Você está na página 1de 137

Sociológic~

Guerreiro Ramos era u~ cientista social


que pensava. Pensava para além dos
limites de sua possível especialização.
Era igualmente o escritor que se
distinguiu pelo modo singular de levar
adiante a trama da linguagem. Dai a
elegância, a transparência, a vida que
conseguiu infundir a seus textos.
Guerreiro Ramos tinha ·como horiwnte o
saber universal, e como solo, como
preocupação de todos os minutos, a cena .
histórica e cotidiana de sua gente - vezeS
esparsa, revezes constantes. A redução
sociol6gica vem a ser isto: o nosso diálogo
áspero e criativo entre conhecimento e
interesse. E que fez do seu autor o ator .
instigante, o protagonista inconfundível
da nossa contemporaneidade intelectual.
Pre~isamos voltar a ap~ender com
Guerreiro Ramos.
EDUARDO PORTELA
,4L)tr-\
3L6
rGJ-=JãJV
3. e_d.

A Reduç'ão Sociológica
GuERREIRO RAMos

UFRGS
~ola de AdministnlçOO
Biblioteca . ".?'3
N<> Registro: ;)...
Código de Barras~~~~
SY8:.-----~~~

UFRJ
Rtitor: Paulo Alcantara Gomes
Vice-reitor: José Henriq ue Vilhena de Paiva .. ·~-~·
Coordenadora du Forum
de CUncia < Cttitllrai Myrian Dauelsberg

EDITORA UFRJ
Diretora: Heloisa Buarque de Hollanda
Editora-assistentt: Lucia Canedo
Coordenadora dt prodttfiío: Ana Carreiro

Come/ho Editorial· Heloisa Buarque de Hollanda (Presidente),


Carlos Lessa, Fernando Lobo Carneiro,
Flora Süssekind, Gilberco Ve! h o e
Margarida de Souza Neves EDITORAUFRJ
1996
Copyright by © Clélia Guerreiro Ramos, Eliana Guerreiro Bennecc e
Alberto Guerreiro Ramos Filho representados por AMS
Agenciamento Ardstico, Cultural e Literário Ltda.

Ficha Catalográfica elaborada pela Divisão de


Processamento Técnico - SIBIIUFRJ
Sumdrio
R175r Ramos, Guerreiro
A redução sociológica I Guerreiro Ramos. 3. ed.
Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996.
276 p., 14 X 21 em. (série Terceira Margem)
1. Sociologia Aplicada 2. Brasil - Sociologia.
I. Tfculo.
CDD 301.0981

ISBN 85-7108-154-9
Prefácio à Terceira Edição
Clóvis Brigagáo 07
Capa
Victor Burron Prefácio à Segunda Edição 09

Revisão Nota Incrodutória 41


Josette Babo
4A Consciência Crítica da Realidade Nacional 45
Projeto Gráfico e
Editoração Eletrônica :<. lliFatores da Consciência Crltica do Brasil 53
Alice Brito .. ·~.~·

) A Mentalidade Colonial em Liquidação 67


Universidade Federal do Rio de Janeiro
•, oDefinição e Descrição da Redução Sociológica 71
Forum de Ciência e Cultura
Editora UFRJ ) 1>Duas Ilustrações da Redução Sociológica 75
Av. Pasteur, 250/sala 106 - Rio de Janeiro
CEP: 22295-900 C Antecedentes Filosóficos da Redução Sociológica 85
Tel.: (021) 295 1595 r.124 a 127 93
7- Antecedentes Sociológicos da Redução Sociológica
Fax: (021) 542 3899 (021) 295 1397
~~Lei do Compromecimenco 105
Apoio
~<» Lei do Caráter Subsidiário. da Produção
1r Fundação Universitária José Bonifácio Ciencí(ica Escrangeira 113
Lei da Universalidade dos Enunciados
Gerais da Ciência 123

Lei das Fases 129

'
' ~
- C;itérios de Avaliação do Desenvolvimento 139

Apêndice I
Situação Atual da Sociologia 159 P refiício à Terceira Edição
Apêndice II
Considerações sobre a Redução Sociológica 189

Apêndice III
Correntes Sociológicas no Brasil 203

Apêndice IV
l~ .~..
Observações Gerais sobre a Redução Sociológica 229

Apêndice V
O Papel das Patentes na Transferência .da
Tecnologia para Países Subdesenvolvidos 247
Passadas quase quatro décadas desde que Guerreiro Ramos
Apêndice VI publicou, em 1958, a primeira edição de A Redução sociológica
,' ?, Andlise do Relatório das Nações Unidas (Introdução ao Estudo da Razão Sociológica), sua veemência
sobre a Situação Social do Mundo 257 a:inda se faz ouvir. Ali, o mestre Guerreiro sustentava teses com
alta dose de coragem imelectual, inspiradas no método crítico
sobre hábitos, racionalizações e usurpações teóricas que habita-
vam (e ainda habitam) o pensar e o fazer sobre os destinos de
nossa sociedade.
É marca inconfundível desse clássico da sociologia o rasgar
das ilusões .que embotavam os fatos sociais, suas considerações
e pressupostos teóricos sobre o desenvolvimento brasileiro. Em
A Redução, Guerreiro travava, com sucesso, dois embates: a li-
quidação da mentalidade colonial e de todas suas decorrências
no plano das idéias e da po!ftica e a exposição, com toda a sua
inequívoca radicalidade e clarividência, das razões sobre a nova
consciência crítica da realidade, através do 'exame metódico e
filosófico que ele esgrimava sem parcimônias e gratuidades.
A REDUÇAO SOCIOLÓGICA

Seria A Redução ainda atual, atuante e explicativa sobre o


desenvolvi~ento brasileiro? Embo;a os fatos consagrados em sua
pesquisa e análise tenham sido transformados ao longo dessas
décadas, suas argutas observações de que "a compreensão do Brasil
não p.ode resultar de uma intuição instantânea, mas do meticuloso
exame de suas particularidades" continua sendo instrumental vá- ·
lido e insuperável da postura crítica e criativa das mais originais
P refiicio à Segunda Edição
já produzidas em nosso país.
A reedição pela editora UFRJ de A Redução sociológica resgata
o valor e a têmpera de toda sua obra, além de presentear as novas
gerações de sociólogos e intelectuais brasileiros com uma conduta
que deve ser adotada em todos os domípios do saber e da ati-
vidade humana.
Clóvis Brigagão

Tal como se encontra exposto neste livro, a redução socioló-


gica não representa momento final de um processo de indagação.
É ce;to que marca o amadurecimento de uma concepção que se
encontrava fragmentariamente formulada e aplicada em estudos
anteriores do autor, n~tadamente os reunidos em Cartilha bra-
sileira do aprendiz de sociólogo (1954), depois republicada em
Introdução critica à sociologia brasileira (1957). Desde 1953, o
autor se empenhara num esforço revisionista, isto é, se colocara
em frontal dissidência com as correntes doutrinárias, os métodos
e. processos dominantes no meio dos que, entre nós! se dedicavam
ao trabalho sociológico. ,Negávamos-lhes não somente caráter
científico, como ainda funcionalidade, em relação às exigências
d a sociedade brasileira. No Brasil, dizía~os, o trabalho socioló-
gico reflete também deficiência da sociedade global, a depen-
dência. No caso, a dependência se exprimia sob a forma de
alienação, visco que habitualmente o sociólogo utilizava a pro-
dução sociológica estrangeira, de modo mecânico, servil, sem
dar-se conta de seus pressupostos históricos originais, sacrificando

8
A RJ;DUÇÃO SOCIOLÓGICA PREFACIO A SEGUNDA E_oiÇÃO

seu senso crítico ao prestígio que lhe granjeava exibir ao público da sociologia é resgatar o homem ao homem, permitir-lhe ingres-
leigo o conhecimento ·de conceitos e técnicas importadas. "So- so num plano de existência autoconscienre. É, no mais autêntico
ciologia enlatada", "sociologia consular", era em grande parte a sentido da palavra, tornar-se um saber de salvação. A redução
que se fazia aqui. "Não se tem conseguido, no Brasil -dizíamos· sociológica é a quintessência do sociologizar. Q uem apenas co- ·
em 1954 na Cartilha - formar especialistas ~ptos a fazer uso nhece a lii:erarura sociológica universal, sem se dar conta do que
sociológico da sociologia". chamo de "redução sociológica" - dizíamos em 1956 - não
passa de simples "alfabetizado" em sociologia (Introdução, p. 211).
A despeito da resistência tenaz que, por vezes até com feição
A redução sociológica é qualidade superior do ser humano, que
agressiva, se organizou contra essa orientação renovadora, depres-
lhe habilita transcender toda sorte de condicionamentos circuns-
sa ela empolgou o público instruído que constitui o mercado d a
tanciais. Este aspecto ficou prejudicado neste livro. Este aspecto,
produção sociológica. Os sociólogos de velha feição, mais capazes,
sob o nome de atitude parenrética, focalizamos, no livro recém-
renderam-se à validade da crítica e, pouco a pouco, adaptaram- publicado, Mito e verdade da revolução brasileira. E só em obra
se aos novos critérios de trabalho científico. Os menos capazes futura pretendemos apresentar, de maneira mais analítica, o nosso
perderam a preeminência - de que porventura desfrutavam. E, conceito ampliado de redução. sociológica, como leitura inteligen-
em 1956, já escrevíamos no prefácio de Introdução crítica à so- te do real em suas múltiplas expressões.
ciologia brasileira: "creio estar superada a fase polêmica da Podemos, no encanto, salientar três sentidos básicos da redu-
sociologia nacional". A Redução sociológica, publicada em 1958,
ção sociológica. Tais são:
estava implícita em todos os meus escudos anteriores a essa data.
1) redução como método de assimilação crítica da produção
Basta examiná-los para se ter disto irretorquível demonstração.
sociológica estrangeira. Foi este, como se advertiu anteriormente,
Mas este livro, na forma e no conteúdo de 1958 , não esgotara o tema por excelência do presente livro;
o sentido da atitude redutora, que. presidia e preside aos nossos 2) redução como atitude parentética, isto é, como adestramen-
estudos. Em 1958, a fundamentação metodológica de uma so- to cultural do indivíduo, que o habilita a transcender, no limite
ciologia nacional nos obsedava. Precisávamos vencer os últimos do possível, os condicionamentos circustanciais que conspiram
argumentos a que se recorria contra ela habitualmente, por ~á contra a sua expressão livre e autônoma. A cultura, notadamente
fé, por preconceito, ou por ambas as coisas. Por isso, A Redução a cultura sociológica, é componente qualitativo da existência
sociológica, em sua primeira exposição, foi sobretudo um método superior, em contraposição à existência diminuída dos que,
de assimilação crítica do patrimônio sociológico alienígena. Ao destituídos de treino sistemático, oferecem escassa resistência à
prepar~r a segunda edição dest~ livro, advertimos que ele apenas robotização da conduta pelas . pressões sociais organizadas. Em
focalizou aspecto parcial da redução sociológica. Esra não se nosso livro Mito e verdade da revolução brasileira, no capítulo
destina tão só a habilitar a transposição de conhecimentos de·um Homem Organização e H omem Parentético, focalizamos anali-
contexto social para outro, de modo crítico, mas também carac- ticamente esse aspecto, que pretendemos reexaminar em outra
teriza modalidade superior da existência humana, a existência oportunidade;
culta e transcendente. A sociologia não é especialização, ofício 3) redução como superação da sociologia nos termos insti-
profissional, senão na fase da evolução histórica em que nos tucionais e ·universitários em que se encontra. A sociologia é
encontramos, em que ainda perduram as barreiras sociais que ciência por fazer.· Presentemente, é o nome de um projeto de
vedam o acesso da maioria dos indivíduos ao saber. A vocação el~boração de novo saber, cujos elementos estão esboçados, mas

10 11
A REDUÇÃO SOCIOLOGICA PREFACIO " SEGUNDA EDIÇÃO

ainda não suficientemente integrados. Reproduzimos em apên- não pode ter as qualificações dp pensar rigoroso, seja sociológico,
dice um texto escrito em 1958, Siruação Atual da Sociologia, em seja filosófico. Estão muito longe o~ dias em que as massas possam
que discutimos esta questão. vi.r a adquirir um grau de ilustração tão alto. Por isso, tivemos
Após a publicação deste livro, o pensamento redutor fez · o éuidado, na Redução, de mostrar que a consciência crítica emerge
progressos e tende hoje a generalizar-se para do111ínios outros de condições sociais gerais e estruturais, a industrialização e seus
além do sociológico propriamente. principais efeitos, a Urbanização e a melhoria dos hábitos popu-
lares de consumo. A consciência crítica, no caso, seria, quando
Em primeiro lugar, deve-se incluir na relação dos escudos que muito, um modo subalterno e elementar do pensàt rigoroso. Em
se situam no horizonte deste livro, ·a obra de Geraldo Bastos Silva, nosso livro, não se confunde consciência crítica com redução
Introdução à critica do ensino secundário (Ministério da Educação sociológica. Mas o sr. Álvaro Vieira Pinto confunde consciência
e Cultura, Rio de Janeiro, 1959), que é uma análise competente crítica com redução filosófica. Neste ponto, comete o erro grave
do nosso sistema educacional, à luz do procedimento crítico- de atribuir à "consciência crítica da realidade nacional" as cate-
assimilativo que aplicamos em vários trabalhos e que, a partir de gorias do pensamento dialético, afirmando que as "induziu" da
1958, chamamos de "redução sociológica". A obra de Geraldo "realidade brasileira", o que é, no mais rigoroso sentido da palavra,
Bastos Silva é indicada especialmente para aqueles que têm in- uma infantilidade. Além disso, inclui a nacionalidade, com o
teresse pela aplicação da nossa metodologia no campo da pesquisa. caráter de máxima proeminência, entre as categorias clássicas da
dialética. Em conseqüência disso, foi levado o sr. Alvaro Vieira
Pinto a um fascismo filosófico, com o qual não se pode pactuar.
O sr. Álvaro Vieira Pinto publicou Consciência e realidade
nacional (1960). Sobre esta obra já formulei juízo circunstan- . Não tendo assimilado a noção de comunidade humana universal,
ciado, que não desejo repetir agora. No entarito, aproveito o o sr. Álvaro Vieira Pinto expôs em Consciência e realidade nacional
ensejo para acrescentar ao que escrevi em Mito e verdade da o que ch~mei de deformação direitista da redução sociológica.
revolução brasileira algumas considerações. No livro do sr. Álvaro
Vieira Pinto há fragmentos que representam, não raro, excelente Uma refle~ão sobre o estado da ciência econômica nos países
.:.~~
ilustração da atitude redutora. O autor a aplica, algumas vezes, subdesenvolvidos, à luz da idéia redutora, que merece registro,
de modo feliz, na análise de asp.ectos sociais. Em seu conjunto, é o estudo do sr. Júlio Barbosa, publicado em nú.mero da Revista
porém, Consciência e realidade nacional é lamentavelmente esforço B;asil.eira de Ciências Sociais (novembro de 1961), intitulado
frustrado em seus objetivos. Podemos resumir as principais falhas Contribuição à Crítica da Ciência Econômica nos Países Sub-
dessa obra. Nela se confunde consciência crítica com pensamento desenvolvidos. No México, Jorge Martinez Rios, em estudo
rigoroso. O autor magnífica a consciência crítica, ao ponto de publicado na Revista Mexicana de Sociologia (Ano 22, v. 22,
elevá-la a um plano de alta elaboração conceitual, que ainda está n. 2, 1960), intitulado La Reducción Soc;iológica como Tarea
longe de alcançar. A consciência crítica de que se trata em meu Metódica - Prática de los Sociólog()s Latinoamericanos, mos-
livro, A Redução sociológica e, em seguida, por influência deste, trou as conseqüências do método apresentado neste livro para a
em Consciência e realidade nacional, é a "consciência crítica da América Latina. Ao terminar seu estudo, afirma Martinez Rios:
realidade nacional". É fenômeno de psicologia coletiva. Ora, a estudar a redução sociológica a fundo, seguir o menor sinal
consciência coletiva, como tal, nas condições prevalescentes hoje, que existe dela e itnpuisioná-la e praticá-la, é nobre tarefa

