplina cujo conteúdo se en- tecnologia, mas, de outro, não a diaboliza. De quem a olha
sina, a realidade agressiva em que a violência é a constante ou mesmo a espreita de forma criticamente curiosa.
e a convivência das pessoas é muito maior com a morte do

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BIBLIOGRAFIA

1.5- Ensinar exige estética e ética; Não há pensar certo fora de uma prática testemunhal
A necessária promoção da ingenuidade à criticidade que o re-diz em lugar de desdizê-lo. Não é possível ao pro-
não pode ou não deve ser feita à distância de uma rigo- fessor pensar que pensa certo, mas ao mesmo tempo per-
rosa formação ética ao lado sempre da estética. Decência guntar ao aluno se “sabe com quem está falando”.
e boniteza de mãos dadas. Cada vez me convenço mais O clima de quem pensa certo é o de quem busca seria-
de que, desperta com relação à possibilidade de envere- mente a segurança na argumentação, é o de quem busca
dar-se no descaminho do puritanismo, a prática educativa seriamente a segurança na argumentação, é o de quem,
tem de ser, em si, um testemunho rigoroso de decadência e discordando do seu oponente, não tem por que contra ele
de pureza. Uma crítica permanente aos desvios fáceis com ou contra ela nutrir uma raiva desmedida, bem maior, Às
que somos tentados às vezes ou quase sempre, a deixar vezes, do que a razão mesma da discordância. Uma dessas
as dificuldades que os caminhos verdadeiros podem nos pessoas desmedidamente raivosas proibiu certa vez uma
colocar. Mulheres e homens, seres histórico-sociais, nos estudante que trabalhava em uma dissertação sobre alfa-
tornamos capazes de comparar, de valorar, de intervir, de betização e cidadania que me lesse. “Já era”, disse com ares
escolher, de decidir, de romper, por tudo isso, nos fizemos de quem trata com o rigor e neutralidade o objeto, quem
seres éticos. Só somos porque estamos sendo é a condição, era eu. “Qualquer leitura que você faça deste senhor pode
entre nós, para ser. Não é possível pensar os seres humanos prejudica-la.” Não é assim que se pensa certo nem é assim
que se ensina certo. Faz parte do pensar certo o gosto da
longe, sequer, da ética, quanto mais fora dela. Estar longe
generosidade que, não negando a quem o tem o direito à
ou, pior, fora da ética, entre nós mulheres e homens, é uma
raiva, a distingue da raivosidade irrefreada.
transgressão. É por isso que transformar a experiência edu-
cativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que
1.7- Ensinar exige risco, aceitação do novo e rejei-
há de fundamentalmente humano no exercício educativo; ção a qualquer forma de descriminação;
o seu caráter formador. Se se respeita a natureza do ser É próprio do pensar certo a disponibilidade ao risco, a
humano, o ensino dos conteúdos não pode dar-se alheio à aceitação do novo que não pode ser negado ou acolhido
formação moral do educando. Educar é substantivamente só porque é novo, assim como o critério de recusa ao velho
formar. Divinizar ou diabolizar a tecnologia ou a ciência é não é apenas o cronológico. O velho que preserva sua vali-
uma forma altamente negativa e perigosa de pensar erra- dade ou que encarna uma tradição ou marca uma presença
do. De testemunhar aos alunos, às vezes com ares de quem no tempo continua novo.
possui a verdade, um rotundo desacerto. Pensar certo, pelo Faz parte igualmente do pensar certo a rejeição mais
contrário, demanda profundidade e não superficialidade na decida a qualquer forma de descriminação. A prática pre-
compreensão e na interpretação dos fatos. Supõe a dispo- conceituosa de raça, de classe, de gênero ofende a substan-
nibilidade à revisão dos achados, reconhece não apenas a tividade do ser humano e nega radicalmente a democracia.
possibilidade de mudar de opção, de apreciação, mas o di- Quão longe dela nos achamos quando vivemos a impuni-
reito de fazê-lo. Mas como não há pensar certo à margem dade do que matam meninos nas ruas, dos que assassinam
de princípios éticos, se mudar é uma possibilidade e um camponeses que lutam por seus direitos, dos que discrimi-
direito, cabe a quem muda – exige o pensar certo – que nam os negros, dos que inferiorizam as mulheres. Quão au-
assuma a mudança operada. Do ponto de vista do pensar sentes da democracia se acham os que queimam igrejas de
certo não é possível mudar e fazer de conta que não mu- negros porque, certamente, negros não têm alma. Negros
dou. É que todo pensar certo é radicalmente coerente. não rezam. Com sua negritude, os negros sujam a branqui-
tude das orações... A mim me dá pena e não raiva, quando
1.6- Ensinar exige a corporificação das palavras vejo arrogância com que a branquitude de sociedades em
pelo exemplo; que faz isso, em que se queimam igrejas de negros se apre-
O professor que realmente ensina, quer dizer, que tra- senta ao mundo como pedagoga da democracia. Pensar e
balha os conteúdos no quadro da rigorosidade do pensar fazer errado, pelo visto, não têm mesmo nada ver com a
certo, nega, como falsa, a fórmula farisaica do “faça o que humildade que o pensar certo exige. Não têm nada que ver
com o bom-senso que regula nossos exageros e evita as
mando e não o que eu faço”. Quem pensa certo está can-
nossas caminhadas até o ridículo e a insensatez.
sando de saber que as palavras a que falta a corporeidade
Às vezes, temo que algum leitor ou leitora, mesmo que
do exemplo pouco ou quase nada valem. Pensar certo é
ainda não totalmente convertido ao “pragmatismo” neoli-
fazer certo. beral, mas por ele já tocado, diga que, sonhador, continuo
Que podem pensar alunos sérios de um professor que, a falar de uma educação de anjos e não de mulheres e de
há dois semestres, falava com quase ardor sobre a necessi- homens. O que tenho dito até agora, porém, diz respeito
dade da luta pela autonomia das classes populares e hoje, radicalmente à natureza de mulheres e de homens. Nature-
dizendo que não mudou, faz o discurso pragmático contra za entendida como social e historicamente constituindo-se,
os sonhos e a pratica a transferência de saber do professor e não como um a priori da história...
para o aluno?! Que dizer da professora que, de esquerda
ontem, defendia a formação da classe trabalhadora e que, 1.8- Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática;
pragmática hoje, se satisfaz, curvada ao fatalismo neolibe- O pensar certo sabe, por exemplo, que não é a partir
ral, com o puro treinamento do operário, insistindo, porém, dele como um dado que se conforma a prática docente crí-
que é progressista? tica, mas sabe também que sem ele não se funda aquela. A

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BIBLIOGRAFIA

prática docente crítica, implicante do pensar certo, envolve perspectiva progressista. Saber que ensinar não é transferir
o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua pró-
sobre o fazer. O Saber que a prática docente espontânea pria educação produção ou a sua construção. Quando entro
ou quase espontânea, “desarmada”, indiscutivelmente pro- em uma sala de aula devo estar sendo um ser aberto a inda-
duz é um saber ingênuo, um saber de experiência feito, a gações, à curiosidade, às perguntas dos alunos, as inibições;
que falta rigorosidade metódica que caracteriza a curiosi- um ser crítico e inquiridor, inquieto em face da tarefa que
dade epistemológica do sujeito. Este não é o saber que a tenho – a ensinar e não a de transferir conhecimento.
rigorosidade do pensar certo procura. Por isso, é funda- É preciso insistir: este saber necessário ao professor -
mental que, na prática da formação docente, o aprendiz de de que ensinar não é transferir conhecimento - não apenas
educador assuma que o indispensável pensar certo não é precisa ser apreendido por ele e pelos educandos nas suas
presente dos deuses nem se acha nos guias de professores razões de ser – odontológica, política, ética, epistemológi-
que iluminados intelectuais escrevem desde o centro do ca, pedagógica -, mas também precisa ser constantemente
poder, mas, pelo contrário, o pensar que supera o ingênuo testemunhado, vivido.
tem que ser produzido pelo próprio aprendiz em comu- Como professor num curso de formação docente não
nhão com o professor formador. É preciso, por outro lado, posso esgotar minha prática discursando sobre a Teoria
reinsistir em que a matriz do pensar ingênuo, como a do da não extensão do conhecimento. Não posso apenas fa-
crítico, é a curiosidade mesma, característica do fenômeno lar bonito sobre as razões ontológicas, epistemológicas e
vital. Neste sentido, indubitavelmente, é tão curioso o pro- políticas da teoria. O meu discurso sobre a Teoria deve ser
fessor chamado leigo no interior de Pernambuco quanto o o exemplo concerto, prático, da teoria. Sua encarnação.
professor de filosofia da educação na universidade A ou B. Ao falar da construção do conhecimento, criticando a sua
O de que precisa é possibilitar, que, voltando-se sobre si extensão, já devo estar envolvido nela, a construção, estar
mesma, através da reflexão sobre a prática, a curiosidade envolvendo os alunos.
ingênua, percebendo-se como tal, se vá tornando crítica... Fora disso, me emaranho na rede das contraindicações
em que meu testemunho, inautêntico, perde eficácia. Me
1.9- Ensinar exige o reconhecimento e a assunção torno tão falso quanto quem pretende estimular o clima
de identidade cultural; democrático na escola por meios e caminhos autoritários.
É interessante estender mais um pouco a reflexão so- Tão fingido quanto quem diz combater o racismo, mas,
bre a assunção. O verbo assumir é um verbo transitivo e perguntando se conhece Madalena, diz: “Conheço-a, É ne-
que pode ter como objeto o próprio sujeito que assim se gra, mas é competente e descente.” Jamais ouvi ninguém
assume. Eu tanto assumo o riso que corro ao fumar quan-
dizer que conhece Célia, que é loura, de olhos azuis, mas é
to me assumo enquanto sujeito da própria assunção. Dei-
competente e decente. No discurso perfilador de Madale-
xamos claro que, quando ser fundamental para deixar a
na, negra, cabe à conjunção adversativa, mas; no que con-
assunção de fumar ameaça minha vida, com assunção eu
torna Célia, loura de olhos azuis, a conjunção adversativa é
quero, sobretudo me referir ao conhecimento cabal que
um não senso. A compreensão do papeldas conjuções que,
obtive do fumar e de suas consequências. Outro sentido
ligando sentenças entre si, impregnam a relação que esta-
mais radical tem assunção ou assumir quando digo: uma
das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é belecem de certo sentido – o de causalidade: “falo porque
proporcionar as condições em que os educandos em suas recuso o silêncio” ; o de adversidade: “tentaram dominá-lo
relações uns com os outros e todos com o professor ou a mas não conseguiram”; o de finalidade: “ Pedro lutou para
professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se. que ficasse clara a sua posição”; o de integração: “ Pedro
Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, sabia que ela voltaria, não é os suficiente para explicar o
comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, uso da adversativa mas na relação entre a sentença “ Ma-
capaz de ter raiva porque capaz de amar. Assumir-se como dalena é negra” e “Madalena é competente e decente”. A
sujeito porque capaz de reconhecer-se como objeto. A as- conjunção mas, aí, implica um juízo falso, ideológico: sen-
sunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros, do negra, espera-se que Madalena nem seja competente
É a “outredade” do “não eu”, ou do tu, que me faz assumir nem decente. Ao reconhecer-se, porém, sua decência e sua
a radicalidade de meu eu. competência a conjunção mas se tornou indispensável. No
A questão da identidade cultural, de que fazem parte caso de Célia, é um disparate que, sendo loura de olhos
a dimensão individual e a de classe dos educandos cujo azuis não seja competente e decente. Daí o não senso da
respeito é absolutamente fundamental na prática educati- adversativa. A razão é ideológica, e não gramatical...
va progressista, é problema que não pode ser desprezado.
Tem que ver diretamente com assunção de nós por nós 2.1- Ensinar exige consciência do inacabamento;
mesmos. É isto que o puro treinamento do professor não Como professor crítico, sou um “aventureiro” responsá-
faz, perdendo-se e perdendo-o na estreita e programática vel predisposto à mudança, à aceitação do diferente. Nada
visão do processo... do que experimentei em minha atividade docente deve ne-
cessariamente repetir-se. Repito, porém, como inevitável, a
2- Ensinar não é transferir conhecimento franquia de mim mesmo, radical, diante dos outros e do
As considerações ou reflexões até agora feitas vêm mundo. Minha franquia ante os outros e o mundo mesmo
sendo desdobramentos de um primeiro saber inicialmen- e a maneira radical como me experimento enquanto ser
te apontado como necessário à formação docente, numa cultural, histórico, inacabado e consciente do inacabamento.

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BIBLIOGRAFIA

Aqui chegamos ao ponto de que talvez devêssemos ter e social que a promoção do suporte a mundo nos coloca.
partido. O do inacabamento do ser humano. Na verdade, Renuncio a participar a cumprir a vocação ontológica de
o inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da intervir o mundo. O fato de me perceber no mundo, com
experiência vital. Onde há vida, há inacabamento. o mundo e com os outros me põe numa posição em face
Mas só entre mulheres e homens o inacabamento se do mundo que não é de quem nada tem a ver com ele.
tornou consciente. A invenção da existência a partir dos Afinal, minha presença no mundo não é a de quem a ele
materiais que a vida oferecia levou homens e mulheres a se adapta mas a de quem nele se insere. É a posição de
promover o suporte em que os outros animais continuam, quem luta para não ser apenas objeto, mas sujeito também
em mundo. Seu mundo, mundo dos homens e das mulhe- da História.
res. A experiência humana no mundo muda de qualidade Gosto de ser gente porque, mesmo sabendo que as
com relação à vida animal no suporte. O suporte é o espaço, condições materiais, econômicas, sociais e políticas, cultu-
restrito ou alongado, que o animal se prende “afetivamen- rais e ideológicas em que nos achamos geram quase sem-
te” tanto quanto para, resistir; e o espaço necessário a seu pre barreiras de difícil superação para o cumprimento de
crescimento e que delimita seu domínio. É o espaço em nossa tarefa histórica de mudar o mundo, sei também que
que, treinado, adestrado, “aprende” a sobreviver, a caçar, os obstáculos não se eternizam.
a atacar, a defender- se nutri tempo de dependência dos
adultos imensamente menor do que é necessário ao ser 2.3- Ensinar Exige respeito à autonomia do ser do
humano para as mesmas coisas. Quanto mais cultural é o educando;
ser maior a sua infância, sua dependência de cuidados es- Outro saber necessário à prática educativa, e que se
peciais. Faltam ao “movimento” dos outros animais no su- funda na mesma raiz que acabo de discutir - a da incon-
porte a linguagem conceitual, a inteligibilidade do próprio clusão do ser que se sabe inconcluso -, é o que fala do res-
suporte de que resultaria inevitavelmente a comunicabili- peito devido à autonomia do ser do educando. Do educan-
dade do inteligido, o espanto diante da vida mesma, do do criança, jovem ou adulto. Como educador, devo estar
que há nela de mistério. No suporte, os comportamentos constantemente advertido com relação a este respeito que
dos indivíduos têm sua explicação muito mais na espécie a implica igualmente o que devo ter por mim mesmo. Não
que pertencem os indivíduos do que neles mesmos. Falta- faz mal repetir afirmação várias vezes feita neste texto - o
lhes liberdade de opção. Por isso, não se fala em ética entre inacabamento de que nos tornamos conscientes nos fez
os elefantes. seres éticos.
A vida no suporte não implica a linguagem nem a pos- O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é
tura ereta que permitiu a liberação das mãos. Mãos que, em um imperativo ético e não um favor que podemos ou não
grande medida, nos fizeram. Quanto maior se foi tornando conceder uns aos outros. Precisamente porque éticos po-
a solidariedade entre mente e mãos, tanto mais o suporte demos desrespeitar a rigorosidade da ética e resvalar para
foi virando mundo e a vida, existência. O suporte veio fazen- a sua negação, por isso é imprescindível deixar claro que a
do- se mundo e a vida, existêmia, na proporção que o cor- possibilidade do desvio ético não pode receber outra de-
po humano vira corpo consciente, captador, apreendedor, signação senão a de transgressão.
transformador, criador de beleza e não “espaço” vazio a ser O professor que desrespeita a curiosidade do educan-
enchido por conteúdos. do, o seu gosto estético, a sua inquietude, a sua linguagem,
mais precisamente, a sua sintaxe e a sua prosódia; o pro-
2.2- Ensinar exige o reconhecimento de ser condi- fessor que ironiza o aluno, que o minimiza, que manda que
cionado; “ele se ponha em seu lugar” ao mais tênue sinal de sua re-
Gosto de ser gente porque, inacabado, sei que sou um beldia legítima, tanto quanto o professor que se exime do
ser condicionado, mas, consciente do inacabamento, sei cumprimento de seu dever de propor limites à liberdade
que posso ir mais além dele. Esta é a diferença profunda do aluno, que se furta ao dever de ensinar, de estar respei-
entre o ser condicionado e o ser determinado. A diferença tosamente presente à experiência formadora do educando,
entre o inacabado que não se sabe como tal e o inaca- transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossa
bado que histórica e socialmente alcançou a possibilidade existência.
de saber- se inacabado. Gosto de ser gente porque, como É neste sentido que o professor autoritário, que por
tal, percebo afinal que a construção de minha presença no isso mesmo afoga a liberdade do educando, amesquinhan-
mundo, que não se faz no isolamento, isenta o a influência do o seu direito de estar sendo curioso e inquieto, tanto
das forças sociais, que não se compreende fora da tensão quanto o professor licencioso rompe com a radicalidade
entre o que herdo geneticamente e o que herdo social, cul- do ser humano - a de sua inconclusão assumida em que se
tural e historicamente, tem muito a ver comigo mesmo. enraíza a eticidade. É neste sentido também que a dialogi-
Seria irônico se a consciência de minha presença no cidade verdadeira, em que os sujeitos dialógicos aprendem
mundo não implicasse já o reconhecimento da impossibili- e crescem na diferença, sobretudo, no respeito a ela, é a
dade de minha ausência na construção da própria presen- forma de estar sendo coerentemente exigida por seres que,
ça. Não posso me perceber como uma presença no mun- inacabados, assumindo- se como tais, se tornam radical-
do, mas, ao mesmo tempo, explicá-la como resultado de mente éticos. É preciso deixar claro que a transgressão da
operações absolutamente alheias a mim. Neste caso o que eticidade jamais pode ser vista ou entendida como virtude,
faço é renunciar à responsabilidade ética, histórica, política mas como ruptura com a decência.

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BIBLIOGRAFIA

O que quero dizer é o seguinte: que alguém se tor- há nele de instintivo na avaliação que fazemos dos fatos
ne machis ta, racista, classista, sei lá o quê, mas se assuma e dos acontecimentos em que nos envolvemos. Se o bom
como transgressor da natureza humana. Não me venha senso, na avaliação moral que faço de algo, não basta para
com justificativas genéticas, sociológicas ou históricas ou orientar ou fundar minhas táticas de luta, tem, indiscuti-
filosóficas para explicar a superioridade da branquitude velmente, importante papel na minha tomada de posição,
sobre a negritude, dos homens sobre as mulheres, dos pa- a que não pode faltar a ética, em face do que devo fazer...
trões sobre os empregados. Qualquer discriminação é imo-
ral e lutar contra ela é um dever por mais que se reconheça 2.5- Ensinar exige humildade, tolerância e luta em
a força dos condicionamentos a enfrentar. A boniteza de defesa dos direitos dos educadores;
ser gente se acha, entre outras coisas, nessa possibilidade Se há algo que os educandos brasileiros precisam sa-
e nesse dever de brigar. Saber que devo respeito à autono- ber, desde a mais tenra idade, é que a luta em favor do
mia e à identidade do educando exige de mim uma prática respeito aos educadores e à educação inclui que a briga
em tudo coerente com este saber... por salários menos imorais é um dever irrecusável e não
só um direito deles. A luta dos professores em defesa de
2.4- Ensinar exige bom-senso; seus direitos e de sua dignidade deve ser entendida como
A vigilância do meu bom senso tem uma importância um momento importante de sua prática docente, enquan-
enorme na avaliação que, a todo instante, devo fazer de to prática ética. Não é algo que vem de fora da atividade
minha prática. Antes, por exemplo, de qualquer reflexão docente, mas algo que dela faz parte. O combate em favor
mais detida e rigorosa é o meu bom senso que me diz ser da dignidade da prática docente é tão parte dela mesma
tão negativo, do ponto de vista de minha tarefa docen- quanto dela faz parte o respeito que o professor deve ter
te, o formalismo insensível que me faz recusar o trabalho à identidade do educando, à sua pessoa, a seu direito de
de um aluno por perda de prazo, apesar das explicações ser. Um dos piores males que o poder público vem fazen-
convincentes do aluno, quanto o desrespeito pleno pelos do a nós, no Brasil, historicamente, desde que a sociedade
princípios reguladores da entrega dos trabalhos. É o meu brasileira foi criada, é o de fazer muitos de nós correr o
bom senso que me adverte de que exercer a minha autori-
risco de, a custo de tanto descaso pela educação pública,
dade de professor na classe, tomando decisões, orientando
existencialmente cansados, cair no indiferentismo fatalis-
atividades, estabelecendo tarefas, cobrando a produção in-
tamente cínico que leva ao cruzamento dos braços. “Não
dividual e coletiva do grupo não é sinal de autoritarismo de
há o que fazer” é o discurso acomodado que não pode-
minha parte. É a minha autoridade cumprindo o seu dever.
mos aceitar.
Não resolvemos bem, ainda, entre nós, a tensão que a con-
O meu respeito de professor à pessoa do educando,
tradição autoridade- liberdade nos coloca e confundimos
à sua curiosidade, à sua timidez, que não devo agravar
quase sempre autoridade com autoritarismo, licença com
com procedimentos inibidores exige de mim o cultivo da
liberdade.
Não preciso de um professor de ética para me dizer humildade e da tolerância. Como posso respeitar a curio-
que não posso, como orientador de dissertação de mes- sidade do educando se, carente de humildade e da real
trado ou de tese de doutoramento, surpreender o pós-gra- compreensão do papel da ignorância na busca do saber,
duando com críticas duras a seu trabalho porque um dos temo revelar o meu desconhecimento? Como ser educa-
examinadores foi severo em sua arguição. Se isto ocorre e dor, sobretudo numa perspectiva progressista, sem apren-
eu concordo com as críticas feitas pelo professor não há der, com maior ou menor esforço, a conviver com os dife-
outro caminho senão solidarizar- me de público com o rentes? Como ser educador, se não desenvolvo em mim
orientando, dividindo com ele a responsabilidade do equí- a indispensável amorosidade aos educandos com quem
voco ou do erro criticado. Não preciso de um professor de me comprometo e ao próprio processo formador de que
ética para me dizer isto. sou parte? Não posso desgostar do que faço sob pena de
Meu bom senso me diz. Saber que devo respeito à au- não fazê-lo bem. Desrespeitado como gente no desprezo
tonomia, à dignidade e à identidade do educando e, na a que é relegada a prática pedagógica não tenho por que
prática, procurar a coerência com este saber, me leva ina- desamá-la e aos educandos. Não tenho por que exercê-la
pelavelmente à criação de algumas virtudes ou qualidades mal. A minha resposta à ofensa à educação é a luta polí-
sem as quais aquele saber vira inautêntico, palavreado va- tica consciente, crítica e organizada contra os ofensores.
zio e inoperante. De nada serve, a não ser para irritar o Aceito até abandoná-la, cansado, à procura de melhores
educando e desmoralizar o discurso hipócrita do educador, dias. O que não é possível é, ficando nela, aviltá-la com o
falar em democracia e liberdade, mas impor ao educando a desdém de mim mesmo e dos educandos...
vontade arrogante do mestre.
O exercício do bom senso, com o qual só temos o que 2.6- Ensinar exige apreensão da realidade;
ganhar se faz no “corpo” da curiosidade. Neste sentido, Outro saber fundamental à experiência educativa é o
quanto mais pomos em prática de forma metódica a nossa que diz respeito à sua natureza. Como professor preciso
capacidade de indagar, de comparar, de duvidar, de afe- me mover com clareza na minha prática. Preciso conhecer
rir, tanto mais eficazmente curiosos nos podemos tornar as diferentes dimensões que caracterizam a essência da
e mais crítico se pode fazer o nosso bom senso. O exer- prática, o que me pode tornar mais seguro no meu próprio
cício ou a educação do bom senso vai superando o que desempenho.

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BIBLIOGRAFIA

O melhor ponto de partida para estas reflexões é a a esperança não é algo que a ela se justaponha. A esperan-
inconclusão do ser humano de que se tornou consciente. ça faz parte da natureza humana. Seria uma contradição
Como vimos, aí radica a nossa educabilidade bem como a se, inacabado e consciente do inacabamento, primeiro, o
nossa inserção num permanente movimento de busca em ser humano não se inscrevesse ou não se achasse predis-
que, curiosos e indagadores, não apenas nos damos conta posto a participar de um movimento constante de busca e,
das coisas, mas também delas podemos ter um conheci- segundo, se buscasse sem esperança. A desesperança é ne-
mento cabal. A capacidade de aprender, não apenas para gação da esperança. A esperança é uma espécie de ímpeto
nos adaptar mas sobretudo para transformar a realidade, natural possível e necessário, a desesperança é o aborto
para nela intervir, recriando- a, fala de nossa educabilidade deste ímpeto. A esperança é um condimento indispensável
a um nível distinto do nível do adestramento dos outros à experiência histórica. Sem ela, não haveria História, mas
animais ou do cultivo das plantas. puro determinismo. Só há História onde há tempo proble-
A nossa capacidade de aprender, de que decorre a de matizado e não pré-dado. A inexorabilidade do futuro é a
ensinar, sugere ou, mais do que isso, implica a nossa ha- negação da História.
bilidade de apreender a substantividade do objeto apren- É preciso ficar claro que a desesperança não é maneira
dido. A memorização mecânica do perfil do objeto não é de estar sendo natural do ser humano, mas distorção da
aprendizado verdadeiro do objeto ou do conteúdo. Neste esperança. Eu não sou primeiro um ser da desesperança a
caso, o aprendiz funciona muito mais como paciente da ser convertido ou não pela esperança. Eu sou, pelo contrá-
transferência do objeto ou do conteúdo do que como su- rio, um ser da esperança que, por “n” razões, se tornou de-
jeito crítico, epistemologicamente curioso, que constrói o sesperançado. Daí que uma das nossas brigas como seres
conhecimento do objeto ou participa de sua construção. humanos deva ser dada no sentido de diminuir as razões
É precisamente por causa desta habilidade de apreender objetivas para a desesperança que nos imobiliza.
a substantividade do objeto que nos é possível reconstruir Por tudo isso me parece uma enorme contradição que
um mal aprendizado, o em que o aprendiz foi puro pacien- uma pessoa progressista, que não teme a novidade, que
te da transferência do conhecimento feita pelo educador. se sente mal com as injustiças, que se ofende com as dis-
Mulheres e homens, somos os únicos seres que, social criminações, que se bate pela decência, que luta contra a
e historicamente, nos tornamos capazes de apreender. Por impunidade, que recusa o fatalismo cínico e imobilizante,
isso, somos os únicos em quem aprender é uma aventura não seja criticamente esperançosa.
criadora, algo, por isso mesmo, muito mais rico do que me- A desproblematização do futuro numa compreensão
ramente repetir a lição dada. Aprender para nós é construir, mecanicista da História, de direita ou de esquerda, leva ne-
reconstruir, constatar para mudar, o que não se faz sem cessariamente à morte ou à negação autoritária do sonho,
abertura ao risco e à aventura do espírito. da utopia, da esperança. É que, na inteligência mecanicista
Creio poder afirmar, na altura destas considerações, portanto determinista da História, o futuro é já sabido. A
que toda prática educativa demanda a existência de sujei- luta por um futuro assim “a priori” conhecido prescinde da
tos, um que, ensinando, aprende outro que, aprendendo, esperança.
ensina, daí o seu cunho gnosiológico; a existência de ob- A desproblematização do futuro, não importa em
jetos, conteúdos a serem ensinados e aprendidos; envolve nome de quê, é uma violenta ruptura com a natureza hu-
o uso de métodos, de técnicas, de materiais; implica, em mana social e historicamente constituindo- se...
função de seu caráter diretivo, objetivo, sonhos, utopias,
ideais. Daí a sua politicidade, qualidade que tem a prática 2.8- Ensinar exige a convicção de que a mudança é
educativa de ser política, de não poder ser neutra. possível;
Especificamente humana a educação é gnosiológica, é Um dos saberes primeiros, indispensáveis a quem, che-
diretiva, por isso política, é artística e moral, serve-se de gando a favelas ou a realidades marcadas pela traição a
meios, de técnicas, envolve frustrações, medos, desejos. nosso direito de ser, pretende que sua presença se vá tor-
Exigem de mim, como professor, uma competência geral, nando convivência, que seu estar no contexto vá virando
um saber de sua natureza e saberes especiais, ligados à estar como ele, é o saber do futuro como problema e não
minha atividade docente... como inexorabilidade. É o saber da História como possibili-
dade e não como determinação. O mundo não é. O mundo
2.7- Ensinar exige alegria e esperança; está sendo. Como subjetividade curiosa, inteligente, inter-
O meu envolvimento com a prática educativa, sabida- feridora na objetividade com que dialeticamente me rela-
mente política, moral, gnosiológica, jamais deixou de ser ciono, meu papel no mundo não é só o de quem constata o
feito com alegria, o que não significa dizer que tenha inva- que ocorre mas também o de quem intervém como sujeito
riavelmente podido criá- la nos educandos. de ocorrências. Não sou apenas objeto da História mas seu
Mas, preocupado com ela, enquanto clima ou atmosfe- sujeito igualmente.
ra do espaço pedagógico, nunca deixei de estar. No mundo da História, da cultura, da política, constato
Há uma relação entre a alegria necessária à atividade não para me adaptar, mas para mudar. No próprio mun-
educativa e a esperança. A esperança de que professor e do físico minha constatação não me leva à impotência. O
alunos juntos podemos aprender, ensinar, inquietar-nos, conhecimento sobre os terremotos desenvolveu toda uma
produzir e juntos igualmente resistir aos obstáculos à nossa engenharia que nos ajuda a sobreviver a eles. Não pode-
alegria. Na verdade, do ponto de vista da natureza humana, mos eliminá-los, mas podemos diminuir os danos que nos

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BIBLIOGRAFIA

causam. Constatando, nos tornamos capazes de intervir na A dialogicidade não nega a validade de momentos
realidade, tarefa incomparavelmente mais complexa e ge- explicativos, narrativos em que o professor expõe ou fala
radora de novos saberes do que simplesmente a de nos do objeto. O fundamental é que professor e alunos saibam
adaptar a ela. É por isso também que não me parece pos- que a postura deles, do professor e dos alunos, é dialógi-
sível nem aceitável a posição ingênua ou, pior, astutamente ca, aberta, curiosa, indagadora e não apassivada, enquanto
neutra de quem estuda, seja o físico, o biólogo, o sociólogo, fala ou enquanto ouve. O que importa é que professor e
o matemático, ou o pensador da educação. Ninguém pode alunos se assumam epistemologicamente curiosos...
estar no mundo, com o mundo e com os outros de forma
neutra. Não posso estar no mundo de luvas nas mãos cons- 3- Ensinar é uma especificidade humana
tatando apenas. Que possibilidades de expressar- se, de crescer, vem
A acomodação em mim é apenas caminho para a inser- tendo a minha curiosidade? Creio que uma das qualida-
ção, que implica decisão, escolha, intervenção na realidade. des essenciais que a autoridade docente democrática deve
Há perguntas a serem feitas insistentemente por todos nós revelar em suas relações com as liberdades dos alunos é a
e que nos fazem ver a impossibilidade de estudar por estu- segurança em si mesma. É a segurança que se expressa na
dar. De estudar descomprometidamente como se misterio- firmeza com que atua com que decide com que respeita as
samente de repente nada tivéssemos que ver com o mundo, liberdades, com que discute suas próprias posições, com
um lá fora e distante mundo, alheado de nós e nós dele... que aceita rever- se.
Segura de si, a autoridade não necessita de, a cada ins-
2.9- Ensinar exige curiosidade; tante, fazer o discurso sobre sua existência, sobre si mes-
Um pouco mais sobre a curiosidade mo. Não precisa perguntar a ninguém, certa de sua legiti-
Se há uma prática exemplar como negação da experiên- midade, se “sabe com quem está falando?” Segura de si, ela
cia formadora é a que dificulta ou inibe a curiosidade do é porque tem autoridade, porque a exerce com indiscutível
educando e, em consequência, a do educador. É que o edu- sabedoria.
cador que, entregue a procedimentos autoritários ou pater-
nalistas que impedem ou dificultam o exercício da curiosida- 3.1- Ensinar exige segurança, competência profis-
de do educando, termina por igualmente tolher sua própria sional e generosidade;
curiosidade. Nenhuma curiosidade se sustenta eticamente A segurança com que a autoridade docente se move
no exercício da negação da outra curiosidade. A curiosidade implica uma outra, a que se funda na sua competência pro-
dos pais que só se experimenta no sentido de saber como e fissional. Nenhuma autoridade docente se exerce ausente
onde anda a curiosidade dos filhos se burocratiza e fenece. desta competência. O professor que não leve a sério sua
A curiosidade que silencia a outra se nega a si mesma tam- formação, que não estude que não se esforce para estar
bém. O bom clima pedagógico- democrático é o em que à altura de sua tarefa não tem força moral para coordenar
o educando vai aprendendo à custa de sua prática mesma as atividades de sua classe. Isto não significa, porém, que a
que sua curiosidade como sua liberdade deve estar sujeita opção e a prática democrática do professor ou da profes-
a limites, mas em permanente exercício. Limites eticamente sora sejam determinadas por sua competência científica.
assumidos por ele. Minha curiosidade não tem o direito de Há professores e professoras cientificamente prepara-
invadir a privacidade do outro e expô-la aos demais. dos, mas autoritários a toda prova. O que quero dizer é que
Como professor devo saber que sem a curiosidade que a incompetência profissional desqualifica a autoridade do
me move, que me inquieta, que me insere na busca, não professor. Outra qualidade indispensável à autoridade em
aprendo nem ensino. Exercer a minha curiosidade de forma suas relações com as liberdades é a generosidade. Não há
correta é um direito que tenho como gente e a que cor- nada que mais inferiorize a tarefa formadora da autoridade
responde o dever de lutar por ele, o direito à curiosidade. do que a mesquinhez com que se comporte. A arrogância
Com a curiosidade domesticada posso alcançar a memori- farisaica, malvada, com que julga os outros e a indulgên-
zação mecânica do perfil deste ou daquele objeto, mas não cia macia com que se julga ou com que julga os seus. A
o aprendizado real ou o conhecimento cabal do objeto. A arrogância que nega a generosidade nega também a hu-
construção ou a produção do conhecimento do objeto im- mildade. Que não é virtude dos que ofendem nem tam-
plica o exercício da curiosidade, sua capacidade crítica de pouco dos que se regozijam com sua humilhação. O clima
“tomar distância” do objeto, de observá-lo, de delimitá-lo, de respeito que nasce de relações justas, sérias, humildes,
de cindi-lo, de “cercar” o objeto ou fazer sua aproximação generosas, em que a autoridade docente e as liberdades
metódica, sua capacidade de comparar, de perguntar. dos alunos se assumem eticamente, autentica o caráter for-
Estimular a pergunta, a reflexão crítica sobre a própria mador do espaço pedagógico.
pergunta, o que se pretende com esta ou com aquela per- A reação negativa ao exercício do comando é tão in-
gunta em lugar da passividade em face das explicações dis- compatível com o desempenho da autoridade quanto a so-
cursivas do professor, espécies de resposta a perguntas que freguidão pelo mando. O mandonismo é exatamente esse
não foram feitas. Isto não significa realmente que devamos gozo irrefreável e desmedido pelo mando. A autoridade
reduzir a atividade docente em nome da defesa da curiosi- docente mandonista, rígida, não conta com nenhuma cria-
dade necessária, a puro vai- e- vem de perguntas e respos- tividade do educando. Não faz parte de sua forma de ser,
tas, que burocraticamente se esterilizam. esperar, sequer, que o educando revele o gosto de aventu-

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BIBLIOGRAFIA

rar- se. A autoridade coerentemente democrática, fundan- crito” e “reescrito”. Neste sentido, quanto mais solidarieda-
do- se na certeza da importância, quer de si mesma, quer de exista entre o educador e educandos no “trato” deste
da liberdade dos educandos para a construção de um clima espaço, tanto mais possibilidades de aprendizagem demo-
de real disciplina, jamais minimiza a liberdade. crática se abrem na escola...
Pelo contrário, aposta nela. Empenha- se em desafiá-
-la sempre e sempre; jamais vê, na rebeldia da liberdade, 3.3- Ensinar exige compreender que a educação é
um sinal de deterioração da ordem. A autoridade coeren- uma forma de intervenção no mundo;
temente democrática a está convicta de que a disciplina Outro saber de que não posso duvidar um momen-
verdadeira não existe na estagnação, no silêncio dos silen- to sequer na minha prática educativo- crítica é o de que,
ciados, mas no alvoroço dos inquietos, na dúvida que insti- como experiência especificamente humana, a educação
ga, na esperança que desperta... é uma forma de intervenção no mundo. Intervenção que
além do conhecimento dos conteúdos bem ou mal ensina-
3.2- Ensinar exige comprometimento; dos e/ou aprendidos implica tanto o esforço de reprodução
Outro saber que devo trazer comigo e que tem que da ideologia dominante quanto o seu desmascaramento.
ver com quase todos os de que tenho falado é o de que Dialética e contraditória, não poderia ser a educação só
não é possível exercer a atividade do magistério como se uma ou só a outra dessas coisas. Nem apenas reprodutora
nada ocorresse conosco. Como impossível seria sairmos na nem apenas desmascaradora da ideologia dominante.
chuva expostos totalmente a ela, sem defesas, e não nos Neutra, “indiferente” a qualquer destas hipóteses, a
molhar. Não posso ser professor sem me pôr diante dos da reprodução da ideologia dominante ou a de sua con-
alunos, sem revelar com facilidade ou relutância minha ma- testação, a educação jamais foi, é, ou pode ser. É um erro
neira de ser, de pensar politicamente. Não posso escapar à decretá-la como tarefa apenas reprodutora da ideologia
apreciação dos alunos. E a maneira como eles me perce- dominante como erro é tomá-la como uma força de deso-
bem tem importância capital para o meu desempenho. Daí, cultação da realidade, a atuar livremente, sem obstáculos e
então, que uma de minhas preocupações centrais deva ser duras dificuldades. Erros que implicam diretamente visões
a de procurar a aproximação cada vez maior entre o que defeituosas da História e da consciência.
digo e o que faço, entre o que pareço ser e o que realmente De um lado, a compreensão mecanicista da História,
estou sendo. que reduz a consciência a puro reflexo da materialidade, e
de outro, o subjetivismo idealista, que hipertrofia o papel
Se perguntado por um aluno sobre o que é “tomar dis-
da consciência no acontecer histórico. Nem somos mu-
tância epistemológica do objeto” lhe respondo que não sei,
lheres e homens, seres simplesmente determinados nem
mas que posso vir a saber, isso não me dá a autoridade
tampouco livres de condicionamentos genéticos, culturais,
de quem conhece, me dá a alegria de, assumindo minha
sociais, históricos, de classe, de gênero, que nos marcam e
ignorância, não ter mentido. E não ter mentido abre para
a que nos achamos referidos.
mim junto aos alunos um crédito que devo preservar. Eti-
Do ponto de vista dos interesses dominantes, não há
camente impossível teria sido dar uma resposta falsa, um
dúvida de que a educação deve ser uma prática imobiliza-
palavreado qualquer. Um chute, como se diz popularmente.
dora e ocultadora de verdades. Toda vez, porém, que a con-
Mas, de um lado, precisamente porque a prática docente, juntura o exige, a educação dominante é progressista à sua
sobretudo como a entendo, me coloca a possibilidade que maneira, progressista “pela metade”. As forças dominantes
devo estimular de perguntas varias, preciso me preparar ao estimulam e materializam avanços técnicos compreendidos
máximo para, de outro, continuar sem mentir aos alunos, e, tanto quanto possível, realizados de maneira neutra.
de outro, não ter de afirmar seguidamente que não sei. Seria demasiado ingênuo, até angelical de nossa parte,
Saber que não posso passar despercebido pelos alu- esperar que a “bancada ruralista” aceitasse quieta e con-
nos, e que a maneira como me percebam me ajuda ou cordante a discussão, nas escolas rurais e mesmo urbanas
desajuda no cumprimento de minha tarefa de professor, do país, da reforma agrária como projeto econômico, polí-
aumenta em mim os cuidados com o meu desempenho. Se tico e ético da maior importância para o próprio desenvol-
a minha opção é democrática, progressista, não posso ter vimento nacional...
uma prática reacionária, autoritária, elitista. Não posso dis-
criminar o aluno em nome de nenhum motivo. A percepção 3.4- Ensinar exige liberdade e autoridade;
que o aluno tem de mim não resulta exclusivamente de Noutro momento deste texto me referi ao fato de não
como atuo mas também de como o aluno entende como termos ainda resolvido o problema da tensão entre a au-
atuo. toridade e a liberdade. Inclinados a superar a tradição au-
Evidentemente, não posso levar meus dias como pro- toritária, tão presente entre nós resvalamos para formas li-
fessor a perguntar aos alunos o que acham de mim ou cenciosas de comportamento e descobrimos autoritarismo
como me avaliam. Mas devo estar atento à leitura que fa- onde só houve o exercício legítimo da autoridade.
zem de minha atividade com eles. Precisamos aprender a Recentemente, jovem professor universitário, de opção
compreender a significação de um silêncio, ou de um sor- democrática, comentava comigo o que lhe parecia ter sido
riso ou de uma retirada da sala. O tom menos cortês com um desvio seu no uso de sua autoridade. Disse, constran-
que foi feita uma pergunta. Afinal, o espaço pedagógico é gido, ter se oposto a que aluno de outra classe continuasse
um texto para ser constantemente “lido”, interpretado, “es- na porta entreaberta de sua sala, a manter uma conversa

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BIBLIOGRAFIA

gesticulada com uma das alunas. Ele tivera inclusive que tonomia do ser do educando. De modo geral, teimam em
parar sua fala em face do descompasso que a situação pro- depositar nos alunos apassivados a descrição do perfil dos
vocava. Para ele, sua decisão, com que devolvera ao espaço conteúdos, em lugar de desafiá-los a apreender a substan-
pedagógico o necessário clima para continuar sua ativida- tividade dos mesmos, enquanto objetos gnosiológicos, so-
de específica e com a qual restaurara o direito dos estudan- mente como os aprendem.
tes e o seu de prosseguir a prática docente, fora autoritária. É na diretividade da educação, esta vocação que ela
Na verdade, não. Licencioso teria sido se tivesse permitido tem, como ação especificamente humana, de “endereçar-
que a indisciplina de uma liberdade mal centrada desequi- se” até sonhos, ideais, utopias e objetivos, que se acha o
librasse o contexto pedagógico, prejudicando assim o seu que venho chamando politicidade da educação. A qualida-
funcionamento. de de ser política, inerente à sua natureza. É impossível, na
Num dos inúmeros debates de que venho participan- verdade, a neutralidade da educação. E é impossível, não
do, e em que discutia precisamente a questão dos limi- porque professoras e professores “baderneiros” e “sub-
tes sem os quais a liberdade se perverte em licença e a versivos” o determinem. A educação não vira política por
autoridade em autoritarismo ouvi de um dos participantes causa da decisão deste ou daquele educador. Ela é política.
que, ao falar dos limites à liberdade eu estava repetindo a Quem pensa assim, quem afirma que é por obra deste
cantilena que caracterizava o discurso de professor seu, re- ou daquele educador, mais ativista que outra coisa, que a
conhecidamente reacionário, durante o regime militar. Para educação vira política, não pode esconder a forma depre-
o meu interlocutor, a liberdade estava acima de qualquer ciativa como entende a política. Pois é na medida mesmo
limite. Para mim, não, exatamente porque aposto nela, por- em que a educação é deturpada e diminuída pela ação de
que sei que sem ela a existência só tem valor e sentido na “baderneiros” que ela, deixando de ser verdadeira educa-
luta em favor dela. A liberdade sem limite é tão negada ção, possa a ser política, algo sem valor.
quanto à liberdade asfixiada ou castrada. A raiz mais profunda da politicidade da educação se
O grande problema que se coloca ao educador ou à acha na educabilidade mesma do ser humano, que se fun-
educadora de opção democrática é como trabalhar no da na sua natureza inacabada e da qual se tornou cons-
sentido de fazer possível que a necessidade do limite seja ciente. Inacabado e consciente de seu inacabamento, his-
assumida eticamente pela liberdade. Quanto mais critica- tórico, necessariamente o ser humano se faria um ser ético,
mente a liberdade assuma o limite necessário tanto mais um ser de opção, de decisão. Um ser ligado a interesses e
autoridade tem ela, eticamente falando, para continuar lu- em relação aos quais tanto pode manter- se fiel à eticidade
tando em seu nome... quanto pode transgredi-la. É exatamente porque nos tor-
namos éticos que se criou para nós a probabilidade, como
3.5- Ensinar exige tomada consciente de decisões; afirmei antes, de violar a ética.
Voltemos à questão central que venho discutindo nesta Para que a educação fosse neutra era preciso que não
parte do texto: a educação, especificidade humana, como houvesse discordância nenhuma entre as pessoas com re-
um ato de intervenção no mundo. É preciso deixar claro que lação aos modos de vida individual e social, com relação ao
o conceito de intervenção não está sendo usado com ne- estilo político a ser posto em prática, aos valores a serem
nhuma restrição semântica. Quando falo em educação como encarnados. Era preciso que não houvesse, em nosso caso,
intervenção me refiro tanto à que aspira a mudanças radicais por exemplo, nenhuma divergência em face da fome e da
na sociedade, no campo da economia, das relações huma- miséria no Brasil e no mundo; era necessário que toda a
nas, da propriedade, do direito ao trabalho, à terra, à educa- população nacional aceitasse mesmo que elas, miséria e
ção, à saúde, quanto à que, pelo contrário, reacionariamente fome, aqui e fora daqui, são uma fatalidade do fim do sé-
pretende imobilizar a História e manter a ordem injusta. culo. Era preciso também que houvesse unanimidade na
Estas formas de intervenção, com ênfase mais num as- forma de enfrentá-las para superá-las. Para que a educação
pecto do que noutro nos dividem em nossas opções em re- não fosse uma forma política de intervenção no mundo era
lação a cuja pureza nem sempre somos leais. Rara vez, por indispensável que o mundo em que ela se desse não fosse
exemplo, percebemos a incoerência agressiva que existe humano. Há uma incompatibilidade total entre o mundo
entre as nossas afirmações “progressistas” e o nosso estilo humano da fala, da percepção, da inteligibilidade, da co-
desastrosamente elitista de ser intelectuais. E que dizer de municabilidade, da ação, da observação, da comparação,
educadores que se dizem progressistas, mas de prática pe- da verificação, da busca, da escolha, da decisão, da ruptura,
dagógico- política eminentemente autoritária? Não é por da ética e da possibilidade de sua transgressão e a neutra-
outra razão que insisti tanto em Professora Sim, Tia Não, na lidade não importa de quê.
necessidade de criarmos, em nossa prática docente, entre O que devo pretender não é a neutralidade da edu-
outras, a virtude da coerência. Não há nada talvez que des- cação mas o respeito, a toda prova, aos educandos, aos
gaste mais um professor que se diz progressista do que sua educadores e às educadoras. O respeito aos educadores e
prática racista, por exemplo. É interessante observar como educadoras por parte da administração pública ou privada
há mais coerência entre os intelectuais autoritários, de di- das escolas; o respeito aos educandos assumido e pratica-
reita ou de esquerda. Dificilmente, um deles ou uma delas do pelos educadores não importa de que escola, particular
respeita e estimula a curiosidade crítica nos educandos, o ou publica. É por isto que devo lutar sem cansaço. Lutar
gosto da aventura. Dificilmente contribui, de maneira deli- pelo direito que tenho de ser respeitado e pelo dever que
berada e consciente, para a constituição e a solidez da au- tenho de reagir a que me destratem...

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BIBLIOGRAFIA

3.6- Ensinar exige saber escutar; 3.7- Ensinar exige reconhecer que a educação é
Recentemente, em conversa com um grupo de amigos e ideológica;
amigas, uma delas, a professora Olgair Garcia, me disse que, Saber igualmente fundamental à prática educativa do
em sua experiência pedagógica de professora de crianças e professor ou da professora é o que diz respeito à força,
de adolescentes mas também de professora de professoras, às vezes maior do que pensamos da ideologia. E o que
vinha observando quão importante e necessário é saber es- nos adverte de suas manhas, das armadilhas em que nos
cutar. Se, na verdade, o sonho que nos anima é democrático faz cair. É que a ideologia tem que ver diretamente com a
e solidário, não é falando aos outros, de cima para baixo, so- ocultação da verdade dos faros, com o uso da linguagem
bretudo, como se fôssemos os portadores da verdade a ser
para penumbrar ou opacizar a realidade ao mesmo tempo
transmitida aos demais, que aprendemos a escutar, mas é
em que nos torna “míopes”.
escutando que aprendemos a ferir com eles. Somente quem
escuta paciente e criticamente o outro, fala com ele. Mesmo O poder da ideologia me faz pensar nessas manhãs
que, em certas condições, precise falar a ele. O que jamais faz orvalhadas de nevoeiro em que mal vemos o perfil dos ci-
quem aprende a escutar para poder falar com é falar imposi- prestes como sombras que parecem muito mais manchas
tivamente. Até quando, necessariamente, fala contra posições das sombras mesmas. Sabemos que há algo metido na
ou concepções do outro, fala com ele como sujeito da escuta penumbra, mas não o divisamos bem. A própria “miopia”
de sua fala crítica e não como objeto de seu discurso. O edu- que nos acomete dificulta a percepção mais clara, mais
cador que escuta aprende a difícil lição de transformar o seu nítida da sombra. Mais séria ainda é a possibilidade que
discurso, às vezes necessário, ao aluno, em uma fala com ele. temos de docilmente aceitar que o que vemos e ouvimos
Há um sinal dos tempos, entre outros, que me assusta: a é o que na verdade é, e não a verdade distorcida. A capa-
insistência com que, em nome da democracia, da liberdade cidade de penumbrar a realidade, de nos “miopizar”, de
e da eficácia, se vem asfixiando a própria liberdade e, por nos ensurdecer que tem a ideologia faz, por exemplo, a
extensão, a criatividade e o gosto da aventura do espírito. muitos de nós, aceitar docilmente o discurso cinicamen-
A liberdade de mover- nos, de arriscar-nos vem sendo sub- te fatalista neoliberal que proclama ser o desemprego no
metida a uma certa padronização de fórmulas, de maneiras mundo uma desgraça do fim de século. Ou que os sonhos
de ser, em relação às quais somos avaliados. É claro que já morreram e que o válido hoje é o “pragmatismo” pedagó-
não se trata de asfixia truculentamente realizada pelo rei gico, é o treino técnico- científico do educando e não sua
despótico sobre seus súditos, pelo senhor feudal sobre seus
formação de que já não se fala. Formação que, incluindo a
vassalos, pelo colonizador sobre os colonizados, pelo dono
preparação técnico científica, vai mais além dela.
da fábrica sobre seus operários, pelo Estado autoritário so-
A capacidade de nos amaciar que tem a ideologia nos
bre os cidadãos, mas pelo poder invisível da domesticação
alienante que alcança a eficiência extraordinária no que ve- faz às vezes mansamente aceitar que a globalização da
nho chamando “burocratização da mente”. economia é uma invenção dela mesma ou de um destino
Um estado refinado de estranheza, de “auto demissão” que não poderia se evitar, uma quase entidade metafísi-
da mente, do corpo consciente, de conformismo do indiví- ca e não um momento do desenvolvimento econômico
duo, de acomodação diante de situações consideradas fata- submetido, como toda produção econômica capitalista, a
listamente como imutáveis. E a posição de quem encara os uma certa orientação política ditada pelos interesses dos
fatos como algo consumado, como algo que se deu porque que detêm o poder.
tinha que se dar da forma como se deu, é a posição, por isso Fala- se, porém, em globalização da economia como
mesmo, de quem entende e vive a História como determi- um momento necessário da economia mundial a que por
nismo e não como possibilidade. É a posição de quem se isso mesmo, não é possível escapar. Universaliza- se um
assume como fragilidade total diante do todo poderosíssi- dado do sistema capitalista e um instante da vida produ-
mo dos fatos que não apenas se deram porque tinham que tiva de certas economias capitalistas hegemônicas como
se dar, mas que não podem ser “reorientados” ou alterados. se o Brasil, o México, a Argentina devessem participar da
Não há, nesta maneira mecanicista de compreender a globalização da economia da mesma forma que os Esta-
História, lugar para a decisão humana. Na medida mesma dos Unidos, a Alemanha, o Japão.
em que a desproblematização do tempo, de que resulta
Pega-se o trem no meio do caminho e não se discu-
que o amanhã ora é a perpetuação do hoje, ora é algo que
tem as condições anteriores e atuais das diferentes eco-
será porque está dito que será não há lugar para a escolha,
nomias. Nivelam-se os patamares de deveres entre as dis-
mas para a acomodação bem comportada ao que está aí
ou ao que virá. Nada é possível de ser feito contra a globa- tintas economias sem se considerarem as distâncias que
lização que, realizada porque tinha de ser realizada, tem de separam os “direitos” dos fortes e o seu poder de usufruí-
continuar seu destino, porque assim está misteriosamente -los e a fraqueza dos débeis para exercer os seus direi-
escrito que deve ser. A globalização que reforça o mando tos. Se a globalização implica a superação de fronteiras, a
das minorias poderosas e esmigalha e pulveriza a presença abertura sem restrições ao livre comércio acabe-se então
impotente dos dependentes, fazendo- os ainda mais impo- quem não puder resistir. Não se indaga, por exemplo, se
tentes é destino dado. Em face dela não há outra saída se- em momentos anteriores da produção capitalista nas so-
não que cada um baixe a cabeça docilmente e agradeça a ciedades que lideram a globalização hoje elas eram tão
Deus porque ainda está vivo. Agradeça a Deus ou à própria radicais na abertura que consideram agora uma condição
globalização... indispensável ao livre comércio.

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BIBLIOGRAFIA

Exigem, no momento, dos outros, o que não fizeram ruas bem postas também. Fotografias de recantos feios
consigo mesmas. Uma das eficácias de sua ideologia fata- que sugeriam tristeza e dificuldades. Fotografias de corpos
lista é convencer os prejudicados das economias submeti- andando com dificuldade, lentamente, alquebrados, de ca-
das de que a realidade é assim mesmo, de que não há nada ras desfeitas, de olhar vago.
a fazer, mas seguir a ordem natural dos faros. Pois é como Um pouco atrás de mim dois professores faziam co-
algo natural ou quase natural que a ideologia neoliberal se mentários em torno do que lhes tocava mais de perto. De
esforça por nos fazer entender a globalização e não como repente, um deles afirmou: “Há dez anos ensino nesta es-
uma produção histórica... cola. Jamais conheci nada de sua redondeza além das ruas
que lhe dão acesso. Agora, ao ver esta exposição de fo-
3.8- Ensinar exige disponibilidade para diálogo; tografias que nos revelam um pouco de seu contexto, me
Nas minhas relações com os outros, que não fizeram convenço de quão precária deve ter sido a minha tarefa
necessariamente as mesmas opções que fiz, no nível da po- formadora durante todos estes anos. Como ensinar, como
lítica, da ética, da estética, da pedagogia, nem posso partir formar sem estar aberto ao contorno geográfico, social, dos
de que devo “conquistá-los”, não importa a que custo, nem educandos?”
tampouco temo que pretendam “conquistar- me”. É no res- A formação dos professores e das professoras devia in-
peito às diferenças entre mim e eles ou elas, na coerência sistir na constituição deste saber necessário e que me faz
entre o que faço e o que digo que me encontro com eles certo desta coisa óbvia, que é a importância inegável que
ou com elas. É na minha disponibilidade à realidade que tem sobre nós o contorno ecológico, social e econômico em
construo a minha segurança, indispensável à própria dispo- que vivemos. E ao saber teórico desta influência teríamos
nibilidade. É impossível viver a disponibilidade à realidade que juntar o saber teórico- prático da realidade concreta em
sem segurança, mas é impossível cambem criar a segurança que os professores trabalham. Já sei, não há dúvida, que as
fora do risco da disponibilidade. condições materiais em que e sob que vivem os educandos
Como professor não devo poupar oportunidade para lhes condicionam a compreensão do próprio mundo, sua
testemunhar aos alunos a segurança com que me comporto capacidade de aprender, de responder aos desafios. Pre-
ao discutir um tema, ao analisar um fato, ao expor minha ciso, agora, saber ou abrir- me à realidade desses alunos
posição em face de uma decisão governamental. Minha se- com quem partilho a minha atividade pedagógica. Preciso
gurança não repousa na falsa suposição de que sei tudo, de tornar-me, se não absolutamente íntimo de sua forma de
que sou o “maior”. Minha segurança se funda na convicção estar sendo, no mínimo, menos estranho e distante dela. E
de que sei algo e de que ignoro algo a que se junta à certe- a diminuição de minha estranheza ou de minha distância
za deque posso saber melhor o que já sei e conhecer o que da realidade hostil em que vivem meus alunos não é uma
ainda não sei. Minha segurança se alicerça no saber con- questão de pura geografia.
firmado pela própria experiência de que, se minha incon- Minha abertura à realidade negadora de seu projeto de
clusão, de que sou consciente, atesta, de um lado, minha gente é uma questão de real adesão de minha parte a eles
ignorância, me abre, de outro, o caminho para conhecer. e a elas, a seu direito de ser. Não é mudando-me para uma
Sinto-me seguro porque não há razão para me enver- favela que provarei a eles e a elas minha verdadeira solida-
gonhar por desconhecer algo. Testemunhar a abertura aos riedade política sem falar ainda na quase certa perda de efi-
outros, a disponibilidade curiosa à vida, a seus desafios, são cácia de minha luta em função da mudança mesma. O fun-
saberes necessários à prática educativa. damental é a minha decisão ético-política, minha vontade
Viver a abertura respeitosa aos outros e, de quando em nada piegas de intervir no mundo. É o que Amílcar Cabral
vez, de acordo com o momento, tomar a própria prática de chamou “suicídio de classe” e a que me referi, na Pedagogia
abertura ao outro como objeto da reflexão crítica deveria do Oprimido, como páscoa ou travessia. No fundo, diminuo
fazer parte da aventura docente. A razão ética da abertura, a distância que me separa das condições malvadas em que
seu fundamento político, sua referência pedagógica; a boni- vivem os explorados, quando, aderindo realmente ao so-
teza que há nela como viabilidade do diálogo. A experiência nho de justiça, luto pela mudança radical do mundo e não
da abertura como experiência fundante do ser inacabado apenas espero que ela chegue porque se disse que chega-
que terminou por se saber inacabado. Seria impossível sa- rá. Diminuo a distância entre mim e a dureza de vida dos
ber- se inacabado e não se abrir ao mundo e aos outros à explorados não com discursos raivosos, sectários, que só
procura de explicação, de respostas a múltiplas perguntas. não são ineficazes porque dificultam mais ainda meus alu-
O fechamento ao mundo e aos outros se torna transgressão nos, diminuo a distância que me separa de suas condições
ao impulso natural da incompletude. negativas de vida na medida em que os ajudo a aprender
O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugu- não importa que saber, o do torneiro ou o do cirurgião, com
ra com seu gesto a relação dialógica em que se confirma vistas à mudança do mundo à esperança das estruturas in-
como inquietação e curiosidade, como inconclusão em per- justas, jamais com vistas à sua imobilização...
manente movimento na História. Certa vez, numa escola da
rede municipal de São Paulo que realizava uma reunião de 3.9- Ensinar exige querer bem aos educandos;
quatro dias com professores e professoras de dez escolas E o que dizer, mas sobretudo que esperar de mim, se,
da área para planejar em comum suas atividades pedagó- como professor, não me acho tomado por este outro saber,
gicas, visitei uma sala em que se expunham fotografias das o de que preciso estar aberto ao gosto de querer bem, às
redondezas da escola. Fotografias de ruas enlameadas, de vezes, à coragem de querer bem aos educandos e à própria

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BIBLIOGRAFIA

prática educativa de que participo. Esta abertura ao querer do hoje neoliberal que a ideologia contida no discurso da
bem não significa, na verdade, que, porque professor me “morte da História” propõe. Permanência do hoje a que o
obrigo a querer bem a todos os alunos de maneira igual. futuro desproblematizado se reduz. Daí o caráter deses-
Significa, de fato, que a afetividade não me assusta, que perançoso, fatalista, antiutópico de uma tal ideologia em
não tenho medo de expressá-la. Significa esta abertura ao que se forja uma educação friamente tecnicista e se requer
querer bem a maneira que tenho de autenticamente selar o um educador exímio na tarefa de acomodação ao munido
meu compromisso com os educandos, numa pratica espe- e não na de sua transformação. Um educador com muito
cífica do ser humano. Na verdade preciso descartar como pouco de formador, com muito mais de treinador, de trans-
falsa a separação radical entre seriedade docente e efetivi- feridor de saberes, de exercitador de destrezas.
dade. Não é certo, sobretudo do ponto de vista democrá- Os saberes de que este educador “pragmático” neces-
tico, que serei tão melhor professor quanto mais severo, sita na sua prática não são os de que venho falando neste
mais frio, mais distante e “cinzento” me ponha nas minhas livro. A mim não me cabe falar deles, os saberes necessários
relações com os alunos, no trato dos objetos cognoscíveis ao educador “pragmático” neoliberal mas, denunciar sua
que devo ensinar. A afetividade não se acha excluída da atividade anti-humanista. O educador progressista precisa
cognoscibilidade. O que não posso obviamente permitir é estar convencido como de suas consequências é o de ser
que minha afetividade interfira no cumprimento ético de o seu trabalho uma especificidade humana. Já vimos que
meu dever de professor no exercício de minha autoridade. a condição humana fundante da educação é precisamente
Não posso condicionar a avaliação do trabalho escolar de a inconclusão de nosso ser histórico de que nos tornamos
um aluno ao maior ou menor bem querer que tenha por conscientes. Nada que diga respeito ao ser humano, à pos-
ele. sibilidade de seu aperfeiçoamento físico e moral, de sua
A minha abertura ao querer bem significa a minha dis- inteligência sendo produzida e desafiada, os obstáculos a
ponibilidade à alegria de viver. Justa alegria de viver, que, seu crescimento, o que possa fazer em favor da boniteza
assumida plenamente, não permite que me transforme do mundo como de seu enfeamento, a dominação a que
num ser “adocicado” nem tampouco num ser arestoso e esteja sujeito, a liberdade por que deve lutar, nada que diga
amargo. respeito aos homens e às mulheres pode passar desper-
A atividade docente de que a discente não se separa cebido pelo educador progressista. Não importa com que
é uma experiência alegre por natureza. E falso também to- faixa etária trabalhe o educador ou a educadora.
mar como inconciliáveis seriedade docente e alegria, como O nosso é um trabalho realizado com gente, miúda,
se a alegria fosse inimiga da rigorosidade. Pelo contrário, jovem ou adulta, mas gente em permanente processo de
quanto mais metodicamente rigoroso me torno na minha busca. Gente formando- se, mudando, crescendo, reorien-
busca e na minha docência, tanto mais alegre me sinto e tando- se, melhorando, mas, porque gente, capaz de negar
esperançoso também. A alegria não chega apenas no en- os valores, de distorcer-se, de recuar, de transgredir. Não
contro do achado mas faz parte do processo da busca. E sendo superior nem inferior a outra prática profissional, a
ensinar e aprender não podem dar-se fora da procura, fora minha, que é a prática docente, exige de mim um alto ní-
da boniteza e da alegria. O desrespeito à educação, aos vel de responsabilidade ética de que a minha própria ca-
educandos, aos educadores e às educadoras corrói ou de- pacitação científica faz parte. É que lido com gente. Lido,
teriora em nós, de um lado, a sensibilidade ou a abertu- por isso mesmo, independente- mente do discurso ideo-
ra ao bem querer da própria prática educativa de outro, a lógico negador dos sonhos e das utopias, com os sonhos,
alegria necessária ao que- fazer docente. É digna de nota as esperanças tímidas, às vezes, mas às vezes, fortes, dos
a capacidade que tem a experiência pedagógica para des- educandos. Se não posso, de um lado, estimular os sonhos
pertar, estimular e desenvolver em nós o gosto de querer impossíveis, não devo, de outro, negar a quem sonha o di-
bem e o gosto da alegria sem a qual a prática educativa reito de sonhar. Lido com gente e não com coisas. E porque
perde o sentido. É esta força misteriosa, às vezes chamada lido com gente, não posso, por mais que, inclusive, me dê
vocação, que explica a quase devoção com que a grande prazer entregar- me à reflexão teórica e crítica em torno da
maioria do magistério nele permanece, apesar da imorali- própria prática docente e discente, recusar a minha aten-
dade dos salários. E não apenas permanece, mas cumpre ção dedicada e amorosa à problemática mais pessoal deste
como pode, seu dever. Amorosamente, acrescento. ou daquele aluno ou aluna. Desde que não prejudique o
Mas é preciso, sublinho, que, permanecendo e amoro- tempo normal da docência, não posso fechar-me a seu so-
samente cumprindo o seu dever, não deixe de lutar politi- frimento ou à sua inquietação porque não sou terapeuta
camente, por seus direitos e pelo respeito à dignidade de ou assistente social.
sua tarefa, assim como pelo zelo devido ao espaço peda- Mas sou gente. O que não posso, por uma questão de
gógico em que atua com seus alunos. ética e de respeito profissional, é pretender passar por te-
É preciso, por outro lado, reinsistir em que não se pen- rapeuta. Não posso negar a minha condição de gente de
se que a prática educativa vivida com afetividade e alegria, que se alonga, pela minha abertura humana, uma certa di-
prescinda da formação científica séria e da clareza políti- mensão terápica....
ca dos educadores ou educadoras. A prática educativa é
tudo isso: afetividade, alegria, capacidade científica, do-
mínio técnico a serviço da mudança ou, lamentavelmente,
da permanência do hoje. É exatamente esta permanência

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BIBLIOGRAFIA

de Cultura Popular, que vêm sendo usados pelos educado-


FREIRE, PAULO. A IMPORTÂNCIA DO res, também chamados de animadores, como livros básicos
na construção do processo de alfabetização e pós-alfabeti-
ATO DE LER - EM TRÊS ARTIGOS QUE SE
zação. Também sugere a construção da biblioteca popular,
COMPLETAM. SÃO PAULO. CORTEZ, 1991 - baseada em textos construídos pelo povo com base em sua
COLEÇÃO POLÊMICAS DO NOSSO TEMPO - cultura. Segundo Freire, “A reconstrução nacional precisa de
VOLUME 4. 26ª EDIÇÃO. que o nosso Povo conheça mais e melhor a nossa realidade
e assim fazer um mundo mais justo para todos”.
A leitura desse livro nos fez entender que a educação
O livro de Paulo Freire, “A Importância do Ato de Ler”, é realmente um ato político e como educadores e educa-
constituído por três artigos que se completam, é apresen- doras devemos desenvolver juntamente com os educandos
tado em uma palestra sobre a alfabetização de adultos e uma leitura crítica, digo “juntamente”, porque, desenvolver
de bibliotecas populares, onde o autor trás a temática da “neles”, lhes tira o papel de sujeito participativo e portan-
leitura, discutindo sua importância, como ela deve ser e de to cria a figura autoritária. A participação consciente na
que forma ela se dar no processo da alfabetização. Dentro construção de nossa sociedade se dar em um trabalho de
de um contexto crítico e analítico ele relata e discute sua parceria, onde o que pensa que sabe, ainda tem muito a
experiência de alfabetização e pós-alfabetização de adul- aprender. “Pois, quanto mais consciente o povo faça sua
tos na República Democrática de São Tomé e Príncipe. história, tanto mais perceberá com lucidez as dificuldades
Em “A Importância do Ato de Ler”, Paulo Freire afirma que tem a enfrentar, no domínio econômico, social e cultu-
que a leitura do mundo é anterior a leitura da palavra e ral, no processo permanente de sua libertação”.
que todos traz consigo sua experiência de vida para com-
por esta leitura, mesmo a criança tem suas imaginações e
GADOTTI, MOACIR & ROMÃO, J.E.
suas afeições que também vai ajudar na composição dessa
leitura. Em um discurso maravilhoso, ele relata aspectos de EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: TEORIA,
sua infância e de como ele chegou ao seu processo de al- PRÁTICA E PROPOSTA. SÃO PAULO: CORTEZ,
fabetização. 2001.
Enfatiza a importância de se fazer uma leitura crítica, e
que o gosto pela leitura se desenvolve na medida em que
os conteúdos sejam de acordo com o interesse e necessi-
A educação escolar é cada dia mais importante para
dade do leitor.
o cidadão. As exigências do mercado de trabalho aumen-
Para Freire falar, de alfabetização de adultos e de bi-
tam, junto às rápidas transformações que vêm ocorrendo
blioteca populares é falar, entre muitos outros, do proble-
na sociedade. Quem não completou pelo menos a esco-
ma da leitura e da escrita. Não da leitura de palavras e de
laridade básica encontra muita dificuldade na disputa por
sua escrita em si próprias, como se lê-las e escrevê-las, não
um emprego, pois, em muitas empresas, candidatos que
implicasse uma outra leitura da realidade mesma. A prática não têm o certificado de conclusão do Ensino Fundamental
da alfabetização deve se dar de maneira crítica em oposi- não podem sequer preencher uma ficha de recrutamento,
ção a ingênua e à astuta. Do ponto de vista crítico é tão recaindo a escolha sempre no  candidato com nível de ins-
impossível negar a natureza política do processo educativo trução mais elevado. (PROJETO, 1997, p. 3). 
quanto negar o caráter educativo do ato político. Quanto Com novas tecnologias cada vez mais sofisticadas, o
mais ganhamos esta clareza através da prática, mais per- mercado de trabalho, tanto no campo como na cidade, re-
cebemos a impossibilidade de separar a educação da po- quer trabalhadores melhor preparados. A sociedade conta
lítica e do poder. O que temos de fazer então, enquanto com  a escola para preparar esses trabalhadores. 
educadoras ou educadores, é assumir a nossa opção que é Entretanto, nosso sistema educacional não está prepa-
política, e ser coerentes com ela na prática e entender que rado para enfrentar este desafio, seja porque não consegue
não é “o discurso o que ajuíza a prática, mas a prática que atender à população, seja porque não consegue manter na
ajuíza o discurso”. Quem apenas fala e jamais ouve; quem escola os que a ela têm acesso. (PROJETO, 1997, p. 3). 
“imobiliza” o conhecimento e o transfere a estudantes, O sentimento negativo de não ter conseguido concluir
quem ouve o eco, apenas de suas próprias palavras, quem o ensino regular gera uma experiência que leva o aluno
considera petulância a classe trabalhadora reivindicar seus a formar imagens negativas de si próprio, acreditando em
direitos, não tem realmente nada que ver com a libertação sua inadequação no espaço escolar, pensando que é sua a
nem democracia, pelo contrário, quem assim atua e assim responsabilidade por essa situação. Por isso, cumpre olhar
pensa consciente ou inconsciente, ajuda a preservação das com mais atenção para esses alunos. O primeiro passo é
estruturas autoritárias. Só educadoras e educadores auto- convencer-se de que os alunos são capazes de aprender e
ritários negam a solidariedade entre o ato de educar e o de que a maioria deles está nessa situação por práticas de
ato de ser educado pelos educandos. É na intimidade das ensino inadequadas. Ao assumir uma proposta pedagógi-
consciências, movida pela bondade dos corações, que o ca significativa e relevante são condições básicas de suces-
mundo se refaz, e, já que a educação modela as almas e so: incentivar o conhecimento, o autoconceito positivo e
recria corações ela é a alavanca das mudanças sociais. a   confiança  na própria capacidade de aprender,  desses
Neste ensaio, ele apresenta vários textos dos Cadernos jovens e adultos ao retornar à escola. 

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BIBLIOGRAFIA

Esses   jovens e adultos são em sua grande maioria Pelas respostas dadas,(à pesquisa) de maneira geral,
constituídos por trabalhadores e trabalhadoras, por de- os alunos desejam uma educação formativa ampla. Assim,
sempregados e por indivíduos não escolarizados. São postula-se  uma formação que una elementos de natureza
jovens e adultos que já tiveram passagem em escolas re- política a elementos de natureza pedagógica. 
gulares, porém com resultados fracassados, conforme se Esses alunos   querem aprender a gerenciar sua inter-
analisou anteriormente. Encontram-se em situação de ex- venção enquanto cidadão (planejar, executar e avaliar ações
clusão devido a diversos fatores como idade, dificuldades da sua vida), querem ter claros os conteúdos de Português,
de conciliação de horários de trabalho, situação financeira Matemática, Ciências, História, Geografia, mas também de-
e outros fatores.  sejam enveredar no mundo das tecnologias e, acima de
Partindo do principio de que o aluno é capaz de tudo, adquirir autoconfiança e auto-estima como requisitos
aprender e de que a interação (professor-aluno) é fator básicos para sua formação. 
fundamental na construção do conhecimento,  faz-se ne- Mediante o quadro analisado, percebe-se que esse pú-
blico resulta de confrontos existentes nos espaços sociocul-
cessário prever uma dinâmica de atuação pedagógica que
turais, porém apresentam expectativas quanto à busca de
valorize os conhecimentos que os alunos já possuem, pro-
alternativas criativas para a construção do novo, seja a nível
movendo o avanço para níveis mais elaborados através do político, social ou econômico. 
questionamento, da busca de informações e do confronto Conforme PINTO (2000, p. 85)
de idéias. A apropriação do conhecimento é um processo É evidente que se necessita aprender os elementos bási-
dinâmico, e acreditar que todos são capazes de aprender cos do saber letrado, as primeiras letras, a escrita, os rudimen-
implica um novo redimensionamento para a prática peda- tos da matemática, mas este saber, ainda que fundamental
gógica. A proposta deve atender ao ritmo de cada aluno, e indispensável, só vale per seu significado instrumental, por
sem atribuição de rótulos ou classificações prévias, com aquilo que possibilita ao educando para chegar a saber . É o
um olhar  otimista, com respeito a seus diferentes modos saber para chegar a saber, para o mais saber.
de vida, aos conhecimentos que trazem, estimulando-os Além da formação de base (Ensino Fundamental e En-
a vencer obstáculos de modo confiante, valorizando seus sino Médio) e da formação específica para o aprimoramen-
progressos e promovendo sua auto-estima.  to pessoal e profissional,  há que estar clara a relevância
A educação é um processo de construção pessoal e da  formação  contínua e permanente, tendo em vista o
social que se dá na interação com o mundo concreto, na mundo moderno, quando os  conhecimentos precisam ser
história, no cotidiano, nas relações que o homem estabe- modificados, reelaborados, e quando o desenvolvimento
lece com a natureza e com a sociedade e suas estruturas tecnológico, político e social deixou de ser um complemen-
políticas, sociais e econômicas: “Educação é o caminho to passando a basear-se na estrutura da própria vida. Daí a
educação de adultos ser uma necessidade. A formação do
pelo qual homens e mulheres podem chegar a tonar-se
jovem e o adulto é  a efetivação da própria vida em ação. 
conscientes de si próprios, de sua forma de atuar e de
Para tanto, o professor precisa perceber essa realidade e
pensar, quando desenvolvem todas as suas capacidades pesquisar, aprofundar-se teoricamente. Educação de jovens
considerando não apenas eles mesmos, mas também as e adultos, pois, deve se centrar no processo e não no pro-
necessidades dos demais.” (FREIRE, p. 40)  duto, sendo o próprio adulto um agente de sua formação.
Há que se garantir espaço para que o aluno possa am- O professor deve ensinar. É preciso fazê-lo. Só que ensi-
pliar seus conhecimentos e ultrapassar a visão assisten- nar não é transmitir conhecimento. Para que o ato de ensinar
cialista, buscando na educação, alternativas que o prepare se constitua com tal, é preciso que o ato de aprender seja pre-
integralmente, para que se torne um ser social capaz de cedido do, ou concomitante ao, ato de aprender o conteúdo
interagir no meio em que vive. O professor é muito im- ou o objeto cognoscível, com que o educando se torna produ-
portante para os alunos e a maneira como se relaciona tor também do conhecimento que lhe foi ensinado. (FREIRE,
com eles é fundamental, como foi  colocado pelos alunos 1993, p. 188)
através  da pesquisa realizada. Analisando os pontos levantados pelos professores da
Temos claro que o ser humano é um ser inacabado e instituição pesquisada, percebe-se a carência de prepa-
incompleto buscando continuamente seu aperfeiçoamen- ro para enfrentar  as novas tecnologias, e essa é uma das
to. ”Quem não é capaz de amar os seres inacabados não maiores solicitações dos alunos. 
pode educar”.  FREIRE (apud TRANJAN, 1999, p. 96)  O impacto dessa verdadeira revolução tecnológica
O adulto é um sujeito em processo histórico, tem ca- sobre as instituições educacionais tem se mostrado avas-
salador. A tecnologia, que inclui desde os modernos ele-
racterísticas próprias e diferencia-se da criança e do ado-
trodomésticos, até equipamentos mais sofisticados, altera
lescente. No processo de formação desse ser, é impossível
comportamentos e interfere na forma de relacionamento
não considerar primeiramente a história de cada um e, a do homem consigo mesmo, com seu meio físico e com seu
partir daí, buscar ações para seu desenvolvimento.  meio social – a intermediação objeto/sujeito torna-se cada
Portanto, nenhum programa de formação pode ser vez mais complexa. A escola revela sua nova face para a
oferecido a pessoas com histórias diferentes e, conse- desestruturação dada a fragilidade de alguns elementos
quentemente, com interesse e motivações diversas. Pes- que constituem seu alicerce, ou seja, a coerência entre sua
soas diferentes exigem programas, métodos e conteúdos prática pedagógica, a qualificação do corpo docente, as di-
adequados ao seu grau de maturidade.  ficuldades de ordem financeira e outras. 

87
BIBLIOGRAFIA

Dessa forma, as instituições  escolares , diante do de-  É importante que os cursos de formação de profes-
safio da modernidade, terão um novo caminho a percorrer.  sores desenvolvam  no futuro profissional a capacidade de
Esse processo requer mudanças e o maior entrave para utilizar procedimentos, e de criar alternativas que possi-
que elas se realizem são as práticas tradicionais arraigadas bilitem uma  melhor atuação com o aluno da classe tra-
(tradições, hábitos). Romper com esses traços é um grande balhadora na escola e   seu engajamento no projeto de
desafio. Uma instituição que valoriza seu capital intelectual emancipação dessa classe. 
está aberta ao processo de transformação e à geração de Também precisam ser promovidas pesquisas, ações,
novos conhecimentos. Mudanças exigem aprendizado e debates, que se voltem para o aprofundamento da edu-
aprender sem direção é uma tarefa inglória. Conhecimento cação de jovens e adultos, a fim de proporcionarem vi-
pressupõe ação.   vências nesse tipo de ensino e de tornarem o futuro pro-
Uma instituição não cria conhecimentos sozinha (NO- fissional capaz  de lidar com a cultura e experiência do
NAKA, 1997). O conhecimento é criado por pessoas, por- aluno das camadas menos favorecidas, tomando-as como
tanto uma organização precisa de gente para criar e gente ponto de partida de sua prática. 
trabalhando em equipe. Um programa que pretende atin- A escola não é a única responsável pela produção
gir seus objetivos não pode prescindir da capacitação dos e difusão do saber, é necessário que se busque integrar
recursos humanos neles envolvidos, nem tampouco da su- ações com as demais instituições da comunidade, parce-
pervisão constante do trabalho. Exige envolvimento, criati- rias na formulação de estratégias para a educação de jo-
vidade, ousadia e sobretudo compromisso. O trabalho  há vens e adultos: universidades, igrejas, sindicatos, empre-
que ser em conjunto entre todos os envolvidos no proces- sas; e com os equipamentos culturais públicos, tais como
so educativo, respeitando-se os interesses individuais e os museus, bibliotecas... 
ritmos diversificados de cada educando.  O estabelecimento de pontes entre as salas de aula e
A educação acontece na escola e fora dela. A educação os diferentes agentes de produção e difusão cultural são
será eficaz desde que  professores e alunos tomem cons- necessários, pois “ não se faz mais sentido que qualquer
ciência do grande alcance dos processos informais de edu- instituição educacional se isole e se constitua em univer-
cação e que os levem em consideração ao desenvolverem so sagrado, separado, propondo também uma cultura
suas atividades, buscando a coerência entre o dizer e o fa-
também sagrada e distante da experiência de vida de seu
zer, entre o pensar e o agir, entre o sentir e o falar. 
aluno”( BOURDIEU,  1985). Assim, precisa-se repensar a
Assim, conforme diz PRETTO (1999), “cada escola pode
metodologia, os conteúdos e as novas postura frente a
transformar-se em um centro de produção de cultura e co-
essa modalidade de ensino. 
nhecimento e não simplesmente num espaço de reprodu-
‘O país não pode crescer, não pode propiciar condi-
ção pura e simples de um saber sistematizado e dominante.” 
ções de exercícios de cidadania, de formar a sociedade
Segundo PINTO, (2000, p.73) “ o ponto de partida do
civil, de equipar a população de instrumentos de parti-
processo formal da instrução não é a ignorância do edu-
cipação social e política sem que se efetive a escolariza-
cando e sim, ao contrário, aquilo que ele sabe, a diferença
de procedimento pedagógico se origina da diferença do ção básica e se qualifique a escola para isso” (LIBÂNIO,
acervo cultural que possuem a criança e o adulto no mo- 2002, p.205 ). Além disso, esse educador deverá atuar em
mento em que começam a ser instruídos pela escola.” As- espaços extra escolar, estabelecendo novas relações pe-
sim, os professores que ingressam na educação de jovens dagógicas e formas de trabalhar os conteúdos de suas
e adultos precisam refletir com relação aos pressupostos aulas, somando com isso as questões que nos são colo-
teóricos metodológicos e  o compromisso com a educação cadas pelo contexto sócio- político e cultural, do inicio do
de jovens e adultos e à postura de pesquisador.  século XXI, principalmente, as questões relacionadas ao
Conforme ROMÃO (2000, p. 69),  “ para não ficar ape- mundo do trabalho.  Assim, temos um desafio ao traba-
nas no cotejo dos conteúdos escolares e os códigos cultu- lhar com a educação de jovens e adultos num mundo de
rais locais e sociais, necessita-se entender a reflexão sobre constantes mudanças. 
todas as relações do professor com o aluno.”   Se a pedagogia “ é o campo do conhecimento que se
A pretensão em levantar algumas questões  da edu- ocupa do estudo sistemático da educação, isto é do ato
cação de jovens e adultos e também refletir a respeito dos  educativo, da prática educativa concreta que se realiza na
envolvidos no preparo da formação de professores que sociedade como um dos ingredientes básicos da configu-
atuam com esses alunos, foi para que todos  possam dis- ração da atividade humana”, segundo LIBÂNEO (2002, p.
cutir criteriosamente os limites e as possibilidades da ação 30 ), é necessário que todos os envolvidos no preparo de
desse professor.   professores discutam essas questões. 
GIROUX  (apud ALVES, 2001, p.48), propõe em síntese: O campo da Pedagogia compreende os elementos da
que os currículos dos cursos que preparam professores ação educativa e sua contextualização na relação entre os
contribuam para que eles se assumam não como intelec- elementos da prática educativa : o sujeito que se educa, o
tuais tradicionais, conservadores, mas sim como intelectuais educador, o saber e os contextos em que ocorrem. Nesse
transformadores(...) capazes de trabalhar com grupos que se sentido, a Pedagogia  assume tarefas de orientar a práti-
propõe a resistir às intenções de opressão e dominação pre- ca educativa de modo consciente e intencional desenvol-
sente na escola e na sociedade e a participarem de uma luta vendo condições metodológicas para viabilizar a atividade
coletiva por emancipação.  pedagógica.  

