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Alan Chalmers, em A Fabricação da Ciência, desenvolve e rearticula as idéias expressas em seu livro anterior What is

this thing called science? (Open University Press, segunda edição, 1982). Seu principal intuito é mostrar em que
consiste o estatuto epistemológico distintivo da ciência. Para tanto, Chalmers critica inicialmente a visão positivista de
que a ciência pode geralmente ser caracterizada através de métodos e padrões de pesquisa universais e imutáveis. É
preciso reconhecer, insiste Chalmers, que os métodos e padrões utilizados na construção e avaliação científicas são
historicamente contingentes e revisáveis ao longo do tempo. Por exemplo, houve época em que se exigia que os
princípios fundamentais da ciência fossem verdades imediatamente evidentes. Posteriormente, com o uso sistemático
do método experimental, tornou-se cada vez mais clara a importância na ciência dos instrumentos (como o telescópio)
e do experimento controlado em testes intersubjetivos que permitem julgar o apoio empírico emprestado às teorias
científicas. Assim, ocorreu uma substituição do objetivo da certeza absoluta pelo requisito de um constante
aperfeiçoamento e desenvolvimento das hipóteses falíveis da ciência.

Por outro lado, a negação de que o método científico seja universal e a-histórico não implica uma forma mais radical
de relativismo cognitivo ou irracionalismo. Segundo Chalmers, a mudança de métodos e padrões na ciência pode ser
racionalmente justificada, desde que tal mudança torne mais provável a realização da meta de ampliar o
conhecimento científico, de fazer novas descobertas. No entanto, essa análise de Chalmers enfrenta certas
dificuldades se for admitida a possibilidade de alteração das metas atuais da pesquisa científica. Uma alternativa, não
explorada por Chalmers, seria abandonar a concepção hierárquica da racionalidade científica (objetivos \> métodos
\> teorias) e adotar um modelo reticulado, como proposto por Laudan, em que se interligam, por relações de
dependência mútua, as suposições epistemológicas, metodológicas e fatuais das ciências empíricas.
A seguir, Chalmers apresenta vários exemplos históricos do processo científico de objetivação dos resultados de
observação e medida, em que se efetuam testes de acordo com procedimentos rotineiros e padronizados. Chalmers
examina especialmente o significado e a relevância das observações telescópicas de Galileo. Ele mostra que embora
as observações das luas de Júpiter estejam impregnadas de pressupostos teóricos, seus resultados suportam com êxito
uma ampla variedade de testes práticos e objetivos. Assim entendida, "a objetividade é uma realização prática" (p.
71) que, com dificuldades, pode muitas vezes ser obtida na ciência (em especial, na física). Chalmers salienta, contudo,
que a observação científica objetiva é passível de erro e não contitui "uma base empírica segura e irretocável para a
ciência" (p. 83).

Por meio de instrutivos exemplos históricos, Chalmers investiga também a produção e a aceitação (ou rejeição) de
resultados obtidos através de experimentos científicos realizados em situações físicas artificiais. Em resposta à objeção
de que os resultados experimentais não servem ao teste objetivo de teorias porque eles próprios encerram teorias,
Chalmers argumenta que "embora os detalhes de um arranjo experimental, assim como o significado associado aos
resultados, dependam do julgamento do experimentador orientado pela teoria, uma vez ativada a aparelhagem, é a
natureza do mundo que determina o posicão de um ponteiro numa escala, os cliques do contador Geiger, as cintilações
numa tela e assim por diante" (p. 98).

Na discussão sobre a objetividade e a racionalidade da ciência, Chalmers questiona incisivamente as pretensões


epistemológicas do programa forte de sociologia da ciência de submeter o conteúdo e a natureza do conhecimento
científico a uma explicação sociológica. Não há dúvida de que freq•entemente o conhecimento científico tem origens
sociais e sofre influências externas que proporcionam oportunidades a serem exploradas em proveito de uma classe
social. Entretanto, no âmbito da justificação, "os méritos de uma teoria devem ser avaliados independentemente da
psicologia, da classe social e de outras características dos que a propõem" (p. 126). Nesse sentido, Chalmers realiza
um detalhado exame de dois estudos de caso sociológicos (sobre a teoria estatística e a mecânica newtoniana) para
fundamentar sua conclusão de que "a ciência, seus métodos e técnicas de progresso podem e devem ser
compreendidos internamente em função de sua meta geral de produzir conhecimento, mais do que em função de
outras finalidades ou interesses" (p. 127). A esse respeito, Chalmers esclarece que distinguir o objetivo de produzir
conhecimento científico não significa separar a prática científica de outras atividades que servem a objetivos
diferentes, nem implica que o objetivo da ciência seja um bem absoluto que deva sobrepor-se aos demais.
No final do livro, o autor inclui um interessante apêndice relativo à contribuição de Ptolomeu aos estudos do fenômeno
da refração. Como antes, sua exposição é lúcida, rica em informações históricas sobre a ciência e, de forma
competente, introduz a discussão de questões fundamentais para a compreensão do pensamento científico.

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