12 13
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA PREFÁCIO À SEGUN DA E D I ÇÁO

para os sociólogos latino-americanos, sobretudo para aqueles A Redução sociológica foi rapidamente assimilada por aqueles aos
que se acreditem com direiw a pertencer ao sewr intelectual quais se destinavam esses livros. · Mas dois mal-entendidos se
não colonizado academicamente. formaram em corno da questão. A redução ganhóu adeptos exal-
No mesmo sencid~, já anteriormente, se tinha pronunciado tados, que dela fizeram a expressão de um nacionalismo agressivo
outro sociólogo mexicano, Oscar Uribe Villegas, na introdução e intransigente, espé~ie de revanche, no domínio da culi:ura e da
à edição espanhola deste livro (vide La Reducción sociológica, ciência, contra o pensamento alienígena. Dessa adesão, o repre-
México, 1959). No domínio estético, importa assinalar as afini- sentante mais qualificado é o sr. Álvaro Vieira Pinto, que, em
dades entre o conteúdo desce livro e os ensaios doutrinários de Consciência e realidade nacional, prom ove a nação (e até m esmo
poetas como H aroldo de Campos (vide a página intitulada In- a nação brasileira) ao plano das categorias gerais do conheci-
venção, no Correio Paulistano de 27/03/ 60) e Mário Chamie (vide mento, ao lado, por exemplo, da totalidade, da objetividade,
Literaturas praxis, revista Praxis, Ano 1, n. 1, 1962). Em entre- da racionalidade. Sobre o sentido revanchista dessa obra já nos
vista ao jornal Estado de Minas (13/08/61) afi rmava Haroldo pron unciamos pormenorizadamente em outro livro. Em suma,
de Campos: a principal razão do "desvio" do sr. Álvaro Vieira Pinto foi não
Como adverte Guerreiro Ramos (A Redução sociológica), ter assimilado a nóção de comunidade humana universal, à luz
forma-se, em dadas circnnsrâricias, uma ''consciência cri- da qual se concilia perfeitamente o comprometimento do cien-
dca,•, que já Óáo mais se satisfaz com a "imporcação" de tista com o seu contexto histórico, e o critério da universalidade,
objetos culturais acabados, mas cuida de produzir outros
sem o q ual não existe verdadeira ciência. Lamentamos ter que
objetos nas formas e com as funções adeq uadas às novas
"exigências h istóricas", produção que não é apenas. de
desautoriza r, como desnaturação do nosso pensamento, o esforço
"coisas", mas também de idéias. Esse processo é verificável hercúleo do sr. Alvaro Vieira P into.
no campo artístico, onde, por exemplo, a poesia concreta. Mas à adesão insensata corresponde, num pólo oposto, o
operou uma verdadeira "redução estética" com relação à
combace insensato às nossas idéias e à nossa posição. Desde 1954,
contribuição de determinados autores que, fundamental-
mente, elaboravam a linguagem do tempo, totalizando-as ·
com a publicação da Cartilha, surgiram, nos círculos que se
e transformando-as sob condições brasileiras, no mesmo ded icam à ciência social em moldes convencionais, manifestações
sentido em que Guerreiro Ramos fala de uma "redução emotivas de hostilidade, ora brutais, sob a forma de injúrias e
tecnológica", na qual se "registra a compreensão e o domín io intimidações, campanhas difamatórias, ora disfarçad as em con-
do processo de elaboração de um objeto, que permitem
sid erações metodológicas. Esse tipo de crítica exacerbada, por sua
uma utilização ativa e criado ra da experiência técnica es-
int~fnseca invalidade, anula-se por si mesma. T anto assim que,
trangei ra". Daí à exportação, o passo é imediato. Lembre-se
finalmente, neste contexto, a frase-lema de Maiakovski: hoje, em 1964, já quase desapareceu, remanes.cendo, da antiga
"Sem forma revolucionária não há arte revolucionária". truculência, uma que outra expressão de ressentimento, que não
O poeta M ário Chamie, em seu ensaio doutrinário Lireratura- tem ~o~o e porque deva ser obviamente levada a sério.·
Praxis, referiu-se ao "mal-entendido reinante em corno da redução E por falar em levar a sério, devemos focalizar a mais qua-
sociológica". De fato, ele existe . e precisa ser discutido e carac- lificada crítica que um representante ilustre de nossa sociologia
terizado, para não incompatibilizar o nosso esforço com os que convencional escreveu contra nosssa orientação: a do sr. Florestan
têm interesse pelo aperfeiçoamento científico da produção so- Fernandes, no opúsculo O Padrão de trabalho científico dos soció-
ciológica em nosso país. Na verdade, a metodologia que preside logos brasileiros (edição da Revista Brasileira de Estudos Políticos,
aos estudos publicados na Cartilha, na Introdução crítica e em 19S8). Este estudo constitui magnífico contraponto de nossas

14 15
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA P R EFÁCIO A SECUNDA EDIÇÃO

idéias, e.sua leitura e análise seria de grande interesse para quem e à subciência, ela cama por s_i e, para combatê-la, não seria
desejar ter um flagrante modelar da falácia do que chamávamos, necessário gastarem-se tanto papel e tantos esforços, que não vem
em 1953, de "sociologia consular", e dos becos sem saída -a que ao caso caracterizar, contra a pessoa do auror e suas idéias. Tudo
conduz mesmo personalidades bem-dotadas como ·o professor isso foi vão, como o demonstra, além de outras circunstâncias,
paulista, sr. Florestan Fernandes. Preliminarmente resumiremos o acolhimento que a Cartilha mereceu em duas edições esgotadas.
as principais debilidades científicas que, a nosso ver, apresenta O público compreendeu o que dizíamos. Alguns sociólogos, no
o trabalho do professor paulista: entanto, tiveram e têm dificuldade de entender o texto em seu
1) confunde a ciência sociol6gica em hd-bito com a ciência exato significado. Rebatendo-o, afirma o sr. Florestan Fernandes,
sociol6gica em ato. O autor não ultrapassou a área informacional com dramática seriedade, que o sociólogo deve realizar as pes-
da sociologia. Por isso, o trabalho em pauta reflete uma ideologia quisas "de acordo com os padrões mais rigorosos de trabalho
de professor de sociologia, antes que atitude científica de caráter científico" (p. 64) e que
sociológico diante da realidade; nenhum cientista conseguinl pôr a ciência a serviço de sua
comunidade, sem observar de modo íntegro e rigoroso, as
2) a crítica em apreço ilustra como algo mais do que a normas e os valores que regulam a descoberta, a verificação
informação e a erudição, é necessário para habilitar ao estudioso e a aplicação do conhecimento científico (p. 59}.
a fazer uso sociológico dos conhecimentos sociológicos ou, em Ninguém contesrará o sr. Florestan Fernandes. Mas é lamen-
outras palavras, para a prática da redução sociológica; tável que ele julgue ter apresentado argumento válido contra nossa
. 3) pressupõe a referida crítica falsa noção das relaçÕes entre proposição e julgue ainda que o público ledor de obras socioló-
teoria e prática no domínio do trabalho científico, ·e assim tende gicas se convença de que contra nós tenha apresentado ponderação
a hipostasiar a disciplina sociológica, tornando-a um conheci- pertinente. Não merece afinal respeito quem quer que tenha a
mento superprivilegiado. audácia de proclamar que o sociólogo brasileiro não deve "ob-
Na Cartilha escrevemos: servar, de modo Íntegro e rigoroso, as normas científicas". Em
Na utilização da metodologia sociológica, os sociólogos trabalho recente, A Sociologia como Afirmação, Revista Brasileira
devem ter em vista que as exigências de precisão e refina- de Ciências Sociais, n. 1, 1962, ainda escreve:
mento decorr~m do nível do desenvolvimento das estruturas
... alguns cientistas sociais pensam que devemos cultivar
nacionais e regionais. Portanto, nos países latino-america-
um padrão de ensino simplificado e estimular somente in-
nos, os métodos e processos de pesquisa devem coadunar-se
vestigaÇões sobre a situação histórico-social global, como se
com os seus recursos econômicos e de pessoal técnico, bem
nos competisse acumular explicações comparáveis às que o
como com o nível cultural genérico de suas populações
conhecimento do senso comum produziu na Europa, no
(p. 17}. . .
período de desintegração da sociedade feudal e de instituição
Contra essa proposição levantou-se enorme celeuma no cír- da sociedade de classes ... Temos de preparar especialistas que
culo de nossos sociólogos convencionais, os quais a proclamaram sejam capazes de explorar, normalmente, os modelos de
absurda e errônea. Afirmou-se que nós preconizávamos que um observações, análise e explicação da realidade, fornecidos
pela ciência (p. 12).
país· subdesenvolvido devia ter uina sociologia subdesenvolvida.
O tom alt~me~te emocional da oposição que suscitamos invo- Poderá ser considerado apropriadamente cientista social a
luntariarnemi impediu um debate sereno e objetivo da tese. De bizarra criatura a que se referem estas palavras? Ou não existe tal
.fato, se .a recomendação citada foss.e incitamento ao despreparo criatura, ou o sr. Florestan Fern~ndes não consegue exprimir, com

16 17
A REDUÇÃO SOCIOLOCICA
PnEFÁCIO A SEGUNDA EDIÇÃO

exatidão, o pensamento de que discorda. No que nos diz respeito,


que se aplica igualmente na utilização de todas as técnicas e
o professor paulista incorre em inexatidão.
métodos de pesquisa característicos de centros estrangeiros.
Sustentamos, hoje, em roda linha, nossa proposição de 1953.
Um certo provincianismo ainda muito arraigado no Brasil,
Ela nos foi ditada pela experiência e não reflete nenhum culto
mesmo entre os nossos mais erudiros sociólogos convencio-
livresco. Tínhamos, naquele ano, ultimado nossos estudos sobre nais, o~ impede de distinguir enrre sociologia em hdbito e sociologia
o problema brasileiro da mortalidade infantil. Verificávamos, em em ato. O sr. Florestan Fernandes n 'est pas arrivé, como diriam
cerras repartições federais de saúde, a tendência bizantina para os franceses, ainda permanece no âmbito vestibular da ciência
adotar no Brasil, e nisso aplicando recursos orçamentários, téc- sociológica. Para comprová~lo, selecionamos algumas de suas afir-
nicas refinadas de mediação do fenômeno, em voga na Europa. mativas. Ao invés de pensar num método rigoroso de ajustar as
Na França, Bourgeois-Pichat distinguia entre mortalidade in- técnicas estrangeiras de pesquisa às nossas condições, declara que
fantil endógena (proveniente de causas anteriores ao nascimento, estas dificultam o trabalho sociológico. Diz ele:
ou do próprio traumatismo do nascimento) e mortalidade infantil Em face de insuficiência das dotações financeiras ... são
exógena (derivada de fatores ambientais). Combatíamos essa ten- restritas as oportunidades de exploração de técnicas de inves-
dência. Dizíamos acertadamente que, no Brasil, as causas da tigação sociol6gic.1 empregadas correntemente em centros
mortalidade infantil são grosseiras e, portanto, a sua medida não do exterior (Padrão, p. 21 ). .

precisava e não podia ter a precisão que seria compreensível nos O verdadeiro sociólogo não idealiza técnicas de pesquisa, e
países em que os seus fatores sociais externos estivessem ra- cumpre até o dever de desaconselhar dotações financeiras para o
zoavelmente controlados. Haverá quem se negue a recoúhecer a emprego ocioso ou predatório de técnicas estrangeiras de inves-
justeza de nosso raciocínio? O sr. Florestan Fernandes, em seu tigação. Sabe que as técnicas e os métodos são consubstanciais
opúsculo, não discute a ilustração concreta da Cartilha, e se a roda indagação autêntica. O que os sociólogos convencionais
compraz em considerações abstratas, que podem surpreender o pensam ser um problema de recurso é quase sempre um problema
leitor desavisado. No caso, tínhamos ou não tínhamos razão de de atitude científica genuína.
aconselhar que os métodos de pesquisa devem cingir-se ao "nível Como salientam as principais autoridades na matéria,
de desenvolvimento das estruturas nacionais e regionais?" Claro ·os cânones científicos de investigação sociológica ainda não
se encontram estabelecidos d e maneira firme e universal
que sim. Por acaso, o· diagnóstico da mortalidade infantil em
(Padrão, P·. 42).
nosso país deixou de ser menos científico, porque não utilizamos
Eis uma afirmativa não só provinciana, como confusa. Que
os refinados modelos de Bourgeois-Pichat? Ao contrário, não só
são "cânones científicos de investigação sociológica"? Se são
não conseguiríamos, por falta de condições sociais adequadas,
métodos e técnicas, simplesmente, nunca estarão estabelecidos
obter a precisão de um coeficiente de mortalidade . infantil
"de 'maneira firm.e e universal". Se são os princípios gerais do
endógena, como contribuímos ·para conjurar imaturidade então
racíocí~io sociológico têm outros atributos de firmeza e univer-
reinante em cercos círculos de especialistas. Não .combatíamos a
salidade, mas também se encontram sujeitos à h isroricidade. O
técnica estrangeira, movidos por um nacionalismo revachista, mas
culto indevido aos "cânones" leva à hipercorreção, a grave engo-
a considerávamos em seu significado episódico, evitando que o
do, que vitimam rodos os que não distinguem a ciência em hdbito
seu prestígio nos levasse a ocupar pessoal e a gastos de dinheiro
da ciência em ato. Temos a imagem viva do hipercorrero naqueles
em sua inútil reprodução aqui. Praticamos a redução sociológica,
eruditos brasileiros em gramática e filologia, que julgam que os