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BIBLIOGRAFIA

Entende-se que a Pedagogia, além dos processos edu- do um trabalho de análise. Esse aprofundamento é rico e
cativos, métodos, maneiras de ensinar tem um significado muitas vezes necessário, mas é preciso ter consciência de
mais amplo, sendo um campo do conhecimento sobre a que estamos fazendo um “recorte” do nosso objeto de es-
problemática educacional em sua totalidade e historicida- tudo. A visão obtida é necessariamente fragmentada
de e, ao mesmo tempo, uma diretriz orientadora da ação Com a interdisciplinaridade questiona-se essa segmen-
educativa. Assim, a formação do profissional da educação tação dos diferentes campos de conhecimento. Buscam-se,
em Pedagogia requer uma análise rigorosa da organização por isso, os possíveis pontos de convergência entre as vá-
das novas bases sociais, políticas, econômicas e éticas da rias áreas e a sua abordagem conjunta, propiciando uma
realidade educacional, formando um profissional qualifi- relação epistemológica entre as disciplinas. Com ela aproxi-
cado para atuar  em vários campos educativos, a fim de mamo-nos com mais propriedade dos fenômenos naturais
atender às demandas sociais.  e sociais, que são normalmente complexos e irredutíveis ao
A construção da Pedagogia como ciência crítica com- conhecimento obtido quando são estudados por meio de
promissada com a práxis transformadora  apresenta-se uma única disciplina. As interconexões que acontecem nas
como um desafio. Seremos capazes de construir um pro- disciplinas são causa e efeito da interdisciplinaridade.
jeto abrangente voltado à possibilidade de emancipação e Existem temas cujo estudo exige uma abordagem par-
libertação dos homens ou ainda isto é uma utopia?  ticularmente ampla e diversificada. Alguns deles foram
Espera-se que o presente trabalho possa ter colabora- inseridos nos parâmetros curriculares nacionais, que os
do para reflexão e proposição da prática pedagógica para denomina Temas Transversais e os caracteriza como temas
a construção do conhecimento dos jovens e adultos, pois que “tratam de processos que estão sendo intensamente
acredita-se que só assim homens e mulheres, independen- vividos pela sociedade, pelas comunidades, pelas famílias,
tes de classe social, etnia, filiação política, terão garantido pelos alunos e educadores em seu cotidiano. São debati-
o direito de se educarem e de  se constituirem como uma dos em diferentes espaços sociais, em busca de soluções
massa crítica comprometida com sua época. e de alternativas, confrontando posicionamentos diversos
Não se muda a história sem o conhecimento, mas tem- tanto em relação a intervenção no âmbito social mais am-
-se que educar o conhecimento e as pessoas para torna- plo quanto a atuação pessoal. São questões urgentes que
interrogam sobre a vida humana, sobre a realidade que
rem-se sujeitos da sua história e intervir no mercado como
está sendo construída e que demandam transformações
sujeitos, e não como povo sujeitado, massa de manobra da
macrossociais e também de atitudes pessoais, exigindo,
lógica interna da razão econômica. O mercado precisa estar
portanto, ensino e aprendizagem de conteúdos relativos a
submetido à cidadania. (GADOTTI, 2000).
essas duas dimensões”. Estes temas envolvem um aprender
Fonte: http://www.boaaula.com.br/iolanda/producao/
sobre a realidade, na realidade e da realidade, destinando-
me/pubonline/marleneart.html
-se também a um intervir na realidade para transformá-
-la. Outra de suas características é que abrem espaço para
saberes extraescolares. Na verdade, os temas transversais
GARCIA, LENISE APARECIDA prestam-se de modo muito especial para levar à prática a
MARTINS. TRANSVERSALIDADE E concepção de formação integral da pessoa.
INTERDISCIPLINARIDADE. Considera-se a transversalidade como o modo ade-
quado para o tratamento destes temas. Eles não devem
constituir uma disciplina, mas permear toda a prática edu-
cativa. Exigem um trabalho sistemático, contínuo, abran-
TRANSVERSALIDADE E INTERDISCIPLINARIDADE. gente e integrado no decorrer de toda a educação.
Na verdade, estes temas sempre estão presentes, pois
A transversalidade e a interdisciplinaridade são modos se não o estiverem explicitamente estarão implicitamente.
de se trabalhar o conhecimento que buscam uma reinte- Tomemos como exemplo a ética. Não falar de aspectos
gração de aspectos que ficaram isolados uns dos outros éticos, em muitos casos, é uma omissão que por si só re-
pelo tratamento disciplinar. Com isso, busca-se conseguir presenta uma postura. Não apenas por palavras, mas por
uma visão mais ampla e adequada da realidade, que tantas ações, a escola sempre fornece aos alunos uma formação
vezes aparece fragmentada pelos meios de que dispomos (quem sabe uma deformação?) ética. Podemos dizer o
para conhecê-la e não porque o seja em si mesma. mesmo com relação ao meio ambiente; o próprio trata-
mento dado ao ambiente escolar caracteriza a visão das
Vamos exemplificar lançando mão de uma compara- pessoas que ali trabalham e pode ser parte importante na
ção: formação dos alunos sobre essa questão.
Quando a luz branca passa por um prisma, divide-se Como os temas transversais não constituem uma disci-
em diferentes cores (as cores do arco-íris). Ao estudarmos plina, seus objetivos e conteúdos devem estar inseridos em
alguma realidade a fim de conhecê-la muitas vezes torna- diferentes momentos de cada uma das disciplinas. Vão sen-
-se necessário fazer um trabalho semelhante. Enfocamos do trabalhados em uma e em outra, de diferentes modos.
por diferentes ângulos, com a metodologia e os objetivos Interdisciplinaridade e transversalidade alimentam-se
próprios das Ciências Naturais, da História, da Geografia... mutuamente, pois para trabalhar os temas transversais
Podemos assim aprofundar em diferentes parcelas, fazen- adequadamente não se pode ter uma perspectiva discipli-

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BIBLIOGRAFIA

nar rígida. Um modo particularmente eficiente de se elabo- 3. Não aparecerão “espontaneamente”, com facili-
rar os programas de ensino é fazer dos temas transversais dade, principalmente no começo.
um eixo unificador, em torno do qual organizam-se as dis- O modo e o momento em que serão tratados os te-
ciplinas. Todas se voltam para eles como para um centro, mas transversais deve ser cuidadosamente programado em
estruturando os seus próprios conteúdos sob o prisma dos conjunto pelas diversas disciplinas. É preciso lembrar que
temas transversais. cada um deles tem os seus próprios objetivos educacionais
As disciplinas passam, então, a girar sobre esse eixo. De a serem atingidos, ou seja, não se trata apenas de tocar um
certo modo podemos dizer que temos então um fenôme- determinado tema, mas também de verificar se será total-
no similar ao observado na Física com o disco de Newton: mente contemplado ao longo do programa de ensino, po-
neste, a mistura das cores recupera a luz branca; no nosso dendo-se prever o cumprimento dos objetivos.
caso, a total interação entre as disciplinas faz com que pos-
samos recuperar adequadamente a realidade, superando a 4. “O que é de todos não é de ninguém.”
fragmentação e tendo a visão do todo. Temos essa experiência, infelizmente, com a maior parte
Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fun- das coisas que são “públicas”. Se não se definem encarrega-
damental preveem seis Temas Transversais a serem traba- dos para uma determinada função, porque todos deveriam
lhados durante todo o processo de ensino / aprendizagem: preocupar-se com aquilo, é muito freqüente que na verdade
aquela necessidade fique a descoberto. Por isso, convém
ética, meio ambiente, saúde, trabalho e consumo, orienta-
salientar novamente que é necessário um estudo conjunto,
ção sexual e pluralidade cultural. Sejam ou não trabalhados
por parte da escola, para definir como cada disciplina irá
como um eixo unificador, tal como sugerido acima, é im-
tratar os temas transversais e verificar se eles estão sendo
portante ressaltar que:
suficientemente abordados.
Isso não exclui, naturalmente, certa flexibilidade com o
1. Os Temas Transversais não constituem uma dis- planejamento. Temas que têm tamanha relação com a vida,
ciplina à parte. com o cotidiano, certamente aparecem nos momentos mais
Isso já foi colocado, mas convém salientá-lo. Como es- inesperados e o professor deve estar preparado para não
tamos acostumados a trabalhar em uma perspectiva disci- desperdiçar ocasiões que muitas vezes são preciosas.
plinar, a tendência muitas vezes será ter essa visão também
para os Temas Transversais. Entretanto, o próprio destes Fonte
temas é exatamente permear toda a prática educativa. GARCIA, Lenise Aparecida Martins. Transversalidade e
Usemos novamente um exemplo: se pensarmos que Interdisciplinaridade. Disponível em:
estamos estudando um bolo, e que cada fatia do bolo cor- <http://smeduquedecaxias.rj.gov.br/nead/Biblioteca/
responde a uma disciplina, o tema transversal irá aparecer Forma%C3%A7%C3%A3o%20Continuada/Artigos%20Di-
como um ingrediente totalmente diluído na massa, e não versos/garcia-transversalidadeprint.pdf>
como uma fatia a mais.

2. Devem ser trabalhados de modo coordenado e


não como um intruso nas aulas. HOFFMAN, JUSSARA. AVALIAÇÃO
O risco de que um tema transversal apareça como um MEDIADORA: UMA RELAÇÃO DIALÓGICA NA
“intruso” é grande. Não sendo algo diretamente pertinente CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO IN: SE/
às disciplinas e principalmente não havendo o hábito do SP/FDE. REVISTA IDEIAS Nº 22, PÁG. 51 A 59.
professor de ocupar-se dele, pode acontecer que seja visto
não como um enfoque a ser colocado ao longo de toda
a aprendizagem, mas como algo que aparece esporadica-
mente, interrompendo as demais atividades. O paradigma de avaliação que se opõe ao paradigma
sentencioso, classificatório é o que denomino de “avaliação
Seguindo no exemplo do bolo, o tema transversal não
mediadora”.
pode ser um caroço que se encontra repentinamente e no
“O que pretendo introduzir neste texto é a perspecti-
qual corremos o risco de quebrar um dente... No máximo,
va da ação avaliativa como uma das mediações pela qual
pode aparecer como uma uva passa ou uma fruta cristali-
se encorajaria a reorganização do saber. Ação, movimento,
zada, algo que percebemos ser diferente, mas que se har- provocação, na tentativa de reciprocidade intelectual entre
moniza com o restante do bolo. Entretanto, quanto mais os elementos da ação educativa. Professor e aluno buscan-
diluído ele estiver na massa, melhor. do coordenar seus pontos de vista, trocando ideias, reorga-
Por exemplo, não faz sentido que um professor de His- nizando-as. “(HOFFMANN, 1991, p. 67)
tória, ou de Biologia, de repente interrompa o seu assunto Tal paradigma pretende opor-se ao modelo do “trans-
para dizer: agora vamos tratar de ética. Mas, sempre que mitir-verificar-registrar” e evoluir no sentido de uma ação
estiver fazendo uma análise histórica, o professor terá a avaliativa reflexiva e desafiadora do educador em termos de
preocupação de abordar os aspectos éticos envolvidos; ao contribuir, elucidar, favorecer a troca de ideias entre e com
dar uma aula sobre problemas ambientais ou sobre biotec- seus alunos, num movimento de superação do saber trans-
nologia, haverá também um enfoque ético. mitido a uma produção de saber enriquecido, construído a
partir da compreensão dos fenômenos estudados.

90
BIBLIOGRAFIA

E, de fato, o que se observa na investigação da prática avaliativa dos três graus de ensino é, ao contrário de uma
evolução, um fortalecimento da prática de julgamento de resultados alcançados pelo aluno e definidos como ideais pelo
professor.
Alguns fatores parecem contribuir para a manutenção de tal concepção: a autonomia didática dos professores, decor-
rente de suas especializações em determinadas disciplinas e/ou áreas de pesquisa, que dificulta a articulação necessária
entre os docentes, a ponto de suscitar uma reflexão conjunta sobre essa questão; a estrutura curricular, por exemplo, do 39
Grau, com o regimento de matrícula por disciplinas que, desobrigando à seriação conjunta dos alunos, impede os professo-
res de avaliarem a trajetória do estudante em seu curso superior, em termos do acompanhamento efetivo de seus avanços
e de suas dificuldades; além desses, a natureza da formação didática dos professores, que se revela, na maioria das vezes,
por um quadro de ausência absoluta de aprofundamento teórico em avaliação educacional.
Tomando ainda mais grave a postura conservadora dos professores, observamos que a avaliação é um fenômeno
com características seriamente reprodutivistas, ou seja, a prática que se instala nos cursos de Magistério e Licenciatura é o
modelo que vem a ser seguido no 1° e 2° Graus. Muito mais forte do que qualquer influência teórica que o aluno desses
cursos possa sofrer, a prática vivida por ele enquanto estudante passa a ser modelo seguido quando professor. O que tal
fenômeno provoca é, muitas vazes, a reprodução de práticas avaliativas ora permissivas (a partir de cursos de formação que
raramente reprovam os estudantes), ora reprovativas (a partir de cursos, como os de Matemática, que apresentam abusivos
índices de reprovação nas disciplinas).
Muitos professores nem mesmo são conscientes da reprodução de um modelo, agindo sem questionamento, sem
reflexão, a respeito do significado da avaliação na Escola.
Aponto, então, algumas perguntas relacionadas à complexidade dessa questão:
• Como superar o descrédito de muitos professores relativo a sua perspectiva de avaliação enquanto ação mediadora?
• Quais serão as questões emergências na discussão dessa perspectiva, levando-se em conta a superficialidade da for-
mação dos professores nessa área?
• Em que medida prevalece uma visão de conhecimento positivista fortalecedora da concepção classificatória da ava-
liação?
O que se pretende é refletir sobre as origens desse descrédito e sobre o impacto que tal postura pode causar nas
relações que se estabelecem entre professor e aluno e em todas as estruturas do ensino.

“Uma vez estabelecidos os procedimentos de avaliação, os instrumentos e as medidas, a atribuição de conceitos e sua
aplicação, ou seja, as classificações segundo determinados padrões, passam (esses procedimentos) a ser vistos como ativi-
dades técnicas e neutras ao invés de formas interpretativas e expressivas das relações sociais que estão incorporadas dentro
da própria idéia de avaliação.” (BARBOSA et alii, p. 2)
Considero reveladoras de tal postura de resistência dos professores algumas perguntas formuladas por eles em semi-
nários e encontros para discussão do tema Avaliação.
Algumas questões, repetidamente formuladas, serão ponto de partida dessa análise:
• Não estaremos nós, professores, sendo responsabilizados pelo fracasso de alunos desinteressados e desatentos?
• Como é possível alterar nossa prática, considerando o número de alunos com que trabalhamos e o reduzido tempo
em que permanecemos com as turmas?
• Não é necessário, nessa proposta, uma enorme disponibilidade do professor para atendimento aos alunos?
• Em que medida formaremos um profissional competente sem uma prática avaliativa exigente e classificatória (com-
petitiva)?
• Será possível alterar o paradigma da avaliação diante das exigências burocráticas do sistema? Não se deveria começar
por alterá-las?
Pretendo, inicialmente, analisar o conteúdo das perguntas que vêm sendo formuladas pelos professores e refletir so-
bre suas concepções. É preciso dizer que serão apontadas algumas hipóteses sobre concepções implícitas às perguntas
formuladas como tentativa preliminar de análise do seu significado. Outras hipóteses, sem dúvida, poderão ser sugeridas,
ampliando-se essa discussão.

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BIBLIOGRAFIA

A primeira pergunta e a hipótese apontada poderiam introduzir a análise da relação entre a concepção de avaliação
e a visão de conhecimento do professor. Ou seja: em que medida o repensar sobre a avaliação exigiria investigar como o
professor concebe a relação sujeito-objeto na produção de conhecimento?
Se concebe a aprendizagem do ponto de vista comportamentalista, o professor defines como uma modificação de
comportamento produzida por alguém que ensina em alguém que aprende. O conhecimento do aluno vem dos objetos
e cabe ao professor organizar os estímulos com os quais o aluno entrará em contato para aprender. A prática pedagógica
consistirá, então, na transmissão clara e explícita dos conteúdos pelo professor, apresentando exemplos preferentemente
concretos (organização de estímulos). Essa situação, por si só, promoverá a aprendizagem, desde que o aluno entre em
contato com tais estímulos, esteja atento às situações. Assim, se o professor oferecer explicações claras, textos explicativos
consistentes e organizar o ambiente pedagógico, o aluno aprenderá, exceto se não estiver presente, ou não estiver atento
às explicações, ou não memorizar os dados transmitidos pelo professor, ou não cumprir as tarefas de leitura solicitadas.
A hipótese que anuncio é que uma tal visão de conhecimento positivista vincula-se a uma prática avaliativa de obser-
vação e registro de dados.
Assim como supervaloriza as informações que transmite ao aluno e exige que ele permaneça alerta a tais informações,
o professor também o toma como seu objeto de conhecimento, ou seja, permanece atento aos “fatos objetivos”: o aluno
passa a ser um objeto de estudo do professor, que o capta apenas em seus atributos palpáveis, mensuráveis, observáveis.
Sua prática avaliativa revela intenções de coleta de dados em relação ao aluno, dele registrando dados precisos e fidedig-
nos.
Dessa forma, o professor não assume absolutamente a responsabilidade em relação ao fracasso do aluno. Em pri-
meiro lugar, porque representaria assumir sua incompetência na organização do trabalho pedagógico, uma apresentação
inadequada de estímulos à aprendizagem. Em segundo lugar, porque aquilo que faz geralmente se traduz em resultados
positivos. Ou seja, alguns alunos, ou a maioria, aprendem. Se a ação produz modificação de comportamentos em alguns
alunos, então o problema está nos alunos e não na ação do professor. Sem ultrapassar a visão comportamentalista de co-
nhecimento, nenhuma outra hipótese é levantada pelo professor sobre as dificuldades que os alunos apresentam, senão a
sua desatenção e desinteresse. Em terceiro lugar, porque, coerente com tal visão de conhecimento, o avaliar reduz-se, para
ele, à observação e ao registro dos resultados alcançados pelos alunos ao final de um período. Tal visão não absorve uma
perspectiva reflexiva e mediadora da avaliação.

92
BIBLIOGRAFIA

O que pretendo argumentar é que a visão comporta- O que significa que tanto o acompanhamento quanto
mentalista dos professores parece manifestar-se de forma o diálogo, assim concebidos, não conduziriam o professor,
radical em sua prática avaliativa, e é muito grave a sua resis- obrigatoriamente, a uma prática avaliativa mediadora.
tência em perceber o autoritarismo inerente a tal concep- Em uma investigação sobre o significado do termo
ção. Sem considerarem possíveis outras explicações para o acompanhar, 29 professores de 1o. Grau, dentre 32 respon-
fracasso dos estudantes que não o comprometimento deles dentes, disseram que acompanhavam os alunos todos os
(o que também é importante, mas não razão absoluta), não dias, continuamente, em todas as situações de sala de aula.
podem evoluir no sentido de dois princípios presentes a Entretanto, todos os 32 professores definiram avaliação por
uma avaliação enquanto mediação: o do acompanhamento verificação de resultados alcançados (através de enuncia-
reflexivo e o do diálogo. dos diversos). Quero dizer que se os professores disseram
Introduzindo esses princípios, estaríamos, assim, anali- acompanhar os alunos, o sentido do seu acompanhar pode
sando as concepções implícitas às seguintes perguntas dos ter sido o de observar e registrar todo o tempo o que o
professores: aluno é capaz de demonstrar.
• Como é possível alterar nossa prática, considerando o Meus estudos buscam contrapor-se a essa perceptível
número de alunos com que trabalhamos e o reduzido tem- resistência de muitos professores, hipoteticamente justifi-
po em que permanecemos com as turmas? cada por uma compreensão reducionista e positivista de
• Não é necessário, nessa proposta, uma enorme dispo- alguns princípios essenciais da avaliação mediadora.
nibilidade do professor para atendimento aos alunos? A avaliação, enquanto relação dialógica, vai conceber
o conhecimento como apropriação do saber pelo aluno e
As hipóteses que aponto dizem respeito a uma percep- também pelo professor, como ação-reflexão-ação que se
ção de que os professores estariam considerando a pers- passa na sala de aula em direção a um saber aprimorado,
pectiva de avaliação mediadora uma prática impossível, ou enriquecido, carregado de significados, de compreensão.
difícil, porque tal perspectiva exigiria deles uma relação in- Dessa forma, a avaliação passa a exigir do professor uma
tensa em tempo com seus alunos e direta, a partir de um relação epistemológica com o aluno - uma conexão en-
atendimento que se processaria individualmente e através tendida como reflexão aprofundada a respeito das formas
de uma comunicação verbal por meio de explicações, orien- como se dá a compreensão do educando sobre o objeto
tações e encaminhamentos. Tal prática seria dificultada, as- do conhecimento.
sim, pelo panorama da Escola atual: número de alunos por “O confronto que se passa na sala de aula não se passa
turma, carga horária das disciplinas, tempo disponível do entre alguém que sabe um conteúdo (o professor) e al-
professor para atendimento individual aos alunos etc. guém que não sabe (o aluno) mas entre pessoas e o pró-
É preciso investigar, então, a compreensão pelos pro- prio conteúdo, na busca de sua apropriação.” (CHAUÍ, 1980,
fessores dos termos acompanhamento e diálogo. Entendo in: WACHOWICZ, 1991, p. 42)
que ambos podem receber definições diferenciadas, con- O diálogo, entendido a partir dessa relação epistemo-
forme estiverem atrelados a uma ou a outra matriz episte- lógica, não se processa obrigatoriamente através de con-
mológica. versa enquanto comunicação verbal com o estudante. É
O termo diálogo, por exemplo, pode significar simples-
mais amplo e complexo e, até mesmo, dispensa a conversa.
mente conversa, não querendo, contudo, dizer que haja en-
“Antes de mais nada, Ire, penso que deveríamos enten-
tendimento entre as pessoas que conversam. Ora, se com-
der o diálogo’ não como uma técnica apenas que podemos
preendido dessa forma, o princípio do diálogo como linha
usar pare conseguir bons resultados. Também não podemos,
norteadora de uma avaliação mediadora pode provocar
não devemos entender o diálogo como uma tática que usa-
um sentimento de impossibilidade nos professores, princi-
mos pare fazer dos alunos nossos amigos. Isso faria do diálo-
palmente nos de 2o. e 3o. Graus. Isto porque é impossível
go uma técnica pare a manipulação, em vez de iluminação.
haver tempo para conversar com todos os alunos de todas
Ao contrário, o diálogo deve ser entendido como algo que
as turmas, sobre todas as questões que levantam. Suspeito
daí que alguns professores considerariam possível tal práti- faz parte da própria natureza histórica dos seres humanos.
ca apenas no 1° Grau, nas séries iniciais por exemplo, pelo É parte de nosso progresso histórico, do caminho pare nos
contato permanente dos professores com suas crianças. tomarmos seres humanos. (...) o diálogo é o momento em
Da mesma forma, o significado do termo acompanhar que os humanos se encontrem pare refletir sobre sua rea-
também pode ser o de estar junto a, caminhar junto de. E lidade tal como a fazem e re-fazem”. (SHOR, FREIRE, 1986,
isto exigiria igualmente do professor maior tempo com seus p. 122-123)
alunos. Em que medida o professor reflete sobre as tarefas
Estes dois termos, atrelados a uma visão de conheci- dos seus alunos? Como se dá tal reflexão? Percebe-se que
mento positivista, podem estar sendo utilizados de forma as tarefas produzidas pelos alunos são solicitadas apenas
reducionista. Através do diálogo, entendido como momen- ao final dos períodos letivos. Qual o significado desse pro-
to de conversa com os alunos, o professor despertaria o cedimento? É possível encaminhar o aluno a uma reflexão
interesse e a atenção pelo conteúdo a ser transmitido. O crítica sobre seus posicionamentos, após concluídos os
acompanhamento significaria estar junto aos alunos, em períodos? Justificam-se trabalhos, provas e relatórios que
todos os momentos possíveis, para observar passo a passo jamais serão discutidos ou analisados em conjunto pelo
seus resultados individuais. educador e educando?

93
BIBLIOGRAFIA

“Como bem o expressa P. Meirieu, a aprendizagem supõe duas exigências complementares: é preciso que o mestre se
adapte ao aluno, se faça epistemólogo de sua inteligência, estando atento ás eventualidades de sua história pessoal, e é
precisamente porque o mestra terá gasto tempo para isso que ele estará à altura de confrontar o aluno com a alteridade, de
ajudá-lo a se superar.” (ASTOLFI, 1990, p. 87-88)
Se o aluno é considerado um receptor passivo dos conteúdos que o docente sistematiza, suas falhas, seus argumentos
incompletos e inconsistentes não são considerados senão algo indesejável e digno de um dado de reprovação. Contraria-
mente, se introduzimos a problemática do erro numa perspectiva dialógica e construtivista, então o erro é fecundo e positi-
vo, um elemento fundamental à produção de conhecimento pelo ser humano. A opção epistemológica está em corrigir ou
refletir sobre a tarefa do aluno. Corrigir para ver se aprendeu reflete o paradigma positivista da avaliação. Refletir a respeito
da produção de conhecimento do aluno para encaminha-lo à superação, ao enriquecimento do saber significa desenvolver
uma ação avaliativa mediadora.
O termo acompanhamento, conforme o entendermos, complementa ou não esse significado. Acompanhar pode ser
definido por favorecer, e não simplesmente por estar junto a. Ou seja, o acompanhamento do processo de construção de
conhecimento implica favorecer o desenvolvimento do aluno, orientá-lo nas tarefas, oferecer-lhe novas leituras ou explica-
ções, sugerir-lhe investigações, proporcionar-lhe vivências enriquecedoras e favorecedoras à sua ampliação do saber. Não
significa acompanhar todas as suas ações e tarefas para dizer que está ou não apto em determinada matéria. Significa,
sim, responsabilizar-se pelo seu aprimoramento, pelo seu “ir além”. De forma alguma é uma relação puramente afetiva ou
emotiva; significa uma reflexão teórica sobre as possibilidades de abertura do aluno a novas condutas, de elaboração de
esquemas de argumentação, contra-argumentação, para o enfrentamento de novas tarefas.
O esquema a seguir delineie as possíveis relações de investigação entre as diferentes concepções sobre o aprender e o
avaliar, bem como o entendimento dos termos acompanhamento e diálogo a partir dessas concepções.

Complementando a análise das falas dos professores, restam-nos duas últimas perguntas apontadas no início deste
estudo:
• Em que medida formaremos um profissional competente sem uma prática avaliativa exigente e classificatória?
• Será possível alterar a prática avaliativa diante das exigências burocráticas do sistema? Não se deveria começar por
alterá-las?

94
BIBLIOGRAFIA

Parece-me que a concepção positivista de Educação,


aliada a uma função capitalista e liberal da sociedade, re- JÓFOLI, ZÉLIA. A CONSTRUÇÃO DO
força a prática avaliativa em sua feição de “competência”,
CONHECIMENTO: PAPEL DO EDUCADOR,
através das armas da classificação e da competição.
Os professores dizem perseguir uma “Escola de qua-
DO EDUCANDO E DA SOCIEDADE. IN:
lidade”, sendo exigentes na avaliação; no entanto, contri- EDUCAÇÃO: TEORIAS E PRÁTICAS, ANO 2,
buem sobremaneira para o afastamento de milhares de Nº 2, RECIFE: UNIVERSIDADE CATÓLICA DE
crianças e jovens da Escola e da Universidade através do PERNAMBUCO, P. 191 – 208.
fator de reprovação continuada. Escolas públicas de 1a.
Grau iniciam seu ano letivo com dez turmas de 1a. série e,
concomitantemente, com turmas únicas de 8a. série (com 1. Como se dá a construção do conhecimento?
poucos alunos). Há uma discrepância enorme entre o nú- Apesar de Piaget e Vygotsky partilharem algumas cren-
mero de escolas públicas de 1a. Grau e a oferta de vagas no ças – por exemplo, que o desenvolvimento é um processo
2°- Grau. A reprovação no vestibular, por sua vez, é maciça, dialético e que as crianças são cognitivamente ativas no
além de ocorrer um alto índice de evasão nos cursos uni- processo de imitar modelos em seu mundo social (Tudge
versitários. Esse panorama é representativo de um “ensino e Winterhoff, 1993) – eles divergem na ênfase sobre ou-
de qualidade”? As exigências avaliativas, desprovidas mui- tros aspectos. Eu gostaria de apontar e analisar três desses
tas vezes de significado quanto ao desenvolvimento efeti- aspectos divergentes e mostrar como eles fundamentam
vo das crianças e dos jovens, favorecem a manutenção de minha proposta:
uma Escola elitista e autoritária. Os pronunciamentos dos • desenvolvimento versus aprendizagem • interação
professores formam um todo vinculado e consistente em social versus interação com os objetos
torno de um mesmo significado liberal. • interação horizontal versus interação vertical.
No aprofundamento desse fenômeno, proponho a to-
mada de consciência dós educadores quanto ao sentido No primeiro aspecto, temos, por um lado, a convicção
da avaliação na Escola. Hoje é difícil até mesmo iniciar essa de Piaget de que o desenvolvimento precede a aprendiza-
discussão. gem e, por outro, a afirmação de Vygotsky de que a apren-
Muitos professores nem chegam a participar dessas dizagem pode (e deve) anteceder o desenvolvimento. Um
discussões, porque não se sentem sequer incomodados primeiro exame dos estudos Vygotskianos nos mostra que
diante desse panorama. os problemas relacionados com o processo ensino-apren-
As questões e considerações deste estudo pretendem, dizagem não podem ser resolvidos sem uma análise da re-
justamente, delinear uma investigação que julgo necessá- lação aprendizagem-desenvolvimento (Rogoff e Wertsch,
ria. Ou seja, sobre a força da relação entre concepções do 1984). Vygotsky (1988) diz que, da mesma forma que algu-
aprender e do avaliar nos três graus de ensino; uma relação mas aprendizagens podem contribuir para a transformação
que ainda não percebo em sua total complexidade, mas ou organização de outras áreas de pensamento, podem,
que se refere essencialmente ao descrédito que se esta- também, tanto seguir o processo de maturação como pre-
belece quanto a uma perspectiva de avaliação mediadora cedê-lo e mesmo acelerar seu progresso. Essa idéia revo-
devido à postura comportamentalista e conservadora dos lucionou a noção de que os processos de aprendizagem
educadores. são limitados pelo desenvolvimento biológico que, por sua
O que busco enunciar é uma necessária investigação vez, depende do processo maturacional individual e não
no que diz respeito ao significado da avaliação enquanto pode ser acelerado. Mais ainda, considera que o desen-
relação dialógica na construção do conhecimento, privi- volvimento biológico, pode ser decisivamente influenciado
legiando a feição de mediação sobre a de informação na pelo ambiente, no caso, a escola e o ensino.
avaliação do aluno e buscando a compreensão da prática A convicção de Piaget de que as crianças são como
avaliativa dos professores. cientistas, trabalhando nos materiais de seu mundo físico e
lógico-matemático para dar sentido à realidade, de forma
Fonte alguma nega sua preocupação com o papel exercido pelo
HOFFMAN, Jussara. Avaliação mediadora: uma relação meio social. Existe aqui, em minha opinião, apenas uma
dialógica na construção do conhecimento In: SE/SP/FDE. questão de ênfase. Enquanto Piaget enfatiza a interação
Revista IDEIAS nº 22, pág. 51 a 59. com os objetos, Vygotsky enfatiza a interação social.
A idade mental da criança é tradicionalmente defini-
da pelas tarefas que elas são capazes de desempenhar de
forma independente. Vygotsky chama essa capacidade de
zona de desenvolvimento real. Estendendo esse conceito
Vygotsky afirma que, mesmo que as crianças não possam
ainda desempenhar tais tarefas sozinhas algumas dessas
podem ser realizadas com a ajuda de outras pessoas. Isso
identifica sua zona de desenvolvimento potencial. Final-
mente, ele sugere que entre a zona de desenvolvimento
real (funções dominadas ou amadurecidas) e a zona de de-

95
BIBLIOGRAFIA

senvolvimento potencial (funções em processo de matu- Em seguida, eu gostaria de ir mais além, incluir a pedago-
ração) existe uma outra que ele chama de zona de desen- gia crítica de Paulo Freire nesta discussão e mostrar suas ca-
volvimento proximal. Desenvolvendo sua teoria, Vygotsky racterísticas complementares aos enfoques Piagetiano e Vy-
demonstra a efetividade da interação social no desenvolvi- gotskiano na formulação de um ensino crítico-construtivista.
mento de altas funções mentais tais como: memória volun- A compreensão do papel da educação no desenvol-
tária, atenção seletiva e pensamento lógico. Sugere, tam- vimento dos seres humanos, partilhada por Vygotsky e
bém, que a escola atue na estimulação da zona de desen- Freire, é baseada na preocupação de ambos com o desen-
volvimento proximal, pondo em movimento processos de volvimento integral das pessoas, na filosofia marxista, no
desenvolvimento interno que seriam desencadeados pela enfoque construtivista, na importância do contexto social e
interação da criança com outras pessoas de seu meio. Uma na firme crença na natureza dos seres humanos.
vez internalizados, esses atos se incorporariam ao processo Tudge (1990: 157) – um forte Vygotskiano escreve:
de desenvolvimento da criança. A colaboração com outras pessoas seja um adulto ou um
Seguindo essa linha de raciocínio, o aspecto mais re- colega mais adiantado, dentro da zona de desenvolvimento
levante da aprendizagem escolar parece ser o fato de criar proximal, conduz ao desenvolvimento dentro de parâmetros
zonas de desenvolvimento proximal. culturalmente apropriados. Esta concepção não é teleológi-
Inagaki e Hatano (1983) sugerem um modelo que tenta ca no sentido de algum ponto final universal de desenvol-
sintetizar as contribuições de Vygotsky e Piaget, analisando vimento, mas pode ser, em um sentido mais relativo, que
o papel das interações sociais entre os alunos (interações o mundo social preexistente, internalizado no adulto ou no
horizontais) no processo de aprendizagem. Eles conside- colega mais adiantado, é o objetivo para o qual o desenvol-
ram que a integração do conhecimento é mais forte quan- vimento conduz.
do as crianças são instigadas a defender seu ponto de vis- A citação acima mostra como eu vejo a convergência
ta. Isto acontece mais naturalmente quando elas tentam das ideias de Freire e Vygotsky acerca de direção. Ambos
convencer seus colegas. Elas também tendem a ser mais rejeitam a idéia de não diretividade no ensino. Para eles, o
críticas quando discutindo com seus pares que com os pro- processo de aprendizagem deve ser conduzido pelo pro-
fessores, por aceitarem mais passivamente a opinião dos fessor visando a atingir os alvos desejados. Em ambos os
adultos. casos, os alvos devem convergir para o desenvolvimento
Esse estudo propõe a aquisição de conhecimento inte- integral da pessoa, seja num contexto de opressão – adul-
grado através da discussão em sala de aula e tenta ampliar tos analfabetos – ou num contexto de deficiência – crianças
a participação do adulto em mais do que simplesmente or- surdas. Quando o educador assume que os alunos não po-
ganizar condições para o trabalho dos alunos. É sugerido dem aprender algum tópico ou habilidade, seja porque não
que os professores deveriam adotar, quando necessário, o estão completamente maduros para essa aprendizagem ou
papel de um colega mais experiente, ajudando os alunos a porque são deficientes, a tendência pode ser negligenciar
superar impasses que surgem durante as discussões, dan- esses alunos. Isso foi observado por Schneider (1974), ao
do exemplos (ou contraexemplos) que estimulem o pen- estudar o aluno excepcional ou atrasados especiais, por
samento. Cunha (1989), quando sugere que a deficiência pode ser
Hatano ataca a rígida divisão entre construção indivi- produzida ou reforçada pela escola, e por Tudge (1990:
dual e social do conhecimento ao enfatizar as vantagens da 157-158).
adoção de uma postura mais flexível: Vygotsky (1988:100) menciona que quando crianças
Arguir que o conhecimento é individualmente cons- mentalmente retardadas não são expostas ao raciocínio
truído não é ignorar o papel das outras pessoas no pro- abstrato durante sua escolarização (porque se supõe que
cesso de construção. Similarmente, enfatizar o papel das são capazes apenas de raciocinar concretamente), o resul-
interações sociais e/ou com os objetos na construção do tado pode ser a supressão dos rudimentos de qualquer ca-
conhecimento, não desmerece a crucial importância da pacidade de abstração que tal criança por ventura possua.
orientação a ser dada pelo professor (Hatano, 1993: 163).
Dessa forma, reforça a importância do papel do profes- 2. Como pode o professor facilitar a construção do
sor e do contexto social na construção do conhecimento conhecimento?
pelo aluno. No trabalho de Vygotsky, a dialética da mudan- Dentro de um enfoque construtivista é dever do pro-
ça é clara: as atividades na sala de aula são influenciadas fessor assegurar um ambiente dentro do qual os alunos
pela sociedade, mas, ao mesmo tempo, podem, também, possam reconhecer e refletir sobre suas próprias ideias;
influenciá-la. Como conclusão Hatano escreve: aceitar que outras pessoas expressem pontos de vista dife-
Se nós queremos estabelecer uma concepção ou teoria rentes dos seus, mas igualmente válidos e possam avaliar
de aquisição de conhecimento geralmente aceita, devería- a utilidade dessas ideias em comparação com as teorias
mos estimular o diálogo (ou o “poliálogo”) entre as teorias apresentadas pelo professor. De fato, desenvolver o res-
ou programas de pesquisa. Esta prática pode nos conduzir peito pelos outros e a capacidade de dialogar é um dos
ao fortalecimento de uma teoria pela incorporação de in- aspectos fundamentais do pensamento Freireano (Taylor,
sights de uma outra o que pode algumas vezes ser consi- 1993). Assim, é importante para as crianças discutir ideias
derado problemático. (Hatano, 1993: 163-164). em todas as lições. Pensar sobre as próprias ideias ajuda
Esse problema pode, no entanto, ser contornado, se os alunos a se tornarem conscientes de suas concepções
aqueles insights forem harmoniosamente integrados den- alternativas (Driver et al., 1994) ou ideias informais (Black
tro da teoria Vygotskiana. e Lucas, 1993).

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BIBLIOGRAFIA

Nesse enfoque, os professores deveriam também es- 3. Diferenças entre o ensino tradicional e o ensino
timular os alunos a refletirem sobre suas próprias ideias – construtivista
encorajando-os a compararem-nas com o conhecimento Algumas virtudes, de grande importância para os edu-
cientificamente aceito – e procurarem estabelecer um elo cadores, estão presentes numa prática de ensino tradicio-
entre esses dois conhecimentos. Essa comparação é impor- nal. Entretanto, existem outros aspectos a serem conside-
tante por propiciar um conflito cognitivo e, assim, ajudar os rados num enfoque construtivista de ensino. Um deles é
alunos a reestruturarem suas ideias o que pode representar a ênfase atribuída aos conhecimentos prévios dos alunos
um salto qualitativo na sua compreensão. Essa comparação na busca de entender seus significados e dar-lhes voz. Por
também pode ajudar o aluno a desenvolver sua capacida- conhecimentos prévios eu não me refiro ao conhecimento
de de análise. Em outras palavras, espera-se que o novo aprendido em lições anteriores, mas às ideias espontâneas
conhecimento não seja aprendido mecanicamente, mas trazidas pelos alunos que são frutos de suas vivências e
ativamente construído pelo aluno, que deve assumir-se que, muitas vezes, diferem dos conceitos científicos. Essas
como o sujeito do ato de aprender. Eu gostaria também de ideias deveriam ser utilizadas como um ponto de partida
sugerir que o professor provocasse nos seus alunos o de- para a construção de um novo conhecimento na sala de
senvolvimento de uma atitude crítica que transcendesse os aula. Naturalmente, todos nós trazemos uma bagagem de
muros da escola e refletisse na sua atuação na sociedade. experiências vividas e ninguém pode ser considerado um
Estar consciente dos conceitos prévios dos alunos – recipiente vazio. Por esse motivo, os professores deveriam
que estejam em desacordo com o conhecimento científico estar atentos aos conhecimentos prévios dos alunos, visan-
– capacita os professores a planejar estratégias para recons- do a ajudá-los a tornar claras para eles próprios (e também
truí-los, utilizando contraexemplos ou situações-problema, para o professor) as crenças que trazem e a forma como
para confrontá-los. Esse confronto pode causar uma ruptu- interpretam o mundo. Seria também útil se os professores
ra no conhecimento dos alunos, provocando desequilíbrios se dispusessem a aprender com as questões colocadas pe-
(ou conflitos cognitivos) que podem impulsioná-los para los alunos. Isso não significa que professor e aluno tenham
a frente na tentativa de recuperar o equilíbrio. Entretanto, o mesmo conhecimento científico, mas os professores de-
existe também a possibilidade de que o processo de iden-
veriam ser capazes de aprender com os alunos como eles
tificação das concepções espontâneas possa, ao invés de
podem aprender melhor. Essa atitude demanda humildade.
removê-las, funcionar como um reforço. Solomon (1993)
Como é possível aprender com os alunos se estou conven-
apresenta um exemplo que ilustra como o conhecimento
cido de que sei o que é melhor para eles? Os alunos têm
socialmente construído pode também contribuir, embora
muito a nos ensinar se apenas pararmos para ouvi-los. E,
temporariamente, para reforçar tais conceitos espontâneos
quanto mais distante, cultural ou afetivamente, o profes-
uma vez que as crianças tendem a buscar o consenso e
sor estiver do seu aluno, mais provável é que ele formule
podem facilmente tender para a opinião da maioria. Nesses
as perguntas erradas (Paley, 1979: XIV). Seria bem melhor
casos, a orientação do professor é crucial.
Em resumo, para tornar a aprendizagem mais efetiva, se a vaidade permitisse aos professores fazer perguntas
os professores deveriam planejar suas lições levando em aos alunos e se procurassem entender que, por estarmos
consideração tanto a forma como os alunos aprendem aprendendo o tempo todo com os outros e com a vida,
como os conceitos prévios que trazem. Os estudos de Pia- somos, todos, eternos aprendizes.
get são de fundamental importância ao apontar as diferen- Eu estou consciente de que isso não é fácil. É também
ças entre o raciocínio da criança, em seus vários estágios, importante que os professores não confundam constru-
e o raciocínio de um adulto que atingiu o nível das ope- tivismo com falta de disciplina e de direção. O papel do
rações formais. Muitos professores, não compreendendo professor é, de fato, ajudar os alunos a perceber as incon-
esses diferentes níveis de desenvolvimento mental, podem gruências e vazios no seu entendimento. Para fazer isso, os
empregar estratégias de ensino totalmente inadequadas professores têm que respeitar os alunos e tal respeito tem
que, ao invés de facilitar a progressão para um nível mais que ser mútuo. No entanto, respeito não é alguma coisa
elevado de conhecimento, leve o aluno a superpor o con- imposta de cima para baixo. Preferivelmente, deveria ser
ceito espontâneo com o cientificamente aceito, apenas alguma coisa construída e oferecida ao professor, pelos
para atender às exigências formais dos testes escolares. Na alunos, que o consideram merecedor dessa consideração.
vida diária, no entanto, a criança continuará a utilizar os Assim, o papel de um ensino crítico construtivista deveria
conceitos espontâneos por melhor traduzirem sua visão de considerar que:
mundo. • o conhecimento prévio do aluno é importante e alta-
Considerando que a responsabilidade final pela pró- mente relevante para o processo de ensino;
pria aprendizagem pertence a cada aluno, a tarefa do pro- • o papel do professor é ajudar o aluno a construir o
fessor é encorajá-los a verbalizarem suas ideias, ajudá-los seu próprio conhecimento;
a tornarem-se conscientes de seu próprio processo de • as estratégias de ensino devem ser planejadas para
aprendizagem e a relacionarem suas experiências prévias ajudar o aluno a adotar novas ideias ou integrá-las com
às situações sob estudo. Uma construção crítica do conhe- seus conceitos prévios;
cimento está intimamente associada com questionamen- • qualquer trabalho prático é planejado para ajudar
tos: seja para entender o pensamento do aluno, seja para a construção do conhecimento através da experiência do
promover uma aprendizagem conceitual. mundo real e da interação social capacitando a ação;

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BIBLIOGRAFIA

• o trabalho prático envolve a construção de elos com seguidas, mas como sugestões a serem examinadas pelos
os conceitos prévios num processo de geração, checagem professores. Tal criticismo é crucial em todos os níveis de
e restruturação de ideias; educação e deve estar presente, particularmente, durante
• a aprendizagem envolve não só a aquisição e exten- programas de formação de professores devido ao seu efei-
são de novos conceitos, mas também sua reorganização e to multiplicador. Um exemplo de sua utilidade é evitar os
análise crítica; “especialismos estreitos” frequentemente observados entre
• a responsabilidade final com a aprendizagem é dos experts, que, ao se aprofundarem num determinado aspec-
próprios alunos. to, perdem a visão do todo e, muitas vezes, não percebem
as implicações éticas de suas decisões.
Outra importante característica que eu sugiro para um Em resumo, num ensino para uma construção crítica
ensino construtivista é a empatia. Por empatia eu me refiro do conhecimento, devem estar presentes atitudes como:
à capacidade de ser sensível às necessidades dos alunos • estar consciente do que está acontecendo ao redor
ou, em outras palavras, ser disponível. É também a capaci- (comunidade, sociedade, mundo) e revelar como a domi-
dade de escutar e entender as mensagens dos alunos. Para nação e a opressão são produzidas dentro da escola;
fazer isso o professor deve aprender a ler entre as linhas • estimular o pensamento crítico dos alunos;
e decodificar mensagens que não são percebidas sequer • introduzir o diálogo crítico entre os participantes;
pelos próprios alunos. Isso equivale a tentar devolver aos • buscar respostas para os problemas colocados;
alunos, de forma estruturada, as informações que vêm de- • colocar novas questões para serem respondidas, me-
les de forma desestruturada. Frequentemente, uma respos- lhorando assim a prática;
ta deixa de ser dada não porque os alunos não sabem a • tornar a aprendizagem significante, crítica, emanci-
resposta, mas porque eles não entenderam nem mesmo patória e comprometida com as mudanças na direção do
a pergunta. Em tais casos, o professor deve ser suficien- bem-estar coletivo; e
temente sensível para perceber isso, e aberto (disponível), • estar consciente de que todos temos uma parte a
para aprender com os alunos a fazer perguntas que sejam cumprir em prol de uma sociedade mais justa.
entendidas por todos e não só pelos “melhores” alunos.
O professor deve também ser flexível e estar pronto para
5. Aprendizagem crítico-construtivista versus ensi-
mudar quando necessário. Comumente a falta de interesse
no críticoconstrutivista
pelas aulas origina-se do fato de que os tópicos não são
De acordo com Matthews (1992), o construtivismo é,
conectados. Os alunos não conseguem entender a razão
ao mesmo tempo, uma teoria da ciência e uma teoria da
para determinadas questões; não conseguem perceber as
aprendizagem e ensino humanos. Mas, enquanto o cons-
relações desses tópicos com suas próprias experiências
trutivismo tem deixado a sua marca com respeito à apren-
nem como poderão utilizar o novo conhecimento em seu
dizagem em muitas áreas (Driver e Bell, 1986; Fensham,
próprio benefício. Ensinar não é apenas transmitir o conhe-
Gunstone e White, 1994, etc.), pouco tem sido feito, até
cimento acumulado pela humanidade, mas fazê-lo signifi-
cante para os alunos. agora, com relação ao ensino e à formação de professo-
Tendo abertura para aprender com os alunos, sendo res. No entanto, ambos (aprendizagem e ensino construti-
reflexivo e pronto para mudar, o professor pode vir a co- vistas) são profundamente interligados e o último deveria
nhecer o suficiente sobre o aluno de forma a favorecer uma preparar terreno para o primeiro.
aprendizagem significativa. O que entendo por um ensino crítico-construtivista é
um ensino voltado para a contextualização das construções
4. O que é uma construção crítica do conhecimento? conceituais dos alunos. Eu associo esse ensino crítico-cons-
Minha preocupação, no entanto, vai além de um ensi- trutivista com uma postura de respeito pelos alunos. Tal
no construtivista e, naturalmente, de um ensino tradicional. postura implica, além do que foi apresentado anteriormen-
O tipo de ensino que eu tenho em mente deve ser tam- te, o seguinte:
bém crítico. Por uma construção crítica do conhecimento • ser receptivo para ouvir e entender a forma como os
eu me refiro a um ensino cuja preocupação transcenda a alunos constroem, articulam e expressam seu conhecimento;
transmissão de um conteúdo específico. Sua preocupa- • apoiar os alunos na expressão de seus conceitos, na
ção deve ser também com o pensamento crítico do aluno, tomada de consciência desse processo e na valorização do
sua compreensão de que toda pessoa merece dignidade próprio conhecimento e o dos colegas;
e felicidade e que, finalmente, é dever de todos lutar para • nunca depreciar a informação trazida pelos alunos;
atingir esses objetivos. Assim, uma construção crítica do • contextualizar o ensino apresentando problemas re-
conhecimento implica um compromisso com o pensamen- lacionados a aspectos-chave da experiência dos alunos, de
to independente e o bem-estar comum. Tais compromis- forma que esses possam reconhecer seus próprios pensa-
sos devem estar coerentemente presentes na conduta do mento e linguagem no estudo;
professor para apoiar sua análise do contexto da sala de • mostrar que o ato de conhecer exige um sujeito ativo
aula e sua capacidade de tomar decisões coerentes. Como que questiona e transforma e que aprender “é recriar os
Freire (1977) diz, nós deveríamos não importar ideias, mas caminhos com que nos enxergamos a nós próprios, nos-
recriá-las. Dessa forma, um ensino construtivista crítico sa educação e nossa sociedade” (McLaren e Leonard 1993:
não poderia ser entendido como receitas prontas a serem 26);

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BIBLIOGRAFIA

• encorajar os alunos a colocar problemas e questões; em visto o desenvolvimento de ações de linguagem que
• apresentar o assunto não como “exposições teóricas promoveram o engajamento dos grupos de alunos em si-
ou como fatos a serem memorizados, mas como proble- tuações de uso, no cotidiano no qual estão inseridos, tan-
mas colocados dentro da experiência e linguagem dos alu- to na escrita quanto na oralidade. Há, ainda, indícios de
nos para serem trabalhados por eles” (McLaren e Leonard, contribuições no que tange ao protagonismo, foco das
1993:31); teorias de letramento. Ancorando-se em Kleiman (2000,
• conduzir a classe dentro de um processo democrático 2007, 2008), Tinoco (2009), Rojo (2009), demonstra que o
de aprendizagem e de criticidade. “Os professores devem ensino de leitura e escrita, sob a perspectiva do letramento
afirmar-se sem, por outro lado, desafirmar os alunos” (Frei- não necessita abandonar situações de linguagem ou gêne-
re e Faundez, 1989:34). ros textuais mais tradicionais, mas cabe à escola inserir os
alunos, mostrar-lhes os caminhos para compreender essas
Essas atitudes não implicam passividade por parte do situações como pertencentes a sua vida. Pelos resultados
professor. Eles têm o dever de mostrar as contradições, os obtidos, contribui para a reflexão sobre práticas educativas
vazios e inconsistências no pensamento dos alunos e de- mais significativas do ponto de vista do ensino de leitura e
safiá-los a superá-los. Para realizar essa tarefa os profes- escrita como práticas de linguagem.
sores devem ser, antes de tudo, competentes no conteú- Letramento e as contribuições para o ensino de leitura
do que têm a responsabilidade de ensinar. Ensinar, nessa e escrita: ressigficando uma prática. Available from: https://
abordagem, significa planejar todo o processo para facili- www.researchgate.net/publication/325236451_Letramen-
tar a compreensão do novo conteúdo pelos alunos. Como to_e_as_contribuicoes_para_o_ensino_de_leitura_e_escri-
comentado anteriormente (Watts, Jófili e Bezerra, 1997), a ta_ressigficando_uma_pratica [accessed Aug 20 2018].
dificuldade para a maioria dos professores é que é deles a
responsabilidade de fazer cumprir as determinações que
vêm de fora da escola. Os imperativos sociais e o currículo
pretendido são dominantes dentro do sistema educacional LERNER, DELIA. A MATEMÁTICA NA ESCOLA
em todo o mundo. – AQUI E AGORA. PORTO ALEGRE: ARTMED,
Existem momentos em que os professores devem, for- 1995.
çosamente, dizer aos alunos o que fazer para atingir de-
terminados objetivos. As exigências são claras: o professor
deve saber o que fazer. Para professores construtivistas,
entretanto, é uma questão de equilíbrio: as estratégias e Esta obra tem a finalidade de verificar a situação atual
técnicas de ensino devem variar dentro de um amplo es- do ensino da matemática em nossa escola, a partir de da-
pectro, que vai de uma completa liberdade para permitir a dos coletados em pesquisas realizadas em seis escolas,
livre expressão das concepções espontâneas trazidas pelos com pais, professores e alunos.
alunos até uma rigorosa disciplina que caracteriza o traba-
lho intelectual. Capítulo I
Professores, crianças e pais têm a palavra. Numa pes-
Fonte quisa, todos os professores entrevistados concordam em
JÓFOLI, Zélia. A construção do conhecimento: papel do apontar a matemática como uma disciplina que causa te-
educador, do educando e da sociedade. In: Educação: Teo- mor. Questionado sobre a forma como ensinam a mate-
rias e Práticas, ano 2, nº 2, Recife: Universidade Católica de mática e como as crianças aprendem, a maioria respondeu
Pernambuco, p. 191 – 208 que o ensino é realizado por meio do trabalho com itens
separados, como por exemplo: primeiro a lição, depois sub-
tração para não confundir, e repetição. Não obstante várias
professoras afirmaram ter tido boas experiências com a
KLEIMAN, ANGELA & SIGNORINI, INÊS. O matemática, apenas uma afirmou enfaticamente que gos-
ENSINO E A FORMAÇÃO DO PROFESSOR: tava de matemática. As crianças em sua maioria relacionam
ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS. o aprendizado da matemática, ao ensino escolar. Apenas
PORTO ALEGRE: ARTMED, 2000. as crianças de 5ª série responderam que muitas coisas se
aprendem fora da escola. Os pais também acreditam que
as crianças também aprendem matemática fora da escola.
Não são poucas as crianças que se referem à matemá-
Apresenta discussão acerca dos resultados de projeto tica como a disciplina que menos gostam, e mesmo aque-
ação desenvolvido em âmbito educacional objetivando re- las com bom rendimento em matemática manifestam uma
conhecer as contribuições de projetos de letramento para opinião contrária a ela. No que se refere as opiniões sobre a
o desenvolvimento de práticas de leitura e escrita. Funda- utilidade da matemática, as opiniões dos professores são: a
mentando-se em teorias da área do letramento, propõe a matemática tem importância porque prepara a criança para
inserção dos alunos em práticas de uso da língua no coti- raciocinar com rapidez; ajuda a compreender a matéria e é
diano escolar, através de gêneros do universo acadêmico. uma ciência completa porque é exata. Os pais também afir-
Apresenta os resultados, considerados significativos, tendo maram que a matemática serve para tudo inclusive para a

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BIBLIOGRAFIA

vida. Algumas crianças responderam que nunca utilizaram - colocando apenas o resultado;
a matemática em casa, outras disseram que só usam em - colocando somente os dados incluídos;
casa quando a professora manda realizar tarefas.  Algumas - colocando os dados do problema e o resultado, mas
delas relacionaram a matemática com a atividade de tra- sem incluir os sinais da operação realizada;
balho. Quanto aos conteúdos a opinião dos professores e - colocando de forma não convencional de todos os
dos alunos coincidem: na primeira série os conteúdos mais termos envolvidos;
difíceis são o valor posicional e a subtração, a partir da 3a - colocando a representação convencional.
série é a divisão, na terceira série é a divisão com decimais.
Quando as crianças tem dificuldades, são encaminhadas No que diz respeito à interpretação dos sinais, todos os
para a repetição, para a aula integrada. alunos interpretaram com exatidão os sinais (+ e -).; entre-
Em relação a importância dos pais no processo de tanto, com o sinal (=), apenas duas crianças o nominaram e
aprendizagem, pais, professores e crianças tem opiniões são poucas que atribuem uma interpretação a eles quando
unânimes. No que tange à avaliação, a pesquisa abordou está isolado.
diversos aspectos: as crianças consideram que a avaliação As contas: Na pesquisa foi possível verificar que temos
está associada a aprendizagem e ao comportamento. “ Saio ensinado o procedimento convencional para as crianças
bem em matemática, porque me comporto em sala de au- resolver somas com números de vários algarismos. Este
las”. Na 3a e 5a séries, consideram que a avaliação está rela- procedimento é que as tem levado a pensar que, quando
cionada somente a aprendizagem: participação em sala de se faz uma conta, cada número de dois algarismos, deixa
aula, tarefas de casa, questionários. Enfim, acreditam que de ser um só número, e se transforma em dois números
tiram boas notas porque estudam. Pais e professores afir- independentes.
mam que o ponto de apoio para a avaliação são as provas e
participação em aula. Os professores em particular apontam Capítulo III
a avaliação como sendo útil para tomarem ciência daquilo As estratégias de resolução de problemas. A autora ve-
que as crianças aprenderam e reorientar os estudos. rificou que para as crianças de 3a série os problemas de
adição são resolvidos facilmente, mas os de subtração são
Capítulo II
mais complicados. Algumas crianças usam um indicador
Problemas de contas: dois desafios diferentes. Os pro-
exclusivo, ou seja, palavras chaves para definir a operação
cedimentos utilizados pelas crianças para resolver as contas
que deve ser realizada. Por exemplo: juntos, comprou... são
são totalmente diferentes dos empregados para resolver
indicadores para a criança que trata da adição. Os proble-
problemas. A autora observou que nos problemas de sub-
mas de multiplicação e divisão não apresentam dificulda-
tração, algumas crianças utilizam-se de estratégias muito
des se forem bem formulados. “ (...) o fato de que uma
elaboradas: contam com o dedo e com as letras. Contudo,
criança não encontre qual é a conta que corresponde para
algumas demoram a entender que “tirar”  pode significar
subtrair. Algumas crianças chamam a subtração de soma. resolver determinada situação não significa de modo algum
As respostas obtidas pelas crianças frente a um problema que não possa resolvê-la: com base na estrutura lógica do
proposto foram diferentes, exemplo: um ônibus tem 24 problema ela poderá aproximar um resultado possível”.
passageiros, descera, 17, quantos ficaram? Para fazer com
que a diversidade se constitua em um valor positivo para Operando com frações
o aprendizado, face a essa situação, Lerner  orienta da se- Ao trabalharem com problemas envolvendo frações, as
guinte forma: “ do ponto de vista didático se expõe também crianças chegaram a resposta correta, apesar de não sou-
a necessidade de propor às crianças uma variada gama de berem registrar no papel a notação fracionária convencio-
situações correspondentes a cada operação, de tal modo que nal. Na pesquisa todas as crianças conseguiram estabelecer
elas tenham oportunidade de criar estratégias que resultem que 1/2 é maior que 1/4. Os dados coletados nas pesquisas
oportunas, de comparar as utilizadas pelas outras crianças mostraram que a notação fracionária também precisa de
com as próprias, de analisar as semelhanças e diferenças um processo de reconstrução, por isso, é importante res-
existentes entre diversas situações”. saltar que as crianças elaboram ideias próprias ao invés de
Diante da proposta de se inventar enunciado de um aceitar a notação convencional. Também é preciso ressal-
problema, as crianças em sua maioria conseguem, mas pro- tar no que se refere às frações, a necessidade de realizar
duzindo escritas onde a resposta está no enunciado. Exem- uma discussão sobre as diversas formas de representação
plo: inventar um problema cujo resultado seja 5. (Tinha 12 formuladas pelos alunos, assim como, sobre as diferentes
canetas, dei 7 e fiquei com 5). Outra questão significativa interpretações das representações convencionais.
para refletir é, até que ponto os problemas propostos são Na 3ª e 5ª séries a pesquisa demonstrou, que além de
desafios e constroem conhecimentos matemáticos? A auto- darem respostas, as crianças registravam estas respostas de
ra observou que as formas como as crianças representam as forma convencional. No caso da subtração esta continua a
operações ao resolver os problemas que propôs ou aque- apresentar dificuldades. Com relação a divisão as crianças
les que elas mesmos inventaram, nem sempre coincidem comprovam na escola essas contas, logo é possível que sai-
com a “conta” convencional. Ao resolver um problema as bam que esta verificação se faz multiplicando o quociente
crianças apresentaram 5 formas diferentes de organizar as pelo divisor. Os dados demonstraram que todas as crianças
respostas. são capazes de elaborar estratégias para resolver diversos

100
BIBLIOGRAFIA

problemas a elas formulados, inclusive aqueles que envol-


vem frações. A proposta da autora consiste não só em re- LERNER, DELIA. LER E ESCREVER NA ESCOLA:
solver situações problemas diversas, mas também elaborar O REAL, O POSSÍVEL E O NECESSÁRIO. 1ª
estratégias e compará-las com as outras, formular enun- EDIÇÃO – PORTO ALEGRE, ARTMED, 2002.
ciados e antecipar resultados, levando-se em conta que as
crianças são seres pensantes.

Capítulo IV Embora seja difícil e demande tempo, a escola ne-


O valor posicional. Nas pesquisas, verificou-se que as cessita de transformações profundas no que concerne ao
respostas obtidas, mostram em primeiro plano, que todas aprendizado da leitura e da escrita, que só serão alcança-
as crianças da 3a série, quando questionadas sobre o valor das através da compreensão profunda de seus problemas
“0” (zero) responderam que não tinha valor nenhum. Ficou e necessidades, para que então seja possível falar de suas
claro que as crianças já sabem que o zero é elemento neu- possibilidades.
tro nas operações de soma e subtração. Quando o zero
vem acompanhado de outro número como por exemplo Capítulo 1 - Ler e Escrever na Escola: O Real, o Possível
(0089, 0003), responderam que vale se estiver à direita, e e o Necessário
à esquerda não. Na comparação de números com mais Aprender a ler e escrever na escola deve transcender a
de dois algarismos, as crianças sabem que um número de decodificação do código escrito, deve fazer sentido e estar
mais algarismos representa uma quantidade maior que a vinculado à vida do sujeito, deve possibilitar a sua inser-
representada por números de menos algarismos. Exemplo: ção no meio cultural a qual pertence, tornando-o capaz de
5.000 é maior que 500 porque tem 4 algarismos. Crianças produzir e interpretar textos que fazem parte de seu en-
de 3º e 5ª séries respondem de imediato, que o valor do “0” torno. Torna-se então necessário reconceitualizar o objeto
(zero) depende de sua colocação no número (valor posicio- de ensino tomando por base as práticas sociais de leitura e
nal). Sabem também que não podemos suprimir o zero do escrita, ressignificando seu aprendizado para que os alunos
número 207, uma vez que mudaria seu valor. se apropriem dele ‘como práticas vivas e vitais, onde ler e
A primeira série e as unidades de dezena. As crianças escrever sejam instrumentos poderosos que permitem re-
entrevistadas, não obstante, já tivessem recebido explica-
pensar o mundo e reorganizar o próprio pensamento, onde
ções sobre a unidade e dezena, não conseguiam relacionar
interpretar e produzir textos sejam direitos que é legítimo
o valor posicional, e apesar de saberem o conceito de de-
exercer e responsabilidades que é necessário assumir’. Para
zena, não aplicam este conceito em situação operativa. As
tornar real o que compreendemos ser necessário é preci-
crianças entendiam “dezena” (como dúzia, termo usado no
so conhecer as dificuldades que a escola apresenta, distin-
dia-a-dia). Na 3a série não há dificuldades relativas ao valor
guindo as legítimas das que fazem parte de ‘resistências
posicional. As crianças da 3a série sentem dificuldades em
sociais’ para que então se possa propor soluções e possi-
entender o significado de “elevar-se” ou de “pedir empres-
tado” com o valor posicional. No que se refere as crianças bilidades. A tarefa é difícil porque, a própria especificidade
de 5a série, a autora ssinala que muitas delas tinham difi- do aprendizado da leitura e da escrita que se constituem
culdade acerca da relação entre centenas e dezenas. Con- em construções individuais dos sujeitos agindo sobre o ob-
tudo, para algumas essas relações são claras. jeto (leitura e escrita) torna a sua escolarização difícil, já que
Os resultados obtidos na pesquisa com relação aos não são passíveis de se submeterem a uma programação
decimais, mostram que as crianças conseguem obter em sequencial. Por outro lado, trata-se de práticas sociais que
alguns casos, respostas corretas como é o caso da adição historicamente foram, e de certo modo continuam sendo,
porém, tal como em outras operações, realizam-nas de for- patrimônio de certos grupos, mais que de outros, o que
ma mecânica, pois, não entendem o que estão fazendo. As nos leva a enfrentar e tentar buscar caminhos para resolver
pesquisas realizadas com números decimais somente, não as tensões existentes na instituição escolar entre a tendên-
apresentam dificuldades mas as crianças sentem dificulda- cia à mudança (democratização do ensino) e a tendência
des em realizar operações com números inteiros e fracio- à conservação (reprodução da ordem social estabelecida).
nários, exceção feita aos alunos da 5a série. Essas dificulda- É difícil ainda, porque o ato de ensinar a ler e escrever na
des referem-se à organização das posições dos números, escola tem finalidade puramente didática: a de possibili-
porque um deles não possui a vírgula. tar a transmissão de saberes e comportamentos culturais,
As crianças têm aprendido muito na escola, e recons- ou seja, a de preservar a ordem pré-estabelecida, o que o
troem muito cedo algumas regras que regem o sistema po- distancia da função social que pressupõe ler para se comu-
sicional. Quando frente às dúvidas, raramente as crianças nicar com o mundo, para conhecer outras possibilidades e
as questionam em aula. Por isso, é necessário criar condi- refletir sobre uma nova perspectiva.
ções que permitam às crianças construir e apropriar-se dos É difícil também, porque a estruturação do ensino con-
princípios que regem nosso sistema de numeração, como forme um eixo temporal único, segundo uma progressão
reflexão, formulação de hipóteses, confronto de ideias etc. linear acumulativa e irreversível entra em contradição com
a própria natureza da aprendizagem da leitura e da escrita,
Fonte que como vimos ocorre por meio de aproximações do su-
LERNER, Delia. A matemática na escola - aqui e agora. jeito com o objeto, provocando coordenações e reorganiza-
Porto Alegre: Artmed, 1995. ções cognitivas que lhe permite atribuir um novo significa-

101
BIBLIOGRAFIA

do aos conteúdos aprendidos. E, finalmente, a necessidade de significados, formando escritores e não meros copistas,
da escola em controlar a aprendizagem da leitura faz com formando produtores de escrita conscientes de sua função
que se privilegie mais o aspecto ortográfico do que os in- e poder social. Precisa também, preparar as crianças para
terpretativos do ato de ler, e o sistema de avaliação, onde a interpretação e produção dos diversos tipos de texto
cabe somente ao docente o direito e o poder de avaliar, não existentes na sociedade, conseguindo que a escrita deixe
propiciam ao aluno a oportunidade de autocorreção e refle- de ser apenas um objeto de avaliação e passe a ser um
xão sobre o seu trabalho escrito, e consequentemente não objeto de ensino, capaz não apenas de reproduzir pensa-
contribui para a construção da sua autonomia intelectual. mentos alheios, mas de refletir sobre o seu próprio pensa-
Diante desses fatos, o que é possível fazer para que mento, enfim, promovendo a descoberta da escrita como
se possam conciliar as necessidades inerentes a instituição instrumento de criação e não apenas de reprodução. Para
escolar e, ao mesmo tempo, atender as necessidades de realmente transformar o ensino da leitura e da escrita na
formar leitores e escritores competentes ao exercício pleno escola, é preciso, ainda, acabar com a discriminação que
da cidadania? Em primeiro lugar devem se tornar explícitos produz fracasso e abandono na escola, assegurando a to-
aos profissionais da educação os aspectos implícitos nas dos o direito de ‘se apropriar da leitura e da escrita como
práticas educativas que estão acessíveis graças aos estudos ferramentas essenciais de progresso cognoscitivo e de
sociolinguísticos, psicolinguísticos, antropológicos e histó- crescimento pessoal’.
ricos, ou seja, aqueles que nos mostram como a criança É possível a mudança na escola? Ensinar e ler e escrever
aprende a ser leitora e escritora; o que facilita ou quais são faz parte do núcleo fundamental da instituição escolar, está
as prerrogativas essenciais a esse aprendizado. Em segun- nas suas raízes, constitui a sua missão alfabetizadora e sua
do lugar, é preciso que se trabalhe com projetos como fer- função social, portanto, é a que mais apresenta resistência
ramenta capaz de articular os propósitos didáticos com os a mudanças. Além disso, nos últimos anos, foi a área de
comunicativos, já que permitem uma articulação dos sabe- que mais sofreu com a invasão de inovações baseadas ape-
res sociais e os escolares. Além disso, o trabalho com proje- nas em modismos.
tos estimula a aprendizagem, favorece a autonomia, já que “...O sistema de ensino continua sendo o terreno privi-
envolve toda a classe, e evita o parcelamento do tempo e legiado de todos os voluntarismos - dos quais talvez seja
do saber, já que tem uma abordagem multidisciplinar. “É o último refúgio. Hoje, mais de que ontem, deve suportar
assim que se torna possível evitar a justaposição de ativi- o peso de todas as expectativas, dos fantasmas, das exi-
dades sem conexão - que abordam aspectos também sem gências de toda uma sociedade para a qual a educação é o
conexão com os conteúdos -, e as crianças tem oportuni- ultime portador de ilusões”.
dade de ter acesso a um trabalho suficientemente dura- Sendo assim, para que seja possível uma mudança pro-
douro para resolver problemas desafiantes, construindo os funda da prática didática vigente hoje nas instituições de
conhecimentos necessários para isso, para estabelecer re- ensino, capaz de tornar possível a leitura na escola, é preci-
lações entre diferentes situações e saberes, para consolidar so que esta esteja fundamentada na evolução histórica do
o aprendido e reutilizá-lo...”. pensamento pedagógico, sabendo que muito do que se
Finalmente, é possível repensar a avaliação, sabendo propõe pode ser encontrado nas ideias de Freinet, Dewey,
que esta é necessária, mas que não pode prevalecer sobre Decroly e outros pensadores e educadores, o que significa
a aprendizagem. Segundo a autora, ‘ao diminuir a pressão estarem baseadas no avanço do conhecimento científico
do controle, toma-se possível avaliar aprendizagens que dessa área, que como em outras áreas do conhecimento
antes não ocorriam [...]’ já que no trabalho com projetos os científico, teve suas hipóteses testadas com o objetivo de
alunos discutem suas opiniões, buscam informações que desvendar a gênese do conhecimento humano - como os
possam auxiliá-los e procuram diferentes soluções, fatores estudos realizados por Jean Piaget. É preciso compreender
importantíssimos a formação de cidadãos praticantes da também, que essas mudanças não dependem apenas da
cultura escrita. capacitação adequada de seus profissionais, já que esta é
condição necessária, mas não suficiente, é preciso conhecer
Capítulo 2 - Para Transformar o Ensino da Leitura e da o cotidiano escolar em sua essência, buscando descobrir os
Escrita mecanismos ou fenômenos que permitem ou atravancam
“O desafio [...] é formar seres humanos críticos, capa- a apropriação da leitura e da escrita por todas as crianças
zes de ler entrelinhas e de assumir uma posição própria que ali estão inseridas.
frente à mantida, explicita ou implicitamente, pelos autores O que vimos até hoje, por meio dos trabalhos e pesqui-
dos textos com os quais interagem em vez de persistir em sas que temos realizado no campo da leitura e da escrita,
formar indivíduos dependentes da letra do texto e da au- é que existe um abismo que separa a prática escolar da
toridade dos outros”. prática social da leitura e da escrita - lê-se na escola trechos
Para que haja uma transformação verdadeira do ensino sem sentido de uma realidade desconhecida para a criança,
da leitura e da escrita, a escola precisa favorecer a aprendi- já que foi produzido sistematicamente para ser usado no
zagem significativa, abandonando as atividades mecânicas espaço escolar - a fragmentação do ensino da língua (pri-
e sem sentido que levam o aluno a compreender a escrita meiro sílabas simples, depois complexas, palavras, frases...)
como uma atividade pura e unicamente escolar. Para isso, não permite um espaço para que o aluno possa pensar no
a escola necessita propiciar a formação de pessoas capa- que aprendeu dentro de um contexto que lhe faça sentido,
zes de apreciar a literatura e de mergulhar em seu mundo e ainda, fazem com que esta perca a sua identidade.

102
BIBLIOGRAFIA

“Como o objetivo final do ensino é que o aluno possa importância, levando-os a perceber as vantagens das es-
fazer funcionar o aprendido fora da escola, em situações tratégias didáticas baseadas nesses estudos, e, sobretudo,
que já não serão didáticas, será necessário manter uma vi- conscientizando-os de que educação também é objeto da
gilância epistemológica que garanta uma semelhança fun- ciência.
damental entre o que se ensina e o objeto ou prática social Voltando a capacitação, enfatizando sua necessidade, é
que se pretende que os alunos aprendam. A versão esco- preciso que se criem espaços de discussão e troca de expe-
lar da leitura e da escrita não deve afastar-se demasiado riências e informações, que dentre outros aspectos servirão
da versão social não-escolar”. O “Contrato Didático” aqui para levar o professor a perceber que a diversidade cultu-
é considerado como as relações implícitas estabelecidas ral não acontece apenas em sua sala de aula, que ela faz
entre professor e aluno, sobretudo porque estas exercem parte da realidade social na qual estamos inseridos, e que
influência sobre o aprendizado da leitura e da escrita, já sendo assim, não poderia estar fora da escola, e ainda, que
que o aluno deve concentrar-se em perceber ou descobrir esta diversidade tem muito a contribuir se o nosso objeti-
o que o professor deseja que ele ‘saiba’ sobre aquele tex- vo educacional consistir em preparar nossos alunos para a
to que o professor escolheu para que ele leia e não em vida em sociedade. No que concerne a leitura e escrita, pa-
suas próprias interpretações: “A ‘cláusula’ referente à in- rece-nos essencial ter corno prioritária a formação dos pro-
terpretação de textos parece estabelecer [...] que o direito fessores como leitores e produtores de texto, capazes de
de decidir sobre a validade da interpretação é privativo do aprofundar e atualizar seus saberes de forma permanente’.
professor...”. Nossa experiência nos levou a considerar que a ca-
Se o objetivo da escola é formar cidadãos praticantes pacitação dos professores em serviço apresenta melhores
da leitura e da escrita, capazes de realizar escolhas e de resultados quando é realizada por meio de oficinas, sus-
opinar sobre o que leem e veem em seu entorno social, tentadas por bibliografias capazes de dar conta das inter-
é preciso que seja revisto o Contrato Didático, principal- rogações a respeito da prática que forem surgindo durante
mente no âmbito da leitura e da escrita, e essa revisão é os encontros, que devem se estender durante todo o ano
encargo dos pesquisadores de didática - divulgando os re- letivo, e que contam com a participação dos coordenado-
sultados obtidos bem como os elementos que podem con- res também em sala de aula, mas que, à longo prazo, capa-
tribuir para as mudanças necessárias -, é responsabilidade citem o professor a seguir autonomamente, sem que seja
dos organismos que regem a educação - que devem levar necessário o acompanhamento em sala de aula.
em conta esses resultados -, é encargo dos formadores de
Capítulo 3 – Apontamentos a partir da Perspectiva Cur-
professores e de todas as instituições capazes de comuni-
ricular
car à comunidade e particularmente aos pais, da impor-
É importante que, ao propor uma transformação di-
tância que tem a análise, escolha e exercício de opinião de
dática a uma instituição de ensino, seja considerada a sua
seus filhos quando do exercício da leitura e da escrita.
particularidade, o que se dá através do conhecimento de
suas necessidades e obstáculos, implícitos ou explícitos,
Ferramentas para transformar o ensino
que caberá a proposta suprir ou superar. É imperativo que
Vimos que transformar o ensino vai além da capacita-
a elaboração de documentos curriculares esteja fortemen-
ção dos professores, passa pela sua revalorização pessoal e te amparada na pesquisa didática, já que será necessário
profissional; requer uma mudança de concepção da relação selecionar os conteúdos que serão ensinados o que pres-
ensino-aprendizagem para que se possa conceber o esta- supõe uma hierarquização, já que privilegiará alguns em
belecimento de objetivos por ciclos que abrangem os co- detrimento de outros.
nhecimentos - objeto de ensino -de forma interdisciplinar, “Prescrever é possível quando se está certo daquilo que
visando diminuir a pressão do tempo didático e da frag- se prescreve, e se está tanto mais seguro quanto mais in-
mentação do conhecimento. Requer que não se perca de vestigada está a questão do ponto de vista didático”.(p. 55).
vista os objetivos gerais e de prioridade absoluta, aqueles As escolhas de conteúdos devem ter como fundamento os
que são essenciais à educação e lhe conferem significado. propósitos educativos’, ou seja, se o propósito educativo
Requer ainda, que se compreenda a alfabetização como do ensino da leitura e da escrita é o de formar os alunos
um processo de desenvolvimento da leitura e da escrita, como cidadãos da cultura escrita, então o objeto de ensino
e que, portanto, não pode ser desprovido de significado. a ser selecionado deve ter como referência fundamental às
Essa compreensão só será alcançada na medida em práticas sociais de leitura e escrita utilizadas pela comuni-
que forem conhecidos e compreendidos os estudos cien- dade, o que supõe enfatizar as funções da leitura e da es-
tíficos realizados na área, e que nos levaram a descobrir a crita nas diversas situações e razões que levam as pessoas
importância da atividade mental construtiva do sujeito no a ler e escrever, favorecendo seu ingresso na escola como
processo de construção de sua aprendizagem, ressignifi- objeto de ensino.
cando o papel da escola. Colocando em destaque o apren- Os estudos em torno das práticas de leitura existentes
dizado da leitura e da escrita, consideramos fundamental ou preponderantes no decorrer da história da humanidade
que sejam divulgados os resultados apresentados pelos es- mostraram que em determinados momentos históricos pri-
tudos psicogenéticos e psicolinguísticos, não apenas a pro- vilegiavam-se leituras intensas e profundas de poucos tex-
fessores ou profissionais ligados à educação, mas a toda tos, como por exemplo, os pensadores clássicos, seguidos
sociedade, objetivando conscientizá-los da sua validade e de profundas reflexões realizadas por meio de debates ou

103
BIBLIOGRAFIA

conversas entre pequenos grupos de pessoas ou comuni- Sabendo que a leitura é antes de tudo um objeto de
dades, se tomarmos como exemplo a leitura da Bíblia. Com ensino que na escola deverá se transformar em um objeto
o avanço das ciências e o aumento da diversidade literária de aprendizagem, é importante não perder de vista que
disponível - nas sociedades mais abastadas - as práticas de sua apropriação só será possível se houver sentido e signi-
leitura passaram a se alternar entre intensivas ou extensi- ficado para o sujeito que aprende, que esse sentido varia
vas (leitura de vários textos com menor profundidade), mas de acordo com as experiências prévias do sujeito e que,
sempre mantendo um fator comum: elas, leitura e escri- portanto, não são suscetíveis a uma única interpretação ou
ta, sempre estiveram inseridas nas relações com as outras significado e que o caminho para a manutenção desse sen-
pessoas, discutindo hipóteses, ideias, pontos de vista ou tido na escola está em não dissociar o objeto de ensino de
apertas indicando a leitura de algum título ou autor. sua função social.
O aspecto mais importante que podemos tirar acerca O trabalho com projetos de leitura e escrita cujos te-
dos estudos históricos é que se aprende a ler, lendo (ou mas são dirigidos à realização de algum propósito social
a escrever, escrevendo), portanto, é preciso que os alunos vem apresentando resultados positivos. Os temas propos-
tenham contato com todos os tipos de texto que veicu- tos visam atender alguma necessidade da comunidade em
lam na sociedade, que eles tenham acesso a eles, que esses questão e são estruturados da seguinte forma:
materiais deixem de ser privilégio de alguns, passando a a) Proposta do projeto às crianças e discussão do plano
ser patrimônio de todos. Didaticamente, isto significa que do trabalho;
os alunos precisam se apropriar destes textos através de b) Curso de capacitação para as crianças visando pre-
práticas de leitura significativas que propiciem reflexões pará-las para a busca e consulta autônoma dos materiais a
individuais e grupais, que embora demandem tempo, são serem utilizados quando da realização das etapas do pro-
essenciais para que o sujeito possa, no futuro, ser um pra- jeto;
ticante da leitura e da escrita. c) Pesquisa e seleção do material a ser utilizado e/ou
“...É preciso assinalar que, ao exercer comportamentos lugares a serem visitados;
de leitor e de escritor, os alunos têm também a oportuni- d) Divisão das tarefas em pequenos grupos;
dade de entrar no mundo dos textos, de se apropriar dos e) Participação dos pais e da comunidade;
traços distintivos[...] de certos gêneros, de ir detectando f) Discussão dos resultados encontrados pelos grupos;
matizes que distinguem a ‘linguagem que se escreve’ e a g) Elaboração escrita dos resultados encontrados pelos
diferenciam da oralidade coloquial, de pôr em ação [...] re- grupos (que passará pela revisão de outro grupo e depois
cursos linguísticos aos quais é necessário apelar para resol- pelo professor);
ver os diversos problemas que se apresentam ao produzir h) Redação coletiva do trabalho final;
ou interpretar textos [...[é assim que as práticas de leitura i) Apresentação do projeto à comunidade interessada.
e escrita, progressivamente, se transformam em fonte de j) Avaliação dos resultados.
reflexão metalinguística”. (P. 64).
Nesses projetos tem-se a oportunidade de levar a
Capítulo 4 - É possível ler na escola? criança a extrair informações de diversas fontes, inclusive
“Ler é entrar em outros mundos possíveis. É indagar a de textos que não foram escritos exclusivamente para elas,
realidade para compreendê-la melhor, é se distanciar do e que, portanto, apresentam um grau maior de dificuldade.
texto e assumir uma postura crítica frente ao que se diz e A discussão coletiva das informações que vão sendo cole-
ao que se quer dizer, é tirar carta de cidadania no mundo tadas propicia a troca de ideias e a verificação de diferen-
da cultura escrita...”.(p.73). Ensinar a ler e escrever foi, e ain- tes pontos de vista, como acontece na vida real, e, ainda,
da é, a principal missão da escola, no entanto, dois fatores durante a realização desses projetos as crianças não leem
parecem contribuir para que a escola não obtenha sucesso: e escrevem só para ‘aprender’, a leitura assume um propó-
1. A tendência de supor que existe uma única interpre- sito, um significado, que atende também aos propósitos
tação possível a cada texto; do docente - de inseri-las no mundo de leitores e escrito-
2. A crença - como diria Piaget - de que a maneira res. Os projetos permitem ainda, uma administração mais
como as crianças aprendem difere da dos adultos, e que, flexível do tempo, porque propiciam o rompimento com a
portanto, basta ensinar-lhes o que julgarem pertinente, organização linear dos conteúdos já que costumam traba-
sem que haja preocupação com o sentido ou significado lhar com os temas selecionados de forma interdisciplinar,
que tais conteúdos têm para as crianças, o que, além de o que possibilita a retomada dos próprios conteúdos em
tudo, facilita o controle da aprendizagem, já que essa con- outras situações e ainda, a análise destes a partir de um
cepção permite uma padronização do ensino. referencial diferente.
Para que seja possível ler na escola, é necessário que Acontecem concomitantemente e em articulação com
ocorra uma mudança nessas crenças, é preciso, como já a realização dos projetos, atividades habituais, como ‘a
vimos, que sejam considerados os resultados dos traba- hora do conto’ semanal ou momentos de leitura de outros
lhos científicos em torno de como ocorre o processo de gêneros, como o de curiosidades científicas e atividades
aprendizagem nas crianças: que ele se dá através da ação independentes que podem ter caráter ocasional, como a
da criança sobre os objetos (físicos e sociais), sendo a partir leitura de um texto que tenha relevância pontual ou fazer
dessa ação que ela (a criança) lhe atribuirá um valor e um parte de situações de sistematização: passar a limpo uma
significado. reflexão sobre uma leitura realizada durante uma ativida-

104
BIBLIOGRAFIA

de habitual ou pontual. Todas essas atividades contribuem pósito essencial do ensino e da aprendizagem. Desde que
com o objetivo primordial de ‘criar condições que favo- se elaborem projetos onde a leitura tenha sentido e finali-
reçam a formação de leitores autônomos e críticos e de dade social imediata, transformando a escola em uma ‘mi-
produtores de textos adequados à situação comunicativa cros-sociedade de leitores e escritores em que participem
que os torna necessário’ já que em todos eles observam-se crianças, pais e professores...”. (P. 101).
os esforços por produzir na escola as condições sociais da
leitura e da escrita. Capítulo 5 - O Papel do Conhecimento Didático na For-
“É assim que a organização baseada em projetos per- mação do Professor
mite coordenar os propósitos do docente com os dos alu- “O saber didático é construído para resolver pro-
nos e contribui tanto para preservar o sentido social da blemas próprios da comunicação do conhecimento, é o
leitura como para dotá-la de um sentido pessoal para as resultado do estudo sistemático das interações que se
crianças”. (p.87). produzem entre o professor, os alunos e o objeto de en-
Ainda, o trabalho com projetos, por envolver grupos de sino; é produto da análise das relações entre o ensino e a
trabalho e, abrir espaço para discussão e troca de opiniões, aprendizagem de cada conteúdo específico; é elaborado
permite o estabelecimento de um novo contrato didático, através da investigação rigorosa do funcionamento das
ou seja, um novo olhar sobre a avaliação, porque admite situações didáticas”. (P. 105).
novas formas de controle sobre a aprendizagem, nas quais É importante considerar que o saber didático, como
todos os sujeitos envolvidos tomam parte, o que contribui qualquer outro objeto de conhecimento, é construído
para a formação de leitores autônomos, já que estes devem através da interação do sujeito com o objeto, ele se en-
justificar perante o grupo as conclusões ou opiniões que contra, portanto, dentro da sala de aula, e não é exclusi-
defendem. É importante ressaltar, que essa modalidade de vidade dos professores que trabalham com crianças, ele
trabalho torna ainda mais importante o papel das inter- está presente também em nossas oficinas de capacitação.
venções do professor - fazendo perguntas que levem a ser Então, para apropriar-se desse saber é preciso estar em
considerados outros aspectos que ainda não tenham sido sala de aula, buscando conhecer a sua realidade e as suas
levantados pelo grupo, ou a outras interpretações possí- especificidades.
veis do assunto em questão. Em suma, é importante que a
necessidade de controle, inerente a instituição escolar, não A atividade na aula como objeto de análise
sufoque ou descaracterize a sua missão principal que são O registro de classe apresenta-se como principal ins-
os propósitos referentes à aprendizagem. trumento de análise do que ocorre em sala de aula. Esses
registros podem ser utilizados durante a capacitação obje-
O professor: um ator no papel de leitor tivando um aprofundamento do conhecimento didático, já
É muito importante que o professor assuma o papel que as situações nele apresentadas permitem uma reflexão
de leitor dentro da sala de aula. Com esta atitude ele es- conjunta a respeito das situações didáticas requeridas para
tará propiciando a criança a oportunidade participar de o ensino da leitura e escrita.
atos de leitura. Assumir o papel de leitor consiste em ler Optamos por utilizar, a princípio, os registros das ‘si-
para os alunos sem a preocupação de interrogá-los sobre tuações boas’ ocorridas em sala de aula, porque percebe-
o lido, mas de conseguir com que eles vivenciem o prazer mos, através da experiência, que a ênfase nas ‘situações
da leitura, a experiência de seguir a trama criada pelo autor más’ distanciava capacitadores e educadores, e para além,
exatamente para este fim, e ao terminar, que o professor criavam um clima de incerteza, por enfatizar o que não se
comente as suas impressões a respeito do lido, abrindo es- deve fazer, sem apresentar direções do que poderia ser fei-
paço para o debate sobre o texto - seus personagens, suas to, em suma, quando enfatizamos ‘situações boas estamos
atitudes. Assumir o papel de leitor é fator necessário, mas mostrando o que é possível realizar em sala de aula, o que
não suficiente, cabe ao professor ainda mais, cabe-lhe pro- por si só, já é motivador.
por estratégias de leitura que aproximem cada vez mais os É importante destacar que as ‹situações boas› não se
alunos dos textos. constituem em situações perfeitas, elas apresentam erros
que, ao serem analisados, enriquecem a prática docente,
A Instituição e o sentido da leitura pois são: considerados como importantes instrumentos de
Quando os projetos de leitura atingem toda a institui- análise da prática didática - ponto de partida de uma nova
ção educacional, cria-se um clima leitor que atinge também reflexão - sendo vistos como parte integrante do processo
os pais, e que envolvem os professores numa situação de de construção do conhecimento.
trabalho conjunta que tem um novo valor: o de possibilitar “... a análise de registros de classe opera como coluna
uma reflexão entre os docentes a respeito das ferramentas vertebral no processo de capacitação, porque é um recurso
de análise que podem contribuir para a resolução dos pro- insubstituível para a comunicação do conhecimento didá-
blemas didáticos que por ventura eles possam estar vivendo. tico e porque é a partir da análise dos problemas, propos-
As propostas de trabalho e as reflexões aqui apresen- tas e intervenções didáticas que adquire sentido para os
tadas mostram que é possível sim! Ler e escrever na escola, docentes se aprofundarem no conhecimento do objeto de
desde que se promova uma mudança qualitativa na gestão ensino e de s processos de aprendizagem desse objeto por
do tempo didático, reconsiderando as formas de avaliação, parte das crianças”, (p. 116).
não deixando que estas interfiram ou atrapalhem o pro-

105
BIBLIOGRAFIA

Palavras Finais Outra razão torna esses estudos importantes que é o


Quanto mais os profissionais capacitadores conhece- fato de que as normas, leis e diretrizes da educação, es-
rem a prática pedagógica e os que exercitam essa prática tão sujeitas a decisões políticas. Cabe ao sistema de ensino
no dia-a-dia: as crenças que os sustentam e os mecanis- e as escolas contribuírem de maneira significativa para a
mos que utilizam; quanto mais conhecerem como se dá o construção de um projeto de nação e, para a formação de
processo de ensino e aprendizagem da leitura e escrita na sujeitos capazes de participar ativamente desse processo.
escola, mais estarão em condições de ajudar o professor As políticas educacionais e organizacionais que vemos
em sua prática docente. hoje estão diretamente relacionadas às transformações
A educadora argentina fala sobre o processo de elabo- econômicas, políticas, culturais e geográficas que quali-
ração de Ler e Escrever na Escola e os reflexos que a obra ficam o mundo atual. A exemplo disso nós temos as vá-
promoveu na Educação. rias reformas educativas realizadas nos países da Europa e
Qual foi a motivação para escrever este livro? A cons- América durante os últimos 20 anos.
ciência de que era preciso colocar em primeiro plano a Tais reformas se justapõem com a recomposição do
análise das possibilidades e das dificuldades da escola em sistema capitalista mundial que trouxe consigo a doutri-
assimilar projetos de ensino de leitura e escrita. na neoliberal, caracterizada por três traços particulares:
Surgiram dúvidas enquanto trabalhava o texto? Como mudanças no processo de produção (avanços científicos
elas poderiam não surgir? Escrever é comprometer-se com e tecnológicos), superioridade do livre funcionamento do
o que é dito. Porém, o mais importante durante a elabo- mercado e redução do papel do Estado que por sua vez,
ração do livro foi analisar o real - as condições em que se afetam diretamente a educação tendo em vista que para o
trabalha na escola, a função social e as características da neoliberalismo, o desenvolvimento econômico fomentado
instituição - e ao mesmo tempo priorizar o possível, com a pelo desenvolvimento técnico-científico garante, por si só,
missão de transformar o ensino para favorecer a formação o desenvolvimento social.
de todos os alunos como leitores e escritores plenos. Essa falta de consideração com as implicações sociais
e humanas geram vários problemas sociais como desem-
É possível ver avanços nessa área depois que o livro prego, fome e desigualdade entre países, classes e grupos
foi publicado? Não creio que ele tenha produzido efeitos sociais. E também, problemas globais como a devastação
mágicos. Lamentavelmente, acho que nenhum consegue ambiental, o desequilíbrio ecológico, o esgotamento dos
tal feito. Mas espero que já tenha esclarecido alguns pro- recursos naturais e problemas atmosféricos.
blemas e ajudado educadores a encontrar caminhos para Progredindo na mesma proporção, mudanças signifi-
avançar na difícil tarefa de ensinar. cativas nos processos de produção e transformações nas
condições de vida e de trabalho devido à associação entre
ciência e técnica, proporcionou uma necessidade de se ter
conhecimento e informação a tal ponto que influenciaram
LIBÂNEO, J.C.; OLIVEIRA, J. F.; TOSCHI, a economia e seu desenvolvimento. Os países industriali-
M. S. EDUCAÇÃO ESCOLAR: POLÍTICAS, zados então viram a necessidade de se rever o lugar das
ESTRUTURA E ORGANIZAÇÃO. SÃO PAULO: instituições encarregadas de produzir conhecimento e in-
CORTEZ, 2003, CAPÍTULO III, DA 4ª PARTE. formação, tornando-se prioridade, a reforma dos sistemas
educacionais os quais giram em quatro pontos: o currícu-
lo nacional, a profissionalização dos professores, a gestão
EDUCAÇÃO ESCOLAR: POLÍTICAS, ESTRUTURAS E educacional e a avaliação institucional.
ORGANIZAÇÃO No Brasil, também houve algumas transformações,
no que diz respeito ao sistema educacional. Que ocorreu
O sistema educativo e as escolas estabelecem relações a partir do ano de 1990, início do governo Collor, e tam-
entre si e existem duas importantes razões para conhecer e bém ano em que se realizou a Conferência Mundial sobre
analisá-las. A primeira faz referência às políticas educacio- Educação para Todos, ocasião em que se estabeleceram
nais e as diretrizes organizacionais e curriculares que são as prioridades para a educação, entre elas, a universalização
ideias, valores, atitudes e práticas capazes de influenciar as do ensino fundamental. Em 1993, no governo de Itamar
escolas e seus profissionais no que diz respeito às práticas Franco, cria-se o Plano Decenal de Educação para Todos e
formativas dos alunos. A segunda está pautada aos profis- em 1995, no governo de Fernando Henrique Cardoso, es-
sionais das escolas os quais podem aceitar ou rejeitar essas tabeleceram-se metas pontuais, que são: descentralização
políticas e diretrizes educacionais, ou até mesmo, dialogar da administração das verbas federais, elaboração do currí-
com elas e então formular, de modo coletivo, práticas for- culo nacional, educação à distância, avaliação nacional das
mativas e inovadoras. escolas, incentivo a formação de professores, parâmetros
Para tanto, é preciso conhecer e analisar como se inter- de qualidade para o livro didático, entre outras. Já essas,
-relacionam as políticas educacionais, a organização e ges- acompanham as tendências internacionais se alinhando à
tão das escolas e as práticas pedagógicas na sala de aula. política neoliberal e às orientações dos organismos finan-
O professor não pode se contentar apenas em desenvolver ceiros como o Banco Mundial e o FMI.
saberes e competências para ter uma boa atuação em sala Nesse mesmo âmbito, se deu a elaboração e promul-
de aula, é preciso tomar consciência do sistema escolar e gação da LDB, do PNE, das diretrizes curriculares, normas e
enxergar além. resoluções do Conselho Nacional de Educação.