18
13
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA PREFACI O A SEGUNDA EDIÇ.ÃO

cânones do nosso falar estão em Portugal, ou nos clássicos por- teriza o especialista de real categoria. O sociólogo up to date
tugueses do século XVI. 'Â hipercorreção em sociologia é uma por sistema, sendo desprovido desta capacidade, ilustra
um caso de dandismo no domínio da sociologia. Nos países
contradição em termos, mas dela não estão isentas de todo afir-
periféricos, a sociologia deixa de ser arrasada na medida
mativas como as seguintes do sr. Florestan Fernandes: "Temos em que se liberta do "efeito-dc-prestígio"e se orienta no sen-
de formar especialistas de real competência em seus campos de tido de induzir as suas regras do comexro histórico-social
trabalho, que suportem o confronto com colegas estrangeiros"(A em que se integra. Esse tipo de sociologia exige do sociólogo
Sociologia, p. 13); ou, "nas condições em que nos achamos, temos um esforço muito maior que o de mera aquisição de idéias
e de informação especializadas: exige a iniciação numa
que nos contentar com os conhecimentos importados de outros
destreza intelectual, numa instância inreleccual que pode
centros de investigação sociológica" (Padrão, p. 79). Há, nessas ser definida com a palavra habims, na acepção em que os
afirmativas, muito pouco de sociologia. Muito de consciência anrigos a empregavam. Com efei to, é preciso distinguir a
mistificada e alienada. O que nos impõe aos colegas estrangeiros sociologia em hdbito da sociologia em ato, nas acepções fi lo-
não é o conhecimento par coettr de suas produções, mas o do- sóficas dos termos.
mínio do raciocínio que implicam, e que habilita os sociólogos O que Aristóteles chamava hexis e os escolásticos habirus
a fazer coisas diferentes em circunstâncias diferentes, sem prejuízo é uma aptidão inata, ou adquirida pelo treinamento. A cada
ciência corresponde um habims específico. O físico é menos
da objetividade científica. É esdrúxulo advogar ou condenar a uma pessoa que tenha lido muitos livros de física do que
importação de conhecimemos. Todos os países são importadores alguém apto a reagir diame dos faros, segundo determinadas
de ciência. O que se trata - no caso - é de como importar. regras e referências conceituais. Coisa semelhante se dirá de
O sentido da Cartilha e de sua metodologia geral, a redução qualquer outro cientista. Di r-se-á também que o mero alfa-
betizado em sociologia, por mais exaustiva que seja a sua
sociológica, não é a solene e irracional hostilidade ao produto
informação, não é sociólogo. Distinguindo a art< em hdbito
cultural estrangeiro. O que preconizamos é a substituição da da arte em ato, imagina Jacques Marirain, em seu livro Art
atitude hipercorreta em face de tal produto ·pela atitude crítico- et Scolastique, um enérgico aprendiz, capaz de trabalhar
assimilativa. Por isso escrevemos em .A Redução sociológica o quinze horas por dia na aquisição do conhecimento teórico
seguinte trecho que, apesar de longo, transcrevo, por ser muito e das regras de uma arte, mas no qual o habitus não germina.
Este esforço jamais f.1rá dele um arrisca e não o impedirá de
pertinente: . ·~.~~·
permanecer mais infinitamente af.1scado da arte do que a
A atitude dos sociólogos que, diante da produção :f criança ou o selvagem portador de um simples dom natural.
sociológica importada, se comportam como os elegantes e Red11çáo é precisamente o contrdrio de repetição. A mera repe-
os si1obs em face dos figurinos das capitais da moda, também tição analógica de pníricas e csrudos contraria a essência da
pode ser explicada pela sociologia da "coqueteria". Uns e. atitude científica, porque perde de vista a particularidade
outros. em diferentes graus, é cerro, se movimen.cam no constitutiva de toda situação histórica. .
âmbiro da consciência ingênua. Ora, o sociólogo genuíno
é, exatamente, aquele que, por profissã.o, é portador do Os nossos sociólogos convencionais não estão em condições
máximo de consciência crítica diante dos fenômenos da de opinar e aconselhar acertadàmente, no tocante à institucio-
convivência humana. Por conseguinte, em um país perifé- nalização do ensino sociológico, em particular, e do ensino
rico, o avanço do trabalho sociológico não se deve avaliar
pela sua produção de caráter reflexo, mas pela proporção
em que se fundamenta na consciência dos f.1tores infra-
l em geral, por se mostrarem manifestamente imperitos na prática
da sociologia. Passamos assim ao segundo ponto que destacamos
es'crucurais que o influenciam. A capacidade de utilizar no trabalho em exame do professor paulista. As considerações do
sociologicamenre 0 conhecimenro sociológico é o que carac- sr. Florestan Fernandes sobre a matéria são, . além de errôneas,

20 21
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA
P REFACIO À SEGUN DA EDIÇÃO

perigosas. O sr. Florestan Fernandes faz idéia muiro simplificada é prova inequívoca de um delito contra a sociologia. Na Cartilha .
das razões do atraso da sociologia em nosso país. Parece ser-lhe escrevemos essa proposição, que o sr. Florestan Fernandes con-
estranho o imperativo preliminar de reformar a própria atitude dena com veemência:
metódica do sociólogo brasileiro em face do patrimônio científico No estádio acuai de desenvolvimento das nações latino-
alienígena. Descurando disso, supervaloriza aspectos financeiros americanas, em face das suas necessidades cada ve:z. maiores
de nosso trabalho sociológico, relevantes sem dúvida, mas subsi- de investimento em bens de produção, é desaconselhável
diários e adjetivos. Diz, taxativamente: "O conhecimento cientí- aplicar recursos na prática de pesquisas sobre detalhes da
fico não possui dois padrões: um adaptável às sociedades desenvol- vida social, devendo-se estimular a formulação de interpre-
tações genéricas dos aspectos global e parciais das estruturas
vidas; outro acessível às sociedades subdesenvolvidas" (A Sociologia,
nacionais e regionais (p. 16).
p. 12). Qualquer que seja o sentido de que se emende por padrões,
Nossos sociólogos convencionais são infinitamente alienados
na verdade, o sr. Florestan Fernandes, no que diz respeito à so-
ciologia estrangeira, é um hipercorreto. Em nenhum momento no tratamento destas questões de política científica. Avaliam as
dá sinal de compreender que, num país subdesenvolvido, não necessidades do trabalho sociológico por critérios abstraros, simé-
logra caráter científico o trabalho sociológico, senão quando se tricos e analógicos. Na crítica do sr. Florestan Fernandes, não há
compadeça com cercas regras adjetivas, qe natureza histórico- o mais leve indício de que ele tenha idéia de uma política geral
do trabalho sociológico em nosso país, induzida da fase atual
social, que distinguem o seu padrão do' padrão alienígena. Essas
regras, é óbvio, não afetam os princípios gerais do raciocínio em que se encontra o seu processo de desenvolvimento. Ele julga
sociológico. O professor paulista não só se proclama como se que o padrão de trabalho científico dos sociólogos brasileiros é
uma fórmula ideal, que nada tem a ver com as particularidades
orgulha de ser jejuno nesse campo de cogitações. Por isso não
é espantoso que impute à falta de dotações orçamentárias defi- históricas e sociais do país. "O padrão de crabalho incelectual,
ciências cujos determinantes reais lhe escapem totalmente à explorado nos diversos ramos da investigação científica - diz
percepção. De modo obsedante fala da penúria financeira: ele- é determinado, formalmente (o grifo é nosso) pelas normas,
valores e ideais do saber cienrífico" (Padrão, p. 11). Para se ter
É justamente nas áreas do ensino e da pesquisa que
são maiores as oportunidades de inovação institucional.
uma idéia do formalismo em que está vasada a apreciação do sr.
Há elementos perturbadores na situação em que nos encon- Florestan Fernandes, é preciso ler-se o opúsculo em exame. Não
tramos por causa da penúria de meios financeiros, peda- raro torna-se difícil, senão impossível, compreendê-lo. Além de
gógicos e· humanos (A Sociologia, p. 10). • não ilustrar de modo concreto suas considerações, não precisa,
Toda.sociedade subdesenvolvida é definida por um complexo como seria de desejar, o sentido de certos termos. São, por
geral de penúria. H á penúria de alimentos, de habitação, de bens exemplo, vagos os significados de "padrão", ~'normas", "valores",
e serviços de toda espécie, penúria de recursos para as atividades "idéias"~ Na Cartilha, todas as críticas estão referidas a situações
científicas de todo gênero. De todos os homens de ciência o soció- concretas. O ~r. Florestan Fernandes não as discute. E é provável
logo é justamente quem deveria particularmente compreender que o leitor do opúsculo, desprevenido, ignorante do texto da
que a penúria, só podendo ser erradicada pelo esforço coletivo Cartilha, admita que nós preconizamos um nacionalismo so-
de prod~ção, cabe-lhe subordinar a atividade científica às prio- ciológico incompatível com as regras científicas do raciocínio.
ridades sociais, o que é possível sem sacrifício do rigor. Pedir re- Esperamos da boa fé de quem ler este livro a compreensão exata
cursos orçamentários para o trabalho sociológico, sem consciên- do nosso pensamento. No plano geral do raciocínio sociológico,
cia sociológica, crítica, do problema social global dos recursos, as "normas", "valores" e "ideais" transcedem as particularidades

22 23
A REouç.Ao SocroLOGJCA PREFÁCIO À SEGUNDA EOJÇJ\0

históricas de cada socieda4e nacional. No terreno concreto, po- lógica com incapacidade crítica. Identificando o conhecimento
rém, a utilização prática do saber sociológico obedece, em cada sociológico com a sociologia em ato, o sr. Florestan Fernandes
sociedade nacional, a "normas", "valores" e "ideais" específicos, acredita que no Brasil a sociologia só começa com as escolas de
que refletem a particularidade histórica de sua situação. Devem sociologia. Os autores a que se refere acima e aos quais atribui
ser pesquisados e compreendidos pelo sociológo e assim torna- uma importância extravagante, desproporcional às que realmente
rem-se pontos de referência de uma política do trabalho científico. representam, são, por assim dizer, sociólogos didáticos, escritores
Sem essa consciência política, o sociólogo não está habilitado a escolares. Como tal, tiveram inegável importância, difundindo
tirar partido, de modo socialmente positivo, dos recursos dispo- ensinamentos úteis. Nunca foram, não são, porém, propriamente
níveis. Pode ainda aceitar ajudas financeiras externas para a sociólogos, como o foram, apesar de suas normais deficiências,
realização de pesquisas e investigações, cujo sutil propósito é homens como o Visconde de U ruguai, Sílvio Romero, Euclides
distrair a intelectualidade de tarefas criadoras do ponto de vista da Cunha, Alberto Tôrres e Oliveira Viana, em suas respectivas
nacional. São justamente os sociólogos convencionais os mais épocas. Esses autores são momentos ilustres da formação de um
bem pagos do Brasil, os preferidos das organizações externas pensamento sociológico brasileiro, que utilizavam, como sub-
financiadoras de investigações. Mas todo mundo sabe que é nula sídios, as contribuições estrangeiras.
a participação dos sociólogos convencionais no esforço que, em Todos esses homens tinham o que fazer- tarefas sociológicas
nossos dias, se vem realizando no Brasil no sentido de formular próprias e larga consciência de q ue a medida por excelência do
um legítimo pensamento sociológico nacional. Este pensamento trabalho sociológico é a sua funcionalidade em relação à realidade
está surgindo, à revelia e contra a resistência deles. O sociólogo nacional. Por isso, o público não sabe hoje quem são Fernando
de um país subdesenvolvido, mais do que qualquer outro indi- de Azevedo e Emílio Willems, m as continua a ler aqueles autores
víduo, tem o dever de procurar meios e modos de transcender e em suas obras encontrando esclarecimentos úteis à compreen-
a penúria financeira e fazer o seu trabalho, com o maior rigor são objetiva do passado e do presente. Os trabalhos do sr. Emílio
técnico e científico, a despeito dessa penúria. Não _é inteligente, Willems só têm interesse escolar. Seus estudos sobre aculturação
nem muito menos sociológico, levar à conta de penúria finan- e assimilação constituem competentes provas de sua atualização
ceira a.debilidade.de um trabalho científico, que decorre princi- didática, mas além de não conterem nenhuma contribuição no
palmente de uma alienada atitude metódica diante do saber e da campo da teoria pura, nada mais representam que exercícios. São
realidade nacional. um episódio da história do ensino da sociologia no Brasil. Não

l
contam, porém, como episódio da história do pensamento socio-
O formalismo induz o sr. Florestan Fernandes a afirmações
lógico brasileiro. É, pois, exagero, senão sectarismo, afirmar-se
de gritante teor ingênuo. Diz ele:
que "como atestam as contribuições pioneiras de Emílio Willems,
Excetuando-se a produção dos sociólogos estrangeiros,
que lecionaram entre nós, as primeiras tentativas de vulto,
I aí se acha a fonte da revolução empírica e teórica por que pas-
na exploração de alvos científicos definidos sistematicamente sou a sociologia entre nós, nos r.'iltimos vime e cinco anos" (A
da investigaÇão sociológica, fazem-se sentir em contribuições Sociologia, p. 17). Esse modo de ver do sr. Florestan Fernandes
posteriores a 1930, de Fernando de Azevedo e de Emílio demonstra o caráter de ideologia de professor que têm as suas
Willems (Padrií,o, p. 56-57).
considerações. Daqui a cinqüenta anos - é preciso advertir -
Essa afirmativa demonstra, como remos repisado, que pode não serão os Emílio Willems de hoje, mas os Sílvio Romero de
coincidir, na mesma pessoa, um alto nível de informação sacio- hoje que estarão vivos n~ memória e na gratidão dos estudiosos.

24 25
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA PREFÁCIO A SEGUNDA EDIÇAO

Os Sílvio Romero de hoje são até mais atualizados em informação sofrem da "defo rmação filosófica" vituperada pelo sr. Florestan
sociológica do que os Emílio W illems de hoje. Apenas, à diferença Fernandes. Hoje, mais do que nunca, a disciplina ~ociológica se
deste últimos, sabem fazer uso sociológico da sociologia. afigura a rodo estudioso sério algo por fazer, tão aguda é a crise
que abala os seus fundamentos. Constitui fo rm idável desatua-
* * * lização defender a "pureza" da sociologia, desconhecendo o grande
O opúsculo do sr. Florestan Fernandes, O Padrão de trabalho debate que se trava, em nossos dias, sobre a questão da reforma
científico dos sociólogos brasileiros é um texto inestimável como do saber. O solipsismo sociológico só atende a interesses extra-
documento da ideologia de professor de sociologia no Brasil. científicos da burocracia parasitária, gerada pela prematura
Entre os traços salientes dessa ideologia, dois merecem destaque: institucionalização do ensino da sociologia.
o provincianismo e o bovarismo. O bovarismo é outra falácia em que incorre o sr. Florestan
O sr. Florestan Fernandes paga enorme tributo ao provin- Fernandes. Consiste em extremar a distância entre o mundo dos
cianismo quando se acredita no dever de zelar pela "pureza" da sociólogos e o dos "leigos", ao ponto de considerá-los cindidos,
sociologia, e julga se destine a ser levado demasiadamente a sério o que, obviamente, é falso. O sr. Florestan Fernandes reitera,
o âmbito do saber academicamente chamado de sociológico. Por repisa a distinção entre cientistas e "leigos" e parece considerá-
isso, típico sociólogo·convencional, estranha "os especialistas que Ia como ideal. Considera "o cientista como parricipante de um
defendem uma espécie de deformação 'filosófica' da natureza do cosmos cultural autônomo" (Padrão, p. 15) e afirma que "o sis-
ponto de vista sociológico". (Padrão, p. 61). "O perigo de seme- tema científico pode ser entendido, ontologicamente, como uma
lhante orientação - afirma o professor paulista - é evidente: subcultura" (Padrão, p. 16). Nas condições atuais da civilização
ele faria com que os sociólogos optassem deliberadamente, por existe; de fato, essa disdlncia que, até certo ponto, é necessária.
modelos pré-científicos de explicação da realidade social" (Pa- Mas o saber científico, e, em parricular, o sociológico, só é larga-
drão, p. 61). Mas as coisas se passam justamente ao contrário do mente privilégio de círculos restritos por força de condições
que imagina o sr. Florestan Fernandes. A institucionalização da históricas que limitam o acesso das massas ou dos leigos à cultura.
sociologia, ao lado de benefícios, acarreta malefícios, entre os Caminhamos, porém, para uma etapa em que tende a diminuir
quais o de levar estudiosos de escassa habilitação crítica a pensar a força inibitória da popularização do saber que tem aquelas
que os critérios da cientificidade sejam livrescos o u institucionais. condiçó"es. Podemos imaginar uma sociedade-limite, que emer-
Esses critérios têm de ser procurados na estreita relação entre girá, no futuro, da evolução histórica, em que a ciência e,
teoria e prática. A sociologia; na forma institucional que assumiu sobretudo, a sociologia, será ingrediente da conduta ordinária dos
após a morte de Augusto Comte, nós a consideramos como dis- cidadãos, em que a qualidade das relações sociais será tão elevada
torção de um esforço de criação de uma teoria social científica, que o indivíduo receberá, difusamente, no processo informal da
que se vinha realizando desde o sécul~ XVIII. Neste livro, pu- convivência, larga parte do conhecimento sistemático, que hoje
blicamos um texto, elaborado em 1958, em que discutimos essa só nas escolas e faculdades se adquire. A vocação da sociologia,
tese._ Os grandes sociólogos o foram apesar do conceito insti- aliás, é tornar-se um saber vulgarizado. A sociologia se volp.tizará
tucional de sociologia, que o sr. Florestan Fernandes idealiza. Se no processo social global. Estas afirmativas devem escandalizar o
fosse válida sua argumentação, a sociologia seria disciplina de aristocratismo do professor paulista. Passemos a outra ordem de
escoteiros, e Comte, Marx, Max Weber, Durkheim, Mannheim considerações mais pertinentes. O sr. Florestan Fernandes deveria
e Gurvitch não . seriam sociólogos, pois todos esses autores refletir sobre este fato: há hoje sociedades avançadas que passam

26 27
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA P REFACIO À SEGUNDA EDIÇÃO

sem sociologia e sem sociólogos, no sentido em que o professor conceitos escolásticos. O escrito ainda rem muiw de esoterismo,
paulista entende essas p~lavras. E passam, aliás, muito bem. mas ao terminá-lo o autor escreve páginas que nos inspiram a
Haverá mesmo a distância entre sociólogos e "leigos" na escala convicção de que o professor paulista está em processo de
em que o sr. Florestan Fernandes imagina? Positivamente, não. autocrítica. Diz ele: "o sociólogo, como homem da sociedade de
O professor paulista é ideólogo de uma sociologia insustentável, seu tempo, não pode omitir-se diante do dever de pôr os conhe-
que nunca existiu, não existe, nunca existirá. A sociologia não é cimentos sociológicos à serviço das tendências de reconstrução
exterior à sociedade global. Pode, é cerro, transcender a conduta social" (A Sociologia, p. 39). Quem conhece os escricos do pro-
vulgar, mas dentro dos limites prescritos pela sociedade global, fessor paulista se dará conta de que essa frase é, nele, indicativa
à maneira do que lembrava Karl Marx, na terceira tese sobre de uma revolução interior. O sr. Florestan Fernandes já escreve
Feuerbach, quando apontava o utopismo dos pensadores do sé- sobre a sociologia militante. Temos a esperança de que se torne,
culo XVIII, que queriam educar os outros, esquecendo-se que o em breve, um sociólogo militante. Só então se eliminará sua
"educador também deve ser educado", e que, só no mundo das resistência à redução sociológica.
quimeras, a sociedade está dividida em duas partes, uma muito
acima da outra. O sr. Florestan Fernandes lamenta "a influência * * *
dos leigos" (Padrão, p. 28) e não oculta o seu anelo. Diz ele: A primeira edição deste livro suscitou a elaboração do mais
... o ideal seria uma situação diferente, que garantisse aos eminente documento crítico que um militante do Partido Co-
cientistas a oportunidade de encarregarem-se ~essas decisões munista já produziu no Brasil. Refiro-me ao ensaio correntes
ou de exercerem maior influência nas circunstâncias ... sociológicas no Brasil, de autoria do sr. Jacob Gorender (Estudos
(Padrão, p. 27): sociais, n. 3-4, ser./dá., 1958). Aí a redução é exposta e analisada
Vemos, assim, que, embora o sr. Florestan Fernandes seja . em alto nível de competência e integridade, o que não é comum
portador de insígnias institucionais que o convencionam como entre os intelectuais adepcos do PCB, notadamente quando
sociólogo, emite juízos essencialmente leigos. O que se diz no apreci~m a produção dos que discordam de suas posições teóricas.
opúsculo em exame não ultrapassa o âmbito laico da sociologia, A estimulante apreciação do sr. Jacob Gorender é reproduzida
é pré-sociológico, pré-científico. O sr. Florestan Fernandes se faz na íntegra em apêndice desta edição, para qué se possa melhor
porta-voz do infortúnio da sociologia convencional e lastima que avaliar a pertinência das objeções que, a seguir, faremos a certos

polfticos, jornalistas, ensaístas, romancistas, historiadores, reparos daquele autor.
folcloristas qualificam como "sociológicas", com a maior boa
A militância nos quadros do PC empobrece o horizonte
fé, produções intelectuais que não têm nenhuma relação
com os propósitos de investigação sociológica propriamente do intelectual. Nem mesmo um pensador extraordinariamente
diia (Padrão, p. 29). bem-dotado e capaz, como o sr. Jacob Gorender, escapou a essa
Em qualquer sociedade atual, que melhor gente haverá do "estreiteza específica". É por demais notório o sectarismo em
que políticos, jornalistas, ensaístas, romancistas, historiadores, que incorre o autor em seu julgamento. O sr. Gorender tem uma
folcloristas? Se essa gente não entende a sociologia "propriamente visão conspirativa dos assuntos e autores. A partir de circuns-
dita" é sinal de que, nesta, algo está errado. O infortúnio a que tâncias muitas vezes extrínsecas e fortuitas aos assu ntos e auto-
estão condenados os sociólogos convencionais é um julgamento res, passa a inferências teóricas e ideológicas inexatas, e até
social. Um escrico recente do sr. Florestan Fernandes revela pueris, inspiradas pela deformada imaginação conspirativa. O
indícios de que o professor paulista está lutando contra os pre- sr. Gorender não oferece nenhuma objeção à part~ essencial do

28 29
A REDUÇÃO SOCIOLÓG ICA PREFACIO À SEGUNDA EOIÇ.ÁO

livro, isto é, aquela em que definimos a redução e formulamos senão um conceito formal e vazio que permite liquidar, tto
mtimo umpo, cerro número de sistemas ideológicos, que
as suas leis, e parece mesmo estar de acordo conosco neste ponto.
só têm semelhanças superficiais encre si? Heidegger jamait
No entanto, afirma que malogramos, que nos "salvamos pela foi "ativista"\ ao menos tanto quanto se tenha expresso em
metade" e justifica esse veredicto recorrendo aos aspectos adje- obras filosóficas. A própria palavra, por vaga que seja, tes-
tivos de nossa obra. Citamos e valorizamo~ autores que estão no temunha a incompreensão do marxista em relação às outras
index do marxismo-leninismo, como Jaspers Husserl, Heidegger, correntes de pensamento. Sim, Lukacs tem os instrumentos
para compreender Hcidegger, mas nunca o compreenderá,
Karl Mannheim, sem, no entanto, aderir ao sistema de nenhum porque seria necessário 1<-/o, aprender o sentido das frases
deles. Isto é o bastante para que o sr. Gorender veja em A Redução uma a uma. E disto não há um marxista, ao que me conste,
um subjetivismo que não existe. Pode-se não ser hegeliano - é que seja capaz (vide Critiqtu dt la r~iton dia/}ctiqut. Paris,
o nosso caso - mas, não digo ignorar, como não incorporar 1960, p. 34-35).
ao esforço de elaboração teórica em nossa época algumas vá- Tem razão Jean-Paul Sartre.
lidas contribuições de Hegel? Receio que os marxistas-leninistas Participo de algumas restrições que o sr. Gorender faz aJasp.ers,
lancem condenação de plano sobre a obra de Heidegger, larga- Husserl, Heidegger. Mas elas não atingem o nosso próprio pen-
mente porque o filósofo foi, alguns anos, reitor de universidade samento exposto neste livro. A reduçã~, em que se fundamenta
alemã durante o regime nazista. Não podemos conferir seriedade todo o nosso trabalhQ sociológico, é originalmente, uma intuição
a uma tal visão policial dos assuntos filosóficos e sociológicos. básica, resultante de nossa condição de intelectual brasileiro,
Sartre surpreendeu essa debilidade em certas análises de Georges sensível à rarefa de fundamentação reórica da cultura nacional.
Lukacs, as quais o levaram a escrever: Mas o desdobramento analítico dessa intuição não se verifica
Vêde Lukacs: para ele, o existencialismo heideggeriano num meio abstrato, e sim num espaço filosófico-cultural con-
se transforma em ativismo sob a influência dos nazistas; o creto, o do século XX, e Jaspers, Husserl, H eidegger, além de
existencialismo francês, liberal c antif.-.scista, exprime, ao
outros, são momentos concretos do saber do .século XX em
contrário, a revolra dos pequenos burgueses tiranizados
durante a ocupação. Que belo romance! Desgraçadamente, elaboração. Por isso, não podiam deixar de ser referências ine-
ele negligencia dois fatos essenciais. Primeiramente, existia vitáveis de nossa elaboração. O solipsismo marxista-leninista é
na Alemanha pdo mtnoi uma corrence existencialista que atitude cultural menor, limitação que desnarura e secrariza o
repudiava qualquer coalisão com o hitlerismo e que, entre- pensamento. Por isso, o sr. Gorender escreve, apesar de sua
tanto, sobreviveu no III Reich: a de Jaspers. Por que esta
lucidez, absurdos como este:
corrente não se conformara com o esquema imposto? T eria,
como cão de Pavlov, um "reflexo de liberdade"? Em se- O se. Guerreir o Ramos se refere à "instância de
gundo lugar, existe um fator essencial em filosofia: o tempo. enunciados gerais que constituem o mkleo central do ra-
Dele se necessita muito para escrever uma obra teórica. Meu ciocínio sociológico." Mas eis os autores dos quais julga
livro, L 'Etrt tt Lt Nlttnf, ao qual ele se refere explicitamente, deva ser extraído esse núcleo de enunciados gerais: Karl
era o resultado de pesquisas empreendidas desde 1930; eu li Marx, Comte, Spencer, George Simmel, F. Tonnies, Max
pela primeira vez Husserl, Scheler, Heidegger e Jaspers, em Weber, Max Scheler, Durkheim, Gabriel T arde, Vilfredo
1933, durante estágio de um ano na Casa de França em Pareto e ourros... A isto se acrescentam esforços especiais
Berlim, e foi nem mommto (portanto quando Heidegger para combinar o existencialismo com o marxismo. O
devia estar em pleno "ativismo") que sofri sua influência. ededsmo não se detém aí diante de qualquer limite. Seria
Enfim, durante o inverno de 1939/ 1940, estava já de posse este um dos piores pomos de partida para c(:legar a uma
do método e das conclusões principais. E que é o "ativismo" teoria sociológica íntegra e correra (op. cit., p. ·347).

30 31
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA
PREFÁCIO A SEG UNDA EDIÇÃO

Seria espantoso que as minhas referências não fossem esses e e nos inclui na Escola Fenomenológica em seu Manual de socio-
outros autores de idênricâ formação. Como se pode formar um logia (1962, p. 246). Sobre este ponto, desejamos proceder alguns
sociológo razoavelmente competente se não "extrai" desses auto- esclarecimentos.
res 0 "núcleo" de enunciados gerais da disciplina? Wright Mills
Faz parte da instrução de todo aquele que se dedica seria-
observa que a sociologia não seria o que é hoje sem Marx. Mas
mente aos estudos sociológicos o conhecimento elementar da
é preciso acrescentar que, reduzida apenas à contribuição de Marx,
fenomenologia, das linhas gerais do pensamento de Husserl. Essa
sem o concurso daqueles autores que o sr. Gorender repudia sem
instrução nós a tínhamos quando escrevemos este livro. Mas, em
conhecer, nem sequer seria imaginável. Estou quase certo de que
lJ58, não nos considerávamos fenomenólogos, no sentido res-
0 sr. Gorender não realizou estudos sistemáticos sobre nenhum
trito do termo. Não paramos, desde então, de estudar Hussed,
daqueles autores, com exceção de Marx. Como, entã~, julg~ c~m
e, a despeito disso, ainda não nos consideramos fenomenólogos,
ligeireZa o que não conhece? O solipsismo mar~Ista-km~I.sta
e nem temos a intenção de vir a sê-lo, strictu sensu. No entanto,
nega a herança docente do conhecimento, o contmuum ~eo:Ico
é inadmissível que se possa ser sociólogo competente, sem um
da comunidade dos pensadores, por vício sectário e conspirauvo. conhecimento elementar das idéias de Husserl. Aliás, a fenome-
Traz para o domínio do conhecimento, indebitamente, o prin-
nologia é, hoje, largamente característica essencial da atmosfera
cípio de luta pelo poder. O marxismo-leninismo é u~a sofística, cultural de nossa época. Como Monsieur Jourdain fazia prosa,
revestida de fraseologia filosófica e científica, a serviço da luta muita gente é hoje fenomenólogo, sem ter disso consciência
pelo poder. Por ventura, acredita o sr. Gorender que Marx. não sistemática: a vedete de televisão e teatro, o motorista de táxi,
"extraiu" o "núcleo de seus enunciados gerais" dos pré-socránços, o político, o romancista, o poeta, e outros tipos, ainda que não
d~ Platão, de Aristóteles, de Descartes, de Leibniz, de Spinoza,
tenham lido uma linha de Husserl. A redução sociológica é
de Kant, de Fichte, de Hegel? Se acredita, é lamentável. Só de- husserliana menos porque aplica o método específico de Husserl
pois que se libertam da "servidão intelectual" que lhes impõe o no estudo do social, do que porque participa da tendência geral
marxismo-leninismo, os militantes de partidos comunistas, d.e do trabalho sociológico representativo do século XX. As críticas
efetiva vocação teórica, como Lukacs e Gorender, atingem a procedentes que o sr. Jacob Gorender faz a Husserl não nos
plenitude de suas possibilidades criadoras. A história co~rem~o­ atingem. Não. nos cabe respondê-las, porque não é uma briga
rânea o comprova. Aí, estão, para demosntrá-lo, as reuficaçoes nossa, é uma briga dos ourros. Quem objeta a Hegel não objeta
políticas que faz a si mesmo o hoje ex~membro do PC francês, necessariamente a Marx. No encanto, Marx era hegeliano em
Henri Léfebvre, em La Somme et le reste. Alimentamos a esperança duplo sentido: tinha instrução a respeito da doutrina de Hegel
de que o sr. Gorender, seguindo o exemplo de Léfebvre e outros, e respirou em ambiente cultural impregnado de hegelianismo.
se desligue do PCB, e, assim, a cultura brasileira o ganhe, com
Ao elaborar este livro, não tivemos o propósito de aplicar o
a sua íntegra capacidade normal, isenta da estreiteza que a limita
método husserlíano ao estudo do social como ceve Gurvitch ao
e a dissipa. escrever os ensaios que constituem Mora/e théorique et science d~s
O sr. Gorender escreve que "a redução sociológica" se inspira moeurs (1937), Essais de sociologie (1938) e, mais recentemente,
diretamente na "redução fenomenológica" de Husserl e que neste René Toulemont, L 'Essence de !a societé se!on Husserl (1962) e
filósofo se apóia o meu pensamento. Coincide com o sr. Paulo como parece admitirem o sr. Jacob Gorender, Carlos Cassio (em
Dourado de Gusmão, que nos atribui a criação de "uma técnica carta ao sociólogo baiano Machado Neto), Benedito Nunes (em
husserliàna de acesso ao social" (Teorias sociológicas, 1962, p . 39) elucidativo estudo reproduzido em apêndice) e o distinto pro-