106
BIBLIOGRAFIA

No entanto, essas políticas e diretrizes demonstram como eixo básico da disciplina. Obrigatória em algumas
ser, salvo raras exceções, intenções declaradas ao invés de habilitações do curso de Pedagogia, a disciplina Legislação
medidas efetivas. Ocorre então um impasse, de um lado, do Ensino de 1º e 2º Graus tornou-se base da Estrutura e
políticas educativas que expressam intenções de se aumen- Funcionamento do Ensino. Já na organização do ensino es-
tar a autonomia e a participação das escolas e dos profes- colar, se tem a descrição dos órgãos e seu funcionamento
sores, do outro, há a questão da crise de legitimidade dos e, a análise de seus componentes administrativos e curricu-
estados que dificulta a efetivação de investimentos em sa- lares, através de textos legais.
lários, carreira e formação do professorado, com o pretexto Os currículos de Pedagogia e das licenciaturas, atual-
de que o Estado requer redução de despesas, transmitindo mente, apresentam várias denominações, entre elas, as
uma lógica contábil e economista ao sistema educacional. mais corriqueiras são: Estrutura e Funcionamento do En-
Desde a estruturação do curso de Pedagogia, em 1939, sino Fundamental e Médio – oferecida no segundo ou no
sempre houve a preocupação com os aspectos legais e ad- terceiro ano do curso de Pedagogia, com carga anual que
ministrativos da escola, geralmente vistos na disciplina Ad- varia entre 60 128 horas e ministrada em um ano ou seis
ministração Escolar. meses – e, Didática e Prática de Ensino de Estrutura e Fun-
Está mencionado, no Parecer 292/62 – do Conselho cionamento do Ensino Fundamental e Médio – disciplina
Federal de Educação – a disciplina Elementos de Adminis- em forma de estágio supervisionado, geralmente com car-
tração Escolar a qual tinha como finalidade proporcionar o ga anual de 128 horas, no último ano do curso de Peda-
conhecimento, por parte do licenciado, da escola em que gogia. Em geral, os conteúdos e objetivos dessa disciplina,
iria atuar (seus objetivos, estrutura e seus aspectos de seu assumem três abordagens distintas:
funcionamento), além de proporcionar uma visão única do Abordagem legalista e formal: Os textos legais e os do-
aspecto escola-sociedade. cumentos são apresentados e analisados sistêmica e fun-
Em 1968, houve a homologação dos Pareceres 252/69 cionalmente. Essa abordagem acosta-se à letra, linhas e ao
e 672/69 como forma de se adequar os currículos de Pe- texto legal. O estudo aí acaba por se tornar árido, insípido
dagogia e das licenciaturas à Lei 5.540/68. Esses pareceres e aversivo.
incluíram a disciplina Estrutura e Funcionamento do Ensino Abordagem político-ideológica: Dá ênfase aos textos
de 2º Grau, substituindo a disciplina Administração Escolar. críticos, procura-se mostrar o real com base em uma postu-
O motivo pelo qual se deu essa substituição foi o fato de ra e visão político-ideológica. Essa abordagem aproxima-se
que com a denominação Administração Escolar, se fazia res- mais ao contexto, ao espírito e às entrelinhas dos textos
saltar o aspecto administrativo, não levando em conta as- legais. O estudo aí acaba por se tornar parcial e partidário.
pectos referente à estrutura e ao funcionamento do ensino.
Abordagem histórico-crítica: Os textos legais são usa-
Já nos anos 80, propostas curriculares alternativas sur-
dos como referencial para a análise crítica da organização
giram com conteúdos semelhantes à Administração Escolar
escolar e como forma de confrontar a situação proclamada
e à Estrutura e Funcionamento do Ensino do 2º Grau, mas
(ideal) com a situação real. O estudo aí acaba por se tornar
como denominações diferentes: Educação Brasileira, Políti-
mais fértil, dinâmico, investigativo e crítico-reflexivo.
cas Educacionais, Organização do Trabalho Pedagógico (ou
O desenvolvimento dos conteúdos, por uma ótica me-
Escolar).
todológica, deve estar alinhado à articulação de três ele-
As Resoluções 2/69 e 9/69 foram as primeiras a apre-
mentos, segundo Monteiro (1995): visão oficial (conheci-
sentarem a denominação Estrutura e Funcionamento do
Ensino. Está fixava os mínimos de conteúdos das disciplinas mento da legislação educacional, programas e planos de
e a duração do curso de Pedagogia, aquela, estabelecia os governo); visão da realidade (comparação da visão oficial
mínimos de conteúdos e a duração dos cursos para a for- com o que realmente acontece no funcionamento do en-
mação pedagógica em nível de licenciatura. sino) e visão crítica (após o conhecimento das anteriores,
Segundo a Resolução 9/69, os currículos de licenciatu- pratica-se a leitura fundamentada, para geração de novos
ra deveriam abranger as seguintes matérias: Psicologia da conhecimentos.
Educação, Didática, Estrutura e Funcionamento do Ensino Para Saviani (1987), há três etapas no exame crítico da
de 2º Grau e Prática de Ensino, sob forma de estágio su- legislação de ensinos: contato com a lei (análise textual,
pervisionado, mas em conformidade com a Lei 5.692/71, na para captar a estrutura do texto); exame das razões mani-
qual instituiu o ensino de primeiro e segundo graus, a de- festas (leitura da exposição de motivos, dos pareceres, dos
nominação alterou-se para Estrutura e Funcionamento do relatórios, etc.) e busca das razões reais (exame do contexto
Ensino de 1º e 2º graus. – processo histórico socioeconômico e político – exame da
De acordo com a legislação, há dois elementos bási- gênese da lei – processo de elaboração da lei, os autores e
cos na disciplina: a escola e o ensino, onde, primeiramente, seus papéis).
apresenta-se a organização e o funcionamento da escola e Textos legais, documentos e textos críticos, também
em seguida, o ensino. podem ser usados como auxilio ao estudo de alguns te-
Contudo, essas abordagens mostram a escola e o ensi- mas da disciplina (municipalização do ensino, organização
no como elementos prontos e acabados no interior de um formal e informal da escola, financiamento do ensino, etc.),
sistema educacional racionalmente organizado e de uma servindo de fundamento para elucidar uma situação/ques-
sociedade organicamente constituída e funcional fazendo tão norteadora de investigação, aliando assim, ensino e
com que se torna evidente a importância da legislação pesquisa, tornando o método de ensino e aprendizagem

107
BIBLIOGRAFIA

mais dinâmico e reflexivo, desenvolvendo também, a habi- escola – seus objetivos e estruturas e professores, para que
lidade de investigação, proporcionando, assim, que o tra- possam conhecer ainda mais o seu local de trabalho e as-
balho acadêmico seja um momento em que o aluno possa sim, se tornar um agente ativo no processo de construção
procurar, investigar e produzir conhecimento, orientado da educação e das políticas educacionais.
pelo professor.
As abordagens identificadas e os aspectos metodológi- Fonte
cos de tratamento dos conteúdos se relacionam ao conhe- Disponível em http://simboraestudar.blogspot.com.br/
cimento do objeto de estudo, tendo em vista que refletem
a trajetória da disciplina. Contudo, percebe-se que houve
uma significativa evolução na abordagem da disciplina, em MANTOAN, MARIA TERESA EGLÉR. ABRINDO
sua ampliação e diversificação, o mesmo não ocorreu com AS ESCOLAS ÀS DIFERENÇAS, CAPÍTULO 5,
objeto de estudo, não com clareza. Qual é e qual era ele? IN: MANTOAN, MARIA TERESA EGLÉR (ORG.)
Vemos que houve uma mudança na ênfase da disci-
PENSANDO E FAZENDO EDUCAÇÃO DE
plina, de aspectos estruturais e formais do ensino para as
QUALIDADE. SÃO PAULO: MODERNA, 2001.
questões de funcionamento onde o foco saiu do ensino
de primeiro e segundo graus para a concreta escola de
primeiro e segundo graus. Proporcionando assim que a
perspectiva legalista, descontextualizada e limitada fosse Este livro focaliza concepções, ideias e práticas educa-
modificada com a finalidade de se privilegiar a discussão tivas para analisar o que existe hoje, apontando as ques-
de alternativas para a reconstrução da escola e do sistema tões a serem tratadas com urgência nas escolas, e mostrar
educacional brasileiro. possibilidades de mudança, adequando-as aos seus novos
Houve assim uma transformação democrática de um donos - os alunos de nosso tempo. O que se almeja é re-
ensino genérico para uma abordagem de uma escola e en- formar a escola, ou seja, refazer o seu design, através da
sino concretos, todavia, cabe-se questionar se a mudança participação dos educadores.
ocorreu somente na abordagem/compreensão do objeto;
se o objeto de estudo da disciplina continuou a ser a escola ESCOLAS ABERTAS À DIVERSIDADE
e a organização do ensino e até mesmo se a legislação e
os documentos constituem o eixo básico da apreensão da Pensando e fazendo educação de qualidade
escola e do ensino. Maria Teresa Eglér Mantoan
A escola e o ensino ainda continuam como foco da dis- Universidade Estadual de Campinas- Faculdade de
ciplina, mas agora contextualizados de maneira concreta, Educação
crítica e histórica. Dá ótica sistêmica/tecnicista para a ótica
histórico-crítica, onde as políticas de educação são trata- As diferenças de classe social, idade, gênero, capacida-
das com maior intensidade, uma vez em que são elas as de intelectual, raça, interesses entre os alunos como chave
responsáveis por definirem, em grande parte, a legislação do aprimoramento do ensino e do sucesso na aprendiza-
educacional, a escola e o ensino. gem acadêmica são ainda parcialmente aceitas e consti-
É apropriado adotar então a denominação Estrutura e tuem um forte impacto no conservadorismo dos sistemas
Organização da Educação Escolar – Políticas Educacionais educacionais, que insistem na eliminação dessas diferenças
e Funcionamento da Escola, tendo como ideia principal a como meio para melhorar a qualidade do ensino em suas
possibilidade em aprender as imbricações entre decisões escolas. Questionam-se os limites da diversidade, além dos
centrais e decisões locais, a fim de articular, em torno da quais os alunos são inelegíveis para os programas escola-
escola, as abordagens mais gerais de cunho sociológico, res. A tendência é de se encorajar os alunos a ignorar suas
político e econômico e os processos escolares internos de próprias diferenças e as dos outros.
cunho pedagógico, curricular, psicológico e didático. Não lidar com as diferenças é não perceber a diver-
A partir da leitura da obra, é possível fazer uma reflexão sidade que nos cerca, os muitos aspectos em que somos
a respeito da educação escolar como um todo, bem como diferentes uns dos outros e transmitir, implícita ou explici-
as suas políticas educacionais e educativas. No decorrer da tamente, que as diferenças devem ser ocultadas, tratadas à
leitura do livro os autores trazem informações importan- parte. Essa maneira de agir remete, entre outras formas de
tes relacionadas à história das políticas educacionais, como discriminação, à necessidade de se separar alunos com di-
surgiram, porque surgiram e como foram transformadas ficuldades em escolas e classes especiais, à busca da “pseu-
para atenderem as necessidades que se apresentaram. do” homogeneidade nas salas de aula, para o ensino ser
Percebe-se a dedicação dos autores em levar ao co- bem-sucedido, enfim, à dificuldade que temos de conviver
nhecimento do leitor os processos pelos quais ocorre a com pessoas que se desviam um pouco mais da média das
formação de professores, as disciplinas que são oferecidas, diferenças, conduzindo-as ao isolamento, à exclusão, den-
as leis que regulam essa formação e também as mudanças tro e fora das escolas.
que essas leis trouxeram ao longo do tempo. As escolas abertas à diversidade são aquelas em que
Recomenda-se a leitura e a apreciação dessa obra a todos os alunos se sentem respeitados e reconhecidos nas
estudantes de pedagogia e das licenciaturas, para que pos- suas diferenças, ou melhor, são escolas que não são indi-
sam entender melhor o seu futuro ambiente de trabalho, a ferentes às diferenças. Ao nos referirmos a essas escolas,

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BIBLIOGRAFIA

estamos tratando de ambientes educacionais que se carac- As propostas de ensino de qualidade para todos os
terizam por um ensino de qualidade, que não exclui, não alunos precisam ser explicitadas a partir de um verdadei-
categoriza os alunos em grupos arbitrariamente definidos ro repasse de conceitos e de posicionamentos teóricos e
por perfis de aproveitamento escolar e por avaliações pa- práticos que fundamentam o ensino tradicionalmente mi-
dronizadas e que não admitem a dicotomia entre educação nistrado nas escolas.
regular e especial. As escolas para todos são escolas inclu- Reconstruir os fundamentos e a estrutura organizacio-
sivas, em que todos os alunos estudam juntos, em salas de nal das escolas, na direção de uma educação de qualidade
aulas do ensino regular. Esses ambientes educativos desa- para todos, remete, igualmente, a questões específicas, re-
fiam as possibilidades de aprendizagem de todos os alunos lacionadas ao conhecimento do objeto ensinado e ao su-
e as estratégias de trabalho pedagógico são adequadas às jeito que aprende. Trata-se de mais um desafio que implica
habilidades e necessidades de todos. na consideração da especificidade dos conteúdos acadê-
Todos os alunos experimentam em momentos de sua micos e da subjetividade do aprendiz, ou seja, em um siste-
trajetória escolar um ou outro problema, obstáculo, dificul- ma duplo de interpretação do ato de educar, referendado
dade nas aprendizagens acadêmicas. As razões pelas quais por pressupostos de natureza epistemológica e psicológica
os alunos fracassam em algumas situações escolares são e na concretização de propostas inovadoras, que revertem
complexas e não devem recair única e inteiramente no que o que tradicionalmente se pratica nas salas de aula.
é inerente ao aprendiz. Grande parte dessas dificuldades e Há ainda a considerar que o ato de educar supõe in-
incapacidades são devidas à própria escola. Nesse senti- tenções, representações que temos do papel da escola, do
do, podemos afirmar que o número de pessoas com pro- professor, das noções , do modo de aprender, do aluno e
blemas de aprendizagem em uma escola está relacionado de sua aprendizagem e essas concepções variam, confor-
com a qualidade da educação nela oferecida. me os paradigmas, as ideologias, os fundamentos cientí-
Da mesma forma, todos os alunos devem se beneficiar ficos que as sustentam Toda ação pedagógica ocorre em
do apoio escolar e de suportes individualizados, quando uma época, em um dado ambiente e estes influem sobre
estão passando por situações que os impedem de conse- o que fazemos e compreendemos, definindo os contornos
guir sucesso nas atividades escolares. de nossos atos pedagógicos, dos mais elementares, aos
Nas escolas inclusivas todos se apoiam mutuamente e mais expressivos e complexos. Nem sempre os fins gerais
são atendidos em suas necessidades específicas por seus da educação e os fins que cada educando estabelece para
pares, sejam colegas de classe, escola ou profissionais de a sua educação se integram, provocando quebras no mo-
áreas afins. A pretensão dessas escolas é a superação de vimento das ações educativas e na condução que os fins
todos os obstáculos que as impedem de avançar no sen- exercem sobre os meios pelos quais o ensino se efetiva.
tido de garantir um ensino de qualidade, preocupado em A mediação do professor é outro ponto básico, que en-
desenvolver os talentos, as tendências naturais, as habili- feixa os tópicos que ora destacamos neste preâmbulo de
dades de cada aluno para esta ou aquela especialidade. Em discussões. Sabemos que reduzido às suas próprias desco-
cada turma os talentos se misturam às histórias de vida dos bertas, ou seja, à mercê de seus recursos individuais, o alu-
alunos, às suas experiências individuais e coletivas. Nesse no avança pouco, evolui lentamente e não consegue atua-
ambiente é que os conteúdos acadêmicos ganham nuan- lizar e explorar todas as suas possibilidades cognoscitivas.
ces de entendimento, versões, confrontos necessários à Só combateremos a exclusão escolar, na medida em
elaboração interdisciplinar das ideias, à compreensão do que as escolas se tornarem aptas para incluir, incondicio-
mundo. A intenção é de fazer com que os alunos perce- nalmente, todos os seus alunos, em um único sistema de
bam a importância de somar esses talentos e reconheçam ensino.
a complementaridade de suas habilidades e vivências, para Muitos sistemas têm se tornado inclusivos, por busca-
explorar temas de estudo, para compreender melhor as rem o aprimoramento constante da formação de seus pro-
noções acadêmicas. fessores e o sucesso na aprendizagem de seus alunos. Essa
Temos de recusar e de acusar todos os desvios dos busca exige esforços contínuos, como veremos adiante. A
propósitos da educação para todos de seus verdadeiros luta pela inclusão de todos os alunos nas salas de aulas
fins. A retórica dos discursos públicos é envolvente e en- regulares está disseminada nos países, nas redes de ensino
ganosa e esconde interesses que não são os das práticas público, nas escolas particulares. Nossa experiência se cir-
inclusivas nas escolas. Aumentar o número de matrículas cunscreve em sistemas municipais de ensino e é o trabalho
das crianças com deficiência no ensino regular não significa em suas escolas, com seus alunos, pais e professores que
caminhar em direção da inclusão e muito menos de uma iremos mesclar com as considerações que faremos, no de-
escola de qualidade para todos. O mesmo se pode dizer da senrolar deste texto.
diminuição dos percentuais de reprovação e dos casos que
milagrosamente se “reabilitam” nas classes de aceleração Valores, princípios e atitudes
e em programas de reforço da aprendizagem tão comuns
nas nossas escolas. A identificação de escolas que caminham no sentido
Os obstáculos ao acesso de todos a uma educação de de eliminar os obstáculos ao acesso de todos à educação
qualidade variam de uma escola para outra, conforme o é possível e observável, desde que não se busque em suas
tipo e grau das deficiências escolares; os projetos de re- características um modelo pré-definido e fechado que pos-
moção dessas barreiras são sempre pontuais e localizados. sa ser adotado universalmente.

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BIBLIOGRAFIA

Existem, contudo, tendências e princípios básicos des- Quando se trata de propiciar oportunidades iguais e
sas escolas que estão na base de todos os processos pelos justas para todos, temos muito ainda a fazer nas nossas
quais elas caminham para alcançar seus objetivos. escolas, para corresponder ao princípio pelo qual os se-
Podemos identificar entre esses princípios e tendências res humanos têm direito à dignidade, sejam quais forem as
aspectos que dizem respeito à organização escolar, aos suas capacidades ou realizações.
programas de ensino, processos de ensino e aprendiza- Barreiras atitudinais são predisposições que levam as
gem, serviços de suporte, formação inicial e continuada de pessoas a responderem a situações ou a outras pessoas de
professores, mudança de atitudes, valores, desenvolvimen- modo desfavorável, tendo em vista um dado valor. No caso
to de comunidade. da igualdade entre as pessoas, as barreiras se materializam
Uma característica marcante dessas escolas é o esforço na recusa das pessoas em reconhecer e defender esse valor,
que despendem no sentido de mudar atitudes com relação através de comportamentos, reações, emoções e palavras.
às diferenças entre os alunos. Essas atitudes se circunscre- A existência dessas barreiras comprova a cultura marcada-
vem ao âmbito escolar e fora dele, estendendo-se às famí- mente discriminatória, elitista e segregacionista de nossas
lias e à comunidade. escolas, influenciando todos os procedimentos e o discurso
de seus membros, chegando mesmo a atingir os alunos e
Os obstáculos a serem vencidos nesse sentido são de
seus pais. Em uma palavra, a igualdade entre as pessoas é
natureza subjetiva e, ao nosso ver, os mais fortes, pois di-
um valor esquecido nos padrões e concepções da escola
zem respeito a questões que estão arraigadas à nossa for-
tradicional.
mação e experiências pessoais em uma sociedade que não Muitos diretores escolares, professores e pais ainda re-
está habituada a reconhecer e a valorizar as diferenças. lutam em aceitar que o perfil dos alunos mudou, que as
A igualdade entre as pessoas é o valor fundamental, crianças e jovens de hoje não são mais os mesmos que
quando tratamos de escolas para todos. Podemos enca- tinham acesso às escolas anteriormente, reclamando da
rá-lo de vários ângulos, mas em todos eles o sentido da origem social destes e alegando a influência da origem no
igualdade não se esgota no indivíduo, expandindo as con- sucesso e no fracasso escolar. O preconceito é constata-
siderações para aspectos de natureza política, social, eco- do, quando se trata de alunos que têm dificuldades para
nômica, aprender por serem ou por estarem deficientes, do ponto
A igualdade não se contradiz com o respeito às di- de vista intelectual, social, afetivo, emocional, físico, cultu-
ferenças entre as pessoas, mas as reforça, na medida em ral e outros. Existe também quando se trata de alunos de
que esse valor se desdobra em três princípios particula- raça negra, de famílias de religiões populares, os chamados
res. Esses autores referem-se inicialmente ao respeito pelas “crentes”, de filhos de famílias desestruturadas, de mães
pessoas, no sentido de que “cada ser humano tem direito solteiras e pais omissos, drogados, marginais.
à dignidade, independentemente de suas capacidades ou Nossa experiência em escolas particulares demonstrou
de suas realizações”...(p.”13). Apontam também o direi- que é difícil trabalhar com as atitudes de professores, pais,
to à satisfação das necessidades básicas e o princípio da coordenadores, diretores e/ou proprietários e até mesmo
igualdade de oportunidades e estabelecem uma distinção com alguns alunos para fazê-los perceber o quanto ainda
entre oportunidade igual e justa para todos e oportuni- estão marcados por ideias e sentimentos que lhes impe-
dade igual e igualitária para todos. A primeira formulação dem de admitir que um aluno possa ser diferente daquele
prescreve que os avanços sociais ...”devem se basear uni- que acreditam ser os representativos de uma determinada
camente no talento do indivíduo: assim, nenhuma pessoa classe social, de um dado grupo de pessoas que é bem-do-
está em desvantagem em razão de seu sexo, de sua raça, tada social, cultural e intelectualmente. Os próprios pais de
de sua religião, de seus antecedentes sociais ou de toda crianças com deficiência são os primeiros a admitir o pre-
outra consideração”(p.13). A segunda supõe que ...”cada conceito e a discriminação, pois não matriculam nas mes-
mas escolas os seus outros filhos! Eles entendem que as
pessoa deve ter uma oportunidade real de desenvolver
escolas que acolhem a todas as crianças só o fazem porque
suas capacidades específicas de modo satisfatório e “uma
estão menos comprometidas com a qualidade do ensino e
medida substancial de realização pessoal deve ser disponí-
a aprendizagem dos alunos e que os alunos sem deficiência
vel para cada indivíduo, independentemente de suas habi- serão prejudicados pela presença de colegas com déficits
lidades (idem, p.14). Doré (1996) destaca que este princípio de compreensão e de desempenho, que comprometem a
é invocado nos meios escolares, quando a discussão recai expectativa escolar, rebaixando-a para todos.
sobre a escolha de uma sala de aula regular ou especial Para inúmeros outros autores que estão envolvidos em
para responder às necessidades particulares dos alunos. projetos de inclusão, na concepção de uma educação de
Acrescenta aos princípios citados a “discriminação positi- qualidade para todos, (Forest, 1984, 1985, 1987; Richler,
va”, que garante aos alunos e às pessoas em geral os re- 1993; Stainback e Stainback,1990; Forest e Pearpoint, 1992;
cursos humanos e materiais de que necessitam para o seu Kunc, 1992), o desenvolvimento do espírito comunitário é
desenvolvimento e adaptação social. No meio escolar este uma condição para que o valor e os princípios da igualdade
princípio não desaparece com a inclusão, mas deve estar se efetivem. De certo que o alto nível do espírito de coleti-
disponível a todos os alunos que estiverem vivendo situa- vidade, cultivado por sociedades diferenciadas, é a base do
ções de desvantagem, frente aos demais, no desempenho igualitarismo. Pertencer à comunidade é uma necessidade
de suas atividades. fundamental de toda pessoa, e um direito que deve ser ga-
rantido a todos.

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BIBLIOGRAFIA

Nos dois últimos séculos, a educação formal se carac- Outras manifestações ocorreram a partir da Declara-
terizou por ter excluído os alunos com deficiência, mais do ção de Salamanca; em 1995, em Copenhague, no Encontro
que por tê-los incluído nas escolas. No começo do século Mundial sobre o Desenvolvimento Humano, o compromis-
vinte estendeu-se a educação pública para todas as crian- so 6 do documento final dessa reunião reafirmou a neces-
ças e foi nessa mesma época que, em paralelo, se criaram sidade de serem asseguradas oportunidades educacionais
as estruturas da educação especial. O crescimento desse igualitárias em todos os níveis de educandos, em ambien-
sistema segregado de educação refletiu a centralização, as tes integrados. Nesse mesmo ano o Programa de Desen-
especializações de funções, a hierarquia administrativa do volvimento das Nações Unidas (UNDP) edita um guia so-
modelo organizacional das corporações industriais. Esse bre a participação de pessoas com deficiência no desen-
momento influiu no incremento do ensino especial, como volvimento humano sustentável no qual assegura que “as
um sistema à parte. Mais e mais pessoas foram matricula- pessoas com deficiência não devem ser excluídas(...). São
das nas escolas e classes especiais e “incluídas pela defi- necessários mudanças e esforços consideráveis para que
ciência” (Bunch,1994). A educação especial, infelizmente, sejam integradas e com sucesso nos programas regula-
não cumpriu com a promessa que muitos tinham deposi- res...”.
tado nela. A sociedade jamais poderia pensar que as clas- Como se pode perceber, o movimento em favor de
ses especiais falhariam em seus propósitos de superar as uma escola aberta à diversidade partiu da exclusão das
classes regulares no atendimento escolar aos deficientes, pessoas com deficiência da sociedade, das escolas, da
a despeito da especialização dos professores e do número vida laboral, dos serviços comunitários. Todos são unâni-
reduzido de alunos (MacMillan and Hendrick, 1993). mes em destacar a importância da educação no processo
Em toda parte, a maioria das crianças que entram nes- global que conduz à participação plena das pessoas com
sas classes especiais nunca mais as deixam. A porta de saí- deficiência. No Brasil, essas ideias apontaram a partir do
da é bem mais estreita do que a da entrada e forma-se documento de Salamanca e desde então muita polêmica e
o conhecido “buraco da agulha” dos sistemas de ensino discussão têm sido criadas em torno do assunto, especial-
especial. mente entre os dirigentes de instituições para deficientes,
A partir de 1990, o movimento em favor da Educação pais, profissionais da educação especial e áreas médica e
para Todos, defendido na conferência organizada pelas paramédica está fervilhando e bem pouco assimilado pela
Nações Unidas em Jomtien, na Tailândia, começou a ser comunidade escolar e pela sociedade em geral. O ensino
discutido e a influir na transformação das escolas e das co-
especial lidera a discussão da inclusão nas escolas, o que
munidades mais sensíveis a esta inovação. Em 1993 foram
tem contribuído decisivamente para restringir e esvaziar o
adotadas as Normas Uniformes para as Pessoas com In-
seu sentido lato da educação inclusiva de não excluir nin-
capacidade. Elas foram promulgadas pela Assembleia Ge-
guém das escolas, não apenas os deficientes e de lutar por
ral das Nações Unidas e nos seus princípios fundamentais
aperfeiçoar o sistema educativo, de modo que possa ofe-
estabelecem que o termo “igualdade de oportunidades”
recer educação de qualidade para todas as crianças, como
alude ao processo mediante o qual os diversos sistemas
já nos referimos anteriormente.
da sociedade, o entorno físico, os serviços, as atividades,
A liderança do ensino especial nessa discussão está,
a informação e a documentação sejam colocadas à dispo-
sição de todos, especialmente das pessoas com incapa- ao nosso ver, prejudicando significativamente o movimen-
cidades. O mesmo documento especifica que as pessoas to em favor das escolas abertas à diversidade e ainda é re-
com deficiência deveriam receber o apoio necessário nas sistente à inclusão, quando se trata de casos mais graves,
estruturas comuns de educação, saúde, emprego e servi- ou seja, de alunos com maiores prejuízos sendo atendidos
ços. A educação foi considerada uma área crítica e estava seja nas classes especiais como nas de ensino regular. O
vinculada ao princípio de inclusão. Aos países caberia o esclarecimento público a esse respeito está sendo envie-
reconhecimento do princípio de igualdade de oportunida- sado por outros interesses, inclusive os de caráter corpora-
des de educação nos níveis fundamental, médio e superior tivista, envolvendo classes de profissionais, que se sentem
para as crianças, jovens e adultos com deficiência e deve- ameaçados pelas possíveis interferências do movimen-
riam cuidar para que constituíssem uma parte integrante to no trabalho que estão presentemente desenvolvendo
do sistema de ensino. nas suas especialidades. O debate comunitário do tema
Foi a partir do final dos anos 80 que o movimento em prima por desviar a atenção dos interessados, inclusive a
favor da inclusão de alunos com deficiência nas salas de mídia, para questões que não são centrais ao debate da
aulas regulares começou a se expandir em todo o mundo. inclusão escolar - as escolas de qualidade para todos. Em
Em 1994 em Salamanca, na Espanha, foi assinada a De- outras palavras, o debate se concentra prioritariamente na
claração que convocou todos os governos a adotar com deficiência nas escolas., quando deveria se centrar na efi-
urgência, como questão legal ou de política, o princípio da ciência das escolas, para corresponder às necessidades e
educação inclusiva. No seu item 2, o referido documento interesses e peculiaridades de todos os seus alunos. São
da Unesco afirma que “as escolas regulares com orienta- bem poucas as vozes que se manifestam, atualmente, no
ção inclusiva são o meio mais efetivo para combater as sentido de desviar o rumo das discussões e de relacionar
atitudes discriminatórias, criar comunidades abertas, cons- o movimento inclusivo com as reformas do ensino regular
truir uma sociedade integrada e se obter uma educação e com isso a ideia da inclusão escolar vai se deformando e
para todos”. tomando rumos fora de sua rota principal. Sejam quais fo-

111
BIBLIOGRAFIA

rem as intenções dos representantes da educação especial,


na área da pesquisa, da administração e operacionalização MEC – MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO.
de serviços educacionais e terapêuticos neste momento, o REFERENCIAL CURRICULAR NACIONAL PARA
certo é que a reação dos que estão lutando pela inclusão A EDUCAÇÃO INFANTIL. BRASÍLIA: MEC/SEF,
de todos nas escolas regulares terá de se intensificar.
1998. V.3
As comunidades escolares e a sociedade como um
todo devem ser esclarecidas, pelo rebate das ideias equi-
vocadas que estão sendo veiculadas, sem o que a questão
será diluída no pessimismo, nas incertezas, na descrença de Prezado Candidato, devido a complexidade do ma-
um grupo que, certamente, não se afina com os objetivos terial, disponibilizaremos um breve resumo, para que
dessa inovação, não importam os seus motivos. assim não haja prejuízo em seus estudos. Para acesso ao
Não queremos negar que a inclusão na educação foi material completo acesse o link abaixo:
deflagrada pelos diretamente interessados na promoção e
garantia dos direitos à participação plena e igualdade de http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/volu-
oportunidades para pessoas com deficiência, mas não so- me3.pdf
mente essas pessoas têm seus direitos negados ou esque-
cidos, dentro ou fora das escolas. INTRODUÇÃO
A inclusão escolar de pessoas com deficiência é com- O movimento é uma importante dimensão do desenvol-
preendida como parte de um contexto mais amplo de vimento e da cultura humana. As crianças se movimentam
reivindicações sociais, que englobam a exclusão de todos desde que nascem, adquirindo cada vez maior controle sobre
as minorias. Nas escolas, a educação para todos constitui seupróprio corpo e se apropriando cada vez mais das possi-
esse contexto, que uma vez apto a oferecer um ensino de bilidades de interação com o mundo.Engatinham, caminham,
qualidade para todos os seus alunos englobará também manuseiam objetos, correm, saltam, brincam sozinhas ou em-
os deficientes. A maneira pela qual devemos avaliar as ne- grupo, com objetos ou brinquedos, experimentando sempre
cessidades e buscar respostas educativas para solucionar novas maneiras de utilizar seu corpo e seu movimento. Ao
problemas de desempenho escolar dos alunos e de aper- movimentar-se, as crianças expressam sentimentos, emoções
feiçoamento da formação dos profissionais de educação é epensamentos, ampliando as possibilidades do uso significa-
mais do que uma revisão dos limites que separam as mo- tivo de gestos e posturas corporais. O movimento humano,
dalidades regular e especial de ensino escolar. Envolve no- portanto, é mais do que simples deslocamento do corpo no
vos valores e atitudes pessoais e profissionais, que se cho- espaço: constitui-se em uma linguagem que permite às crian-
ças agirem sobre o meio físico e atuarem sobre o ambiente
cam com a cultura tradicional das escolas, inclusive com a
humano, mobilizando as pessoas por meio de seu teor ex-
nossa maneira de conceber as pessoas excluídas. Quando
pressivo. As maneiras de andar, correr, arremessar, saltar re-
um sistema de ensino regular não está em condições de
sultam das interações sociais e da relação dos homens com o
atender às necessidades de todos os seus alunos não pode
meio; são movimentos cujos significados têm sido construí-
se propor, ingenuamente, a incluir os excluídos, pois estes
dos emfunção das diferentes necessidades, interesses e possi-
são exatamente os alunos que ela não dá ou não deu conta
bilidades corporais humanas presentes nas diferentes culturas
de educar !
em diversas épocas da história. Esses movimentos incorpo-
A inclusão na educação é um desafio que não atinge ram-se aos comportamentos dos homens, constituindo-se
somente as escolas, porque a escola é parte da comunida- assim numa cultura corporal1. Dessa forma, diferentes mani-
de e tem sua vida afetada pelos avanços e limites de ordem festações dessa linguagem foram surgindo, como a dança, o
física, intelectual, cultural, social do meio em que se insere. jogo, as brincadeiras, as práticas esportivas etc., nas quais se
A garantia do direito da educação em escolas que não ex- faz uso de diferentes gestos, posturas e expressões corporais
cluem as pessoas sob nenhum pretexto é um sinal de de- com intencionalidade.
senvolvimento comunitário e de elevação de seus valores e Ao brincar, jogar, imitar e criar ritmos e movimentos,
atitudes, princípios e ideais. as crianças também se apropriam do repertório da cultura
corporal na qual estão inseridas.
Disponível em: Nesse sentido, as instituições de educação infantil de-
http://www.lite.fe.unicamp.br/cursos/ep403/txt2.htm vem favorecer um ambiente físico e social onde as crianças
se sintam protegidas e acolhidas, e ao mesmo tempo se-
Referência guras parase arriscar e vencer desafios. Quanto mais rico
MANTOAN, Maria Teresa Eglér. Abrindo as escolas às e desafiador for esse ambiente, mais ele lhes possibilitará
diferenças, capítulo 5, in: MANTOAN, Maria Teresa Eglér a ampliação de conhecimentos acerca de si mesmas, dos
(org.) Pensando e Fazendo Educação de Qualidade. São outros e do meio emquevivem.O trabalho com movimen-
Paulo: Moderna, 2001. to contempla a multiplicidade de funções e manifestações
doato motor, propiciando um amplo desenvolvimento de
aspectos específicos da motricidade das crianças, abran-
gendo uma reflexão acerca das posturas corporais implica-
das nas atividades cotidianas, bem como atividades volta-
das para a ampliação da cultura corporal de cada criança.

112
BIBLIOGRAFIA

PRESENÇA DO MOVIMENTO NA EDUCAÇÃO INFAN- o corpo do bebê, esticando e encolhendo seus membros,
TIL:IDÉIASE PRÁTICASCORRENTES fazendo-os descer ou subir de colchonetes ou almofadas,
ou fazendo-os sentar durante um tempo determinado. A
A diversidade de práticas pedagógicas que caracteri- forma mecânica pela qual são feitas as manipulações, além
zam o universo da educação infantil reflete diferentes con- de desperdiçarem o rico potencialdetrocaafetivaquetraze-
cepções quanto ao sentido e funções atribuídas ao movi- messes momentos de interação corporal, deixam a criança
mento no cotidiano das creches, pré-escolas e instituições numa atitude de passividade, desvalorizando as descober-
afins. taseosdesafiosqueelapoderia encontrar de forma mais na-
É muito comum que, visando garantir uma atmosfe- tural, em outras situações.
ra de ordem e de harmonia, algumas práticas educativas O movimento para a criança pequena significa muito
procurem simplesmente suprimir o movimento, impondo mais do que mexer partes do corpo ou deslocar-se no es-
às crianças de diferentes idades rígidas restrições postu- paço. A criança se expressa e se comunica por meio dos
rais. Isso se traduz, por exemplo, na imposição de longos gestos e dasmímicasfaciaiseinterageutilizando fortemente
momentos de espera — em fila ou sentada — em que a o apoio do corpo. A dimensão corporal integra-se ao con-
criança deve ficar quieta, sem se mover; ou na realização junto da atividade da criança. O ato motor faz-se presente
de atividades mais sistematizadas, como de desenho, es- em suas funções expressiva, instrumental ou de sustenta-
crita ou leitura, em que qualquer deslocamento, gesto ou ção às posturas e aos gestos .
mudança de posição pode ser visto como desordem ou in- Quanto menor a criança, mais ela precisa de adultos
disciplina. Até junto aos bebês essa prática pode se fazer que interpretem o significado de seus movimentos e ex-
presente, quando, por exemplo, são mantidos no berço ou pressões, auxiliando-a na satisfação de suas necessidades.
em espaços cujas limitações os impedem de expressar-se À medida que a criança cresce, o desenvolvimento de no-
ou explorar seus recursos motores. vas capacidades possibilita que ela atue de maneira cada
Além do objetivo disciplinar apontado, a permanente vez mais independente sobre o mundo à sua volta, ga-
exigência de contenção motora podeestar baseada na idéia nhando maior autonomia em relação aos adultos.
de que o movimento impede a concentração e a atenção Pode-se dizer que no início do desenvolvimento pre-
da criança, ou seja, que as manifestações motoras atrapa- domina a dimensão subjetiva da motricidade, que encontra
lham a aprendizagem. Todavia, a julgar pelo papel que os
sua eficácia e sentido principalmente na interação com o
gestos e as posturas desempenham junto à percepção e à
meio social, junto às pessoas com quem a criança intera-
representação, conclui-se que, ao contrário, é a impossibi-
ge diretamente. É somente aos poucos que se desenvol-
lidade de mover-se ou de gesticular quepode dificultar o
ve a dimensão objetiva do movimento, que corresponde
pensamento e a manutenção da atenção.
às competências instrumentais para agir sobre o espaço e
Em linhas gerais, as conseqüências dessa rigidez po-
meio físico.
dem apontar tanto para o desenvolvimento de uma ati-
O bebê que se mexe descontroladamente ou que faz
tude de passividade nas crianças como para a instalação
caretas provocadas por desconfortos terá na mãe e nos
de um clima de hostilidade, em que o professor tenta, a
todo custo, conter e controlar as manifestações motoras adultos responsáveis por seu cuidado e educação parceiros
infantis. No caso em que as crianças, apesar das restrições, fundamentais para a descoberta dos significados desses
mantêm ovigor de sua gestualidade, podem ser freqüentes movimentos. Aos poucos, esses adultos saberão que de-
situações em que elas percam completamente o controle terminado torcer de corpo significa que o bebê está, por
sobre o corpo, devido ao cansaço provocado pelo esforço exemplo, com cólica, ou que determinado choro pode ser
de contenção que lhes é exigido. de fome. Assim, a primeira função do ato motor está ligada
Outras práticas, apesar de também visarem ao silêncio à expressão, permitindo que desejos, estados íntimos e ne-
e à contenção de que dependeriam a ordem e a disciplina, cessidades se manifestem.
lançam mão de outros recursos didáticos, propondo, por Mas é importante lembrar que a função expressiva não
exemplo, seqüências de exercícios ou de deslocamentos é exclusiva do bebê. Ela continua presente mesmo com o
em que a criança deve mexer seucorpo, mas desde que em desenvolvimento das possibilidades instrumentais do ato
estrita conformidade a determinadas orientações. Ou ainda motor. É freqüente, por exemplo, a brincadeira de luta entre
reservando curtos intervalos em que a criança é solicitada crianças de cinco ou seis anos, situação em que se pode
a se mexer, para dispender sua energia física. Essas práti- constatar o papel expressivo dos movimentos, já que essa
cas, ao permitirem certa mobilidade às crianças, podem até brincadeira envolve intensa troca afetiva.
ser eficazes do ponto de vista da manutenção da “ordem”, A externalização de sentimentos, emoções e estados
mas limitam as possibilidades de expressão da criança e íntimos poderão encontrar na expressividade do corpo um
tolhem suas iniciativas próprias, ao enquadrar os gestos e recurso privilegiado. Mesmo entre adultos isso aparece
deslocamentos a modelos predeterminados ou a momen- freqüentemente em conversas, em que a expressão facial
tos específicos. pode deixar transparecer sentimentos como desconfiança,
No berçário, um exemplo típico dessas práticas são as medo ou ansiedade, indicando muitas vezes algo oposto
sessões de estimulação individual de bebês, que com fre- ao que se está falando. Outro exemplo é como os gestos
qüência são precedidas por longos períodos de confina- podem ser utilizados intensamente para pontuar a fala, por
mento ao berço. Nessas atividades, o professor manipula meio de movimentos das mãos e do corpo.

113
BIBLIOGRAFIA

Cada cultura possui seu jeito próprio de preservar es- olhos, pega os pés e diverte-se em mantê-los sob o contro-
ses recursos expressivos do movimento, havendo variações le das mãos — como que descobrindo aquilo que faz par-
na importância dada às expressões faciais, aos gestos e às te do seu corpo e o que vem do mundo exterior. Pode-se
posturas corporais, bem como nos significados atribuídos também notar o interesse com que investiga os efeitos dos
a eles. próprios gestos sobre os objetos do mundo exterior, por
É muito grande a influência que a cultura tem sobre o exemplo, puxando várias vezes a corda de um brinquedo
desenvolvimento da motricidade infantil, não só pelos di- que emite umsom, ou tentando alcançar com as mãos o
ferentes significados que cada grupo atribui a gestos e ex- móbile pendurado sobre o berço, ou seja, repetindo seus
pressões faciais, como também pelos diferentes movimen- atos buscando testar o resultado que produzem.
tos aprendidos no manuseio deobjetos específicos presen- Essas ações exploratórias permitem que o bebê des-
tes na atividade cotidiana, como pás, lápis, bolas de gude, cubra os limites e a unidade do próprio corpo, conquistas
corda,estilingue etc. importantes no plano da consciência corporal. As ações em
Os jogos, as brincadeiras, a dança e as práticas esporti- que procura descobrir o efeito de seus gestos sobre os ob-
vas revelam, por seu lado, a cultura corporal de cada grupo jetos propiciam a coordenação sensório- motora, a partir
social, constituindo-se em atividades privilegiadas nas quais de quando seus atos se tornam instrumentos para atingir
o movimento é aprendido e significado. fins situados no mundo exterior. Do ponto de vista das rela-
Dado o alcance que a questão motora assume na ativi- ções com o objeto, a grande conquista do primeiro anode
dade da criança, é muito importante que, ao lado das situa- vida é o gesto de preensão3, o qual se constitui em recurso
ções planejadas especialmente para trabalhar o movimento com múltiplas possibilidades de aplicação.
em suas várias dimensões, a instituição reflita sobre o espa- Aquisições como a preensão e a locomoção represen-
ço dado ao movimento em todos os momentos da rotina tam importantes conquistas no plano da motricidade obje-
diária, incorporando os diferentes significados que lhe são tiva. Consolidando-se como instrumentos de ação sobre o
atribuídos pelosfamiliares e pela comunidade. mundo, aprimoram-se conforme as oportunidades que se
Nesse sentido, é importante que o trabalho incorpore oferecem à criança de explorar o espaço, manipular obje-
a expressividade e a mobilidade próprias às crianças. Assim, tos, realizar atividades diversificadas e desafiadoras.
um grupo disciplinado não é aquele em que todos se man- É curioso lembrar que a aceitação da importância da
têm quietos e calados, mas sim um grupo em que os vários corporeidade para o bebê é relativamente recente, pois até
elementos se encontram envolvidos e mobilizados pelas bem pouco tempo prescrevia-se que ele fosse conservado
atividades propostas. Os deslocamentos, as conversas e as numa espécie de estado de “crisálida” durante vários me-
brincadeiras resultantes desse envolvimento não podem ser ses, envolvido em cueiros e faixas que o confinavam a uma
entendidos como dispersão ou desordem, esim como uma única posição, tolhendo completamente seus movimentos
manifestação natural das crianças. Compreender o caráter espontâneos. Certamente esse hábito traduzia um cuida-
lúdico e expressivo das manifestações da motricidade in- do, uma preocupação com a possibilidade de o bebê se
fantil poderá ajudar o professor a organizar melhor a sua machucar ao fazer movimentos para os quais sua ossatura
prática, levando em conta as necessidades das crianças. e musculatura não estivessem, ainda, preparadas. Por outro
lado, ao proteger o bebê dessa forma, se estava impedindo
A CRIANÇA E O MOVIMENTO O primeiro ano de sua movimentação. Não tendo como interagir com o mun-
vida do físico e tendo menos possibilidades de interagir com o
mundo social, era mais difícil expressar-se e desenvolver
Nessa fase, predomina a dimensão subjetiva do movi- as habilidades necessárias para uma relação mais indepen-
mento, pois são as emoções o canal privilegiado de intera- dente com o ambiente.
ção do bebê com o adulto e mesmo com outras crianças.
O diálogo afetivo que se estabelece com o adulto, caracte- Crianças de um a três anos
rizado pelo toque corporal, pelas modulações da voz, por Logo que aprende a andar, a criança parece tão encan-
expressões cada vez mais cheias de sentido, constitui-se tada com sua nova capacidade que se diverte em locomo-
em espaço privilegiado de aprendizagem. A criança imita o ver-se de um lado para outro, sem uma finalidade especí-
parceiro e cria suas próprias reações: balança o corpo, bate fica. O exercício dessa capacidade, somado ao progressivo
palmas, vira ou levanta a cabeça etc. amadurecimento do sistema nervoso, propicia o aperfei-
Ao lado dessas capacidades expressivas, o bebê realiza çoamento do andar, que se torna cada vez mais seguro e
importantes conquistas no plano da sustentação do próprio estável, desdobrando-se nos atos de correr, pular e suas
corpo, representadas em ações como virar-se, rolar, sentar- variantes.
se etc. Essas conquistas antecedem e preparam o aprendi- A grande independência que andar propicia na explo-
zado da locomoção, o que amplia muitoapossibilidade de ração do espaço é acompanhada também por uma maior
ação independente. É bom lembrar que, antes de aprender disponibilidade das mãos: a criança dessa idade é aquela
a andar, as crianças podem desenvolver formas alternativas que não pára, mexe em tudo, explora, pesquisa.
de locomoção, como arrastar-se ouengatinhar. Ao mesmo tempo que explora, aprende gradualmente
Ao observar um bebê, pode-se constatar que é grande a adequar seus gestos e movimentos às suas intenções e
o tempo que ele dedica à explorações do próprio corpo — às demandas da realidade. Gestos como o de segurar uma
fica olhando as mãos paradas ou mexendo-as diante dos colher para comer ou uma xícara para beber e o de pegar

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BIBLIOGRAFIA

um lápis para marcar um papel, embora ainda não muito O maior controle sobre a própria ação resulta em dimi-
seguros, são exemplos dos progressos no plano da ges- nuição da impulsividade motora que predominava nos bebês.
tualidade instrumental. O fato de manipular objetos que É grande o volume de jogos e brincadeiras encontra-
tenham um uso cultural bem definido não significa que a das nas diversas culturas que envolvem complexas se-
manipulação se restrinja a esse uso, já que o caráter expres- qüências motoras para serem reproduzidas, propiciando
sivo do movimento ainda predomina. Assim, se a criança conquistas no plano da coordenação e precisão do mo-
dessa idade pode pegar uma xícara para beber água, pode vimento.
também pegá-la simplesmente para brincar, explorando as As práticas culturais predominantes e as possibilida-
várias possibilidades de seu gesto. des de exploração oferecidas pelo meio no qual a criança
Outro aspecto da dimensão expressiva do ato motor vive permitem que ela desenvolva capacidades e cons-
é o desenvolvimento dos gestos simbólicos, tanto aqueles trua repertórios próprios. Por exemplo, uma criança criada
ligados ao faz-de-conta quanto os que possuem uma fun- num bairro em que o futebol é uma prática comum po-
ção indicativa, como apontar, dar tchau etc. No faz-de-con- derá interessar-se pelo esporte e aprender a jogar desde
ta pode-se observar situações em que as crianças revivem cedo. Uma criança que vive à beira de um rio utilizado,
uma cena recorrendo somente aos seus gestos, por exem- por exemplo, como forma de lazer pela comunidade pro-
plo, quando, colocando os braços na posição de ninar, os vavelmente aprenderá a nadar sem que seja preciso entrar
balançam, fazendo de conta que estão embalando umabo- numa escola de natação, como pode ser o caso de uma
neca. Nesse tipo de situação, a imitação desempenha um criança de ambiente urbano. Habilidades de subir em ár-
importante papel. vores, escalar alturas, pular distâncias, certamente serão
No plano da consciência corporal, nessa idade a crian- mais fáceis para crianças criadas em locais próximos à na-
ça começa a reconhecer a imagem de seu corpo, o que tureza, ou que tenham acesso a parques ou praças.
ocorre principalmente por meio das interações sociais que As brincadeiras que compõem o repertório infantil e
estabelece e das brincadeiras que faz diante do espelho. que variam conforme a cultura regional apresentam-se
Nessas situações, ela aprende a reconhecer as característi- como oportunidades privilegiadas para desenvolver habi-
cas físicas que integram a sua pessoa, o que é fundamental lidades no plano motor, como empinar pipas, jogar boli-
para a construção de sua identidade. nhas de gude, atirar com estilingue, pular amarelinha etc.

OBJETIVOS
Crianças de quatro a seis anos
Crianças de zero a três anos
Nessa faixa etária constata-se uma ampliação do re-
pertório de gestos instrumentais, os quais contam com
A prática educativa deve se organizar de forma a que
progressiva precisão. Atos que exigem coordenação de vá-
as crianças desenvolvam as seguintes capacidades:
rios segmentos motores e o ajuste a objetos específicos,
• familiarizar-se com a imagem do próprio corpo;
como recortar, colar, encaixar pequenas peças etc., sofis-
• explorar as possibilidades de gestos e ritmos corpo-
ticam-se. Ao lado disso, permanece a tendência lúdica da
rais para expressar-senas brincadeiras e nas demais situa-
motricidade, sendo muito comum que as crianças, durante ções de interação;
a realização de uma atividade, desviem a direção de seu • deslocar-se com destreza progressiva no espaço ao
gesto; é o caso, por exemplo, da criança que está recor- andar, correr, pular etc.,desenvolvendo atitude de confian-
tando e que de repente põe-se a brincar com a tesoura, ça nas próprias capacidades motoras;
transformando-a num avião, numa espada etc. • explorar e utilizar os movimentos de preensão, en-
Gradativamente, o movimento começa a submeter- caixe, lançamento etc., para o uso de objetos diversos.
-se ao controle voluntário, o que se reflete na capacidade
de planejar e antecipar ações — ou seja, de pensar antes Crianças de quatro a seis anos
de agir — eno desenvolvimento crescente de recursos de Para esta fase, os objetivos estabelecidos para a faixa
contenção motora. A possibilidade de planejar seu próprio etária de zero a três anos deverão seraprofundados e am-
movimento mostra-se presente, por exemplo, nas conver- pliados, garantindo-se, ainda, oportunidades para que as
sas entre crianças em que uma narra para a outra oqueeco- crianças sejamcapazes de:
mofarápararealizar determinada ação: “Eu vou lá, vou pular • ampliar as possibilidades expressivas do próprio
assim e vou pegar tal coisa...”. movimento, utilizandogestosdiversoseoritmocorporal-
Os recursos de contenção motora, por sua vez, se tra- nassuas brincadeiras, danças, jogosedemais situações de
duzem no aumento dotempoqueacriançaconsegue man- interação;
ter-se numa mesma posição. Vale destacaroenormeesfor- • explorar diferentes qualidades e dinâmicas do movi-
çoquetal aprendizado exige da criança, já que, quando o mento, como força, velocidade, resistência e flexibilidade,
corpo está parado, ocorre intensa atividade muscular para conhecendo gradativamente os limites eas potencialida-
mantê-lo na mesma postura. Do ponto de vista da ativi- des de seu corpo;
dade muscular, os recursos de expressividade correspon- • controlar gradualmente o próprio movimento, aper-
dem a variações do tônus (grau de tensão do músculo), feiçoando seusrecursosde deslocamento e ajustando suas
que respondem também pelo equilíbrio e sustentação das habilidades motoras para utilização em jogos, brincadei-
posturas corporais. ras, danças e demais situações;

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BIBLIOGRAFIA

• utilizar os movimentos de preensão, encaixe, lança- rítmica, a identificação de segmentos do corpo e o contato
mento etc., para ampliarsuas possibilidades de manuseio físico. A cultura popular infantil é uma riquíssima fonte na
dos diferentes materiais e objetos; qual se pode buscar cantigas e brincadeiras de cunho afeti-
• apropriar-se progressivamente da imagem global de vo nas quais o contato corporal é o seu principal conteúdo,
seu corpo, conhecendoeidentificando seus segmentos e como no seguinte exemplo: “& Conheço um jacaré &que
elementos e desenvolvendo cada vezmais uma atitude de gosta de comer. & Esconda a sua perna, & senão o jacaré
interesse e cuidado com o próprio corpo. come sua perna e o seu dedão do pé &”5 .Os jogos e brin-
cadeiras que envolvem as modulações de voz, as melodias
CONTEÚDOS e a percepção rítmica — tão características das canções de
A organização dos conteúdos para o trabalho com ninar, associadas ao ato de embalar, e aos brincos , brinca-
movimento deverá respeitar as diferentes capacidades das deiras ritmadas que combinam gestos e música — podem
crianças em cada faixa etária, bem como as diversas cultu- fazer parte de seqüências de atividades. Essas brincadeiras,
ras corporais presentes nas muitas regiões do país. ao propiciar o contato corporal da criança com o adulto,
Os conteúdos deverão priorizar o desenvolvimento das auxiliam o desenvolvimento de suas capacidades expres-
capacidades expressivas e instrumentais do movimento, sivas. Um exemplo é a variante brasileira de um brinco de
possibilitando a apropriação corporal pelas crianças de for- origem portuguesa no qual o adulto segura a criança em
ma que possam agir com cada vez mais intencionalidade. pé ou sentada em seu colo e imita o movimento do serra-
Devem ser organizados num processo contínuoe integrado dor enquanto canta: “& Serra, serra, serrador, & Serra o
que envolve múltiplas experiências corporais, possíveis de papo do vovô. & Serra um, serra dois, & serra três, serra
serem realizadas pela criança sozinha ou em situações de quatro, &serra cinco, serra seis, &serra sete, serra oito, &
interação. Os diferentes espaços e materiais, os diversos serra nove, serra dez! &”.
repertórios de cultura corporal expressos em brincadeiras, É importante que nos berçários e em cada sala haja um
jogos, danças, atividades esportivas e outras práticas so- espelho grande o suficiente para permitir que várias crian-
ciais são algumas das condições necessárias para que esse ças possam se ver refletidas ao mesmo tempo, oferecendo
processo ocorra. a elas a possibilidade de vivenciar e compartilhar descober-
Os conteúdos estão organizados em dois blocos. O pri- tas fundamentais. O espelho deve estarsituado de forma a
meiro refere-se às possibilidades expressivas do movimen-
permitir a visão do corpo inteiro, ao lado do qual poderão
to e o segundo ao seu caráter instrumental.
ser colocadoscolchonetes, tapetes, almofadas, brinquedos
variados etc. Alguns materiais, em contato com o corpo da
Expressividade
criança, podem proporcionar experiências significativas no
A dimensão subjetiva do movimento deve ser contem-
que diz respeito à sensibilidade corporal. As característi-
plada e acolhida em todas as situações do dia-a-dia na ins-
cas físicas de fluidez, textura, temperatura eplasticidade da
tituição de educação infantil, possibilitando que as crianças
terra, da areia e da água propiciam atividades sensíveis in-
utilizem gestos, posturas e ritmos para se expressar e se
comunicar. Além disso, é possível criar, intencionalmente, teressantes, comoo banho de esguicho, construir castelos
oportunidades para que as crianças se apropriem dos sig- com areia, fazer bolo de lama etc. Outra sugestãoéo uso
nificados expressivos do movimento. de tecidos de diferentes texturas e pesos, ou materiais de
A dimensão expressiva do movimento engloba tanto temperaturas diferentes, em brincadeiras prazerosas como
as expressões e comunicação de idéias, sensações e sen- esconder sob um pano grosso; fazer cabanas; túneis e labi-
timentos pessoais como as manifestações corporais que rintos construídos com filó etc.
estão relacionadas com a cultura. A dança é uma das mani- As mímicas faciais e gestos possuem um papel impor-
festações da cultura corporal dos diferentes grupos sociais tante na expressão de sentimentos e em sua comunicação.
que está intimamente associada ao desenvolvimento das É importante que a criança dessa faixa etária conheça suas
capacidades expressivas das crianças. A aprendizagem da próprias capacidades expressivas e aprenda progressiva-
dança pelas crianças, porém, não pode estar determinada mente a identificar as expressões dos outros, ampliando
pela marcação e definição de coreografias pelos adultos. sua comunicação. Brincar de fazer caretas ou de imitar bi-
chos propicia a descoberta das possibilidades expressivas
CRIANÇAS DE ZERO A TRÊS ANOS de si próprio e dos outros.
• Reconhecimento progressivo de segmentos e ele- Participar de brincadeiras de roda ou de danças circula-
mentos do próprio corpo por meio da exploração, das brin- res, como “A Galinha do Vizinho” ou “Ciranda, Cirandinha”,
cadeiras, do uso do espelho e da interação com os outros. favorecem o desenvolvimento da noção de ritmo indivi-
• Expressão de sensações e ritmos corporais por meio dual e coletivo, introduzindo as crianças em movimentos
de gestos, posturas e da linguagem oral. inerentes à dança. Brincadeiras tradicionais como “A Linda
Rosa Juvenil”, na qual a cada verso corresponde umges-
ORIENTAÇÕES DIDÁTICAS to, proporcionam também a oportunidade de descobrir e
Atividades como o banho e a massagem são oportu- explorar movimentos ajustados a um ritmo, conservando
nidades privilegiadas de explorar opróprio corpo, assim fortemente a possibilidade de expressar emoções.
como de experimentar diferentes sensações, inclusive jun- O professor precisa cuidar de sua expressão e posturas
to com outras crianças. Brincadeiras que envolvam o canto corporais ao se relacionar com ascrianças. Não deve esque-
e o movimento, simultaneamente, possibilitam apercepção cer que seu corpo é um veículo expressivo, valorizando e

116
BIBLIOGRAFIA

adequando os próprios gestos, mímicas e movimentos na o que acontece quando as crianças correm, rolam ou são
comunicação com as crianças, como quando as acolhe no massageadas pode garantir a ampliação do conhecimento
seu colo, oferece alimentos ou as toca na hora do banho. O sobre seu corpo e expressão do movimento de forma mais
professor, também, é modelo para as crianças, fornecendo- harmoniosa.
-lhes repertório de gestos e posturas quando, por exemplo, Representar experiências observadas e vividas por
conta histórias pontuando idéias com gestos expressivos meio do movimento pode se transformar numa atividade
ou usa recursos vocais para enfatizar sua dramaticidade. bastante divertida e significativa para as crianças. Derreter
Conhecer jogos e brincadeiras e refletir sobre os tipos de como um sorvete, flutuar como um floco de algodão, ba-
movimentos que envolvem é condição importante para lançar como as folhas de uma árvore, correr como um rio,
ajudar as crianças a desenvolverem uma motricidade har- voar como uma gaivota, cair como um raio etc., são exer-
moniosa. cícios de imaginação e criatividade que reiteram a impor-
tância do movimento para expressar e comunicar idéias e
CRIANÇAS DE QUATRO A SEIS ANOS emoções.
• Utilização expressiva intencional do movimento nas No Brasil existem inúmeras danças, folguedos, brinca-
situações cotidianase em suas brincadeiras. deiras de roda e cirandas que, além do caráter de socia-
• Percepção de estruturas rítmicas para expressar-se lização que representam, trazem para a criança a possibi-
corporalmente por meio da dança, brincadeiras e de ou- lidade de realização de movimentos de diferentes quali-
tros movimentos. dades expressivas e rítmicas. A roda otimiza a percepção
• Valorização e ampliação das possibilidades estéticas de um ritmo comum e a noção de conjunto. Há muitas
do movimento pelo conhecimento e utilização de diferen- brincadeiras de roda8 , como o coco de roda alagoano,
tes modalidadesde dança. o bumba-meu-boi maranhense, a catira paulista, o mara-
• Percepção das sensações, limites, potencialidades, si- catu eo frevo pernambucanos, a chula rio-grandense, as
nais vitais e integridade do próprio corpo. cirandas, as quadrilhas, entre tantas outras. O fato de to-
das essas manifestações expressivas serem realizadas em
ORIENTAÇÕES DIDÁTICAS grupo acrescentam ao movimento um sentido socializador
O espelho continua a se fazer necessário para a cons-
e estético.
trução e afirmação da imagem corporal em brincadeiras
nas quais meninos e meninas poderão se fantasiar, assu-
Equilíbrio e coordenação
mir papéis, se olharem. Nesse sentido, um conjunto de
As ações que compõem as brincadeiras envolvem as-
maquiagem, fantasias diversas, roupas velhas de adultos,
pectos ligados à coordenação do movimento e ao equi-
sapatos, bijuterias e acessórios são ótimos materiais para o
líbrio. Por exemplo, para saltar um obstáculo, as crianças
faz-de-conta nessa faixa etária. Com eles, e diante do es-
precisam coordenar habilidades motoras como velocida-
pelho, a criança consegue perceber que sua imagem muda,
de, flexibilidade e força, calculando a maneira mais ade-
sem que modifique a sua pessoa.
Pode-se propor alguns jogos e brincadeiras envolven- quada de conseguir seu objetivo. Para empinar uma pipa,
do a interação, a imitação e o reconhecimento do corpo, precisam coordenar a força e a flexibilidade dos movimen-
como “Siga o Mestre” e “Seu Lobo”7. tos do braço com a percepção espacial e, se for preciso
O professor pode propor atividades em que as crian- correr, a velocidade etc.
ças, de forma mais sistemática, observem partes do pró- As instituições devem assegurar e valorizar, em seu co-
prio corpo ou de seus amigos, usando-as como modelo, tidiano, jogos motores e brincadeiras que contemplem a
como, por exemplo, para moldar, pintar ou desenhar. Essa progressiva coordenação dos movimentos e o equilíbrio
possibilidade pode ser aprofundada, se forem pesquisadas das crianças. Os jogos motores de regras trazem também
também obras de arte em que partes do corpo foram re- a oportunidade de aprendizagens sociais, pois ao jogar, as
tratadas ou esculpidas. crianças aprendem a competir, a colaborar umas com as
É importante lembrar que nesse tipo de trabalho não outras, a combinar e a respeitar regras.
há necessidade de se estabelecer umahierarquia prévia en-
tre as partes do corpo que serão trabalhadas. Pensar que CRIANÇASDEZEROATRÊSANOS
para a criança é mais fácil começar a perceber o próprio • Exploração de diferentes posturas corporais, como
corpo pela cabeça, depois pelo tronco e por fim pelos sentar-se emdiferentesinclinações, deitar-se em diferentes
membros, por exemplo, pode não corresponder à sua ex- posições, ficar ereto apoiado na planta dos pés com e sem
periência real. Nesse sentido, oprofessor precisa estar bas- ajuda etc.
tante atento aos conhecimentos prévios das crianças acer- • Ampliação progressiva da destreza para deslocar-se
ca de si mesmas e de sua corporeidade, para adequar seus no espaço por meio da possibilidade constante de arras-
projetos e a melhor maneira de trabalhá-los com o grupo tar-se, engatinhar, rolar, andar, correr, saltar etc.
de crianças. • Aperfeiçoamento dos gestos relacionados com a
O reconhecimento dos sinais vitais e de suas altera- preensão, o encaixe, o traçado no desenho, o lançamento
ções, como a respiração, osbatimentos cardíacos, assim etc., por meio da experimentação eutilização de suas habi-
como as sensações de prazer, podem ser trabalhados com lidades manuais em diversas situações cotidianas.
as crianças. Perceber esses sinais, refletir e conversar sobre

117
BIBLIOGRAFIA

ORIENTAÇÕES DIDÁTICAS A brincadeira de pular corda, tão popular no Brasil,


Quanto menor a criança, maior é a responsabilidade propõe às crianças uma pesquisa corporal intensa, tanto
do adulto de lhe proporcionar experiências posturais e mo- em relação às diferentes qualidades de movimento que su-
toras variadas. Para isso ele deve modificar as posições das gere (rápidos ou lentos; pesados ou leves) como também
crianças quando sentadas ou deitadas; observar os bebês em relação à percepção espaço-temporal, já que, para “en-
para descobrir em que posições ficam mais ou menos con- trar” na corda, as crianças devem sentir o ritmo de suas bati-
fortáveis; tocar, acalentar e massagear freqüentemente os das no chão para perceber o momento certo. A corda pode
bebês para que eles possam perceber partes do corpo que também ser utilizada em outras brincadeiras desafiadoras.
não alcançam sozinhos. Ao ser amarrada no galho de uma árvore, possibilita à crian-
O professor pode organizar o ambiente com materiais ça pendurar-se e balançar-se; ao ser esticada em diferentes
que propiciem a descoberta e exploração do movimento. alturas, permite que as crianças se arrastem, agachem etc.
Materiais que rolem pelo chão, como cilindros e bolas de Os primeiros jogos de regras são valiosos para o de-
diversos tamanhos, sugerem às crianças que se arrastem, senvolvimento de capacidades corporais de equilíbrio e
engatinhem ou caminhem atrás deles ou ainda que rolem coordenação, mas trazem também a oportunidade, para as
sobre eles. As bolas podem ser chutadas, lançadas, quica- crianças, dasprimeiras situações competitivas, em que suas
das etc. Túneis de pano sugerem às crianças que se abai- habilidades poderão ser valorizadas de acordocom os ob-
xem e utilizem a força dos músculos dos braços e daspernas jetivos do jogo. É muito importante que o professor esteja
para percorrer seu interior. Móbiles e outros penduricalhos atento aos conflitos que possam surgir nessas situações,
sugerem que as criançasexercitem a posição ereta, nas ten- ajudando as crianças a desenvolver uma atitude de com-
tativas de erguer-se para tocá-los. Almofadas organizadas petição de forma saudável. Nesta faixa etária, o professor
num ambiente com livros ou gibis e brinquedos convidam é quem ajudará as crianças acombinar e cumprir regras,
as crianças a sentarem ou deitarem, concentradas nas suas desenvolvendo atitudes de respeito e cooperação tão ne-
atividades. cessárias, mais tarde, no desenvolvimento das habilidades
O professor pode organizar atividades que exijam o desportivas.
aperfeiçoamento das capacidades motoras das crianças, ou São muitos os jogos existentes nas diferentes regiões
que lhes tragam novos desafios, considerando seus pro- do Brasil que podem ser utilizados para esse fim; cabe ao
gressos. Um bom exemplo são as organizações de circuitos professor levantar junto a crianças, familiares e comunida-
no espaço externo ou interno de modo a sugerir às crian- de aqueles mais significativos9. As brincadeiras e jogos en-
ças desafios corporais variados. Podem-se criar, com pneus, volvem a descoberta e a exploração decapacidades físicas
bancos, tábuas de madeira etc., túneis, pontes, caminhos, e a expressão de emoções, afetos e sentimentos. Além de
rampas e labirintos nos quais as crianças podem saltar para alegria e prazer, algumas vezes a exposição de seu corpo e
dentro, equilibrar-se, andar, escorregar etc. de seus movimentos podem gerar vergonha, medo ouraiva.
Algumas brincadeiras tradicionais podem contribuir Isso também precisa ser considerado pelo professor para
para a qualidade das experiências motoras e posturais das que ele possa ajudar as crianças a lidar de forma positiva
crianças, como, por exemplo, a brincadeira de estátua cuja com limites e possibilidades do próprio corpo.
regra principal é a de que as crianças fiquem paradas como As diferentes atividades que ocorrem nas instituições
estátua a um sinal, promovendo a manutenção do tônus requerem das crianças posturas corporais distintas. Cabe ao
muscular durante algum tempo. professor organizar o ambiente de tal forma a garantir a
postura mais adequada para cada atividade, não as restrin-
CRIANÇAS DE QUATRO A SEIS ANOS gindo a modelos estereotipados.
• Participação em brincadeiras e jogos que envolvam
correr, subir, descer,escorregar, pendurar-se, movimentar-se, ORIENTAÇÕES GERAIS PARA O PROFESSOR
dançar etc., para ampliar gradualmente o conhecimento e É muito importante que o professor perceba os diversos
controle sobre o corpo e o movimento. significados que pode ter a atividade motora para as crian-
• Utilização dos recursos de deslocamento e das habi- ças. Isso poderá contribuir para que ele possa ajudá-las a
lidades de força,velocidade, resistência e flexibilidade nos ter umapercepção adequada de seus recursos corporais, de
jogos e brincadeiras dosquais participa. suas possibilidades e limitações sempre em transformação,
• Valorização de suas conquistas corporais. dando-lhes condições de se expressarem com liberdade e
• Manipulação de materiais, objetos e brinquedos di- de aperfeiçoarem suas competências motoras.
versos para aperfeiçoamento de suas habilidades manuais. O professor deve refletir sobre as solicitações corpo-
rais das crianças e sua atitude diante das manifestações da
ORIENTAÇÕES DIDÁTICAS motricidade infantil, compreendendo seu caráter lúdico e
É importante possibilitar diferentes movimentos que expressivo. Além de refletir acerca das possibilidades pos-
aparecem em atividades como lutar, dançar, subir e descer turais e motoras oferecidas no conjunto das atividades, é
de árvores ou obstáculos, jogar bola, rodar bambolê etc. Es- interessante planejar situações de trabalho voltadas para
sas experiências devem ser oferecidas sempre, com o cuida- aspectos mais específicos do desenvolvimento corporal e
do de evitar enquadrar as crianças em modelos de compor- motor. Nessa perspectiva, o professor deverá avaliar cons-
tamento estereotipados, associados ao gênero masculino e tantemente o tempo de contenção motora ou de manuten-
feminino, como, por exemplo, não deixar que as meninas ção de uma mesma postura de maneira a adequar as ativi-
joguem futebol ou que os meninos rodem bambolê. dades às possibilidades das crianças de diferentes idades.

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BIBLIOGRAFIA

Outro ponto de reflexão diz respeito à lateralidade, ou Devem ser documentados os aspectos referentes a ex-
seja, à predominância para o usode um lado do corpo. Du- pressividade do movimento e sua dimensão instrumental. É
rante o processo de definição da lateralidade, as crianças recomendável que o professor atualize, sistematicamente,
podemusar, indiscriminadamente, ambos os lados do cor- suas observações, documentando mudanças e conquistas.
po. Espontaneamente a criança irá manifestar a preferência São consideradas como experiências prioritárias para
pelo uso de uma das mãos, definindo-se como destra ou a aprendizagem do movimento realizada pelas crianças de
canhota. Assim, cabe ao professor acolher suas preferên- zero a três anos: uso de gestos e ritmos corporais diver-
cias, sem impor-lhes, por exemplo, o uso da mão direita. sos para expressar-se; deslocamentos no espaço sem aju-
A organização do ambiente, dos materiais e do tempo da. Para que isso ocorra é necessário que sejam oferecidas
visam a auxiliar que as manifestações motoras das crianças condições para que as crianças explorem suas capacidades
estejam integradas nas diversas atividades da rotina. Pa- expressivas, aceitando com confiança desafios corporais.
raisso, os espaços externos e internos devem ser amplos A partir dos quatro e até os seis anos, uma vez que
o suficiente para acolher as manifestações da motricidade tenham tido muitas oportunidades, nainstituição de edu-
infantil. Os objetos, brinquedos e materiais devem auxiliar cação infantil, de vivenciar experiências envolvendo o mo-
as atividades expressivas e instrumentais do movimento. vimento, pode-seesperar que as crianças o reconheçam e o
utilizem como linguagem expressiva e participem de jogos
Organização do tempo e brincadeiras envolvendo habilidades motoras diversas.
Os conteúdos relacionados ao movimento deverão ser É importante informar sempre as crianças acerca de
trabalhados inseridos na rotina. Asatividades que buscam suas competências. Desde pequenas, a valorização de seu
valorizar o movimento nas suas dimensões expressivas, ins- esforço e comentários a respeito de como estão construin-
trumentais e culturais podem ser realizadas diariamente de do e se apropriando desse conhecimento são atitudes que
maneira planejada ou não. as encorajam e situam com relação à própria aprendiza-
Também podem ser realizados projetos que integrem gem. É sempre bom lembrar que seu empenho e suas con-
vários conhecimentos ligados ao movimento. A apresenta- quistas devem ser valorizados em função de seus progres-
ção de uma dança tradicional, por exemplo, pode-se cons- sos e do próprio esforço, evitando colocá-las em situações
tituir em um interessante projeto para as crianças maiores, de comparação.
quando necessitam:
• pesquisar diferentesdançastradicionaisbrasileiraspara
selecionar aquela que mais interessar às crianças;
• informar-se sobre a origem e história da dança sele-
MOYLES, JANE R. SÓ BRINCAR? O PAPEL DO
cionada;
• desenvolver recursos expressivos e aprender os pas-
BRINCAR NA EDUCAÇÃO INFANTIL. PORTO
sos para a dança; ALEGRE ARTMED EDITORA, 2002.
• confeccionar as roupas necessárias para a apresen-
tação;
• planejar a apresentação, confeccionando cartazes,
convites etc. Vivenciando a Lua Nova-escola e centro de Estudos,
Da mesma forma, podem ser desenvolvidos projetos como estagiária, pude perceber como o lúdico é utiliza-
envolvendo jogos e brincadeiras de roda, circuitos mo- do como forma de aprendizagem e desenvolvimento das
tores etc. crianças. Na alfabetização, turma da qual fui estagiaria, ob-
servei o trabalho da professora que conseguia envolver os
Observação, registro e avaliação formativa alunos nas atividades.
Para que se tenha condições reais de avaliar se uma Durante nossas jornadas, um fato me chamou a aten-
criança está ou não desenvolvendo uma motricidade sau- ção quando uma das crianças, que estava doente, pediu à
dável, faz-se necessário refletir sobre o ambiente da insti- mãe para ir até a escola e avisar a professora que enviasse
tuição e o trabalho ali desenvolvido: ele é suficientemente as atividades de casa para ela fazer. Situações como estas
desafiador? Será que as crianças não ficam muito tempo permitiram-me crer que havia algo mágico na prática pe-
sentadas, sem oportunidades de exercitar outras posturas? dagógica e fui descobrindo que a ludicidade era um dos
As atividades oferecidas propiciam situações de interação? aspectos que contagiava as crianças.
A avaliação do movimento deve ser contínua, levando A professora demonstrou prazer e entusiasmo atra-
em consideração os processos vivenciados pelas crianças, vés da sua prática pedagógica e boa parte da suas ações,
resultado de um trabalho intencional do professor. Deverá enquanto docente, envolveram brincadeiras, jogos, e os
constituir-se em instrumento para a reorganização de obje- faz-de-conta. Tais situações representaram para mim um
tivos, conteúdos, procedimentos, atividades e como forma estágio rico e muito prazeroso.
de acompanhar e conhecer cada criança e grupo. Quem não gosta de aprender brincando? Ao contrário
A observação cuidadosa sobre cada criança e sobre o do que algumas pessoas pensam, brincar para as crianças
grupo fornece elementos que podem auxiliar na constru- é algo muito sério, pois é através dos jogos e brincadeiras
ção de uma prática que considere o corpo e o movimento que a criança tem a possibilidade de expressar, imaginar,
das crianças. representar e aprender regras sociais (OLIVEIRA, 2005).

119
BIBLIOGRAFIA

No grupo 6, no início do primeiro semestre, a chama- muitos colegas ansiosos por encontrar trabalho. Sabe que
da, por exemplo, foi utilizada como uma forma de integra- sua experiência é importante, mas também que a concor-
ção com o grupo. rência é grande e que há muita gente disposta a ensinar
“(...)as fichas foram viradas pela professora e quem pe- por salários menores. Ensinar tem momentos “glamouro-
gasse a ficha tentaria identificar o nome do colega e dar um sos”, em que os alunos participam, se envolvem, trazem
abraço nele e assim sucessivamente. As crianças se diverti- contribuições significativas. Mas muitos outros momentos
ram muito. (Trecho do registro feito pela estagiária Juliana são banais; parece que nada acontece. É um entra e sai de
em 03/03/2008) rostos que se revezam no mesmo ritmo semanal de aula,
Situações lúdicas eram integradas a rotina como: brin- exercícios, mais aulas, provas, correções, notas, novas au-
cadeiras na hora do parque, aulas de música e educação las, novas atividades.... A rotina corrói uma parte do sonho,
física. Pude perceber através das experiências com outros a engrenagem despersonaliza; a multiplicação de institui-
grupos da educação infantil que havia na instituição o real ções escolares torna previsíveis as atividades profissionais.
desejo por uma educação de qualidade e compromisso Há um aumento de oferta profissional (mais vagas para ser
com a infância. professor), junto com uma diminuição das exigências para
Percebi que a integração entre a aprendizagem e o a profissão (mais fácil ter diploma, muitos estudantes em
brincar pode acontecer se existir interesses comuns, espa- fase final são contratados, aumenta a concorrência). A ten-
ço, desejo e parceria. tação da mediocridade é real. Basta ir tocando para ficar
O brincar além de oportunidade prazerosa é, também, anos como docente, ganhar um salário seguro, razoável. Os
uma forma de possibilitar a interação da criança com o anos vão passando e quando o professor percebe já está na
mundo social e seus desafios. fase madura e se tornou um docente acomodado.
Fonte:  https://www.webartigos.com/artigos/a-im-
portancia-do-brincar-para-a-aprendizagem-e-o-de- As etapas de aprendizagem a ser docente
senvolvimento-da-crianca/22309/#ixzz5OiepwXFt Apesar de que cada docente tem sua trajetória, há
pontos da evolução profissional coincidentes. Relato a se-
guir uma síntese de questões que costumam acontecer –
MORAN, JOSÉ. A APRENDIZAGEM DE SER com muitas variáveis - na trajetória de muitos professores,
EDUCADOR. a partir da minha observação e experiência.