32 33
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO

fessor Paulo Dourado de Gusmão. Prezamos canto o esforço do Q uem fez tal aplicação foi Gurvitch nas obras que o professor
professor Dourado de G~smão no sentido de expor, sem sec- Dourado de Gusmão cita. No texto desce livro, escrevemos em
tarismo e equidiscantes de igrejinhas, as correntes sociológicas 1958: "a redução sociológica, embora permead a pela influência
no Brasil, que aqui retificaremos algumas de suas considerações de Husserl, é algo diverso de uma ciência eidética do social". O
a nosso respeito. O professor D ourado de Gusmão diz, com que tomamos de Husserl fo i menos o conteúdo filosófico do
pleno cabimento, que, em A Redução sociológica, "nota-se ... a seu método do que um fragmento de sua terminologia. Além
influêncía do hiscoricismo alemão e da fenomenologia da qual disso, jamais passou pela cabeça de Gurvitch a idéia dà redução
já foi aproveitada a técnica da redução" (Introdução à sociologia, sociológica como é concebida e exposta neste livro. Essa idéia é
1959, p. 184). Não é, porém, pertinente, o trecho que acrescenta estranha a Gurvitch, que não vive o problema da descolonia-
em seu livro, Introdução à sociologia, o qual, apesar de longo, lização do trabalho so~iológico. Nem Gurvitch, nem nenhum
passo a transcrever: , sociólogo ames de nós, ao que nos conste, usou mesmo a expres-
Quanto à "red~ção", em sociologia, antes de Guerreiro são redução sociológica. Ca'm esses reparos, respondemos também
Ramos, foi tratada por Gmvirch, que, como é do conheci· ao sr. Jacob Gorender, quando nos argui de fe nomenologismo
mento comum, re~onheceu dever ser feita, em sóciologia, no sentido estrito.
análise d~s níveis de profundidade da realidade social através
da decomposição d~s suas várias camadas (Mora/e thtorique O estudo do sr. Jacob Gorender poderia ser mais estimu-
et science des momrs, Paris, 1937, Essais de sociologie, Paris, lante e qualificado, se despojado de cacoetes habituais em que
1938 e Socioloo of Law, N ew York, 1942). Eis a redução incorrem os ad~ptos do "marxismo institucional". Não é digna
sociológica aplicada à sociologia do "espíriro noético". Escla- da inteligência do crítico aquela tirada panegírica em que fala
recê Gurvitch: o mérodo de decomposição se inspira no
do "grandioso triunfo (do marxismo) numa área habitada por
"método de inversão" de Bergson ou na "redução fe nome-
nolÓgica" de Husse~l. Consiste, assim, na "redução imanente, um terço da humanidade". É ridículo atroz referir a Marx o
regressiva, mediante estádios sucessivos, para o que é dire· marxismo-leninismo e certas boçalidades que, na União Soviética
tamente conhecido na experiência da realidade social". e outras repúblicas populares, se pretende impingir como mani-
Portanto, a sociologia deve usar a ((inversâo redutiva'' ou a festações filosóficas. É extemporânea a defesa que o sr. Jacob
"inversão e redução" - eis o pensamento de Gurvitch.
G.orender faz do marxismo. Não somos nem marxistas, nem an-
Referindo-se a esse processo metodológico, Toulemont
(Sociologie et pluralúme dialéctique, Paris-Louvain, 1955) timarxistas. Somos pós-marxistas, .como Marx foi pós-hegeliano,
assim se pronunciou: "cette réduction esc en même temps pós-feuerbachiano. Não somos solipsiscas. Chamar de "ecletismo"
une. inversion, car la pensée y suit une marche ·apposée à a redução ou acusar-nos de pretender fazer "acondicionamentos"
la demarche habicuelle, qui est de superposer sans ·cesse de uma teoria em o.utra, porque circulamos em áreas diversas das
construcrions à consrructions". Mas, essas .idéias metodo-
correntes filosóficas de nossa época é completamente estapa-
lógicas foram lançadas e praticadas por Gurvitch sem
serem, contudo, sistematizadas. Gurvitch praticou a re- fúrdio . O saber também cem história. Como esforço de atualização
dução sociológica, mas não a estudou minunciosamente. do saber, ·o marxismo transcende Marx, o existencialismo trans-
É justamente no estudo sistemático, na análise e no desen- cende Heidegger, Jaspers, Sartre, a fenomenologia transcende
volvimento desse método que consiste a originalidade de · Husserl. Marx jamais teve o projeto de elaborar o marxismo. Seu
Guerreiro Ramos" (op. cit., p. 184).
projeto foi o de liquidar . os anacronismos vigentes no pensar
Em primeiro· lugar, insistamos, a redução sociológica não . é; · filosófico de sua época e, por isso, de certo modo, antecipou a
exatamente, aplicação da redução husserliana no estudo do social. fenomenologia e o existencialismo.' Ao contrário d o que afirmou

34 35
A REOUÇ.ÃO SOCIOLÓGICA PREFACIO À SEGUNDA EDIÇÃO

o sr. J. Gorender, não desconhecemos que Marx viu, antes de é a predominância dos motivos econômicos na explicação da
Husserl, a "influência recíproca entre sujeito e objeto". Expres- história - diz Lukacs - que distingue, de maneira decisiva, o
samente, chamamos a atenção para esse ponto em nota de A marxismo da ciência burguesa, é o ponto de vista da totalidade"
Redução (p. 160 da edição de 1958) em que escrevemos: "o autor (Historie et conscience de cú:tsse, 1960, p. 47). E acrescenta:
pensa que é possível demonstrar que Marx, numa terminologia O que há de fundamentalmente revolu cionário na ciên-
distinta da de Heidegger, concebia, a seu modo, o homem como cia proletária não é somenre o faro de que opõe à sociedade
ser no mundo". Rica de antecipações do existencialismo, são as burguesa conteúdos revolucionários, mas é, sobrer,;do, a
essência revolucionária do próprio método. O reino da cate-
páginas do Manuscrito de 1844.
goria da totalidade é o portador do principio revoluciondrio
Não podemos deixar passar sem veemente refutação o com- na ci~t1cia (p. 47- 48).
promisso com a burguesia que o sr. Jacob Gorender vê, inde- Muita gente pensa que a prática da ciência revolucionária
vidamente neste livro. Ao contrário do que pensa o sr. Gorender, requer a idolatria de fetiches verbais. Se um texto sociológico não
não temos, nunca tivemos nada de comum com os "isebianos" contém a expressão "classe operária" não é revolucionário. Mas
de que fala em sua crítica. Jamais levei a sério as elocubrações essa é a maneira de pensar que caracteriza o escriba, não o homem
cerebrinas de certos intelectuais menores, pivetes do "desenvol- da ciência. O sr. Jacob Gorender não é escriba, mas a má com-
vimentismo" burguês. Leia o sr. Gorender o que escrevemos sobre panhia em que anda impede que os seus trabalhos, e em particular
a falácia do nacionalismo burguês em O Problema nacional do a crítica em exame, atinjam a qualificação de que seria natural-
Brasil (Princípios do Povo Brasileiro) e Mito e verdade da revo-
mente capaz, não fosse a servidão partidária que o empobrece
lução brasileira (A Filosofia do Guerreiro sem Senso de Humor)
intelectualmente.
e sobre o "desenvolvimento", em A Crise do poder no BrasiL Além
do mais a nossa saída do ISEB, em 1958, a cujos antecedentes * * *
alude o sr. Gorender, serve de cifra para que se possa alcançar O presente livro teve calorosa acolhida em círculos dedica-
as razões existenciais de nossa posição. O ponto de vista proletário dos à pesquisa tecnológica. Registramos aqui e reproduzimos em
é a referência básica de nosso pensamento sociológico. Não vê apêndice a significativa contribuição de um dos mais respeitáveis
isto o sr. Gorender em A Redução, não propriamente por má fé engenheiros do país. As notas q ue nos ofereceu e as considerações
como certos escribas, mas porque não deu devida atenção ao que emitiu são relevantes, pois sublinham implicações da redução
conceito de "comunidade humana universal", que preside ao.nosso sociológica não minu nciosamente focalizadas na edição de 1958.
pensamento em geral, e, em particular, neste livro. Não se situa O engenheiro ... 1 salienta que, no Brasil, de longa data, mesmo
no ponto de vista proletário um estudo apenas porque contenha em sua fase colonial, se praticava a redução. Onde houve prática
referências expressas ao proletariado, à classe operária. O contrá- houve redução. Nossos agricultores, por exemplo, na labuta direta
rio pode mesmo acontecer. "O compromisso de que se fala aqui com a natureza, tiveram consciência de que os processos es-
··~ - dizemos neste livro - na medida em que seja sistemático, trangeiros de lavoura nem sempre eram adequados às nossas
situa o cientista no ponto de vista universal da comunidade condições e, assim, diante deles, assumiram uma atitude redutora.
humana". Este ponto de vista engloba o dá classe operária. Este Até estrangeiros, desde que, como Louis Couty, H. A. Millet, e
ponto de vista é o da totalidade. A categoria cardinal do pen~ muitos outros identificados, pela prática, ·com as peculiaridades
sarnento, para Marx, não é a classe operária, é a totalidade. A do país, reconheciam, já no século passado, o imperativo de
classe op~rária é aspecto concreto, episódico, da totalidade. "Não assimilação crítica da ciência e da técnica. A redução tecnológica

36 37
A REDUÇÃO SOCIOLOGICA PREFACIO À SECUNDA EDIÇÃO

precedeu à redução sociológica. Isto porque, na sociedade arcaica Nota


do passado, a redução er; exigência setorial, ali onde o esforço (1) Ocultamos o nome desse amigo de acordo com ele, por
produtivo da população esbarrava em problemas em que se motivos políticos. Esta parte do presente prefácio foi revista
patenteava claramente o conflito entre as regras, normas, modelos em junho de 1964, quando estavam em curso as repressões
e processos importados e nossa realidade. Esses problemas se de toda ordem, subseqüentes ao movimento militar que dep6s
resolviam empiricamenre. Todavia, o caráter reflexo que definia o presidente João Goularc. O autor foi uma das vítimas do
globalmente a antiga estrutura social não possibilirou que se Comando desse movimento. Por ato do referido Comando,
tomasse consciência sistemática da redução, como acontece hoje . ceve seus direitos pol!cicos suspensos por dez anos e, por
conseqüência, perdeu seu mandato de deputado federal.
entre nós. Propõe ainda o engenheiro ... o conceito auxiliar de
"teor ideológico". As resistências à redução tendem a diminuir
quanto menor for o "teor ideológico" do problema. É mais fácil
adaptar uma técnica agrícola do que um estatuto jurídico. A
contribuição do engenheiro... consta de bre~es considerações
gerais, de uma pesquisa no jornal do Agricultor (1879- 1884), e
de notas colhidas em diferentes fontes. É reproduzida em apên-
dices deste livro pelo seu inestimável valor ilustrativo.
Importa finalmente assinalar que integram esta edição dois
pronunciamnetos que proferimos na XVI Assembléia Geral das
Nações Unidas, em 1960, na qualidade de Delegado do Brasil,
e que tratam da questão de patentes e da situação social do
mundo. Ambos aplicam concretamente a metodologia exposta
neste livro.
Na presente edição conservamos o cexro de 1958, no qual
corrigimos alguns erros de citação e introduzimos pequenas . al-
terações de forma. Excluímos do texto os dois capítulos finais que
tinham, naquela data, apenas interesse ilustrativo. Essa exclusão,
que não altera a essência da obra, está plenamente compensada
co?l os estudos incorporados como apêndices à presente edição.
G. R.
Rio, 111811963

38 39
Nota Introdutória

As IDIÕIAS EXPOSTAS neste estudo vêm se formando na mente


do autor há alguns anos, achando-se implícitas em\seus trabalhos
anteriores. Aqui são apresentadas de modo sistJ~tico, inte-
grando, pelo menos à guisa de esboço, um método c:!~ análise de
concepções e de fatos sociais. Com o presente texto, pretende o
autor contribuir em duplo sentido para a atualização da sociologia
no Brasil. Deseja, por um lado, integrar a disciplina sociológica
nas correntes mais representativas do pensamento universal con-
temporâneo. Por outro, pretende formular um conjunto de regras
metódicas que estimulem a realização de um trabalho sociológico
dotado de valor pragmático, ·quanto ao papel que possa exercer
no processo de desenvolvimento nacional.
I~- ..-. São as atuais condições objetivas do Brasil que propõem a
tarefa de fundação de uma sociologia nacional. De fundação,
antes que de fundamentação, pois não se trata de utilizar o re-
pertório já existente de conhecimentos sociológicos para justi-
ficar orientação ou diretriz ocasional. Trata-se de algo mais árduo:
reconhecendo no interior da sociedade brasileira a geração de
A REouçAo S OCIOLÓGICA NOTA INTRODUTÓRIA

forças que, só a partir de _agora, a constituem como centro de A atitude redutora não poderia ter ocorrido a alguém for-
referência, trata-se de tomar este fato como suporte da atividade tuitamente. Na forma em que a expõe o autor, é subproduto do
teórica. Há que fazer toda uma sociologia do fundamento e da processo global da sociedade brasileira na fase contemporânea.
fundação, que não pode ser realizada nesta oportunidade. O Sua formulação sistemática representa o resultado de uma reflexão
fundamento de uma sociologia verdadeiramente brasileira deve indutiva em que o autor partiu da consideração de tendências
ser, antes de mais nada, um fato, um processo real, um dado fatuais para a elaboração teórica.
concreto. Em seguida, é este fato básico continuamente tradu- As idéias deste livro foram fragmentariamente apresentadas
zido em conceitos. A conversão do fato em conceito implica, no nos cursos regulares que o autor tem ministrado no Instituto
entanto, uma criação original. Toda coletividade que tem logrado Superior de Estudos Brasileiros e na Escola Brasileira de Admi-
em seu processo atingir esse ponto culminante, em que se lhe nistração Pública, da Fundação Getúlio Vargas. Constituíram
apresenta a possibilidade de um desempenho significativo na ainda a matéria de dois cursos monográficos, um realizado em
história, passa de um modo de ser a outro radicalmente distinto. Salvador, sob o patrocínio da Universidade da Bahia, em outubro
Ocorre, em tal momento, uma transmutação no ser mesmo da de 1957, e outro realizado no ISEB, em maio de 1958. O autor
coletividade, a qual inaugura um período de tarefas fundadoras. muito deve às reações dos seus ouvintes nessas duas oportuni-
O Brasil passa hoje por um desses fecundos períodos e, no dades. Serviram-lhe como prova para apreciar a validade dos
âmbito de sua disciplina, o autor procura tirar todo partido da seus pomos de vista. Foi sobretudo entre os seus ouvintes da
oportunidade de produção teórica inovadora que a sorte de viver Universidade da Bahia que teve verdadeira experiência das
esta época do seu país lhe oferece. O Brasil, graças às condições implicações práticas da atitude redutora.
reais do seu processo, está hoje em vias de tornar-se ·vigorosa O autor deixa consignado aqui o seu reconhecimento à
personalidade cultural. colaboração inestimável que lhe prestaram o professor Álvaro
O presente estudo é fruto desse otimismo e, por certo, os que Vieira Pinto, chefe do Departamento de Filosofia do ISEB e os
sabem ver encontrarão nestas páginas os motivos que o justificam. seus colegas Mário Magalhães e Gilberto Paim, do Departa-
A redução sociológica é um método destinado a habilitar o es- mento de Sociologia do mesmo instituto. Agradece, finalmente,
tudioso a praticar a transposição de conhecimentos e de expe- a Roland Corbisier, cuja revisão cuidadosa do presente texto
riências de uma perspectiva para outra. O que a inspira é a cons- muito contribuiu para torná-lo mais claro e mais rigoroso em sua
ciência sistemática de que existe uma perspectiva brasileira. Toda formulação .
cultura nacional é uma perspectiva particular. Eis porque a re- Guerreiro &mos
dução sociológica é, apenas, modalidade restrita de atitude geral
que deve ser assumida por qualquer cultura em processo de
fundação. Certamente todos aqueles que estão realizando, em seu
campo profissional, uma produção de idéias, de coisas, ou ser-
viços, determinada por necessidades específicas do meio nacional,
hão d e perceber que a conduta metódica, cuja sistematização se
propõe aqui, pode ser adotada, quanto ao essencial, em outros
domínios do saber e da atividade humana.

42 43
A Consciência Crítica da
Realidade Nacional

O fato mais auspicioso que indica a constituição, no Brasil,


de uma ciência nacional, é o aparecimento da consciência crítica
de nossa realidade.• Nos últimos anos, têm-se registrado em escala
crescente acontecimentos de diversas ordens que assinalam a
emergência, em nosso meio, de novos esquemas de avaliação e
compreensão dos fatos. A ampla repercussão que as idéias reno-
vadoras encontram no público é aspecto relevante dessa mudança
de mentalidade.
Importa assinalar que tal consciência coletiva de caráter crítico
é,· hoje, no Brasil, dado objetivo, fato. Não se trata de anelo de
uns poucos, preocupados ein modelar um caráter nacional
mediante processos, por assim dizer parecianos, ou seja, pela ma-
nipulação de resíduos emocionais populares. O fenômeno tem
suportes na massa. Um estado de espírito generalizado não surge
arbitrariamente. Reflete sempre condições objetivas que variarn
de coletividade para coletividade. Mas em toda parte onde um
grupo social atinge aquela modalidade de consciência, aparece o
imperativo de ulcrapassar o plano da existência bruta e de adotar ·
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA A CONSCillNCIA CRITICA DA REALIDADE.•.

uma conduta significativa, fundada, de algum modo, na percep- concretos, como a necessidade de compreender ou explicar a
ção dos limites e possibilidades de seu contexto e sobretudo modificação por que passa o mundo contemporâneo promovida
orientada para fins que não sejam os da mera sobrevivência pelo despertar de populações que pareciam voltadas a uma de-
vegetativa. No Brasil, essas condições objetivas, que estão susci- finitiva condição larvar. 3
tando um esforço correlato de criação intelectual, consistem Urge entender a natureza da transmutação que essas popula-
principalmente no conjunto de transformações da infra-estrutura ções sofrem em sua existência. Indagação como esta se inclui num
que levam o país à superação do caráter reflexo de sua economia. conjunto de perguntas acerca das modalidades do ser, às quais
Desde que nele se configurou um processo de industrialização em os sociólogos não podem permanecer indiferentes. Fenômenos
alto nível capitalista, converteu-se o espaço nacional num âmbito como o irredentismo de grupos tribais africanos (de que os Mau
em que se verifica um processo mediante o qual o povo brasileiro Mau são um dos casos mais agudos), o nacionalismo de povos
se esforça em apropriar-se de sua circunstância, combinando coloniais ou dependentes, não podem ser explicados a fundo sem
racionalmente os fatores de que dispõe. O imperativo do de- que se formulem indagações daquela ordem. Çomo se expiica a
senvolvimento suscitou a consciência crítica. Não é esta uma estagnação dos chamados povos primitivos? Por que espécie de
explicação suscetível de ser generalizada para todos os grupos transformação passa urna sociedade (a dependente ou colonial)
sociais onde o fenômeno tem ocorrido. Cada caso tem seu diag- que se define como instrumento de outra (a metropolitana),
nóstico particular. Este terreno, aliás, ultrapassa o domínio da quando os que a constituem são movidos pela idéia de autode-
sociologia, tal como aqui se tem entendido a disciplina, e somente terminação? Estas perguntas, num plano genérico, trazem de volta
com o concurso da filosofia e, mais particularmente, da filosofia a velha questão dos povos . "naturais" versus povos "históricos".
da cultura, pode ser explorado. A autoconsciência coletiva e a o fato nacional brasileiro tal corno hoje se configura torna para
consciência crítica são produtos históricos. Surgem quando um nós muito atual a questão, pois exprime um modo de ser que
grupo social põe entre si e as coisas que o circundam um projeto jamais viveram as gerações passadas do Brasil. É, deve-se insistir,
de existência.2 .
um modo de ser novo no Brasil. É um modo de ser histórico.
A existência bruta é a que se articula diretamente com as coisas Que significa? Significa estar o ·nosso povo alcançando a com-
ou transcorre no nível destas, e, portanto, sem subjetividade. Eis preensão dos fatores de sua situação. O "histórico" pode ser
porque a emergência da auto.consciência coletiva numa comu- entendido corno urna dimensão particular do ser, na qual até
nidade tem sido denominada "elevação", tem sido interpretada agora têm ingressado alguns mas não todos os povos. Diz-se que
como um desprender-se ativo das coisas, como a aquisição da a historização ocorre quando um grupo social se sobrepõe às
liberdade em face delas. Poderíamos denominar de historização coisas, à natureza, adquirindo perfil de pessoa coletiva.4 O que
a este passar de um estado a outro. A divi~ão dos povos em distingue a sociedade "histórica" daquela que carece deste atri-
naturais e históricos tem sido pretexto de grandes discussões. buto é "a consciência da liberdade", a personalização. Não se
Atualmente predomina nos que se dedicam a ·estudos antropo- afirma uma diferença de essência entre as duas modalidades de
lógicos e sociológicos uma tendência a julgá-la inaceitável. Entre convivência social. A possibilidade do histórico está contida na
os filósofos, a questão volta hoje a ter grande interesse, de um convivência chamada "natural". Basta que fatores objetivos sus-
lado, graças à tematização do "histórico", empreendida por citem nas sociedades rudimentares a modificação do modo pelo
pensadores de orientação fenomenológica ou adeptos de cor- qual os indivíduos se relacionam entre si e com a natureza,
rentes da filosofia da existência; de outro, por motivos mais tornando-o mais independente da pressão dos costumes, para que.

46 47
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA A CONSCI~NCIA CnfTICA DA REALIDADE. . .

uma nova postura existencial aberta à história apareça em tais na sua plenitude a categoria de pessoa coletiva. Pois, para as
sociedades. É exatamente essa espécie de postura que define o coletividades, aspirar à história é aspirar à personalização. A pes-
viver projetivo, propriamente histórico, e posssibilita o existir soa, como ser eminentemente projecivo, subentende a história. 5
como pessoa. Entre a modalidade natural de coexistência e a Reações de povos explorados da Ásia e da África contra os seus
propriamente hist6rica há uma diferença no grau de persona- exploradores sempre se. verificaram nesses continentes, desde que
lização. A pessoa se define como ente portador de consciência os europeus os ocuparam. Mas eram reações q ue poderiam ser
autônoma, isto é, nem determinada de modo arbitrário, nem comparadas a um processo ecológico, a uma competição animal
pela pura contigência da natureza. A personalidade histórica de por espaço, alimentos e riquezas, embora tivessem, como não
um povo se constitui quando, graças a estímulos concretos, é podiam deixar de ter, tratando-se de populações humanas, um
levado à percepção dos fatores que o determinam, o que equivale conreúdo também cultural. Mas a reação ao colonialismo que
à aquisição da consciência crítica. hoje se verifica no mundo afro-asiático é, quanto ao caráter,
distinta das anteriores. É a reação conrra o colonialismo consi-
A consciência crítica surge quando um ser humano ou um
derado como sistema6 , é a reação mediante a qual esse~ povos
grupo social reflete sobre tais determinantes e se conduz diante
fazem uma reivindicação cujo conteúdo não é parcial, mas in-
deles como sujeito. Distingue-se da consciência ingênua que é
finito, universal. É que pretendem ser, eles também, sujeitos de
puro objeto de determinações exteriores. A emergência da cons-
um destino próprio. Nas sociedades coloniais apareceràm hoje
ciência crítica num ser humano ou num grupo social assinala
quadros novos, empenhados num esforço de repensar a cultura
necessariamente a elevação de um ou de outro à compreensão de
universal na perspectiva da auto-afirmação dos seus respectivos
seus condicionamentos. Comparada à consciência ingênua, ..a
povos. Não é um comportamento romântico que levaria esses
consciência crítica é um modo radicalmente distinto de apreen-
povos ao enclausuramento, a se apegarem aos seus costumes sob
der os fatos, do qual resulta não apenas uma conduta humana
a alegação realmente suicida, de preservá-los em sua pureza; é
desperta e vigilante, mas também uma atitude de domínio de
antes uma atitude que não exclui o diálogo, pois contém a
si mesma e do exterior. Sem consciência crítica, o ser humano
consciência de que, para ser historicamente válida, a auto-afir-
ou o grupo social é coisa, é matéria bruta do acontecer. A cons-
·
: ..
mação dos povos deve confluir para o estuário de todas as altas
ciência crítica instaura a aptidão autodeterminativa que distin-
culturas da humanidade. Tal é a perspectiva em que se acham
gue a pessoa da coisa. No mundo contemporâneo descordna-se
situados esses novos quadros.
a propagação da consciência crítica em populações da Ásia e da
África. A maioria delas, mesmo ~s dotadas de formal indepen- Em apoio dessas observações, basta lembrar crês obras
dência política, não ultrapassou a condição colonial, pois ainda recentes. Numa delas, Nations negres et culture, Cheik Anta Diop
é instrumento de burguesias metropolitanas. Apesar disso, pas-
denuncia o que chama de "falsificação da história", devida, em
grande parte, ao fato de que tem sido escrita do pomo de vista
. saram a aspirar à história, e deste estado de espírito coletivo são
europeu. Seu livro, tentativa de rever um aspecto da história
flagrantes reiteradas ocorrências. Uma dessas - das mais espe-
universal (as origens da civilização egípcia) à luz do ponto de vista
taculares - é o fato de terem delineado nas Conferências de
da África Negra, se inscreve na reação de autodefesa do "povo
Bandoeng (1955), do Cairo (1957) e de Acra e Tânger (1958),
africano", tendente a "eliminar o mal cotidiano que nos causam
pontos· de vista próprios e formulado o propósito de pautarem
suas ações segundo normas derivadas de projetos autônomos de .I as terríveis armas culturais a serviço do ocupante".' Em um
. I Discurso sobre o coúmialismo, Aimé Césaire julga o que chama a
existência. Em suma, exprimiram legítima pretensão de realizar
i
48 49
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA
A CONSCillNCIA CRITICA DA REALIDADE •. .

"hipocrisia" da civilização ocidental, na justificação de sua tarefa


Rio de Janeiro: ISEB, 1956; lntroduçiúJ critica à sociologia
colonizadora. O autor a vê· como aventura e pirataria, dissimulada brasileira. Rio de Janeiro; 1957; "Considerações sobre o Ser
em evangelização e obra filantrópica, e nisto consiste o seu sig- Nacional". jornal do Brasi~ 2011157 e finalmente "Notas
nificado hipócrita. No julgamento de Aimé Césaire, porém, a sobre o Ser Histórico". jornal do Brasi~ 2711157.
colonização é condenada, não em nome de um exclusivismo (2) "O mero ser vivo se articula com as coisas, permanece
nativista, mas porque realmente não estabelece verdadeiro imerso nelas. Entre o animal e as coisas há uma relação de
contato entre os povos, proclamando o autor que a Europa articulação. Entre o homem e as coisas há relação de liber-
deveria ter sido uma "encruzilhada", "lugar geométrico de todas dade. Daqui a diferença qualitativa entre o que as coisas são
para o homem e para o simples ser vivo. Ao animal, as coisas
as idéias, receptáculo de todas as filosofias e de todos os.:senti-
são "dadas" ou "postas" e o modo pelo qual lhes responde
mentos".8 São menos gerais os temas de Abdoulaye Ly, em Les é o da simples reação". Vide CONDE, Francisco ]avier. Teoria
Masses africaines et i' actuelle condition humaine, livro em que y sistema de las formas politicas. Madrid, 1953. p.
39.
pesquisa os termos da equação do desenvolvimento nas regiões {3) O interesse acuai pelo tema da "hiscoricidade" revaloriza os
africanas, procurando mostrar o que há de vicioso nos estudos textos hegelianos, notadamente as Lições sobre a filosofia da
acadêmicos e marxistas relacionados com a matéria. Também história universal e as Lições sobre a história da filosofia. Para
Ly é universalista e acredita numa "inelutável marcha da hu- uma ampla discussão sobre o fenômeno histórico, vide
manidade para a identidade relativa, para a unidade mundial HEIDEGGER. E! Ser y e! tiempo. México, 1951; BALLESTAR,
racional, para a igualdade". 9 Jorge Pérez. Fenomenologia de. lo Historico. Barcelona, 1955;
PUELLES, Antonio Millan. Ontologia de la existencia historica.
Esses quadros, de que são representantes Diop, Césaire e Ly, Madrid, 1955.
vivem um momento que poderia ser considerado "fichtiano". (4) Diz Hegel: "a história propriamente de um povo começa
Senrem-se convocados a um empreendimento de fundação his- quando este povo se eleva à consciência". Lecciones sobre
tórica, e procuram contribuir, pelo esclarecimento, para que as la filosofia de la Historia Universal. Buenos Aires, 1946,
comunidades a que pertencem venham a constituir personalida- p. 151. Para o filósofo, seria a história uma camada ôntica
des culturais diferenciadas no nível da universalidade. Por isso, superposta à natureza. Se o Oriente- pensa Hegel- carece
falam em "nação", que é a mais eminence forma contemporânea de história, é porque aí "a individualidade não é pessoa",
está "dissolvida no objeto", op. cit. p. 201. Não imporra
de existência histórica, e em "condição humana" para as massas
que, nesta condição, encontrem-se "Estados, artes, ciências
afro-asiáticas, ainda estigmatizadas por extrema pauperização. incipientes"- tudo isto "se acha no terreno da natureza",
Finalmente, o termo discurso utilizado por Aimé Césaire, que, op. cit. p. 125. ·
além de político, é poeta, evoca a atitude fichtiana, atitude surgida (5) "A pessoa é o ser que tem uma história", diz Mohamed Aziz
episodicamente na história alemã, embora seja verdadeiro modelo Lahbadi. Vide De l'ttre à la personne. Paris, 1954, p. 56.
de postura intelectual para todo homem de pensamento que vive (6) Sobre o colonialismo, considerado como sistema, vide
urna hora incerta de sua comunidade. SARTRE, Jean·Paul. Le Colonia/isme est un systeme, "Les Temps
Modernel', n. 123, 1956.
Notas
(7) "Diante desta atitude generalizada dos conquistadores, era
(1) O autor tem focalizado a questão da consciência crítica em de prever uma reação natural de autodefesa no seio do povo
estudos anteriores. Vide especialmente: "A problemática da africano, reação tendente, é claro, a erradicar o mal coti·
. realidade brasileira". In: Introdução aos problemas do BrasiL diano que nos causam estas temíveis armas culturais a