A iniciação
Recém-formado, o novo professor começa a ser cha-
A APRENDIZAGEM DE SER EDUCADOR mado para substituir um colega em férias, uma professo-
ra em licença maternidade, dá algumas aulas no lugar de
José Moran professores ausentes. Ele ainda se confunde com o aluno,
intimamente se sente aluno, mas percebe que é visto pelos
O educador é especialista em conhecimento, em apren- alunos como uma mistura de professor e aluno. Ele luta
dizagem. Como especialista, espera-se que ao longo dos para se impor, para impressionar, para ser reconhecido.
anos aprenda a ser um profissional equilibrado, experiente, Prepara as aulas, traz atividades novas, se preocupa em
evoluído; que construa sua identidade pacientemente, in- cativar os alunos, em ser aceito. Sente medo de ser ridi-
tegrando o intelectual, o emocional, o ético, o pedagógico. cularizado em público com alguma pergunta impertinente
O educador pode ser testemunha viva da aprendiza- ou muito difícil. Tem medo dos que o desafiam, dos alunos
gem contínua. Testemunho impresso nos seus gestos e que não ligam para as suas aulas, dos que ficam conver-
personalidade de que evolui, aprende, se humaniza, se tor- sando o tempo todo. Procura ser inovador e, ao mesmo
na uma pessoa mais aberta, acolhedora, compreensiva. tempo, percebe que reproduz algumas técnicas de lecionar
Testemunha viva, também, das dificuldades de apren- que vivenciou como aluno, algumas até criticadas. É uma
der, das dificuldades em mudar, das contradições no co- etapa de aprendizagem, de insegurança, de entusiasmo e
tidiano; de aprender a compreender-se e a compreender. de muito medo de fracassar.
Com o passar do tempo ele vai mostrando uma traje- O tempo passa, os alunos vão embora, chegam ou-
tória coerente, de avanços, de sensatez e firmeza. Passa por tros em outro semestre e o processo recomeça. Agora já
etapas em que se sente perdido, angustiado, fora de foco. tem uma noção mais clara do que o espera; planeja com
Retoma o rumo, depois, revigorado, estimulado por novos mais segurança o novo semestre, repete alguns “macetes”
desafios, pelo contato com seus alunos, pela vontade de que deram certo até agora, busca alguns textos diferentes,
continuar vivendo, aprendendo, realizando-se e frustran- inova um pouco, arrisca mais. Vê que algumas atividades
do-se, às vezes, mas mantendo o impulso de avançar. funcionam sempre e outras não tanto. Descobre que cada
Há momentos em que se sente perdido, desmotivado. turma tem comportamentos semelhantes, mas que reage
Educar tem muito de rotina, de repetição, de decepção. de forma diferente às mesmas propostas e assim vai, por
É um campo cada vez mais tomado por investidores, por tentativa e erro, aprendendo a diversificar, a desenvolver
pessoas que buscam lucros fáceis. Ele se sente parte de um “feeling” de como está cada classe, de quando vale a
uma máquina, de uma engrenagem que cresce despropor- pena insistir na aula teórica planejada e quando tem que
cionalmente. Sente-se, em alguns momentos, insignifican- introduzir uma nova dinâmica, contar uma história, passar
te, impotente, um número que pode ser substituído por um vídeo, encurtar o fim da aula, etc.

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BIBLIOGRAFIA

A consolidação Mudanças
De semestre em semestre o jovem professor vá con- Diante das crises, alguns professores desistem, entre-
solidando o seu jeito de ensinar, de lidar com os alunos, as gam a toalha. Procuram algumas saídas, fugas e terminam
áreas de atuação. Consegue ter maior domínio de todo o se acalmando e acomodando. Tornam-se previsíveis, repe-
processo. Isso lhe dá segurança, tranquilidade. Os colegas titivos.
e coordenadores vão indicando-o para novas turmas, novas Outros, diante da insatisfação, procuram uma nova
disciplinas, novas instituições. Multiplica o número de aulas. atividade profissional mais empolgante e deixam as aulas
Aumenta o número de alunos. É frequente, no ensino supe- como complemento, como “bico”.
rior particular, um professor ter entre mais de quinhentos E encontramos os que nas crises procuram refletir so-
alunos por semana. Forma uma família. Vira um “tocador” bre sua vida profissional e pessoal. Tentam encontrar ca-
de aulas. Cada vez precisa aumentar mais o número de au- minhos, reaprender a aprender. Atualizam-se, observam
las, para manter a renda. mais, conversam, meditam. Aos poucos buscam uma nova
Desenvolve algumas fórmulas para se poupar. Repete síntese, um novo foco. Começam pelo externo, por estabe-
o mesmo texto em várias turmas e, às vezes, em várias dis- lecer um relacionamento melhor com os alunos, procuram
ciplinas. Utiliza um mesmo vídeo para diversos temas. Dá escutá-los mais. Preparam melhor as aulas, utilizam novas
trabalhos bem parecidos para turmas diferentes, em grupo. dinâmicas, novas tecnologias. Leem novos autores, abrem
Lê cada vez mais rapidamente os trabalhos e as provas. Faz novos horizontes. Refletem mais, ouvem mais. Descobrem
comentários genéricos: Continue assim, “insuficiente”, “es- que precisam aceitar-se melhor, ser mais humildes e con-
force-se mais”, “parabéns”, “interessante”. Prepara as aulas fiantes. E assim, pouco a pouco, redescobrem o prazer de
encima da hora, com poucas mudanças. Repete fórmulas, ler, de aprender, de ensinar, de viver. Estão mais atentos ao
métodos, técnicas aprendidos por longo tempo. que acontece ao seu lado e dentro de si. Procuram simpli-
ficar a vida, consumir menos, relaxar mais. Veem exemplos
Crises de identidade de pessoas que envelhecem motivados para aprender e isso
Sempre há alguma crise, mas esta é diferente: pega o lhes dá estímulo para seguir adiante, para renovar-se todos
professor de cheio. Aos poucos o dar aula se torna cansati- os dias. Tornam-se mais humanos, acolhedores, compreen-
vo, repetitivo, insuportável. Parece que alguns coordenado- sivos, tolerantes, abertos. Dialogam mais, ouvem mais, pres-
res são mais “chatos”, “pegam mais no pé”. Algumas turmas tam mais atenção. Com o assar do tempo percebem que,
de alunos também “não querem nada com nada”. As reu- apesar das contradições, evoluíram muito e redescobriram
niões de professores são todas iguais, pura perda de tem- o prazer de ensinar e de viver. “Sinto-me como alguém que
po. Os salários são baixos. Outros colegas mostram que ga- envelhece crescendo”. Esta é a atitude maravilhosa de quem
nham mais em outras profissões. Renova-se a dúvida: vale gosta de aprender. O aprender dá sentido à vida, a todos os
a pena ficar como está ou dar uma guinada profissional? momentos da vida, mesmo quando ela está no fim.
Por enquanto “vai tocando”. Torce para que haja muitos Tem professores que se burocratizam na profissão.
feriados, para que os alunos não venham em determina- Outros se renovam com o tempo, se tornam pessoas mais
dos dias. Qualquer motivo justifica não dar aula. Cria mui- humanas, ricas e abertas. As chances são as mesmas, os
tas atividades durante a aula: leituras em grupo, pesquisa cursos feitos, os mesmos; os alunos, também são iguais. A
na biblioteca, na Internet, vídeos longos e isso lhe permite diferença é que uma parte muda de verdade, busca novos
descansar um pouco, ficar na sala dos professores, poupar caminhos e a outra se acomoda na mediocridade, se es-
a voz. conde nos ritos repetidos. Muitos professores se arrastam
Muitas vezes essa crise profissional vem acompanha- pelas salas de aula, enquanto outros, nas mesmas circuns-
da de uma crise afetiva. Sente-se intimamente bastante só, tâncias, encontram forças para continuar, para melhorar,
apesar das aparências. E em algum momento a crise bate para realizar-se.
mais fundo: “o que é que eu faço aqui?” “Qual é o sentido
da minha vida?” Tem tanta gente que sabe menos e está O educador bem-sucedido
melhor! Como defender uma sociedade mais justa num país Por que, nas mesmas escolas, nas mesmas condições,
onde só os mesmos ficam mais e mais ricos? com a mesma formação e os mesmos salários, uns profes-
Olha para trás e vê muitos recém-formados ansiosos sores são bem aceitos, conseguem atrair os alunos e reali-
para entrar de qualquer jeito, ganhando menos do que ele. zar um bom trabalho profissional e outros, não?
E esses jovens “petulantes” têm outra linguagem, dominam Não há uma única forma ou modelo. Depende muito
mais a Internet, estão cheios de ideias. Embora faça cursos da personalidade, competência, facilidade de aproximar e
de atualização, sente-se em muitos pontos ultrapassado. gerenciar pessoas e situações. Uma das questões que de-
Sempre foi preparado para dar respostas, para ser o centro termina o sucesso profissional maior ou menor do educa-
do saber e agora descobre que não tem certezas, que cada dor é a capacidade de relacionar-se, de comunicar-se, de
vez sabe menos, que há muitas variáveis para uma mesma motivar o aluno de forma constante e competente. Alguns
questão e que novas pesquisas questionam verdades que professores conseguem uma mobilização afetiva dos alu-
pareciam definitivas. Essa sensação de estar fora do lugar, nos pelo seu magnetismo, simpatia, capacidade de siner-
de inadequação vai aumentando e um dia explode. A crise gia, de estabelecer um “rapport”, uma sintonia interpessoal
se generaliza. Nada faz sentido. A depressão toma conta grande. É uma qualidade que pode ser desenvolvida, mas
dele. Não tem mais vontade de levantar, chega atrasado. alguns a possuem em grau superlativo, a exercem intuitiva-
Justifica cada vez mais suas faltas. mente, o que facilita o trabalho pedagógico.

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BIBLIOGRAFIA

Uma das formas de estabelecer vínculos é mostrar Um professor que se mostra competente e humano,
genuíno interesse pelos alunos. Os professores de suces- afetivo, compreensivo atrai os alunos. Não é a tecnologia
so não se preparam para o fracasso, mas para o sucesso que resolve esse distanciamento, mas pode ser um cami-
nos seus cursos. Preparam-se para desenvolver um bom nho para a aproximação mais rápida: valorizar a rapidez,
relacionamento com os alunos e para isso os aceitam afeti- a facilidade com que crianças e jovens se expressam tec-
vamente antes de os conhecerem, se predispõem a gostar nologicamente ajuda a motivar os alunos, a que queiram
deles antes de começar um novo curso. Essa atitude positi- se envolver mais. Podemos aproximar nossa linguagem da
va é captada consciente e inconscientemente pelos alunos deles, mas sempre será muito diferente. O que facilita são
que reagem da mesma forma, dando-lhes crédito, confian- as entrelinhas da comunicação linguística: a entonação, os
ça, expectativas otimistas. O contrário também acontece: gestos aproximadores, a gestão de processos de participa-
professores que se preparam para a aula prevendo confli- ção e acolhimento, dentro dos limites sociais e acadêmicos
tos, que estão cansados da rotina, passam consciente e in- possíveis.
conscientemente esse mal-estar que é correspondido com O educador não precisa ser “perfeito” para ser um bom
a desconfiança dos alunos, com o distanciamento, com profissional. Fará um grande trabalho na medida em que
barreiras nas expectativas. se apresente da forma mais próxima ao que ele é naquele
É muito tênue o que fazemos em aula para facilitar a momento, que se “revele” sem máscaras, jogos. Quando se
aceitação ou provocar a rejeição. É um conjunto de inten- mostre como alguém que está atento a evoluir, a aprender,
ções, gestos, palavras, ações que são traduzidos pelos alu- a ensinar e a aprender. O bom educador é um otimista, sem
nos como positivos ou negativos, que facilitam a interação, ser ‘ingênuo”.
o desejo de participar de um processo grupal de aprendi- Consegue “despertar”, estimular, incentivar as melho-
zagem, de uma aventura pedagógica (desejo de aprender) res qualidades de cada pessoa.
ou, pelo contrário, levantam barreiras, desconfianças, que
desmobilizam. Referência
O sucesso pedagógico depende também da capacida- MORAN, José. A aprendizagem de ser educador
de de expressar competência intelectual, de mostrar que
conhecemos de forma pessoal determinadas áreas do sa-
ber, que as relacionamos com os interesses dos alunos, que
MOURA, DANIELA PEREIRA DE. PEDAGOGIA
podemos aproximar a teoria da prática e a vivência da re-
flexão teórica. DE PROJETOS: CONTRIBUIÇÕES PARA
A coerência entre o que o professor fala e o que faz, na UMA EDUCAÇÃO TRANSFORMADORA.
vida é um fator importante para o sucesso pedagógico. Se PUBLICADO EM: 29/10/2010.
um professor une a competência intelectual, a emocional e
a ética causa um profundo impacto nos alunos. Estes estão
muito atentos à pessoa do professor, não somente ao que
PEDAGOGIA DE PROJETOS: CONTRIBUIÇÕES PARA
fala. A pessoa fala mais que as palavras. A junção da fala
UMA EDUCAÇÃO TRANSFORMADORA
competente com a pessoa coerente é poderosa didatica-
mente.
Daniela Pereira de Moura
As técnicas de comunicação também são importantes
para o sucesso do professor. Um professor que fala bem,
A Educação de hoje precisa atender a uma clientela que
que conta histórias interessantes, que tem feeling para sen- exige e que também é exigida cada vez mais. Pois, o mun-
tir o estado de ânimo da classe, que se adapta às circuns- do está mudando e consequentemente, a educação deve
tâncias, que sabe jogar com as metáforas, o humor, que inserir-se nessa mudança a fim de não perder sua finali-
usa as tecnologias adequadamente, sem dúvida consegue dade. A Pedagogia de Projetos busca ressignificar a escola
bons resultados com os alunos. Os alunos gostam de um dentro da realidade contemporânea, transformando-a em
professor que os surpreenda, que traga novidades, que um espaço significativo de aprendizagem para todos que
varie suas técnicas e métodos de organizar o processo de dela fazem parte, sem perder de vista a realidade cultural
ensino-aprendizagem. dos envolvidos no processo. Diz respeito a uma mudança
Ensinar sempre será complicado pela distância pro- de postura, o que exige o repensar da prática pedagógica.
funda que existe entre adultos e jovens. Por outro lado, Essa postura em se trabalhar com Projetos contribui de for-
essa distância nos torna interessantes, justamente porque ma efetiva na formação integral do educando, criando con-
somos diferentes. Podemos aproveitar a curiosidade que dições de desenvolvimento cognitivo e social. Nessa postu-
suscita encontrar uma pessoa com mais experiência, reali- ra, aprende-se participando, tomando decisões, discutindo
zações e fracassos. Um dos caminhos de aproximação ao problemas, trazendo uma nova perspectiva para entender-
aluno é pela comunicação pessoal de vivências, histórias, mos o processo de ensino e aprendizagem e tornando-o
situações que o aluno ainda não conhece em profundida- mais democrático. Aprender deixa de ser um simples ato
de. Outro é o da comunicação afetiva, da aproximação pelo de memorização e ensinar não significa mais repassar sim-
gostar, pela aceitação do outro como ele é e encontrar o plesmente conteúdos prontos. No trabalho por Projetos o
que nos une, o que nos identifica, o que temos em comum. sujeito educando constrói seu processo de aquisição do

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BIBLIOGRAFIA

conhecimento com a mediação do educador, assim, edu- Mendez (2000), Antoni Zaballa (1998) e tantos outros re-
candos e educadores têm a oportunidade de transformar lacionados na referência bibliográfica, que buscaram em
a ação educativa, tornando-a prazerosa e mais significati- seus estudos sobre o tema, mostrar sua importância e rele-
va. Essa postura em se trabalhar com Projetos contribui de vância para a contribuição de uma prática transformadora
forma efetiva na formação integral do educando, criando da educação, tão necessária nos tempos atuais.
condições de desenvolvimento cognitivo e social. Nesse trabalho buscaremos discutir sobre a relevância
em se apoiar a ação educativa na prática do trabalho por
INTRODUÇÃO Projetos, buscando uma formação globalizada que trans-
O mundo contemporâneo exige cada vez mais que o forme o processo de construção do conhecimento, permi-
indivíduo seja um ser completo para atuar no mundo do tindo-o ser dinâmico, compartilhado, contextualizado, pra-
trabalho e na sociedade. Este ser necessita, para isso, de zeroso e significativo para educandos e educadores.
conhecimento - visto aqui como as descobertas construí-
das ao longo da história humana - e de incorporar valores PEDAGOGIA DE PROJETOS: PERSPECTIVAS PARA A
que irão permear suas atitudes de convivência saudável EDUCAÇÃO DOS NOVOS TEMPOS
nas suas relações interpessoais.
Diante dessas aspirações, anseios e necessidades dos Diante das transformações que vêm ocorrendo na
indivíduos e das exigências do mundo atual, a escola, en- sociedade moderna, a concepção de escola e sua função
quanto instituição de educação tem um papel importante: social precisa ser revista, repensada, pois a educação au-
promover uma educação que considere o educando em toritária, compartimentada, com currículo fragmentado e
sua totalidade, vendo-o não só como aluno, mas como distanciado das transformações sociais e das vidas dos alu-
pessoa. nos, onde o sujeito educando não tem autonomia e parti-
Assim, percebemos que os paradigmas que envolvem a cipação na construção de seus saberes, está perdendo seu
educação precisam ser repensados e revistos de modo que significado. Esse modelo de escola vem sendo questionado
atendam as expectativas da sociedade atual. Para isso, é o que leva a necessidade de mudança de paradigmas vol-
necessária uma nova abordagem na prática educativa que tados para um ensino/aprendizagem que considerem os
contemplem a aquisição não só do conhecimento formali- objetivos dos indivíduos frente a essa nova sociedade. Se-
zado, mas também, de atitudes favoráveis como o respeito, gundo ROSA (1994), a educação brasileira precisa mudar.
a responsabilidade, a autonomia, a cooperação, enfim, va- Ninguém discorda desta afirmação. Vivemos, e não é de hoje
lores éticos tão necessários no mundo de hoje. o que se costuma denominar de “crise do ensino”. [...] não
Assim, o presente Artigo discorre sobre a importância estamos diante de uma opção, mas de uma necessidade de
do trabalho por projetos como um instrumento importan- mudança. Mudar é questão, agora, de sobrevivência!
te para uma construção significativa e compartilhada do No mundo contemporâneo a escola tem lugar impor-
conhecimento, contribuindo para uma educação transfor- tante, mas é necessário que mudem o seu paradigma e se
madora, mostrando-se como um meio capaz de devolver à submetam a uma renovação permanente em termos de
escola seu papel de espaço educativo e de transformação redefinição de sua missão e busca constante de sua iden-
social. tidade. Que sejam capazes de fazer a autocrítica de suas
Essa postura de se trabalhar por meio de projetos au- práticas e deixem de ser escolas congeladas numa postura
xilia na formação integral dos indivíduos, já que cria diver- autoritária e, por vezes até terrorista, de provas, reprova-
sas oportunidades de aprendizagem conceitual, atitudinal, ção, repetência e submissão. Modelo tirânico de destruição
procedimental para os mesmos. da autoestima, da curiosidade, da cooperação, do respeito
A discussão deste tema tem o objetivo de contribuir mútuo, da responsabilidade, do compromisso, da autono-
para a reflexão de um novo olhar sobre o trabalho por pro- mia, do bom caráter e da alegria de aprender.
jetos no ambiente escolar, onde a incorporação de novas Em meio a essa crise de identidade e função social da
atitudes e valores incentive a construção de uma menta- escola, começam a surgir novas reflexões e concepções de
lidade democrática entre educadores e educandos, bem educação que devolvam à escola o seu papel de espaço
como analisar as contribuições do trabalho por projetos educativo e de transformação social, visando recuperar os
para a formação integral do educando, objetiva ainda, laços entre educação escolar significativa e a prática social,
compreender as novas reflexões e concepções exigidas na conciliando aprendizagem escolar com uma formação mais
contemporaneidade no que se refere à educação/conheci- integral.
mento/formação do aluno e também de identificar as vi- É nesse contexto e dentro dessa polêmica que a dis-
vências sociais dos alunos para que se possa valorizá-las e cussão sobre Pedagogia de Projetos, hoje, se coloca. Isso
contextualizá-las na prática educativa. significa que é uma discussão sobre uma postura pedagó-
A abordagem deste tema perpassa por uma extensa gica e não sobre uma técnica de ensino mais atrativa para
pesquisa bibliográfica apoiada por instrumentos bibliográ- os alunos.
ficos diversos como livros, artigos de revistas especializadas Hoje, muito se tem falado na formação de indivíduos
no campo da educação, fitas em VHS, artigos encontrados capazes de atuarem na sociedade de maneira participativa,
em sites especializados em educação. O referencial teóri- crítica, reflexiva, autônoma, solidária. Pois bem, o trabalho
co perpassa pelas teorias de Paulo Freire (1983), Fernando por projetos suscita nos educandos todas essas qualidades
Hernandez (1998), Lúcia Helena Alvarez Leite e Verônica e muitas outras necessárias a formação integral que con-

123
BIBLIOGRAFIA

tribua não só para a vida escolar (preparação para a vida Com essas contribuições significativas do trabalho por
futura) como também para a vida social do educando (que Projetos o educando se insere de forma efetiva e prática na
acontece no momento presente). De acordo com o artigo sociedade contemporânea. A educação e a prática educa-
1º, parágrafo 2º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação tiva tornam-se fundamental para que o indivíduo alcance
Nacional - LDBN (1996), a educação escolar deverá vincu- todas as condições necessárias para se tornar cidadão ati-
lar-se ao mundo do trabalho e à prática social. vo. Com isso, a escola resgata e sustenta a sua finalidade
“A educação é um processo de vida e não uma prepa- que é formar cidadãos educados no real sentido que esta
ração para a vida futura e a escola deve representar a vida palavra implica.
presente - tão real e vital para o aluno como o que ele vive
em casa, no bairro ou no pátio” (DEWEY, 1897). CONCEITUANDO “PEDAGOGIA DE PROJETOS”
Com isso, Dewey quis dizer que além das preocupa-
ções em formar o aluno para ser capaz de ler, escrever, in- A origem da palavra projeto deriva do latim projec-
terpretar, realizar operações matemáticas, ter conhecimen- tus, que significa algo lançado para frente é sair de onde
tos sobre as várias áreas do saber como a Física, Biologia, se encontra em busca de novas soluções. O trabalho com
Química, por exemplo - preparando-o para se inserir na projetos constitui uma das posturas metodológicas de en-
vida profissional - deve também se preocupar em formar sino mais dinâmica e eficiente, sobretudo pela sua força
os valores morais e éticos que são inerentes aos humanos, motivadora e aprendizagens em situação real, de atividade
como a autonomia, a solidariedade, a coletividade, o res- globalizada e trabalho em cooperação.
peito ao próximo, a autoestima positiva, para assim se tor- O ato de projetar requer abertura para o desconhecido,
narem indivíduos completos. para o não-determinado e flexibilidade para reformular as
O trabalho por projetos contribui de forma significativa metas à medida que as ações projetadas evidenciam novos
para a educação nesse mundo atual, indo de encontro com problemas e dúvidas.
as exigências da sociedade moderna, pois o trabalho por A Pedagogia de Projetos é a construção de uma prática
projetos envolve um processo de construção, participação, pedagógica centrada na formação global dos alunos.
cooperação, noções de valor humano, solidariedade, res- Para que os processos de aprendizagem aconteçam
peito mútuo, tolerância e formação da cidadania tão ne- nessa perspectiva, porém, é necessário que haja uma al-
cessários à sociedade emergente. teração profunda na forma de compreensão e organizar o
conhecimento. Essa alteração supõe uma redefinição não
apenas dos conteúdos escolares, mas também dos tem-
Trabalhar com projetos possibilita:
pos, espaços e processos educativos, bem como do agru-
- O resgate do educando para o processo de ensino-
pamento de alunos, ou seja, daquilo que conhecemos por
-aprendizagem (conhecimento) através de um processo
classe ou turma, e que se constituiu historicamente como a
significativo;
unidade organizativa do trabalho escolar.
- A recuperação da autoestima positiva do educando;
Os Projetos de Trabalho traduzem, portanto, uma visão
- Que o educando se reconheça como sujeito histórico; diferente do que seja conhecimento e currículo e represen-
- O desenvolvimento do raciocínio lógico, linguístico e tam uma outra maneira de organizar o trabalho na escola.
a formação de conceitos; Caracterizam-se pela forma de abordar um determinado
- O desenvolvimento da capacidade de buscar e inter- tema ou conhecimento, permitindo uma aproximação da
pretar informações; identidade e das experiências dos alunos, e um vínculo
- A condução, pelo aluno, do seu próprio processo de dos conteúdos escolares entre si e com os conhecimentos
aprendizagem; e saberes produzidos no contexto social e cultural, assim
- O desenvolvimento de atitudes favoráveis a uma vida como com problemas que dele emergem. Dessa forma,
cooperativa; eles ultrapassam os limites das áreas e conteúdos curri-
- A realização do ensino baseado na compreensão e na culares tradicionalmente trabalhados pela escola, uma vez
interdisciplinaridade . que implicam o desenvolvimento de atividades práticas, de
estratégias de pesquisa, de busca e uso de diferentes fon-
A proposta do trabalho por Projetos deve estar funda- tes de informação, de sua ordenação, análise, interpretação
mentada numa concepção do educando como sujeito de e representação. Implicam igualmente atividades indivi-
direitos, ser social e histórico, participante ativo no proces- duais, de grupos/equipes e de turma(s), da escola, tendo
so de construção de conhecimentos e deve assegurar: em vista os diferentes conteúdos trabalhados (atitudinais,
- Princípios éticos da autonomia, da responsabilidade, procedimentos, conceituais), as necessidades e interesses
da solidariedade e do respeito ao bem comum; dos alunos.
- Princípios políticos dos direitos e deveres de cidada- Ao estudá-los, as crianças e os jovens realizam contato
nia, do exercício da criticidade e do respeito à democracia; com o conhecimento não como algo pronto e acabado,
- Princípios estéticos e culturais da sensibilidade, da mas como algo controverso. Um dos aspectos mais impor-
criatividade, da ludicidade e da diversidade das manifesta- tantes, no trabalho como Projetos, é que ele permite que
ções artísticas e culturais; o aluno desenvolva uma atitude ativa e reflexiva diante de
- O respeito à identidade e particularidades pessoais; suas aprendizagens e do conhecimento, na medida em que
- A integração entre os aspectos físicos, emocionais, percebe o sentido e o significado do conhecimento para a
afetivos, cognitivos e sociais. sua vida, para a sua compreensão do mundo.

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BIBLIOGRAFIA

PEDAGOGIA DE PROJETOS: O fato de a pedagogia de projetos não ser um método


MÉTODO OU POSTURA PEDAGÓGICA? para ser aplicado no contexto da escola dá ao professor
uma liberdade de ação que habitualmente não acontece
Não podemos entender a prática por projetos como no seu cotidiano escolar. O compromisso educacional do
uma atividade meramente funcional, regular, metódica. professor é justamente saber O QUÊ, COMO, QUANDO e
POR QUE desenvolver determinadas ações pedagógicas. E
A Pedagogia de Projetos não é um método, pois a ideia para isto é fundamental conhecer o processo de aprendi-
de método é de trabalhar com objetivos e conteúdos pré- zagem do aluno e ter clareza da sua intencionalidade pe-
-fixados, pré-determinados, apresentando uma sequência dagógica.
regular, prevista e segura, refere-se à aplicação de fórmulas Mais do que uma técnica atraente para transmissão
ou de uma série de regras. dos conteúdos, como muitos pensam, a proposta da Pe-
Trabalhar por meio de Projetos é exatamente o oposto, dagogia de Projetos é promover uma mudança na maneira
pois nele, o ensino-aprendizagem se realiza mediante um de pensar e repensar a escola e o currículo na prática peda-
percurso que nunca é fixo, ordenado. O ato de projetar re- gógica. Com a reinterpretação atual da metodologia, esse
quer abertura para o desconhecido, para o não-determina-
movimento tem fornecido subsídios para uma pedagogia
do e flexibilidade para reformular as metas e os percursos à
dinâmica, centrada na criatividade e na atividade discentes,
medida que as ações projetadas evidenciam novos proble-
numa perspectiva de construção do conhecimento pelos
mas e dúvidas.
Fernando Hernández (1998) vem discutindo o tema e alunos, mais do que na transmissão dos conhecimentos
define os projetos de trabalho não como uma metodologia, pelo professor.
mas como uma concepção de ensino, uma maneira diferen-
te de suscitar a compreensão dos alunos sobre os conheci- ANALOGIA ENTRE CONSTRUTIVISMO E PEDAGO-
mentos que circulam fora da escola e de ajudá-los a cons- GIA DE PROJETOS
truir sua própria identidade.
O trabalho por projetos requer mudanças na concepção O Construtivismo e a Pedagogia de Projetos têm em
de ensino e aprendizagem e, consequentemente, na postura comum a insatisfação com um sistema educacional que tei-
do professor. Hernández (1988) enfatiza ainda que o traba- ma em continuar essa forma particular de transmissão que
lho por projeto não deve ser visto como uma opção pura- consiste em fazer repetir, recitar, aprender, ensinar o que já
mente metodológica, mas como uma maneira de repensar está pronto, em vez de fazer agir, operar, criar, construir a
a função da escola. Leite (1996) apresenta os Projetos de partir da realidade vivida por alunos e professores, isto é,
Trabalho não como uma nova técnica, mas como uma peda- pela sociedade.
gogia que traduz uma concepção do conhecimento escolar. Na Pedagogia de Projetos a relação ensino/aprendi-
Em se tratando dos conteúdos, a pedagogia de pro- zagem é voltada para a construção do conhecimento de
jetos é vista pelo seu caráter de potencializar a interdisci- maneira dinâmica, contextualizada, compartilhada, que en-
plinaridade. Isto de fato pode ocorrer, pois o trabalho com volva efetivamente a participação dos educandos e educa-
projetos permite romper com as fronteiras disciplinares, dores num processo mútuo de troca de experiências. Nessa
favorecendo o estabelecimento de elos entre as diferentes postura a aprendizagem se torna prazerosa, pois ocorre a
áreas de conhecimento numa situação contextualizada da partir dos interesses dos envolvidos no processo, da reali-
aprendizagem. dade em que estes estão inseridos, o que ocasiona motiva-
A Pedagogia de Projetos é um meio de trabalho perti- ção, satisfação em aprender.
nente ao processo de ensino-aprendizagem que se insere O Construtivismo leva o educando a pensar, expandin-
na Educação promovendo-a de maneira significativa e com- do seu intelecto através de uma aprendizagem significati-
partilhada, auxiliando na formação integral dos indivíduos
va, ou seja, que tenha sentido, e contextualizada. O conhe-
permeado pelas diversas oportunidades de aprendizagem
cimento é construído a cada instante com a mediação do
conceitual, atitudinal, procedimental para os mesmos. Os
educador, respeitando o nível de desenvolvimento mental
projetos de trabalho não se inserem apenas numa propos-
ta de renovação de atividades, tornando-as criativas, e sim de cada educando.
numa mudança de postura que exige o repensar da prática “O diálogo do aluno é com o pensamento, com a cultura
pedagógica, quebrando paradigmas já estabelecidos. corporificada nas obras e nas práticas sociais e transmitidas
Possibilita que os alunos, ao decidirem, opinarem, deba- pela linguagem e pelos gestos do professor, simples media-
terem, construam sua autonomia e seu compromisso com o dor.” (CHAUÍ,1980).
social, formando-se como sujeitos culturais e cidadãos. Então, tanto no Construtivismo como na Pedagogia
Será necessário oportunizar situações em que os alunos de Projetos, o educando é o próprio agente de seu desen-
participem cada vez mais intensamente na resolução das ati- volvimento, o conhecimento é assimilado de maneira pró-
vidades e no processo de elaboração pessoal, em vez de se pria, mas sempre com o auxílio da mediação do educador.
limitar a copiar e reproduzir automaticamente as instruções Aprender deixa de ser um simples ato de memorização e
ou explicações dos professores. Por isso, hoje o aluno é con- ensinar não significa mais repassar conteúdos prontos. O
vidado a buscar, descobrir, construir, criticar, comparar, dia- aluno deixa de ser um sujeito passivo, sempre a mercê das
logar, analisar, vivenciar o próprio processo de construção ordens do professor, lidando com um conteúdo completa-
do conhecimento. (ZABALLA, 1998) mente alienado de sua realidade e em situações artificiais

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BIBLIOGRAFIA

de ensino-aprendizagem. Aprender passa então a ser um que os alunos já sabem o que querem saber e como pode-
processo global e complexo, onde conhecer e intervir na rão saber. Cabe ao educador incentivar a manifestação dos
realidade não se dissocia. O aluno é visto como sujeito ati- alunos e saber interpretá-las para perceber em que ponto
vo que usa sua experiência e conhecimento para resolver estão, para aprender suas concepções, seus valores, con-
problemas. tradições, hipóteses de interpretação e explicação de fatos
Aprende-se participando, vivenciando sentimentos, to- da realidade.
mando atitudes diante dos fatos, escolhendo procedimen- b) desenvolvimento: é o momento em que se criam as
tos para atingir determinados objetivos. Ensina-se não só estratégias para buscar respostas às questões e hipóteses
pelas respostas dadas, mas principalmente pelas experiên- levantadas na problematização. Os alunos e o professor
cias proporcionadas, pelos problemas criados, pela ação definem juntos essas estratégias. Para isso, é preciso que
desencadeada. (LEITE, 2000). criem propostas de trabalho que exijam a saída do espa-
Suas concepções e conhecimentos prévios são levan- ço escolar, a organização em pequenos ou grandes grupos
tados e analisados para que o educador possa problemati- para as pesquisas, a socialização do conhecimento através
zá-los e oferecer-lhes desafios que os façam avançar, atin- de trocas de informações, vivências, debates, leituras, ses-
gindo o processo de equilibração/desequilibração que é a sões de vídeos, entrevistas, visitas a espaços ora da escola e
base do Construtivismo e ao mesmo tempo da Pedagogia convites a especialistas no tema em questão. Os alunos de-
de Projetos. vem ser colocados em situações que os levem a contrapor
Então podemos dizer que a aprendizagem é o resul- pontos de vista, a defrontação com conflitos, inquietações
tado do esforço de atribuir e encontrar significados para que as levarão ao desequilíbrio de suas hipóteses iniciais,
o mundo, o que implica a construção e revisão de hipó- problematizando, refletindo e reelaborando explicações.
teses sobre o objeto do conhecimento, ela é resultado c) aplicação: estimular a circulação das ideias e a atua-
da atividade do sujeito, e o meio social tem fundamental ção no ambiente da escola ou da comunidade ligada à es-
importância para que ela ocorra, pois necessitamos de cola dá ao educando a oportunidade de se colocar como
orientação para alcançá-la e aí surge a teoria do pensador sujeito ativo e transformador do seu espaço de vivência e
russo Vygotsky sobre a Zona de Desenvolvimento Proxi- convivência, por meio da aplicação dos conhecimentos ob-
mal que é a distância entre o nível de desenvolvimento real tidos na execução do projeto na sua realidade.
(conhecimento prévio, o que o indivíduo já sabe) e o nível d) avaliação: numa concepção dinâmica e participativa,
de desenvolvimento potencial (onde ele pode chegar com a avaliação tem, para o educador, uma dimensão diagnós-
a ajuda do outro), isto é, a possibilidade que o indivíduo tica, investigativa e processual. Avaliamos para investigar o
(educando) tem de resolver problemas sob a orientação de desenvolvimento dos alunos, para decidir como podemos
outrem (educador). ajudá-los a avançar na construção de conhecimentos, ati-
tudes e valores e para verificar em que medida o processo
A METODOLOGIA DO TRABALHO POR PROJETOS está coerente com as finalidades e os resultados obtidos.
Para o aluno, a avaliação é instrumento indispensável ao
A Pedagogia de Projetos surge da necessidade de de- desenvolvimento da capacidade de aprender a aprender
senvolver uma metodologia de trabalho pedagógico que por meio do reconhecimento das suas possibilidades e li-
valorize a participação do educando e do educador no mites.
processo ensino/aprendizagem, tornando-os responsáveis O registro (a escrita, o desenho, os gráficos, mapas, re-
pela elaboração e desenvolvimento de cada projeto de tra- latórios, a reunião de materiais etc.) é uma prática funda-
balho. mental no trabalho com Projetos e deve ser desenvolvida
O trabalho por meio dos projetos vem contribuir para ao longo de todo o processo.
essa valorização do educando e tem-se mostrado um dos Durante o processo de levantamento e análise dos
caminhos mais promissores para a organização do conhe- dados, a mediação do professor é essencial no sentido de
cimento escolar a partir de problemas que emergem das construir entre os alunos uma atitude de curiosidade e de
reais necessidades dos alunos. cooperação, de trabalho com fontes diversificadas, de esta-
Mas como se dá essa participação? belecimento de conexões entre as informações, de escuta e
Inicialmente, para se propor um projeto este deve ser respeito às diferentes opiniões e formas de aprender e ela-
subsidiado por um tema. A escolha deste tema e dos con- borar o conhecimento, de fazê-los perceber a importância
teúdos a serem trabalhados é de responsabilidade de to- do registro e as diversas formas de realizá-lo.
dos e deve ser pensada de forma a contemplar a realidade Se os projetos de trabalho possibilitam um repensar do
do educando. significado de aprender e ensinar e do papel dos conteú-
O trabalho por Projetos pode ser dividido em 4 etapas: dos curriculares, isto repercute também no sentido que se
problematização, desenvolvimento, aplicação e avaliação. dá à avaliação e nos instrumentos usados para acompanhar
a) problematização: é o início do projeto. Nessa etapa, o processo de formação ocorrido durante todo o percurso.
os alunos irão expressar suas ideias e conhecimentos sobre Tradicionalmente, a avaliação do processo ensino-
o problema em questão. Essa expressão pode emergir es- -aprendizagem tem sido feita no sentido de medir a quan-
pontaneamente, pelo interesse despertado por um aconte- tidade de conhecimentos aprendidos pelos educandos. A
cimento significativo dentro ou fora da escola ou mesmo avaliação na Pedagogia de Projetos é global, ou seja, con-
pela estimulação do professor. É fundamental detectar o sidera o educando e sua aprendizagem de forma integral,

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BIBLIOGRAFIA

concilia o resultado da verificação do processo com a veri- ao alunado sentir a aprendizagem institucional como algo
ficação do desempenho. Esse tipo de avaliação considera, próprio, pois cada um decide que trabalhos e momentos
portanto, não só aspectos conceituais: de assimilação dos são representativos de sua trajetória, estabelece relações
conteúdos utilizados para a problematização do tema, mas entre esses exemplos, numa tentativa de dotar de coerên-
também aspectos atitudinais: comportamento, atitudes, cia as atividades de ensino, com as finalidades de aprendi-
capacidade de trabalhar em grupo, espírito de liderança, zagem que cada um e o grupo se tenham proposto.
iniciativa; atributos que se referem ao modo de interação É interessante destacar que a criação do portfólio, por
com os demais. si só, não garante um processo de avaliação significativo. É
Essa metodologia de avaliação potencializa as diferen- preciso que se discutam seus usos e funções.
ças, dá lugar a diversidade de opiniões, de singularidade de
cada sujeito, faz da heterogeneidade um elemento signifi- CONSIDERAÇÕES FINAIS
cativo para o processo de ampliação dos conhecimentos.
A diferença nos ajuda a compreender que somos su- O discurso dos educadores sobre a função da escola e
jeitos com particularidades, com experiências próprias, sobre o seu papel é o de formar cidadãos ativos, críticos,
constituídas nos processos coletivos de que participamos reflexivos, autônomos, etc.
dentro e fora da escola; posta em diálogo, enriquece a ação Mas o que vemos na maioria das situações de apren-
pedagógica. (ESTEBAN, 2002). dizagem não é essa postura, a teoria que dialogam não
Assim, a avaliação não trabalha a partir de uma respos- é a prática que assumem na efetivação de seu trabalho,
ta esperada, mas indaga as muitas respostas encontradas pois muitos continuam insistindo em ser um profissional
com o sentido de ampliação permanente dos conhecimen- preso às práticas autoritárias, num modelo tradicional de
tos existentes. Nesse caso, o erro deixa de representar a educação onde o professor é o dono do saber e a voz do
ausência de conhecimento, sendo apreendido como pista processo de ensino/aprendizagem.
que indica como os educandos estão articulando os co- Muitas posturas como o Construtivismo rebatem essa
nhecimentos que já possuem com os novos conhecimen- metodologia. Temos a consciência de que a educação, para
tos que vão sendo elaborados. atender as exigências dessa sociedade que se apresenta
Deste modo, a avaliação nos projetos de trabalho hoje, deve assumir uma nova postura, uma postura que
eleve o educando da simples condição de submissão para
passa a fazer parte de todo o processo, sendo entendida
uma condição de opinar, questionar, construir com a me-
como a possibilidade do aluno tomar consciência do seu
diação necessária, a sua aprendizagem.
processo de aprendizagem, descobrindo o que sabe, o que
A democracia hoje é um discurso presente em todas as
aprendeu, o que ainda não domina. Para isto, é preciso que
áreas. E se a escola é o lugar representativo da sociedade,
ao longo de todo o percurso do trabalho, haja um trabalho
especialmente nesta instituição a democracia deve estar
constante de avaliação.
presente.
Dentro da perspectiva dos projetos, o acompanhamen-
Hoje, mais do que nunca devemos assumir essa postu-
to e a avaliação do trabalho têm sido feitos, principalmente,
ra democrática na prática educativa e repensar as metodo-
a partir dos registros, sejam eles coletivos ou individuais. logias que usamos a fim de (re) orientar as ações, condu-
Estes registros fazem parte do cotidiano da sala de aula e zindo-as na direção da participação coletiva.
servem para organizar o trabalho, socializar as descobertas, A Pedagogia de Projeto se insere nessa postura, exigi-
localizar dúvidas e inquietações, enfim, explicitar o proces- do dos sujeitos que a assume uma nova forma de conce-
so vivido. ber a educação escolar: mais flexível e aberta. Para isso, é
O Portifólio é o instrumento mais apropriado para a necessário que os professores que assumem essa postura,
avaliação de um Projeto de Trabalho, na medida em que ele enfrentem o desafio de superar uma cultura escolar frag-
representa a reconstrução do processo vivido e a reflexão mentada na qual foram formados, como alunos e como
do aluno sobre a sua aprendizagem. professores, passando a ser exigido um novo modelo de
Hernandéz (1998), ao falar da importância do portfólio formação, onde não haja uma dicotomia entre formação e
como instrumento de avaliação, afirma que: ação, entre discurso e prática.
A avaliação do portfólio como recurso de avaliação Assim, alcançando os objetivos propostos neste tra-
é baseada na ideia da natureza evolutiva do processo de balho, possibilitamos uma nova visão de prática educativa,
aprendizagem. O portfólio oferece aos alunos e professo- de formação integral do indivíduo, de mentalidade demo-
res uma oportunidade de refletir sobre o progresso dos crática, de respeito às diferenças culturais e cognitivas do
educandos em sua compreensão da realidade, ao mesmo educando. A Pedagogia de Projetos, portanto, contribui de
tempo em que possibilita a introdução de mudanças du- maneira significativa para uma prática globalizadora diante
rante o desenvolvimento do programa de ensino. Além desse mundo globalizado, pois, fornece subsídios para o
disso, permite aos professores aproximar-se do trabalho desenvolvimento cognitivo e também social do educando.
dos alunos não de uma maneira pontual e isolada, como
acontece com as provas e exames, mas sim, no contexto do Fonte
ensino e como uma atividade complexa baseada em ele- Disponível em:
mentos e momentos da aprendizagem que se encontram http://www.pedagogia.com.br/artigos/pedegogiade-
relacionados. Por sua vez, a realização do portfólio permite projetos/index.php?pagina=0

127
BIBLIOGRAFIA

nalização e ao papel da escola na transmissão de conheci-


mento, que é de natureza diferente daqueles aprendidos
OLIVEIRA, MARTA KOHL. VYGOTSKY:
na vida cotidiana. O autor propõe uma visão de formação
APRENDIZADO E DESENVOLVIMENTO UM
das funções psíquicas superiores como internalização me-
PROCESSO SÓCIO-HISTÓRICO. SÃO PAULO: diada pela cultura.
SCIPIONE, 1993. Duas concepções sobre o funcionamento do cérebro
humano colocam que (...) “o cérebro é a base biológica, e
suas peculiaridades definem limites e possibilidades para o
A professora Marta Kohl de Oliveira, neste livro, ressal- desenvolvimento humano.”
ta importantes pontos na teoria de Vygotsky:- “o homem Essas concepções fundamentam sua idéia de que as
biológico transforma-se em social por meio de um proces- funções psicológicas superiores (por ex. linguagem, me-
so de internalização mória) são construídas ao longo da história social do ho-
e atividades, comportamentos e signos culturalmente mem em sua relação com o mundo. Assim, as funções psi-
desenvolvidos” cológicas superiores referem-se a processos voluntários,
- a obra de Vygotsky é apenas um esboço de um pro- ações conscientes, mecanismos intencionais e dependem
jeto; de processos de aprendizagem. A linguagem, sistema sim-
- um grande problema na área da educação no Brasil bólico dos grupos humanos, representa um salto qualita-
é a tentativa de se estabelecer uma proposta pedagógi- tivo na evolução da espécie. É ela que fornece os concei-
ca única, baseada numa idéia de escolha da melhor teoria, tos, as formas de organização do real, a mediação entre o
principalmente nos confrontos entre as teorias de Vygotsky sujeito e o objeto do conhecimento. É por meio dela que
e Piaget. as funções mentais superiores são socialmente formadas e
E a autora considera, ainda, que estes autores nos tra- culturalmente transmitidas. Sendo assim, sociedades e cul-
zem uma enorme contribuição, destacando que a melhor turas diferentes produzem estruturas diferenciadas.
forma de atuação será a de compreender o melhor possível A cultura fornece ao indivíduo os sistemas simbólicos
cada abordagem para que haja um real aprimoramento da de representação da realidade, ou seja, o universo de sig-
reflexão sobre o objeto a ser estudado. Vivemos hoje um nificações que permite construir a interpretação do mundo
momento em que as ciências em geral, e as ciências huma- real. Ela dá o local de negociações no qual seus membros
nas em particular, tendem a buscar áreas de intersecção, estão em constante processo de recriação e reinterpreta-
formas de integrar o conhecimento acumulado, de modo
ção de informações, conceitos e significações.
a alcançar uma compreensão mais completa de seus obje-
O processo de internalização é fundamental para o de-
tos. A interdisciplinaridade e a abordagem qualitativa têm,
senvolvimento do funcionamento psicológico humano. A
pois, forte apelo para o pensamento contemporâneo. Do
internalização envolve uma atividade externa que deve ser
mesmo modo, a ideia do ser humano como imerso num
modificada para tornar-se uma atividade interna - é inter-
contexto histórico e a ênfase em seus processos de trans-
pessoal e se torna intrapessoal. Vygotsky usa o termo fun-
formação também são proposições muito importantes no
ção mental para se referir aos processos de pensamento:
ideário contemporâneo .A discussão do pensamento Vy-
gotsky na área da educação e da psicologia nos remete a memória, percepção e atenção; sustenta que o pensamen-
uma reflexão sobre as relações entre este autor e Piaget. to tem origem na motivação, no interesse, na necessidade,
No Brasil, Piaget tem sido a referência teórica básica no impulso, no afeto e na emoção.
nessas áreas e a penetração das idéias A interação social e o instrumento linguístico são deci-
de Vygotsky sugere, inevitavelmente, um confronto sivos para a zona de desenvolvimento proximal (ZDP).
entre as teorias dos dois autores. Vygotsky foi o primeiro Para J. Piaget, dentro da reflexão construtivista, desen-
psicólogo moderno a sugerir os mecanismos pelos quais a volvimento e aprendizagem se interrelacionam, sendo a
cultura torna-se parte da natureza de cada pessoa ao insis- aprendizagem a alavanca do desenvolvimento. A perspec-
tir em que as funções psicológicas são um produto da ati- tiva piagetiana é considerada maturacionista, no sentido
vidade cerebral, explicando a transformação dos processos de que ela preza o desenvolvimento das funções biológicas
psicológicos elementares em processos complexos dentro – que é o desenvolvimento - como base para os avanços
da história. na aprendizagem. Já na chamada perspectiva sócio-intera-
Ele enfatizava o processo histórico-social e o papel da cionista, sócio-cultural ou sócio-histórica, abordada por L.
linguagem no desenvolvimento do indivíduo. A questão Vygotsky, a relação entre o desenvolvimento e a aprendi-
central de sua obra é a aquisição de conhecimentos pela zagem está atrelada ao fato de o ser humano viver em um
interação do sujeito com o meio. Para o teórico, o sujeito é meio social, sendo este a alavanca para estes dois proces-
interativo, pois adquire conhecimentos a partir de relações sos.
intra e interpessoais e de troca com o meio, por meio de Os processos caminham juntos, ainda que não em pa-
um processo denominado mediação. ralelo.
As concepções de Vygotsky sobre o processo de for- Existem, pelo menos, dois níveis de desenvolvimento
mação de conceitos remetem às relações entre pensamen- identificados por Vygotsky: um, o nível real, já adquirido ou
to e linguagem, à questão cultural no processo de constru- formado, que determina o que a criança é capaz de fazer
ção de significados pelos indivíduos, ao processo de inter- por si própria, e o outro, potencial, ou seja, a capacidade

128
BIBLIOGRAFIA

de aprender com outra pessoa. Essa interação e sua relação Ao observar a zona proximal, o educador pode orientar
com a imbricação entre os processos de ensino e apren- o aprendizado no sentido de adiantar o desenvolvimento
dizagem podem ser melhor compreendidos quando nos potencial de uma criança, tornando-o real. Nesse processo,
remetemos ao conceito de ZDP. o ensino deve passar do grupo para o indivíduo. Em outras
A aprendizagem interage com o desenvolvimento, palavras, o ambiente influenciaria a internalização das ati-
produzindo abertura nas zonas (distância entre aquilo que vidades cognitivas no indivíduo, de modo que o aprendiza-
a criança faz sozinha e o que ela é capaz de fazer com a do gere o desenvolvimento. Portanto, o desenvolvimento
intervenção de um adulto; potencialidade para aprender, mental só pode realizar-se por intermédio do aprendizado.
que não é a mesma para todas as pessoas; distância entre O Biológico e o cultural: os desdobramentos do pensa-
os níveis de desenvolvimento real e potencial) nos quais mento de Vygotsky.
as interações sociais são o centro, estando então, ambos A professora Marta Kohl de Oliveira aborda neste ca-
os processos - aprendizagem e desenvolvimento - inter- pítulo, três aspectos fundamentais: - o funcionamento ce-
relacionados; assim, um conceito novo que se preten- rebral como suporte biológico do funcionamento psicoló-
da trabalhar, como por exemplo, em matemática, requer gico;
sempre um grau de experiência anterior para a criança. O - a influência da cultura no desenvolvimento cognitivo
desenvolvimento cognitivo é produzido pelo processo de dos indivíduos;
internalização da interação social com materiais forneci- - a atividade do homem no mundo, inserida num siste-
dos pela cultura, sendo que o processo se constrói de fora ma de relações sociais, como o principal foco de interesse
para dentro. Para Vygotsky, a atividade do sujeito refere-se dos estudos em psicologia. Um dos pilares do pensamento
ao domínio dos instrumentos de mediação, inclusive sua de Vygotsky é a idéia de que as funções mentais superio-
transformação por uma atividade mental. res são construídas ao longo da história social do homem,
Para ele, o sujeito não é apenas ativo, mas interativo, a história social objetiva tem um papel essencial no de-
porque forma conhecimentos e se constitui a partir de re- senvolvimento psicológico que não pode ser buscado em
lações intra e interpessoais. propriedades naturais do sistema nervoso, ou seja, o cé-
É na troca com outros sujeitos e consigo próprio que rebro é um sistema aberto em constante interação com o
se vão internalizando conhecimentos, papéis e funções so- meio, este meio será capaz de transformar suas estruturas
ciais, o que permite a formação de conhecimentos e da e mecanismos de funcionamento, podendo se adaptar a
própria consciência. Trata-se de um processo que caminha diferentes necessidades e servindo a diversas funções esta-
belecidas na história do homem. Luria (um de seus colabo-
do plano social - relações interpessoais - para o plano indi-
radores) aprofunda em sua obra a questão da estrutura bá-
vidual interno - relações intrapessoais.
sica do cérebro em três unidades: a unidade para regulação
Portanto, a escola é o lugar onde a intervenção pe-
da atividade cerebral e do estado de vigília; a unidade para
dagógica intencional desencadeia o processo de ensino-
recebimento, análise e armazenamento de informações; a
-aprendizagem.
unidade para programação, regulação e controle da ativi-
O professor tem o papel explícito de interferir neste
dade. Atividade psicológica é para Luria um sistema com-
processo, diferentemente de situações informais nas quais
plexo que envolve a operação simultânea de três unidades
a criança aprende por imersão em um ambiente cultural.
funcionais: percepção visual; a análise da síntese da infor-
É o papel do docente, portanto, que provoca avanços dos mação recebida pelo sistema visual; os movimentos dos
alunos e isto se torna possível com a interferência do edu- olhos pelas várias partes do objeto a ser percebido. Outro
cador na zona de desenvolvimento proximal (ZDP). aspecto importante refere-se à organização cerebral, cuja
Vemos ainda como fator relevante para a educação, idéia é a de que a estrutura dos processos mentais e re-
decorrente das interpretações das teorias de Vygotsky, a lações entre os vários sistemas funcionais transformam-se
importância da atuação dos outros membros do grupo so- ao longo do desenvolvimento individual. Outro importante
cial na mediação entre a cultura e o indivíduo, pois uma colaborador de Vygotsky foi Alexei Leontiev, para quem as
intervenção deliberada desses membros da cultura, nessa atividades humanas são formas de relação do homem com
perspectiva, é essencial no processo de desenvolvimento. o mundo, dirigidas por motivos, por fins a serem alcan-
Isso nos mostra os processos pedagógicos como intencio- çados, ou seja, o homem orienta-se por objetivos, planeja
nais, deliberados, sendo o objeto dessa intervenção a cons- suas ações agindo de forma intencional. Leontiev distingue
trução de conceitos. a estrutura da atividade humana em três níveis de funcio-
O aluno não é somente o sujeito da aprendizagem; ele namento: a atividade propriamente dita, as ações e as ope-
é aquele que aprende, junto ao outro, o que o seu gru- rações.
po social produz, como por exemplo: valores, linguagem Fonte: http://educacadoresemluta.blogspot.
e o próprio conhecimento. A formação de conceitos es- com/2009/12/oliveira-marta-k-de-vygotsky_14.html
pontâneos ou cotidianos, desenvolvidos no decorrer das
interações sociais, diferencia-se dos conceitos científicos
adquiridos pelo ensino, parte de um sistema organizado
de conhecimentos.
A aprendizagem é fundamental ao desenvolvimento
dos processos internos na interação com outras pessoas.

129
BIBLIOGRAFIA

As pesquisas discorrem sobre a interação das crianças,


OLIVEIRA, ZILMA RAMOS. EDUCAÇÃO durante a realização de tarefas e, também, sobre as trans-
INFANTIL: FUNDAMENTOS E MÉTODOS. SÃO formações ocorridas com as informações que as crianças
PAULO: CORTEZ, 2002. (CAPÍTULOS: I, E DO V recebem. Muitas informações recebidas passam a ser imi-
tadas, pelas crianças.
AO XIX).
Imitando, a criança mostra que interiorizou o modelo
de interação com outros indivíduos, construindo com base
nele uma imagem mental e reproduzindo suas ações. Esse
A educação infantil, nível de ensino integrante da edu- tema aparece com clareza nas brincadeiras de faz-de-con-
cação básica, atende crianças até 03 anos de idade (aten- ta. Nelas, ao imitar a mãe, dando de comer a uma boneca,
dimentos em creches) e, também, crianças de 04 a 06 anos exterioriza gestos e verbalizações a partir de sua experiên-
(atendimento em pré-escolas). As instituições incluídas na cia pessoal. Facilmente, a criança vai se tornando hábil em
educação infantil, a creche vista com papel substituto da opor-se às iniciativas dos outros, passando agir por sua
família e a pré-escola adotando concepção de ensino indi- própria iniciativa. Assim, a relação eu-outro passa ser mais
vidualista e apartada do ambiente social, propõe à criança diferenciada e a criança começa a reagir mais facilmente
atividades pouco significativas para sua experiência social. não apenas a impressões presente, mas a lembranças e
Surge a proposta de que as creches e pré-escolas busquem imagens.
aproximar cultura, linguagem, cognição e afetividade, ele- O ambiente e os cuidados básicos nas creches e pré-
mentos constituintes do desenvolvimento humano. Os -escolas favorecem a formação de hábitos e a aprendiza-
estudos de psicologia do desenvolvimento sobre a cons- gem de conceitos de organização e saúde. Por meio de
trução da inteligência, da linguagem e do conhecimento, atividades lúdicas, as crianças aprendem através da orga-
pelas crianças de idade precoce, têm sido assimiladas por nização do almoço como manejar talheres, a mastigação
cheches e pré-escolas.A influência, na área da educação de alimentos; isso requer bom planejamento da situação.
infantil, de uma história higienista, de priorização de cui- Em seguida, para ilustrar questões referentes à saúde e hi-
dados de saúde, e assistencialista, que ressalta o auxílio giene, situações e ambientes favoráveis são apresentados
a populações de risco social, faz com que a propostas de para que as crianças guardem toalhas individuais e esco-
creches e pré-escolas fiquem entre cuidar e o educar. No vas para higiene bucal.
entanto, essa visão precisa ser analisada. A qualidade do ambiente na creche e pré-escola é
Pesquisadores do mundo inteiro idealizaram e debate- muito importante, pois nenhum ambiente é neutro com
ram sobre educação infantil. Nos primórdios, não havia um respeito a seu impacto sobre o comportamento humano,
direcionamento próprio para o tema: no início o “cuidar” particularmente sobre o desenvolvimento dos que nele es-
das crianças era atividade doméstica, responsabilidade fa- tão envolvidos. Assim, o ambiente das creches e pré-esco-
miliar, da mãe e de outras mulheres. O conceito, no entan- las pode ser considerado como um campo de vivências e
to, foi mudando, até o surgimento gradativo de arranjos explorações, para a criança reconhecer objetos, experiên-
mais formais para atendimento de crianças fora da família, cias significados de palavras e expressões, além de ampliar
em instituições de caráter filantrópico, constituídas para o mundo de sensações e percepções.
esse objetivo. Isso se deu na Europa, onde entre filósofos e Nas creches e pré-escolas, o professor deve ser o par-
estudiosos surgiram os educadores, e foi criado o primeiro ceiro da criança em seu processo de desenvolvimento.
jardim da infância. Deve permitir à criança estruturar seu pensamento, dentro
No Brasil, a criação do “jardim-de-infância” gerou mui- das atividades propostas, a fim de que as crianças possam
tos debates políticos, contudo a resistência foi superada. consolidar seu pensamento.
Ao longo do tempo, alguns educadores defendiam a quali- Sobre educação especial, pode-se afirmar que as
dade do trabalho pedagógico, gerando movimento de re- crianças com necessidades educativas especiais devem
novação. Em 1961, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação conviver com as outras crianças em ambientes cotidianos,
Nacional apontou para a criação oficial do “jardim-de-in- com sua complexidade habitual, interagindo no ambiente,
fância” e sua inclusão no sistema de ensino. para que possam ampliar suas habilidades e conhecimen-
A instituição da educação infantil passou a abarcar mo- tos. Isso porque a legislação atual favorece a luta contra a
delos pedagógicos, a fim de aplicá-los nas futuras creches exclusão dos portadores de deficiência das experiências
e pré-escolas. O foco passou a ser a criança e seu desenvol- vividas nas escolas. É um grande desafio para as creches
vimento humano. Dessa forma, os pesquisadores Wallon e e pré-escolas, pois devem encontrar metodologia diferen-
Vygotsky muito auxiliaram para compreensão e aplicação, ciada e recursos, para que atingir os objetivos educacio-
a partir de seus trabalhos. Tais pesquisadores trouxeram nais com êxito.
grandes contribuições ao conhecimento sobre a forma de a Segundo a LDB, a avaliação na educação infantil será
criança ser e modificar-se. Ambos exercem grande influên- realizada mediante acompanhamento e registro do desen-
cia entre os pesquisadores da área de educação infantil. volvimento da criança, sem o objetivo de promoção, mes-
mo para o acesso ao ensino fundamental.

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BIBLIOGRAFIA

Avaliar a educação infantil implica assimilar as mudan- porquê de algumas atitudes afinal uma teoria de aprendi-
ça em competências das crianças que sejam consideradas zagem é, então, uma construção humana para interpretar
como trabalho realizado na creche e na pré-escola quanto à sistematicamente a área de conhecimento que chamamos
articulação dessas instituições com o cotidiano familiar. Essa de aprendizagem. Moreira (1999).
análise, com base em escalas de valores, deve ser realizada a Algumas teorias se popularizaram de tal forma que
partir das mudanças evidenciadas. E, é necessário conhecer acabam distorcidas, como a teoria de desenvolvimento de
os diversos contextos de desenvolvimento de cada crian- Piaget (1974), na qual a aprendizagem é um conceito e não
ça, sendo um retrato aberto, de uma história coletiva. É um o eixo central como alguns entendem o construtivismo.
campo de investigação, não de julgamento, que contribui Filosofias também são muito citadas e utilizadas na
para a busca de uma nova proposta pedagógica. educação e se transformam em correntes como o Compor-
tamentalismo que acredita no estímulo respostaBehavio-
rista e as Filosofias Humanista e Cognitivista que utilizam
PANIZZA, MABEL E COLABORADORES. teorias construtivistas.
ENSINAR MATEMÁTICA NA EDUCAÇÃO No comportamentalismo aquilo que os alunos devem
INFANTIL E NAS SÉRIES INICIAIS: ANÁLISE E aprender é expresso em termos de comportamentos ob-
PROPOSTAS. PORTO ALEGRE: ARTMED, 2006. serváveis. Os objetivos comportamentais definem aqui-
lo que os alunos devem ser capazes de fazer, em quanto
tempo e sob que condições, após a instrução. Se o aluno
realiza a atividade da maneira como é ensinado, então o
Introdução aprendizadoocorreu.
O presente trabalho traz questionamentos sobre o en- Na filosofia Cognitivista o que se observa é a forma
sino da matemática na Educação Básica brasileiral, onde é como o indivíduo conhece o mundo. Essa corrente de pen-
possível perceber que boa parte dos alunos apresentam samento se deu na mesma época em que o Behaviorismo
dificuldades. Há muitas justificativas para tais que podem acreditava numa psicologia que estudasse o que as pes-
vir de metodologias não condizentes com a faixa etária soas fazem e os cognitivistas queriam estudar as variáveis
do aluno, sendo de difícil assimilação para tal, professores entre estímulo e resposta.
“A filosofia cognitivista trata então dos processos men-
com dificuldades nos conteúdos ensinados, dificuldade ou
tais, se ocupa da atribuição de significados, da compreen-
distúrbio do aluno em aprender como relata Parra & Saiz
são, transformação, armazenamento e uso da informação
(2008). Esta pesquisa está para entender se essas dificulda-
envolvida na cognição. Na medida em que se admite nessa
des estão nos indivíduos que não aprendem procedimen-
perspectiva, que a cognição se dá por construção chega-se
tos básicos durante os anos iniciais mesmo freqüentando
ao construtivismo.”
a escola ou dos professores com metodologias inflexíveis
Moreira,1999, p. 15.
e que mostram pouco significado lógico matemático para
O construtivismo é uma posição filosófica cognitivista
os alunos. É preciso esclarecer alguns mitos que só prejudi-
interacionista. Estuda-se a forma como o indivíduo constrói
cam a evolução matemática. sua estrutura cognitiva. E a Interação vem de observar o
Saber que o que se ensina tem fundamentação teórica aprendizado e conhecimento adquiridos nas relações. Na
é a base para um ensino consistente, conhecerteorias de sala de aula o construtivismo tem sido difundido como
desenvolvimento e o percurso do indivíduo ao aprender “método construtivista” ou como “aprendizado por desco-
matemática é essencial para a formação profissional de um berta”, ou ainda o que é pior, por simples atividades mani-
professor de Educação Básica. pulativas.
Apoiados nas leituras de autores como Constance Ka- Nessa teoria, segundo Zimer (2008), para que ocorra o
mii (2002) e Mabel Panizza (2006) e na Teoria de desenvol- processo de equilibração é preciso que exista uma adap-
vimento de Piaget (1974), devemos observar para compa- tação entre a assimilação e a acomodação da nova infor-
rar e comparando é possível encontrar desencontros entre mação em relação aos conhecimentos prévios, partindo-se
a teoria e a prática em sala de aula. do princípio que Piaget (1974) define assimilação como
Mas só o conhecimento e o desenvolvimento em li- incorporação de uma realidade externa qualquer a uma
nhas atuais de ensino matemático podem nos trazer a um outra parte do ciclo de organização, isto é, refere-se ao
sucesso no ensino. Será que o índice de casos de insucesso fato de um estímulo do meio exterior modificar uma con-
matemático é devido ao ensino ou distúrbios biológicos? duta, conforme acontece sua integração com as estruturas
cognitivas já existentes. A assimilação é determinada pelo
2 Considerações teórico metodológicas indivíduo, já a acomodação é determinada pelo objeto e é
Cada perspectiva sobre a educação reflete uma cren- reflexo da necessidade em se considerar os aspectos pró-
ça diferente sobre a natureza do conhecimento, do modo prios de um certo conceito a ser assimilado, ou seja, é o
como se adquire o mesmo e do que significa saber sobre ajustamento do esquema a uma em particular.
alguma coisa. Essas concepções muitas vezes terminam Não existe um método construtivista, só teorias cons-
por constituir teorias implícitas que condicionam e regulam trutivistas, das quais Piaget (1974) é o mais conhecido. To-
o agir docente, enquanto não mediam espaços de refle- dos acreditam no deixar de ver o aluno como um receptor
xão que permitiriam torná-las explícita.Teorias explicitam o de conhecimentos, não importando como armazena ou or-

131
BIBLIOGRAFIA

ganiza sua mente.A filosofia humanista vê o ser que apren- A partir dessa constatação realizou-se uma pesquisa
de primordialmente como pessoa. O importante é a auto bibliográfica sobre pesquisas relacionadas à formação dos
- realização da pessoa, seu crescimento pessoal. Moreira professores que ensinam matemática nas séries aqui já ci-
(1999). tadas.
É fato que a grande maioria dos professores da primei-
2.2 O ensino clássico na matemática ra década do século XXI e da última do século XX é fruto
Primeira corrente do ensino matemático registrada no de uma escolarização matemática de transição entre escolas
Brasil, por volta da década de 1920, O ensino Clássico traz e correntes da matemática, como cita Vasconcellos e Bittar
a idéia de que devemos ensinar os números aos poucos, (2006), os professores destes iniciavam práticas da Didática
um a um, na ordem convencional. Enquanto não ensina- da Matemática e desacreditavam ( devido algumas contro-
do e aprendido o número, não se pode seguir com o co- vérsias) da Matemática Moderna, então defendida por Os-
nhecimento dos próximos. Nele, atividades de repetição waldo Sangiorgi, escritor e matemático precursor da MMM
são propostas, como escrever várias linhas com o mesmo (movimento da matemática moderna, que toma como base
número, desenhá-los e pintá-los. Acredita-se na memo- os estudos de Piaget e as estratégias que ele utilizou para
rização como fator de aprendizado. Totalmente empírico. estudar o desenvolvimento lógico da criança, acreditava-se
Problemas só serão aplicados após o professor ter ensina- num estudo usando as ferramentas que Piaget (1974) utilizou
do a base (numerais).Como cita Ferreira(2006). em sua pesquisa com as chamadas provas operatórias)
Essa forma de ensino entende a aprendizagem como O professor sendo um ex aluno da Educação Básica com
algo cumulativo. Acredita-se num sujeito carente de saber dificuldade ou não, trará para a sala de aula o pouco que
e que colocando estímulos necessários, os alunos darão as aprendeu na graduação ou nível técnico e a prática geral-
respostas esperadas, isso sempre caminhando do simples mente cabe as experiências de vida, de uma escolarização
para o complexo. carente dos desafios exigidos nos tempos atuais no que se
Neste ensino nenhum conhecimento anterior é con- refere à formação procedimental das crianças, ou seja, a for-
siderado. E só será considerado apto quando dominar os ma como mostra o uso da matemática no dia a dia, as diver-
procedimentos formais e souber praticá-los dentro de um sas facetas desse uso e que cada sujeito é capaz de construir
suas estruturas lógicas. A revista Nova Escola de outubro de
problema ( já que esta é a função da situação problema
2008 cita que não podemos esperar grandes sucessos com
nesse enfoque).
professores que são mal formados, trabalham muito e além
É muito usual a inclusão de palavras chave para «faci-
de tudo, não são bem pagos.
litar» ao aluno o procedimento que deverá usar na resolu-
Zimer (2008) em sua pesquisa constata que o futuro pro-
ção de problemas.
fessor vincula as próprias experiências com a escolarização
Para Zimer (2008) no final do século XIX, Félix Klein, um
como meio de estabelecer conexões entre suas concepções
importante matemático da época, revelava certa preocu-
e a prática pedagógica. É possível compararmos as dificulda-
pação com a formação de professores de matemática, uma
des de aprendizagem dos alunos nos anos finais do Ensino
vez que já se percebia a existência de um descompasso Fundamental com a má formação que apresentam os profes-
entre a matemática ensinada nas universidades e a ensina- sores enquanto alunos dos cursos de magistério no que diz
da nas escolas secundárias. Para ele, era preciso melhorar respeito à matemática.
o padrão do ensino matemático na escola secundária para “Quando professores têm pouco conhecimento dos con-
que houvesse um impulso na matemática pesquisada nas teúdos que devem ensinar, despontam-se dificuldades para
universidades e no desenvolvimento tecnológico das in- realizar situações didáticas, eles evitam ensinar temas que
dústrias. E para que isso ocorresse era necessário investir não dominam, mostram insegurança e falta de confiança”.
na formação destes professores que ensinariam a mate- Vasconcellos e Bittar, 2006, p. 3.
mática nas escolas secundárias. No início do século XX, Tendo em vista essas informações é possível encontrar
Klein amplia sua preocupação com a formação docente profissionais ingressando na profissão docente sem um co-
e declara ser necessário que o professor tenha conheci- nhecimento que lhes garanta atuar de forma segura ao en-
mento sobre a psicologia da criança, desta maneira teria sinar matemática. Podemos encontrar professores que opta-
condições de capturar o interesse do aluno. ram pela pedagogia ou normal superior por terem encontra-
do dificuldades na matemática enquanto alunos.
2.3 Alunos da matemática moderna e mestres da “Diante destas informações torna-se evidente por um
didática da matemática lado, que os cursos de formação de professores (Pedagogia e
Um primeiro levantamento sobre investigações nesse Normal Superior) vêm apresentando falhas que podem com-
campo de estudo, pareceu indicar-nos uma carência de prometer o ensino da matemática nas séries iniciais”.
pesquisas relativas ao trabalho do professor de matemá- Vasconcellos e Bittar, 2006, p.20
tica das séries iniciais da Educação Básica. Assim, além da Todos os cursosde Pedagogia com duração de três anos
análise da estrutura curricular da disciplina de metodolo- foram analisados e tiveram suas grades curriculares compa-
gia, também, buscou-se conhecer como os pedagogos em radas com outra pesquisa já comprovada em Zimer (2008)
formação estabelecem relações entre os saberes ensina- onde aênfase dada ao ensino da língua em grande escala
dos na metodologia e as suas práticas cotidianas de sala faz pressupormos que professores que tiverampouco con-
de aula. teúdo em matemática, pouco conseguirão desenvolver nos

132
BIBLIOGRAFIA

alunos se dependerem apenas da formação universitária. todologia do ensino de Matemática ou Fundamentos da


Pouco se sabe sobre o a didática para o conteúdo que é Matemática, muitas vezes contrataram professores que
ensinado a esses alunos de graduação, mesmo que essas não possuem experiência nos anos iniciais. Neste caso, a
instituições disponibilizem bons professores universitários formação de futuros professores fica comprometida, pois
e que estes estejam aplicando de forma clara e concisa a deixam de ter condições de se preparar melhor para con-
Didática da Matemática, quando o conteúdo é insuficiente duzir as mudanças necessárias a uma prática pedagógica
para trazer ao educador das séries iniciais segurança, a ten- mais atualizada.
dência é acreditar na forma em que foram ensinados quan-
do criança e por assim, aplicando nos alunos do século XXI 3 Relação professor/ aluno e ensino/ aprendizagem
uma Matemática Moderna que já não é eficiente como nos No ensino-aprendizagem da matemática podemos fa-
tempos remotos. lar de um triângulo (humano programático) cujos vértices
Zimer (2008) realizou entrevistas com alunos do cur- são: a matemática, os alunos e o professor. O papel a de-
so de Pedagogia egressos da referida disciplina e atuan- sempenhar pelo professor numa sala de aula - é posto de
tes como professores nas salas de aula de séries iniciais de uma forma simplista o de tornar o caminho entre a mate-
escolas públicas de São Paulo -Capital, além da análise da mática e os alunos o mais curto possível. Cabe ao professor
estrutura curricular da disciplina de metodologia da ma- a missão de conduzir a matemática até os alunos ou de
temática, também buscou conhecer como os pedagogos levar os alunos até a matemática.
em formação estabelecem relações entre os saberes ensi- Os professores têm da matemática uma idéia que foi
nados na metodologia e suas práticas cotidianas de sala de sendo construída e sedimentada ao longo da sua vida por
aula, Zimer (2008)pesquisou o que segundo a Revista Nova vivências intelectuais e afetivas mais ou menos intensas,
Escola, 10/2008, há mais de trinta anos alguns dados são pelo contato que com ela tiveram no seu percurso acadê-
analisados para se levar em consideração a teoria do de- mico e nas ofertas que lhe foram proporcionadas, pelas
senvolvimento a favor do ensino da matemática, mas ainda representações que a sociedade tem da mesma e também
não constam nos currículos dos cursos de licenciatura. Aos pelo confronto com as práticas, onde estão presentes va-
poucos aparecem em programas de formação continuada, riáveis tão importantes como as atitudes dos alunos, as di-
mostrando maneiras eficientes de ensino da disciplina. nâmicas de grupo, etc.
“Dessas análises foram identificados alguns aspectos Pode-se dizer que aquilo que acontece na sala de aula
como possíveis dificultadores de uma relação mais estreita pode estar marcado pela visão da matemática que o pro-
entre teoria e prática. Afinal não há possibilidade curricular fessor persegue, segundo Panizza (2006), parte da qual
de se trabalhar com concepções dos alunos, concomitante- pode ser explicada pelo seu aprendizado enquanto estu-
mente, ao desenvolvimento da prática pedagógica durante dante e varia entre a exposição “clara”, seguida de expli-
o estágio”. cação e envolvimento dos estudantes em situações que
Zimer,2008, p.16. partem de problemas e privilegiam a descoberta..
É imprescindível que um professor saiba sobre teorias Na tendência didática tradicional o professor é o trans-
do desenvolvimento, para poder ser um intermediador missor de conhecimento matemático, é o especialista em
eficiente. De nada adianta querer ensinar sinais para uma conteúdos. O aluno esforça-se para aprender tudo aquilo
criança de quatro anos que sequer entende que para se que o professor lhe transmite. A disciplina está orientada,
comunicar podemos usar códigos que simbolizam ações. A basicamente, para a aquisição de conceitos, dando-lhe
escola valoriza demais os símbolos e pouco a realidade. Ë o uma finalidade exclusivamente informativa.
que nos relata Panizza( 2006). Essa tendência começou a se modificar com a incorpora-
Há uma “epidemia” das dificuldades de aprendizagem ção da perspectiva construtivista da aprendizagem, na qual o
que projeta não só problemas pedagógicos como também professor é incentivador da aprendizagem. Para que ela ocorra,
problemas econômicos e sociais. Vivemos numa sociedade é necessário que o aluno dê um significado ao que aprende,
competitiva, onde o diploma é sinônimo de salvo conduto sendo consciente de seu próprio processo de aprendizagem.
e de sobrevivência social. O êxito escolar impõe-se como A didática da matemática se apresenta desmistificando
uma hiperexigência dos pais, e muitas vezes, como um algumas práticas de ensino matemático. Uma das vertentes
meio de promoção profissional dos professores. A socie- é o ensino com situações problemas, que incita que não
dade pede a instituição escolar uma dimensão produtiva, se aprende matemática somente resolvendo problemas. É
onde a matéria- prima é a criança e o instrumento de pro- necessário, além disso, um processo de reflexão sobre eles
dução, o professor. Ambos são vítimas de um sistema social e também sobre os diferentes procedimentos de resolução
que se exige transformar. que possam surgir entre os integrantes da turma.
Quando se avalia o ensino da matemática realizada em Durante o período da matemática clássica, época em
nossas escolas, de modo geral, nossos alunos não conse- que se acreditava no ensino dos números progressivamen-
guem utilizar com sucesso os conceitos e processos mate- te os alunos não podiam ousar e criar estratégias. Um pa-
máticos para solucionar problemas, nem mesmo aqueles radoxo encontrado segundo Panizza (2006) é o fato de que
que são resolvidos comumente em sala de aula.Nacaratto alunos aprendiam a recitar a série numérica na escala um
apud Vasconcellos e Bittar (2006), assegura que de modo por um pudessem aprendessem a contar de outras formas,
geral, os cursos oferecem uma carga horária reduzida e, porém os cálculos que lhe eram oferecidos apresentavam-
na sua execução quando oferecem disciplinas como Me- -se como primários de no máximo uma dezena.

133
BIBLIOGRAFIA

“Em primeiro lugar, supor que um aluno da 1 série da O que está acontecendo é que as práticas pedagógicas
educação infantil não se tenha inteiradoda existência do adotadas pelos professores ao ensinar matemática, de cer-
número 1 é aceitar ao mesmo tempo que não sabe quantos to modo, refletem as visões que os professores possuem
tem; que seu irmão tem dois anos a mais que ele porque já sobre a forma como o aluno aprende matemática. Em mui-
tem 7; que em cada pacote de figurinhas vêem 6; que tinha tos casos, essa visão é desconectada das teorias, mas de-
16 figurinhas, mas, como ganhou 3 em uma aposta, agora corrente da experiência com a sala de aula.
tem 19; que na aula são 25 crianças, mas hoje faltaram duas
e portanto, são 23, etc. saberes que muitas crianças dessa 3.1 Didática da matemática (considerações da cons-
idade já possuem.” trução do pensamento sobre o número) e o que torna
Panizza, 2006, p. 44. um indivíduo competente na matemática?
Acreditávamos também que todas as resoluções ma- Os questionamentos que eram feitos até então sempre
temáticas para se validarem precisavam de registro, po- giravam em torno do como a criança deveria aprender a
rém quando uma criança entra na escola se depara com matemática de um jeito realmente eficiente e condizente
a aprendizagem de procedimentos formais para expressar com sua realidade biológica e social, porém alguns autores
ações que antes realizava espontaneamente, e não de ma- começaram a refletir sobre o signiicado dos mesmos e a
neira institucionalizada. Antes acrescentava, reunia, tirava, real necessidade de se ensinar número por número.
dividia, separava os objetos que estavam ao seu alcance e “Que conclusões poderiam tirar as crianças a partir de
que manipulava em função de seus interesses e necessida- seu contato cotidiano com a numeração escrita? Que in-
des. Agora tem que usar apenas lápis e papel. formações relevantes poderiam obter ao escutar seus pais
Outra situação conflitante se refere a resolução de pro- queixar-se do aumento dos preços, ao tentar entender
blemas; que desequilíbrio provocaria em um sujeito a re- como é que sua mãe sabe qual das marcas de determi-
solução de um problema se, na ordem ou na intervenção nado produto é mais barata, ao ver que seu irmão recorre
do professor está implícito o que deve fazer? Nesse caso, ao calendário para calcular os dias que ainda faltam para
quem age: o aluno ou o professor? seu aniversário, ao alegrar-se porque na fila da padaria “já
Quando a professora intervém na escolha da opera- estão atendendo a ficha trinta e...”E seu pai tem a trinta e
ção adequada, respondendo afirmativamente a pergunta
quatro...”. Parra e Saiz, 2008, p. 76
tão conhecida: “O sinal é de mais?”, podemos dizer que as
Acreditávamos que as crianças construíam desde cedo
crianças resolvem a conta, mas não o problema. Nesse caso
critérios para comparar números e pensávamos que mui-
os alunos adivinharam o problema pela resolução da conta,
to antes de suspeitar da existência de centenas, dezenas e
mas não precisaram colocar em prática todos os conheci-
unidades alguma relação elas deveriam estabelecer entre
mentos necessários para tratar a situação.
a posição dos algarismos e o valor que eles representam e
Apesar da importância de levar em conta ambos os
para a didática da matemática as crianças constroem idéias
aspectosos conhecimentos prévios dos alunos e a orga-
sobre os números e sobre o sistema de numeração ainda
nização do conhecimentocom freqüência o conjunto de
atividades que são propostas parecem responder mais a antes de terem chegado à escola. Aprender o número está
experiências isoladas do que a uma organização conforme diretamente ligado ao cálculo e não a noção de conserva-
uma seqüência de ensino do tema. ção (aprende o 1 depois o 2...).
As primeiras idéias práticas embasadas na teoria de Diferentemente da numeração escrita, que é posicio-
desenvolvimento de Piaget acreditavam que o papel do nal, a numeração falada não o é. Se fosse assim ao ler um
professor era o de apenas oferecer os recursos e o aluno número, por exemplo, 7.456 diríamos sete quatro cinco
aprenderia por si só, sem intervenções específicas. A apli- seis, mas em vias do conhecimento que possuímos lemos
cação das provas operatórias de Piaget (1974) era atividade de outra forma.
de praxe, segundo Sangiorgi nas salas de Educação Infantil A didática da matemática não é um novo “método” de
e séries iniciais do Ensino Fundamental. A essência dessa ensino. Não se dedica à produção e meio para atuar no
linha de estudo estava sim em fazer avaliações prévias do ensino, na maior medida possível, os processos que acon-
aluno com ferramentas descobertas em pesquisas feitas tecem no domínio do ensino escolar da matemática.
sobre o desenvolvimento humano, porém a populariza- Esses processos dependem não somente dos tipos de
ção sem um estudo sistêmico da mesma acabou criando problemas que são propostos, mas da seqüência dos mes-
vertentes errôneas sobre essa concepção matemática, o mos, das modificações intencionais (variáveis didáticas)
que levou matemáticos a questionarem sua real eficiên- que se realizam com o objetivo dos alunos para o saber
cia. Transformar atividades diagnósticas em atividades de que se tenta transmitir, das interações que se promovem
aprendizado não era o objetivo desse movimento que bus- entre os alunos e dos tipos de intervenção docente durante
cava uma popularização do ensino matemático de forma os processos de ensino e aprendizagem desse saber
a desenvolver competências a partir do que o indivíduo já “Tendências atuais propõem constituir, no âmbito es-
conhecia e acreditar no enfoque de que as idéias evoluem colar, um domínio de experiências em que a quantifica-
por um movimento de assimilação e acomodação e a inte- ção ocupe um lugar de importância para ampliar e para
ração social entre indivíduos com diferentes potencialida- consolidar os conhecimentos que as crianças já têm sobre
des cognitivas é um meio favorecedor para a ocorrência da o numérico. Embora os números naturais “sejam usados”
evolução das idéias. cotidianamente em diversas circunstâncias, o meio natural

134
BIBLIOGRAFIA

ou social raramente apresenta problemas para os quais os CONSIDERAÇÕES FINAIS


números naturais sejam a solução. Propor estes problemas Há muito que considerar sobre o aprendizado numéri-
é responsabilidade da escola, e elaborá-los é uma tarefa co, tanto no que diz respeito ao sujeito ensinante quanto o
específica da didática da matemática” aprendente. Uma série de fatos históricos alimentam cren-
Panizza, 2006, p. 78. ças. Desde o início do ensino matemático no Brasil a pos-
tura do mestre ao ensinar para a parcela elitizada que tinha
A princípio pode ser difícil para o professor encontrar acesso a uma escola com ensino centrado na administração
intervenções que permitam essa relação do aluno com o financeira e bens de família e pouca criação e ousadia ma-
problema, sem fazer indicações sobre como resolvê-los. Se temática. Aos poucos surgiam estudos a respeito de novas
não é o silêncio do professor o que caracteriza essas fa- correntes matemáticas bem mais populares, afinal, agora a
ses, mas o que posso dizer? A forma que se deve intervir educação parecia estar se tornando mais democrática.
é dizendo palavras para encorajar a resolução, como por Pouco a pouco essa população era a maioria nos ban-
exemplo, que há diferentes maneiras de resolvê-lo e anun- cos escolares e esses professores já não mais ensinavam
ciar que logo serão discutidas. administração matemática, mas sim operações e cálculos
Os conhecimentos não são produzidos somente pela básicos, o único problema é que a didática desse ensino
experiência que o sujeito tem sobre os objetos, nem tam- continuava a mesma, alguns professores permaneciam
imutáveis em seu trabalho pedagógico, criando uma gera-
pouco por uma programação inata preexistente nele, mas
ção com as chamadas dificuldades de aprendizagem bem
por construções sucessivas que acontecem pela interação
mais visíveis.
desse sujeito com o meio. Assim, o objetivo central da di-
Muitos estudiosos da matemática e da psicologia do
dática é poder identificar as condições nas quais os alunos desenvolvimento perceberam que essas dificuldades pare-
mobilizam saberes na forma de ferramentas que conduzam ciam aumentar em quantidade e novas correntes matemáti-
à construção de novos conhecimentos. cas surgiram juntamente com as teorias de desenvolvimen-
As crianças elaboram conceitualizações a respeito da to. Buscando uma resposta para tal problema acreditamos
escrita dos números, baseando-se nas informações que que seria de grande importância para tal uma reformulação
extraem da numeração falada e em seu conhecimento da da grade curricular dos cursos superiores de formação para
escrita convencional dos “nós”. Ë o que nos relata Panizza professores de Educação Básica, afinal a quantidade de te-
(2006). mas estudados em Língua Portuguesa é visivelmente maior
Para produzir os números cuja escritura convencional do que os estudados em Matemática, como foi constatado
ainda não adquiriu, elas misturam os símbolos que conhe- em pesquisa bibliográfica.
cem, colocando-os de maneira tal que se correspondam Uma mudança de postura, intervenção sábia, busca
como a ordenação dos termos na numeração falada. constante por novos conhecimentos e talvez que esses
Essa concepção toma da teoria de Piaget o fundamen- educadores consigam antes de resolver medos dos alunos
to de que o conhecimento se constrói por meio da ação resolverem seus medos. Acreditamos também no processo
de um aluno diante de situações que lhe provoquem de- de evolução do conhecimento pela relação entre sujeitos
sequilíbrios. Esses desequilíbrios acontecem quando existe socioculturais e que o professor a partir de indagações pró-
uma situação que o aluno tenha de resolver, mas, além dis- prias constitui-se como autor, aprendendo consigo mesmo
so, quando possui alguns conhecimentos básicos que, ao e buscando entender limitações no sujeito aprendente vin-
mesmo tempo, se mostrem insuficientes para enfrentar o das de diversas áreas.
problema.
As crianças constroem idéias próprias sobre o saber Texto Adaptado: www.webartigos.com
matemático, algumas, por exemplo, podem afirmar que
um número é maior que outro apenas porque tem mais
PENTEADO, HELOÍSA DUPAS. METODOLOGIA
algarismos ou porque o primeiro é maior e ele é quem
manda. E nós estamos tão acostumados a conviver com a DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA. SÃO PAULO:
linguagem numérica que em geral não distinguimos o que CORTEZ, 2011. (CAPÍTULOS 1, 2 E 3).
é próprio dos números (significado) e o que é próprio do
sistema de numeração (para serem representados). Afinal METODOLOGIA DO ENSINO DE HISTÓRIA E GEO-
as propriedades dos números são universais, já as leis que GRAFIA
regem os diferentes sistemas de numeração não são. Um
exemplo pode vir quando uma criança afirma que o núme- PENTEADO, Heloísa Dupas.
ro 10 pode ser maior que 8 não pela sua quantidade, mas
pela quantidade de algarismos, o que se torna válido ao O presente texto tem por finalidade apresentar os se-
considerarmos um sistema não posicional. guintes assuntos: (I) a formação do professor das séries
As crianças estão a todo o momento buscando regu- iniciais do Ensino Fundamental; (II) a recuperação da ex-
laridades e o papel do educador não é podá-lo em seus periência do aluno-mestre com a História e Geografia ao
erros, mas tentar entender seu raciocínio e intervir da me- longo de sua formação; e (III) o ensino de Geografia e His-
lhor forma. tória que está se processando nas séries iniciais do Ensino
Fundamental atualmente.

135
BIBLIOGRAFIA

A disciplina Metodologia do Ensino de História e Geo- Num quarto momento, os alunos poderão ler suas
grafia no curso de formação de professores, segue um ca- redações uns para os outros, registrando no caderno as
minho bastante semelhante do Ensino Fundamental. Trata- conclusões. Perguntas e duvidas permitirão ao professor
-se da construção do conhecimento em torno da concep- de Metodologia perceber o raciocínio e aprendizado dos
ção e prática educativa em contextos formais de ensino. alunos.
O processo de ensino e aprendizagem tem por finali- O último item poderá ser desenvolvido através de
dade: exercícios de reflexão e de levantamento de situações reali-
- favorecer a formação de um sujeito participativo em zadas pelos alunos com a orientação do professor.
sala de aula, isto é, fazer com que o aluno pergunte e colo- O professor tem sua posição sobre variados assuntos
que as suas opniões sobre determinado assunto; e não há porque ocultá-la. Apresentá-los aos alunos-mes-
- estimular a práxis em sala de aula, ou seja, um pro- tre significa expô-la a análise que os alunos eventualmente
cesso reflexivo diante do conhecimento a ser apreendido e poderão fazer, da mesma forma que o professor faz sua
construído; análise das posições manifestadas pelos alunos. Se isto
- a coerência entre teoria e prática educativo. Para que ocorrer terá atingido uma real situação de ensino-apren-
isso ocorra é preciso de uma efetiva compreensão dos fun- dizagem significativa, além de uma relação professor-aluno
damentos da prática educativa. de “igualdade”.
A efetiva concepção de ensino e prática educativa as- É de fundamental importância que o aluno compreen-
sumida pelo aluno-mestre, em muitos casos, é direciona- da os mecanismos ou “instrumentos intelectuais” que lhe
da pelo professor. A escolha por parte do aluno-mestre da permitam refletir e analisar suas próprias posições e ações,
teoria de ensino-aprendizagem que é mais adequada e/ou ao longo de sua vida profissional, sobretudo, diante de
coerente para a prática educativa dele será pautada: pelas eventuais processos de ensino que será vivenciado na edu-
análises das leituras e atividades práticas desenvolvidas no cação escolar. Uma última consideração muito importante
curso de graduação, bem como da maturidade da conclu- para o professor de Metodologia é que existe um determi-
são feita diante das análises. nado tempo de duração dos trabalhos, além do que se cor-
É um momento oportuno destacar que o estudo da re o risco de se fazer um trabalho superficial e desorienta-
do, fazendo com que os alunos tenham a sensação de que
história e da geografia por graduandos, trata-se por
os processos de conhecimento sobre a metodologia de
apreender uma metodologia de ensino de história e geo-
ensino não são importantes na formação. O “tempo ade-
grafia direcionada para crianças.
quado” é definido por uma série de fatores e circunstâncias
Segue alguns conteúdos programáticos de ensino de
sociopedagógicas, tais como: a natureza dos processos de
história e geografia direcionados para professores que
comunicação social predominantes, a carga horária dispo-
atuam nos anos iniciais do ensino fundamental:
nível para trabalhar com a disciplina, as formas de comu-
nicação e o dinamismo desenvolvido em sala de aula. É
- conteúdos e procedimentos correspondentes à área
preciso que os professores de Metodologia estejam cientes
de Ciências Humanas apreendidos durante o curso de for- de que o processo de conhecimentos sobre o tema não
mação do docente em história e geografia; esgota na escola. O importante mesmo é que essa intro-
- conhecimento dos conceitos básicos de história, geo- dução seja marcante, cheia de sentido e que se isto acon-
grafia e das ciências humanas de modo geral; tecer de fato, os alunos formularão outras questões sobre
- apresentação da estrutura conceitual básica de histó- o assunto, além incentivar a curiosidade, a pergunta e a
ria e geografia. constante reflexão. Pode-se dizer que o papel do professor
Tendo em vista o exposto, será apresentado a seguir e da escola é o de alimentar essa curiosidade, produzin-
aspectos relativos à formação do aluno-mestre que atua- do mecanismos que possibilitem o ensino e aprendizagem
rá nos anos iniciais do ensino fundamental. O desenvolvi- mais significativo e coerente para aluno e professor.
mento desse tema passa necessariamente pela experiência
individual, tanto de alunos-mestre quanto de professor-o- Fonte
rientador. CASTILHO, A.; BAPTISTA, J.A.; FRANCISCO, J.J. C., LEITE,
Portanto, a primeira fonte a recorrer é um registro par- M. L.P
ticular dos alunos-mestre. Nesse sentido, é prudente so-
licitar: período inicial e final em que os conteúdos foram
estudados; lista dos conteúdos lembrados; procedimentos
ou formas pelas quais os conteúdos foram estudados.
Num segundo momento, os alunos poderão trocar
seus dados, o que ajudará a completar lacunas e constatar
semelhanças.
Num terceiro momento, cada um poderá escrever uma
redação sobre o que se apreendeu dos estudos e das ativi-
dades propostas. É necessário que nesse momento o pro-
fessor de Metodologia faça sua redação sobre a sua expe-
riência como estudante.

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BIBLIOGRAFIA

para construir uma classificação. Ou uma operação consis-


PIAGET, JEAN. DESENVOLVIMENTO E tiria na ordenação ou colocação de coisas em uma série.
APRENDIZAGEM. TRAD. PAULO FRANCISCO Ou uma operação consistiria em contagem ou mensura-
SLOMP. UFRGS- PEAD 2009/1. ção. Em outras palavras, é um grupo de ações modificando
o objeto, e possibilitando ao sujeito do conhecimento al-
cançar as estruturas da transformação. (...)

Primeiramente gostaria de tornar claro a diferença en- CONCEPÇÃO DE JEAN PIAGET


tre dois problemas: o problema do desenvolvimento em
geral, e o problema da aprendizagem. Penso que estes pro- Proposta teórica
blemas são muito diferentes, ainda que algumas pessoas Jean Piaget nasceu em Neuchâtel, Suécia, 1896 – 1980.
não façam esta distinção. Sempre mostrou interesse pelas ciências naturais.
O desenvolvimento do conhecimento é um processo Seus estudos epistemológicos demonstravam que tan-
espontâneo, ligado ao processo global da embriogênese. to as ações externas como os processos de pensamento
A embriogênese diz respeito ao desenvolvimento do cor- implicam na organização lógica. Ele buscava conjugar duas
po, mas também ao desenvolvimento do sistema nervoso variáveis - o lógico e o biológico – numa única teoria e,
e ao desenvolvimento das funções mentais. No caso do com isso, apresentar uma solução ao problema do conhe-
desenvolvimento do conhecimento nas crianças, a embrio- cimento humano.
gênese só termina na vida adulta. É um processo de desen- Piaget logo percebeu que a lógica não é inata; ao con-
volvimento total que devemos re-situar no contexto geral trário, trata-se de um fenômeno que se desenvolve grada-
biológico e psicológico. Em outras palavras, o desenvolvi- tivamente. Assim, acreditar no procedimento experimental
mento é um processo que se relaciona com a totalidade de como um meio capaz de permitir a descoberta de uma es-
estruturas do conhecimento. pécie de embriologia ou gênese do conhecimento. A obra
A aprendizagem apresenta o caso oposto. Em geral, a piagitiana, comprometida fundamentalmente com a expli-
aprendizagem é provocada por situações -- provocada por cação do processo de desenvolvimento do pensamento,
um experimentador psicológico; ou por um professor, com compreende dois momentos: os trabalhos iniciais atribuem
referência a algum ponto didático; ou por uma situação uma importância capital, na estrutura do pensamento, à
externa. Ela é provocada, em geral, como oposta ao que linguagem e à interação entre as pessoas, revelando, dessa
é espontâneo. Além disso, é um processo limitado a um forma, um modelo mais comprometido com o social.
problema simples ou uma estrutura simples. O modelo psicogenético mais difundido hoje é a obra
Assim, considero que o desenvolvimento explica a de Piaget que se concentra na ação e manipulação de ob-
aprendizagem, e esta opinião é contrária a opinião ampla- jetos que passam a construir, juntamente com a maturação
biológica, os fatores essenciais na estrutura do pensamen-
mente sustentada de que o desenvolvimento é uma soma
to.
de unidades de experiências de aprendizagem. Para alguns
Uma segunda frente teórica, em psicologia, com a qual
psicólogos o desenvolvimento é reduzido a uma série de
Piaget se depara e que vinha ocupando cada vez mais es-
itens específicos aprendidos, e então o desenvolvimento
paço nas pesquisas desta área no início do século, é re-
seria a soma, a acumulação dessa série de itens específi-
presentada pelos psicólogos da Gestalt. A teoria da forma
cos. Penso que essa é uma visão atomísta que deforma o
ou procurar mostrar que alguns fenômenos perceptivos e
estado real das coisas. Na realidade, o desenvolvimento é
intelectuais não podem ser explicados por meio de des-
o processo essencial e cada elemento da aprendizagem
crições dos elementos da consciência nem tampouco pe-
ocorre como uma função do desenvolvimento total, em las analises comportamentais baseadas na associação de
lugar de ser um elemento que explica o desenvolvimento. estímulo/ resposta. Piaget encontra ainda uma psicologia
Começarei, então, com uma primeira parte tratando com o fortemente influenciada pelas ideias de Freud que questio-
desenvolvimento e falarei sobre aprendizagem na segunda na a ênfase dada aos processos conscientes, afirmando o
parte. papel fundamental do inconsciente para a compreensão do
Para compreender o desenvolvimento do conhecimen- desenvolvimento da personalidade humana.
to, devemos começar com uma ideia que parece central Piaget realiza duas primeiras pesquisas em psicologia,
para mim -- a ideia de uma operação. O conhecimento não a ciência psicológica mantém como objeto de estudo um
é uma cópia da realidade. Para conhecer um objeto, para sujeito cindido em matéria e espiritual, o que, consequen-
conhecer um acontecimento não é simplesmente olhar e temente, determina uma divisão na comunidade científica.
fazer uma cópia mental, ou imagem, do mesmo. Para co- Sem perder de ponto de vista o propósito de estudar
nhecer um objeto é necessário agir sobre ele. Conhecer é a gênese do conhecimento humano, Piaget, no início de
modificar, transformar o objeto, e compreender o processo seu trabalho, vai elaborando, ao mesmo tempo, teoria e
dessa transformação e, consequentemente, compreender métodos próprios. Ambos mantêm entre si uma relação
o modo como o objeto é construído. Uma operação é, as- de reciprocidade garantida pela duplicidade funcional que
sim, a essência do conhecimento. É uma ação interiorizada caracteriza esse procedimento metodológico: o método
que modifica o objeto do conhecimento. Por exemplo, uma clínico-experimental funciona ao mesmo tempo como um
operação consistiria na reunião de objetos em uma classe, instrumento de diagnóstico e de descoberta.

137
BIBLIOGRAFIA

Piaget introduz o método clinico – até então usado nas A compreensão do conceito de esquema na teoria pia-
clinicas psiquiátricas – na pesquisa psicológica com o obje- getiana implica em se considerar os aspectos endógenos e
tivo de obter informações mais precisas sobre o raciocínio exógenos envolvidos na constituição deste mecanismo. A
na criança ou, em outras palavras, visando estudar como se troca permanente que o organismo estabelece com o meio
estrutura o conhecimento humano. Uma das peculiarida- possibilita tanto as transformações observáveis, que ocor-
des desde método é o diálogo não padronizado, mantido rem no nível exógeno (as quais identificam a formação do
entre o pesquisador e a criança, que permite obter qua- sistema de esquemas), como as transformações internas ou
dros mais reais do pensamento infantil bem como fugir ao endógenas (por meio das quais se constituem as estruturas
modo tradicional de entrevistas compostas de perguntas mentais). É somente na troca do organismo com o meio
elaboradas previamente. que se dá a construção orgânica das referidas estruturas.
Apesar de, em seus últimos trabalhos, Piaget ter mi- A função adaptativa compreende dois processos dis-
nimizado o papel da linguagem na estrutura do pensa- tintos e complementares: assimilação e acomodação. O
mento, ela permanece como fator de extrema importância primeiro refere-se à incorporação a novas experiências ou
enquanto via de acesso à reflexão infantil. É por meio da informações a estrutura mental, sem, contudo, alterá-la.
linguagem que a criança justifica suas ações, afirmações e Para Piaget, “... em seu início, a assimilação é, essencial-
negociações e, ainda, é através dela que se pode verificar mente a utilização do meio externo, pelo sujeito, tendo em
a existência ou não de reciprocidade entre ação e pensa- vista alimentar seus esquemas hereditários ou adquiridos”.
mento e, consequentemente, o estágio de desenvolvimen- (1975, p. 326). Por outro lado, a acomodação se define pelo
to cognitivo da criança. processo de reorganização dessas estruturas, de tal for-
A postura teórico-metodológica de Jean Piaget e suas ma que elas possam incorporar os novos conhecimentos,
explicações acerta do desenvolvimento mental podem ser transformando-os para se ajustarem as novas exigências
melhor compreendidas quando se considera a influência meio.
de sua formação (em biologia) na elaboração dos princí- De acordo com a concepção piagetiana, o desenvolvi-
pios básico que orientam sua teoria. Dentre os aspectos mento cognitivo compreende quatro estágios ou períodos:
que a Piaget transfere da biologia para a concepção psico- o sensório-motor (do nascimento aos 2 anos); o pré-ope-
genética, podem ser destacados: o ajustamento de antigas racional (2 a 7 anos); o estágio das operações concretas (7
estruturas a novas funções e o desenvolvimento de novas a 12 anos) e, por último, o estágio das operações formais,
estruturas para preencher funções antigas, o que pressu-
que corresponde período da adolescência (dos 12 anos em
pões, no desenvolvimento, uma corrente contínua onde
diante). Cada período define um momento do desenvolvi-
cada função se liga a uma base pré-existente e, ao mesmo
mento como um todo, ao longo do qual a criança constrói
tempo, se transforma para ajustar-se a novas exigências do
determinadas estruturas cognitivas. Um novo estágio se
meio, ocorrendo, então, o que Piaget denomina de adap-
diferencia dos precedentes pelas evidencias, no compor-
tação. Dos dois princípios básicos e universais da biologia
tamento, o de que a criança dispõe de novos esquemas,
– estrutura e adaptação – encontram-se também presentes
contendo propriedades funcionais diferentes daquelas ob-
na atividade mental, já que para ele a inteligência é uma
servadas nos esquemas anteriormente. O aparecimento de
característica biológica do ser humano.
De acordo com Chiarottino, as observações piagetia- determinadas mudanças qualitativas indica o início de um
nas sobre o comportamento infantil trazem implícitas as outro estágio ou período de desenvolvimento intelectual.
hipóteses que, assim como existem estruturas específicas O primeiro estágio denomina-se sensório-motor por-
para cada função no organismo, da mesma forma existirão que “... à falta de função simbólica, o bebê ainda não apre-
estruturas específicas para o ato de conhecer, capazes de senta pensamento nem afetividade ligados a representa-
produzir o conhecimento necessário e universal tão perse- ções, que permitam evocar pessoas ou objetos na ausência
guido pela filosofia. Piaget acredita, ainda, que essas estru- deles”. (Piaget e Inhleder, 1986, p. 11).
turas não aparecem prontas no organismo, antes sim, pos- Piaget define o segundo estágio de desenvolvimento
suem uma gênese que justificaria o contraste entre lógica cognitivo como pré-operatório, e o principal progresso
infantil e a lógica adulta. A partir do exercício dos reflexos desse período em relação ao seu antecedente é o desen-
biológicos, que se transformam em esquemas motores e volvimento da capacidade simbólica instalada em suas di-
através da ação a criança constrói, gradativamente, suas es- ferentes formas: a linguagem, o jogo simbólico, a imitação
truturas cognitivas que se manifestam numa organização postergada, etc. a criança não depende mais unicamente
sequencial chamado por Piaget de estágio de desenvolvi- das sensações e de seus movimentos. Ela dispõe de esque-
mento cognitivo. mas de ação interiorizados, também chamados de esque-
O conjunto de comportamentos reflexos de recém- mas representativos, podendo desta forma, distinguir um
-nascido, por exemplo, transforma-se através de seu exer- significante (imagem, palavra ou símbolo) daquilo que ele
cício nos primeiros esquemas de ação ou estruturas cog- significa (o objeto ausente), o significado. Mas, mesmo a
nitivas identificáveis. Piaget afirma que o importante para criança dispondo de esquemas internalizados, nessa fase
o desenvolvimento cognitivo não é a sequência de ação ela ainda não dispõe de um fator essencial ao desenvolvi-
empreendidas pelas crianças, consideradas isoladamente, mento cognitivo, que é a reversibilidade no pensamento:
mas sim o esquema dessas ações, isto é, que nelas em geral não consegue assim, desfazer o raciocínio, no sentido de
e pode ser transposto de uma situação para outra. retornar do resultado ao ponto inicial.

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BIBLIOGRAFIA

As principais tarefas a serem cumpridas no pré-opera- pótese de que a conexão entre causa e efeito surge a re-
cional é a descentração, o que significa sair da perspectiva petição da experiência, ele concluiu que a razão se engana
do “eu” como único sistema e referência. Ela fixa apenas em ao considerar estas ligações como criação sua. Se a razão
um aspecto particular da realidade, o que determina, den- tivesse a faculdade de conceber tais conexões, estas não
tre outras limitações, um desequilíbrio em seu pensamen- passariam de simples ficções, assim como seus pretensos
to conceitual. Por exemplo, num jogo simbólico quando a conhecimentos a priori não passariam de experiências mal
criança assimila o modelo ao seu “eu”, predomina a assi- rotuladas.
milação, enquanto na imitação, onde a criança ajusta sua Kant se opõe também aos pensadores racionalistas
ação a modelos externos, predomina a acomodação. Exis- que atribuem a causa dos fenômenos a uma inteligência
tem ainda outras estruturas típicas dessa fase que podem divina. Para ele, o processo de conhecimento implica, de
ser citadas, tais como: o raciocínio transdutivo ou intuitivo, um lado a existência de um objeto a ser conhecido, que
de caráter pré-lógico, que se fundamenta exclusivamente suscita a ação do pensamento humano e, de outro, a parti-
na percepção. cipação de um sujeito ativo capaz de pensar, de estabelecer
No estágio das operações concretas, Piaget observa relações entre conteúdos captado e pelas impressões sen-
que as operações, ao contrário das ações, sempre impli- síveis, a partir das suas próprias condições para conhecer,
cam em relação de troca. A tendência para a socialização ou seja, a partir da razão.
da forma de pensar o mundo acentua-se ainda mais neste Nessa perspectiva kantiana, o processo de conhe-
período, evoluindo de uma configuração individualizada cimento tem início na experiência. E através dela que os
(egocêntrica), para outra mais socializada, onde as regras objetivos tocam os sentidos humanos produzindo repre-
ou leis de raciocínios (quais sejam, as ditadas pela lógica) sentações que põem em movimento a faculdade ou ativi-
são usadas, em comum por todas as pessoas. dade do entendimento. Entretanto, isso não significa que
O último estágio de desenvolvimento mental é o ope- o conhecimento se origina da experiência. A atividade do
ratório-formal e apresenta como principal característica a entendimento é, apenas, provocada por impressões sen-
distinção entre o real e o possível. O adolescente é capaz síveis, pois a verdadeira fonte do conhecimento consiste
de pensar em termos abstratos, de formular hipóteses e nos juízos a priori que se encontram na própria faculda-
testá-las sistematicamente, independente da verdade. Nes- de do conhecimento, na razão. Kant identifica e propõe
se período, os esquemas de raciocínio, antes indutivos, so- a conjugação de duas formas para se conhecer o real: a
frem importante evolução manifestada na incorporação do empírica, proveniente da experiência pratica, e a intuição
modelo hipotético-dedutivo. logica, pensada pela razão pura. Kant acredita ainda que o
conhecimento sensível não representa as coisas como elas
Pressupostos Filosóficos e Epistemológicos são, mas somente o modo como afetam o sentido. As in-
A filosofia kantiana, bem como algumas epistemoló- tuições sensíveis fornecem ao entendimento, para reflexão,
gicas contemporâneas, especialmente a Fenomologia, o representações de fenômenos (ou da realidade) e não as
Evolucionismo bergsoniano e o Estruturalismo, exerceram próprias coisas.
uma influência decisiva na elaboração dos princípios que O objeto equivalente ao esquema intuído só se encon-
compõem a teoria psicogenética. tra na experiência: aos sentidos compete intuir e ao enten-
Com a preocupação de selecionar dentre os mode- dimento representar, entendendo por representações sen-
los epistemológicos aqueles de maior peso na teoria de síveis numa consciência. Para Kant, a natureza em geral (no
Piaget, optou-se por deter-se nas ligações que o mesmo sentido material) é acessível ao homem pela sua própria
mantém com o pensamento de Kant, Husserl, Bergson e, condição enquanto ser sensível, e a natureza no sentido
fundamentalmente, com o Estruturalismo. formal (como complexo de regras) lhe é possível pela ca-
pacidade de entendimento; pela sua razão, através da qual
A influência Kantiana as representações sensíveis devem, necessariamente, ser
Kant desenvolveu seu pensamento no contexto do ilu- relacionadas em uma consciência.
minismo (séculos XVIII e XIX), objetivando resgatar, criticar No processo de conhecimento há um ponto que deve
e superar duas vertentes que o precederam: o racionalismo ser destacado: a filosofia kantiana traz implícita uma nova
idealista (Descartes) e o empirismo (Hume). O confronto compreensão da relação entre o sujeito e o objeto. Os ra-
entre Kant e essas duas tendências epistemológicas se ex- cionalistas acreditam na existência de um acordo entre a
pressa, basicamente, na discussão de como se constrói o ordem das ideias e as coisas, sendo Deus o princípio desta
conhecimento, buscando explicar como se dá a relação en- harmonia.
tre os elementos do universo. O entendimento que Piaget tem dessa mesma ques-
É, pois, a atividade do “eu”, do sujeito formal a priori, tão guarda estreitas semelhanças com o raciocínio de Kant,
somada às intuições empíricas, que possibilita a constru- onde o próprio Piaget admite estar envolvido em questões
ção do fenômeno. A conjunção de ambas as perspectivas originárias da filosofia kantiana. Assim como Kant, ele tam-
– razão e experiência – é a grande síntese que Kant faz, bém se preocupa com as condições prévias as quais o ser
validando a ciência e negando a metafisica. humano deve dispor para construir seu conhecimento.
Segundo Kant, o homem não chega a conhecer a es- Há muito de Kant em Piaget quando se trata da questão
sência das coisas. A construção do fenômeno é o limite da linguagem (o conceito de Kant sobre a faculdade de jul-
máximo ao qual o sujeito pode ascender. Admitindo a hi- gar). No pensamento de Kant, a modalidade do juízo não diz

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BIBLIOGRAFIA

respeito ao conteúdo do mesmo, mas sim à estruturação do Bergson acredita que a experiência interna, uma vez
nosso conhecimento. Logo, ele está pressupondo a existência desvencilhada dos conceitos e construções por meio dos
e a validade dessa estrutura a toda inteligência humana. quais se exprime, mostra-se em sua autenticidade como
Com o intuito de determinar as condições de todo co- aquilo que verdadeiramente é, ou seja, como pura qualida-
nhecimento possível, Piaget retoma a problemática kantiana de e não como quantidade. Bergson prega ainda o retorno
buscando explicar as relações entre lógica, linguagem e pen- à ação cociente, ao “imediato”. Para ele, a dificuldade em
samento à luz da biologia e da concepção do ser humano apreender consciência, no seu momento atual, enquanto
como um animal simbólico. fenômeno qualitativo em constante transformação, se deve
à própria natureza da inteligência. A psicologia positivista,
A Contribuição da Fenomenologia Husserliana eliminando este aspecto qualitativo dos processos psico-
A influência de Husserl sobre as ideias de Jean Piaget lógicos, concebe uma inteligência composta, de unidades
não é, absolutamente, determinante como foi o pensamen- homogêneas e comparáveis, pois só assim a igualdade, a
to de Kant. A fenomenologia, originárias dos postulados de adição e a medida desses fenômenos tornam-se possíveis.
Edmund Husserl, nasce no século passado como uma con- Para Bergson a intuição (valendo-se da introspecção)
testação ao método experimental, especialmente enquanto coloca-se como o único método através do qual se pode
instrumento a serviço das ciências do homem e, entre estas,
conhecer e explicar, de forma satisfatória, os processos psi-
em particular a psicologia.
cológicos. O modelo filosófico sistematizado por Bergson
A fenomenologia ocupa-se, fundamentalmente, com a
é marcado por uma forte tendência metafísica: é através da
descrição pura da realidade, ou seja, do fenômeno enten-
intuição que o homem conhece a realidade. Defendendo
dido como sendo aquilo que se oferece ao olhar intelec-
tual, em outras palavras, significa estudar a constituição do uma nova concepção de metafísica, ele consegue conjugar
mundo na consciência. Daí que, se a análise fenomenológica – no método introspectivo – intuição e ação, destacando
consiste em desvelar o ser absoluto das coisas, isto é, a es- esta última no plano da consciência. Assim, o “eu” profun-
sência, ela deve ocupar-se da realidade pura (fenomênica), do, que consegue captar a essência do objeto, não é um a
dos significados intuídos pela razão. priori transcendental, configurado de forma única, pron-
Para Husserl, a relação entre sujeito e objeto, entre o ta e acabada desde o início. O “eu” metafísico, tal como
pensamento e o ser, se estabelece pela intencionalidade, ele o descreve, refere-se exclusivamente à consciência do
sendo, portanto, uma ligação indissociável da qual todo sujeito. Ocorre que a consciência imediata (aquela que o
pesquisador deve partir quando pretende atingir o real. Em sujeito tem ao agir sobre o ambiente) não é a mesma para
outras palavras, o mundo se apresenta à consciência e esta, todos os objetos ou fenômenos. Cada fenômeno suscita
por sua vez, lhe dá sentido. uma percepção e uma construção particular.
Em última análise Piaget e Husserl, os dois epistemólo- Como Bergson, Piaget também acredita que a essên-
gos em questão, empenharam-se em construir um conhe- cia do fenômeno (no caso, o pensamento, a consciência)
cimento cuja validade fosse considerada universal. Salvo as não é algo estalico. Ao contrário, trata-se de uma estrutura
especificidades de cada teoria, pode-se observar que, assim dinâmica, cujo movimento se caracteriza justamente por
como Husserl empreende esforços no sentido de desvendar uma construção sucessiva e continua de fases que, mesmo
as essências nos fenômenos (por acreditar serem estas ex- tendo duas origens calcadas na experiência empírica, na
pressões de um conhecimento “puro” e atemporal, portanto ação, encaminham-se no sentido de atingir formas de pen-
válido impendentemente da época e contexto), Piaget tam- samento cada vez mais independentes desde referencial
bém pretende, com sua teoria psicogenética, oferecer uma prático. Assim, fica claro que Piaget, à semelhança de Berg-
explicação universal para o processo por meio do qual o ho- son, pretende conjugar introspecção e experimentação na
mem constrói seu conhecimento. tentativa de explicar como se produz o conhecimento.
De maneira geral, é possível inferir que Piaget, não po-
A Contribuição do Evolucionismo Bergsoniano
dendo fugir a sua sólida formação de biólogo e, ao mesmo
Essa metodologia tem três princípios fundamentais:
tempo, não querendo curvar-se diante das teses o empiris-
o primeiro pauta-se na ideia de que sociedade e natureza
mo determinista, encontra em Bergson o apoio e o espaço
põem ser, epistemologicamente, tratadas da mesma forma.
dos quais necessitava para validar o conhecimento objeti-
Em seguida, admite-se que na vida social, assim como na
natureza, reina uma harmonia natural, sem ambiguidades. vo, sem destituí-lo de sua subjetividade.
Consequentemente, toda ruptura desse estado de harmonia
é visto como sinônimo de desequilíbrio e desadaptação. O A Influência Estruturalista
terceiro princípio caracteriza-se pela crença de que a socie- A maior influência exercida sobre o grande teórico da
dade é regida por leis naturais, invariáveis, e, portanto, inde- psicologia cognitiva deve-se à corrente estruturalista, cuja
pendentes da vontade e da ação humana. ideia fundamental de que o conhecimento se organiza em
Esse sistema teórico coloca-se como uma continuidade estruturas cognitivas hierarquicamente construídas. O es-
ao “positivismo espiritualista”, que insiste na impossibilidade truturalismo não é representado por uma única linha de
de se fazer da psicologia uma ciência da natureza, uma vez pensamento. Ao contrário, ele se caracteriza justamente
que para atingir a essência do objeto ao qual se volta não pela diversificação. O que une e dá convergência às dife-
pode abrir mão da introspecção, da análise da experiência rentes formas de pensamento estruturalista é a noção pri-
interna. mordial de estrutura.

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BIBLIOGRAFIA

Contudo, a ideia de que uma estrutura consiste em um A teoria da forma, ou Gestalt, teve origem na Alema-
conjunto de elementos relacionados, onde toda modifica- nha, durante a primeira metade do século XX, e desen-
ção ocorrida num elemento ou relação, modifica os outros volveu-se nos EUA, em oposição à psicologia positivista.
elementos ou relações, não garante ao estruturalismo uma Essa teoria exerceu forte influência sobre o conhecimento
escola única. Inúmeros teóricos têm invocado o método es- produzido em psicologia, aliados à formação de físico que
truturalista para fins e em campos científicos diferentes. No Köhler havia recebido, ele acreditava que determinados
campo específico desta epistemologia é a área das ciências fenômenos psíquicos (como o desenvolvimento da inteli-
humanas, onde as pesquisas estão voltadas para o estudo gência) poderiam ser explicados transpondo-se conceitos
do indivíduo em sociedade e para sua cultura. Dentro des- da física para a psicologia. Nas teorias de campo, trata-se
te enfoque, a linguagem adquire fundamental importância de uma totalidade previamente estruturada, desprovida de
por ser ela veículo de comunicação e de ligação entre o sua função estruturante.
homem e o mundo. Piaget adota outra conduta. Ele acredita que num su-
O estruturalismo morou nas ciências contemporâneas, jeito ativo, que constrói e regula suas estruturas cognitivas
pode-se destacar: na área da linguística, o pensamento de na proporção de seus desenvolvimentos, através de um
Saussure que, pretendendo estabelecer leis gerais de fun- processo contínuo de abstrações reflexivas e equilibrações
damento de uma língua e terminou transferido para campo no sentido de auto regulação, tendo em vista suas neces-
das ciências humanas. Na antropologia, o estruturalismo sidades e os estímulos do meio. Para ele, conhecimento é
etnológico nasce com Claude Lévi-Strauss, que tinha por consequência da ação como um todo, onde a percepção
objetivo atingir leis gerais de funcionamento de certas es- constitui apenas, função de sinalização onde o sujeito só
truturas culturais, mais especificamente aquelas que regem conhece um objeto na medida em que age sobre ele, trans-
os sistemas de parentesco e a produção dos mitos culturas formando-o.
primitivas. Michel Foucault, tomando como ponto de parti- Piaget não acredita que o estruturalismo consista em
da as teses estruturalistas defendidas por Lévi-Strauss, ocu- uma crença ou filosofia e justifica: se assim o fosse, já teria
pou-se com o estudo da mentalidade (das representações sido ultrapassado. Segundo ele, trata-se de um método,
humanas, da “episterme”), construindo sistemas que lhe e a tarefa que se apresenta ao pesquisador é recuar para
permitissem explicar as relações, isto é a estrutura dessas então poder analisar, à luz do estruturalismo “autentico”,
representações nas áreas de linguística, biologia, história “metódico” (estruturalismo psicogenético), tudo o que foi
e, sobretudo, na área de economia política. A psicanalise produzido até agora, sob a orientação desta matriz epis-
tem em Lacan seu principal representante do pensamento temológica.
estruturalista. Ele se utiliza da estrutura da linguagem para
decifrar o inconsciente, por acreditar que a parte conscien- A Relação entre Desenvolvimento e Aprendizagem
te da personalidade humana é largamente comandada
pelo inconsciente. A relação entre desenvolvimento e aprendizagem está
Nesta perspectiva, o sujeito do conhecimento adquire presente, ainda que de forma implícita, nas diferentes teo-
primazia sobre o objeto de estudo, pois ele é o que pensa, rias psicológicas que se ocupam em estudar o comporta-
e ele que elabora o sistema ou modelo teórico por meio mento, o pensamento ou o psiquismo humano. É sabido
do qual irá explicar a realidade. Três são os principais ele- que todo conhecimento implica, necessariamente, uma
mentos que constituem essa capacidade: os ritmos, as relação entre dois polos, isto é, entre o sujeito que busca
regulações, ambos próprios de mecanismos estruturais, conhecer e o objeto de ser conhecido desenvolvimento da
presentes em toas as escalas biológicas e as operações aprendizagem privilegia o sujeito, o endógeno, a organiza-
que, em outras palavras, referem-se às leis que orientam ção interna, diminuindo o papel do objeto, do meio físico e
a totalidade. Em sendo o organismo a fonte do sujeito, ele social, do exógeno, da experiência. Esta situação se inverte
é também fonte das totalidades e auto regulações. O con- quando o polo passa a ser a aprendizagem.
ceito de transformação implica o de formação e o de auto Inicialmente, Piaget se propôs a estudar o processo
regulação sugere capacidade de autoconstrução. de desenvolvimento do pensamento e não a aprendiza-
O processo de constituição das estruturas (que perma- gem em si. Na perspectiva piagitiana, o outro polo desta
nece constante até que sejam elaborados os esquemas do relação, ou seja, o objeto do conhecimento refere-se a um
pensamento lógico-formal, quando então, já adolescente, meio genérico, que engloba tanto os aspectos físicos como
o sujeito terá completado o desenvolvimento dos meca- os sociais. As estruturas mentais funcionam classificando e
nismos cognitivos ou formas de operar) ocorre da seguinte ordenando a experiência, este funcionamento é condição
maneira: uma estrutura é composta de um conjunto de ele- de extrema importância para o ato de conhecer, aprender
mentos que se relacionam entre si. Toda vez que estas rela- ou atribuir significados. A construção do conhecimento (do
ções produzem novas combinações (dadas as novas condi- real) é uma conquista do homem que se realiza através da
ções maturacionais do organismo e os diferentes estímulos ação.
provenientes do meio ambiente), a estrutura se reequilibra, Quando a criança descobre que a soma de um con-
se reorganizando internamente, ultrapassando a estrutura junto é independente da ordem espacial dos elementos,
precedente. ela está abstraindo o conhecimento de sua própria ação e
não dos objetos. De um sistema de ações ou operações de

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BIBLIOGRAFIA

nível inferior o sujeito abstrai certas características (formas) enquanto o desenvolvimento é um processo espontâneo,
que permitem a reflexão sobre ações ou operações de nível ligado à embriogênese e que se refere à totalidade das
superior. O conhecimento provém das ações que o sujeito estruturas de conhecimento é comparável ao crescimento
exerce sobre os objetos. orgânico: como este, o desenvolvimento do pensamento
Para Piaget, o conhecimento compreende duas gran- orienta-se sempre para um estado de equilíbrio. Da mesma
des fases da constatação, da abstração empírica, da com- maneira que um corpo evolui até alcançar um nível relati-
preensão, das explicações, da abstração reflexiva. As estru- vamente estável (onde a maturidade e o crescimento dos
turas do conhecimento precedem todas as ações, estrutu- órgãos se encontram concluídos), também a vida mental
ras que se encaminham para formas de pensamento cada pode ser concebida como uma dinâmica que evolui rumo
vez mais ricas. O processo de construção do conhecimento a uma forma de equilíbrio final, representada pelo pensa-
obedece, pois, uma linha evolutiva que parte da ação cons- mento adulto. Assim sendo, o desenvolvimento pode ser
ciente e conduz ao pensamento formal, ou seja, ao conhe- entendido como um processo de equilibração progressiva;
cimento lógico-matemático. uma passagem continua de um estado de menor equilíbrio
Na concepção de Piaget, o problema está estreitamen- para um estado de equilíbrio superior. Quanto mais desen-
te vinculado ao problema da aprendizagem: aprender é volvidas forem as formas de pensamento, maior será sua
saber, fazer (realizar) e conhecer é compreender a situa- estabilidade e plasticidade.
ção distinguindo as relações necessárias das contingentes.
É atribuir significado às coisas, considerando não apenas Fonte
os aspectos explícitos do fenômeno, mas principalmente o Andreia STONA, S. A.
implícito, o possível.
Piaget distingue aprendizagem de maturação que é Referência
baseada em processos fisiológicos e distingue aprendiza- PIAGET, Jean. Desenvolvimento e aprendizagem. Trad.
gem de conhecimento, pois o conhecimento é a soma de Paulo Francisco Slomp. UFRGS- PEAD 2009/1
coordenações. Já o conceito de aprendizagem são as con-
tribuições provenientes do meio externo. Desta forma, Pia-
get diferencia a aprendizagem do processo de equilibração PIMENTA, SELMA, G.A. A CONSTRUÇÃO DO
que regula o desenvolvimento dos esquemas operativos de PROJETO PEDAGÓGICO NA ESCOLA DE 1º
acordo com as contribuições internas ao organismo. Toda
GRAU. IDEIAS Nº 8. 1.990, P 17-24.
aprendizagem pressupõe a utilização de um sistema lógico
(ou pré-lógico) capaz de organizar as novas informações.
O sistema de equilibração coloca-se como elo de liga-
ção entre o desenvolvimento e a aprendizagem, combinan-
A CONSTRUÇÃO DO PROJETO PEDAGÓGICO NA
do os fatores de ação externa com os fatores de organiza-
ESCOLA DE 1 ° GRAU
ção interna, inerente à estrutura cognitiva. Piaget identifica
dois tipos de aprendizagem: num sentido estrito e num
A construção do projeto pedagógico na escola, a meu
sentido amplo. No sentido estrito, aprendizagem refere-se
ver, é um trabalho coletivo de professores e pedagogos
aos conteúdos adquiridos em função da experiência. Já a
empenhados em colocar sua profissão a serviço da demo-
aprendizagem em sentido amplo compreende as aquisi-
cratização do ensino em nosso país. Organizei esta expo-
ções que não são devidas diretamente à experiência, mas
construídas por processos dedutivos. sição em três eixos, iniciando por explicitar o que entendo
Na verdade, aprendizagem propriamente dita equivale por democratização do ensino e o que entendo por Pe-
tão somente à aquisição de novos conteúdos. Como todo dagogia, na tentativa de chegarmos a uma síntese sobre
conteúdo só pode ser atingido pela mediação de uma for- o trabalho pedagógico coletivo enquanto caminho para a
ma, não é difícil perceber que, na concepção de Piaget, o efetiva democratização.
processo de aprendizagem é subjugado ao processo de Democratização do Ensino - Conceito superado?
desenvolvimento, sendo por este condicionado. Quando iniciamos um tema com o nome “Democrati-
Segundo Piaget, quanto mais uma teoria de aprendi- zação do Ensino”, corremos o risco de provocar observa-
zagem se distancia das necessidades do sujeito, mais ela ções do tipo: “este é um conceito superado”, ‘Já ouvimos
terá de apelar para fatores motivacionais (externo), a fim falar dele tantas vezes”, como se democracia fosse uma
de explicar o desencadeamento do processo de aprendi- moda passageira. Entendo que não. A democracia é ab-
zagem. Ele lembra que a grande maioria das situações de solutamente necessária para que possamos ter condições
aprendizagem (especialmente com as crianças que já de- sociais justas. Falo, pois, da necessidade de batalharmos
senvolveram o pensamento operatório) repousam numa por uma democracia política e social. Como entender aí a
estrutura logico matemática e, por isso, comporta uma ra- democratização do ensino? Existem muitas formas.
zão necessária. Sem entrar em detalhes, abordarei a concepção liberal
Ao proferir uma conferência no Centro Internacional de de democratização do ensino, uma vez que a evolução e os
Epistemologia Genética sobre desenvolvimento e aprendi- ecos que nos chegam hoje sobre o tema vêm no bojo da
zagem, Piaget faz uma distinção entre esses dois fenôme- ideologia do liberalismo, para a qual democratização deve
nos. A aprendizagem é provocada por situações externas, ser entendida como ampliação da escola para todos. (A es-

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BIBLIOGRAFIA

cola para todos foi desenvolvida em alguns países, adjeti- Numa perspectiva crítica, a escola para todos requer
vada como pública - o que não ocorreu em outros, como que a definamos como pública, gratuita, de boa qualidade
o nosso, onde a escola que se expandiu até a metade do e única - ou seja, uma escola mantida pelo Estado enquan-
século XX foi a particular.) to equalizador das contribuições dos cidadãos, portanto
Esta concepção liberal tem sua formulação no bojo das gratuita, organizada e funcionando de forma a assegurar que
conquistas da humanidade – em consequência da Revo- todos tenham acesso a ela, que nela permaneçam, apren-
lução Francesa, da Revolução Industrial -, bem como no dam; por fim uma escola de formação geral, sem a dualidade
início da constituição do capitalismo. de classes.
Este reclamo de expansão da escolaridade afirma como Há que se repensar, portanto, a própria organização, ex-
pressuposto que a escola é um direito de todos os cida- pansão e funcionamento da Escola Pública. Uma escola que
dãos, e que o Estado deveria oferecê-la e colocá-la ã dis- trabalhe o conhecimento de forma a superar a divisão da so-
posição de todos. No Brasil, a relatividade da democracia ciedade em classes, bem como a dualidade escola acadêmica
está exatamente na maneira de se compreender este todo para a elite/escola profissionalizante para o pobre. Entretan-
e na forma como a evolução da escolaridade se deu no to, deve ser uma escola de 1o. e 2o. Graus com a finalida-
bojo desta concepção liberal. Se é fato que a escola está de precípua de trabalhar o conhecimento, na perspectiva de
socializá-lo, ou seja, de que todos os alunos tenham acesso
ã disposição de todos, isto não significa que efetivamente
e possibilidade efetiva de ter o domínio do conhecimento
é de direito de todos. A escola que se oferece para todas
- o conhecimento que dê condições de entender, compreen-
não está desenraizada das condições sociais. Muito ao con-
der, fazer a leitura das condições de dominação existentes
trário, é uma escola que está imbricada na própria forma no mundo historicamente situado, na sociedade brasileira
como a sociedade está organizada. historicamente situada, de tal maneira que os alunos con-
Na medida em que a sociedade capitalista baseia-se na sigam compreender o quanto e cano a apropriação do co-
divisão de classes sociais, em que as diferenças são justifi- nhecimento científico tem-se dado contra os interesses da
cadas por uma pseudodesigualdade natural, temos aí uma humanidade como um todo e o quanto o conhecimento tem
forma ideológica de explicar a desigualdade social. sido apropriado como condição dos privilégios dominantes.
Então, desta forma, a escola “está” oferecida para todos. O que deixa isto saltar aos nossos olhos é um exemplo
No entanto, se as pessoas não têm condições de ter acesso bastante simples. O avanço que podemos identificar hoje
a ela e de nela permanecer, isto é interpretado como um na Medicina é um avanço de conhecimento gigantesco, fa-
problema delas. Ou seja, por esta ótica liberal, as pessoas buloso, a ponto de realizar um transplante de órgãos, por
não conseguem galgar os degraus que a escola oferece, exemplo. Isto requer um conhecimento altamente sofisticado
porque nasceram com incapacidade para tal. e elaborado. No entanto, ao lado deste avanço do conheci-
mento científico na área da Medicina, temos a maioria das
Em verdade, esta é uma falsa justificativa da desigual- crianças e da população brasileira morrendo de doenças para
dade social. A democratização do ensino na ideologia libe- as quais essa Ciência já encontrou remédio há muito tempo.
ral vai trazer como consequência a organização do apare- Este exemplo mostra claramente o uso do conhecimento em
lho escolar e da estrutura do ensino, subdividida conforme favor de interesses dominantes.
a divisão das classes sociais: a escola profissionalizante Entendo que a democratização do ensino é a reivindi-
para os filhos das trabalhadores e a escola regular para os cação pela expansão da educação escolar pública. Portanto,
da elite, instituindo-se um sistema dual de ensino. A finali- não admitindo a privatização nem a diferenciação de escola
dade explícita do ensino profissionalizante é a preparação conforme interesses dominantes, e julgando que a finalidade
da mão-de-obra para o mercado de trabalho, ou seja, para precípua da escola é desenvolver formação geral nos alunos,
a manutenção do método de produção capitalista. colocando-os em condições de compreender este mundo no
Podemos concluir daí que a democracia liberal expan- qual se situam e de perceber, pelos conhecimentos cientí-
ficos, os mecanismos de dominação existentes no mundo,
de efetivamente a escolaridade; no entanto, não lhe inte-
estando, com isto, de posse de um instrumento que lhes dê
ressa equacionar o problema da impossibilidade do acesso
meios de interferir na sociedade.
e da permanência, na medida em que sustenta um modelo
Entendida a democratização do ensino nesta perspecti-
de escola incapaz disto e expande um sistema dual de en- va crítica, é importante que situemos, ainda que em breves
sino, calcado na desigualdade social, portanto incapaz de pinceladas, como esta questão tem-se apresentado na esco-
ultrapassar essa mesma desigualdade. larização brasileira.
Neste ponto, indagamos: como entender a questão da Inquestionavelmente, o sistema de escolas no Brasil foi
reivindicação da escola para todos, isto é, como entendera ampliado de algumas décadas para cá. Todavia, esta amplia-
democratização do ensino? ção, sobretudo da escola de 1° Grau, foi calcada no concei-
A reivindicação da escola para todos permanece como to liberal de democracia, o que nos permite encontrar uma
princípio necessário, como princípio válido. No entanto, explicação para o que ocorre hoje nas nossas escolas. De
precisamos ter o cuidado de, no momento que defender- um lado esta ampliação não foi ainda generalizada na sua
mos esta tese, qualificar o que significa este para todos, totalidade. Mais do que isto, de outro lado a generalização
porque se permanecermos numa leitura liberal teremos que ocorreu provocou ou foi trabalhada na perspectiva de
esta deturpação, que explica de alguma forma a degenera- manter a escola no limite da sobrevivência, em precárias
ção da escola no Brasil, hoje. condições.

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BIBLIOGRAFIA

A escola brasileira é uma escola que até existe. Contu- Hoje podemos dizer que temos alguma compreensão
do, está muito distante de responder aos anseios da po- do que possa vir a ser a Pedagogia. É possível afirmá-la
pulação que a frequenta, muito distante de responder às como uma teoria, uma teoria da Educação. Entendemos por
mínimas condições de trabalho dos profissionais que nela teoria a constituição de um pensamento refletido sobre uma
exercem a sua profissão, muito distante de ser considerada, prática que se volta para a prática. Podemos, portanto, assu-
efetivamente, um serviço público. mir com Francisco LARROYO (1944) que o fato pedagógico
Neste ponto, abrimos espaço para entender como, nes- é anterior à teoria, como o é, aliás, em toda ciência. E ainda
ta reflexão, é possível e necessário imbricamos na questão assumir com KOWARZICK (1974) que, para ultrapassarmos a
pedagógica. constatação do fato, a teoria pedagógica deve ser dialética,
isto é, ela deve encarar a sua tarefa conscientemente como a
A Pedagogia é Necessária? de ser ciência prática - ciência prática da e para a práxis edu-
cacional, ou seja, temos aqui um movimento da teoria à prá-
Para situarmos a importância da construção do projeto tica e desta à teoria. Nesta perspectiva, e assumindo o quanto
pedagógico na democratização do ensino, é necessário ex- de riqueza isto traz para o avanço do conhecimento da teoria
plicitarmos o entendimento que temos da Pedagogia. pedagógica entre nós, podemos identificar um segundo as-
O que é Pedagogia no Brasil? O que tem sido? Para que pecto positivo na Educação brasileira. É o fato de que desde
serve? 1980 temos tido possibilidade de nos debruçar sobre os fatos
Com a ampliação desregrada dos cursos de Pedagogia da Educação brasileira, orientados por visões teóricas, refle-
no Brasil, na década de 70, bem como com a implantação tindo sobre eles e construindo novas teorias. Podemos situar
da Lei n° 5.692/71, grande parte das Escolas Públicas passou em vários locais do Brasil profissionais que se debruçam sobre
a contar com o pedagogo -supervisor de ensino e orienta- os fatos e a prática, e que estão fazendo teoria, publicando
dor educacional - nos seus quadros. as conclusões dos últimos anos. Esta produção acadêmica é
Naquela época, uma reforma nos cursos de Pedagogia resultante da relação entre as universidades, as secretarias da
incorporou a visão tecnicista da Educação, enfatizando o Educação e os sistemas públicos, e está-nos possibilitando
fazer pedagógico fragmentado e destituído de uma com- enxergar com mais clareza os fatos educacionais.
preensão teórica dos problemas da Educação e, em espe- Nesta diretriz, um caminho que tem sido apontado é o
cial, da educação escolar brasileira, uma vez que estava cal- de examinarmos o que ocorreu e ocorre na escola de 1° Grau
cada em modelos estrangeiros e numa formação aligeirada. e no sistema de ensino como um todo.
Assim, os pedagogos, incorporando as mazelas de sua Particularmente, tenho-me debruçado sobre o fazer
formação, via de regra, passaram a atuar como burocratas pedagógico intrínseco à educação escolar de 1° e 2° Graus,
do sistema, vigilantes da ordem estabelecida. Se lembrar- entendendo-o como campo de estudos dos especialistas.
mos que a ordem vigente era o autoritarismo do regime Nestes estudos temos destacado a complexidade dos fenô-
militar, que no avanço do capitalismo brasileiro manteve e menos da aprendizagem, dos sistemas de organização ad-
acentuou a escola nos limites da precária sobrevivência, en- ministrativa do complexo chamado escola e das diferentes e
tão concluiremos que a reformulação dos cursos de Peda- múltiplas formas de organização que apontam para a direção
gogia, bem como das licenciaturas que formam professo- de uma escola na democratização do ensino. Nesta perspec-
res, associada ao descaso dos governos pela Educação, veio tiva, entendo que a teoria da Educação, como reflexão sobre
consolidar o empobrecimento da Escola Pública. a prática, aponta para a importância de os profissionais de-
Por isso é que fomos tentados a imputar “a culpa” pelo nominados pedagogos atuarem neste complexo chamado
fracasso da escola aos pedagogos, colocando-os como tra- escola. Assim, a formação destes profissionais precisa estar
dutores do modelo fabril e fragmentadores do processo voltada na direção de responder aos reclamos da realidade
educativo escolar, responsabilizando-os como expropria- escolar.
dores dos conhecimentos dos professores. Em que pese a Neste sentido, o trabalho dos pedagogos circunda a ati-
importância da denúncia contida nestas afirmações, pare- vidade mais importante da escola - que é a sala de aula. Mas
ce-me que tais teses estão a merecer análises aprofunda- o trabalho que determina o fazer pedagógico não se limita à
das, que examinem a Pedagogia na totalidade da educação sala de aula; ele a extrapola
escolar brasileira. Assim, todas as questões ligadas à administração da or-
A Pedagogia entre nós é recente. O primeiro curso foi ganização escolar, todas as questões ligadas à interdisciplina-
instituído legalmente em 1939. Nestes 50 anos ocorreram ridade, todas as questões relacionadas ao trabalho coletivo,
muitas idas e vindas. Tivemos uma Pedagogia importada, às formas de organização escolar que melhor propiciam o
mal-importada, modelada ora na França, ora nos Estados trabalho coletivo, todas as questões vinculadas à articulação
Unidos, ora na Espanha, e acabamos incorporando-a, sem da escola com a sua realidade imediata, ligadas, portanto, a
nos perguntarmos sobre sua validade. O que é uma Peda- horário, grade, organização do funcionamento didático-pe-
gogia brasileira? O que deve ser’? Em que a Pedagogia, na dagógico, todas as questões ligadas à discussão do que é
sua história, na sua vasta história, pode contribuir para a necessário na perspectiva de democratização, à insuficiência
criação de um pensamento pedagógico brasileiro? existente na formação dos professores, à questão salarial, à
Estamos engatinhando nestas questões, podendo, no administração da educação mais ampla, enfim, são questões
entanto, constatar avanços. O primeiro refere-se à concei- pedagógicas; são questões que se traduzem no fazer pe-
tuação de Pedagogia; o segundo, à já significativa produ- dagógico e que requerem profissionais competentes para
ção pedagógica brasileira. isto.

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BIBLIOGRAFIA

É evidente que, ao acentuar esta competência, penso A construção do projeto pedagógico pelo coletivo dos
que tenha ficado bem claro que esta é necessariamente educadores escolares objetiva a democratização do ensino,
uma competência política, uma competência que aponta cujo núcleo é a democratização do saber, que passa agora
para a formação e o exercício da profissão em determina- a se diferenciar da democratização das relações internas,
das condições histórico-sociais da educação escolar. Por sem, no entanto, se desvincular delas.
isso é que me parece extremamente importante que se te- A democratização das relações internas da escola
nha muita clareza quando falamos em democratização do constitui mediação para a democratização da Educação, o
ensino. que não significa diminuir sua importância; pelo contrário,
admitir a democratização das relações internas como me-
Construção do Projeto Pedagógico - Um fazer co- diação para a democratização da educação significa consi-
letivo derá-la condição sine qua non desta, porém não a única. As
Admitir um projeto significa ter consciência do que se relações democráticas na escola, a participação nas deci-
quer, ou seja, se falo em projeto pedagógico tenho de ter, sões, o envolvimento da equipe de professores no trabalho
previamente, clareza de que me estou pautando em de- são mediações básicas do objetivo do trabalho docente -
terminadas concepções de Educação e de ensino. Acredito ensinar de modo a que os alunos aprendam -, mas não são
que o ponto de partida para o projeto real é a explicitação suficientes nem exclusivas.
Portanto, opor a democratização do saber à democra-
de que queremos uma Escola Pública democrática - daí a
tização das relações internas, como se fossem polos ex-
importância de firmarmos o que entendemos por demo-
cludentes, é um falso problema. Cumpre reafirmar que o
cracia.
núcleo de trabalho docente é o ensino-aprendizagem, en-
A escola que se quer democrática precisa definir, a quanto mediação entre os indivíduos que compõem uma
priori, uma nova qualidade, que passa, dentre outras, pelas sociedade e os modelos sociais vigentes nessa sociedade
questões de organização escolar - uma organização esco- - o que se faz pelo ensino crítico dos conteúdos. As rela-
lar que modifique a realidade que aí está, a partir dessa ções democráticas de trabalho na escola favorecem a con-
realidade encontrada. secução deste núcleo. A participação dos professores na
Um dos requisitos de uma nova qualidade pode ser de- organização da escola, nos conteúdos a serem ensinados,
finido por professores capacitados, com formação especí- nas suas formas de administração, será tão mais efetiva-
fica e experiência, selecionados por critérios de competên- mente democrática na medida em que estes dominarem
cia, conforme um quadro de carreira que impeça influên- os conteúdos e as metodologias dos seus campos espe-
cias clientelísticas. A organização administrativa da escola cíficos, bem como o seu significado social, pois só quem
precisa colocar-se a serviço do pedagógico, o que significa: domina as suas especificidades numa perspectiva de to-
• compor turmas, turnos e horários adequados a crité- talidade (significado social da prática de cada um) é capaz
rios pedagógicos que favoreçam a aprendizagem; de exercer a autonomia na reorganização da escola, a fim
• prever capacitação em serviço e assistência didático- de melhor propiciar a sua finalidade: democratização da
-pedagógica constante aos professores, de forma a asse- sociedade pela democratização do saber.
gurar o retomo dos benefícios para a escola; Que organização escolar favorece a consecução do
• definir equipes didático-pedagógicas (orientação pe- objetivo de torná-la um instrumento de emancipação das
dagógica e educacional) de assessoria à atividade docente camadas populares?
na escola; A esta indagação a resposta imediata é que certamen-
• assegurar horários para reuniões pedagógicas, abrin- te não é a escola que aí está, pois esta há anos cumpre
do espaço para a discussão sobre questões do ensino, para a função de expulsar os alunos provenientes das camadas
a troca de experiências, para o estudo sobre temas de Edu- médias e baixas que têm tido acesso a ela, pela ampliação
cação que favoreçam a melhoria da qualidade do trabalho quantitativa de vagas. Tal escola está organizada a partir do
docente; aluno “ideal”. Calcada no modelo da classe dominante, ela
se estrutura segundo o princípio da homogeneidade, que,
• articular as disciplinas do currículo de modo a asse-
partindo de uma suposta uniformidade das características
gurar conteúdos orgânicos;
de ingresso da população, tem de se conformar com um
• acompanhar o rendimento dos alunos e prever for-
critério de prioridade estatística, com base na qual se defi-
mas de suprir possíveis requisitos, sem rebaixar o nível do niu o aluno médio, isto é, dotado suficientemente das qua-
ensino. lidades necessárias para aprender e só ter de reproduzir na
salda a mesma variabilidade real das condições de entrada.
A organização escolar que se faz necessária é uma or- Este aluno sempre teve o acesso e a permanência na esco-
ganização competente pedagogicamente, de forma a alte- la garantidos. Assim, do ponto de vista dos conteúdos de
rar o atual quadro da escola que aí está. ensino, dosagem, ritmo etc.; das metodologias de ensino;
A organização escolar é, por assim dizer, o conteúdo do tipo de relação entre professor e aluno, aluno e escola,
do trabalho coletivo de professores e pedagogos na cons- escola e pais, professores e técnicos, professores entre si;
trução do projeto pedagógico - projeto este com clareza da grade horária, distribuição das aulas na semana, horá-
de seus fins, que se efetive no cotidiano; por isso é constru- rios; da sistemática de avaliação, aprovação, reforço etc., a
ção, não está pronto, acabado, mas se faz com profissionais Escola Pública que aí está tem cumprido a função seletiva e
competentes/comprometidos. de evasão que privilegia os já privilegiados.

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BIBLIOGRAFIA

No entanto, à indagação feita - que organização es- uma delas; ao acompanhamento didático-pedagógico aos
colar favorece a consecução do objetivo de torná-la um professores, em virtude de novos tipos de organização
instrumento de emancipação das camadas populares? - é curricular - por exemplo, a do Ciclo Básico -, em face das
preciso responder que é a partir da escola que está aí que questões metodológicas e de articulação de conteúdos-
se deve construir a “nova”. Ou seja, a organização escolar -métodos, em virtude da avaliação que deve ser constante-
que possibilitará a consecução do objetivo de emancipa- mente diagnosticada, requerendo conhecimentos técnicos
ção das camadas populares será engendrada a partir das específicos, bem como das dificuldades de aprendizagem
condições existentes, porque, dentre outras razões, é na que os alunos apresentam. É importante ressaltar, ainda,
escola que aí está que encontramos elementos válidos que que as decisões quanto a horários adequados às possibili-
mostram possibilidades para o que deve ser a nova organi- dades dos alunos, dos períodos escolares - quantos, como
zação escolar. Em outras palavras, não se trata de conceber organizá-los, número de alunos em sala, distribuição das
previamente um tipo de organização escolar ideal, mas de matérias na semana, combinação dos horários de estudo e
garimpar no já existente os elementos que, fortalecidos, de trabalho em aula e os horários de merenda e recreação
apontam para novas práticas, o que requer pesquisas, aná- de tal forma a possibilitar o aproveitamento máximo dos
lises, observações e experimentação, conduzidas a partir trabalhos escolares; os dias letivos -, sua utilização favo-
da finalidade de colocar a escola como instância socializa- rável para ampliar as possibilidades de estudo e trabalho
dora do saber para as camadas populares. escolar, a atribuição de aulas e distribuição dos professores
A organização da escola é competência tanto dos pro- nas turmas de forma a propiciar a melhoria qualitativa do
fissionais docentes como dos não-docentes. Seria ingênuo trabalho em aulas são questões administrativas que reque-
advogar que o professor de sala de aula deve suprir todas rem a competência, não exclusiva, do pedagogo, especia-
as funções que estão fora da sala de aula, mas que nela lista da Educação.
interferem, quer dizer, interferem no trabalho docente, o Enfim, trata-se de os educadores propiciarem, no inte-
que não significa que este só atue na sala de aula. Assim, rior da escola, condições as mais favoráveis possíveis para a
as tarefas que são objeto do trabalho social coletivo dos democratização do ensino, lembrando com B. CHARLOT (A
profissionais da escola podem ser listadas como segue: mistificação pedagógica p. 293) que: “Elaborar um sistema
• Seleção, distribuição e organização dos conteúdos a pedagógico é definir um projeto de sociedade e tirar dele
serem ensinados, considerados relevantes na prática social. as consequências pedagógicas”.
Os conteúdos têm objetivos sociopolíticos- por isso devem
ser selecionados a partir da prática social existente, a qual Fonte
deve passar pelo crivo da crítica, a fim de que se construa PIMENTA, Selma, G.A. A Construção do Projeto Peda-
uma prática social transformadora. Desta forma, as fontes gógico na Escola de 1º Grau. Ideias nº 8. 1.990, p 17-24.
para a seleção dos conteúdos são a natureza primária en-
quanto objeto de conhecimentos; a natureza transformada
pela ação dos homens (natureza secundária); as relações QUEIROZ, CECÍLIA T. A. P. DE; MOITA,
sociais; o conhecimento em si. Impõe-se como tarefa ne- FILOMENA M. G. DA S.C. FUNDAMENTOS
cessária, pois, a revisão dos conteúdos, cujos princípios SÓCIO-FILOSÓFICOS DA EDUCAÇÃO.
norteadores devem ser a visão política da educação escolar CAMPINA GRANDE; NATAL: UEPB/UFRN,
como prática social situada numa sociedade de classes; o 2007. (MEC/SEB/SEED).
domínio dos conteúdos específicos pelos diferentes pro-
fessores; o conhecimento e a constante identificação das
possibilidades socioculturais individuais dos alunos; a arti-
culação das matérias (conteúdos) do ensino. A revisão dos A tendência liberal tradicional
conteúdos se dá a partir do que é historicamente necessá-
rio (a transformação da situação de desigualdades sociais), A tendência tradicional está no Brasil, desde os jesuítas.
articulado com o que é historicamente possível (a situação O principal objetivo da escola era preparar os alunos para as-
de desigualdades sociais). sumir papéis na sociedade, já que quem tinha acesso às es-
O trabalho de revisão dos conteúdos requer o concur- colas eram os filhos dos burgueses e a escola tomava como
so de todos os profissionais da escola. Para cada princípio seu papel principal, fazer o repasse do conhecimento moral
de seleção e organização dos conteúdos ora expostos é e intelectual porque através deste estaria garantida a ascen-
preciso que os profissionais da educação escolar, partindo são dos burgueses e, consequentemente, a manutenção do
das condições existentes, tomem decisões e estabeleçam modelo social e político vigente. Para tanto, a proposta de
formas de suprir aquilo que inexiste: as condições de traba- educação era absolutamente centrada no professor, figura
lho para a consecução do núcleo do trabalho docente que incontestável, único detentor do saber que deveria ser re-
é o ensino-aprendizagem. passado para os alunos. O papel do professor estava focado
• A complexidade da organização escolar requer o em vigiar os alunos, aconselhar, ensinar a matéria ou con-
concurso de profissionais não-docentes que, tendo deter- teúdo, que passivos. Nessa concepção de ensino o processo
minadas competências, devem cuidar de tarefas relativas ã de avaliação carregava em seu bojo o caráter de punição,
articulação dos conteúdos; à composição de turmas homo- muitas vezes, de redução de notas em função do comporta-
gêneas, heterogêneas, bem como ao que fazer com cada mento do aluno em sala de aula. Essa tendência pedagógica

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BIBLIOGRAFIA

foi/é muito forte em nosso modelo de educação, ainda hoje, A tendência liberal tecnicista
tanto no ensino fundamental e médio como no ensino su-
perior, que vive uma salada de concepções pedagógicas. Sa- A Tendência Liberal Tecnicista começa a se destacar no
bemos que os professores são fruto da sua formação escolar, final dos anos 60, quando do desprestígio da Escola Re-
social e política, que esta se reflete na sua prática pedagó- novada, momento em que mais uma vez, sob a força do
gica, quando esta não é pensada/refletida cotidianamente, regime militar no país, as elites dão destaque a um outro
nesse caso, temos um ciclo vicioso: formado sem reflexão tipo de educação direcionada às grandes massas, a fim
–formo alunos sem reflexão, também. de se manterem na posição de dominação. Tendo como
principal objetivo atender aos interesses da sociedade ca-
A tendência liberal renovada (subtítulo) pitalista, inspirada especialmente na teoria behaviorista,
corrente comportamentalista organizada por Skinner que
Novos ventos mudaram o mundo, no que diz respeito traz como verdade inquestionável a neutralidade científica
às concepções filosóficas e sociológicas da educação. Por e a transposição dos acontecimentos naturais à sociedade.
volta dos anos 20 e 30, o pensamento liberal democrático O chamado “tecnicismo educacional”, inspirado nas teorias
chega ao Brasil e à Escola Nova da aprendizagem e da abordagem do ensino de forma sis-
, chega defendendo a escola pública para todas as ca- têmica, constituiu-se numa prática pedagógica fortemente
madas da sociedade. controladora das ações dos alunos e, até, dos professores,
Para Saviani, apud Gasparin (2005), a Escola Nova aca- direcionadas por atividades repetitivas, sem reflexão e ab-
ba por aprimorar o ensino das elites, rebaixando o das solutamente programadas, com riqueza de detalhes. O tec-
classes populares. Mas, mesmo recebendo esse tipo de nicismo defendia, além do princípio da neutralidade, já ci-
crítica, podemos considerá-la como o mais forte movimen- tada, à racionalidade, a eficiência e a produtividade. A edu-
to “renovador” da educação brasileira. A tendência liberal cação, a escola passa a ter seu trabalho fragmentado com
renovada manifesta-se por várias versões: a renovada pro- o objetivo de produzir os “produtos” sonhados e deman-
gressista ou pragmática, que tem em Jonh Dewey e Anísio dados pela sociedade capitalista e industrial. Tais como: o
Teixeira seus representantes mais significativos; a renovada microensino, o tele-ensino, a instrução programada, entre
não-diretiva, fortemente inspirada em Carl Rogers, o qual outras. Subordina a educação à sociedade capitalista, ten-
enfatiza também a igualdade e o sentimento de cultura do como tarefa principal à produção de mão de obra quali-
como desenvolvimento de aptidões individuais; a cultu- ficada para atender ao mercado, trazendo para os alunos e
ralistas; a piagetiana; a montessoriana; todos relacionadas para as escolas consequências perversas, a saber:
com os fundamentos da Escola Nova ou Escola Ativa. Por 1. A sociedade passou a atribuir a escola e a sua tec-
educação nova entendemos a corrente que trata de mudar nologia toda a responsabilidade do processo de aprendi-
o rumo da educação tradicional, intelectualista e livresca, zagem, negando os saberes trazidos pelos alunos e pelos
dando-lhe sentido vivo e ativo. Por isso se deu também professores;
a esse movimento o nome de `escola ativa´” (LUZURIAGA, 2. Incutiu a ideia errada de que aprender não é algo
1980, p. 227). inerente ao ser humano e sim um processo que ocorre
Enfim, considerando suas especificidades e propostas apenas a partir de técnicas específicas e pré-definidas por
de práticas pedagógicas diferentes, as versões da pedago- especialistas;
gia liberal renovada têm em comum a defesa da forma- 3. O professor passou a ser refém da técnica, repassa-
ção do indivíduo como ser livre, ativo e social. “Do ponto da pelos manuais e o aluno a ser um mero reprodutor de
de vista da Escola Nova, os conhecimentos já obtidos pela respostas pré-estabelecidas pela escola. Assim, se o aluno
ciência e acumulados pela humanidade não precisariam ser quisesse lograr sucesso na vida e na escola, precisava ape-
transmitidos aos alunos, pois acreditava-se que, passando nas responder ao que lhe foi ensinado e reproduzir, sem
por esses métodos, eles seriam naturalmente encontrados questionar e/ou criar algo novo;
e organizados” (FUSARI e FERRAZ, 1992, p. 28). Essa ten- 4. O bom professor deveria observar o desempenho
dência retira o professor e os conteúdos disciplinares do do aluno, apenas com o intuito de ajustar seu processo de
centro do processo pedagógico e coloca o aluno como aprendizagem ao programa vivenciado;
fundamental, que deve ter sua curiosidade, criatividade, 5. Cada atividade didática passou a ter momento e lo-
inventividade, estimulados pelo professor, que deve ter o cal próprios para ser realizada, dentre outras. Naturalmente
papel de facilitador do ensino. Defende uma escola que que este modelo, que defende a fragmentação do conhe-
possibilite a aprendizagem pela descoberta, focada no in- cimento, calcado na crescente especialização da ciência
teresse do aluno, garantindo momentos para a experimen- compromete a construção de uma visão global por parte
tação e a construção do conhecimento, que devem partir dos educadores, impossibilitando ou dificultando, muitís-
do interesse do aluno. Essa concepção pedagógica sofreu simo, o desenvolvimento de um ser humano mais integra-
e sofre distorções fortes por parte de alguns educadores. do interiormente e participante socialmente. Vele salientar,
Muitos defendiam essa tendência, mas na prática, abriam que essa tendência pedagógica marcou fortemente as dé-
mão de um trabalho planejado, deixando de organizar o cadas de 70 e 80 e tem influência ainda hoje.
que deveria ser ensinado e aprendido com a falsa desculpa As Tendências Progressistas surgem, também, na Fran-
de que o aluno é o condutor do processo. Nova parada ça a partir de 1968, e no Brasil coincide com o início da
para relembrar e resumir o que foi estudado: abertura política e com a efervescência cultural. Nesta

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BIBLIOGRAFIA

concepção a escola passa a ser vista não mais como re- A tendência progressista libertária
dentora, mas como reprodutora da classe dominante. Em
nível mundial, três teorias em especial deram a base para Essa tendência teve como fundamento principal rea-
o desvelamento da concepção ingênua e acrítica da escola: lizar modificações institucionais, acreditando que a partir
Bourdieu e Passeron (1970) com a teoria do Sistema en- dos níveis menores (subalternos), irão modificando “con-
quanto Violência Simbólica; Louis Althusser (1968) com a taminando” todo o sistema, sem definir modelos a priori e
teoria da escola enquanto Aparelho Ideológico do Estado; negando-se a respeitar qualquer forma autoridade ou po-
e Baudelot e Establet (1971) com a teoria da Escola Dua- der. Suas ideias surgem como fruto da abertura democrá-
lista. Todas elas classificadas como “crítico-reprodutivistas”, tica, que vai se consolidando lentamente a partir do início
mas nenhuma delas apresenta uma proposta pedagógica dos anos 80, com o retorno ao Brasil dos exilados políticos
explicita, buscam apenas, a explicar as razões do fracasso e com a conquista paulatina da liberdade de expressão,
escolar e da marginalização da classe trabalhadora. Defen- através dos veículos de comunicação de massa, dos meios
dem a necessidade de superação, tanto da “ilusão da es- acadêmicos, políticos e culturais do país. Cresce o interesse
cola como redentora, como da impotência e o imobilismo por escolas verdadeiramente democráticas e inclusivas e
da escola reprodutora” (Saviani, 2003). Nessa perspectiva, solidifica- se o projeto de escola que corresponda aos an-
Libâneo (1994), divide a Pedagogia Progressista em três seios da classe trabalhadora, respeitando as diferenças e os
tendências: A Pedagogia Progressista Libertadora, A Pe- interesses locais e regionais, objetivando uma educação de
dagogia Progressista Libertária, A Pedagogia Progressista qualidade e garantida a todos os cidadãos. Essa tendência
Crítico-Social dos Conteúdos, que vamos ver mais deta- defende, apoia e estimula a participação em grupos e mo-
lhadamente. vimentos sociais: sindicatos, grupos de mães, comunitários,
associações de moradores etc.., para além dos muros esco-
lares e, ao mesmo tempo, trazendo para dentro dela essa
A tendência progressista libertadora
realidade pulsante da sociedade. A necessidade premente
era concretizar a democracia, recém-criada, através de elei-
No final dos anos 70 e início dos 80, a abertura polí- ções para conselhos, direção da escola, grêmios estudantis
tica decorrente do final do regime militar coincidiu com e outras formas de gestão participativa.
a intensa mobilização dos educadores para buscar uma No Brasil, os educadores chamados de libertários têm
educação crítica, tendo em vista a superação das desigual- inspiração no pensamento de Celestin Freinet. Buscam a
dades existentes no interior da sociedade. Surge, então a aplicação concreta de suas técnicas, na qual os próprios
“pedagogia libertadora” que é oriunda dos movimentos alunos organizavam seu trabalho escolar. A metodologia
de educação popular que se confrontavam com o autori- vivenciada é a própria autogestão, tornando o interesse pe-
tarismo e a dominação social e política. Nesta tendência dagógico intrínseco às necessidades e interesses do grupo.
pedagógica, a atividade escolar deveria centrar-se em dis- A tendência progressista crítico social dos conteú-
cussões de temas sociais e políticos e em ações concretas dos ou histórico-crítica Essa tendência se constitui no fi-
sobre a realidade social imediata. nal da década de 70 e início dos 80 com o propósito de
O professor deveria agir como um coordenador de ser contrária à “pedagogia libertadora”, por entender que
atividades, aquele que organiza e atua conjuntamente essa tendência não dá o verdadeiro e merecido valor ao
com os alunos. Seus defensores, dentre eles o educador aprendizado do chamado “saber científico”, historicamente
pernambucano Paulo Freire, lutavam por uma escola cons- acumulado, e que constitui nosso identidade e acervo cul-
cientizadora, que problematizasse a realidade e trabalhas- tural, A “pedagogia crítico-social dos conteúdos” defende
se pela transformação radical da sociedade capitalista. que a função social e política da escola deve ser assegurar,
Os seguidores da tendência progressista libertadora não através do trabalho com conhecimentos sistematizado, a
tiveram a preocupação de consolidar uma proposta peda- inserção nas escolas, com qualidade, das classes populares
gógica explícita, havia opção didática já aplicada nos cha- garantindo as condições para uma efetiva participação nas
mados “círculos de cultura”. Devido às suas características lutas sociais.
de movimento popular, essa tendência esteve muito mais Esta tendência prioriza, na sua concepção pedagógica,
presente em escolas públicas de vários níveis e em uni- o domínio dos conteúdos científicos, a prática de métodos
versidades, do que em escolas privadas. Pierre Bourdieu de estudo, a construção de habilidades e raciocínio cientí-
fico, como modo de formar a consciência crítica para fazer
Filósofo e sociólogo francês escreveu em parceria com
frete à realidade social injusta e desigual. Busca instrumen-
Passeron, a obra La Reproduction (A Reprodução), publi-
talizar os sujeitos históricos, aptos a transformar a socieda-
cada em 1970.
de e a si próprio. Sua metodologia defende que o ponto
Desenvolveram trabalhos abordando a questão da do- de partida no processo formativo do aluno seja a reflexão
minação, discutindo em sua obra temas como educação, da prática social, ponto de partida e de chegada, porém,
cultura, literatura, arte, mídia, linguística e política. Sua dis- embasada teoricamente. Entende que não basta repassar
cussão sociológica centralizou-se, ao longo de sua obra, conteúdo escolar que aborde às questões sociais. Comple-
na tarefa de desvendar os mecanismos da reprodução so- menta que se faz necessário, que os alunos tenham o do-
cial que legitimam as diversas formas de dominação. O mínio dos conhecimentos, das habilidades e capacidades
mundo social, para Bourdieu, deve ser compreendido à luz para interpretar suas experiências de vida e defender seus
de três conceitos fundamentais: campo, habitus e capital. interesses de classe.

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BIBLIOGRAFIA

Agora você verá um quadro resumo, construído pela professora Terezinha Machado, que irá lhe ajudar a visualizar as
diferentes tendências pedagógicas que estudamos até aqui. É importante que você saiba que estas tendências predomina-
ram em determinado período histórico, o que não significa que deixaram de coexistir no momento em que outra tendência
começava a ser difundida; pensar assim seria simplificar demais as complexidades da educação, também estas caracteriza-
ções estão num plano geral e não aprofundado; pois, como já foi dito, a intenção é discutir as tendências, situá-las a fim de
relacionar com a prática pedagógica dos professores no intuito de trazer rotas, mapas para a sua prática como professor de
Geografia, nesse momento, em formação. Temos consciência que na prática mesmo, no dia a dia de sala de aula e de vida
profissional, o que vai definir sua atuação é a sua opção teórica, sua opção de classe, sua cidadania, que você irá articular
a sua ação docente.