50 51
A REouçAo SocioLóGICA

serviço do ocupante". Vide Dror, Cheik Anta. Nations


negres et culture. Paris, 1954, p. 8. Um livro precursor da
atual corrente revisionista, em que se integra C. A. Diop,
é Le Crépuscule de la civilisation (L 'Occidmt et les Peuples de
Cottlellr), de Arturo Labriola. O livro foi editado em Paris,
sem data. Pode-se presumir que sua publicação tenha
ocorrido por volta de I 936. Fatores da Consciência
(8) " ... admiro que é um bem colocar civilizações diferentes em
Crítica do Brasil
contato umas com as outras; que é excelente desposar
mundos diferentes; que uma civilização, seja qual for seu
gênio' fnrimo, se embora quando se volta para dentro de si
mesma; que o intercâmbio representa aqui o oxigênio, e que
a grande oporrunidade da Europa é a de ter sido uma
encruzilhada, e que o faro de ter sido o lugar geométrico
de todas as idéias, o receptáculo de rodas as filosofias, o
ponto de chegada de rodos os sentimentos, fez dela o melhor
rediscribuidor de energia". Ci!SARE, Aimé. Discours sur /e
colonialisme. Paris, 1955, p. 1 O.
(9) Cf. Lv, Abdoulaye. Les Masses africaines et l'actuelle
condition humaine. Paris, 1956, p. 16.
O Brasil, em condições muito espectats, parttctpa dessa
transformação da psicologia coletiva das chamadas sociedades
periféricas. É necessário, todavia, entender o que torna aqui
particular essa transformação. Sem pretender analisar a fundo os
fatores genéticos da consciência crítica no Brasil, devem ser
mencionados alguns faros que autorizam afirmar que o povo
brasileiro vive nestes dias uma nova etapa do seu processo his-
tórico-social. Essa nova etapa é naturalmente caracterizada por
fatos inéditos. Que faros são esses? Seria impossível descrevê-los
em todos os seus pormenores. Mas, como se trata de mudança
estrutural em que esses faros estão articulados entre si, basta
considerar alguns dos mais salientes para que se demonstre a
existência e o sentido da aludida transformação. Por isso, men-
cionar-se-ão apenas três: a industrialização, e di.tas de suas con-
seqüências, a urbanização e as alterações do consumo popular. É
posto de lado o problema das causas desses fenômenos, ou seja,
não se cogitará de perquirir que circunstâncias têm possibilitado
o desenvolvimento do Brasil, à diferença do que acontece em

52
A REDUÇÃO SociOLóGICA FATORES DA CoNSCillNCIA CRfTICA .••

outras regiões periféricas _do mundo. Para compreender porque continuamente ascendente, sejam desfavoráveis ou favoráveis
no Brasil a consciência crítica está em emergência, é suficiente os nossos termos de intercâmbio com o exterior. O vulto da
considerar aqueles três fatos, tais como se apresentam, e mostrar produção mercantil, a despeito da baixa dos nossos termos de
os seus efeitos sociológicos. intercâmbio, depois de passado o surto do ouro, continua a cres-
cer e se incrementará mais ainda a partir de 1850, quando se
Efeitos Sociológicos da Industrialização voltam para aplicação no interior do país os capitais empregados
até então no tráfico, e se iniciam novas relações favoráveis de co-
Em primeiro lugar, a industrialização. Não se têm explorado, mércio exterior.
do ponto de vista sociológico, as implicações do processo de
Convém assinalar que, se for incluída na produção para o
industrialização. Na envergadura em que hoje transcorre, contri-
consumo interno a parcela natural, a não ser nas décadas iniciais
bui para caract~rizar, como nova, a atual etapa de nossa evolução
do século XVI, jamais a importação foi suficiente para atender
histórico-social. É certo que as atividades industriais já têm, à demanda de bens de nossa população. Para uma exata compre-
relativamente, um longo passado no Brasil. Alguns fatos o ates-
ensão do processo econômico brasileiro, é necessário sublinhar o
tam. É lícito supor que durante o período inicial de nossa evolução fato de que a importação sempre foi um suplemento da produção
econômica, o consumo de bens importados era privilégio de interna. Mais significativo ainda é observar que, na década de
senhores, grandes proprietários de terra e de restrita parcela da 1840, as correntes internas de comércio já permitiam que se
população dotada de poder de compra. A maior parte da popu- verificasse n~ território brasileiro uma produção mercantil para
lação realizava muito raramente operações mercantis e consumia o consumo interno consideravelmente superior à importação.
diretamente a produção que obtinha no âmbito das fazendas ou No ano de 1846, enquanto a exportação era da ordem de 53.630
das unidades domésticas. Aí, além do cultivo do produto desci- · contos, segundo o depoimento do Visconde de Villiers de I'IIIe
nado à exportação, açúcar, café, algodão, realizavam-se muitas Adam "o que se fabricava na província (fluminense) e se vendia
outras atividades, a fim de garantir à população rural o consumo para outras se _elevava provavelmente a 180 mil contos". Esse nível
dos bens de que necessitava. Em tais condições; eram muito de comércio interno relativamente alto constituía, sem dúvida,
débeis, no país, os impulsos endógenos de desenvolvimento. De fator ponderável de desintegração do oikos, ou seja, de abertura
início, esses impulsos vieram de fora, por intermédio do setor das unidades domésticas de produção. A esse fator dinâmico
exportador. Não podia deixar de ter sido assim, pois que o interno aliava-se um fator externo- a exportação, que, de 1850
desenvolvimento só ocorre onde há pagamento a fatores, em a 1929, possibilitando a venda para o exterior de quantidades
especial ao fator mão-de-obra. À exportação coube, portanto, crescentes de mercadorias a preços também crescentes, muito
inicialmente, no Brasil, fornecer os meios de pagamento. Pode- contribuiu para dotar a economia brasileira de condições de
se registrar a prática de pagamentos no Brasil já em período autodesenvolvimento.
anterior à sua emancipação política. No período do ouro já existia A fim de demonstrar o caráter favorável dos nossos termos de
aqui uma produção mercantil, um movimento interno de tran- intercâmbio naquele período, é suficiente considerar o quantum
sações econômicas de que se beneficiava significativa parcela da da exportação do café. Já no período de 1850/51-1859/60 a
camada popular. Iniciada: a incorporação da população no cir- participação do produto na exportação correspondia a 48,8%,
cuito propriamente econômico, começa um processo que cedo se rendo alcançado mesmo 53,2% em 1837/38. A saca de café, que
firma e se torna irreversível. Esse processo segue uma linha em 1850/51 valia a bordo f. 1,57, passara eJ:ll 1860/61 a f 2,39;

54 55
A REouç.Ao Soci OLOGICA FATORES DA CONSCI~NCIA CRITICA •••

em 1862/63 a f 2,90; para ª tingir, em 1925, a f 5,50. No período Valor da Exportação Comparado ao Valor da
de 1839/44 as quantidades exportadas, em toneladas, foram Produção Industrial em Cruzeiros
88.667; passaram, no período de 1869-1874, a 165.114 e cres-
ceram continuamente até 1929. Esses faros têm extrema signi-
Ano Produção Industrial Exportação
ficação sociológica. Mostram que as correntes internas de co-
mércio, bem como a exportação, assegurando o escoamento de 1850 10.000.000 55.032.000
nossos produtos a preços altos, induziram a especialização de 1889 211.000.000 259.000.000
nossa agricultura e, portanto, a transferência, para os núcleos 1907 742.000.000 860.981.000
urbanos que iam aparecendo, de atividades produtivas até então 1920 2.989.176.281 1.752.411.000
exercidas no âmbito rural. No período de alguns decênios, esta 1929 7.400.000.000 3.860.482.000
modalidade já adiantada de atividade econômica consegue vingar 1939 17.479.393.000 5.615.519.000
definitivamente, habilitando o país a desenvolver a sua produção
industrial em ritmo crescente, e assim assegurando à economia Para avaliar atualmente a m agnitude de nosso processo in-
brasileira impulsos próprios de crescimento. A consciência desta dustrial, e portanto a capacidade de autodesenvolviemnto da
transmutação só recentemente veio a formar-se, quando os estu- economia nacional, uma das melhores referências é a composição
diosos começaram a apreciar a maneira ativa pela qual a economia das importações. Até recentemente, apesar do vulto crescente da
brasileira reagiu à grande depressão mundial dos anos trinta. produção industrial, o país precisava converter a maior parte de
Enquanto outros países periféricos estagnavam ou deterioravam suas divisas em bens de consumo para suplementar a demanda
a sua estrutura econômica, o Brasil continuou a crescer, graças interna da população. No começo do século, mais de 80% do
ao esboço de mercado interno que conseguira formar. Mas não valor da importação era de bens de consumo. Nos últimos de-
se deve privilegiar a década de trinta: Já anteriormente, eram cênios, inverteu-se a situação. A percentagem de bens de produção
vigorosos os impulsos de autodesenvolvimento em nossa eco- em relação ao valor total das importações já era de 67,5% em
nomia. Na primeira década do século, o vulto da produção 1947; subindo para 73,8% em 1950; para 78,3% em 19.52; e para
industrial igualava o da exportação. Daí por diante decresce con- . :.~- 79,5% em 1954.
tinuamente, em termos absolutos, o valor da exportação com- Dados como esses revelam que a industrialização, no nível
parado ao valor da produção industrial, como se vê nos dados em que se realiza hoje no Brasil, demanda elevada capacidade
a seguir compilados pelo D epartamento de Sociologia (Serviço empresarial de ·particulares e do Estado, assume o caráter de
de Pesquisas) do ISEB. empreendimento político, (fírovocando modificações na psicolo-
gia coletiva, entre as quaís se inclui o pensar em termos de projeto~
O povo brasileiro está atual~enre empenhado na realização de
projetos, Ora, um povo que projeta, enfrenta a sua circunsdncia
de modo ativo, procurando explorar as su~s potencialidades se-
gundo urgências determinadas. Uma população que projeta
articula-se no seu contexto espacial de modo diverso da que não
projeta, da que vive de modo imediatista. Uma e outra vivem
modalidades diferentes de tempo. Em numerosos trabalhos an-.

56 57
A REDUÇÃO SOCIOLóGICA FATORES DA CONSCI~NCIA CRITICA •••

tropol6gicos e sociológicos, encontra-se abundante material à no Brasil, sendo apenas de 36, 12 a percentagem da população
espera de um esforço de elaboração de uma sociologia diferencial classificada como urbana. Todavia, do ponto de visra dinâmico,
do tempo. Georges Gurvitch, em Determinismes sociaux et liberté as tendências para a urbanização tornam-se cada vez mais pre-
humaine, propõe oito gêneros de temporalidade. Mas ein sua ponderantes. Dependente que é esse processo da industrialização,
exploração pioneira do tema infelizmente não se detém no exame I ,Jt •
o seu vulto atual já permite formar uma idéia da importância que
da relação entre o tempo e a equação: sociedade e natureza.
Autores mais afoitos têm afirmado que nas sociedades dependen-
l vai assumindo no país o fato urbano. No período de 1940/50, ·
enqu~nto a mão-de-obra agrícola desce de 64o/o para 57,7%, a
tes, de modo direto, de sua · moldura natural, não há tempo. A I mi o-de-obra na indústria cresce 60%. No mesmo período, a
vida dessas populações ·é espacialidade, é pré-reflexiva. Entre esses nossa população rural cresce 18%, enquanto a urbana aumenta
autores, estaria, em posição extremada, Oswald Spengler, para 45%. E já em 1950, mais da metade da população (52,59%) de
quem existe um estado ftl!ahico que define a vida de populações um Estado da. União, São Paulo, era urbana. Todas essas são
sem história. Sem adotar este arriscado ponto de vista, parece, indicações de que a distribuição dos contigentes demográficos se
entretanto, certo que uma nova forma de existência temporal vem orientando cada vez mais para a urbanização: Trata-se de
surge quando, numa coletividade, "a produção se transforma em vigoroso processo mediante o qual continuamente se incorporam
produtividade",' isto é, quando as relações dos homens entre si a um círculo de intensas relações, sob~etudo econômicas, brasi-
e com a natureza se tornam mediaras, graças à intensificação do leiros que antes viviam em nível quase puramente vegetativo.
trabalho social e à diminuição do impacto das necessiades ele- rf:ntre outras coisas, esta incorporação transforma esses brasileiros
mentares na vida ordinária. Escapam assim esses indivíduos "à de indivíduos escassamente compradores em essencialmente
finalidade imanente ao seu estado atual e perseguem uma expe- compradores..J
riência progressiva".2 Vivem um tempo que "supõe uma retomada
É necessário realçar a diferença de psicologia coletiva entre um
ativa do passado e uma antecipação constante do futuro".' Já se
contigente de pessoas que praticam largamente o autoconsumo
falou no "torpor" da vida colonial.4 D eriva de seu escasso con-
da produção e o de pessoas que vivem de salários e que assim
teúdo projetivo. A colônia é, por definição, instrumento da
) -' têm de comprar tudo, ou q..;asé tudo, de que necessitam. A
metrop6le. Q uando, porém, um povo passa a ter projeto, adquire
sociedade que estas últimas formam tem maior conteúdo político
uma individualidade subjetiva, isto é, vê-se a si mesmo como
que a de rurícolas. Não é por acaso que a~lf!@:P
centro de referênci~
de nossas populações se vem incrementando nos últimos anos.
Está configurando-se entre nós a categoria de verdadeiro povo,
Efeitos Sociológicos da Urbanização graças àqu~la incorporação. N ão tem precedentes o grau de
O segundo fato que deve ser focalizado, consequencia do politização que revelam as massas atuais do Brasil. O ingresso da
anterior, é a §:~:_n~~~§;l Os traços rurais são ainda predomi- população nacional num círculo de intensas relações, pressupostas
nantes na sociedade brasileira. Mas o exame dos movimentos da por um mercado interno que cada dia mais se robustece, a torna
população leva a admitir que essa predominância está em vias de capaz de uma modalidade de convivência que, anteriormente, não
. ~--
desaparecer. As tendências objetivas do panorama demográfico do lhe era possível. Enquanto não se constituiu oe_~5ado inter~:>
país se orientam decididamente no sentido da urbanização. Do o povo não foi propriamente sujeico do acontecer·p-Õf(él~ ao
ponto de vista estático, o rural predomina hoje sobre o urbano menos no sentido moderno ou nacional da expressão. A popu-