Fonte
QUEIROZ, Cecília T. A. P. de; MOITA, Filomena M. G. da S.C. Fundamentos sócio-filosóficos da educação. Campina Gran-
de; Natal: UEPB/UFRN, 2007

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BIBLIOGRAFIA

escola e analisar ás influências das dimensões geográficas,


RESENDE, L. M. G. DE. A PERSPECTIVA políticas, econômicas e culturais. No decorrer do processo
MULTICULTURAL NO PROJETO POLÍTICO- de construção do projeto pedagógico, consideram-se dois
momentos interligados e permeados pela avaliação: o da
PEDAGÓGICO. IN: VEIGA, ILMA PASSOS
concepção é o da execução. Para que possam construir
ALENCASTRO. ESCOLA: ESPAÇO DO PROJETO
esse projeto, é necessário que as escolas, reconhecendo
POLÍTICO-PEDAGÓGICO. CAMPINAS: sua história e a relevância de sua contribuição, façam au-
PAPIRUS, 1998. tocrítica e busquem uma nova forma de organização do
trabalho pedagógico; que “reduza os efeitos da divisão
do trabalho, da fragmentação e do controle hierárquico”
(Veiga 1996, p. 22). Quanto a concepção, um projeto pe-
PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO: UM CONVITE À dagógico de qualidade deve apresentar as seguintes ca-
REFLEXÃO racterísticas:
a) ser um processo participativo de decisões
O projeto pedagógico exige profunda reflexão sobre b) preocupar-se em instaurar uma forma de organiza-
as finalidades da escola, assim como a explicitação de ção do trabalho pedagógico que desvele.
seu papel social e a clara definição de caminhos, formas Neste contexto, Resende (1998) nos lembra que a ges-
operacionais e ações a serem empreendidas por todos os tão democrática está em processo de construção devido
envolvidos com o processo educativo. Seu processo de à pouca experiência que temos com o exercício democrá-
construção aglutinará crenças, convicções, conhecimen- tico. Além disso, no cotidiano escolar segundo a mesma
tos da comunidade escolar, do contexto social e científico, autora, “Antes mesmo de se buscar sistematizar o projeto
constituindo-se em compromisso político e pedagógico político-pedagógico é indispensável analisar e atuar em
coletivo Ele precisa ser concebido com base nas diferenças espaços onde formas veladas de autoritarismo se transver-
existentes entre seus autores, sejam eles professores, equi- tem criando verdadeiras barreiras contra criatividade, criti-
pe técnico- administrativa, pais, alunos e representantes da cidade e a expressão das experiências vividas. [...]”. Conse-
comunidade local. quentemente, a chamada Gestão Democrática na escola é
É, portanto, fruto de reflexão e investigação. Nesse ainda objeto de analises e reflexão (RESENDE, 1998, p 40).
sentido, e mediante observação e análise que se carac-
No que se refere ao princípio de liberdade da escola
terizam por um contato direto do professor-pesquisador
ou na escola, segundo Veiga (2006), pode ser visualizado
com a situação pesquisada e que vão ocorrendo ao longo
em dois aspectos: enquanto autonomia da escola ou en-
de um tempo, no dia-a-dia da escola, os profissionais, do
quanto liberdade na relação entre os diversos sujeitos na
seu cotidiano, observam o que ocorre, ouvem o que é dito,
escola, diretor, professor, aluno e funcionário. Como um
lêem o que é escrito, levantam questões, observam e regis-
dos grandes eixos que deveriam nortear a construção dos
tram tudo. Documentam o não-documentado, procurando
PPP está centralizada na liberdade, Medel (2013) define
entender como ocorrem no interior da escola e das salas de
que, “[...] o eixo da liberdade que se expressa no âmbito do
aula as relações pedagógicas, como é concebido, executa-
do e avaliado o currículo escolar, quais atitudes, valores e pluralismo de ideias e concepções pedagógicas e da pro-
crenças são perseguidos, quais as formas de organização posta de gestão democrática do ensino, que será definida
do trabalho pedagógico. Tais dados servem para clarificar em cada sistema de ensino”. A condição para valorização
ás questões prioritárias e propor alternativas de solução. dos profissionais da educação na escola, por sua vez, está
André (1995, p. 111) afirma: Conhecer a escola mais de ligada a formação acadêmica e continuada e a condição
perto significa colocar uma lente de aumento na dinâmi- de trabalho do professor.
ca das relações e interações que constituem seu dia-a-dia, Apesar de estarem também como preocupação nos
apreendendo as forças que a impulsionam ou que a retêm, PPPs, o campo de ação da escola é limitado, pois em ge-
identificando as estruturas de poder e os modos de orga- ral, a formação continuada é uma preocupação que vai
nização do trabalho escolar, analisando a dinâmica de cada além dos muros da escola. No Paraná, por exemplo, esta
sujeito nesse complexo interacional. formação é ofertada pela Secretaria de Educação; sindica-
Esse imprescindível esforço coletivo implica a seleção tos; universidades; entre outros. Nesse cenário, as escolas
de valores a serem consolidados, a busca de pressupostos competem: a) proceder ao levantamento de necessidades
teóricos e metodológicos postulados por todos, a identifi- de formação continuada de seus profissionais; b) elaborar
cação das aspirações maiores das famílias, em relação ao seu programa de formação, contando com a participação
papel da escola na educação da população e na contribui- e o apoio dos órgãos centrais, no sentido de fortalecer seu
ção específica que irá oferecer para “o pleno desenvolvi- papel na concepção, na execução e na avaliação do referi-
mento do educando, seu preparo para o exercício da cida- do programa (VEIGA, 2006, p. 20).
dania e sua qualificação para o trabalho”(art. 2° da Lei n° Restam-nos agora, os princípios de igualdade e quali-
9.394/96).A análise do contexto externo consiste no estudo dade. Igualdade segundo Veiga (2006), na concepção que
do meio no qual a escola está inserida e das suas intera- estamos utilizando, é igualdade de condição de acesso e
ções,, Para fazer a análise do contexto externo, é necessário permanência na escola. Já qualidade, nesta mesma con-
identificar os principais participantes que interagem com a cepção, representa qualidade de educação para todos, o

150
BIBLIOGRAFIA

que implica não apenas uma qualidade formal técnica, mas da diversidade e no caráter intervencionista das ações des-
política. Sendo que a qualidade formal está ligada as ques- velando o cotidiano das pessoas, que é identificado como
tões dos instrumentos, métodos e técnicas e a qualidade natural e comum a todos, embora não o seja, permeado
política é vinculado à questão da participação. que é pelas disputas de relações de poder construídas so-
Poderíamos dizer que essa qualidade política é o que cialmente de forma desigual. (RESENDE, 2003, p. 33).
permitiria a participação atuante e consciente da criança, O multiculturalismo pode ser definido, a partir de Gon-
do educando na escola, na sociedade, pois partiria de um çalves e Silva (1998, p 13), como uma estratégia política ou
projeto de educação plural, heterogêneo e multicultural ainda como um corpo teórico, que deve auxiliar ou orientar
que reconhece a diversidade dos sujeitos na escola. E aqui a produção do conhecimento. Já Peter Mclaren (2000), em
reside um problema que tem posta em xeque a qualidade seu livro intitulado como “Multiculturalismo crítico”, indica
política da escola, pois o que vem acontecendo na esco- que há quatro tipos distintos de multiculturalismo, sendo
la em geral é o contrário, pois percebemos ao longo da eles: o conservador ou empresarial; o humanista liberal; o
história no sistema de educação, que privilegia um padrão multiculturalismo liberal de esquerda e o multiculturalismo
monocultural e homogêneo, que é considerado padrão de crítico. O autor ainda ressalta, no entanto que, não é uma
normalidade e ignorando a composição multicultural e a divisão fechada, mas há diálogos entre elas. Assim, pensar
heterogeneidade considerada anormal: [...]. o que parece a educação a partir do multiculturalismo, especificamente
imperar é uma cultura da “objetividade ”, entendida como o multiculturalismo crítico, seria uma maneira de romper
uniformismo, como ataque à diversidade, com finalidade com a visão homogeneizadora e monocultural, pois traria
de favorecer a articulação de sociedade “mono”: monocul- no seu bojo as vozes de sujeitos que até então foram rele-
turais, mono linguísticas, monoétnicas, monoideológicas gados a segundo plano, no currículo e na sociedade. Medel
etc. Pretende-se negar a diversidade para impor uma úni- (2013) destaca ainda que, é de suma importância pensar o
ca cultura que se anuncia e se faz pública como “comum”, multiculturalismo para se pensar as tensões e conflitos que
“consensual”, “valiosa” e “histórica (a de sempre) ”. permeiam a escola, no qual afirma que: o multiculturalis-
Esta homogeneização cultural na escola para estudio- mo expõe como reflexão obrigatória voltar-se ás tensões
sos do tema tenderia a comprometer está qualidade da que envolvem a escola e a cultura e a cultura da escola e
educação para todos, pois é considerada uma das princi- sua inclusão em políticas curriculares e avaliativas estaduais
pais causas da repetência e evasão. Todavia, é oportuno es- e nacionais, de modo que não apenas busque estratégias
para que as diferenças culturais possam coexistir democra-
clarecer que: a escola de qualidade tem obrigação de evitar
ticamente, mas principalmente, que se mantenha um olhar
de todas as maneiras possíveis a repetência e a evasão. Tem
constante acerca da tensão universal e particular no âmbito
que garantir a meta qualitativa do desempenho satisfatório
da gestão escolar (MEDEL, 2013, p. 20).
a todos. Qualidade para todos, portanto vai além da meta
quantitativa de acesso global, no sentindo que as crianças,
Fonte
em idade escolar, entrem na escola. É preciso garantir a
DUARTE, A.; SILVA, R. T. C. Análise dos projetos políti-
permanência dos que nela ingressarem[...].
co-pedagógico
Um dos primeiros passos para a desconstrução desta
homogeneizadora e monocultural seria a construção cole- Referência
tiva, de fato, do PPP, envolvendo professores, funcionários, RESENDE, L. M. G. de. A perspectiva multicultural no
diretores, pais e/ou responsáveis, alunos e comunidade. Tal projeto político-pedagógico. In: VEIGA, Ilma Passos Alen-
conduta seria por si só, um passo importante na constru- castro. Escola: espaço do projeto político-pedagógico.
ção de uma escola que respeite e reconheça as diferenças e Campinas: Papirus, 1998.
a pluralidades, haja vista a diversidade cultural, religiosa, de
gênero, de classe, de etnia que estes agentes trazem em si.
Como lembra Medel (2013.), “Numa visão multicultural, ao
representar a identidade 9706 institucional da escola, o PPP RIOS, TERESINHA AZEREDO. ÉTICA E
representa um esforço coletivo de conferir unidade a partir COMPETÊNCIA. SÃO PAULO: CORTEZ, 2001.
da pluralidade. Essa unidade deve comportar espaços de
pluralidade na sua definição e na sua implementação”.
Outro caminho que tem se apresentado é pensar que ÉTICA E COMPETÊNCIAS
a educação nas relações étnico raciais vem a partir de uma
perspectiva teórica-filosófica multicultural ou do multicul- RIOS, Terezinha Azeredo. Ética e competência. 20. ed.,
turalismo. Pensando que a abordagem multicultural permi- São Paulo: Cortez, 2011.
te demonstrar o conservadorismo e as práticas discrimina-
tórias que tem se perpetuado na sociedade e na escola ao A educação está envolvida no contexto social ao qual
resgatar a diversidade cultural e as relações de poder que ela está inserida. Enquanto fenômeno histórico e social, a
estão implícitas nas interrelações destes diferentes grupos educação é a transmissão de cultura, é o estabelecimento.
étnicos, culturais religiosos, etc: nas reflexões que desen- A cultura é a relação da educação e a sociedade, o mun-
volvo neste artigo, tomarei o multiculturalismo na imbrica- do transformado pelo homem, porque o homem é um
ção dos dois significados, quais sejam, no reconhecimento ser-no-mundo, o mundo está dentro do homem, há uma

151
BIBLIOGRAFIA

reciprocidade, pois, o homem dele se resulta. O mundo social pelos que estão no seu interior. Entretanto, a popula-
existe para o homem na medida do conhecimento que o ção está excluída do processo educativo formal, a maioria
homem te dele e da ação que exerce sobre ele. O mundo que frequenta a escola está não tem oferecido condições
se apresenta ao homem num aspecto de natureza, onde o para aquela apropriação. A relação escola-sociedade, a es-
mundo independe do homem para existir e que os próprios cola é parte da sociedade e tem com o todo uma relação
homens fazem parte em seus aspectos biológicos, fisiológi- dialética, uma interferência recíproca e social. E contradi-
cos. Existe um outro aspecto que é o da cultura, o mundo tória, pois é um fator de manutenção e que transforma a
transformado pelo homem. Os homens fazem a cultura por cultura. Ela tem um conjunto de práticas que mantêm e
necessidade, por sobrevivência, para satisfazer essas neces- transforma a estrutura social.
sidades eles Poe em ação sua razão e sua criatividade. O A ação dos homens em sociedade é uma ação de ca-
homem é um ser de desejos colados às necessidades. Os ráter político, que onde o poder é um elemento presente
desejos se manifestam como fonte do humano, propulsores como constituinte do social. A ideia de política está asso-
da passagem do estabelecimento para o inventado. O con- ciada ao poder, e a medida a organização da vida material
ceito de desejo indicara a presença da liberdade associada determina a organização das ideias e relações de poder.
à necessidade. Não há vida social que não seja política, pois se toma par-
O senso comum identifica a cultura como erudição, tido, de situações, não ficar indiferente em face das alter-
acúmulo de conhecimentos, atividade intelectual. Os cien- nativas sociais, participar e produzir em relação com toda
tistas sociais, antropólogos, conceituam cultura como tudo a vida civil e social, é ter um conjunto de intenções como
o que resulta da interferência dos homens no mundo que programa de ação.
os cerca e do qual fazem parte. Ela se constitui no ato pelo É preciso refletir sobre os objetivos específicos da edu-
qual ele vai de homo sapiens a ser humano. Assim, todos os cação, para distinguirmos da prática política, mas vemos
homens são cultos, na medida em que participa, de algum esta pratica, na ação educativa.
modo da criação cultura, estabelecem certas normas para A função da educação tem uma dimensão técnica e
sua ação, partilham, valores e crenças. Tudo isso é resultado política. O pedagogo realiza a dimensão política na prá-
do trabalho. Por isso não se fala em cultura sem falar em tica educativa, preparando o cidadão para a vida na polis,
trabalho, intervenção intencional e consciente dos homens transmitindo saber acumulado e levando a novos saberes;
na realidade. É o trabalho que faz os homens saberem, se- tecnicamente significa dizer, que a criação de conteúdos e
rem. O trabalho é a essência do homem. A ideia de trabalho técnicas que possam garantir a apreensão do saber pelos
não se separa da ideia de sociedade, na medida em que é sujeitos e a atuação no sentido da descoberta e da inven-
com os outros que o homem trabalha e cria a cultura. No ção. Conteúdos e técnicas são selecionados, transmitidos e
trabalho o homem começa a produzir a si mesmo, os ob- transformados em função de determinados interesses exis-
jetos e as condições de que precisa para existir. A primeira tentes na sociedade. O papel político da educação se revela
coisa que o homem produz é o mundo, mas o mundo tor- na medida em que se cumpre a perspectiva de determi-
nado humano pela presença do homem e pela organização nado interesse, está sempre servindo as forças que lutam
social que, pelo trabalho, lhe impõe. para perpetuar e / ou transformar a sociedade. A escola da
Qualquer sociedade se organiza como base na produ- sociedade capitalista não tem caráter democrático, sociali-
ção da vida material de seus membros e das relações decor- zando o saber e recurso para apreendê-lo e transformá-lo,
rentes. A cultura precisa ser preservada e transmitida exata- porque ela tem estado a serviço da classe dominante, vei-
mente porque não está incorporada ao patrimônio natural. culando a ideologia dessa classe. A escola quer formar o
A educação, no sentido amplo, está definida como processo cidadão dócil e o operário. É necessário refletir e encontrar
de transmissão de cultura, está presente em todas as insti- caminhos para sua transformação.
tuições, ou seja, escolas. Escola é o espaço de transmissão Os papeis sociais do educado são definidos levando-
sistemática do saber historicamente acumulado pela socie- -se em consideração as instituições onde esse desenvolve
dade, com o objetivo de formar indivíduos, capacitando-os a prática dos sujeitos. O educador desenvolve sua prática
a participar como agentes na construção dessa sociedade. no espaço da instituição que é a escola. É tarefa da escola
A sociedade capitalista se caracteriza por ter sua orga- a transmissão / criação sistematizada da cultura entendida
nização sustentada numa contradição básica –aquela que se como resultado da intervenção dos homens na realidade
dá entre capital e trabalho - e que provoca a divisão de seus transformando-a e transformando a si mesmos. A escola
membros em duas classes antagônicas, a classe burguesa e tem características específicas e cumpre uma função deter-
a trabalhadora. Na sociedade capitalista, a escola, enquanto minada que resulta do trabalho e das relações estabeleci-
instituição, tem sido o espaço de inserção dos sujeitos nos das em seu interior e na prática desses sujeitos. O educador
valores e crenças da classe dominante. A ideologia liberal é exerce sua função tem que realizar suas obrigações e uma
o elemento de sustentação do sistema capitalista, este con- maneira especifica usando-se de competência, saber fazer
junto de ideias, crenças, valores, ganha corpo e solidifica, bem, técnica e politicamente. Isto na prática significa, ter
dissimulando a realidade por interesses da classe dominan- domínio no saber escolar, habilidade de organizar e trans-
te. Assim, as diferenças sociais, as discriminações, são justi- mitir esse saber, organizar os períodos de aula, desde o
ficadas com base em princípios considerados um contexto momento da matrícula, agrupamento de classes, currículo,
histórico especifico. Isso é evidente na escola brasileira. Ela e métodos de ensino, saber relacionar o preparo técnico
é transmissora do saber sistematizado acumulado histori- da escola e os resultados de sua ação, e compreender a
camente, mas deveria ser fonte de apropriação da herança relação escola e sociedade.

152
BIBLIOGRAFIA

O sentido político da prática docente se realiza pela Ao lado do saber que se identifica com o domínio dos
mediação da competência técnica. Fazer bem é ir de en- conteúdos e das técnicas para a transmissão temos o saber
contro daquilo que é desejável, está vinculado aos aspec- que sabe, a consciência de percepção da realidade crítica
tos técnicos e políticos da atuação do educador. A ética é a e reflexiva.
mediação, pois defini a organização do saber que será vin- A visão crítica é um primeiro passo a ter um compro-
culado na instituição escolas e na direção que será dada a misso político. Depois a vontade e a intencionalidade do
esse saber na sociedade. A qualidade da educação tem sido gesto do educador.
prejudicada por educadores preocupados em fazer o bem, A necessidade presente no contexto socioeconômico
sem questionar criticamente sua ação. O maior problema é o primeiro motor de ação do educador, a vontade de ar-
que se enfrenta no que diz respeito as dimensões técnica e ticular a consciência é essencial a prática política moral do
política da competência do educador, é a desarticulação na educador a liberdade responsável. O educador deve asso-
realidade. O saber fazer técnico constitui condições neces- ciar a coletividade rompendo com a ideia dominante do
sária porque é a base do querer político, ainda que a dimen- pensamento burguês que é a de individualismo.
são política da tarefa docente não seja percebida como tal. A ideia de promessa dá-se a noção de compromisso,
Com respeito à relação existente dentre moral e polí- o empenho da prática e envolvimento com a realização do
tica, se percebe que os educadores não têm clareza da di- prometido. Na maioria das situações é preciso criar essas
mensão política de seu trabalho. Ao interpretarem política circunstâncias. O gesto de compreensão e a ética no envol-
como envolvimento partidário, ou mesmo sindical, alguns vimento com aquilo que se tem por objetivo. Compreensão
até negam que tenham algo a ver com isso. Não podem se é saber aprofundado e envolvimento éticopolitico do saber.
recusar a admitir a presença da moralidade em sua ação. É preciso que o educador competente seja um educa-
Essa moralidade aparece de forma extremada – o mora- dor comprometido com a construção de uma sociedade
lismo. justa, democrática interferindo no real e na organização
A ideia de responsabilidade que se encontra articulada de relações de solidariedade e não de dominação entre os
com a de liberdade, conceito que representa o eixo cen- homens.
tral da reflexão ética está ligada à noção de compromisso A escola deve ser um espaço de predominância do
político e moral. Os professores não têm clareza quanto a consenso e da persuasão. Onde o consenso resultaria de
implicação política de seu comprometimento, veem como aproveitar o espaço existente na sociedade civil para seu
fortalecimento e para a transformação necessária na estru-
parte de uma essência do educador. As mulheres educa-
tura social.
doras dão-se ênfase a afetividade. Ao desconhecimento
A dimensão técnica carrega a ética, onde a ética é a
na presença político na ação educativa e ético, aparece
mediação da técnica e da política expressando a escolha
misturado com o sentimento e essa mistura contribui para
técnica e política dos conteúdos, dos métodos, dos siste-
reforçar o espontaneísmo e para manter as falhas da ins-
mas de avaliação e os desvendando-os.
tituição escolar.
Técnica, ética, política são referências que devemos
É necessário evitar o moralismo, mas não é possível descobrir na nossa vivência real em nossa prática. É a refle-
desvincular moral e política, buscar discutir os valores xão que transforma o processo social educativo em busca
morais dominantes na sociedade. A ética da competência de uma significação mais profunda para a vida e o para o
pode ajudar-nos a desvelar elementos da ideologia que trabalho.
permeia nossa educação. Não há como afastar a subjetivi- O educador competente terá de ser exigente, sua for-
dade que está presente na valorização, na intencionalida- mação deverá ser a formação de um intelectual atuante
de que se confere a prática social. no processo de transformação de um sistema autoritário
É preciso distinguir subjetividade de singularidade ou e repressivo: o rigor será uma exigência para sua prática.
individualidade. O singular é o que diz respeito ao indivíduo, O educador se contribuirá da filosofia para a educação e
as pessoas de sua atuação que o distinguem dos demais e é reflexão crítica a busca de sua compreensão.
na vida em sociedade que ele adquire essa individualidade. A visão do professor e de educação é de mediar a ação
O comportamento do homem é político enquanto ra- mediadora. A relação professor-aluno. Educador-educan-
zão e palavra. E a moralidade são as escolhas exigências do, é a aquisição do conhecimento, onde ambos são su-
de caráter social no que se chama de técnico no ensino, jeitos conhecedores. O professor estabelece o diálogo do
no trabalho educativo. Essas escolhas têm implicações éti- aluno como o real. O objeto que é o mundo é apreendido,
co-política. Vontade, liberdade, consequência são conceitos compreendido e alterado, numa relação que é fundamental
do terreno ético político. A articulação entre esses conceitos – a relação aluno-mundo. O professor é quem especifica a
é que nos auxilia na busca da compreensão da com potên- mediação do saber entre o aluno e a cultura e a realidade.
cia do educador, pois não basta levar em conta o saber, mas Há fatores intra e extraescolares que interferem na prá-
é preciso querer. O saber e a vontade nada valem sem a ex- tica dos educadores. É no cotidiano de nossas práticas que
plicitação do dever e a presença do poder desvinculado da estamos construindo a educação, que estamos fazendo a
dominação. Mas no poder na conjugação de possibilidades história da educação brasileira. E é o educador que vai en-
e limites representando pelas normas que regem a prática caminhar o educador que queremos ter. O desafio está na
dos homens em sociedade. Deveres que se combinam com necessidade de se superarem os problemas e se encontra-
direitos e estão ligados à consciência e a vontade dos su- rem / criarem recursos para a transformação. Isso se con-
jeitos. cretiza na elaboração de projetos de ação.

153
BIBLIOGRAFIA

Ao organizar projetos, planejamos o trabalho que te-


mos a intenção de realizar, lançamo-nos para diante, olha- ROPOLI, EDILENE APARECIDA. A EDUCAÇÃO
mos para frente, projetar é relacionar-se com o futuro, é ESPECIAL NA PERSPECTIVA DA INCLUSÃO
começar a fazê-lo. O presente traz no seu bojo o passado, ESCOLAR: A ESCOLA COMUM INCLUSIVA.
enquanto vida incorporada e memória. É isso que garante
BRASÍLIA: MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO.
a significação do processo histórico. Começamos a escola
do futuro no presente. Quando se projeta, tem-se que em
SEESP. UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ.
mente um ideal. O ideal é utópico, mas é preciso recuperar 2010.
o sentido autentico de utopia, que é algo ainda não reali-
zado.
A escola deve desenvolver um trabalho coletivo e par-
ticipante, tendo como pressuposto que o trabalho que se A EDUCAÇÃO ESPECIAL NA PERSPECTIVA DA IN-
realiza com a participação responsável de cada um dos su- CLUSÃO ESCOLAR
jeitos envolvidos é o que atende de forma mais efetiva as A ESCOLA COMUM INCLUSIVA
necessidades concretas da sociedade em que vivemos. É
preciso que ele seja possível. O que ainda não é pode vir a PARTE I
ser. O possível ainda não está pronto, deve ser construído.
A ideia de projeto e a de utopia está ligada à ideia de 1. SOBRE IDENTIDADE E DIFERENÇAS NA ESCOLA
esperança, movimento, que é alimentada pela ação do ho-
mem. A organização de projetos utópicos é uma forma de A inclusão rompe com os paradigmas que sustentam
se enfrentar as crises. o conservadorismo das escolas, contestando os sistemas
A história se faz na contraposição de valores, na des- educacionais em seus fundamentos. Ela questiona a fixação
coberta e instituição de novas significações para as ações de modelos ideais, a normalização de perfis específicos de
e relações humanas. Mas a crise pode configurar-se como alunos e a seleção dos eleitos para frequentar as escolas,
uma ruptura, uma negação de a própria dinâmica da cultu- produzindo, com isso, identidades e diferenças, inserção e/
ra, uma ameaça de imobilidade, sob a forma de um supos- ou exclusão.
to movimento de desordem. O poder institucional que preside a produção das iden-
Cada momento histórico apresenta aos homens um tidades e das diferenças define como normais e especiais
desafio. A crise ética em nossa sociedade contemporânea é não apenas os alunos, como também as suas escolas. Os
o grande desafio da competência. A crise moral é o desafio alunos das escolas comuns são normais e positivamente
a ética, porque significa uma indiferença diante de valores. valorados. Os alunos das escolas especiais são os negativa-
A atitude cínica nos provoca na medida em que é uma mente concebidos e diferenciados.
atitude de desconsideração das normas e dos valores que Os sistemas educacionais constituídos a partir da opo-
as sustentam. sição - alunos normais e alunos especiais - sentem-se aba-
Na ação competente, haverá sempre um componente lados com a proposta inclusiva de educação, pois não só
utópico no dever, no compromisso, na responsabilidade. criaram espaços educacionais distintos para seus alunos, a
A competência é construída cotidianamente e se propõe partir de uma identidade específica, como também esses
como um ideal a ser alcançado, ela é também comparti- espaços estão organizados pedagogicamente para manter
lhada, por outras pessoas, a qualidade de seu trabalho não tal separação, definindo as atribuições de seus professores,
depende só de uma pessoa. A competência do profissional currículos, programas, avaliações e promoções dos que fa-
e na articulação dessa competência com os outros e com zem parte de cada um desses espaços.
as circunstâncias. Os que têm o poder de dividir são os que classificam,
Na direção do bem comum, da ampliação do poder de formam conjuntos, escolhem os atributos que definem os
todos como condição de participação na construção cole- alunos e demarcam os espaços, decidem quem fica e quem
tiva da sociedade e da histórica, apresenta-se ao educador, sai destes, quem é incluído ou excluído dos agrupamentos
como profissional, em meio a crise, A necessidade de res- escolares.
ponder ao desafio. Ele o fará tanto mais competentemente Ambientes escolares inclusivos são fundamentados
quanto mais garantir em seu trabalho, no entre cruzamen- em uma concepção de identidade e diferenças, em que as
to das dimensões que o constituem. A dimensão utópica. relações entre ambas não se ordenam em torno de oposi-
Esperança a caminho. ções binárias (normal/especial, branco/negro, masculino/
feminino, pobre/rico). Neles não se elege uma identidade
como norma privilegiada em relação às demais.
Em ambientes escolares excludentes, a identidade nor-
mal é tida sempre como natural, generalizada e positiva
em relação às demais, e sua definição provém do processo
pelo qual o poder se manifesta na escola, elegendo uma
identidade específica através da qual as outras identidades
são avaliadas e hierarquizadas.

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BIBLIOGRAFIA

Esse poder que define a identidade normal, detido por 2. ESCOLA DOS DIFERENTES OU ESCOLA DAS DI-
professores e gestores mais próximos ou mais distantes FERENÇAS?
das escolas, perde a sua força diante dos princípios educa-
cionais inclusivos, nos quais a identidade não é entendida A educação inclusiva concebe a escola como um es-
como natural, estável, permanente, acabada, homogênea, paço de todos, no qual os alunos constroem o conheci-
generalizada, universal. Na perspectiva da inclusão esco- mento segundo suas capacidades, expressam suas ideias
lar, as identidades são transitórias, instáveis, inacabadas livremente, participam ativamente das tarefas de ensino e
e, portanto, os alunos não são categorizáveis, não podem se desenvolvem como cidadãos, nas suas diferenças.
ser reunidos e fixados em categorias, grupos, conjuntos, Nas escolas inclusivas, ninguém se conforma a padrões
que se definem por certas características arbitrariamente que identificam os alunos como especiais e normais, co-
escolhidas. muns. Todos se igualam pelas suas diferenças!
É incorreto, portanto, atribuir a certos alunos identida- A inclusão escolar impõe uma escola em que todos
des que os mantêm nos grupos de excluídos, ou seja, nos os alunos estão inseridos sem quaisquer condições pelas
grupos dos alunos especiais, com necessidades educacio- quais possam ser limitados em seu direito de participar ati-
nais especiais, portadores de deficiências, com problemas vamente do processo escolar, segundo suas capacidades, e
sem que nenhuma delas possa ser motivo para uma dife-
de aprendizagem e outros tais. É incabível fixar no outro
renciação que os excluirá das suas turmas.
uma identidade normal, que não só justifica a exclusão dos
Como garantir o direito à diferença nas escolas que
demais, como igualmente determina alguns privilegiados.
ainda entendem que as diferenças estão apenas em alguns
A educação inclusiva questiona a artificialidade das alunos, naqueles que são negativamente compreendidos e
identidades normais e entende as diferenças como re- diagnosticados como problemas, doentes, indesejáveis e a
sultantes da multiplicidade, e não da diversidade, como maioria sem volta?
comumente se proclama. Trata-se de uma educação que O questionamento constante dos processos de dife-
garante o direito à diferença e não à diversidade, pois as- renciação entre escolas e alunos, que decorre da oposição
segurar o direito à diversidade é continuar na mesma, ou entre a identidade normal de alguns e especial de outros,
seja, é seguir reafirmando o idêntico. é uma das garantias permanentes do direito à diferença.
A diferença (vem) do múltiplo e não do diverso. Tal Os alvos desse questionamento devem recair diretamente
como ocorre na aritmética, o múltiplo é sempre um pro- sobre as práticas de ensino que as escolas adotam e que
cesso, uma operação, uma ação. A diversidade é estática, servem para excluir.
é um estado, é estéril. A multiplicidade é ativa, é fluxo, é Os encaminhamentos dos alunos às classes e escolas
produtiva. A multiplicidade é uma máquina de produzir di- especiais, os currículos adaptados, o ensino diferenciado,
ferenças - diferenças que são irredutíveis à identidade. A a terminalidade específica dos níveis de ensino e outras
diversidade limita-se ao existente. A multiplicidade esten- soluções precisam ser indagados em suas razões de ado-
de e multiplica, prolifera, dissemina. A diversidade é um ção, interrogados em seus benefícios, discutidos em seus
dado - da natureza ou da cultura. A multiplicidade é um fins, e eliminados por completo e com urgência. São essas
movimento. A diversidade reafirma o idêntico. A multipli- medidas excludentes que criam a necessidade de existirem
cidade estimula a diferença que se recusa a se fundir com escolas para atender aos alunos que se igualam por uma
o idêntico (SILVA, 2000, p.100-101). falsa normalidade - as escolas comuns - e que instituem
De fato, a diversidade na escola comporta a criação de as escolas para os alunos que não cabem nesse grupo - as
grupos de idênticos, formados por alunos que têm uma escolas especiais. Ambas são escolas dos diferentes, que
mesma característica, selecionada para reuni-los e separá- não se alinham aos propósitos de uma escola para todos.
-los. Ao nos referirmos a uma escola inclusiva como aberta Quando entendemos esses processos de diferenciação
à diversidade, ratificamos o que queremos extinguir com pela deficiência ou por outras características que elegemos
para excluir, percebemos as discrepâncias que nos faziam
a inclusão escolar, ou seja, eliminamos a possibilidade de
defender as escolas dos diferentes como solução privi-
agrupar alunos e de identificá-los por uma de suas carac-
legiada para atender às necessidades dos alunos. Acor-
terísticas (por exemplo, a deficiência), valorizando alguns
damos, então, para o sentido includente das escolas das
em detrimento de outros e mantendo escolas comuns e diferenças. Essas escolas reúnem, em seus espaços edu-
especiais. cacionais, os alunos tais quais eles são: únicos, singulares,
Atenção, pois ao denominarmos as propostas, progra- mutantes, compreendendo-os como pessoas que diferem
mas e iniciativas de toda ordem direcionadas à inclusão, umas das outras, que não conseguimos conter em conjun-
insistimos nesse aspecto, dado que somos nós mesmos tos definidos por um único atributo, o qual elegemos para
quem atribuímos significado, pela escolha das palavras diferenciá-las.
que utilizamos para expressá-lo. É por meio da represen-
tação que a diferença e a identidade passam a existir e te- 3. A ESCOLA COMUM NA PERSPECTIVA INCLUSIVA
mos, dessa forma, ao representar o poder de definir iden-
tidades, currículos e práticas escolares. A escola das diferenças é a escola na perspectiva inclu-
siva, e sua pedagogia tem como mote questionar, colocar
em dúvida, contrapor-se, discutir e reconstruir as práticas
que, até então, têm mantido a exclusão por instituírem uma

155
BIBLIOGRAFIA

organização dos processos de ensino e de aprendizagem A organização de uma sala de aula é atravessada por
incontestáveis, impostos e firmados sobre a possibilidade decisões da escola que afetam os processos de ensino e de
de exclusão dos diferentes, à medida que estes são direcio- aprendizagem. Os horários e rotinas escolares não depen-
nados para ambientes educacionais à parte. dem apenas de uma única sala de aula; o uso dos espaços
A escola comum se torna inclusiva quando reconhece da escola para atividades a serem realizadas fora da classe
as diferenças dos alunos diante do processo educativo e precisa ser combinado e sistematizado para o bom apro-
busca a participação e o progresso de todos, adotando no- veitamento de todos; as horas de estudo dos professores
vas práticas pedagógicas. Não é fácil e imediata a adoção devem coincidir para que a formação continuada seja uma
dessas novas práticas, pois ela depende de mudanças que aprendizagem colaborativa; a organização do Atendimen-
vão além da escola e da sala de aula. Para que essa escola to Educacional Especializado - AEE não pode ser um mero
possa se concretizar, é patente a necessidade de atualização apêndice na vida escolar ou da competência do professor
e desenvolvimento de novos conceitos, assim como a rede- que nele atua.
finição e a aplicação de alternativas e práticas pedagógicas Um conjunto de normas, regras, atividades, rituais,
e educacionais compatíveis com a inclusão. funções, diretrizes, orientações curriculares e metodológi-
Um ensino para todos os alunos há que se distinguir cas, oriundo das diversas instâncias burocrático-legais do
pela sua qualidade. O desafio de fazê-lo acontecer nas sa- sistema educacional, constitui o arcabouço pedagógico e
las de aulas é uma tarefa a ser assumida por todos os que administrativo das escolas de uma rede de ensino. Trata-se
compõem um sistema educacional. Um ensino de qualida- do que está INSTITUÍDO e do que Libâneo e outros autores
de provém de iniciativas que envolvem professores, gesto- (2003) analisaram pormenorizadamente.
res, especialistas, pais e alunos e outros profissionais que Nesse INSTITUÍDO, estão os parâmetros e diretrizes
compõem uma rede educacional em torno de uma pro- curriculares, as leis, os documentos das políticas, os regi-
posta que é comum a todas as escolas e que, ao mesmo mentos e demais normas do sistema.
tempo, é construída por cada uma delas, segundo as suas Em contrapartida, existe um espaço e um tempo a se-
peculiaridades. rem construídos por todas as pessoas que fazem parte de
O Projeto Político Pedagógico é o instrumento por ex- uma instituição escolar, porque a escola não é uma estru-
tura pronta e acabada a ser perpetuada e reproduzida de
celência para melhor desenvolver o plano de trabalho eleito
geração em geração. Trata-se do INSTITUINTE.
e definido por um coletivo escolar; ele reflete a singulari-
A escola cria, nas possibilidades abertas pelo INSTI-
dade do grupo que o produziu, suas escolhas e especifici-
TUINTE, um espaço de realização pessoal e profissional que
dades.
confere à equipe escolar a possibilidade de definir o seu
Nas escolas inclusivas, a qualidade do ensino não se
horário escolar, organizar projetos, módulos de estudo e
confunde com o que é ministrado nas escolas-padrão, con-
outros, conforme decisão colegiada. Assim, confere auto-
sideradas como as que melhor conseguem expressar um nomia a toda equipe escolar, acreditando no poder criativo
ideal pedagógico inquestionável, medido e definido objeti- e inovador dos que fazem e pensam a educação.
vamente e que se apresentam como modelo a ser seguido
e aplicado em qualquer contexto escolar. As escolas-padrão 3.2. O PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO, AUTONO-
cabem na mesma lógica que define as escolas dos diferen- MIA E GESTÃO DEMOCRÁTICA
tes, em que as iniciativas para melhorar o ensino continuam
elegendo algumas escolas e valorando-as positivamente, Autora
em detrimento de outras. Cada escola é única e precisa ser, Maria Terezinha da Consolação Teixeira dos Santos
como os seus alunos, reconhecida e valorizada nas suas di-
ferenças. A constatação de que a realidade escolar é dinâmica e
depende de todos dá força e sentido à elaboração do PPP,
3.1. MUDANÇAS NA ESCOLA entendido não apenas como um mero documento exigido
pela burocracia e administração escolar, mas como registro
Para atender a todos e atender melhor, a escola atual de significados a serem outorgados ao processo de ensino
tem de mudar, e a tarefa de mudar a escola exige trabalho e de aprendizagem, que demanda tomada de decisões e
em muitas frentes. Cada escola, ao abraçar esse trabalho, acompanhamento de ações consequentes.
terá de encontrar soluções próprias para os seus proble- O PPP não pode ser um documento paralelo que não
mas. As mudanças necessárias não acontecem por acaso diz respeito, que não atravessa o cotidiano escolar e fica
e nem por Decreto, mas fazem parte da vontade política restrito à categoria de um arquivo ou de uma alegoria, de
do coletivo da escola, explicitadas no seu Projeto Político caráter residual. Ele altera a estrutura escolar e escrevê-lo e
Pedagógico - PPP e vividas a partir de uma gestão escolar arquivá-lo nos registros da escola só serve para acomodar
democrática. a consciência dos que não têm um verdadeiro compromis-
É ingenuidade pensar que situações isoladas são su- so com uma escola de todos, por todos e para todos.
ficientes para definir a inclusão como opção de todos os Nossa legislação educacional é clara no que toca à exi-
membros da escola e configurar o perfil da instituição. Não gência de a escola ter o seu PPP; ela não pode se furtar ao
se desconsideram aqui os esforços de pessoas bem-intencio- compromisso assumido com a sociedade de formação e de
nadas, mas é preciso ficar claro que os desafios das mudan- desenvolvimento do processo de educação, devidamente
ças devem ser assumidos e decididos pelo coletivo escolar. planejado.

156
BIBLIOGRAFIA

A exigência legal do PPP está expressa na LDBEN - Lei [...] Os sistemas de ensino definirão as normas da ges-
Nº. 9.394/96 que, em seu artigo 12, define, entre as atri- tão democrática do ensino público na educação básica, de
buições de uma escola, a tarefa de “[...] elaborar e executar acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguin-
sua proposta pedagógica”, deixando claro que ela precisa tes princípios: participação dos profissionais da educação
fundamentalmente saber o que quer e colocar em execu- na elaboração do projeto pedagógico da escola; participa-
ção esse querer, não ficando apenas nas promessas ou nas ção das comunidades escolar e local em conselhos escola-
intenções expostas no papel. res ou equivalentes.
Ao sistematizar estas escolhas e decisões, o PPP, a par- Nos textos legais, fica clara a ênfase dada ao Projeto
tir de um estudo da demanda da realidade escolar cria as Político Pedagógico de cada escola, bem como a reiteração
condições necessárias para a elaboração do planejamento de que a proposta seja construída e administrada à luz de
e o desenvolvimento do trabalho da sua equipe e da ava- uma gestão democrática.
liação processual das etapas e metas propostas. Outra legislação que vem corroborar nesse sentido
Para Gadotti e Romão (1997), o Projeto Político Peda- é o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Lei Nº.
gógico deve ser entendido como um horizonte de possibi- 8.069/90), que, no seu artigo 53, enfatiza os objetivos da
lidades para a escola. O Projeto imprime uma direção nos educação nacional, repetindo os princípios constitucionais
caminhos a serem percorridos pela escola. Ele se propõe e os da LDBEN, mas deixando claro em seu parágrafo único
a responder a um feixe de indagações de seus membros, que “[...] é direito dos pais ou responsáveis ter ciência do
tais como: qual educação se quer e qual tipo de cidadão processo pedagógico, bem como participar da definição
se deseja, para qual projeto de sociedade? O PPP propõe das propostas educacionais”. Evidencia-se na legislação
uma organização que se funda no entendimento compar- o caráter da comunidade escolar participativa e ampliada
tilhado dos professores, alunos e demais interessados em para além dos muros escolares, com compromisso conjun-
educação. to nos rumos da educação dos cidadãos. A gestão demo-
Todas as intenções da escola, reunidas no Projeto Polí- crática ampliada nos contornos da comunidade ganha, por
tico Pedagógico, conferem-lhe o caráter POLÍTICO, porque meio do texto legal, condições de ser exercida com auto-
ele representa a escolha de prioridades de cidadania em nomia.
função das demandas sociais. O PPP ganha status PEDA- Embora a escola não seja independente de seu sistema
GÓGICO ao organizar e sistematizar essas intenções em de ensino, ela pode se articular e interagir com autonomia
ações educativas alinhadas com as prioridades estabele- como parte desse sistema que a sustenta, tomando deci-
cidas. sões próprias relativas às particularidades de seu estabele-
O caráter coletivo e a necessidade de participação de cimento de ensino e da sua comunidade. Entretanto, mes-
todos é inerente ao PPP, pois ele não se resume a um mero mo outorgada por lei, a autonomia escolar é construída aos
plano ou projeto burocrático, que cumpre as exigências poucos e cotidianamente. Do ponto de vista cultural e edu-
da lei ou do sistema de ensino. Trata-se de um documen-
cacional, encontram-se poucas experiências de construção
to norteador das ações da escola que, ao mesmo tempo,
da autonomia e do cultivo de hábitos democráticos.
oportuniza um exercício reflexivo do processo para tomada
A democracia, frequentemente proclamada, mas nem
de decisões no seu âmbito.
sempre vivenciada nas redes de ensino, tem no PPP a opor-
O professor, portanto, ao contribuir para a elabora-
tunidade de ser exercida, e essa oportunidade não pode
ção do PPP, bem como ao participar de sua execução no
ser perdida, para que consiga espalhar-se por toda a insti-
cotidiano da escola, tem a oportunidade de exercitar um
tuição. Gadotti e Romão (1997) manifestam suas posições
ensino democrático, necessário para garantir acesso e per-
sobre a construção da democracia na escola e afirmam que
manência dos alunos nas escolas e para assegurar a inclu-
são, o ensino de qualidade e a consideração das diferenças esse tipo de gestão constitui um passo relevante no apren-
dos alunos nas salas de aula. Exercer esse papel como um dizado da democracia.
dos mentores do PPP não é uma obrigação formal, mas o Os professores constroem a democracia no cotidiano
resultado de um envolvimento pessoal do professor. Nesse escolar por meio de pequenos detalhes da organização da
sentido, vem antes a sua disposição de participar, porque prática pedagógica. Nesse sentido, fazem a diferença: o
contribuir é reconhecer a importância de sua colaboração modo de trabalhar os conteúdos com os alunos; a forma de
para que o projeto se execute. sugerir a realização de atividades na sala de aula; o controle
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 206, ex- disciplinar; a interação dos alunos nas tarefas escolares; a
plicita, como um dos princípios para a educação no Brasil, sistematização do AEE no contraturno; a divisão do horário;
“[...] a gestão democrática do ensino público”. Essa preo- a forma de planejar com os alunos; a avaliação da execução
cupação é reiterada na LDBEN (Lei nº 9394/96), no artigo das atividades de forma interativa.
3º, ao assinalar que a gestão democrática, além de estar Embora já tenhamos uma Constituição, estatutos, le-
em conformidade com a Lei, deve estar consoante à legis- gislação, políticas educacionais e decretos que propõem e
lação dos sistemas de ensino, pois como Lei que detalha viabilizam novas alternativas para a melhoria do ensino nas
a educação nacional, acrescenta a característica das varia- escolas, ainda atendemos a alunos em espaços escolares
ções dos sistemas nas esferas federal, estadual e municipal. semi ou totalmente segregados, tais como as classes espe-
Ainda nesse detalhamento, a LDBEN avança, no seu artigo ciais, as turmas de aceleração, as escolas especiais, as aulas
14, afirmando que: de reforço, entre outros.

157
BIBLIOGRAFIA

O salto da escola dos diferentes para a escola das di- O reconhecimento de que os alunos aprendem segun-
ferenças demanda conhecimento, determinação, decisão. do suas capacidades não surge de uma hora para a outra,
As propostas de mudança variam e dependerão de dispo- só porque as teorias assim afirmam. Acolher as diferenças
sição, discussões, estudos, levantamento de dados e inicia- terá sentido para o professor e fará com que ele rompa com
tivas a serem compartilhadas pelos seus membros, enfim, seus posicionamentos sobre o desempenho escolar padro-
de gestões democráticas das escolas, que favoreçam essa nizado e homogêneo dos alunos, se ele tiver percebido e
mudança. compreendido por si mesmo essas variações, ao se subme-
Muitas decisões precisam ser tomadas pelas escolas ter a uma experiência que lhe perpassa a existência. O pro-
ao elaborarem seus Projetos Político Pedagógicos, entre as fessor, então, desempenhará o seu papel formador, que não
quais destacamos algumas, que estão diretamente relacio- se restringe a ensinar somente a uma parcela dos alunos
nadas com as mudanças que se alinham aos propósitos da que conseguem atingir o desempenho exemplar esperado
inclusão: fazer da aprendizagem o eixo das escolas, garan- pela escola. Ele ensina a todos, indistintamente.
tindo o tempo necessário para que todos possam apren- O caráter de imprevisibilidade da aprendizagem é cons-
der; reprovar a repetência; abrir espaço para que a coope- tatado por professores que aproveitam as ocasiões para ob-
ração, o diálogo, a solidariedade, a criatividade e o espírito servar, abertamente e sem ideias pré-concebidas, a curio-
crítico sejam praticados por seus professores, gestores, sidade do aluno que vai atrás do que quer conhecer, que
funcionários e alunos, pois essas são habilidades mínimas questiona, duvida, que se detém diante do que leu, do que
para o exercício da verdadeira cidadania; valorizar e formar lhe respondemos, procurando resolver e encontrar a solu-
continuamente o professor, para que ele possa atualizar-se ção para o que lhe perturba e desafia com avidez, possuído
e ministrar um ensino de qualidade. pelo desejo de chegar ao que pretende.
É freqüente a escola seguir outros caminhos, adotando Ao se deixar levar por uma experiência de ensinar dessa
práticas excludentes e paliativas, que as impedem de dar o natureza, querendo entender o que ela revela e comparti-
salto qualitativo que a inclusão demanda. Elas se apropriam lhando-a com seus colegas, o professor poderá deduzir que
de soluções utilitárias, prontas para o uso, alheias à realida- certas práticas e aparatos pedagógicos, como os métodos
de de cada instituição educacional. Essas práticas admitem: especiais e o ensino adaptado para alguns alunos, não cor-
ensino individualizado para os alunos com deficiência e/ou respondem ao que se espera deles. Ambos provêm do con-
problemas de aprendizagem; currículos adaptados; termi- trole externo da aprendizagem, de opiniões que circulam
nalidade específica; métodos especiais para ensino de pes- e se firmam entre os professores, que são creditadas pelo
soas com deficiência; avaliação diferenciada; categorização conhecimento livresco e generalizado e pelas informações
e diferenciação dos alunos; formação de turmas escolares equivocadas que se naturalizam nas escolas e fora delas.
buscando a homogeneização dos alunos. Opor-se a inovações educacionais, resguardando-se
No nível da sala de aula e das práticas de ensino, a no despreparo para adotá-las, resistir e refutá-las simples-
mobilização do professor e/ou de uma equipe escolar em mente, distancia o professor da possibilidade de se formar
torno de uma mudança educacional como a inclusão não e de se transformar pela experiência. Oposições e contra-
acontece de modo semelhante em todas as escolas. Mes- posições à inclusão incondicional são freqüentes entre os
mo havendo um Projeto Político Pedagógico que oriente professores e adiam projetos do ensino comum e especial
as ações educativas da escola, há que existir uma entrega, focados na inserção das diferenças nas escolas.
uma disposição individual ou grupal de sua equipe de se É nos bancos escolares que se aprende a viver entre os
expor a uma experiência educacional diferente das que es- nossos pares, a dividir as responsabilidades, a repartir tare-
tão habituados a viver. Para que, qualquer transformação fas. Nesses ambientes, desenvolvem-se a cooperação e a
ou mudança seja, verdadeira, as pessoas têm de ser toca- produção em grupo com base nas diferenças e talentos de
das pela experiência. Precisam ser receptivas, disponíveis e cada um e na valorização da contribuição individual para a
abertas a vivê-la, baixando suas guardas, submetendo-se, consecução de objetivos comuns de um mesmo grupo.
entregando-se à experiência [...] sem resistências, sem se- A interação entre colegas de turma, a aprendizagem
gurança, poder, firmeza, garantias (BONDÍA, 2002). colaborativa, a solidariedade entre alunos e entre estes e o
As mudanças não ocorrem pela mera adoção de prá- professor devem ser estimuladas. Os professores, quando
ticas diferentes de ensinar. Elas dependem da elaboração buscam obter o apoio dos alunos e propõem trabalhos di-
dos professores sobre o que lhes acontece no decorrer da versificados e em grupo, desenvolvem formas de compar-
experiência educacional inclusiva que eles se propuseram tilhamento e difusão dos conhecimentos nas salas de aula.
a viver. O que vem dos livros e o que é transmitido aos A formação de turmas tidas como homogêneas é um
professores nem sempre penetram em suas práticas. A ex- dos argumentos de defesa dos professores, gestores e es-
periência a que nos referimos não está relacionada com o pecialistas em favor da qualidade do ensino, que precisa ser
tempo dedicado ao magistério, ao saber acumulado pela refutado, porque se trata de uma ilusão que compromete o
repetição de uma mesma atividade utilitária, instrumen- ensino e exclui alunos.
tal. Estamos nos referindo ao saber da experiência, que é A avaliação de caráter classificatório, por meio de notas,
subjetivo, pessoal, relativo, adquirido nas ocasiões em que provas e outros instrumentos similares, mantém a repetên-
entendemos e atribuímos sentidos ao que nos acontece, cia e a exclusão nas escolas. A avaliação contínua e qualita-
ao que nos passa, ao que nos sucede ao viver a experiência tiva da aprendizagem, com a participação do aluno, tendo,
(BONDÍA, 2002). inclusive, a intenção de avaliar o ensino oferecido e torná-

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BIBLIOGRAFIA

-lo cada vez mais adequado à aprendizagem de todos os As propostas curriculares, quando contextualizadas,
alunos conduz a outros resultados. A adoção desse modo reconhecem e valorizam os alunos em suas peculiaridades
de avaliar com base na qualidade do ensino e da aprendi- de etnia, de gênero, de cultura. Elas partem das vidas e ex-
zagem já diminuiria substancialmente o número de alunos periências dos alunos e vão sendo tramadas em redes de
que são indevidamente avaliados e categorizados como de- conhecimento, que superam a tão decantada sistematização
ficientes nas escolas comuns. do saber. O questionamento dessas peculiaridades e a visão
Os professores em geral concordam com novas alter- crítica do multiculturalismo trazem uma perspectiva para o
nativas de se avaliar os processos de ensino e de aprendi- entendimento das diferenças, a qual foge da tolerância e da
zagem e admitem que as turmas são naturalmente hete- aceitação, atitudes estas tão carregadas de preconceito e
rogêneas. Sentem-se, contudo, inseguros diante da possi- desigualdade.
bilidade de fazer uso dessas alternativas em sala de aula e O multiculturalismo crítico, segundo Hall (2003), um es-
inovar as rotinas de trabalho, rompendo com a organização tudioso das questões da pós-modernidade e das diferenças
pedagógica pré-estabelecida. na atualidade, é uma das concepções do multiculturalismo.
Ao contrário do que se pensa e se faz, as práticas es- Essa concepção questiona a exclusão social e demais formas
colares inclusivas não implicam um ensino adaptado para de privilégios e de hierarquias das sociedades contemporâ-
alguns alunos, mas sim um ensino diferente para todos, em neas, indagando sobre as diferenças e apoiando movimen-
que os alunos tenham condições de aprender, segundo suas tos de resistência dos dominados.
próprias capacidades, sem discriminações e adaptações. O multiculturalismo crítico toma como referência a li-
A idéia do currículo adaptado está associada à exclusão berdade e a emancipação e defende que a justiça, a demo-
na inclusão dos alunos que não conseguem acompanhar o cracia e a equidade não são dadas, mas conquistadas. Difere
progresso dos demais colegas na aprendizagem. Currículos do multiculturalismo conservador, em que os dominantes
adaptados e ensino adaptado negam a aprendizagem di- buscam assimilar as minorias aos costumes e tradições da
ferenciada e individualizada. O ensino escolar é coletivo e maioria.
deve ser o mesmo para todos, a partir de um único currícu- Outras práticas educacionais inclusivas que derivam dos
lo. É o aluno que se adapta ao currículo, quando se admitem propósitos de se ensinar à turma toda, sem discriminações,
e se valorizam as diversas formas e os diferentes níveis de por vezes são refutadas pelos professores ou aceitas com
parcimônia, desconfiança e sob condições. Motivos não fal-
conhecimento de cada um.
tam para que eles se comportem desse modo. Muitos rece-
A aprovação e a certificação por terminalidade específi-
beram sua própria formação dentro do modelo conservador,
ca, como propõe a LDBEN/1996, não faz sentido, quando se
que foi sendo reforçado dentro das escolas.
entende que a aprendizagem é diferenciada de aluno para
aluno, constituindo-se em um processo que não pode obe-
PARTE II
decer a uma terminalidade prefixada com base na condição
intelectual de alguns. 1. O ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO
Outra prática usual nas escolas é o ensino dos conteú- - AEE
dos das áreas disciplinares (Matemática, Língua Portuguesa,
Geografia, Ciências, etc.) como fins em si mesmos e tratados Uma das inovações trazidas pela Política Nacional de
de modo fragmentado nas salas de aulas. Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva
A afirmação da interdisciplinaridade é a afirmação, em (2008) é o Atendimento Educacional Especializado - AEE,
última instância, da disciplinarização: só poderemos desen- um serviço da educação especial que “[...] identifica, elabo-
volver um trabalho interdisciplinar se fizermos uso de várias ra e organiza recursos pedagógicos e de acessibilidade, que
disciplinas. [...] A interdisciplinaridade contribui para mini- eliminem as barreiras para a plena participação dos alunos,
mizar os efeitos perniciosos da compartimentalização, mas considerando suas necessidades específicas” (SEESP/MEC,
não significaria, de forma alguma, o avanço para um currí- 2008).
culo não disciplinar (GALLO, 2002, p. 28-29). O AEE complementa e/ou suplementa a formação do
Um currículo não disciplinar implica um ensino sem as aluno, visando a sua autonomia na escola e fora dela, consti-
gavetas das disciplinas, em que se reconhece a multiplicida- tuindo oferta obrigatória pelos sistemas de ensino. É realiza-
de das áreas do conhecimento e o trânsito livre entre elas. do, de preferência, nas escolas comuns, em um espaço físico
O ensino não disciplinar não deve ser confundido com os denominado Sala de Recursos Multifuncionais. Portanto, é
Temas Transversais dos Parâmetros Curriculares Nacionais, parte integrante do projeto político pedagógico da escola.
os quais não superam a disciplinarização, continuando a or- São atendidos, nas Salas de Recursos Multifuncionais,
ganizar o currículo em disciplinas, pelas quais perpassam alunos público-alvo da educação especial, conforme estabe-
assuntos de interesse social, como o meio ambiente, sexua- lecido na Política Nacional de Educação Especial na Perspec-
lidade, ética e outros. tiva da Educação Inclusiva e no Decreto N.6.571/2008.
Segundo Gallo (2002), transversalidade em educação e - Alunos com deficiência: aqueles [...] que têm impedi-
currículo não disciplinar tem a ver com processos de ensino mentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual
e de aprendizagem em que o aluno transita pelos saberes ou sensorial, os quais em interação com diversas barreiras,
escolares, integrando-os e construindo pontes entre eles, podem obstruir sua participação plena e efetiva na socie-
que podem parecer caóticas, mas que refletem o modo dade em igualdade de condições com as demais pessoas
como aprendemos e damos sentido ao novo. (ONU, 2006).

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BIBLIOGRAFIA

- Alunos com transtornos globais do desenvolvimento: como a especial constituem escolas dos diferentes, dividin-
aqueles que apresentam alterações qualitativas das intera- do os alunos em normais e especiais e estabelecendo uma
ções sociais recíprocas e na comunicação, um repertório de cisão entre esses grupos, que se isolam em ambientes edu-
interesses e atividades restrito, estereotipado e repetitivo. cacionais excludentes.
Incluem-se nesse grupo alunos com autismo, síndromes do A escola das diferenças aproxima a escola comum da
espectro do autismo e psicose infantil. (MEC/SEESP, 2008). Educação Especial, porque, na concepção inclusiva, os alu-
- Alunos com altas habilidades/superdotação: aqueles nos estão juntos, em uma mesma sala de aula. A articulação
que demonstram potencial elevado em qualquer uma das entre Educação Especial e escola comum, na perspectiva da
seguintes áreas, isoladas ou combinadas: intelectual, aca- inclusão, ocorre em todos os níveis e etapas do ensino bá-
dêmica, liderança, psicomotricidade e artes, além de apre- sico e do superior. Sem substituir nenhum desses níveis, a
sentar grande criatividade, envolvimento na aprendizagem integração entre ambas não deverá descaracterizar o que
e realização de tarefas em áreas de seu interesse (MEC/ é próprio de cada uma delas, estabelecendo um espaço de
SEESP, 2008). intersecção de competências resguardado pelos limites de
A matrícula no AEE é condicionada à matrícula no atuação que as especificam.
ensino regular. Esse atendimento pode ser oferecido em Para oferecer as melhores condições possíveis de inser-
Centros de Atendimento Educacional Especializado da rede ção no processo educativo formal, o AEE é ofertado prefe-
pública ou privada, sem fins lucrativos. Tais centros, contu- rencialmente na mesma escola comum em que o aluno es-
do, devem estar de acordo com as orientações da Política tuda. Uma aproximação do ensino comum com a educação
Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação especial vai se constituindo à medida que as necessidades
Inclusiva (2008) e com as Diretrizes Operacionais da Educa- de alguns alunos provocam o encontro, a troca de expe-
ção Especial para o Atendimento Educacional Especializado riências e a busca de condições favoráveis ao desempenho
na Educação Básica (MEC/SEESP, 2009). escolar desses alunos.
Na perspectiva da educação inclusiva, o processo de Os professores comuns e os da Educação Especial
reorientação de escolas especiais e centros especializados precisam se envolver para que seus objetivos específicos
requer a construção de uma proposta pedagógica que insti- de ensino sejam alcançados, compartilhando um trabalho
tua nestes espaços, principalmente, serviços de apoio às es-
interdisciplinar e colaborativo. As frentes de trabalho de
colas para a organização das salas de recursos multifuncio-
cada professor são distintas. Ao professor da sala de aula
nais e para a formação continuada dos professores do AEE.
comum é atribuído o ensino das áreas do conhecimento,
Os conselhos de educação têm atuação primordial no
e ao professor do AEE cabe complementar/suplementar a
credenciamento, autorização de funcionamento e organi-
formação do aluno com conhecimentos e recursos especí-
zação destes centros de AEE, zelando para que atuem den-
ficos que eliminam as barreiras as quais impedem ou limi-
tro do que a legislação, a Política e as Diretrizes orientam.
tam sua participação com autonomia e independência nas
No entanto, a preferência pela escola comum como o local
turmas comuns do ensino regular.
do serviço de AEE, já definida no texto constitucional de
1988, foi reafirmada pela Política, e existem razões para que As funções do professor de Educação Especial são
esse atendimento ocorra na escola comum. abertas à articulação com as atividades desenvolvidas por
O motivo principal de o AEE ser realizado na própria professores, coordenadores pedagógicos, supervisores e
escola do aluno está na possibilidade de que suas neces- gestores das escolas comuns, tendo em vista o benefício
sidades educacionais específicas possam ser atendidas e dos alunos e a melhoria da qualidade de ensino.
discutidas no dia a dia escolar e com todos os que atuam São eixos privilegiados de articulação:
no ensino regular e/ou na educação especial, aproximando - a elaboração conjunta de planos de trabalho durante
esses alunos dos ambientes de formação comum a todos. a construção do Projeto Pedagógico, em que a Educação
Para os pais, quando o AEE ocorre nessas circunstâncias, Especial não é um tópico à parte da programação escolar;
propicia-lhes viver uma experiência inclusiva de desenvol- - o estudo e a identificação do problema pelo qual um
vimento e de escolarização de seus filhos, sem ter de recor- aluno é encaminhado à Educação Especial;
rer a atendimentos exteriores à escola. - a discussão dos planos de AEE com todos os mem-
bros da equipe escolar; l o desenvolvimento em parceria de
2. ARTICULAÇÃO ENTRE ESCOLA COMUM E EDU- recursos e materiais didáticos para o atendimento do aluno
CAÇÃO ESPECIAL: AÇÕES E RESPONSABILIDADES em sala de aula e o acompanhamento conjunto da utiliza-
COMPARTILHADAS ção dos recursos e do progresso do aluno no processo de
aprendizagem;
Ao se articular com a escola comum, na perspectiva da - a formação continuada dos professores e demais
inclusão, a Educação Especial muda seu rumo, refazendo membros da equipe escolar, entremeando tópicos do
caminhos que foram abertos tempos atrás, quando se pro- ensino especial e comum, como condição da melhoria
punha a substituir a escola comum para alguns alunos que do atendimento aos alunos em geral e do conhecimento
não correspondiam às exigências do ensino regular. mais detalhado de alguns alunos em especial, por meio do
A mudança de rumos implica uma articulação de pro- questionamento das diferenças e do que pode promover a
pósitos entre a escola comum e a Educação Especial, ao exclusão escolar.
contrário do que acontece quando tanto a escola comum

160
BIBLIOGRAFIA

No caso do atendimento educacional especializado - A democracia se exercita e toma forma nas decisões
AEE, por exemplo, as dimensões do INSTITUÍDO podem conjuntas do coletivo da escola e se reflete nas iniciativas
ser identificadas na existência de leis, políticas, decretos, da equipe escolar. Nessa perspectiva, o AEE integra a ges-
diretrizes curriculares que chegam à escola definidas nos tão democrática da escola. No PPP, devem ser previstos a
documentos oficiais, dando contornos à sistematização da organização e recursos para o AEE: sala de recursos multi-
oferta desse serviço na escola comum. Na dimensão do funcionais; matrícula do aluno no AEE; aquisição de equi-
INSTITUINTE, muito pode ser criado nesse sentido: parce- pamentos; indicação de professor para o AEE; articulação
rias com setores da comunidade para a implementação de entre professores do AEE e os do ensino comum e redes de
Planos de AEE; organização dos horários de oferta do AEE apoio internos e externos à escola.
no horário oposto ao período escolar do aluno; projetos No caso da inexistência de uma sala de recursos mul-
escolares interdisciplinares que incluam a necessidade da tifuncionais na escola, os alunos não podem ficar sem este
tecnologia assistiva - TA; planejamento para alterações na serviço, e o PPP deve prever o atendimento dos alunos
acessibilidade física da escola e assim por diante. em outra escola mais próxima ou centro de atendimento
Do ponto de vista intraescolar, essas articulações educacional especializado, no contraturno do horário es-
colar. O AEE, quando realizado em outra instituição, deve
mostram o impacto, os efeitos, a pertinência, os limites e
ser acordado com a família do aluno, e o transporte, se
mesmo as distorções dos atendimentos que estão sendo
necessário, providenciado. Em tal situação, destaca-se, a
oferecidos aos alunos nas turmas comuns de ensino regu- articulação com os professores e especialistas de ambas as
lar e nos serviços de Educação Especial, entre os quais o escolas, para assegurar uma efetiva parceria no processo
atendimento educacional especializado - AEE. de desenvolvimento dos alunos.
No plano extra-escolar, quando a escola se articula O PPP prevê ações de acompanhamento e articulação
a outros serviços da comunidade, os efeitos dessas arti- entre o trabalho do professor do AEE e os professores das
culações se irradiam e se fazem sentir junto às famílias e salas comuns, ações de monitoramento da produção de
demais profissionais que atendem aos alunos, dando des- materiais didáticos especializados, bem como recursos ne-
taque à escola no seu entorno e na rede de ensino, pois cessários para a confecção destes. Além das condições para
fortalece a sua posição e representatividade no conjunto manter, melhorar e ampliar o espaço das salas de recursos
das demais unidades e instituições filiadas à educação. multifuncionais, inclui-se no PPP a previsão de outros tipos
Há ainda certa dificuldade de se articular serviços de recursos, equipamentos e suportes que forem indicados
dentro da escola. O que se entende equivocadamente por pelo professor do AEE ao aluno.
articulação entre a Educação Especial e a escola comum O PPP de uma escola considera, no conjunto dos seus
tem descaracterizado a interlocução entre ambas. Na pers- alunos, professores, especialistas, funcionários e gestores,
pectiva da educação inclusiva, os professores itinerantes, o as necessidades existentes, buscando meios para o aten-
reforço escolar e outras ações não constituem formas de dimento dessa demanda, a partir dos objetivos e metas a
serem atingidas. Ao delimitar os tempos escolares, o PPP
articulação, mas uma justaposição de serviços, que conti-
insere os calendários, os horários de turnos e contraturnos
nua incidindo sobre a fragmentação entre a Educação Es-
na organização pedagógica escolar, atendendo às diferen-
pecial e o ensino comum. tes demandas, de acordo com os espaços e os recursos
A efetivação dessa articulação é ensejada pela inser- físicos, humanos e financeiros de que a escola dispõe.
ção do AEE no Projeto Político Pedagógico das escolas. No caso do AEE, por fazer parte desta organização, o
Uma vez considerado esse serviço da Educação Especial PPP estipulará o horário dos alunos, oposto ao que fre-
como parte constituinte do Projeto, os demais eixos de ar- quentam a escola comum e proporcional às necessidades
ticulação entre ensino comum e especial serão envolvidos indicadas no plano de AEE; e o horário do professor, previs-
e contemplados, e o ensino comum e especial terão seus to para que possa realizar o atendimento dos alunos, pre-
propósitos fundidos em uma visão inclusiva de educação. parar material didático, receber as famílias dos alunos, os
O PPP já contém em si as premissas dessa articulação, que professores da sala comum e os demais profissionais que
podemos apreciar no que ocorre quando o AEE se torna estejam envolvidos.
um de seus tópicos. Enquanto serviço oferecido pela escola ou em parceria
com outra escola ou centro de atendimento especializado,
2.1. O PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO E O AEE o PPP estabelece formas de avaliar o AEE, de alterar prá-
ticas, de inserir novos objetivos e de definir novas metas
De acordo com as Diretrizes Operacionais da Educação visando ao aprimoramento desse serviço. Na operacio-
Especial para o Atendimento Educacional Especializado na nalização do processo de avaliação institucional, caberá à
gestão zelar para que o AEE não seja descaracterizado das
Educação Básica, publicada pela Secretaria de Educação
suas funções e para que os alunos não sejam categoriza-
Especial SEESP/MEC, em abril de 2009, o Projeto Político
dos, discriminados e excluídos do processo avaliativo utili-
Pedagógico da Escola deve contemplar o AEE como uma zado pela escola.
das dimensões da escola das diferenças. Nesse sentido, O PPP define os fundamentos da estrutura escolar e
é preciso planejar, organizar, executar e acompanhar os deve ser coerente com os propósitos de uma educação que
objetivos, metas e ações traçadas, em articulação com as acolhe as diferenças e, sendo assim, não poderá manter
demais propostas da escola comum. seu caráter excludente e próprio das escolas dos diferentes.

161
BIBLIOGRAFIA

2.1.1. A ORGANIZAÇÃO E A OFERTA DO AEE

O Decreto Nº. 6.571, de 17 de setembro de 2008, que


dispõe sobre o Atendimento Educacional Especializado,
destina recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento
da Educação Básica - FUNDEB ao AEE de alunos com de-
ficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas
habilidades/superdotação, matriculados na rede pública de
ensino regular, admitindo o cômputo duplo da matrícula
desses alunos em classes comuns de ensino regular pú-
blico e no AEE, concomitantemente, conforme registro no
Censo Escolar. Foto 1 - Mostra uma sala de recursos multifuncional e a
Esse Decreto possibilita às redes de ensino o investi- professora ensinando Língua Portuguesa escrita para crian-
mento na formação continuada de professores, na aces- ças com surdez. Esse ambiente apresenta recursos visuais
sibilidade do espaço físico e do mobiliário escolar, na fixados na parede.
aquisição de novos recursos de tecnologia assistiva, entre
outras ações previstas na manutenção e desenvolvimento Os planos de AEE resultam das escolhas do professor
do ensino para a organização e oferta do AEE, nas salas de quanto aos recursos, equipamentos, apoios mais adequa-
recursos multifuncionais. dos para que possam eliminar as barreiras que impedem o
As Diretrizes Operacionais para o Atendimento Educa- aluno de ter acesso ao que lhe é ensinado na sua turma da
cional Especializado (2009) reiteram que, no caso de a ofer- escola comum, garantindo-lhe a participação no proces-
ta do AEE ser realizada fora da escola comum, em centro de so escolar e na vida social em geral, segundo suas capaci-
atendimento educacional especializado público ou privado dades. Esse atendimento tem funções próprias do ensino
sem fins lucrativos, conveniado para essa finalidade, a ofer- especial, as quais não se destinam a substituir o ensino
ta conste também do PPP do referido centro. Eles devem comum e nem mesmo a fazer adaptações aos currículos,
seguir as normativas estabelecidas pelo Conselho de Edu- às avaliações de desempenho e a outros. É importante sa-
cação do respectivo sistema de ensino para autorização de lientar que o AEE não se confunde com reforço escolar.
funcionamento e seguir as orientações preconizadas nes-
O professor de AEE acompanha a trajetória acadêmica
tas Diretrizes, como ocorre com o AEE nas escolas comuns.
de seus alunos, no ensino regular, para atuar com autono-
Conforme as Diretrizes, para o financiamento do AEE
mia na escola e em outros espaços de sua vida social. Para
são exigidas as seguintes condições:
tanto, é imprescindível uma articulação entre o professor
a) matrícula na classe comum e na sala de recursos
de AEE e os do ensino comum.
multifuncional da mesma escola pública;
Na perspectiva da inclusão escolar, o professor da Edu-
b) matrícula na classe comum e na sala de recursos
multifuncional de outra escola pública; cação Especial não é mais um especialista em uma área
c) matrícula na classe comum e em centro de atendi- específica, suas atividades desenvolvem-se, preferencial-
mento educacional especializado público; mente, nas escolas comuns, cabendo-lhes, no atendimento
d) matrícula na classe comum e no centro de atendi- educacional especializado aos alunos, público-alvo da edu-
mento educacional especializado privado sem fins lucra- cação especial, as seguintes atribuições:
tivos. a) identificar, elaborar, produzir e organizar serviços, recur-
A organização do Atendimento Educacional Especia- sos pedagógicos, de acessibilidade e estratégias, consideran-
lizado considera as peculiaridades de cada aluno. Alunos do as necessidades específicas dos alunos de forma a construir
com a mesma deficiência podem necessitar de atendimen- um plano de atuação para eliminá-las (MEC/SEESP, 2009).
tos diferenciados. Por isso, o primeiro passo para se pla-
nejar o Atendimento não é saber as causas, diagnósticos,
prognóstico da suposta deficiência do aluno. Antes da de-
ficiência, vem a pessoa, o aluno, com sua história de vida,
sua individualidade, seus desejos e diferenças.
Há alunos que frequentarão o AEE mais vezes na sema-
na e outros, menos. Não existe um roteiro, um guia, uma
fórmula de atendimento previamente indicada e, assim
sendo, cada aluno terá um tipo de recurso a ser utiliza-
do, uma duração de atendimento, um plano de ação que
garanta sua participação e aprendizagem nas atividades
escolares.
Na organização do AEE, é possível atender aos alunos
em pequenos grupos, se suas necessidades forem comuns
a todos. É possível, por exemplo, atender a um grupo de
alunos com surdez para ensinar-lhes LIBRAS ou para o en- Foto 2 - Mostra equipamentos e materiais pedagógi-
sino da Língua Portuguesa escrita. cos para alunos com deficiência visual.

162
BIBLIOGRAFIA

b) Reconhecer as necessidades e habilidades do aluno.


Ao identificar certas necessidades do aluno, o professor de
AEE reconhece também as suas habilidades e, a partir de
ambas, traça o seu plano de atendimento. Se ele identifica
necessidade de comunicação alternativa para o aluno, in-
dica recursos como a prancha de comunicação, por exem-
plo; se observa que o aluno movimenta a cabeça, consegue
apontar com o dedo, pisca, essas habilidades são consi-
deradas por ele para a seleção e organização de recursos
educacionais e de acessibilidade.

Com base nesses dados, o professor elaborará o pla-


no de AEE, definindo o tipo de atendimento para o aluno,
os materiais que deverão ser produzidos, a frequência do Foto 5 - Exibe materiais produzidos com papel cartão
aluno ao atendimento, entre outros elementos constituin- para o ensino de LIBRAS. Cada imagem é acompanhada do
tes desse plano. Outros dados poderão ser coletados pelo sinal de Libras e da palavra em Língua Portuguesa.
professor em articulação com o professor da sala de aula e
demais colegas da escola. d) Elaborar e executar o plano de AEE, avaliando a
funcionalidade e a aplicabilidade dos recursos educacio-
nais e de acessibilidade (MEC/SEESP, 2009). Na execução
do plano de AEE, o professor terá condições de saber se o
recurso de acessibilidade proposto promove participação
do aluno nas atividades escolares. O plano, portanto, deve-
rá ser constantemente revisado e atualizado, buscando-se
sempre o melhor para o aluno e considerando que cada
um deve ser atendido em suas particularidades.
e) Organizar o tipo e o número de atendimentos (MEC/
SEESP, 2009). O professor seleciona o tipo do atendimento,
organizando, quando necessários, materiais e recursos de
modo que o aluno possa aprender a utilizá-los segundo
suas habilidades e funcionalidades. O número de atendi-
Foto 3 - Mostra um aluno com deficiência visual, utili- mentos semanais/mensais varia de caso para caso. O pro-
zando os recursos da informática acessível. fessor vai prolongar o tempo ou antecipar o desligamento
do aluno do AEE, conforme a evolução do aluno.
c) Produzir materiais tais como textos transcritos, ma- f) Acompanhar a funcionalidade e a aplicabilidade dos
teriais didático-pedagógicos adequados, textos ampliados, recursos pedagógicos e de acessibilidade na sala de aula
gravados, como, também, poderá indicar a utilização de comum do ensino regular, bem como em outros ambientes
softwares e outros recursos tecnológicos disponíveis. da escola (MEC/SEESP, 2009). O professor do AEE observa
a funcionalidade e aplicabilidade dos recursos na sala de
aula, as distorções, a pertinência, os limites desses recursos
nesse e em outros ambientes escolares, orientando, tam-
bém, as famílias e os colegas de turma quanto ao uso dos
recursos.
O professor de sala de aula informa e avalia juntamen-
te com o professor do AEE se os serviços e recursos do
Atendimento estão garantindo participação do aluno nas
atividades escolares. Com base nessas informações, são
reformuladas as ações e estabelecidas novas estratégias e
recursos, bem como refeito o plano de AEE para o aluno.

Foto 4 - Mostra uma aluna com paralisia cerebral em


sala de aula comum, fazendo uso da prancha de comuni-
cação alternativa.

163
BIBLIOGRAFIA

As parcerias intersetoriais e com a comunidade onde a


escola está inserida estão entre as prioridades do Projeto
Político Pedagógico, pois a educação não é apenas uma
área restrita aos órgãos do sistema educacional. Elas apa-
recem nas ações integradas da escola com todos os seg-
mentos da sociedade civil e da sociedade política dos Mu-
nicípios e Estados com as escolas.
Indicadores importantes das parcerias intersetoriais
são as ações desenvolvidas entre as escolas e as Secretarias
de Educação, de Saúde, Poder Executivo, Poder Legislativo,
Poder Judiciário, Ministério Público, instituições, empresas
e demais segmentos sociais. O PPP, ao propor essas parce-
Foto 6 - Mostra aluno no AEE aprendendo o uso do rias, está consubstanciado em uma visão de complemen-
leitor de tela. tação e de alinhamento da educação escolar com outras
instituições sociais.
g) Ensinar e usar recursos de Tecnologia Assistiva, tais No caso do AEE, faz parte do seu Plano a previsão, de-
como: as tecnologias da informação e comunicação, a co- senvolvimento e avaliação de ações sincronizadas com a
municação alternativa e aumentativa, a informática acessí- Saúde, Assistência Social, Esporte, Cultura e demais seg-
vel, o soroban, os recursos ópticos e não ópticos, os soft-
mentos. As parcerias fortalecem esse Plano, sem correr o
wares específicos, os códigos e linguagens, as atividades de
risco de perder o foco no AEE, na medida em que a parti-
orientação e mobilidade (MEC/SEESP, 2009).
cipação de outros atores amplia o caráter interdisciplinar
h) Promover atividades e espaços de participação da
família e a interface com os serviços de saúde, assistência do serviço.
social e outros (MEC/SEESP, 2009). O papel do professor do
AEE não deve ser confundido com o papel dos profissionais 2.1.2. A FORMAÇÃO DE PROFESSORES PARA O AEE
do atendimento clínico, embora suas atribuições possam
ter articulações com profissionais das áreas da Medicina, Para atuar no AEE, os professores devem ter formação
Psicologia, Fisioterapia, Fonoaudiologia e outras afins. Tam- específica para este exercício, que atenda aos objetivos da
bém estabelece interlocuções com os profissionais da ar- educação especial na perspectiva da educação inclusiva.
quitetura, engenharia, informática. Nos cursos de formação continuada, de aperfeiçoamen-
No decorrer da elaboração e desenvolvimento dos pla- to ou de especialização, indicados para essa formação, os
nos de atendimento para cada aluno, o professor de AEE se professores atualizarão e ampliarão seus conhecimentos
apropria de novos conteúdos e recursos que ampliam seu em conteúdos específicos do AEE, para melhor atender a
conhecimento para a atuação na Sala de Recursos Multi- seus alunos.
funcional. A formação de professores consiste em um dos objeti-
São conteúdos do AEE: Língua Brasileira de Sinais - LI- vos do PPP. Um dos seus aspectos fundamentais é a preo-
BRAS e LIBRAS tátil; Alfabeto digital; Tadoma; Língua Portu- cupação com a aprendizagem permanente de professores,
guesa na modalidade escrita; Sistema Braille; Orientação e demais profissionais que atuam na escola e também dos
mobilidade; Informática acessível; Sorobã (ábaco); Estimu- pais e da comunidade onde a escola se insere. Neste do-
lação visual; Comunicação alternativa e aumentativa - CAA; cumento, apresentam-se as ações de formação, incluindo
Desenvolvimento de processos educativos que favoreçam a os aspectos ligados ao estudo das necessidades específicas
atividade cognitiva. dos alunos com deficiência, transtornos globais de desen-
São recursos do AEE: Materiais didáticos e pedagógicos volvimento e altas habilidades/superdotação. Este estudo
acessíveis (livros, desenhos, mapas, gráficos e jogos táteis, perpassa o cotidiano da escola e não é exclusivo dos pro-
em LIBRAS, em Braille, em caracter ampliado, com contras- fessores que atuam no AEE.
te visual, imagéticos, digitais, entre outros); Tecnologias de À gestão escolar compete implementar ações que ga-
informação e de comunicação (TICS) acessíveis (mouses e
rantam a formação das pessoas envolvidas, direta ou in-
acionadores, teclados com colmeias, sintetizadores de voz,
diretamente, nas unidades de ensino. Ela pode se dar por
linha Braille, entre outros); e Recursos ópticos; pranchas de
meio de palestras informativas e formações em nível de
CAA, engrossadores de lápis, ponteira de cabeça, plano in-
clinado, tesouras acessíveis, quadro magnético com letras aperfeiçoamento e especialização para os professores que
imantadas, entre outros. atuam ou atuarão no AEE.
O desenvolvimento dos processos de ensino e de As palestras informativas devem envolver o maior nú-
aprendizagem é favorecido pela participação da família dos mero de pessoas possível: professores do ensino comum
alunos. Para elaborar e realizar os Planos de AEE, o professor e do AEE, pais, autoridades educacionais. De caráter mais
necessita dessa parceria em todos os momentos. Reuniões, amplo, essas palestras têm por objetivo esclarecer o que é
visitas e entrevistas fazem parte das etapas pelas quais os o AEE, como ele está sendo realizado e qual a política que
professores de AEE estabelecem contatos com as famílias o fundamenta, além de tirar dúvidas sobre este serviço e
de seus alunos, colhendo informações, repassando outras promover ações conjuntas para fazer encaminhamentos,
e estabelecendo laços de cooperação e de compromissos. quando necessários.

164
BIBLIOGRAFIA

Para a formação em nível de aperfeiçoamento e es- Entre as diversas metodologias, a Aprendizagem Co-
pecialização, a proposta é que sejam realizadas ações de laborativa em Redes - ACR, construída a partir da meto-
formação fundamentadas em metodologias ativas de dologia de Aprendizagem Baseada em Problemas, foi de-
aprendizagem, tais como Estudos de Casos, Aprendizagem senvolvida para um programa de formação continuada a
Baseada em Problemas (ABP) ou Problem Based Learning distância de professores de AEE. Seu foco é a aprendiza-
(PBL), Aprendizagem Baseada em Casos (ABC), Trabalhos gem colaborativa, o trabalho em equipe, contextualizado
com Projetos, Aprendizagem Colaborativa em Rede (ACR), na realidade do aprendiz.
entre outras. A ACR é composta de etapas que incluem trabalhos
Essas metodologias trazem novas formas de produção individuais e coletivos. As etapas compreendem a apre-
e organização do conhecimento e colocam o aprendiz no sentação, a descrição e a discussão do problema; pesqui-
centro do processo educativo, dando-lhe autonomia e res- sas em fontes bibliográficas para favorecer a compreensão
ponsabilidade pela sua aprendizagem por meio da identifi- do problema; apresentação de propostas de soluções para
cação e análise dos problemas e da capacidade para formu- o problema em foco; elaboração do plano de atendimen-
lar questões e buscar informações para responder a estas
to; socialização; reelaboração da solução do problema e
questões, ampliando conhecimentos.
do plano de atendimento; avaliação.
Tradicionalmente os cursos de formação continuada
A proposta de formação ACR prepara o professor para
são centrados nos conteúdos, classificados de acordo com
o critério de pertencimento a uma especificidade, tendo sua perceber a singularidade de cada caso e atuar frente a
organização curricular pautada num perfil “ideal” de aluno eles. Nesse sentido, a formação não termina com o curso,
que se deseja formar. Estes modelos de formação estão visto que a atuação do professor requer estudo e refle-
sendo cada vez mais questionados no contexto educacional xões diante de cada novo desafio. Finalizada a formação,
e algumas metodologias começam a surgir com a finalidade é importante que os professores constituam redes sociais
de romper com esta organização e determinismo. Tais me- para dar continuidade aos estudos, estudar casos, dirimir
todologias rompem com o modelo determinista de forma- dúvidas e socializar os conhecimentos adquiridos a partir
ção, considerando as diferenças entre os estudantes e apre- da prática cotidiana. Para contribuir com estas ações, a in-
sentando uma nova perspectiva de organização curricular. ternet disponibiliza várias ferramentas de livre acesso que
Zabala (1995) defende uma perspectiva de organização podem ser utilizadas pelos professores.
curricular globalizadora, na qual os conteúdos de aprendi- As tecnologias de informação e comunicação - TICs,
zagem e as unidades temáticas do currículo são relevantes em especial as tecnologias Web 2.0, possibilitam aos usuá-
em função de sua capacidade de compreender uma reali- rios o acesso às informações de forma rápida e constante.
dade global. Para Hernandez (1998), o conceito de conhe- Elas permitem a participação ativa do usuário na gran-
cimento global e relacional permite superar o sentido da de rede de computadores e invertem o papel de usuário
mera acumulação de saberes em torno de um tema. Ele consumidor para usuário produtor de conhecimento, de
propõe estabelecer um processo no qual o tema ou pro- agente passivo para agente ativo, o que pode ampliar as
blema abordado seja o ponto de referência para onde con- possibilidades dos programas de formação pautados em
fluem os conhecimentos. metodologias ativas de aprendizagem.
É neste contexto que surgem as metodologias ativas Estas e outras ferramentas possibilitam viabilizar a
de aprendizagem. Elas requerem uma mudança de atitude construção coletiva do conhecimento em torno das práti-
do docente. Uma delas refere-se à flexibilidade diante das cas de inclusão e, o mais importante, socializar estas práti-
questões que surgirão e dos conhecimentos que se cons- cas e fazer delas um objeto de pesquisa.
truirão durante o desenvolvimento dos trabalhos. Este pro-
cesso permite aos professores e aos alunos aprenderem a
PARTE III
explicar as relações estabelecidas a partir de informações
obtidas sobre determinado assunto e demonstra respeito
1. SALAS DE RECURSOS MULTIFUNCIONAIS
às diferentes formas e procedimentos de organização do
conhecimento.
Essas propostas colocam o aprendiz como protagonista As Salas de Recursos Multifuncionais são espaços lo-
do processo de ensino e aprendizagem e agrega valor edu- calizados nas escolas de educação básica, onde se realiza
cativo aos conteúdos da formação. Os conteúdos não se o Atendimento Educacional Especializado - AEE. Essas sa-
tornam à finalidade, mas os meios de ensino. As metodolo- las são organizadas com mobiliários, materiais didáticos e
gias ativas de aprendizagem têm como característica o fato pedagógicos, recursos de acessibilidade e equipamentos
de se desenvolverem em pequenos grupos e de apresenta- específicos para o atendimento aos alunos público alvo da
rem problemas contextualizados. Trata-se de um processo educação especial, em turno contrário à escolarização.
ativo, cooperativo, integrado e interdisciplinar. Estimula o O Ministério da Educação, com o objetivo de apoiar
aprendiz a desenvolver os trabalhos em equipe, ouvir outras as redes públicas de ensino na organização e na oferta
opiniões, a considerar o contexto ao elaborar as propostas do AEE e contribuir com o fortalecimento do processo de
das soluções, tornando-o consciente do que ele sabe e do inclusão educacional nas classes comuns de ensino, ins-
que precisa aprender. Motiva-o a buscar as informações re- tituiu o Programa de Implantação de Salas de Recursos
levantes, considerando que cada problema é um problema Multifuncionais, por meio da Portaria Nº. 13, de 24 de abril
e que não existem receitas para solucioná-los. de 2007.

165
BIBLIOGRAFIA

Nesse processo, o Programa atende a demanda das em função das cores contrastantes. O jogo foi feito em bor-
escolas públicas que possuem matrículas de alunos com racha e com retângulos em tamanho grande para permitir
deficiência, transtornos globais do desenvolvimento ou que crianças com dificuldades motoras possam jogar. Des-
superdotados/altas habilidades, disponibilizando as salas sa forma, o jogo permite a participação de todos.
de recursos multifuncionais, Tipo I e Tipo II. Para tanto,
é necessário que o gestor do município, do estado ou do
Distrito Federal garanta professor para o AEE, bem como o
espaço para a sua implantação.
As Salas de Recursos Multifuncionais Tipo I são consti-
tuídas de microcomputadores, monitores, fones de ouvido
e microfones, scanner, impressora laser, teclado e colmeia,
mouse e acionador de pressão, laptop, materiais e jogos
pedagógicos acessíveis, software para comunicação alter-
nativa, lupas manuais e lupa eletrônica, plano inclinado,
mesas, cadeiras, armário, quadro melanínico.

Foto 9 - Mostra o jogo acessível cara a cara, feito de


borracha recortada em retângulos.

b) Maquete da planta baixa: Uma maquete de plan-


ta baixa pode ser confeccionada com diferentes materiais,
como o papel cartão, o papel camurça e outros. Esse ma-
terial proporciona a percepção do ambiente, a orientação
espacial e a mobilidade.

Foto 7 - Mostra um aluno com deficiência física utili-


zando vocalizador em sala de aula comum.

As Salas de Recursos Multifuncionais Tipo II são cons-


tituídas dos recursos da sala Tipo I, acrescidos de outros
recursos específicos para o atendimento de alunos com
cegueira, tais como impressora Braille, máquina de dati-
lografia Braille, reglete de mesa, punção, soroban, guia de
assinatura, globo terrestre acessível, kit de desenho geo-
métrico acessível, calculadora sonora, software para produ- Foto 10 - Mostra maquete da planta baixa de uma es-
ção de desenhos gráficos e táteis. cola da rede pública de ensino. A maquete foi feita com
material simples, como o papel cartão e o papel camurça.
Ela está sobre uma mesa. Três pessoas estão sentadas e
uma delas tateia a maquete.

c) Máquina Braille

Foto 8 - Mostra materiais didático-pedagógicos inte-


grantes das salas de recursos multifuncionais.

1.1. CONHECENDO ALGUNS RECURSOS ACESSÍVEIS


a) Jogo Cara a Cara: O objetivo do jogo é encontrar a
outra cara igual a que o outro participante tem em mãos.
Crianças com cegueira têm a possibilidade de encontrar os Foto 11 - Mostra a professora do AEE ensinando o alu-
pares em função das texturas, e crianças com baixa visão, no com cegueira a usar a máquina de datilografia Braille.

166
BIBLIOGRAFIA

d) Jogo da velha e dominó: Estes jogos são constituí- g) Aranha-mola: O recurso da tecnologia assistiva de-
dos de peças e tabuleiro em diferentes materiais, texturas, nominado Aranha-mola é produzido com um arame reves-
cores e formas geométricas que permitem acessibilidade tido, onde os dedos e a caneta são encaixados. O objetivo
para alunos com cegueira ou com baixa visão. deste recurso é estabilizar ou auxiliar nos movimentos de
pessoas com deficiência física nas atividades em que utili-
zam lápis, caneta ou pincel.

Foto 12 - Mostra o jogo da velha e de dominó feito de


madeira, em cores contrastantes.

e) Teclado com colmeia: A colmeia é um recurso da tec- Foto 15 - Mostra um aluno escrevendo com caneta en-
nologia assistiva feita em acrílico transparente com furos caixada na aranha-mola.
coincidentes às teclas do teclado comum. A colmeia facilita
a digitação do aluno com dificuldade motora. Considerações Finais

A garantia de acesso, participação e aprendizagem de


todos os alunos nas escolas contribui para a construção de
uma nova cultura de valorização das diferenças. Este fascí-
culo destacou em seus tópicos a importância de se rever a
organização pedagógica e administrativa das escolas para
que estas possam tornar-se espaços inclusivos.
Do ponto de vista da escola comum, ressaltou-se o
papel do Projeto Político Pedagógico como instrumento
orientador desses espaços e a participação e comprome-
timento dos professores na elaboração e execução desse
Projeto. Quanto à Educação Especial, reiteramos a neces-
sidade de esta modalidade de ensino ser parte integrante
Foto 13 - Mostra um teclado com colmeia para uso do do PPP, para que seus serviços possam ser implementados
aluno com dificuldades motoras. na perspectiva da educação inclusiva, como prevê a Política
Nacional da Educação Especial.
f) Mouse e acionador de pressão: O acionador de pres- O entrelaçamento dos serviços de Educação Especial,
são, conectado ao mouse, é utilizado por alunos com de- entre os quais o Atendimento Educacional Especializado,
ficiência física. Por exemplo, em casos em que os alunos conjuga igualdade e diferenças como valores indissociáveis
apresentam amputação de braços, o acionador poderá ser e como condição de acolher a todos nas escolas. As ações
ativado com o queixo ou, se o aluno apresenta dificuldades para consolidação do AEE exigem firmeza e envolvimento
motoras nas mãos, o acionador poderá ser ativado com o de todos os que estão se empenhando para que as escolas
movimento do cotovelo. se tornem ambientes educacionais plenamente inclusivos.
Nessa caminhada em favor de uma escola para todos,
a educação especial brasileira tem tomado decisões e ini-
ciativas que surpreendem pela ousadia de suas propostas e
coerência de seus posicionamentos com o que nossa Cons-
tituição de 1988 prescreve como direito à educação.
A possibilidade de inventar o cotidiano (CERTEAU,
1994) tem sido a saída adotada pelos que colocam sua
capacidade criadora para inovar, romper velhos acordos,
resistências e lugares eternizados na educação. É a deter-
minação e um forte compromisso com a melhoria da qua-
lidade da educação brasileira que está subjacente a todas
Foto 14 - Mostra um mouse com o acionador de pres- essas mudanças que estão propostas pela Política atual da
são conectado. Educação Especial.

167
BIBLIOGRAFIA

Tendo em vista que esse referencial teórico-metodoló-


TFOUNI, L.V. LETRAMENTO E gico procura compreender o modo como um objeto sim-
ALFABETIZAÇÃO. 2ª EDIÇÃO, SÃO PAULO: bólico produz sentidos, não a partir de um gesto automáti-
co de decodificação, mas como um procedimento que des-
CORTEZ, 1997.
venda a historicidade na linguagem em seus mecanismos
imaginários, vale ressaltar que o fragmentário, o disperso,
o incompleto e a opacidade também são de domínio da
Temos observado que, no sistema atual de ensino, o reflexão discursiva.
vocábulo letramento tem sido freqüentemente utilizado Dentre os conceitos básicos da análise do discurso de
por professores de educação infantil, ensino fundamental, “linha” francesa interessam, particularmente, para este es-
pedagogos, orientadores educacionais e coordenadores tudo, os de formações ideológicas, formações discursivas,
pedagógicos, bem como por psicólogos, psicopedagogos sentido e protagonistas do discurso.
e fonoaudiólogos, para ficarmos no âmbito de profissionais No que diz respeito às formações ideológicas, po-
que, de uma forma ou de outra, têm suas atenções voltadas demos afirmar, com base em Haroche, Henry e Pêcheux
para os anos iniciais de educação formal. (1971), que “(...) elas constituem um conjunto complexo de
Assim, é comum ouvirmos frases como: “Os alunos atividades e representações, que não são nem individuais,
desta classe são iletrados, precisam ser alfabetizados com nem universais, mas se reportam mais ou menos direta-
urgência”; “A coordenadora pedagógica disse que o mais mente às posições de classe, em conflito umas com as ou-
importante é que a criança seja letrada, não precisa saber tras” (p. 102). Dessas formações ideológicas fazem parte,
tabuada, mas tem que saber ler corretamente “; “O letra- enquanto componentes, uma ou mais formações discursi-
mento é a salvação da lavoura, porque se o aluno for letra- vas interligadas.
do ele saberá interpretar um texto; vai escrever muito, vai As formações discursivas, por sua vez, são concebidas
entender Matemática, Ciências, tudo, etc.” por Pêcheux (1990) como aquilo que, “(...) numa formação
Discursos como os acima apresentados, a observação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa
de que muitos cursos e palestras envolvendo o tema (letra- conjuntura dada, determinada pelo estado de luta de clas-
mento) têm sido constantemente ministrados, bem como ses, determina o que pode e deve ser dito”, (p. 160).
o fato de muitos autores de livros didáticos de português Dentro desse contexto, gostaríamos de destacar que,
discorrerem sobre o assunto nos manuais de orientação ao na perspectiva discursiva, os sentidos não nascem “do
professor e, ainda, a abordagem sobre letramento, apresen- nada”, eles são, isto sim, sócio-historicamente construídos.
tada nos Parâmetros Curriculares Nacionais - P.C.N(s), ou Decorre daí o porquê de Pêcheux (op. cit) afirmar que o
seja, “(...) como produto da participação em práticas sociais sentido de uma palavra, expressão, proposição, não existe
que usam a escrita como sistema simbólico e tecnologia” em si mesmo (isto é, em sua relação transparente, com a
(1997, p.23) - motivou-nos a investigar como o termo letra- literalidade do significante), mas é determinado pelas for-
mento tem sido tratado pela e na instituição escolar, assim
mações ideológicas, colocadas em jogo no processo só-
como as conseqüências e implicações para uma prática pe-
cio-histórico em que as palavras, expressões e proposições
dagógica de ensino de leitura e escrita decorrentes desse
são produzidas (isto é, reproduzidas). Buscando sintetizar
tratamento, nas séries iniciais do ensino fundamental.
sua explicitação, o autor coloca que
Para alcançar nosso objetivo, ou seja, verificar os enfo-
“(...) as palavras, as proposições, mudam de sentido
ques de letramento que atualmente circulam na escola e as
segundo posições sustentadas por aqueles que as empre-
práticas pedagógicas que se efetivam a partir desses enfo-
gam, o que significa que eles tomam seu sentido em refe-
ques, valemo-nos dos postulados teóricos e metodológicos
da análise do discurso de “linha” francesa e dos trabalhos de rência a estas posições, isto é, em referência às formações
Tfouni (1994,1995,1996) sobre letramento e alfabetização. ideológicas nas quais essas posições se inscrevem (...)”.(id.
Cumpre ressaltar, por fim, que este trabalho não se res- ibidem, p. 160).
tringe a denunciar os usos (e abusos) do vocábulo letra- Diante disso destacamos que uma das principais con-
mento, mas se preocupa também em apresentar propostas tribuições de Pêcheux (1990) está no fato de ver nos pro-
teóricas que possam contribuir com os educadores de ma- tagonistas do discurso não a presença física de “organis-
neira geral, no sentido de levá-los a refletir sobre sua prática mos humanos individuais”, “(...) mas a representação de
pedagógica. “lugares” determinados na estrutura de uma forma social
Apresentaremos, a seguir, uma breve discussão teórica (...)” (id. ibidem, p. 178). Dessa forma, no interior de uma
sobre esses referenciais, que nos ajudarão a refletir sobre as instituição escolar há o “lugar” do diretor, do professor, do
questões relativas ao letramento. aluno, cada um marcado por propriedades diferenciais.
Essa teoria crítica da linguagem - a análise do discurso Considerando os conceitos acima destacados, acredi-
de “linha” francesa -, que propõe fazer confluírem conhe- tamos que não podemos deixar de nos posicionar critica-
cimentos lingüísticos, sócio-históricos e ideológicos, busca mente em relação aos diversos enfoques sobre letramento
tratar da determinação histórica dos processos de signi- que, atualmente, circulam na instituição escolar, uma vez
ficação, contrapondo-se à análise do conteúdo, praticada que estes, como veremos mais adiante, além de serem to-
pelas ciências humanas, que concebe o texto em sua trans- mados como verdades inquestionáveis, acarretam situa-
parência e, portanto, considera relevantes questões como: ções de ensino-aprendizagem da leitura e da escrita cansa-
“o que o autor quis dizer?”; “qual a mensagem do texto?” tivas e desestimulantes, porque caracterizadas por técnicas

168
BIBLIOGRAFIA

e procedimentos de ensino que transformam o aluno em e valores’. A relação pedagógica, cerne da efetivação da
receptor passivo, copista e reprodutor de sentidos que não formação humana, é mediada pela própria realidade, pois
lhe dizem coisa alguma. nela se ‘dialoga’ sobre o mundo real”. (Trechos do Prefácio,
Dentro disso, é oportuno assinalar as considerações de por Antonio Joaquim Severino).
Orlandi (1987) sobre os processos parafrástico e polissêmi-
co, desenvolvidas pela autora a partir de uma concepção Esta obra visa:
de linguagem como discurso. No que concerne ao proces- -Possibilitar uma tomada de consciência dos pressu-
so parafrástico de linguagem, podemos dizer que ele nasce postos implícitos na prática pedagógica
da reiteração de sentidos ideológica e institucionalmente -Fazer a crítica da relação pedagógica de cunho tradi-
cristalizados porque considerados legítimos e cabíveis. A cional, alienado
paráfrase, entendida como matriz de sentido, segundo Or- -Despertar para a necessidade de superar a relação
landi (op. cit.), relaciona-se com a fixidez e estabilização pedagógica baseada na mera justaposição, em direção à
dos sentidos. O processo polissêmico, por sua vez, permi- interação
te a tematização do descolocamento daquilo que na lin- -Trabalhar os fundamentos da Metodologia Dialética
guagem representa o garantido, o sedimentado. Falar em de Construção do Conhecimento em Sala de Aula, estabe-
processo polissêmico é falar sobre o diferente, o novo, o lecendo alguns princípios norteadores da prática pedagó-
múltiplo, o inusitado, enfim. gica.
Apresentada a fundamentação teórica que sustenta
nossa investigação e dando continuidade ao nosso estudo A MOBILIZAÇÃO PARA O CONHECIMENTO
sobre o letramento, deter-nos-emos, a partir de agora, nos Não há aprendizagem sem o interesse do aluno em
esclarecimentos referentes à metodologia de análise dos aprender.
dados. Para que um determinado objeto se torne objeto de
Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_art- conhecimento é imprescindível que o aluno esteja mobili-
text&pid=S0103-863X1999000200004 zado para conhecê-lo. É preciso que o aluno tenha mobi-
lidade para tal, tendo a intenção de conhecer esse objeto
desconhecido. E o ato da mobilização para o conhecimento
do objeto exige do sujeito uma carga energética física e
VASCONCELLOS, CELSO DOS S. psíquica durante todo o processo. É importante ressaltar
CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO EM que durante essa aprendizagem também estão presentes
SALA DE AULA. SÃO PAULO. LIBERTAD, cargas afetivas em torno do objeto a ser conhecido, e que
2002 - CENTRO DE PESQUISA, FORMAÇÃO E essas cargas não podem ser demasiadas, pois assim pode-
ASSESSORIA PEDAGÓGICA. 14ª EDIÇÃO rá ocasionar distúrbios, em virtude da grande ansiedade de
quem quer conhecer o objeto.
Para que o sujeito conheça o objeto também é de
grande necessidade aborda-lo, e nesse sentido podemos
CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO EM SALA DE dizer que não há possibilidade de conhecimento do objeto
AULA se ele estiver ausente do sujeito.
Mas para o sujeito construir o seu conhecimento a res-
“O conhecimento é a grande categoria do processo peito de um objeto qualquer é preciso também que esse
educacional. É estratégia fundamental e privilegiada de vida, objeto tenha significado para o sujeito. Mesmo um simples
de uma vida práxica que se constrói, histórica e socialmente, significado no primeiro momento já é o suficiente. O que
no cotidiano que emoldura a catalisa nossas experiências. O vale é prender o aluno ao objeto, para que no segundo
conhecimento é mediação central do processo educativo. E momento ele desperte mais desejo de conhecê-lo, se este
aí ele se constrói concretamente, supondo evidentemente fizer parte das suas necessidades. Nesse sentido, podemos
intencionalidade, metodologia e planejamento”. afirmar que a mobilização é o caminho e a meta é o signi-
“Celso Vasconcellos vem trazer, através deste livro, uma ficado que o objeto tem para o sujeito.
valiosa contribuição, na medida em que coloca e desenvol- Em se tratando da mobilização para o conhecimento,
ve esta discussão, não mais num plano puramente espe- podemos dizer que nenhum sujeito se debruçará horas a
culativo, mas naquele plano bem concreto e imediato da fio sobre um objeto que não satisfaça as suas necessidades
prática real do educador. É isso mesmo: sem perder, em ne- num sentido bem amplo. E isto é o grande problema que
nhum momento, o apoio rigoroso de seus referenciais teó- enfrentamos na sala de aula hoje em dia – não consegui-
ricos, a exposição/ reflexão de Celso parte da experiência mos despertar a atenção dos nossos alunos porque não
concreta do trabalho pedagógico na sala de aula, onde ele estamos oferecendo para eles objetos que satisfaçam as
acontece de maneira efetiva e imediata. A abordagem de- suas necessidades, as suas curiosidades.
senvolvida pelo autor já é uma experiência muito palpável Partindo-se do princípio da dialética da mobilização,
da unidade profunda dos processos envolvidos na relação concordamos plenamente que ninguém motiva ninguém,
educacional. Com razão, afirma que é na sala de aula que ninguém se motiva sozinho, os sujeitos se motivam em co-
‘o professor tem sua prática, seleciona conteúdos, passa munhão, mediados pela realidade – parafraseado de Paulo
posições políticas, ideológicas, transmite e recebe afetos Freire.

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BIBLIOGRAFIA

Já os professores adeptos da linha pedagógica tradi- Sendo assim, a intencionalidade do educador, que
cional não aplicam a dialética da mobilização em sala de aponta a real definição sobre o seu papel, deixa de existir
aula. Eles têm uma visão equivocada sobre o que é cons- e, consequentemente, a intencionalidade do sujeito/aluno
trução do conhecimento. Para esses professores o caráter também não tem sentido.
reflexivo e ativo dos alunos em torno do objeto não tem
significância, e basta que esses alunos estejam em sala de CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO
aula, pois sendo assim eles acham que os alunos já podem Consiste em possibilitar que o aluno faça o confron-
estar motivados. to direto com o objeto, de forma a apreendê-lo em suas
relações internas e externas. Tal procedimento deve per-
Articulação realidade-Objeto-Mediação mitir que o aluno estabeleça relações de causa e efeito e
Para que o educando, sujeito conhecedor ou transfor- compreenda o essencial. Quanto mais abrangentes essas
mador do objeto, no processo de mobilização para o co- relações forem, melhor o aluno as compreenderá.
nhecimento, tenha sucesso na sua empreitada a favor das É exatamente o momento em que o aluno, no seu es-
tudo, passa a conhecer o objeto e tirar conclusões sobre
descobertas, é necessário que a sua ação seja consciente e
tal, para assim poder construir novos conhecimentos sobre
voluntária, tão quanto necessária seja a do professor.
o mesmo.
É preciso, nesse sentido, que o professor conheça a
É nesse momento que o aluno vai conhecer o objeto a
realidade dos seus alunos, suas necessidades, para assim
ser estudado, mas com a ajuda do professor. Nenhum de-
poder traçar a mobilização para o conhecimento e ter co- ver toma partido de um aprendizado isolado. Os dois, “em
nhecimento de onde quer chegar. Somente assim o traba- comunhão,” devem interagir constantemente em torno do
lho da metodologia dialética poderá ter sucesso. objeto e a realidade.
Conhecer a realidade do aluno é um ponto de partida Sendo assim, o professor, ao invés de dar o conheci-
muito importante se quisermos realmente buscar a mobi- mento pronto para o aluno, mobiliza-o, estimula-o para
lização. Mas uma realidade concreta e vista pelos olhos da que ele mesmo possa buscar o conhecimento e refletir so-
razão, desprezando a realidade empírica que corresponde bre o mesmo, com o auxilia da ajuda do professor.
a somente o superficial das coisas.
Portanto, para que isso ocorra, o primeiro passo seria a Processo de conhecimento em sala de aula
prática social comum a professor e aluno. Apesar da mobilização do sujeito ser uma característica
Para o educador construtivista é importante ressaltar para conhecer os objetos, ainda somente isto não é neces-
a presença da psicogênese durante o processo de conhe- sário para eu haja a construção do conhecimento. A ação
cimento, no qual estão interrelacionados a infraestrutura do sujeito sobre o objeto a ser conhecido é a necessidade
orgânica, o cérebro, o amadurecimento da função e as re- primordial. Isto posto, podemos dizer que o importante
lações sociais. então não é só motivar, mas colocar o sujeito a par da cons-
O homem é geneticamente social, mas ele também é trução do conhecimento. E para isso o aluno deve ter em
social e o seu conhecimento é produto da inteligência. conta que a contradição é o núcleo para que isso ocorra.
A forma de conhecer as coisas tem elementos diferen- O homem deve ser ativo para superar as contradições, as
ciados, mesmo apresentando estrutura básica semelhantes. dúvidas em torno do objeto. Se não houver as contradições
Vejamos que em certa fase da vida a criança pode deixar de não teria sentido algum a construção do conhecimento. A
entender algo que para o homem na sua fase adulta seja contradição deve existir para que seja superada, em torno
tão óbvio, tão comum! Às vezes os adultos não percebem da ideia que há entre o objeto e o sujeito.
certas coisas, mas nem por isso elas deixam de existir! Diante do exposto, o papel do professor seria esta-
Durante o processo de ensino-aprendizagem é muito belecer a contradição, tendo em vista as representações
mentais que o aluno tem consigo. Mas essa negação não
comum observarmos educadores que pulam/queimam as
é o simples fato de dizer “não” para o vazio, uma negação
etapas da aprendizagem – os professores ao invés de se
sem sentido. É uma negação/contradição que provoque o
prenderem aos pormenores iniciais sobre o assunto, vão
aluno a sair do seu estado de inércia e se mobilize através
logo, para o que eles dizem “ao que interessa”. É o que da expressão do seu pensamento, criticando a realidade
chamamos de técnica do atalho. Isso bloqueia o raciocínio dos fatos existenciais. Para isso o professor tem que ter em
lógico do aluno, tendo em vista que a aprendizagem é um mente os conhecimentos já adquiridos pelos alunos, afinal
processo visto em fazes. o aluno tem um quadro de significados e uma gama de
Uma característica da mobilidade para o conhecimento conhecimentos anteriores que precisam ser aprimorados.
é a clareza dos objetivos. Mas não tratamos aqui dos ob- A vontade de vencer a contradição sempre existente
jetivos mecânicos que não despertam o sujeito para o co- entre o sujeito e o objeto é uma luta constante dos ho-
nhecimento, e sim, de objetivos que satisfaçam realmente mens. Mas essa contradição pode sofrer interferências no
as necessidades dos alunos. estabelecimento. Às vezes o sujeito não se sente desafiado
Infelizmente os objetivos traçados pelas escolas só por uma contradição porque está mais ligado em outra –
atendem às regras do sistema, tendo como prioridade o deslocamento de contradição. Em outro momento o su-
programa conteudista, o que o diretor quer e o que possi- jeito esquece certa contradição e vai à busca daquela que
velmente poderá cair no vestibular. Desse modo fica difícil mais lhe interessa, esquecendo as demais – bloqueio de
educar para a vida! contradição.

170
BIBLIOGRAFIA

Para a construção de conhecimentos pautada na visão No processo ensino-aprendizagem o professor não


libertadora a criticidade deve fundamentalmente existir. pode fazer sozinho a tarefa. Não pode fazer pelo aluno, mas
Como poderia o professor entrar em contradição com o alu- também o aluno não pode realizar suas atividades sozinho.
no se este estivesse no senso comum? O aluno, nesse caso, O professor deve sim, ser o mediador na construção do co-
permaneceria numa passividade e longe de ser um sujeito crí- nhecimento, estimulando o aluno a dar passos mais largos
tico e pensante. Mas a criticidade a que me refiro não é aquela em busca de novos horizontes. Esta sim, é que deveria ser a
que somente fala mal das coisas ao nosso redor, e sim, aquela forma de trabalho em sala de aula. Além disso, o professor
que questiona a realidade, a razão de ser das coisas. deve provocar o aluno a pensar, criticar, estar sempre com o
Uma das tarefas mais difíceis para o educador é trazer o pensamento em atividade. Deve dispor de objetos e dar con-
sujeito/aluno do senso comum – estado sincrético – para o dições para que o aluno tenha rendimento naquilo que ele se
senso crítico – análise e síntese do conhecimento. O proble- debruça para conhecer. Deve interagir com o seu aluno em
ma aqui é denominado de continuidade e ruptura. busca de soluções para os problemas propostos.
Mas o certo é que o educador deve partir do ponto A problematização caracteriza a construção do conheci-
onde o educando se encontra para então, a partir daí, pro- mento no momento em que o sujeito vive sendo desafiado
curar estimular o conhecimento do aluno, através de aná- pela natureza para poder transformá-la. O sujeito encontra
lises sobre o objeto até então desconhecido. E, para isso, problemas para conhecer ou transformar o objeto. E são
é grandiosa a importância que teremos de dar às aproxi- justamente esses problemas o motor principal que faz com
mações sucessivas acerca do objeto a ser estudado, afinal a que o sujeito seja motivado para o desafio de construir mais
construção do conhecimento em torno de um objeto não se conhecimentos em torno do objeto de estudo.
dá de uma só vez.
Aos nos aproximarmos de um objeto teremos a opor- Estabelecendo a contradição
tunidade de conhecê-lo, feito isto é hora de analisá-lo com Estabelecer contradição representa um passo primor-
persistência e demora. Somente depois disso podemos fazer dial para a constante busca da construção do conhecimen-
a síntese sobre o objeto estudado. to. Pela problematização o professor deve sempre adotar
Para que o educando tenha conhecimento pleno da rea- a contradição, confrontando-a como o conhecimento ele-
lidade ele deve analisar o objeto o qual pretende conhecer mentar ou parcialmente apropriado que o aluno tem. E isso
na sua totalidade. Mas não é isso que as escolas pregam. A traz a possibilidade de ganho de conhecimento por parte
escola é organizada em disciplinas e com a função de “vo- do aluno, transpondo-lhe do senso comum para o senso
mitar” conteúdos e mais conteúdos, deixando a desejar na crítico. E sendo assim, ao invés do professor sobrecarregar
relação sujeito e realidade social. a memória dos alunos com questões fúteis que não trazem
Para a práxis pedagógica podemos afirmar que não significado algum para os alunos, ele devia persistir no le-
existe aprendizagem passiva. Toda prática de aprendizagem vantamento de situação problema, para que os alunos se-
exige ação ativa por parte de quem quer conhecer o objeto. jam estimulados a refletir/penar sobre algum tema-proble-
E nessa prática ativa não basta somente prestar atenção ao ma. Sendo assim, os alunos tentarão resolver o problema
que o professor fala, pois, sendo assim o ato de agir, contes- e, caso não consigam, o professor dá um ajuda e o enca-
tar ficaria no esquecimento, dando lugar à passividade por minham novamente para a continuidade da resolução do
parte de aluno. O aluno deve comparar levantar hipóteses, problema. O importante é se ligar no problema.
duvidar, questionar, julgar, dar solução aos problemas, pois A respeito do planejamento das aulas, o professor de-
só assim ele estará desenvolvendo o que nós chamamos de veria estimular muito mais a criatividade dos alunos, lendo
operações mentais. textos e pedindo que tirassem a ideia central dos mesmos e
Na metodologia dialética o que se pretende é uma prá- interrogando sobre dúvidas acerca do conteúdo abordado,
tica pedagógica que tenha sentido e que seja de alto grau ao invés de ficar no círculo vicioso da tarefa mecanizada.
de significância. Não bastam somente as tarefas. Fazer as ta- No ato do planejamento ou elaboração das aulas, o
refas só pó fazer, quando o aluno está condicionado a notas professor deve estar preocupado com o movimento do real,
não é uma prática educativa decente. A escola deve procurar esquecendo, portanto, do movimento do conceito. Uma
uma ação consciente: intencionalidade do sujeito. É preciso coisa é o professor conceituar para os alunos algo que pode
que o aluno queira fazer, tenha intenção de fazer. Nada for- estar ligado à realidade. Outra coisa é o professor tentar
çado tem sentido positivo. conceituar para esses mesmos alunos uma expressão quí-
Quanto às tarefas, é ideal que não olhemos para os tipos mica muito distante das experiências vividas por esses alu-
de atividades e sim observemos se elas representam algo de nos. O professor jamais deverá ser escravo dos programas
concreto. Que seja uma atividade que exija raciocínio, que que só abordam conteúdos fora da realidade.
seja mais motora, pois sendo assim poderá criar uma ação Isto posto, é bom ressaltar que não é fácil estabelecer
ativa mais concreta sobre o aluno, para que ele desenvolva a mudança da prática pedagógica por parte do professor,
seus conhecimentos com mais vontade. no sentido da dialética da travessia. Muitos problemas de
Na construção do conhecimento deve existir uma liga- várias ordens são vistos como barreiras para que o profes-
ção forte entre o sujeito e o objeto, ambos devem estar in- sor saia do seu estado de estagnação e mergulhe na prá-
terrelacionados com o social para que a construção desse tica educacional inovadora. As condições de trabalho, sua
conhecimento não seja restrito. Sujeito e objeto são sempre condição, econômica, etc, são alguns entre tantos fatores
modificados e dependentemente da prática social, e isso é que impedem o rompimento da barreira da pedagogia tra-
o que chamamos de caráter social do conhecimento. dicional.

171
BIBLIOGRAFIA

Exposição dialogada Necessidade de expressão


A prática pedagógica marcada pela exposição dialoga- A expressão material do conhecimento auxilia o alu-
da tem certa vantagem sobre a metodologia expositiva, em no na concretização da sua síntese. Se esta vai ser mate-
virtude de a primeira favorecer ao aluno a liberdade de po- rializada através da fala, tem a vantagem de a interação
der opinar, levantar hipóteses sobre problemas tratados na social provocar a correção de possíveis erros detectados
sala de aula. Um outro lado positivo é a própria interação na síntese. Se a síntese for materializada através da escrita
que há entre o aluno e o professor durante a abordagem isto ajudará para que o trabalho sintético seja bem mais
do assunto em pauta. elaborado e tenha maior perfeição, pois a partir da forma-
De a aula dialogada corresponde a um avanço em rela- tação podem se fazer correções à vontade (ao contrário da
ção à expositiva, o que diríamos da exposição provocativa? síntese falada).
É justamente nesse tipo de exposição que os problemas Na relação do sujeito com o mundo, o professor deve
são colocados para serem solucionados pelos alunos. Nes- entender que a fala é, sem dúvida, não somente um meio
ta fase os alunos são estimulados para desenvolver uma de comunicação, mas um instrumento de pensamento. À
reflexão de confronto. O que o professor diz é investigado medida que o sujeito vai conhecendo algo, interagindo
pelos alunos. Aqui, tanto a postura dos alunos quanto a do com o mundo social à sua volta, ele sente vontade de ex-
professor tomam outro rumo. pressar-se sobre as descobertas advindas desse conheci-
Face ao exposto, perguntamos: diante de tanta liber- mento. E, ao passo que o objeto é mais estranho para o su-
dade dada ao aluno para que ele possa falar à vontade, jeito ele sente muito mais vontade de fazer uso da palavra
podemos dizer que o professor não pode mais falar? Claro para poder conhecer o objeto de estudo.
que não! O professor sempre deverá ser o mediador na No processo de determinação da síntese observamos
sala de aula e a sua presença será muito importante para que, enquanto aquilo que sintetizamos está somente em
ajudar o aluno a sair do estágio sincrético da construção do nossa cabeça, podemos expor esse conhecimento de for-
conhecimento. ma mais generalizada, mas, à medida que formatamos a
Certamente o professor contribui para a aceleração da síntese materializando-a para o texto escrito, estamos con-
reconstrução do saber – investigação versus exposição – cretizando o trabalho, realizando uma síntese conclusiva e
quando orienta os alunos em meio às dúvidas na solução restrita ao que está no papel.
dos problemas. O aluno trás o seu conhecimento sincrético É certo afirmar que jamais poderemos subjugar a nossa
e o professor como mediador expões algumas informações síntese material, pois, sendo assim estaríamos confessan-
e o aluno, nesse sentido, deverá ser capaz de superar este do a nossa própria impossibilidade de construir o conhe-
estágio do conhecimento. cimento.
O professor, quanto à questão das técnicas, deverá fi- A interação social entre o educador e o caminho que
car atento quando exigir dos alunos apresentação de tra- o educando está trilhando se concretiza no momento em
balhos em grupo. O que importa aqui não é esperar uma que há a expressão contínua das representações sintéticas
apresentação, uma exposição espetacular daquilo que foi elaboradas pelos educandos. Ao passo que as representa-
estudado pelos alunos, nem sequer poupar as energias do ções sintéticas são expostas e comentadas em sala de aula,
professor. O mais importante mesmo com isso é ajudar ocorre uma interação social entre os alunos, como também
para que dessa forma os alunos engrandeçam a sua cons- entre esses e um novo conhecimento que poder ser re-
trução de conhecimento. De certa forma, esta ou outras construído naquele momento.
técnicas deverão ser submetidas a um método ideal, onde Para que haja uma interação social dentro da classe é
seja necessária a apresentação sincrética do objeto de es- preciso que se crie um ambiente interativo. Esse ambiente
tudo, expressão das representações prévias, problematiza- só pode ser construído se houver um clima de respeito mú-
ção, fornecimento de subsídios, elaboração de hipóteses, tuo entre os alunos. O professor, para isso, deverá ajudar
…, síntese conclusiva, etc. para que esse ambiente saudável seja criado. É nesse clima
que tudo que o aluno fala deverá ter importância. Também
ELABORAÇÃO E EXPRESSÃO DA SÍNTESE DO CO- ninguém poderá tomar o espaço de outro falando demais.
NHECIMENTO Mas falar de menos também prejudica o desenvolvimento
Aqui o aluno recolhe novos elementos apresentados do trabalho.
pelo professor, estabelece novas relações até então não São tantas as formas de expressão do conhecimento
percebidas ou ainda percebidas de maneira diferente. Essa que o educando pode utilizar: oral, gestual, gráfica, escri-
ação permite que o aluno construa um conhecimento mais ta, etc. em todas elas estão presentes a construção de co-
elaborando, a partir da complementação ou da negação do nhecimento que, de certa forma, provocou a mudança da
conhecimento anterior. realidade em relação a um conhecimento prévio sobre o
É o momento em que o educando, tendo terminado o assunto abordado.
seu estudo sobre o objeto, possa fazer um apanhado sin-
tético a respeito dele. É neste momento que se espera que Elaboração da síntese
esta síntese tenha consistência fidedigna sobre o objeto Tendo em vista que a própria construção do conheci-
estudado, do contrário, o aluno deverá percorrer todo o mento pode ser considerada de síntese, e em virtude de
caminho de volta, da síncrese para a análise até chegar à que só podemos fazer análises do problema depois da ela-
construção de uma nova síntese. boração de uma síntese precária, fica difícil determinar em

172
BIBLIOGRAFIA

qual momento seria oportuno e aconselhável para a ela- O conhecimento só acontece através do significado
boração da síntese, isto porque a análise e a síntese estão que adquire aquilo que se estuda, aquilo que se fala e que
intimamente muito articuladas. se faz por quem realiza a ação, seja ele professor ou aluno;
Em se tratando dos níveis de síntese, podemos enten- e principalmente só acontece quando há interação, onde
der que há uma complexidade específica para cada forma todos têm voz para falar e discutir. Caso contrário, só se
de expressão dessa síntese. Na ordem crescente de abs- tem informações e sujeitos. Falta a interação entre eles, ou
tração de conhecimento podemos citar a dramatização, a seja, a construção de significados.
forma verbal e por último a forma escrita. A escola é a referência para a elaboração de uma lei-
Para qualquer objeto de conhecimento há infinita pos- tura de mundo baseada no conhecimento científico. Logo,
sibilidade de se realizar a sequência: síncrese >análise > o principal determinante no processo de elaboração dessa
síntese. E para saber se o educando chegou ao grau de leitura, que é construção de conhecimento, está no currí-
síntese minimamente satisfatória na construção do co- culo – formal, em ação e oculto – como ação pedagógica.
nhecimento, os educadores observam a expressão dos Dessa forma é fundamental ao professor e aos profissio-
educandos em torno da problematização abordada, para nais da educação, avaliar as questões curriculares, na bus-
assim poder verificar se os alunos atingiram a síntese mí- ca de uma ação pedagógica que contribua efetivamente
nima. para a construção do conhecimento. Somente uma revisão
profunda das questões curriculares, que envolva o planeja-
Interação na elaboração mento dos programas, a discussão dos mesmos, a formula-
Se o educando assim preferir, ele pode solicitar várias ção dos planos de trabalho dos professores e a sua aplica-
formas de expressão da síntese elaborada pelos alunos – ção, ou seja, toda a ação pedagógica; poderá transformar
de uma síntese provisória ele pode solicitar que os alunos a situação em que se encontra a situação educacional hoje.
construam uma síntese menos elaborada, uma mais ela-
borada. E pode ainda pedir uma síntese em grupo, pro- Fonte
movendo a interação durante a elaboração. E pode ainda VASCONCELLOS, Celso. Construção do conhecimento
o professor exigir que os alunos construam uma síntese em sala de aula. Libertad – Centro de Pesquisa, formação e
pessoal ou individual a partir da síntese grupal. Assessoria Pedagógica. 14ª ed., 2002.
É importante saber que existe um limite na elaboração
da síntese. Nem todos os educandos são capazes de che-
VINHA, TELMA PILEGGI. O EDUCADOR
gar ao estágio da síntese, ficando paralisados na síncrese.
E A MORALIDADE INFANTIL NUMA
Mesmo com a ajuda do educador alguns alunos sentem
dificuldades e são limitados na elaboração da síntese. O PERSPECTIVA CONSTRUTIVISTA. REVISTA
conhecimento científico apurado, presente em alguns tex- DO COGEIME, Nº 14, JULHO/99, PÁG. 15-38.
tos, juntamente com o conhecimento filosófico, podem ser
um dos motivos que atrapalha certos alunos a chegar na
O que me levou a pesquisar a área da moralidade, a
reta final do estágio síncrese-análise-síntese, porque sen-
questão da autonomia, foi a minha experiência como coor-
tem dificuldades em analisar os textos.
denadora pedagógica. Quando eu trabalhava em Itatiba,
cidade próxima a Campinas, como coordenadora, os pro-
Retorno à prática social fessores costumavam me perguntar: “O que eu faço com
Se a prática da construção do conhecimento é pauta- aquele aluno que bate nos outros? O que eu faço com
da na realidade social, podemos afirmar que o ser huma- aquele que fala palavrão o tempo inteiro? E com aquele
no como sujeito detentor e construtor de conhecimento, que não pára um minuto quieto, que fica correndo pela
poderá modificar a sua realidade através da prática social, classe? Eu ponho para pensar e não adianta.”
com vista na força da sua expressão carregada de signifi- Eu também não sabia o que fazer. Sabíamos que não
cados. Para isso, o sujeito deverá ser compreendido e ter o podia gritar, não podia estrangular, mesmo sendo nossa
dom de envolver as pessoas através do seu conhecimento, vontade, não podia colocar de castigo, não podia bater.
articulado com a realidade social. Nós sabíamos o que não fazer, mas não sabíamos quais
procedimentos eram adequados para lidar com essa ques-
CONCLUSÃO tão do desenvolvimento da moralidade, da autonomia, da
A função primordial da educação está na constru- disciplina.
ção do conhecimento. A ação pedagógica na escola deve Estudamos um pouco de psicologia, lemos textos, le-
oportunizar a construção do conhecimento, o que numa mos artigos e não queremos educar como educávamos al-
instância maior resulta na constituição de identidades au- gumas décadas atrás. Não queremos repetir um modelo
tônomas, capazes de estabelecer relações críticas entre os de educação autoritária, como a que nós tivemos. Mas, ao
homens, suas ações e o mundo. Entretanto sabemos que mesmo tempo, nos sentimos inseguros de como agir dian-
nem sempre as práticas pedagógicas atingem, ou procu- te de um mal comportamento de uma criança. Por vezes,
ram atingir a construção do conhecimento. Esse é um pro- os professores sentiam-se muito permissivos. Diziam: “Eu
cesso no qual é necessária a permanente busca de signifi- converso, converso, converso e não adianta. Não acontece
cado, de sentido. nada. Ele continua da mesma maneira.”

173
BIBLIOGRAFIA

Em outros momentos, o professor não se continha e que eu sigo esses valores. Por exemplo, por que eu tenho
acabava estourando e sentia-se autoritário demais. A nossa que ser honesto numa relação com outra pessoa? Por que a
preocupação era encontrar o limite da intervenção, de qual sociedade me ensinou e todos cobram esse padrão social?
o procedimento que está mais coerente com o ser humano Se eu viver em uma sociedade que me ensine que a men-
que eu quero formar. Que ser humano vocês querem for- tira, às vezes, é o melhor caminho, então eu posso mentir
mar? Autônomo, crítico, criativo, humano, responsável, que e tudo bem? Eu tenho que ser verdadeiro sempre? Por que
saiba conviver com o outro, cidadão, feliz, inteligente. isso é importante?
Humano, no sentido de pessoa humanizada, merece Piaget mostra o que vai fazer diferença entre uma mo-
reflexão. Será que os nossos procedimentos pedagógicos, ral autônoma – quando uma pessoa governa a si mesma,
aqueles que utilizamos em sala de aula, são coerentes com é responsável pelos seus atos, leva em conta o outro antes
esse homem que queremos construir? de tomar uma decisão – e uma moral heterônoma – quan-
Na escola tradicional, o professor também tem esses do a pessoa é governada pelos outros. É uma pessoa que
objetivos belos e nobres, e realmente gostaria de estar tra- justifica o que ela faz, justifica o que ela sente em nome do
balhando para formar esse homem. Só que, na sala de aula, outro, do terceiro. “Eu penso assim porque a vida inteira me
uma carteira está atrás da outra e as crianças não podem se ensinaram a agir assim.”
comunicar, conversar. Cada um tem que ter o seu próprio O que faz diferença entre uma moral heterônoma, em
material, não pode emprestar para o amigo. A professora é que a moral é externa, e a autônoma, em que o centro, a
quem diz o que fazer, quando fazer, como começar, quan- ética, os meus valores, são interiorizados, são internos é
do começar, a que horas terminar. Ela é quem determina, justamente a razão de eu seguir os meus valores. Por que
inclusive, a ida ao banheiro. É a própria professora que diz os professores querem que as crianças cumpram as regras
para as crianças quando está certo e quando está errado. da classe? Porque as regras são necessárias para organizar
Como é que queremos formar pessoas cooperativas, se os trabalhos, para formar os cidadãos do futuro e não por
um não pode ajudar o outro, porque isso é visto como ‘cola’, medo da criança de ficar sem recreio ou receber uma puni-
como uma coisa negativa? Quando escrevem, eles colocam ção ou uma recompensa do professor depois.
o braço sobre o trabalho para o outro não ver. Como é que O fundamental para Piaget é que as pessoas autôno-
eu posso formar pessoas solidárias, se cada um tem que ter mas seguem determinadas normas porque elas acreditam
o seu, se eu não posso compartilhar os meus materiais, se que isso é o melhor para elas. Elas não seguem essas nor-
eu não posso compartilhar minhas atividades com o meu mas para receber uma recompensa, por medo do olhar
colega? Como é que eu quero formar pessoas que saibam externo, por medo de uma punição, de uma censura. O
decidir, se o professor decide até a hora das crianças irem importante não é ser leal ou não, mas por que eu estou
ao banheiro, decide que atividade vai ser dada, como vai sendo leal.
ser feita? Como é que eu quero crianças que saibam viver É preciso saber que numa relação entre pessoas, se
em uma democracia, conviver com os iguais, se eles não uma começar a falar mentiras, o elo de confiança é rom-
podem conversar? pido, desestabilizando a relação. O importante é refletir a
Há muita incoerência entre o objetivo e os instrumen- respeito de por que seguimos as normas, os nossos valores.
tos utilizados para atingir esse objetivo. Se o objetivo é for- É por medo ou para agradar os pais, o diretor, as crianças?
mar um ser humano autônomo, criativo etc, a sala tem que Para serem coerentes com isso, os educadores devem
ter um ambiente em que tudo isso seja possível de acon- estar pensando por que estão transformando a sala de
tecer. Essa é apenas uma reflexão inicial. O tema central é a aula, aderindo ao construtivismo. Se é porque eu sigo os
construção da autonomia, o desenvolvimento moral. meus valores e estou me transformando ou se é por uma
O que se entende por moralidade? Qual é a ideia de recompensa ou uma punição. É isso que vai fazer diferença
moralidade? O que é certo? O que é íntegro, integrida- entre uma moral autônoma e uma moral heterônoma.
de, respeito, o bem, o caráter? Como isso é construído na Para a criança, a construção da inteligência se dá a par-
criança, como a criança aprende isso no dia-a-dia? Ela se- tir da interação com o meio. O mesmo vale para a moralida-
gue exemplos, modelos? de. A construção dos valores, o desenvolvimento moral, se
Primeiramente, o desenvolvimento moral refere-se ao dá a partir da interação da criança com pessoas e situações.
desenvolvimento das crenças, dos valores, das ideias dos Não existe moral sem o outro. A moral, necessariamente,
sujeitos sobre a noção do certo, do errado, dos juízos. envolve o outro, porque se refere a regras, a normas, como
Quando me sinto culpado por uma atitude, estou emitin- as pessoas devem agir perante o outro. A construção dos
do um juízo. Esse julgamento reflete as minhas crenças, os valores se dá a partir das experiências com o outro.
meus valores, a noção do que é certo e do que é errado. Da Será que a moralidade é ensinada diretamente? É muito
mesma forma quando julgo a ação do outro e a maneira comum usarmos histórias infantis – contar que o Pinocchio
como eu acredito que o outro me vê. mentiu e o nariz dele cresceu. Quando as crianças brigam,
Esse é o desenvolvimento moral. A moral se refere ao contamos uma história de briga entre os personagens, que
que eu devo ser, como eu devo agir perante o outro. Como tiveram um final trágico. Com a história da cigarra e da
eu devo e não como eu ajo. O estudo da moral, da ética, formiga, ensinamos a questão da solidariedade, da coo-
é como eu devo agir. O mais importante, para Piaget, não peração, e assim por diante, sempre utilizando a moral da
são os valores pessoais. O que mais importa para ele é por história.

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BIBLIOGRAFIA

Na realidade, a moralidade não se aprende assim. A A primeira atitude do adulto é não abusar da autori-
moralidade não é ensinada por sermões. A moralidade vai dade de adulto, porque a criança constrói a privacidade
se dando a partir das pequenas experiências diárias que a com muito custo. É preciso dizer para a criança o porquê
criança tem ao se relacionar com o outro. de você não acreditar no que ela está dizendo e mostrar
O pai ensina a não mentir, mas quando, por exemplo, onde está a mentira no que ela falou. Explicar quais são as
encontra uma morena na padaria, diz para o filho: “não consequências da mentira na relação entre duas pessoas.
fala para tua mãe que eu encontrei com a fulana”. Ou a Quando queremos crianças e pessoas sinceras, deve-
mãe bate o carro e diz: “não conta para o teu pai que fui mos estar preparados para ouvir verdades agradáveis e
eu!”. Ou ainda quando a criança fala a verdade, é punida, desagradáveis. Valorizar o fato de a criança ter contado a
mais pelo que ela contou do que por ter falado a verdade. verdade, mas não deixar de conversar sobre o que ela fez.
No entanto, para a criança, o sentimento é de que falou a Deixar claro que contar a verdade é algo saudável, e refletir
verdade e foi castigada. O que ela está aprendendo? sobre o ato em si.
A criança vai percebendo que, às vezes, ela mente e Moralidade envolve uma série de regras e essas regras
não é descoberta e que a mentira é necessária para esca- só existem porque na convivência entre as pessoas são ne-
par de um castigo. Essas são as experiências que ela está cessárias. Com o tempo, a criança vai percebendo as con-
tendo com as pessoas, mostrando que nem sempre ser sequências do não cumprimento da regra ou da necessida-
honesto é um bom negócio. de dessa regra existir. Na educação, é isso que tem de ser
Para falar da moralidade infantil é preciso conside- mostrado para as crianças.
rar que a criança tem uma concepção do que é certo, do É muito comum as regras serem associadas ao medo
que é errado, do valor de verdade, do valor de menti- da criança ser punida, ao medo dela ser castigada por
ra, completamente diferente do adulto. Para uma criança Deus, ou por um anjinho que está vendo tudo. Ou ainda a
pequena, uma mentira que é considerada grave é uma uma recompensa. Se ela for boazinha, vai ganhar um sor-
mentira em que você não pode acreditar. É, por exemplo, vete. Na realidade, se a criança só deixa de mentir porque
você dizer que encontrou um homem do tamanho de um tem medo de o nariz crescer, ou deixa de mentir porque a
prédio. Para ela, essa é uma mentira muito grave, porque mamãe não gosta que mente, ou porque a mamãe acha
não existe um homem do tamanho de um prédio. Assim, o feio, ela cresce com medo de descobrirem. O que fazia essa
exagero para a criança é mentira. Por outro lado, ela falar criança legitimar a norma de falar a verdade eram coisas
que tirou uma nota alta na prova, sendo que não tirou, que, provavelmente, quando ela crescer já não vai acreditar
mais. Haverá situações em que ela vai mentir e ninguém
não é uma mentira assim tão séria, porque ela poderia ter
vai descobrir, o nariz não vai crescer. Ela vai experimentar
tirado mesmo! Como ela poderia ter tirado, é uma men-
situações em que a opinião da mãe dela não pesa tanto
tirinha boba.
quanto a dos amigos.
Um adulto que disser que trocou de carro e não tro-
O que fazia a criança legitimar a norma já não existe
cou cometeu uma mentira séria, porque está querendo
mais. Ela não tem mais porque cumprir. Por isso é impor-
aparecer, teve a intenção de mentir e enganar. Mas se al-
tante associar uma regra a um bem-estar e às consequên-
guém disser: “eu vi um caminhão que parecia um navio de
cias do não cumprimento dessa regra. Tem de haver sen-
tão grande”, as pessoas vão perceber que é um exagero,
tido na existência da regra, para um bom convívio social.
não é uma mentira tão séria. Para a criança é o contrário.
A criança também considera o engano e a mentira Temas transversais
a mesma coisa. A partir daí, como podemos lidar com a Atualmente, é comum os professores alegarem que, nas
mentira na criança? Constance Camille deixa claro que, classes em que trabalham em grupos, as crianças têm mais
primeiramente, devemos perceber que a própria inteli- conflitos. É claro, elas convivem mais, antes elas conviviam
gência da criança – de educação infantil, com dois a sete menos, então os conflitos não apareciam. A moralidade é
anos – é pré-operatória, é intuitiva. justamente um tema transversal à ética por causa disso.
Muitas vezes acontece que o adulto é capaz, a partir As crianças estão convivendo e, de repente acontece
de indícios, deduzir que a criança comeu biscoitos – a lata uma briga. Se o professor finge que não vê, ele está pas-
de biscoito está diminuindo, a boquinha da criança está sando uma mensagem de que, nessa escola, a agressão
suja. Em vez de afirmar: “você comeu biscoito”, diz: “o seu é permitida. Ao contrário, se a briga é encerrada por um
coração está me dizendo que você comeu biscoito.” Ou: adulto e os dois são colocados de castigo, a mensagem é
“deixa eu olhar nos seus olhos. Você comeu biscoito e está de que os adultos têm mais autoridade, e quando vocês ti-
mentindo” Isso é um abuso da autoridade do adulto que verem um problema têm de procurar um adulto. O melhor
trata a criança como se fosse transparente. Isso só é pos- seria interferir para revalidar a regra e deixar claro: “aqui
sível porque essa criança ainda é pré-operatória, incapaz nesta escola, as pessoas não devem se agredir. Vamos ver o
de tirar a conclusão como o adulto. que está acontecendo e uma maneira de resolver isso sem
Eles realmente acreditam que são transparentes e que agressão.”
os adultos são mágicos, têm o poder de, olhando dentro Diante do mesmo conflito, o adulto pode ter respos-
dos olhos, ouvindo o coração, adivinhar. É diferente se o tas diferentes e, de qualquer maneira, ele está ensinando a
adulto falar “eu não posso acreditar no que você está me moralidade nesse dia-a-dia. Com cada resposta que ele dá,
dizendo por causa disso”. ou com as que ele não dá, a moralidade e a ética são abor-

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BIBLIOGRAFIA

dadas. Por isso é um tema transversal. A moralidade vai se Nesses casos, não se pode passar a autoridade da es-
dando a partir daquelas situações do cotidiano do profes- colha de sanção para a criança, mas sim elaborar a regra
sor, do pai, das crianças com as crianças. Nesses momentos com eles. Um problema é colocado, discutido e decidido
é que estão sendo trabalhadas a ética e a moralidade. pelo grupo, resultando numa regra. Mas não se combina
Cada ato do relacionamento com o aluno serve para com as crianças o que fazer com quem não segue a regra,
algo e faz parte da construção da personalidade que a porque isso é um problema do professor, que tem que ser
criança está formando. Em cada ato, o educador tem que bem preparado para saber qual é a sanção mais justa, com
perceber que está trabalhando a moralidade, por isso que é o aluno.
um tema transversal. Vamos supor que duas crianças este- A criança tem uma interpretação de regra rígida, ao
jam brigando por causa de um balanço. O professor pode pé da letra. Ela não percebe que cada caso é um caso. Ela
fingir que não está vendo. Ou pode ir lá e dizer: “Cada um não tem essa noção de justiça. É um erro acharmos que as
balança dois minutos e eu vou ficar marcando.” Ou ele pode crianças podem escolher qual é a sanção mais justa. Quan-
chegar e falar: “Temos um balanço e duas crianças queren- do pregamos a intervenção e a não intervenção, trata-se
do balançar. Como vamos resolver isso? Como vamos fazer de uma intervenção adequada, porque o professor desem-
para que todos usem o balanço?” penha uma autoridade na classe. Até saber, inclusive, até
Nos três casos, o professor está passando uma mensa- onde as crianças podem ir.
gem. Podem se pagar porque o problema é de vocês. Ou o A moralidade é um tema transversal porque, quer o
adulto resolve o problema. Ou vamos resolver o problema professor queira, quer não queira, está trabalhando a mo-
sem agressão. ral. O problema é que a maioria das escolas trabalham a
Quando as crianças começam a resolver os problemas, moralidade não em direção à autonomia e sim à manuten-
as soluções não são as mais adequadas. Mas elas só vão ção da heteronomia. Toda escola – de Educação Infantil,
chegar a resolver os problemas de forma adequada, quan- Ensino fundamental, Ensino médio, professor de química,
do começarem a resolvê-los, percebendo as consequências. de física – trabalha a moral. Mas muito poucos professores
Em nenhum momento afirma-se que o professor não a trabalham em direção a autonomia.
deve intervir. Mas a intervenção deve ser adequada, cons- Os Parâmetros Curriculares Nacionais colocam temas
trutiva. Atuar como interlocutor ou mediador do problema, transversais como orientação sexual, educação para a saú-
da discussão para que as crianças possam chegar a uma de, ética, pluralidade cultural, meio ambiente. Quando o
conclusão. professor pede para as crianças escovarem os dentes e a
O que as crianças podem fazer na sala, com relação aos torneira fica aberta, ele está trabalhando o tema transversal
limites, às normas, é justamente elaborar as regras. Há nor- meio ambiente, mas com o desperdício.
mas que são necessárias, não são negociadas. Por exemplo, Em outra situação, ele vê duas crianças brincando de
não é permitido bater. É uma regra que não pode ser flexível faz-de-conta de namorar ou se beijando e fica roxo de
– bater só de vez em quando ou de leve. Outro exemplo é vergonha ou repreende. Ele também está trabalhando a
escovar os dentes, também é uma regra que não tem ne- orientação sexual. Nós precisamos conhecer muito bem os
gociação. temas transversais porque, independentemente da nossa
Nas salas de aula existem dois tipos de regras. As regras vontade, eles estão sendo trabalhados.
necessárias são as regras de boa saúde, de boa educação. A moralidade é ensinada a todo momento. O profes-
São regras que não se negocia. A criança não pode escolher sor passa mensagens e valores constantemente. Qualquer
se ela quer ir na escola ou não. Este tipo de escolha não tem professor transmite valores e regras nos livros didáticos, na
negociação. organização institucional. Para cada regra da escola, temos
Existem outras normas que são as que organizam o tra- de pensar se ela é realmente necessária, se está prejudican-
balho da sala e garantem a justiça. Da formulação dessas do a aprendizagem e o desenvolvimento da criança. Tudo
regras as crianças podem participar. Por exemplo, combinar tem que ter um sentido de existir.
algum sinal para avisar quando o barulho estiver muito alto. Outro aspecto refere-se a como o conteúdo é traba-
Há salas em que a criança incomodada com o barulho apa- lhado. Se queremos “pessoas críticas”, não ensinamos his-
ga a luz para avisar os colegas que abaixem o tom de voz. tória com uma visão única, dando a crítica pronta. É preci-
Diminuiu, ela acende a luz. Assim, até a cobrança da regra so que eles comparem diferentes autores sobre história e
não fica só com o professor, mas também com quem estiver discutam. Para ensinar o lógico-matemático, é preciso dar
incomodado. oportunidade para a criança reinventar, assim como no co-
É muito comum acontecer uma visão reducionista da nhecimento físico, com as propriedades dos objetos, cor,
teoria de Piaget, quando as escolas acham que a criança sabor, odor.
pequena pode escolher qual a sanção ou castigo que vai ser Ensinar sem permitir que eles descubram, passando os
dado à criança que está aprontando alguma coisa. Crian- conceitos como se fossem verdades prontas, ensinando a
ças de seis anos são egocêntricas e incapazes de coordenar técnica para resolver sem deixá-los resolver por si mesmos,
pontos de vista diferentes, de se colocar no lugar do outro. assim o educador deixa claro que a verdade vem da cabeça
Elas escolhem os castigos da maneira mais severa, que é a do professor. Assim, o que os alunos têm de fazer, mesmo
ideia que elas têm de justiça. Para elas, é justo pagar o preço que eles não entendam, é obedecer, é aceitar a autoridade,
sofrendo, para ser perdoado e aceito no grupo, restabele- que hoje é o professor e amanhã pode ser o diretor, o che-
cendo o elo que foi rompido. fe, o marido, o político.

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BIBLIOGRAFIA

As crianças vão aprendendo a engolir sem entender. Na realidade, o que faz uma criança desenvolver mais
Vão engolindo e achando que é assim mesmo e quando ou menos a sua moralidade e a sua autonomia, é justamen-
crescem, continuam acreditando que as verdades vêm de te o convívio, se ela está interagindo num ambiente autori-
determinadas pessoas e não questionam essas verdades. tário ou democrático. Mas a concepção de autoritário não
é apenas o “não”. Em um ambiente em que tudo é não,
Avaliação é natural que a criança tenha mais dificuldades de tomar
A forma de avaliação das crianças é outro aspecto. Por decisões para assumir responsabilidades e ficar com medo
exemplo, perder ponto quando conversar e ganhar ponto de punições. Mas no construtivismo, o autoritário não é só
quando entregar trabalho. A maneira de usar o instrumento esse ambiente.
de avaliação, ameaçando com frases como: “vocês vão ver Autoritário é o que o adulto faz pela criança que ela
na hora da prova, vou dar uma prova surpresa”. Portanto, pode fazer por si mesma. Autoritário é quando o profes-
na avaliação, e se é avaliado o desenvolvimento da criança sor está ensinando ou instruindo algo que a criança pode
pequena, também está sendo trabalhada a moralidade. descobrir ou reinventar a partir de situações que ele vai
A relação professor-aluno e a relação entre as próprias colocando, para que ela reinvente, para que ela descubra.
crianças são indicativas de valores, normas e regras. Se é Autoritário, é aquele professor que coloca as normas, que
permitida a discriminação e o desrespeito no relaciona- diz o que é melhor para a criança. É o professor que não
mento entre os alunos, isso é legitimado pela escola, que permite que as crianças interajam, que elas troquem ideias.
não tem esse direito e o professor não pode permitir esse Autoritário é o professor que entrega o trabalho na mão,
tipo de atitude no ambiente escolar. recolhe o trabalho, resolve os problemas, entrega o mate-
Nós precisamos, como educadores, ter uma postura rial, diz o horário de começar, de ir ao banheiro etc.
extremamente exemplar. Somos modelos e sabemos que, Eu brinco que “atire a primeira pedra quem nunca ti-
nesse período pré-operatório, a criança aprende muito por ver pecado”, porque no dia-a-dia do educador, acabamos
imitação, que é inconsciente. O modelo tem que ser exem- amarrando o sapato, pondo comida no prato, ajudando a
plar porque a criança não vai aprender o que é falado, mas criança. E, muitas vezes, os pais que podem ter babá, po-
com os atos de quem fala. Por isso, é fundamental que haja dem estar prejudicando ainda mais as crianças, porque
coerência no modo de agir e coerência no discurso. muitas vezes a babá tira a roupa, dá o banho, escolhe a rou-
Para a criança aprender o respeito, tem que viver em
pa, põe a roupa, abotoa, amarra o sapato, penteia o cabelo,
um ambiente de respeito. Para aprender a falar baixo, é
põe a comida no prato, dá a comida na boca, põe na frente
preciso que se fale baixo com ela. Se as crianças utilizam
da televisão, coisas que a criança poderia fazer sozinha.
uniforme, os professores têm de usar também. Se o profes-
Assim, um ambiente autoritário é um ambiente em que
sor quer que as crianças, por exemplo, respeitem uma fila,
não é permitido que a criança faça as coisas por ela mesma.
tem que respeitar também e, na hora da merenda, entrar
O democrático é o contrário, é aquele ambiente em que
na fila, e se quer que eles falem a verdade, tem que ser
sincero. a criança planeja junto com o professor quais atividades
O modelo tem que ser exemplar e isso é fundamen- vão ter naquele dia. Ela vai tomar decisões, escolher, dentre
tal. A criança não vai seguir as mensagens passadas ver- as opções oferecidas pelo professor, quais quer fazer. É o
balmente, oralmente. Ela vai seguir o comportamento. Por ambiente em que as crianças montam os cantinhos, pegam
isso a postura tem que ser muito exemplar. os materiais e estes são compartilhados. A criança é quem
decide e o ritmo dela é respeitado.
Ambiente cooperativo Então, por exemplo, se uma criança demora mais para
É muito comum na educação em geral, na Educação fazer um desenho e outra menos, a que terminou muda de
Infantil e no Ensino Fundamental, que se estudem técnicas canto. Não tem aquela comparação entre as pessoas: “olha,
e procedimentos de educação moral, mas o professor não tá vendo, está todo o mundo te esperando, só falta você.”
faz o essencial que é construir um ambiente cooperativo. Nesse ambiente democrático, diante de um conflito, as
Não adianta pensar em trabalhar direitos e respeito com crianças vão pensar outra maneira de resolvê-lo, sem usar
discurso e técnicas em cima de dilemas, e não construir na as mãos, os dentes, cotovelo, joelho, pé. O professor evita
classe um ambiente em que tudo isso está presente. fazer pela criança tudo aquilo que ela pode fazer por si
A preocupação deve ser construir esse ambiente, em mesma. Em casa é a mesma coisa.
que as crianças interajam, pautado pelo respeito, sem coer- A criança pequena não pode tomar grandes decisões.
ção ou pressão. Favorecer que a criança tome pequenas Por exemplo, não cabe à criança escolher em que esco-
decisões e assuma responsabilidades. Ela estará construin- la quer estudar, nem se ela quer sair numa noite fria com
do esse conhecimento e o professor também estará traba- casaco ou não. Isso ela não pode decidir. Mas ela pode
lhando com temas específicos, como os direitos. decidir com qual casaco ela quer sair, se ela quer com o
Na verdade, a construção da personalidade moral vai vermelho, com o roxo ou com o amarelo. Ela pode decidir,
se dar a partir da interação com os diversos ambientes: fa- por exemplo na escola, se ela quer entrar com a mãe ou
mília, escola, amigos, meios de comunicação, etc. Cada um se prefere entrar sozinha. Ela não vai escolher se ela vai
tem um peso. Na primeira infância, até os quatro anos, a trabalhar ou não no dia, mas ela pode escolher quais ativi-
família tem um peso muito grande. A interação com esses dades. A criança pequena, em um ambiente democrático,
vários ambientes é que vai formando o desenvolvimento não toma qualquer decisão, mas está tomando pequenas
moral da criança. decisões o tempo inteiro.

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BIBLIOGRAFIA

Em virtude da educação autoritária que nós tivemos, ções que são comuns, como não mexer na tomada, não
hoje em dia, diante de desafios, morremos de medo de er- atravessar a rua sozinha, não brincar com faca. Estar acos-
rar. Quando alguém pede para a pessoa falar em público, tumada primeiro a receber limites, receber normas.
ela treme na base. Para tomar decisões, justificamos o nos- O segundo fator que faz com que essa criança apre-
so agir em nome do outro: “Ah, mas fulano falou que era sente esse sentimento de obrigação é que ela só vai ter
para eu fazer assim”, ou: “eu reagi assim porque o porteiro aceitação interior a uma regra quando essa norma parta de
foi mal-educado comigo”, mas você poderia ter reagido de uma pessoa que ela respeita. Ela só tem aceitação interior
outra maneira. a uma norma se essa norma vem de uma pessoa que ao
Justamente pelo fruto dessa educação é que nós so- mesmo tempo ela ame e tema.
mos assim hoje. O mercado de trabalho, inclusive, exige Será que só o amor é suficiente para causar sentimen-
mais do que apenas cumprir ordens. Exige pessoas que to de obrigação? Não. Por exemplo, ela ama o irmão mais
pensem por si mesmas, que tomem decisões, criativas, que velho e não tem essa aceitação interior de uma regra posta
estejam sempre se atualizando. A escola está formando por um irmão ou uma irmã.
pessoas que não estão atendendo às necessidades do pró- A criança tem medo de uma pessoa estranha, tanto
prio mercado profissional. que se esconde atrás da perna da mãe. Mas a recomen-
O Piaget diz que as pessoas verdadeiramente autôno- dação de um estranho, a ordem de um estranho, não faz
mas são raras. É claro, a vida inteira vivemos em um am- com que uma criança se sinta obrigada a isso. O medo de
biente autoritário, quando não era a escola, era mãe, o uma pessoa só coage, a criança não faz enquanto ela sente
pai que diziam que tinha que obedecer, que é o pai quem medo. Depois que a pessoa que causa o medo sai, ela está
manda. livre para agir. Então o medo não causa aceitação interior à
Cito o depoimento de um pai no livro “Liberdade sem norma nenhuma.
medo”: “meus pais foram autoritários, minha escola usava Esse primeiro respeito, Piaget chama de respeito uni-
castigo e, se não fosse por isso, eu não seria a pessoa que lateral. É o respeito de um lado só, que a criança tem pelo
eu sou hoje.” E o Hill responde assim para ele: “olha, eu não adulto. A criança vê o adulto como o mais forte, como
conheço o senhor, mas quem disse que o senhor não po- aquele que sabe mais. Então esse respeito é uma relação
deria ser uma pessoa melhor do que é hoje?!”. Temos que assimétrica entre o adulto e a criança. A criança por exem-
argumentar isso com os pais, mostrando que o mundo está plo, nunca vê o professor como uma pessoa igual a ela.
mudando. Nós somos frutos de uma educação autoritária, A criança vê o professor como aquele que sabe mais.
mas queremos formar pessoas cada vez melhores. Entre os colegas, elas discutem, mas se o professor falar: “é
Os limites vão situar a criança no espaço social e é pre- isso, tá errado”, elas não vão questionar.
ciso determinar os espaços da mãe, do colega, da profes- Com o pai se dá o mesmo. É uma relação desigual. A
sora. No desenvolvimento moral, para Piaget, os limites são criança nunca vê o adulto como igual. Se respeito é uma
necessários e eles precisam existir. A criança necessita disso mistura de amor e temor, o temor do respeito unilateral é
para se sentir amada, protegida. Para chegar à autonomia, o seguinte: a criança tem medo de ser punida, tem medo
ela precisa primeiro dos limites colocados pelo adulto. De- de ser censurada e principalmente tem medo de perder o
pois ela irá construindo os seus próprios limites. amor dos pais.
Inclusive, jamais devemos utilizar com a criança a reti-
Amor, temor e respeito rada do amor como sanção. Por exemplo, falar assim: “eu
Ao mesmo tempo que eu amo, eu também temo. Esse não gosto mais de você, você é feio. A mamãe está tris-
sentimento é o respeito. Para Piaget, todo o respeito é uma te, não quer mais falar com você.” Não se usa a retirada
mistura de amor e de temor. de amor porque a criança só se atreve, só se arrisca, em
Piaget percebeu que as crianças pequenas têm um relações frágeis. Aquelas relações em que se ela aprontar
sentimento que ele chama de sentimento de obrigação, de alguma coisa, o colega não vai querer mais brincar com ela.
aceitação interior a uma norma, a uma recomendação dos Isso porque existe uma segurança de ser amada, de estar
adultos. Por exemplo, se a criança vai colocar a mão na to- em casa, de que nunca vai perder o amor dos pais, uma
mada, a mãe diz assim: “não pode! ”. Ela sabe que lá não é relação estável.
para mexer, tanto que mexe escondido ou mexe e olha para
a mãe. Isso porque essa criança aceita interiormente aquela Moral heterônoma
recomendação. Ela sabe que não é para mexer e se ela for O respeito unilateral, que a criança tem medo de per-
flagrada mexendo, fica constrangida, perturbada, porque der o amor, medo de ser punida, de ser censurada, leva a
sabe que fez algo errado. uma moral que é chamada de moral heterônoma. É a moral
O Piaget perguntou: “por que as crianças, em uma ida- da criança que é governada pelos adultos. O exemplo de
de tão pequena, em que tudo é brincadeira, tudo é espon- moral heterônoma é que a criança justifica uma regra, uma
taneidade, por que essas crianças aceitam o que os adultos norma, em cima da autoridade de um adulto.
falam? Por que elas simplesmente não ignoram? As crianças têm uma ideia do adulto como se este fos-
Ele descobriu que para a criança ter esse sentimento se mágico, como se quando eles crescerem saberão tudo.
de aceitação interior a uma norma, a uma regra, é preciso O adulto desenvolveu determinadas estruturas que permi-
que haja duas condições simultâneas. Primeiro essa criança tem raciocinar de uma maneira diferente da criança, e para
precisa estar acostumada a receber normas e recomenda- ela, o adulto sabe muita coisa.

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BIBLIOGRAFIA

Isso é moral heterônoma e as relações dessa moral são Os limites


justamente consequência de respeito unilateral. A criança Está acontecendo que os limites estão se ampliando
pequena só estabelece com o adulto relações de respei- muito. Nenhuma criança gosta de limites, nenhum ser hu-
to unilateral. Ela não consegue estabelecer uma relação de mano gosta. É natural e é saudável que a criança teste os
igual para igual, que são as relações de respeito mútuo, re- limites, porque quando ela testa os limites, ela está testan-
lações de mão dupla. Eu te respeito e você me respeita. A do a validade dos mesmos, se são necessários. Mas quando
criança pequena tem aceitação interior do que o adulto fala. a mãe ameaça e chega na hora e não cumpre, a criança vai
Mas, e o adulto tem aceitação interior ao que a criança perdendo o temor que ela tem naturalmente pelo adulto.
fala? Não. Muitas vezes nem aceitamos o que a criança fala. Ela sabe que não vai acontecer nada com a mãe, que a mãe
No respeito mútuo, não existe mais a presença da autori- não vai fazer nada, e os limites vão se ampliando.
dade. A legalidade, quer dizer, o que é legal, o que é justo, Os limites situam a criança no espaço social: “até aqui
predomina. Nas relações de respeito mútuo, o respeito não eu posso ir. Aqui eu estou invadindo o espaço do outro”. É
é amor e temor? Nas relações de respeito mútuo também fundamental que o adulto vá mostrando o limite: “até aqui
existem amor e temor. Mas o temor nesse caso é o medo você pode ir, aqui o espaço é meu.”
de eu decair aos olhos dos outros, não é mais o medo de Na escola ocorre o mesmo. Se uma criança vem de um
ser censurado, de ser castigado, de ser punido, de perder ambiente sem limites, é terrível para o professor. Mas para
o amor. a criança, talvez seja a única oportunidade que ela tem de
As relações de respeito mútuo, entre pessoas que se estar interagindo em ambiente que coloca limites para ela
consideram iguais, levam à uma moral autônoma. Autôno- de maneira adequada. É normal uma criança fazer com os
ma é a pessoa que governa a si mesma, mas considerando professores o que ela faz em casa. Se em casa ela se joga
sempre o outro por vontade própria. Não é simplesmente no chão para conseguir uma coisa, é natural que no come-
eu fazer o que eu quero. É eu considerar o que é melhor ço, quando ela for frustrada na escola, ela se jogue no chão
para nós, ao tomar uma decisão. para conseguir a mesma coisa do professor.
Moral autônoma é dizer assim: “eu estou trabalhando Mas a resposta que os educadores vão dar será dife-
com Piaget porque eu estudei e concordo com as ideias.
rente diante do mesmo ato, e isso é saudável. Se a criança
Não porque ele falou e eu falo amém. Eu estou estudando
não tem esses limites, o fato de o professor dar uma res-
e vejo que isso é coerente. ” Autonomia é decorrente de
posta adequada vai faze-la perceber algo e, talvez, seja o
relações de igual para igual.
único ambiente em que ela interage que está auxiliando no
A criança pequena não consegue ver o adulto como
desenvolvimento do respeito ao outro.
igual, mas quem ela consegue tratar como igual? Os cole-
Se o ambiente oferecido na escola é pautado no res-
gas. Para a criança chegar à autonomia, ela precisa ter rela-
peito mútuo, é um ambiente em que as crianças decidem o
ções de respeito mútuo. Para isso, ela precisa conviver com
que fazer, tomam decisões, elaboram as normas, sorte des-
crianças da mesma idade que ela.
Na escola, a criança vai poder conviver com crianças da sas crianças, que têm a possibilidade de estar interagindo
mesma idade. No entanto, a escola põe uma carteira atrás em um ambiente saudável.
da outra e não permite que as crianças troquem ideias. Se Também é fundamental saber por que e quando acio-
elas não tiverem essas relações em que vão discutir e resol- nar os pais. Geralmente, quando há algum problema, pri-
ver os conflitos, trocando ideias, percebendo que os pontos meiro coloca-se para a criança, antes de levar para os pais.
de vista são diferentes, dificilmente vão chegar à autonomia. Tem problemas que quem tem que trabalhar é a própria
Na escola tradicional, só durante o recreio é permitido escola. Por exemplo, o problema de indisciplina de criança
que as crianças troquem ideias. Assim, as crianças vão conti- que corre demais na sala, ou que está falando muito, estão
nuar heterônomas e se tornarão adultos heterônomos. fora da alçada dos pais.
Um princípio básico da teoria Piagetiana é a interação Temos que tomar muito cuidado em separar o que é
social. Para chegar à autonomia moral e intelectual, tem que problema de casa, o que é problema da escola. Muitas ve-
haver duas coisas: a ação do objeto sobre o conhecimento zes, quando se leva o problema para o pai, a situação piora,
e a interação social. porque essa criança decaiu mais ainda aos olhos do pai e
É preciso colocar situações em que as crianças vão a relação entre eles piora. Só devemos levar o problema
interagir socialmente. Mesmo quando cada criança faz o para o pai quando ele tem condições de auxiliar de maneira
próprio desenho, o professor vai olhar para ela e conversar adequada.
com ela. Quatro crianças em cada cantinho porque é um Em vez de o professor decair a criança aos olhos do pai,
número que favorece essa interação social. Grupos de seis muitas vezes o remédio mais saudável é levantar a criança,
ou sete propiciam a formação de “panelinhas”, não haven- mudar a maneira como o pai enxerga essa criança. Isso dá
do interação com todos. Tem de haver um motivo para o resultados.
que está acontecendo. As decisões pedagógicas têm de ser
fundamentadas numa teoria científica. É fundamental saber Aprendendo a sentir
porque fazer dessa maneira e não de outra, porque dessa Quando nós estudamos ética, o limite da moral são os
maneira eu desenvolvo melhor a autonomia, daquela ma- atos e não os sentimentos. Todo sentimento é permitido,
neira não. As decisões têm de sair do senso comum entre é aceito, não existe sentimento bom ou ruim. Faz parte
os profissionais da educação. da natureza humana sentir raiva, sentir inveja, sentir amor,

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BIBLIOGRAFIA

sentir ódio, sentir carinho. Mas o problema é que os atos zia que em uma classe, um livro que pertencia a todos foi
são limitados. Eu posso desejar muito um homem, mas eu furtado e que a professora descobriu quem foi. Quando
não posso agarrar o homem na rua. Eu posso ter vontade ela descobriu, ela tinha duas opções: deixar quem roubou
de te matar, mas eu não vou te matar. o livro sem recreio, ou contar para todo mundo que havia
Para lidar com a criança, nós devemos deixar claro que sido ele quem roubou o livro. O Yves perguntava às crian-
o problema está no ato de raiva e não no sentimento de ças o que elas achavam que era melhor a professora fazer
raiva. O respeito mútuo é uma mistura de amor e temor e por que.
de decair aos olhos do outro. Assim, o primeiro passo para Metade das crianças de cinco anos, por causa do ego-
mudar um comportamento de uma pessoa é criar um vín- centrismo, afirmou que era para deixar sem recreio. A outra
culo de afeto. Se não for criado um vínculo de afeto com metade disse que podia contar para todo mundo. A partir
a criança, não vai existir o amor do respeito mútuo, e só o dos sete anos de idade, a maioria das crianças afirmou que
temor não vai causar na criança o sentimento de aceitação não era para contar para todo mundo, que era melhor dei-
interior. É preciso, para modificar uma criança, para traba- xar sem recreio, porque elas ficavam com vergonha do que
lhar com ela, para auxiliá-la, que ela goste do adulto. Se os outros iam pensar.
isso não ocorrer, nada do que for falado ou tentado com Depois de um tempo, o Yves contou outra história.
essa criança vai ter efeito, a não ser recompensa e punição. Ele disse que numa classe a professora decidiu deixar esse
A criança pequena, ou mesmo maior, se não gostar de aluno sem recreio e numa outra classe, onde aconteceu a
alguém, por que vai modificar o comportamento em fun- mesma coisa, ela decidiu que ia contar para todo o mundo
ção da censura dessa pessoa? Até um adulto reagiria assim. e contou para todos quem foi o menino que roubou o livro.
Eu me lembro de uma professora que foi muito inte- Em uma das duas classes, um livro voltou a sumir. Em qual
ligente. Ela tinha um aluno de seis anos que falava muito classe eles achavam que a criança tinha roubado – a que fi-
palavrão. A professora foi conversar com a mãe, que ar- cou sem recreio ou a que contou para todo o mundo? Uma
gumentou: “ele fala a mesma coisa para mim?! Eu não sei criança de 12 anos, muito sabiamente, disse assim: “voltou
o que fazer com esse moleque! Ele é uma boca suja!” E aí a roubar naquela que contou para todo o mundo, porque
começou a desfiar os palavrões. A professora entendeu a ela já estava danada mesmo!”
origem do problema e a conversa ficou por isso mesmo. Isso significa o que? Se eu já vejo essa criança como
Tudo o que a professora tentou trabalhar com a criança agressiva, como terrível, como difícil, como preguiçosa e eu
não teve efeito. Então ela começou a se aproximar da crian- passo mensagens, ela não vai mudar porque ela já decaiu
ça. Sentava com ele, jogava com ele. Quando ele fazia coisa aos meus olhos. Eu mudo quando não quero decepcionar
legal, ela mostrava que tinha notado a atitude. o outro, quando não quero decair, quando eu gosto do
Fazia atividades individuais, como contar uma história outro. Se eu já estou danada aos olhos do outro, para que
e falava: “olha, eu li essa história e lembrei de você.” Foi eu vou mudar? Se ele já não me acha grande coisa, por que
se aproximando da criança. Um dia, depois de um ou dois eu vou ser grande coisa?
meses desse trabalho, ele falou um palavrão para ela. Ela O caminho da educação nunca é o da humilhação, do
simplesmente disse: “eu não gosto quando você me trata ataque à dignidade, do grito, do castigo. É o contrário. Se
com palavrões. Eu não te trato com palavrões”. Ele respon- eu quero modificar o comportamento de uma pessoa, eu
deu: “mas eu falo assim com a minha mãe.” E ela: “Mas eu tenho que mostrar que eu confio, que ela é capaz etc.
não sou sua mãe” e saiu de perto, não falou mais nada. Uma professora chegou para uma criança que dese-
Essa criança nunca mais falou palavrão com a professo- nhava muito bem e pediu alguns desenhos para ela. Em
ra. A diferença é que agora ele gostava dela, ele não queria alguns trabalhos ela colocou como ilustração o desenho
decair aos olhos dela. É muito comum que, quando eu re- que essa criança fez, acrescentando uma observação em-
cebo uma criança, vem com a “ficha criminal” e já se espera baixo: “agradeço ao Felipe pela ilustração dos trabalhos”.
o pior dela. Os demais alunos exclamaram: “ô Felipão, você hein?!”. Na
Nós brincamos que sempre quem fica com a pior é o verdade, ela fez um trabalho de levantar a autoestima da
bonzinho, porque, em função do “terrível”, paramos a roda criança, para a própria criança e aos olhos de todo o grupo.
diversas vezes, no recreio estamos atrás dele e até durante Esse é o caminho de uma educação construtiva.
a noite pensamos nele. Ele acaba recebendo mais atenções
pelo comportamento negativo. Linguagem de educador
Se você espera o pior dele, você envia mensagens que Isso envolve muito a linguagem do educador, as san-
é isso que você espera. Quando você olha e diz assim: “só ções que ele utiliza. Essa linguagem deve ser construtiva,
podia ser você, estava demorando”, ou mesmo: “quantas nunca destrutiva. O educador nunca deve julgar, mas sim-
vezes eu vou ter que te falar a mesma coisa. Será que você plesmente descrever as coisas. É fundamental, em uma
nunca vai aprender”, você passa mensagens como se espe- educação, o vínculo de afeto, o cuidado em não decair a
rasse isso dele. É natural que essa criança não modifique o criança. Ao contrário, mudar a maneira de como eu vejo a
comportamento, porque ele já decaiu aos seus olhos, en- criança.
tão, por que mudar? As relações de respeito lateral não ocorrem só com a
O Yves De La Taille tem um trabalho muito interessante criança pequena em relação ao adulto. No nosso dia-a-dia,
em que ele contou para crianças, desde cinco, seis anos mantemos com os adultos, com as pessoas, relações de
até 14, 15 anos, duas histórias. Na primeira história ele di- respeito lateral. Por exemplo, cada vez que a criança está

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BIBLIOGRAFIA

crescendo e começa a questionar o adulto e este a re- tigo um adulto. O que fazemos, com os adultos, é permitir
preende, porque “não se fala assim com a mamãe, porque que sintam as consequências dos atos, repararem o erro. É
o papai não quer que faça assim”, justifica-se uma norma, assim que devemos trabalhar com as crianças.
uma conduta, com base no que a autoridade acha. Cada Em um ambiente de respeito mútuo, as regras e os li-
vez que você está associando o que a criança faz ao casti- mites são necessários. Piaget mostra que a criança é hete-
go, você está mantendo com essa criança relações de res- rônoma. Ela é naturalmente governada pelos adultos e vai
peito lateral. precisar de limites. Mas quando as crianças são pequenini-
Isso pode ocorrer no casamento e até na relação que o nhas, elas precisam de limites necessários. Conforme vão
professor mantém com o coordenador. Se o professor obe- crescendo, os limites podem ir se ampliando. Os limites
dece e diz: “eu estou trabalhando assim porque ele quer”, é são negociáveis, são combinados com ela.
hora de começar a questionar a sua própria moralidade, a Por exemplo, o pequeno não vai decidir se vai pôr ca-
sua concepção de autonomia. saco no dia frio. Mas com o adolescente, não há porque
É diferente ele estar mudando a proposta de trabalho brigar se ele quiser sair de camiseta num dia frio. Ele já
porque está convencido, está estudando que é por aí, de sabe que lá fora está frio.
estar fazendo porque uma autoridade quer que ele faça. É Brigamos com os adolescentes por tudo. Por causa
preciso refletir e rever isso. do cabelo, pela bagunça do quarto, pela chave do carro,
Se queremos educar as crianças para a autonomia,
porque não come direito, porque sai sem casaco, porque
como podemos manter no dia-a-dia relações de respeito
a calça dele é rasgada. Como brigamos por tudo, coisas
lateral com as pessoas? Consequentemente, as crianças se-
passam, coisas não passam. Na realidade, quando vocês
rão tratadas assim. O professor deve estar sempre no mes-
forem elaborar as normas na classe de vocês, ou na família
mo nível das crianças. Se as crianças sentam no chão, ele
também senta no chão, ele se abaixa para conversar com é preciso pensar: isso é realmente importante, vale a pena
elas, ele procura usar um tom de voz que não seja elevado. eu brigar por isso? Se não valer a pena vocês brigarem por
O professor quer que as regras valham para todos, inclusive isso, esqueçam.
para ele. A característica de uma regra é justamente a regula-
Tratar uma criança com respeito mútuo, mesmo que ridade. Isso significa que ela tem que servir para diversas
ela ainda não consiga tratar o professor com respeito mú- situações. Se ora ela é cumprida, ora não é cumprida, não
tuo, vai muito mais longe. Por exemplo, é comum, quando tem porque existir essa norma. A regra existe, é o contrato
as crianças brigam, o professor dizer: “vai lá, pede descul- entre as partes que vai beneficiar a todos. A característica
pas para o seu amigo, dá o dedinho para o seu amigo.” dessa regra é que ela tem que ser cumprida sempre, ela
Mas se a própria professora brigou com o namorado, está tem que estar presente sempre.
chateada com ele, qual o adulto que vai dizer: “vai lá, pede
desculpas e dá um abraço no seu namorado”? Da necessidade das regras
É preciso ter com a criança o mesmo respeito com que Ao combinar uma série de coisas bobas, muitas vão
se trata um adulto. Quem falaria para um adulto, a respeito ser deixadas passar, e o adulto acaba caindo em descrédito
de uma terceira pessoa presente: “não liga não, ela está aos olhos da criança. Quando fazemos uma regra com a
querendo aparecer mesmo”? Mas falamos isso da criança criança, temos que ter autoridade para que se cumpra a
para uma visita. regra. É preciso sempre questionar se vale a pena brigar
Quanto ao pedido de desculpas, só é válido quando por algo, a fim de definir-se uma regra é necessária ou não.
é sincero, quando a criança está realmente arrependida do No caso de um adolescente não vale a pena brigar
que fez. Esse desejo de desculpa tem que ser um desejo in- porque está frio lá fora e ele quer sair de camiseta, se ele
terno dela, não por solicitação externa. O que podemos fa- comeu ou não comeu. Ele já sabe tudo isso. Mas vale a
zer é deixar claro para a criança, porque as crianças apren- pena brigar pela chave do carro, se a regra for que antes
dem a pedir desculpas para se livrar do problema. Elas ba- dos dezoito anos não se dirige, e não abrir mão disso, dei-
tem no colega e depois falam: “mas eu já pedi desculpas”. xando muito clara essa postura.
Nós temos culpa nisso, porque quando elas brigam,
O adolescente tem que perceber que há aspectos
dizemos: “pede desculpas para o seu amigo.” A criança
como situações de respeito, de dignidade, de preconceito,
vai aprendendo que pode ficar livre dos problemas dessa
de organização de determinado espaço. Pode ser que no
maneira. Ao invés de fazer isso, quando uma criança pede
quarto dele fique bagunçado, mas na sala o espaço é cole-
desculpas, temos que sentar com ela e falar: “o pedido de
desculpas quer dizer que você está realmente sentido, ar- tivo. Se brigarmos por tudo, esse jovem não saberá aquilo
rependido do que você fez. É isso que você está sentindo? que é realmente importante, que é valorizado ou não.
Pedido de desculpas significa modificar, significa que você Na escola é idêntico. É preciso separar na classe quais
não está querendo mais fazer o que fez. É isso que você são as regras necessárias, que não são combinadas – como
quer dizer?” não bater, não falar palavrão, lavar as mãos, escovar dentes.
Também é necessário ensinar à criança as consequên- Essas regras são só comunicadas. Por exemplo, se bateu,
cias dos seus atos. Nós temos que tratar a criança com o o professor revalida a regra: “não se bate em ninguém”;
mesmo respeito que dedicamos aos adultos. Não xinga- puxou o cabelo de alguém: “não se puxa o cabelo das pes-
mos um adulto, não humilhamos, não colocamos de cas- soas”; “aqui nessa escola nós não falamos palavrões”.

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BIBLIOGRAFIA

Quando se quer mostrar autoridade, deixar claro que fazer”. “Tem regras que podem fazer?” e elas falavam: “não,
se está falando sério, mostrar que é para valer, tem que se pode ser feito, para que fazer regra”. Então colocou-se a
falar pouco. Quanto menos falar, mais será ouvido. A Angie regra: não gritar. “Ah, então não pode gritar, tem que ficar
Noil diz isso: para passar autoridade tem que ser breve e todo o mundo quieto?”. “Não, tem que falar. Então como
objetivo. Em várias palavras a mensagem se perde. Isso vale tem que falar? Pode falar baixo”. E aí vai se combinando.
para qualquer relacionamento, não é só com criança. Mas tem regras que não dá. Então vamos dar uma mistu-
Não adianta desenterrar o passado ou antecipar o futu- rada, coisas que podem, coisas que não podem ser feitas.
ro. O incidente tem que ser lidado no momento específico. As regras têm de ser em pequeno número para que
Por exemplo, aconteceu numa escola a criança subir na mesa os professores façam com que se cumpram. Se forem em
da merenda e sair correndo. A professora disse: “Felipe, para quantidade, muitas coisas serão deixadas passar. Para fa-
que servem as mesas?! Quantas vezes eu vou ter que falar zer com que se cumpram, pode ser de uma maneira mui-
com você? Felipe, como é que vai ser?” to natural, muito espontânea. Por exemplo, uma crian-
De repente, ela trabalhou a linguagem e resolveu mu- ça saiu da classe e deixou o cantinho desarrumado. O
dar. Mas é preciso usar uma linguagem descritiva e só se professor deve ir até ela e, tranquilamente, dizer: “olha,
descreve o que se está vendo. Aí ela falou: “Felipe, as mesas você esqueceu de arrumar o cantinho, vamos lá, num mi-
não foram feitas para as pessoas subirem nelas, desça.” Em nutinho a gente arruma.” E fazer junto com ele. O que é
nenhum momento ela agrediu o Felipe, porque em nenhum importante é as crianças perceberem que não vai passar.
momento admite-se qualquer ataque à dignidade de uma
Quando a criança percebe que ora a regra é cumpri-
criança. É terminantemente proibido qualquer tipo de humi-
da e ora não é cumprida, ela vai continuar tentando.
lhação à criança. Ela conseguiu passar autoridade e o Felipe
No filme apresentado, uma professora está traba-
desceu.
lhando individualmente com uma criança. Existia uma
Essa mesma criança, num outro dia, colocou a vassoura
no ventilador. Aí a professora segurou a mão dela, contendo regra de quando ela estivesse trabalhando individual-
o ato, sem apertar, e disse: “Felipe, não se coloca nem se mente com uma criança ela não seria interrompida. Ela
joga nada, absolutamente nada, no ventilador, entendeu?” combinou de fazer um sinal vermelho ou verde. Quando
É assim: tem que ser breve. Brincamos que o educador de estivesse verde, as crianças poderiam vir e conversar com
Educação Infantil tem que falar menos e ouvir mais as crian- ela. Quando estivesse vermelho, significava que ela esta-
ças. Nós falamos demais, o tempo inteiro, com as crianças. va conversando com uma criança e era para esperar um
Às vezes é preciso ouvir mais do que falar. pouquinho que depois ela atenderia.
Quando se coloca uma limitação, por exemplo, não se Mas essas atividades individuais são rápidas, cinco ou
joga pedra na janela, não há que explicar que não se pode dez minutos no máximo. O que acontecia é que a criança
jogar pedra na janela, porque a criança sabe isso. É simples- vinha falar alguma coisa, perguntar alguma coisa e ela
mente falar: “as janelas não foram feitas para serem que- dava atenção. Depois que ela resolvia o problema ela fa-
bradas”. É preciso usar uma linguagem que descreve, mas lava: “mas a gente não combinou de que quando estives-
seja breve. Com discursos, em qualquer situação, não se é se vermelho não poderia interromper?!” Por seis vezes
ouvido. foi assim, ela não conseguia trabalhar individualmente, as
Resumindo: para mostrar autoridade, ser breve; com outras crianças interrompiam. Então, ela resolveu cobrar
as regras necessárias, também usar linguagem breve. Por a regra mesmo. A criança chegava, ela levantava o verme-
exemplo, tem que lavar a mão na hora da merenda, não in- lho e falava: “é urgente? Então daqui a pouco eu vou lá”.
teressa se a mão está muito ou pouco suja. No começo, ela confessou que fazia com dor no coração,
As regras combinadas são muito mais importantes que mas depois de um mês ela não tinha mais problema.
as regras necessárias. Mas elas têm só dois objetivos: ga- Com a ida ao banheiro também é assim. Há classes
rantir a justiça na classe e organizar os trabalhos. Geralmen- que têm dois colares, um verde e um vermelho, para me-
te, logo no início do ano, combinamos as regras. Isso não é nina e para menino. Uma menina coloca o colar verde e
adequado, porque a criança precisa ter a necessidade dessa vai ao banheiro. No começo, é claro, eles formam uma
regra existir. Ela precisa sentir a necessidade dessa regra, e fila para ir ao banheiro. Depois isso vai ficando normal. É
se a colocamos no começo do ano, antecipamos o processo.
comum eles irem juntos em três, quatro, no banheiro. Se
Há regras que nós sabemos que são sempre necessárias
o professor ora cobra, ora não cobra, deixa passar, vai ser
– não bater, não falar alto etc –, mas as crianças não sabem.
assim o ano inteiro. Se na hora de ir ao cantinho, começar
Elas precisam, num primeiro momento na roda, falarem to-
a ir em grupos de cinco, seis, e o professor finge que não
das ao mesmo tempo. Quando ninguém estiver ouvindo,
pára para ver o que está acontecendo. “O que é preciso fa- vê, ora ele cobra, vai ser assim o ano inteiro.
zer para ouvir o que o fulano está falando?” Diante de um Trabalhamos com 30, 32 crianças. Uma média tran-
problema sentido pela criança, comentar e propor soluções. quila na sala. É claro que o ideal é ter menos alunos.
Mas a solução não é assim: “quem falar alto, acontece Acontece que o ideal é termos materiais adequados, es-
tal coisa”. Não se combina regra sanção. Combina-se: “falar paço físico adequado, um grupo de alunos pequenos,
um de cada vez.” No começo, nós entrevistamos as crianças por exemplo 20. Se esperarmos as condições ideais para
para perguntar o que elas achavam das regras. Era comum trabalhar bem, não iremos trabalhar nunca. O importante
as crianças falarem assim: “regra é tudo o que não se pode é, apesar das dificuldades, adaptar-se bem à situação.

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Observei o trabalho de uma professora que dava aula sam com o filho, confundem o “não” com o desamor. Falar
para crianças de seis anos numa classe em que, em outro “não” significa que eu não amo o meu filho. Ou mesmo
período, funcionava o ensino técnico de Segundo Grau. As para compensar, nessas poucas horas que passam com o
carteiras eram enormes, para adolescentes. Muito material, filho, não querem frustá-lo de maneira alguma. Sabemos
desenhos em que eles colocavam genitálias, xingavam crian- que pequenas frustrações não traumatizam. É importante
ças, destruíam. que a criança saiba lidar com a tristeza, com a alegria, com
Essa professora me ensinou muito. Ela e a turma de seis o “não”, porque na vida dela isso vai acontecer.
anos montavam e desmontavam a classe todos os dias. Cada É comum, em palestras, às vezes o próprio professor
aluno, durante 15 dias, era responsável por um pedaço da perguntar: “como lidar com uma classe em que a gen-
classe. Os cartazes e o varal do planejamento, mais o mate- te não impõe limites porque ama muito as crianças?” As
rial da sucata e o canto da pintura eram por conta da profes- pessoas confundem amor com superproteção. Isso não é
sora. O restante era dividido entre as crianças. amar. Amar é justamente esse respeito que eu dou à crian-
Elas chegavam na escola e iam na sala do almoxarifado, ça, o respeito ao desenvolvimento, atender às necessidades
pegavam o material, levavam para a classe e cada uma fazia dela. As necessidades que a criança tem, não é sufocá-la
a sua parte. Pegavam as carteiras, que ficavam uma atrás da com atenções, não colocar limitações, superprotegendo.
outra, empurravam, para fazerem a roda. Depois, na hora Nós podemos trabalhar com esses pais e eles têm
dos cantinhos, eles juntavam duas carteiras, quatro cadeiras, nos buscado, porque também estão perdidos a respeito
as outras eles empurravam. No final do dia, na hora da lim- de como educar. Se tiver espaço na escola, que seja uma
peza, eles levavam todo o material de volta para o almoxari- palestra mensal, que os próprios professores estudem, por
fado, punham uma carteira atrás da outra, deixavam do jeito exemplo os limites, e montem uma palestra para quem
que eles tinham encontrado a classe. esteja interessado em trabalhar os limites. Se for possível
Se crianças de seis anos fazem isso, como é que os mais convidar profissionais para dar palestras, ótimo, porque
velhos, de sete, oito, dez ou doze, não podem fazer? Há o ajudando a família, consequentemente, a criança está sen-
exemplo de uma classe em que a professora chegou tarde e do ajudada e o trabalho da escola também.
as crianças trabalharam sozinhos. Isso mostra que o centro Mas pode ser com os próprios professores, a cada mês
pedagógico está justamente no grupo, na classe, e não na um fica responsável por um tema, escreve um resumo,
mão do professor. É possível perceber claramente, em uma manda para os pais, indica livros. Acredito que também é
classe construtivista, que o centro pedagógico não está na função da escola orientar os pais, porque a consequência é
mão do professor. direta na formação das crianças.
Numa classe construtivista, quando as crianças estão Vocês já viram crianças brincando com boneca, ou com
acostumadas a resolver os problemas, a tomar decisões, a o colega, de relação sexual. É porque ela já viu isso. Do
montar e a organizar, o professor pode sair da sala. Pode tra- mesmo jeito que viu o pai batendo na mãe ou o pai sendo
balhar individualmente, pois o centro pedagógico não está preso. É importante que exista na sala, esse canto do jogo
mais na sua mão. O andamento, a disciplina, a aprendiza- simbólico, de faz-de-conta, ou mesmo uma caixa de mi-
gem não dependem mais do professor. niaturas em que ela possa brincar, para ter um espaço para
Se conseguirmos transformar essas relações que temos simbolizar. É perceptível que as crianças, quando estão pas-
com as crianças, nós estamos caminhando em direção à au- sando por determinados problemas, escolhem muito mais
tonomia dessas crianças. Vocês imaginem os futuros adultos o local do jogo simbólico, porque é uma maneira de eles
se isso for trabalhado nas séries iniciais, nos primeiros ciclos, lidarem com tudo isso.
se isso tiver continuidade. Nós percebemos que não há in- É importante que haja esse espaço para a criança brin-
volução, que eles não regridem em um ambiente autoritário. car de faz-de-conta com a boneca. É preciso dar esse espa-
Por isso é fundamental que não se façam regras bobas, ço para que ela lide com esses conflitos. É importante tam-
nem regras que reforcem relações de respeito lateral. Por bém falar sobre o episódio: “o que você sentiu quando isso
exemplo: “tem que obedecer a professora.” Ou “ficar quietos aconteceu?” A criança ter oportunidade de colocar o que
enquanto a professora estiver falando”. Espera lá, tem que sentiu. O professor não deve fingir que não está aconte-
obedecer as regras da classe. Tem que ficar quieto quando cendo nada, mas até colocar histórias com conflitos e como
alguém estiver falando. Quando um fala, os outros escutam. podemos lidar com eles. Buscar também conversar com os
Também existem regras que vão contra o desenvolvi- pais. Mas é fundamental que a criança fale a respeito do
mento da criança, por exemplo: “devem emprestar o brin- que está sentindo, que ela verbalize isso, que ela converse
quedo ao amigo, não falar mentira”. São regras feitas para com o professor e que ela perceba que os sentimentos dela
não serem cumpridas. As regras têm que ser muito elabora- são reconhecidos. Na sala de aula, precisamos abordar cer-
das, discutidas com as crianças, em cima de problemas reais. tos problemas diretamente.
Quando uma criança está presenciando uma situação
Escola para os pais de violência, é preciso lidar com ela – o que ela está sen-
Não tem escola para pais. Nós somos profissionais, tindo –, e com os pais também. Precisamos lidar com essas
estamos estudando e nos esforçando para quê? Para nos realidades distintas.
aperfeiçoarmos cada vez mais. E os pais acabam educando A nossa atuação na família é até mais limitada. Por mais
no bom senso. Às vezes, sentem-se culpados por traba- que conversemos com a criança, há determinadas famílias
lhar fora, por não dar atenção, e nos momentos que pas- que não vamos conseguir mudar, por melhor que seja o

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BIBLIOGRAFIA

nosso trabalho. Mas, apesar disso, o professor tem que tra- para morder foram colocados, a menina parou de morder. É
balhar com a criança sobre o que ela sente nessa situação, preciso deixar também desvios simbólicos para as crianças,
o que ela pensa, como ela está lidando com essa situação. para que eles possam se extravasar de alguma forma.
É o problema do cotidiano, muito mais importante que o Agimos de maneira semelhante quando apertamos a
ensino da matemática, do português, da religião, porque bochecha da criança. Conheci uma criança de dois anos
isso não é religião, é a vivência da religião. que, quando gostava de alguém, externava esses sentimen-
Por isso deve existir o canto do desabafo, o local em tos apertando as duas bochechas. Com um bebê pequeno,
que a criança pode desenhar o que a está entristecendo, essa atitude acabava em choro, é claro. A nossa função é
o que a está preocupando, pode escrever sobre o que ela mostrar para essa criança outras maneiras de extravasar o
está sentindo, pode pintar tudo aquilo de preto, rasgar em afeto dela.
mil pedacinhos e jogar no lixo, pode enviar a carta, enfim, Uma solução muito criativa foi relatada por uma pro-
pode expor o que ela está sentindo naquele dia. fessora simples, que nem tinha magistério, lá do Norte. Ela
Isso é chamado de “desvios simbólicos”. São desvios tinha um aluno que chutava muito e ela não sabia o que
que nós utilizamos para que a criança expresse a raiva, fazer. O chão da classe era de barro e ela falou para as
a tristeza, de uma maneira adequada, sem causar danos crianças ficarem descalças, trabalharem descalças. Quando
maiores. Por exemplo, eu posso estar com raiva de alguém, o menino chutava, doía o pé dele. Ele chutou duas vezes e
mas não posso socá-lo, mas eu posso socar uma almofada, nunca mais, porque doía o pé. A criatividade da professo-
um saco de serragem sem causar danos. ra permitiu à criança sentir as consequências do chute. Às
Não adianta tentar controlar a raiva de uma criança, ou vezes, ao sentir as consequências dos atos, as crianças vão
mesmo de um adulto. Para lidar com a raiva, é preciso que modificando as ações.
na classe tenha o jogo simbólico, uma caixa de areia com
miniaturas onde as crianças podem organizar, montar ce- Recompensas e punições
nários, em que vão lidar com os sentimentos. Se uma crian- Não usamos recompensas ou punições com as crianças
ça não quiser falar com o grupo, ou falar individualmente de forma alguma. Quando o adulto usa uma recompensa,
com você, que ela possa desenhar como está se sentindo, quando dá alguma coisa em troca, quando fala que quem
que possa pintar sobre isso. Isso é estar lidando com esses for bonzinho vai ficar no recreio, ele está manipulando para
sentimentos. que a criança aja como ele quer. O mesmo ocorre quando
Quanto menor for a criança, mais ela vai resolver os usa do castigo para que a criança não tenha alguns com-
problemas na ação, mais ela vai socar, morder. Quando ela portamentos. Nessas circunstâncias, a criança permanece
fala “eu te amo”, ela beija, abraça, sobe no colo, não fala heterônoma.
apenas. O mesmo ocorre quando ela está com raiva. Ela Castigo e recompensa funcionam. Quem falar que não
não só fala que está com muita raiva, mas também chuta, funcionam, está mentindo. O problema é que deixam con-
morde, bate. sequências na criança a longo prazo, como cálculo de risco.
Nós precisamos ensinar essas crianças a outra maneira A criança fica calculando qual a chance de ela ser flagrada,
delas se expressarem, sem ser com as mãos, com os pés, mentir para escapar de punição.
com os dentes. Não basta, para a criança pequena, o pro- Piaget diz que quando for necessário tomar uma atitu-
fessor falar: “eu gosto muito de você.” Ele tem que abra- de, o educador deve se valer de sanções por reciprocida-
çar e beijar a criança, o toque é importante. O mesmo vale de. São aquelas sanções que têm relação direta com aquilo
quando eles estão lidando com briga. que a criança fez. Por exemplo, as crianças estão brincando
Havia uma criança de quatro anos que mordia os ami- com um jogo e uma rouba. O que elas fazem? Não vão
gos. A professora falou: “você sabia que nessa escola não se mais querer jogar com aquele menino.
morde as pessoas?!” A criança respondeu: “não, não sabia”. Havia uma criança que, no meio do jogo, quando ele
A professora disse: “mas agora você fica sabendo”. Mas ela via que ia perder, dizia que não queria mais jogar. Foi assim
teve uma intervenção inadequada quando afirmou: “olha, na primeira vez, na segunda os meninos falaram que não
você pode se morder, mas não se morde os amigos.” Essa queriam mais jogar com ele. É uma decorrência natural do
criança começou a morder a si mesma, aparecia com mor- ato.
didas no braço. Ficou clara a necessidade que essa criança O que o Piaget diz é que nós protegemos muito as
tinha de morder, porque senão ela não estaria mordendo crianças. Não permitimos que elas sintam a consequência
a si mesma. do ato.
Em um caso como esse, é preciso deixar determinados Quando brigam, vamos lá imediatamente e pedimos
objetos para que ela possa morder. Da mesma maneira que para se desculparem. É importante que o adulto permita
deixamos um canto onde ela possa socar, que ela possa que as crianças sintam as consequências dos atos. “Por que
bater: “Olha, quando você estiver com muita raiva, você vai será que o grupo não quer mais jogar com você? O que
ali e morde a boneca. Eu sei que você está bravo, está com você vai fazer para deixar claro que você está disposto a
raiva, mas no seu amigo não se bate.” Não podemos per- mudar.”
mitir que a criança cause dano aos outros ou a si mesma. Outros tipos de sanções por reciprocidade são: privar
Tem uma fase em que a mordida é normal, por volta temporariamente a criança de algo que ela está estragan-
dos dois anos, depois desaparece, dependendo muito do do; reparar o dano causado, se ela quebrou algo; sujou,
ambiente. Foi engraçado que depois que objetos grandes limpou.

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BIBLIOGRAFIA

A criança sabe exatamente o que pode fazer e em que Esse foi seu batismo de fogo que fez com que se afas-
ambiente. A criança sabe o que pedir para o pai, o que tasse por 12 anos da educação. A sensação mais profunda
pedir para a mãe, o que um professor deixa, o que o outro que ficou dessa experiência foi a de ignorância. Ficou claro,
não deixa. A coerência seria o ideal, mas nem sempre é para ela, que as informações e ideias que circulavam na
possível, por isso investe-se em formação de professores. educação não davam conta do problema do ensino. O pro-
Sempre que possível, nas reuniões pedagógicas, todos fessor era um cego. Para ela, o professor continua chegan-
os profissionais devem participar, desde os zeladores ao do hoje à escola com as mesmas insuficiências com a qual
professor de química, por exemplo, mesmo que ele ache ela chegou em 1962, sendo que a diferença, hoje, está na
que não tem nada a ver com o tema. Isso é fundamental possibilidade que o professor tem de, se quiser, tentar re-
para adquirirem uma linguagem única. solver essa situação. Hoje, os professores têm à sua dispo-
sição um corpo de conhecimentos que, se não dá conta de
Fonte tudo, pelo menos ilumina os processos através dos quais as
VINHA, Telma Pileggi. O educador e a moralidade in- crianças conseguem ou não aprender certos conteúdos. O
fantil numa perspectiva construtivista. Revista do Cogeime, entendimento que se tem do professor hoje é o de alguém
nº 14, julho/99, pág. 15-38. com condições de ser sujeito de sua ação profissional.
Ao final de 1962, e durante os 12 anos seguintes traba-
lhou em áreas completamente diferentes, e como nenhuma
outra atividade dava sentido à sua vida profissional, acabou
WEIZ, T. O DIÁLOGO ENTRE O ENSINO E A voltando para a educação. Seu compromisso é com essas
APRENDIZAGEM. SÃO PAULO: ÁTICA. crianças - que são maioria nas escolas públicas - para que
superem o fracasso e tenham sucesso na escola. Apesar de
ser considerada especialista em alfabetização, sua questão
Weisz cursou o Normal no Instituto de Educação, no é a aprendizagem, em especial, a aprendizagem escolar.
Rio de Janeiro, possivelmente influenciada pela professora
de seu curso primário de quem gostava muito. Ao longo do Capítulo 2 - Um novo olhar sobre a aprendizagem.
curso, estando envolvida com outros interesses (artes plás-
ticas) quis sair, mas seus pais a convenceram a continuar. Apesar de ter iniciado sua docência em 1962, e de ter
Fez, então, o Instituto de Belas Artes (atual escola de Artes na época um certo conhecimento significativo quanto ao
Visuais do Parque Lage). Em 1962, quando cursava o seu fato da criança conseguir escrever, mesmo que não orto-
último ano do Curso Normal, constatou que a repetência graficamente, ela não tinha um conhecimento científico
fabricada pelas escolas tinha ultrapassado os limites, pelo acumulado que lhe permitisse superar um ponto de vis-
fato de não haver, em consequência, vagas para alunos ta “adultocêntrico”, ou seja, a forma como se concebe a
novos na 1ª série. O governador, então, tomou três provi- aprendizagem das crianças a partir da própria perspecti-
dencias: aprovou as crianças por decreto - tendo ido todo va do adulto que já domina o conteúdo que quer ensinar.
mundo para a 2a. série, sabendo ou não ler; montou esco- A partir dessa perspectiva, não é possível compreender o
las de madeira, com telhado de zinco, e convocou todas as ponto de vista do aprendiz, pois não se ‘enxerga’ o objeto
normalistas do último ano do curso para dar aulas. A partir de seu conhecimento com os olhos de quem ainda não
daí ela foi dar aula, para um grupo de crianças que tinham sabe. A partir dessa perspectiva, o professor (do lugar de
entre 11 e 12 anos e, que depois de terem repetido várias quem já sabe) define, a priori, o que é mais fácil e o que
vezes a 1a. série, tinham passado para a 2ª em função do é mais difícil para os alunos e quais os caminhos que eles
decreto do governador. devem percorrer para realizar as atividades desejadas. Tal
Eram 45 alunos, sendo que apenas 3 não eram negros. concepção, por parte do professor, gera um tipo de proce-
Não eram todos analfabetos, porém não se podia consi- dimento pedagógico que dificulta o processo de aprendi-
derá-los alfabetizados. Apesar de empregar as técnicas de zagem para uma parte das crianças, principalmente, aque-
ensino, sentia-se como preenchendo o tempo de aula. Não las que mais necessitam da ajuda da escola, por ter menos
conseguia avaliar os resultados do trabalho, nem o que de- conhecimento construído sobre os conteúdos escolares.
veria esperar das propostas que colocava em prática, sen- Assim, a adoção de uma postura adultocêntrica não é uma
tindo-se confusa e impotente. Situações da sala revelavam decisão voluntária dos professores, uma vez que, o conhe-
o abismo existente entre o desempenho de seus alunos na cimento científico que trazem consigo, não lhes permite
escola e o que a vida fora da escola exigia deles. Nesse enxergar e acolher uma outra concepção de aprendizagem
sentido, tinha a sensação de que a escola parecia uma ar- relacionada à perspectiva do aprendiz.
madilha montada para que esses meninos não pudessem A metodologia embutida nas cartilhas de al-
se sair bem, e também, a convicção de que esse tipo de si- fabetização contribui para o fracasso escolar.
tuação tinha um papel político muito importante que devia A chamada Psicogênese da Língua Escrita, resultado das
ser enfrentado durante toda a sua vida profissional. Ficava pesquisas realizadas por Emília Ferreiro e Ana Teberosky
impressionada quando conversava com algumas mães e (1970), sobre o que pensam as crianças quanto ao sistema
essas achavam natural que seus filhos não tivessem suces- alfabético de escrita, evidencia os problemas que a meto-
so na escola. Diziam que ela poderia ‘bater neles’ para ver dologia embutida nas cartilhas (que faz uso do método da
se estudavam. análise-síntese ou da palavra geradora) traz para as crian-

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BIBLIOGRAFIA

ças. Por meio das pesquisas das autoras acima mencio- prévio do aprendiz e as contradições que ele enfrenta no
nadas, em uma sociedade letrada, as crianças constroem processo. Em uma concepção de aprendizagem constru-
conhecimentos sobre a escrita desde muito cedo, a par- tivista, o conhecimento é visto como produto da ação e
tir do que observam na interação com o seu meio físico e reflexão do aprendiz. Esse aprendiz é compreendido como
social e das reflexões que fazem a esse respeito. As pes- alguém que sabe algumas coisas e que, diante de novas
quisas evidenciaram que quando as crianças ainda não se informações que têm para ele sentido, realiza um esforço
alfabetizaram, buscam uma lógica que explique o que não para assimilá-la, assim frente a um problema (conflito cog-
compreendem, elaborando hipóteses muito interessantes nitivo) o aprendiz tem a necessidade de superá-lo.
sobre o funcionamento da escrita. O novo conhecimento aparece como aprofundamento
Esses estudos permitiram compreender que a meto- do conhecimento anterior que ele já detém. É inerente à
dologia das cartilhas pode fazer sentido para crianças con- própria concepção de aprendizagem que o aprendiz bus-
vencidas de que para escrever uma determinada palavra, que o conhecimento prévio que ele possui sobre qualquer
bastar uma letra para cada sílaba oral emitida (hipótese si- conteúdo. Através dos estudos de Emília Ferreiro e Ana Te-
lábica), mas para aquelas que ainda cultivam ideias muito berosky e demais colaboradores, sabemos que a criança
mais simples a respeito da escrita, ou seja, que ainda não representa a escrita de diferentes modos, como a expres-
estabeleceram relação entre a escrita e a fala (pré-silábica), são de um conhecimento sobre a escrita que precede a
o esforço de demonstrar que uma sílaba, geralmente, se compreensão real do funcionamento do sistema alfabético.
escreve com mais de uma letra não faz nenhum sentido. No caso da aprendizagem da escrita, o meio social coloca
São essas as crianças que não conseguem aprender com a para as crianças uma série de contradições e de conflitos
cartilha e que ficam repetindo a 1ª série várias vezes, che- que a forçam a buscar soluções, superar as hipóteses ina-
gando a desistir da escola. dequadas quanto ao sistema de escrita, através da cons-
As crianças constroem hipóteses sobre a escrita e seus trução de novas teorias explicativas. Nesses momentos, a
usos a partir da participação em situações nas quais os atuação do professor é fundamental, pois a conquista de
textos têm uma função social de fato. Frequentemente as novos patamares de compreensão pelo aluno é algo que
crianças mais pobres são as que têm hipóteses mais sim- depende também das propostas didáticas e da intervenção
ples, pois vivem poucas situações desse tipo. Para elas a que ele fizer.
oportunidade de pensar e construir ideias sobre a escrita Essas teorias explicativas são formas de interpretação
é menor do que para as crianças que vivem em famílias não necessariamente conscientes, mas que orientam a
típicas de classe média ou alta, nas quais ouvem a leitura ação de quem está aprendendo. Tais teorias são modifi-
de bons textos, ganham livros e gibis, observam os adul- cadas no embate com a realidade com a qual o aluno se
tos manusearem jornais para buscar informações, recebem depara a todo instante e especialmente quando o profes-
correspondências, fazem anotações, etc. Isso não quer di- sor cria contextos adequados para que isso aconteça. Para
zer, que as crianças pobres não tenham acesso à escrita aprender, a criança passa por um processo que não tem a
ou não façam reflexões sobre seu funcionamento fora da lógica do conhecimento final, como é visto pelos adultos.
escola, mas habitualmente tais práticas não fazem parte do Do ponto de vista do referencial construtivista, ne-
cotidiano do seu grupo social de origem e isso faz com que nhum conceito nasce com o sujeito ou é incorporado de
o início de sua escolarização se dê em condições menos fora, mas precisa ser construído através da interação do su-
favoráveis do que para aquelas crianças que participam de jeito com o meio (físico, social, cultural); nesse processo de
práticas sociais letradas desde pequenas. construção, as expressões do aprendiz não têm a lógica do
Assim, independente do fato de que as crianças venham conhecimento final, concebido pelo adulto. As pesquisas
de uma família pobre ou não, o que importe realmente é realizadas pelo psicólogo Jean Piaget quanto à conserva-
a ação pedagógica do professor, e esta dependerá da sua ção de quantidades (massa/ fichas), demonstram que para
concepção de aprendizagem (todo o ensino se apoia numa crianças com idade de 5/7 anos, o fato de oito fichas apre-
concepção de aprendizagem). É possível enxergar o que o sentarem-se juntas e oito fichas apresentarem-se espalha-
aluno já sabe a partir do que ele produz e pensar no que das apresentam quantidades diferentes, simplesmente pela
fazer para que aprenda mais. Nas últimas décadas muitas disposição / configuração dessas fichas (pensamento pré-
pesquisas pontuam uma concepção de aprendizagem que -operatório/perceptivo/ irreversível). Começa com Piaget, a
é resultado da ação do aprendiz. Dessa forma, a função do construção de um novo olhar sobre a aprendizagem.
professor é criar condições para que o aluno possa exer- Piaget desenvolveu uma teoria do conhecimento
cer a sua ação de aprender participando de situações que (Epistemologia e Psicologia Genética) que explica como
favoreçam a atividade mental, ou seja, o exercício intelec- se avança de um conhecimento menos elaborado para um
tual. Quando o professor entende que o aprendiz sempre conhecimento mais elaborado, ressaltando que o conheci-
sabe alguma coisa e pode usar esse conhecimento para mento é resultado da interação do sujeito com o meio ex-
continuar aprendendo ele pode identificar que informação terno, que é um processo no qual o sujeito participa ativa-
é necessária para que o conhecimento do aluno avance. mente, modificando o meio no qual está inserido e sendo,
Essa percepção permite ao professor compreender que a também, modificado por esse mesmo meio.
intuição não é mais suficiente para guiar a sua prática e Foram os estudos de Piaget que abriram a possibili-
que ele precisa de um conhecimento que é produzido no dade de se estudar a construção de conhecimentos es-
território da ciência. É preciso considerar o conhecimento pecíficos, como o fez Emília Ferreiro que mostrou que era

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BIBLIOGRAFIA

possível pensar o construtivismo - o modelo geral de cons- que não foram ensinadas pelo professor e, sim, construídas
trução do conhecimento, tal como formulado por Piaget e pelo aprendiz. Quando uma criança escreve fazendo uso
colaboradores da Escola de Genebra - como a moldura de de uma concepção silábica de escrita, por exemplo, essa
uma investigação sobre a aquisição de um conhecimento ‘escrita’ não é reconhecida como um saber, pois do ponto
particular, no caso de Emília Ferreiro, o da leitura e escrita. de vista de como se escreve em português, essa escrita não
A Psicogênese da Língua Escrita é um modelo psicológico existe. Mas, para chegar a escrever em português (escrita
de aprendizagem específico da escrita que serve de infor- alfabética), o aprendiz precisa passar por uma concepção
mação ao educador, porém a maneira como essas informa- de escrita desse tipo (silábica), imaginando que quando se
ções são usadas na ação educativa pode variar muito por- escreve representa-se as emissões sonoras que ele conse-
que nenhuma pedagogia responde apenas a um modelo gue reconhecer (a sílaba), isolando-as pela via da audição.
psicológico. O modelo geral no qual se apoia a Psicogêne- Tal conhecimento é importante e o professor deve
se da Língua Escrita é de que há um processo de aquisição reconhecê-lo na aprendizagem da escrita. Caso contrário
no qual a criança vai construindo hipóteses sobre a escri- contribuirá muito pouco com os avanços do aluno em rela-
ta, testando-as, descartando umas e reconstruindo outras. ção à escrita e, se a criança aprender a ler, provavelmente,
Durante a alfabetização, aprende-se mais do que escrever será por conta própria.
alfabeticamente. Aprendem-se, pelo uso, as funções da Um olhar cuidadoso sobre o que a criança errou pode
escrita, as características discursivas dos textos escritos, os ajudar o professor a descobrir o que ela tentou fazer. So-
gêneros utilizados para escrever e muito outros conteúdos. mente um olhar cuidadoso e despojado do professor sobre
O modelo de ensino atualmente relacionado ao cons- a produção do aprendiz (quanto ao saber não reconheci-
trutivismo chama-se aprendizagem pela resolução de pro- do), permitir-lhe-á descobrir o que pensa esse aprendiz,
blemas (situações-problema). Aprender a aprender é algo possibilitando-lhe levantar questões e perguntas sobre tal
possível apenas a quem já aprendeu muita coisa. Para produção. Ao desconsiderar o esforço do seu aluno, dizen-
aprender a aprender, o aprendiz precisa dominar conheci- do-lhe que sua produção não está correta, acaba desva-
mentos de diferentes naturezas, como as linguagens, por lorizando sua tentativa e esforço e, consequentemente, o
exemplo. Nesse processo, a flexibilidade e a capacidade aluno vai pensar duas vezes antes de produzir de novo. O
de se lançar com autonomia nos desafios da construção conhecimento se constrói por caminhos diferentes daque-
do conhecimento são extremamente importantes, pois há les que o ensino supõe. Isso acontece no processo de aqui-
todo um saber necessário para poder aprender a aprender; sição da escrita, na construção dos conceitos matemáticos
e isso só é possível para quem aprendeu muito sobre muita e na aprendizagem de qualquer outro conteúdo e mesmo
coisa. Deste modo, é desejável que o aprendiz saiba buscar quando os alunos estão submetidos a um tipo de ensino
informações através do computador, porém é fundamental convencional, pois o que impulsiona a criança é o esforço
desenvolver a capacidade de estabelecer relações inteli- para acreditar que atrás das coisas que ela tem de apren-
gentes entre os dados, as informações e os conhecimentos der existe uma lógica. Se o professor não sabe nada sobre
já construídos. o que o aluno pensa ou conhece a respeito do conteúdo
Nesse sentido, para ser capaz de aprender permanen- que quer que ele aprenda, o ensino que ele oferece não
temente, a bagagem básica necessária atualmente é aca- tem com quem dialogar. Conhecimentos prévios dos alu-
dêmico-cultural, em que se articulam conhecimentos de nos não deve ser confundido com conteúdo já ensinado
origem tradicionalmente escolar e aqueles relacionados pelo professor.
aos movimentos culturais da sociedade (formação geral). Na perspectiva construtivista - de resolução de proble-
Assim, a escola tem uma tripla função: mas - o professor não pode considerar como sinônimos o
1. levar o aluno a aprender a aprender; que o aluno já sabe e o que lhe foi ensinado, pois não são
2. dar-lhe os fundamentos acadêmicos e; necessariamente a mesma coisa. Para que isso não aconte-
3. equalizar as enormes diferenças no repertório de co- ça, é preciso que o professor desenvolva uma sensibilidade
nhecimentos dos aprendizes. e uma escuta atenta para a reflexão que as crianças fazem,
supondo que o que elas pensam tem sentido e não é fruto
É praticamente impossível a escola realizar sozinha de sua ignorância. O professor precisa criar um ambiente
essa terceira função, mas sua contribuição é essencial, pois socioafetivo para que as crianças possam manifestar livre-
é preciso pensar como agir para democratizar o acesso à mente/espontaneamente o que pensam; somente assim,
informação e às possibilidades e construção de conheci- poderá favorecer situações de aprendizagem significativas.
mento. Tal ambiente deve possibilitar que as crianças pensem sobre
Capítulo 3 - O que sabe uma criança que parece não suas ideias. Do mesmo modo, cabe ao professor oferecer
saber nada conflitos/situações problemas que possibilitem às crianças
Saber o que o aluno sabe e o que ele não sabe para exercitarem o pensamento, na busca de soluções possíveis.
poder atuar é uma questão complexa. Esse saber não está Isso requer do professor estudo e uma postura reflexiva e
relacionado ao conteúdo a ser ensinado (perspectiva adul- investigativa. A psicogênese da língua escrita abriu a pos-
ta) e sim ao ponto de vista do aprendiz porque é esse o co- sibilidade de o professor olhar para a criança e acreditar
nhecimento necessário para fazer o aluno avançar do que que para aprender ela pensa, que aquilo que ela faz tem
ele já sabe para o que não sabe. O que realmente impor- lógica e o que o professor não enxerga é porque não tem
ta são as construções e ideias que o aprendiz elaborou e instrumentos suficientes para perceber o sentido que está

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BIBLIOGRAFIA

sendo manifestado pela criança. Um casamento entre a Todos os professores, principalmente, aqueles das
disponibilidade da informação externa e a possibilidade classes iniciais que quiserem contribuir para que todos
da construção interna. Quando o professor não entende a os alunos de sua classe tenham a mesma oportunidade
produção da criança deve-se perguntar à criança, mesmo de aprender, devem estimulá-los a participar da cultura. É
que não consiga entender suas explicações, uma atividade papel do professor ler diferentes tipos de assuntos/textos
indicada para isso é o trabalho em dupla, pois trabalhando (usar o jornal e outras fontes de informação e de pesquisa)
juntas as crianças dão explicações umas às outras e, então, em classe e levar as crianças para exposições de artistas
o professor poderá compreender as hipóteses das crianças. importantes. É preciso oferecer às crianças a oportunidade
Assim, é importante observar os procedimentos dos de navegar na cultura, na Internet, na arte, em todas as
alunos diante de uma atividade, para que o professor pos- áreas do conhecimento, em todas as linguagens, em todas
sa reconhecer esses procedimentos dos alunos, de modo, as possibilidades.
a saber quais são os menos e os mais avançados e que ra- Um exemplo de alguém que sabia como tratar as
ciocínio os alunos mais avançados então realizando. O tra- crianças era Monteiro Lobato que escrevia livros contando
balho em grupo permite que as crianças observem os pro- coisas da Antiguidade, falando de astronomia, da história
cedimentos de atuação de seus colegas, inclusive daqueles do mundo. Porém, o que normalmente se oferece para as
que utilizam procedimentos de resolução de problemas crianças lerem são histórias empobrecidas, versões resu-
mais avançados. Ao perceberem a possibilidade de dife- midas e textos com supressões. Não é possível formular
rentes formas de execução, reconhecem o procedimento receitas prontas para serem aplicadas a qualquer grupo de
do colega como mais produtivo e econômico, construindo, alunos. Nos anos 1970, uma visão de escola como linha
assim, a lógica necessária para poder aprender (a criança de montagem, denominada de tecnicista, voltada para criar
aprendeu com outra que sabe mais). máquinas de ensinar, métodos de ensino, sequências de
Tem-se, assim, de um delicado casamento entre a dis- passos programados, dominava a concepção de ensino e
ponibilidade da informação externa e a possibilidade da aprendizagem. No Brasil, esse modelo chamava-se ensi-
construção interna - construtivismo: um modelo explicati- no programado. A função do professor, nesse modelo, era
vo da aprendizagem que considera, ao mesmo tempo, as simplesmente, a de administrar o ensino programado e foi,
possibilidades do sujeito e as condições do meio. Cabe ao justamente, esse modelo o responsável por uma exigência
professor tomar decisões importantes, seja na formação cada vez mais baixa de qualificação dos professores.
das parcerias entre alunos, seja nas questões que ele mes- O ensino programado permitia o que se chamava de
mo propõe no desenrolar da atividade. Todas as crianças ‘ensino na medida do estudante’, que embora conside-
sabem muitas coisas, só que umas sabem coisas diferentes rasse os vários ritmos de aprendizagem da criança, todos
das outras. As crianças são provenientes de culturas dife- aprendiam, pois, seguindo os passos programados chega-
rentes e isso contribui para que saibam coisas diferentes, riam todos, de alguma forma, ao final. O papel do profes-
por isso é importante que o professor tenha claro que as sor dentro de uma proposta construtivista é bem diferente
crianças provenientes de um nível cultural valorizado pela deste proposto pelo modelo tecnicista. Cabe ao professor
escola apresentam enormes vantagens em relação às ou- construir conhecimentos de diferentes naturezas, que lhe
tras crianças. Para tais crianças a escola será muito mais permitam ter claros os seus objetivos, assim como sele-
fácil, porque está em consonância com a cultura da família cionar conteúdos adequados, enxergando na produção de
e do seu ambiente. Por outro lado, as crianças provenientes seus alunos o que eles já sabem e construindo estratégias
de ambientes onde as pessoas possuem menor grau de que os levem a conquistar novos patamares de conheci-
escolaridade e distantes dos usos cotidianos dos conteú- mento. Não há receitas prontas a serem aplicadas a grupos
dos que a escola valoriza encontrarão dificuldades. Assim, de alunos, uma vez que, a prática pedagógica é complexa
a equalização das oportunidades de aprendizagem dessas e contextualizada. O professor precisa ser alguém com au-
crianças deve ser uma tarefa da escola que deve repensar tonomia intelectual.
sua própria prática, de modo a não prejudicar o sucesso
escolar desses alunos. (...) “É preciso, pois, educar o olhar Capítulo 4 - As ideias, concepções e teorias que susten-
para enxergar o que sabem as crianças que aparentemente tam a prática de qualquer professor, mesmo quando ele não
não sabem nada”. (p, 49) tem consciência delas.
A equalização de oportunidades de aprendizagem não
significa uma pedagogia compensatória. É preciso sociali- A prática pedagógica do professor é sempre orientada
zar os conteúdos pertencentes ao mundo da cultura: lite- por um conjunto de ideias, concepções e teorias, mesmo
ratura, ciência, arte, informação tecnológica, etc., pois isso que nem sempre tenha consciência disso. Para que possa-
é uma questão de inserção social e, portanto, direito de mos compreender a ação do professor, é preciso verificar
todas as crianças. A escola não pode ser instrumento de de que forma seus atos expressam sua concepção sobre:
exclusão social. Todo professor deve levar todos os seus - o conteúdo que ele espera que o aluno aprenda;
alunos a participarem da cultura. O termo cultura é utiliza- - o processo de aprendizagem (os caminhos pelo quais
do não em seu sentido antropológico e sim no do senso a aprendizagem acontece);
comum: a cultura erudita e a de larga difusão, mas produ- - como deve ser o ensino.
zida para e pela elite.

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BIBLIOGRAFIA

Historicamente, a teoria empirista é a teoria que mais a refletir, interagindo com outras pessoas. A diferença en-
vem impregnando as representações sobre o que é ensi- tre o modelo empirista e o modelo construtivista é que no
nar, quem é o aluno, como ele aprende e o que e como se primeiro a informação é introjetada ou não; enquanto que
deve ensinar (modelo de ensino e aprendizagem conhe- no segundo, o aprendiz tem de transformar a informação
cido como estímulo-resposta). Essa teoria define a apren- para poder assimilá-la. Isso resulta em práticas pedagógi-
dizagem como ‘a substituição de respostas erradas por cas muito diferentes. Afirmar que o conhecimento prévio
respostas certas’, partindo da concepção de que o aluno é a base da aprendizagem não é defender pré-requisitos.
precisa memorizar e fixar informações, as mais simples e No modelo construtivista, o conhecimento não é ge-
parciais possíveis e ir acumulando com o tempo. A cartilha rado do nada, é uma permanente transformação a partir
está fundamentada nesse modelo (palavras-chaves, famí- do conhecimento que já existe. Essa afirmação de que co-
lias silábicas usadas exaustivamente, frases desconectadas, nhecimentos prévios constituem a base de novas aprendi-
textos com mínimo de coerência e coesão). Como a meto- zagens não significa a crença ou a defesa de pré-requisitos
dologia de ensino expressa nas cartilhas concebe os cami- e muito menos significa matéria ensinada anteriormente
nhos pelas quais a aprendizagem acontece. Na concepção pelo professor.
empirista, o conhecimento está ‘fora’ do sujeito (a fonte do Não informar nem corrigir significa abandonar o aluno
conhecimento é externa ao sujeito - é o meio físico e social) à própria sorte. A crença espontaneísta de que o aluno
e, é interiorizado através dos sentidos, ativado pela ação constrói o conhecimento, não sendo necessário ensinar-
física e perceptual. -lhe, faz com que o professor passe a não informar, a não
O sujeito é concebido como uma tábula rasa – ‘vazio’ corrigir e a se satisfazer com que o aluno faz ‘ do seu jei-
na sua origem, sendo ‘preenchido’ pelas experiências que to’; isso significa abandonar o aluno à sua própria sorte.
tem com o mundo (conceito de ‘educação bancária’ critica- Cabe ao professor organizar a situação de aprendizagem
da por Paulo Freire). O aprendiz é alguém que vai juntando de forma a oferecer informação adequada. A função do
informações. O processo de ensino fundamentado nes- professor é observar a ação da criança, acolher ou proble-
sa teoria caracteriza-se pela: cópia, ditado, memorização matizar / desestabilizar suas produções, intervindo sempre
pura e simples, utilização da memória de curto prazo para que achar que pode contribuir para que a concepção da
reconhecimentos das famílias silábicas, leitura mecânica criança sobre o objeto de conhecimento avance. É papel
para posterior leitura compreensiva. Para mudar é preciso do professor apoiar a construção do conhecimento pelo
reconstruir toda a prática a partir de um novo paradigma aprendiz.
teórico. Em uma concepção construtivista, o conhecimento
não é concebido como cópia do real, incorporado direta- Capítulo 5 - Como fazer o conhecimento do aluno
mente pelo sujeito. A teoria construtivista pressupõe uma avançar.
atividade, por parte do aprendiz, que organiza e integra os O processo de ensino deve dialogar com o de apren-
novos conhecimentos aos já existentes. Isso acontece com dizagem. Isso mostra que não é o processo de aprendiza-
alunos e professores em processo de transformação. gem (aluno) que deve se adaptar ao processo de ensino
Uma preocupação, bastante pertinente, diz respeito ao (professor), mas, sim, o processo de ensino que deve se
fato do professor querer inovar a sua prática, adotando um adaptar ao processo de aprendizagem. Para tanto, o pro-
modelo de construção de conhecimento sem compreen- fessor precisa compreender o caminho de aprendizagem
der, suficientemente, as questões que lhe dão sustentação, que o aluno está percorrendo naquele momento e, a partir
correndo o risco de se deslocar de um modelo que lhe é disso, identificar as informações e atividades que permi-
familiar para o outro meio conhecido, mesclando teorias, tirão ao aluno avançar do patamar de conhecimento que
como se costuma afirmar. Outra preocupação diz respei- conquistou para outro que é mais avançado. Para isso, é
to ao entendimento destorcido por parte de professores, preciso que o professor organize situações de aprendiza-
que acreditando ser o sujeito sozinho quem constrói o co- gem: atividades planejadas (propostas e dirigidas) com a
nhecimento, veem a intervenção pedagógica como desne- intenção de favorecer a ação do aprendiz sobre um de-
cessária. Tais concepções não fazem nenhum sentido num terminado objeto de conhecimento, sendo que essa ação
modelo construtivista. Conteúdos escolares são objetos de está na origem de toda e qualquer aprendizagem.
conhecimento complexos, que devem ser dados a conhe- Tais atividades devem reunir algumas condições e res-
cer, aos alunos, por inteiro. peitar alguns princípios:
Para o referencial construtivista, a aprendizagem da lei- - os alunos devem por em jogo tudo que sabem e
tura e da escrita é complexa e, portanto, deve ser apresen- pensam sobre o conteúdo que se quer ensinar;
tada / oferecida por inteiro ao aprendiz e de forma funcio- - devem ter problemas a resolver e decisões a tomar
nal. Para os construtivistas, o aprendiz é um sujeito, prota- em função do que se propõe produzir;
gonista do seu próprio processo de aprendizagem, alguém - a organização da tarefa pelo professor deve garantir
que vai produzir a transformação, convertendo informação a máxima circulação de informação possível;
em conhecimento próprio. Essa construção pelo aprendiz - o conteúdo trabalhado deve manter suas caracterís-
não se dá por si mesma e no vazio, mas a partir de situa- ticas de objeto sociocultural real, sem se transformar em
ções nas quais age sobre o que é o objeto do seu conheci- objeto escolar vazio de significado social.
mento, pensa sobre ele, recebendo ajuda, sendo desafiado

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BIBLIOGRAFIA

Alunos põem em jogo tudo que sabem, têm proble- ensino de Ciências. Porém, não se pode criar invenções
mas a resolver e decisões a tomar: pretensamente facilitadoras que acabem tendo existência
O aprendiz precisa testar suas hipóteses e enfrentar própria. É papel da escola garantir a aproximação máxima
contradições, seja entre as próprias hipóteses, seja entre o entre o use social do conhecimento e a forma de tratá-lo
que consegue produzir sozinho e a produção de seus pa- didaticamente.
res ou entre o que pode produzir e o resultado tido como
convencionalmente correto. Partindo-se de uma proposta Capítulo 6 - Quando corrigir, quando não corrigir.
construtivista, o conhecimento só avança quando o aluno O professor desenvolve dois tipos de ação pedagógica:
tem bons problemas sobre os quais pensar. Para isso, o planejamento e intervenção, uma intervenção clássica é a
professor deve criar boas situações de aprendizagem para correção que não é a única intervenção possível, nem a
os alunos, atividades que representem possibilidades difí- mais importante, porém é a que mais tem preocupado os
ceis, porém dificuldades possíveis de serem resolvidas. professores. Numa concepção construtivista de aprendiza-
A escola precisa autorizar e incentivar o aluno a acio- gem, a função da intervenção é atuar de modo que os alu-
nar seus conhecimentos de experiências anteriores, fa- nos transformem seus esquemas interpretativos em outros
zendo uso deles nas atividades escolares; é preciso criar que deem conta de questões mais complexas que as ante-
atividades para que isso seja de fato requisitado, sen- riores. A correção é algo relacionado a qualquer situação
do útil para qualquer área de conhecimento. A organi- de aprendizagem, o que varia é como ela é compreendida
zação da tarefa garante a máxima circulação de infor- pelo professor.
mação possível. Os livros e demais materiais escritos, A tradição escolar normalmente vê a correção realiza-
a intervenção do professor, a observação de um cole- da longe dos alunos na qual os erros são assinalados para
ga na resolução de um problema, as dúvidas, as dificul- que os alunos corrijam, como a mais importante (concep-
dades, o próprio objeto de conhecimento que o aluno ção empirista - exigente com a transmissão). Quando se
se esforça para aprender são situações que informam. trata de uma redação, o texto tem que ser passado a limpo,
Por isso, é importante que se garanta a máxima circulação corrigido - o erro poderá ficar fixado na memória do aluno
de informação possível na classe e o ambiente escolar deve (concepção que supõe a percepção e a memória como nú-
permitir que as perguntas e as respostas circulem. Nesse cleos na aprendizagem). Outra visão de correção é a infor-
processo, as informações que chegam até o aprendiz pre- mativa que carrega a ideia de que a correção deve informar
cisam ser trabalhadas ou interpretadas por ele de acordo o aluno e ser feita dentro da situação de aprendizagem
com que lhe é possível naquele momento. O professor pre- (concepção de erro construtivo - que faz parte do processo
cisa estar ciente de que o conhecimento avança quando de aprendizagem de qualquer pessoa).
o aprendiz se defronta com situações-problema nas quais Os erros devem ser corrigidos no momento certo. Que
não havia pensado anteriormente. Situações significativas nem sempre é o momento em que foram corrigidos. A
de aprendizagem em sala de aula acontecem quando o ideia do erro construtivo fascinou muitos educadores, que
professor abre mão de ser o único informante e quando o começaram a ver de outra forma os textos escritos dentro
clima sócio afetivo se baseia no respeito mútuo e não no de um sistema silábico e mesmo os de escrita alfabética.
autoritarismo. É preciso incentivar a cooperação, a solida- Porém, depois que a criança compreendeu o sistema alfa-
riedade, o respeito e o tutoramento (um aluno ajudando o bético de escrita é necessário que o professor intervenha na
outro) em sala de aula. questão ortográfica, considerando a melhor forma de fazer
A interação entre os alunos é necessária não somente isso. O que deve ser repensado é a concepção tradicional
porque o intercâmbio é condição para o convívio social na de correção. Os alunos sabem o que achamos importantes
escola, mas, também, porque informa a todos os envolvi- que eles aprendam, mesmo que não falemos nada. Muitos
dos e potencializa quase infinitamente a aprendizagem. O professores, por não quererem bloquear a criatividade do
conteúdo trabalhado deve manter suas características de aluno, acabam deixando que ele escreva de qualquer jeito.
objeto sociocultural real. O ensino da língua portuguesa Tal procedimento acaba consolidando um contrato didáti-
está cheio de criações escolares que em nada coincidem co implícito, pois de alguma forma o aluno percebe que o
com as práticas sociais de uso da língua, objeto de ensino professor não valoriza esse tipo de conhecimento e acaba
na escola, baseadas no senso comum. Isso não acontece por desvalorizá-lo investindo nessas aprendizagens. É im-
somente no ensino da língua portuguesa, mas em todas as portante que o professor tenha claro que depois de um
outras áreas. Na escola, por exemplo, aprende-se a lingua- tempo de escolaridade, são inaceitáveis.
gem matemática escrita, que é pouco usada na rua. Porém,
não se pode deixar de lado esta competência que o aluno Capítulo 7 – A necessidade e os bons usos da avaliação.
já traz desenvolvida (devido a sua vivência de ‘rua’) e so- No que diz respeito à avaliação, é preciso ter claro o
brepor a escolarização a ela. que o aluno já sabe no momento em que lhe é apresen-
Quando se trata de ciência ou prática social convertida tado um conteúdo novo. O conhecimento prévio é o con-
em objeto de ensino, estas acabam por sofrer modifica- junto de ideias, representações e informações que servem
ções. A arte é diferente na Educação Artística, o esporte de sustentação para a nova aprendizagem, ainda que não
é diferente da Educação Física, a linguagem é diferente tenham, necessariamente, uma relação direta com o con-
do ensino de Língua Portuguesa, a ciência é diferente do teúdo que se quer ensinar. É importante investigar e explo-

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BIBLIOGRAFIA

rar essas ideias e representações prévias porque permite Questões


saber de onde vai partir a aprendizagem que se quer que
aconteça. Conhecer essas ideias e representações prévias 01. (COPEVE-UFAL/017) O estudo da justiça, bem
ajuda muito na hora de construir uma situação na qual o familiar à teoria piagetiana, é apresentado e discutido no
aluno terá de usar o que já sabe para aprender o que ainda encerramento de seu ensaio sobre a moralidade infantil.
não sabe. Ele considera a justiça a mais racional de todas as noções
Após esta avaliação inicial, relacionada aos conheci- morais. Qual opção abaixo está correta?
mentos prévios, é preciso que o professor utilize um ou a) A justiça se cumpre enquanto que um dever se faz.
outro instrumento para verificar como os alunos estão b) Os deveres são ideais enquanto que a justiça é um
progredindo, pois, o conhecimento não é construído igual- imperativo a ser obedecido.
mente, ao mesmo tempo e da mesma forma por todos. c) A justiça deve, a cada momento, decidir como alcan-
Esse instrumento é a avaliação de percurso - formativa ou çar seu intento.
processual - feita durante o processo de aprendizagem. d) A justiça, para a criança pequena, não se confunde
Esse procedimento permitirá ao professor avaliar se o tra- com a lei e com a autoridade.
balho que está desenvolvendo com os alunos está sendo e) Piaget encontrou evidências de autonomia que an-
produtivo e se os alunos estão aprendendo com as situa- tecede a heteronomia.
ções didáticas propostas.
A avaliação da aprendizagem é também a avaliação do 02. (TCE-PI - Pedagogo – FCC/2017) Com base na
trabalho do professor. concepção piagetiana de aprendizagem, conclui-se que
Quando se avalia a aprendizagem do aluno, também cabe ao professor
se avalia a intervenção do professor, pois o ensino deve (A) planejar as atividades intelectivas em conformidade
ser planejado e replanejado em função das aprendizagens com o ano escolar dos alunos.
conquistadas ou não. Assim, é importante a organização de (B) criar situações que estimulem o aluno a pensar, pes-
espaços coletivos de discussão do trabalho pedagógico na quisar, estudar e analisar a questão a ele apresentada.
escola, valorizando-se a prática de observação de aula pelo (C) escolher os conteúdos e organizar materiais didáti-
coordenador ou orientador pedagógico - ou mesmo por cos de acordo com os diversos interesses dos alunos.
um colega que ajude a olhar de fora. O professor está sem- (D) elaborar uma rotina de estudo para que o aluno
pre tão envolvido que, às vezes, não lhe é possível enxergar conquiste sua autonomia de pensamento.
o que salta aos olhos de um observador externo. (E) ensinar primeiramente os conteúdos mais simples
Se a maioria da classe vai bem e alguns não, estes de- para gradativamente chegar aos mais complexos.
vem receber ajuda pedagógica. Quando, numa verificação
de aprendizagem, grande parte dos alunos apresenta difi- 03. (ENADE – Pedagogia/2017) A professora afirmou
culdades, é certo que o professor precisa rever o seu en- que a baleia é um mamífero. Inconformado, Pedro argu-
caminhamento. Porém, quando a verificação aponta que mentou: “Mamífero é vaca, gato, cachorro, cujos filhotes
alguns alunos não estão bem, estes devem ser atendidos mamam. A baleia vive dentro d’água, tem nadadeiras, é um
imediatamente através de outras atividades que possibi- peixe”. A maioria dos colegas concordou com Pedro, mas
litem a superação das dificuldades. A escola deve estar todos começaram a mudar de idéia ao assistir a um filme
comprometida com a aprendizagem de todos e, dessa for- em que apareciam baleias pequenas sendo amamentadas.
ma, criar um sistema de apoio para que os alunos não se Pedro começou a perceber que morar fora d’água não é
percam no caminho. As dificuldades precisam ser detec- algo que defina os mamíferos, e que ter rabo de peixe, na-
tadas rapidamente para que sejam sanadas e continuem dadeiras e morar na água não são características apenas
progredindo, não desenvolvendo bloqueios. Tais crianças dos peixes.
precisam ser atendidas por meio de realização de ativida- A aprendizagem de Pedro foi gerada, segundo a teoria
des diferenciadas durante a aula, trabalho conjunto com piagetiana, pelo processo de:
colegas que possam ajudá-los e intervenções. (A) anulação do conhecimento anterior e substituição
deste por conteúdos novos e diferentes.
(B) associação de novos conteúdos àqueles que já fa-
ziam parte da sua estrutura cognitiva.
(C) comparação entre informações contrastantes e o
reforço do conhecimento anterior.
(D) desequilíbrio, por conflito cognitivo, e acomodação
do novo conhecimento ao anterior.
(E) reforço positivo por parte da professora, dos cole-
gas e da família.

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BIBLIOGRAFIA

04. (COSEAC/2017) “O educador, numa postura atual, compreende que não é ele que deposita o conhecimento na
cabeça dos alunos. Por outro lado, sabe também que não é deixando o educando sozinho que o conhecimento brotará de
forma espontânea.” (Celso Vasconcellos)
Quem constrói o conhecimento é o sujeito, mas:
a) o ambiente tem que ser apropriado e propício.
b) com a presença de um adulto orientando-o.
c) se houver um compromisso sério com a aprendizagem.
d) a partir da relação social mediada pela realidade.
e) dependerá de estímulos didáticos e lúdicos.

05. (FAFIPA/2017) Para Vasconcellos, o planejamento deve ser compreendido como um instrumento capaz de intervir
em uma situação real para transformá-la. São elementos a serem considerados num plano de aula, EXCETO:
a) Encaminhamentos metodológicos.
b) Objetivos.
c) Conclusão.
d) Avaliação.

06. (ENADE – Pedagogia)

QUINO. Toda a Mafalda. Trad. Andréa Stahel M. da Silva et al.


São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 71.
Muitas vezes, os próprios educadores, por incrível que pareça, também vítimas de uma formação alienante, não sabem
o porquê daquilo que dão, não sabem o significado daquilo que ensinam e quando interrogados dão respostas evasivas:
“é pré-requisito para as séries seguintes”, “cai no vestibular”, “hoje você não entende, mas daqui a dez anos vai entender”.
Muitos alunos acabam acreditando que aquilo que se aprende na escola não é para entender mesmo, que só entenderão
quando forem adultos, ou seja, acabam se conformando com o ensino desprovido de sentido.

VASCONCELLOS, C. S. Construção do conhecimento em sala de aula. 13. ed.


São Paulo: Libertad, 2002, p. 27-8.

Correlacionando a tirinha de Mafalda e o texto de Vasconcellos, avalie as afirmações a seguir.


I. O processo de conhecimento deve ser refletido e encaminhado a partir da perspectiva de uma prática social.
II. Saber qual conhecimento deve ser ensinado nas escolas continua sendo uma questão nuclear para o processo pe-
dagógico.
III. O processo de conhecimento deve possibilitar compreender, usufruir e transformar a realidade.
IV. A escola deve ensinar os conteúdos previstos na matriz curricular, mesmo que sejam desprovidos de significado e
sentido para professores e alunos.
V. Os projetos curriculares devem desconsiderar a influência do currículo oculto que ocorre na escola com caráter in-
formal e sem planejamento.

É correto apenas o que se afirma em


(A) I e III.
(B) I e IV.
(C) II e IV.
(D) I, II e III.
(E) II, III e IV.

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BIBLIOGRAFIA

07. (SHDIAS/2016) Para Teresa Mantoan, o quê preci- (A) deve privilegiar a formação em serviço, pois ela tor-
sa ser mudado na escola para que esta torne-se inclusiva? na possível aos professores formadores prover aos docen-
a) Recriar o modelo educacional, transformar uma es- tes o que se constatou faltar a eles, em conteúdos e em
cola, inclusiva, num ambiente cooperativo. métodos, para bem ensinar todo tipo de aluno.
b) Valorizar um ensino competitivo e crítico. (B) é uma habilitação profissional e, como tal, deve
c) Facilitação das atividades e programas para reforçar acompanhar as demandas da clientela que lhe é específica,
e acelerar aprendizagem. no caso crianças e jovens, preponderantemente, o que exi-
d) Manter o sistema de avaliação, com a reprovação. ge atualização tecnológica das estratégias de ensino para
fazer os alunos aprenderem.
08. (SHDIAS/2016) Leia o fragmento a seguir: (C) deve anteceder e acompanhar o exercício do ma-
“O sucesso das propostas de _____ decorre da adequa- gistério, por meio do estudo, da problematização da prá-
ção do processo escolar à _____ dos alunos, e quando a tica de sala de aula, da reflexão e do diálogo com os pares
_____ assume que as dificuldades experimentadas por al- sobre essa prática, organizando situações de aprendiza-
guns alunos são resultantes, entre outros, do modo como gem adequadas a seus alunos.
o ensino é ministrado, a aprendizagem é concebida e ava- (D) precisa apoiar-se na vocação para a profissão e, ain-
liada.” (MANTOAN, 2007) da na formação inicial, municiar o estudante dos conteúdos
Assinale a alternativa cujos itens completam correta- teóricos e práticos que farão dele um bom professor em
mente as lacunas do fragmento acima: diferentes contextos, tratando também de atualizá-lo de
a) segregação – diferença – integração quando em quando.
b) inserção – homogeneidade – Didática (E) exige, legalmente e pela sua própria natureza de
c) integração – identidade – tradição tarefa intelectual, curso de nível universitário, não sendo
d) inclusão – diversidade – escola suficiente apenas a graduação, mas havendo necessidade
e) assimilação – desigualdade – Pedagogia de especialização em pós-graduação, prevista e valorizada
na carreira do magistério.
09. (VUNESP/2017) Mantoan declara que a exclusão
escolar se manifesta das mais diversas maneiras, e quase 11. (VUNESP/2016) Weisz (2002), em O diálogo entre
sempre o que está em jogo é a ignorância do aluno. Para ensino e aprendizagem, afirma que o conhecimento avança
a autora, isso quando o aprendiz enfrenta questões sobre as quais ain-
(A) acontece pela falta de aperfeiçoamento permanen- da não havia parado para pensar. A consequência didática
te dos profissionais da educação e do aprimoramento das dessa afirmativa é que o professor deve
práticas pedagógicas. (A) garantir a máxima circulação de informações em
(B) reforça a necessidade de um modelo didático-pe- sala de aula, apresentando situações e materiais diversos,
dagógico e de gestão educacional capaz de atender as di- promovendo interação entre os alunos e situações que fa-
ferenças. voreçam a ação do aprendiz sobre aquilo que é seu objeto
(C) ocorre porque a escola se democratizou, abrindo-se de conhecimento.
a novos grupos sociais, mas não aos novos conhecimentos. (B) propor questionários individuais nos quais os alu-
nos possam mostrar aquilo que já sabem, situando os con-
(D) pode ser modificado buscando aliar o trabalho teúdos que ainda não aprenderam, para posteriormente
de fundamentação teórica com as vivências das redes de perguntar ao professor, sem atrapalhar o aprendizado dos
apoio à inclusão. demais colegas.
(E) implica na melhoria das estruturas de acessibilida- (C) manter um clima de ordem e silêncio na sala de
des físicas, materiais, financeiras e tecnológicas das escolas. aula, com pouca interação entre os alunos, para que não
haja interferência de ideias e cada um possa pensar sobre
10. (VUNESP/2017) WEISZ faz um depoimento sobre temas novos, a partir dos saberes que tem e da ajuda do
as primeiras experiências como professora dos anos ini- professor.
ciais que a marcaram profundamente, fazendo com que, (D) impedir que os alunos misturem as experiências
depois de “fugir” da educação por doze anos, voltasse a que possuem fora da escola com os conteúdos organiza-
ela e buscasse entender o porquê do fracasso escolar na dos didaticamente em sala de aula, para assim poderem
escola pública. Nessa busca, estudou o trabalho da dra. pensar de uma forma diferente da que aprenderam na vida
Emilia ferreiro, “que abriu uma perspectiva extraordinária em sociedade.
nessa área e teve uma importância enorme na mudança da (E) preparar-se bem quanto ao conteúdo a ser ensi-
compreensão do papel do professor”. nado, antes de propor novas questões para a reflexão do
Odete, que prestou concurso para PEB I em um municí- aluno, de modo a não ficar vulnerável frente a dúvidas dos
pio do interior paulista, acertou a questão que perguntava estudantes, já que se espera dele a orientação sobre a for-
qual concepção de formação do professor é coerente com ma correta de pensar.
o entendimento de aprendizagem que resultou de pesqui-
sas das últimas décadas do século XX. Apoiando-se na lei-
tura de WEISZ (2000), Odete escolheu a afirmação de que
a formação docente

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BIBLIOGRAFIA

12. (VUNESP/2016) Todas as ações e relações que 15. (VUNESP/2017) Segundo La Taille, Oliveira e Dan-
compõem o processo educativo escolar correspondem a tas (1992):
objetivos gerais e específicos. São eles que guiam o plane- – para Wallon, “a consciência afetiva é a forma pela
jamento dessas ações e relações. Eles dependem delas para qual o psiquismo emerge da vida orgânica: corresponde à
serem alcançados, parcial ou plenamente. Isso acontece em sua primeira manifestação. Pelo vínculo imediato que ins-
diversos níveis: o nacional, o regional/local, o da unidade taura com o ambiente social, ela garante o acesso ao uni-
escolar e o do professor. No caso do nível de planejamento, verso simbólico da cultura, elaborado e acumulado pelos
que corresponde ao trabalho de cada professor com seus homens ao longo da sua história”;
alunos, no cotidiano da sala de aula e da escola, pela natu- – a partir da diferenciação entre afetividade e inteli-
reza dialogal da relação entre o ensino e a aprendizagem, gência, “a história da construção da pessoa será constituída
entre sujeitos que constroem conhecimento, podemos por uma sucessão pendular de momentos dominantemen-
concordar com Weisz (2002) que é impossível ensinar algo te afetivos ou dominantemente Cognitivos, não paralelos,
a alguém sem saber o que essa pessoa já sabe sobre deter- mas integrados”.
minado objeto de estudo, ou seja, é impossível ensinar sem Segundo Fiorin (2006), para Bakhtin, “a subjetividade é
(A) livro didático. constituída pelo conjunto de relações sociais de que parti-
(B) poder reprovar. cipa o sujeito. (...) O princípio geral do agir é que o sujeito
(C) vocação. age em relação aos outros; o indivíduo se constitui em re-
(D) avaliar. lação ao outro”.
(E) internet.
Graças a estudos, como os mencionados acima, pode-
13. (VUNESP/2017) Na psicogenética de Henri Wal- mos entender o desenvolvimento humano como
lon, a dimensão afetiva ocupa lugar central, tanto do ponto (A) resultado, sempre provisório, das relações afetivas
de vista da construção da pessoa quanto do conhecimento. que se originam na primeira infância e que tendem a desa-
Ambos se iniciam num período que se estende ao longo do parecer com o surgimento do juízo moral.
primeiro ano de vida e que o autor denomina de (B) maturidade emocional produzida pelo desenvolvi-
(A) cognitivo-emocional. mento da inteligência em situações de conflito nas relações
(B) afetivo-compulsivo. interpessoais.
(C) impulsivo-cognitivo. (C) capacidade de estabelecer relações lógico-formais,
(D) impulsivo-emocional. desenvolvida pelas relações afetivas na primeira infância e
(E) afetivo-cognitivo. pela escola a partir dos seis, sete anos.
(D) síntese das relações sociais na família, na escola e
14. (VUNESP/2017) De acordo com Heloysa Dantas in nos contextos sociais mais amplos do trabalho e da parti-
La Taille (1992), a afetividade não é apenas uma das dimen- cipação política.
sões da pessoa, ela prepondera em uma fase do desenvol- (E) síntese das relações entre cognição e afeto, no con-
vimento. Para Wallon, em qual momento do desenvolvi- texto das relações dos indivíduos entre si e o seu meio físi-
mento humano a afetividade prevalece em relação à razão? co, social e cultural.
(A) Na fase adulta, quando a pessoa necessita usar a
afetividade para tomar decisões sobre seu futuro e suas
relações.
(B) No seu momento inicial, logo que o indivíduo sai da
vida puramente orgânica, e que suas ações são puramente
emocionais.
(C) No início da adolescência, quando o sujeito utiliza a
afetividade como instrumento para lidar com as diferenças.
(D) Na etapa em que, já idoso, o indivíduo passa a usar
mais afetividade recordando fatos do passado.
(E) Na fase final da infância, quando a criança usa da
afetividade para conseguir atenção de pais e professores.

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BIBLIOGRAFIA

16. (VUNESP/2017) Em uma reunião pedagógica, os 17. (VUNESP/2017) observe o poema cinético elabo-
docentes da EEEFM “Governador Sebastião Mendonça” rado por um aluno do Ensino Fundamental, quando estu-
discutiam algumas atividades desenvolvidas por alunos do dava medidas de tempo.
5.º ano do ensino fundamental. No calor da discussão, a
professora Teresa Cristina teceu críticas a Piaget, dizendo
que este pensador, embora de valor, desprezara o papel
dos fatores sociais no desenvolvimento humano. Pedro
Paulo, um dos colegas que lera a obra Piaget, Vygotsky,
Wallon: teorias psicogenéticas em discussão (La Taille; Dan-
tas; Oliveira, 1992), aparteou-a e disse-lhe que, segundo a
obra lida,
(A) Piaget costuma ser criticado por “desprezar” o pa-
pel dos fatores sociais no desenvolvimento humano. Nada
mais injusto, pois tal desprezo nunca existiu. O máximo que
se pode dizer é que Piaget não se deteve longamente so-
bre a questão, tendo apenas situado as influências e deter-
minações da interação social sobre o desenvolvimento da
inteligência.
(B) La Taille afirma que Piaget em nenhum momento
omitiu de sua teoria os fatores sociais, muito pelo contrário, De acordo com Smole (2000), pode-se afirmar que
eles estão presentes em toda a sua obra, pois ele acredita- (A) para utilizarmos poemas nas aulas de matemática,
va que todas as relações sociais são sempre favorecedoras é preciso que tenhamos o hábito de fazê-lo antes em lín-
do desenvolvimento. Jean Piaget não somente era adepto gua materna, a fim de que haja referenciais sobre poemas,
como também defendia esse otimismo social. para que depois os alunos possam expressar-se em mate-
(C) para Piaget, o homem não é social da mesma ma- mática.
(B) a implementação de um projeto de letramento na
neira aos seis meses ou aos vinte anos de idade. A socia-
área de matemática depende de um professor que, mais
lização efetiva da inteligência só tem início por volta dos
do que saber conteúdos, precisa saber como identificar os
doze anos, quando a criança está no estágio operatório
interesses dos alunos.
formal. Nos estágios anteriores, a inteligência é essencial-
(C) trabalhar com o gênero poema nas aulas de ma-
mente individual, não há socialização.
temática é inócuo, pois não garante que o aluno aprenda
(D) na teoria piagetiana, a cooperação é o tipo de
sobre as características próprias do referido gênero.
relação interindividual que representa o mais baixo nível
(D) o professor deverá selecionar vários poemas que
de socialização; é ela a responsável pelo desenvolvimento tragam temas da área de matemática para que o aluno fi-
infantil. A cooperação necessária a esse desenvolvimento que centrado nos conteúdos da disciplina, respeitando as
tem seu início nas relações entre crianças pequenas, daí a restrições próprias deste gênero.
importância de se promoverem brincadeiras em grupo. (E) é importante que o professor, ao trabalhar com
(E) para La Taille, o postulado de Wallon de que o ho- poemas atrelados ao conteúdo de matemática, leve em
mem é “geneticamente social” (impossível de ser pensado consideração os elementos de produção do gênero e sua
fora do contexto da sociedade), não é válido para a teoria relação com a área das ciências exatas.
de Piaget, pois para este, desde o nascimento, o desen-
volvimento intelectual resulta, exclusivamente, da interação 18. (VUNESP/2017) em suas aulas, a professora Ber-
entre o sujeito e os objetos materiais com os quais convive. nadete exige de seus alunos que copiem trechos de textos
que constam no livro didático que utilizam em sala de aula.
Segundo ela, ao copiar, os alunos aprendem a ler e a escre-
ver, memorizando palavras e expressões novas.

Analisando essa prática, é correto afirmar que, segun-


do Lerner (2002), a professora Bernadete
(A) comete um erro, pois essa prática garante apenas
a aprendizagem da escrita.
(B) está certa ao propor a aprendizagem da leitura e da
escrita por meio da cópia de textos.
(C) deveria propor essa prática aos professores dos de-
mais componentes curriculares, pois ela é bastante eficaz.
(D) está errada, pois essa prática garante apenas a
aprendizagem da leitura.
(E) equivoca-se ao supor que copiar de forma mecâ-
nica os textos seja garantia de aprendizagem da leitura e
da escrita.

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BIBLIOGRAFIA

Respostas 05. Resposta: C


Não é possível fazer conclusão em um Plano de Aula,
01. Resposta: C pois é um plano do que ainda será realizado.
O fato é que enquanto um dever se cumpre, a justiça
se faz. Os deveres costumam vir sob uma forma pronta e 06. Resposta: D
acabada, como imperativos a serem obedecidos. A justiça As afirmações I, II e III são corretas e correspondem à
representa mais um ideal, uma meta, portanto algo a ser alternativa de letra D.
conquistado, um bem a ser realizado. A cada momento, de- I. O processo de conhecimento deve ser refletido e en-
ve-se decidir como fazer a justiça e, às vezes, não existem caminhado a partir da perspectiva de uma prática social.
procedimentos precisos para que se alcance o intuito. Por- II. Saber qual conhecimento deve ser ensinado nas es-
tanto, deve-se justamente avaliar, pesar, interpretar as diver- colas continua sendo uma questão nuclear para o processo
sas situações e então decidir o que fazer. pedagógico.
III. O processo de conhecimento deve possibilitar com-
02. Resposta: B
preender, usufruir e transformar a realidade.
De acordo com Jean Piaget a escola deve criar situa-
A aprendizagem é uma experiência profunda de natu-
ções que estimulem o aluno a pensar, pesquisar, estudar,
reza social. Cabe à escola resgatar o conhecimento históri-
e analisar a questão apresentada. Visando desta maneira a
construção do conhecimento. co e socialmente produzido, como base do conhecimento
escolar. Os processos historicamente percorridos precisam
03. Resposta: D ser trazidos como parte integrante dos desafios das novas
O enunciado da questão já propõe que a mesma seja descobertas, em sintonia com a realidade vivida, pois as
analisada a partir da teoria de Jean Piaget, assim, é possível atividades educativas necessitam ser significativas para o
observar que as opções A, B, C e E apresentam termos que as aluno. De um lado se coloca o professor como provedor
afastam das conclusões a que o teórico em questão chegou do conhecimento organizado. De outro lado, há o aluno
através de suas pesquisas. A opção correta é a D, pois refere como sujeito ativo do conhecimento. Trata-se de um sujei-
conceitos essenciais da teoria de Piaget a fim de explicar o to submetido a condicionantes sociais que acrescentam ao
aprender das crianças diante da ideia que tinham sobre a conhecimento uma visão da realidade socialmente trans-
baleia e os mamíferos, pois há um desequilíbrio ao serem mitida.
confrontados com uma nova informação que provoca um Cada vez há mais estudos que demonstram que o co-
conflito cognitivo em relação a uma aprendizagem anterior. nhecimento é construído socialmente. Para tanto, é preciso
No entanto, ao serem levadas a ter um contato com o novo superar a dimensão restrita, mecânica, repetitiva e super-
conhecimento, no caso, através do filme, as crianças pude- ficial da forma como o conhecimento é tratado na prática
ram acrescentar informações e melhorar o que já sabiam. pedagógica e propiciar um saber dinâmico, relacionado à
Dessa forma, a generalização anterior sobre os mamíferos vida, prazeroso e com sentido. A capacidade de construir
teve que passar por uma ressignificação, enriquecida por significados no processo de aprendizagem depende da
novos conhecimentos, assim houve uma mudança qualita- possibilidade de o aluno estabelecer relações entre o que
tiva. Nesse sentido, não houve uma simples anulação do co- aprende e aquilo que já conhece. Trata-se de uma aborda-
nhecimento anterior e substituição deste por novos, como gem histórico-social que considera a relação pedagógica
afirma a opção A; tampouco foi um processo meramente como mediação da formação social e política. Através do
associativo, como infere a opção B, pois as crianças tiveram processo educativo o aluno desenvolve suas próprias ca-
a oportunidade de refletir sobre seu conflito e tirar conclu- pacidades de aprender, possibilitando a sua inserção crítica
sões através do que estavam observando. Da mesma forma,
e participativa na sociedade em função da formação da ci-
não é possível afirmar que houve qualquer tipo de reforço,
dadania, com vistas a transformar o mundo natural e social
pois o caminho percorrido para chegar à nova conclusão
para fazer dele um mundo humano.
foi proporcionado pela vivência do conflito cognitivo, pela
oportunidade de expressão desse conflito, pelo ensejo da As afirmações IV e V são incorretas.
argumentação, pela possibilidade de contato com a nova I. A escola deve ensinar os conteúdos previstos na ma-
informação mostrada às crianças através do filme, ou seja, triz curricular, mesmo que sejam desprovidos de significa-
dinâmica que se opõe ao simples ato de reforçar verdades do e sentido para professores e alunos.
já construídas por outros; conforme opções C e E. II. Os projetos curriculares devem desconsiderar a in-
fluência do currículo oculto que ocorre na escola com cará-
04. Resposta: D ter informal e sem planejamento.
Segundo Vasconcellos: Uma metodologia na perspecti- O processo de aprendizagem não pode ser visto de
va dialética baseia-se em outra concepção de homem e de uma forma mecânica e linear, em que alunos adquirem al-
conhecimento. Entende o homem como um ser ativo e de gumas informações que lhes chegam a partir da determi-
relações. Assim, entende que o conhecimento não é “trans- nação de uma matriz curricular.
ferido” ou “depositado” pelo outro (conforme a concepção Para conhecer é preciso tratar as informações, articu-
tradicional), nem é “inventado” pelo sujeito (concepção es- lando-as entre si, imputando significado a elas. E a aprendi-
pontaneísta), mas sim que o conhecimento é construído zagem que se limita a um processo puramente mnemônico
pelo sujeito na sua relação com os outros e com o mundo. não favorece o surgimento de indivíduos capazes de tomar

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BIBLIOGRAFIA

decisões satisfatórias diante de situações não previstas. 08. Resposta: D


Além disso, a possibilidade da aprendizagem destituída Há muito ainda a ser feito para que se possa carac-
da construção ativa de significados, por parte do aprendiz, terizar um sistema como apto a oferecer oportunidades
corresponde a um modelo de aprendizagem não mais va- educacionais a todos os seus alunos, de acordo com as
lorizado nos dias de hoje. Ao contrário, concebe-se que a especificidades de cada um, sem cairmos nas teias da edu-
aprendizagem é um processo ativo em que a aquisição de cação especial e suas modalidades de exclusão. Mas acre-
conteúdos envolve um processo de atribuição de significa- ditamos que é urgente caminhar nessa direção. O sucesso
do ao que é aprendido. das propostas de inclusão decorre da adequação do pro-
Para além dos currículos oficiais, o ambiente escolar cesso escolar à diversidade dos alunos e quando a escola
circunstancia processos e condições que denotam um cur- assume que as dificuldades experimentadas por alguns
rículo oculto, fonte de inumeráveis aprendizagens para o alunos são resultantes, entre outros, do modo como o en-
aluno. Gimeno Sacristán (1998) define o currículo oculto sino é ministrado, a aprendizagem é concebida e avaliada.
como sendo tudo aquilo que contribui para a aquisição Ensinar é, de fato, uma tarefa complexa e exige dos profes-
de saberes, competências, valores, sentimentos, sem cons- sores conhecimentos novos que muitas vezes contradizem
tar nos programas previamente elaborados. E destaca: o que lhes foi ensinado e o que utilizam em sala de aula.
“a acepção do currículo como conjunto de experiências Acreditamos que não são os especialistas nem os métodos
planejadas é insuficiente, pois os efeitos produzidos nos especiais de ensino escolar que garantem a inserção de
alunos por um tratamento pedagógico ou currículo plane- todos os alunos à escola regular, mas que é necessário um
jado e suas consequências são tão reais e efetivos quanto esforço efetivo e coletivo, visando transformar as escolas e
podem ser os efeitos provenientes das experiências vividas aprimorar a formação dos professores para trabalhar com
na realidade da escola sem tê-las planejado, às vezes nem as diferenças, nas suas salas de aula. Em outras palavras,
sequer ser conscientes de sua existência. É o que se conhe- entendemos que a melhoria da qualidade do ensino e a
ce como currículo oculto” (SACRISTÁN, 1998). adoção de princípios educacionais democráticos são fun-
Assim, para Gimeno Sacristán (2000), os projetos curri- damentais para o ingresso incondicional e a permanência
culares devem considerar a influência do currículo oculto. dos alunos nas escolas regulares.
Compreende que o currículo depende de marcos variáveis
e os conceitos estão direcionados para diferentes aspec- 09. Resposta: C
tos: aos resultados escolares observáveis e pretendidos, à A exclusão escolar manifesta-se das mais diversas e
práxis, ao aluno e suas experiências, o que é expresso e perversas maneiras, e quase sempre o que está em jogo é
visível e o que está na linguagem e é invisível, nexo ou a ignorância do aluno, diante dos padrões de cientificida-
veículo de comunicação entre professor-aluno, escola-so- de do saber escolar. Ocorre que a escola se democratizou
ciedade, representação cultural, dentre outros. abrindo-se a novos grupos sociais, mas não aos novos co-
O currículo nos dá uma visão de cultura apresentada nhecimentos. Exclui então os que ignoram o conhecimen-
na escola, um projeto ou processo historicamente cons- to que ela valoriza e assim entende que a democratização
truído no tempo e lugar históricos, portanto, pela socie- é massificação de ensino, e não cria a possibilidade de
dade, e se construído é culturalmente elaborado; expressa diálogo entre diferentes lugares epistemológicos, não se
ideologias, ideias, ao mesmo tempo em que é manifesta- abre a novos conhecimentos que não couberam até então,
ção prática. dentro dela.

07. Resposta: A
O esforço pela inclusão social e escolar de pessoas
com necessidades especiais no Brasil é a resposta para
uma situação que perpetuava a segregação dessas pes-
soas e cerceava o seu pleno desenvolvimento. Até o início
do século 21, o sistema educacional brasileiro abrigava
dois tipos de serviços: a escola regular e a escola especial
- ou o aluno frequentava uma, ou a outra. Na última dé-
cada, nosso sistema escolar modificou-se com a proposta
inclusiva e um único tipo de escola foi adotado: a regular,
que acolhe todos os alunos, apresenta meios e recursos
adequados e oferece apoio àqueles que encontram barrei-
ras para a aprendizagem.

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BIBLIOGRAFIA

10. Resposta: C 12. Resposta: D


Na perspectiva construtivista - de resolução de proble- No que diz respeito à avaliação, é preciso ter claro o
mas - o professor não pode considerar como sinônimos o que o aluno já sabe no momento em que lhe é apresen-
que o aluno já sabe e o que lhe foi ensinado, pois não são tado um conteúdo novo. O conhecimento prévio é o con-
necessariamente a mesma coisa. Para que isso não aconte- junto de ideias, representações e informações que servem
ça, é preciso que o professor desenvolva uma sensibilidade de sustentação para a nova aprendizagem, ainda que não
e uma escuta atenta para a reflexão que as crianças fazem, tenham, necessariamente, uma relação direta com o con-
supondo que o que elas pensam tem sentido e não é fruto teúdo que se quer ensinar. É importante investigar e explo-
de sua ignorância. O professor precisa criar um ambiente rar essas ideias e representações prévias porque permite
socioafetivo para que as crianças possam manifestar livre- saber de onde vai partir a aprendizagem que se quer que
mente/espontaneamente o que pensam; somente assim, aconteça. Conhecer essas ideias e representações prévias
poderá favorecer situações de aprendizagem significati- ajuda muito na hora de construir uma situação na qual o
vas. Tal ambiente deve possibilitar que as crianças pensem aluno terá de usar o que já sabe para aprender o que ainda
sobre suas ideias. Do mesmo modo, cabe ao professor não sabe.
oferecer conflitos/situações problemas que possibilitem às
crianças exercitarem o pensamento, na busca de soluções 13 – D
possíveis. Isso requer do professor estudo e uma postura 14 – B
reflexiva e investigativa. A psicogênese da língua escrita 15 – E
abriu a possibilidade de o professor olhar para a criança e 16 – A
acreditar que para aprender ela pensa, que aquilo que ela 17 – A
faz tem lógica e o que o professor não enxerga é porque 18 – E
não tem instrumentos suficientes para perceber o sentido
que está sendo manifestado pela criança. Um casamento
entre a disponibilidade da informação externa e a possibi-
lidade da construção interna. Quando o professor não en-
tende a produção da criança deve-se perguntar à criança,
mesmo que não consiga entender suas explicações, uma
atividade indicada para isso é o trabalho em dupla, pois
trabalhando juntas as crianças dão explicações umas às ou-
tras e, então, o professor poderá compreender as hipóteses
das crianças.

11. Resposta: A
A interação entre os alunos é necessária não somente
porque o intercâmbio é condição para o convívio social na
escola, mas, também, porque informa a todos os envolvi-
dos e potencializa quase infinitamente a aprendizagem. O
conteúdo trabalhado deve manter suas características de
objeto sociocultural real. O ensino da língua portuguesa
está cheio de criações escolares que em nada coincidem
com as práticas sociais de uso da língua, objeto de ensino
na escola, baseadas no senso comum. Isso não acontece
somente no ensino da língua portuguesa, mas em todas as
outras áreas. Na escola, por exemplo, aprende-se a lingua-
gem matemática escrita, que é pouco usada na rua. Porém,
não se pode deixar de lado esta competência que o aluno
já traz desenvolvida (devido a sua vivência de ‘rua’) e so-
brepor a escolarização a ela.

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