58 59
-~~F7..TORES DA CONSCI~NCIA CRITICA •••
A REouçAO SOCIOLÓGICA

!ação brasileira descobriu p político a partir de sua integração que estimulam o individualismo, a competição, a capacidade de
no âmbito de interações surgido no país graças à formação do iniciativa, o interesse pelos padrões superiores de existência. A
.mercado interno. 5 tensão constitutiva da vida urbana traduz-se naturalmente ;~
poli tização acentuada, t~rnàri:do -decisivá ..à pà.icTcipação po"i)~l;~·
Ordinariamente, nos países subdesenvolvidos o tipo rural de
nas várias formas de atividades diretivas da sociedad~J Alguns
existência, dada a própria natureza das relações habituais domi-
fatos políticos podem ser aqui lembrados para mostrar a perda
nantes em seu horizonte espacial, (iião favorece, em plenitude,
de representatividade de quadros políticos ·anacrônicos. O elei-
a vida propriamente polfti~Esta su;g~-~o~e~te a partir de certa
densidade demográfieã:"1'iro caso, a quantidade condicionao nível torado urbano, em nosso país, desde 1950, vem retirando siste-
qualitativo da vida coletiva. O rurlcola é, por definição, o ha- maticamente o seu apoio a candidatos a funções governamentais
bitante de zonas demograficamenre rarefeitas, integrante de nos quais não reconhece propósitos sinc;eros de efetivar suas
pequenas coletividades. É justamente esta escassez demográfica aspirações. Na história política dos úlrimos anos, têm sido fre-
que, em grande parte, co~ICiõna sua psicologia coletiva. Em sua qüentes lutas eleitorais que se. concluem, significativamente, com
.vida domina primeiramente o trato com os produtos daturais, o a derrota de candidatos do governo, tanto na esfera federal, como
que lhe impõe u~__rj!.!.flO de~i~~ns:ia_ !llu!_to lento, afetado pelo na estadual e municipal. ·
próprio ritmo da natureza. Tem de ser, po;~ um indivíduo
pouco tenso em suas relações com objetos e outros indivíduos, Efeitos Sociológicos das Alterações
uma vez que estas são, em larga margem, ajustadas à maneira do Consumo Popular
habitual como· os fenômenos naturais transcorrem. Em segundo Um terceiro fato novo, que particulariza a presente etapa da
lugar, a pequenez relativa das coletividades rurais, em vez ~e evolução brasileira, é a modificação que vem sofrendo a compo-
estimular acentuada diferenciação dos indivíduos, de diversificar sição do consumo popular. Nos últimos decênios, graças ao
os seus objetivos e sua motivação, levando-os a adotar condutas crescimento do poder aquisitivo, que o desenvolvimento sempre
fortemente competitivas, integra-os de modo profundo em gru- acarreta, não só se tem verificado o acréscimo dos consumos
pos dotados de vigorosa consciência coletiva. !Em outras palavras, vegetativos do povo (alimentação, casa, roupa), como também (o
em tais coletividades se obtêm alto grau de solidariedade social, que é mais relevante) o aparecimento de novos hábitos de con-
garantida pela semelhança psicológica dos indivíduo~ Foi a sumo em massa, de caráter não vegetativo.
compartimentação da população brasileira em uma poeira de
Pode-se imaginar a simplicidade do consumo popular no
pequenas coletividades rurais que, em épocas anteriores, e mesmo
passado, levando-se em consideração a estrutura de produção no
até recentemente, assegurou tanto o domínio das ~
Brasil, pouco diferenciada em relação ao que é hoje. A falta de
quanto à passividade política do eleitorado.
dados quantitativos é suprida pelo depoimento d e observadores.
A industrialização vem promovendo a transferência de pessoas Um deles é Tobias Barreto. Em seu Discurso em Mangas de
do campo para as cidades e incrementando a formação de aglo- Camisa, pronunciado em Escada no . ano de 1877, referindo-se
merações urbanas, e disso está decorrendo certa mudança na à .população daquele município, dizia:
psiç<;>J~g-~_<:..Q.leE~_hrasi-lei~ A ambiência urbana, à dife~ Sobre esras rrês mil almas, ou melhor, sobre esres rrês
rença da rural, insere o indivíduo numa trama de incensas relações mil venrres, é probabilíssimo o seguinte cálculo:
nas quais se registra considerável carga de cálculo. (são relações

60 61
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA FATORES DA CONSCII!NCIA CRITICA.••

90% de necessirados, quase indigenres, já diz respeito a uma população que ingressara num plano de vida
8% dos que vivem sofrivelmenre, superior ao da subsistênci~ais ilustrativos são ainda outros
1;1/2% dos que vivem bem, resultados das investigações de 1939 e 1952 7 no seio da classe
O, 112% dos ricos em relação. operária. Os gastos com alimentação, habitação, vestuário, mé-
100% dico, remédio e transportes absorviam os seguintes percentuais da
despesa total:
Num panorama do Brasil, na primeira década desce século,
Sílvio Romero observa a precariedade do consumo popular.Tiizia
que, naquela época, em geral o povo ganhava apenas o suficiente Censo do Salário Pesquisa Nacional
Cidades Mínimo-1939 1952
para a sua subsistência material. E observa:.J
Tirados o padre, o mestre-escola, os funcionários da Recife 108,7 78,9
justiça, onde os há alguns vendeiros e lojistas que exercem
um reles comércio, alguns oficiais de ofício braçais, não se
Maceió 104,4 75,2
percebe bem de que vive o resto, que é a maior parte da Distrito Federal 95,5 77,4
população.•
São Paulo 101,2 79,7
Infelizmente não se encontram, a esse respeito, informações
Curitiba 95,6 78,8
técnicas que aqui possam ser referidas. Mas, a partir de 1934
Porco Alegre 103,9 69,6
começam a aparecer informações um tanto mais qualificadas
sobre as condições de vida do povo, embora de variável grau de
objetividade. Naquela data (1934), realizou-se em Recife pesqui;a A despeito da margem de erro que pode ser facilmente apon-
pioneira' sobre padrão de vida. Segundo os resultados da inves- tada nestes informes, são consistentes do ponto de vista global
tigação, os gastos com alimentação absorviam 71,6% da renda e atestam que ~~correndo um refinamento dos há~i~~.RQpu­
~~- É. pertinente observar que a pesquisa de 1952
dos operários recifenses, restando menos de 30% para as outras ·
despesas. ff: claro que tal orçamento apenas permitia que os registrou larga difusão de hábitos de consumo de teor elevado.
indivíduos se mantivessem quase tão-só no plano anima!\ Outras Das famílias investigadas, tinham aparelho de rádio 92,0%, em
investigações posteriores vieram, porém, revelar a tendência para Porto Alegre; 73,8% em São Paulo; e 64,5% no Distrito Federal.
a baixa do percentual das despesas com alimentação. Segundo o Tinham luz elétrica 98,0% em Porto Alegre; 95,6% em São
Censo do Salário Mínimo de 1939, a percentagem da alimentação Paulo; 86,2% no Distrito Federal. Tinham máquina de costura,
na despesa total de famílias operárias era: em Salvador- 69,4%; 76,0% em Porto Alegre; 52,5% em São Paulo; 45,8% no Distrito
em Recife - 68,7%; em Maceió - 70;9%; em São Paulo - 54,9%; Federal. De uma população na qual se verifiquem alterações como
em Curitiba- 58,6%; em Porco Alegre - 6i,7%. Em 1952, esses estas, pode-se dizer que~~ história. Tais con-
percentuais baixaram ainda mais, sendo em Salvador - 58,29%; sumos vem a dar fundamento a uma psicologia coletiva de grande
em Recife- 54,4%; em Maceió- 52,4%; em São Paulo- 41,0%; conteúdo reivindicativo. 'Quanto mais uma população assimila
em Curitiba- 45,9%; em Porto Alegre - 35,4%. Note-se que em hábitos de consumo não vegetativos, tanto mais cresce a sua
1952, nas três últimas capitais, nos grupos populares investigados, consciência política e maior se torna a sua pressão no sentido de
mais de metade da despesa total era aplicada em itens diferentes obter recursos que lhe assegurem níveis superiores de existênciaj
da alimentação. lFor mais precário que fosse esse padrão de vida, Os padrões precários de existência, mantendo a população em

62 63
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA FATORES DA CONSC!ENCIA CRITICA •••

estado de servidão à natureza, não propiciam o aprofundamento diz respeito ao homem e à sua forma de existência, deve ser
de sua subjetividade.ÍConcêntrando su.a s forças para obter a mera olhada com cautela a diferença entre o natural e o histórico,
subsistência, presas de necessidades rudimentares, não resta às a divisão dos povos em naturais e históricos podendo, muitas
vezes, denunciar uma atitude ernocêntrica e ideológica. O
populações pauperizadas senão restrita margem para desenvolver
homem, em suas possibilidades, é sempre fundamentalmente
a aptidão de se conduzirem significativamente como protagonis-
o mesmo, numa ou na outra forma de existência humana
tas de um destino históricoJPoder-se-ia considerar como expostas a que se refere C. Schmitt. Todos os aros humanos são
à hererodeterminaÇão as coletividades de escassa subjetividade, "projetivos", como adverte Javier Conde, tanto no estado de
por isso que dispõem de recursos limitados, quase tão só hábeis natureza como no estado político: O incremento de inten-
para permitir a sua reprodução animal. ~6 adquire a possibilidade sidade na coexistência dos homens não lhe modifica a escru-
de autodeterminação o povo que, libertando-se da motivação cura essencial, apenas os torna aptos a realizar plenamente
grosseira, dos misteres puramente biológicos, transfere seus in- uma das possibilidades desca estrutura- a política. De qual-
teresses para motivos cada vez mais requintados. É a autodeter- quer forma, a distinção de C. Schmitt é esclarecedora. Sem
minação, garantida por supostos concretos, que leva uma popu- dúvida, o recente incremento de intensidade no âmbito das
relações de diversas ordens vigentes no espaço brasileiro veio
lação a ascender do plano do existir acidental, dir-se-ia quase
dar-lhe um conteúdo político que, em termos comparativos,
espacial, para o da duração; da condição de objeto ou coisa à .-,
pode ser considerado novo.
condição de sujeito. A autodeterminação está, de certo, associada >
(6) Cf. ROMERO, Sílvio. O Brasil na primeira década do século XX
com refinamento dos motivos da vida ordinária, com a liberração
·: ·:/) Lisboa, 1912, p. 79. O livro em que se encontra este estudo
progressiva dos afazeres elementares.8j. é: Sílvio Romero e Arrhur Guimarães. Estudos sociais. O Brasil
na primeira década do séc11lo XX Problemas brasileiros. 2• Ed.
Notas Lisboa, 1912.
(7) Nota d a 2• edição- Vide sinopse desta pesquisa no Anuário
(I) Cf. LEFORT, Claude. "Sociérés sans Histoire et Historicité".
Estatístico do Brasil, de 1954, elaborada pelo Inscituro Bra-
Cahiers !nternationaux de Sociologie. v. XII. 1956. .
sileiro de Geografia e Estatística. O projetamento, a execução
(2) Op. cit. e apuração dessa pesquisa foram dirigidos pelo autor.
(3) Op. cit. (8) É a este refinamento da motivação que A. Toynbee chama
(4) Vide CORBISIER, Roland. Formação e problema da cultura eterealização.
brasileira. Rio de Janeiro: ISEB, 1958. . - Nota da Segunda Edição. Seria pertinente ressaltar a impor-
(5) Usando terminologia de Carl Schmitt, poderia dizer-se que tância decisiva que assume na promoção de consciência crítica
"a convivência não-tensa" (F. J. Conde), caracrerlstica de um da realidade brasileira, a imagem dessa própria realidade que
perlodo ultrapassado de nossa evolução demográfica, era um se difunde rapidamente em ·toda população, graças aos meios
puro conviver natural, "natiiriiches Dasein". Segundo Carl de comunicação como o caminhão e o automóvel, e de in-
Schmitt, é cerro grau de intensidade que distingue dois tipos formação, como o rádio, a televisão, e especialmente o apa-
de existência humana: a natural (Dasein) e a propriamente relho transistor.
política ou histórica (Existenz}. A existência política ou his-
~( .· tórica supõe um conviver tenso e intens.o que não se verifica
no simples modo de existir natural. Para o autor, a natureza
se transforma em espírito quando entra em tensão. No que

64
A Mentalidade
Colonial em Liquidação

A exigência do desenvolvimento, que se impôs atualmente a


comunidade brasileira, exprime o projeto coletivo de uma per-
sonalidade histórica, ao menos já esboçada, a pretensão do país
de assenhorear-se de sua realidade, de determinar-se a si próprio.
Portanto, vive o Brasil uma fase de sua evolução em que está
superando o seu antigo caráter reflexo. Até há pouco, a nossa
estrutura econômica estava organizada como seção descentra-
lizada da área do capitalismo hegemônico no mundo e, assim,
orientada para satisfazer a demanda externa. Também política,
social e culturalmente, a sua existência era, em sentido histórico,
adjetiva e triburária. Na periferia ocidental, o Brasil não se re-
cortava como um espaço histórico, capacitado para a aurocon-
formação . Atualmente, porém, tendências centrípetas estão sur-
gindo, em nosso meio, as quais dão suporte a um processo de
personificação histórica. Quer isto dizer que o espaço brasileiro
se tornou teatro de um empreendimento coletivo, mediante ·o
qual uma comunidade humana projeta a conquista de um modo
significativo de existência na história.1 À maneira de um princípio
~,

.iI
A REDuçAo SociOLOGICA A MENTALIDADE COLONIAL•••

configurador, o centripetismo incide em rodos os mvets de já falam do período 'anterior à nacionalização', explicitando
nossa vida, estabelecend; uma tensão dialética entre a estru- uma experiência temporal coletiva à altura da História da
tura anacrônica do país e sua estrutura em geração. Em termos Pérsia, experiência que corresponde a aspirações nacionais de
superestruturais, essa tensão traduz um conflito de duas pers- onde tira toda sua significação histórica e sua densidade. Vai
pectivas: a do país velho e a do país novo, a da mentalidade colo- ao encontro da visão que a maioria dos iranianos possuem
J.
nial ou reflexa e a da mentalidade autenticamente nacional. do futuro. Pela decisão de uma mudança - em função do
futuro - transforma-se o presente em passado". (M.A.
N~ domínio das ciências sociais, essa tensão também se ve- Lahbadi, op. cit., pág. 129).
rifica. Até agora, considerável parcela de estudiosos se conduziu
sem se dar conta dos pressupostos históricos e ideológicos do seu
trabalho científico. Sua conduta era reflexa e se submetia passiva
e mecanicamente a critérios oriundos de países plenamente de-
senvolvidos. Ora, na medida em que os nossos especialistas em
ciências sociais não pretendam ficar indiferentes ao sentido
centrípeto que a vida brasileira está adquirindo, terão de acres-
centar ao esforço de aquisição do patrimônio científico universal
o de iniciação em um método histórico de pensar que os habilite
a participar ativamente do novo sentido da história do país.
À assimilação literal e passiva dos produtos científicos impor-
. tados ter-se-á de opor a assimilação crítica desses produtos. Por
isso, propõe-se aqui o termo "redução sociológica" para designar ·
o procedimento metódico que procura tornar sistemática a assi-
milação crírica.
Não há, porém, uma redução sociológica apenas da pro-
dução sociológica propriamente dita. Há também uma redução
sociológica do direito, da economia, da política, da antropo-
logia cultural, da psicologia, da filosofia, das ciências da cultura
em geral.
Que é a redução sociológica?

Nota
(l) " ... o tempo histórico se transcende por nossos projetos. De
fato, um momemo é dito histórico quando seu desenvolvi-
mento coincide com o de uma idéia-acontecimento. O Majlis
iraniano vota a nacionalização das companhias de petróleo
num sábado; na segunda-feira seguinte, os jornais de Teerã

68 69
Definição e Descrição
da Redução Sociológica

Antes de responder à pergunta, cumpre esclarecer o sentido


do termo "redução".:: Em seu sentido mais genérico, redução
consiste na eli111inação -~e tudo aquilo que, pelo seu caráter
acessório e secundário, perturba o esforço de compreensão e a
obtenção do essencial de um dado) E, portanto, a redução, seja
praticada no domínio teórico, seja no domínio das operações
empíricas, é sempre a mesma atividade. A redução de uma idéia
ou de um minério, por exemplo, consiste em desembaraçá-los de
suas componentes secundárias para que se mostrem ~o que são
essencialmente.
No domínio restrito da sociologia, a redução é uma atitude
metódica que tem por fim descobrir os pressupostos referenciais,
de natureza histórica, dos objetos e fatos da realidade social. A
redução sociológica, porém, é ditada nã~ somente pelo impera-
tivo de conhecer' mas também pela necessidade social de uma
comunidade que, na realização de seu projeto de existência his-
tórica, tem de servir-se da experiência de outras comunidades.
A REDUÇÃO SOCIOLÓG ICA DEFINIÇ'.ÃO E DESCRIÇÃO DA R E DUÇÃO .. .

Para melhor encaminhar a exposição e a comprensão do as- de repetições na realidade social. O sentido de um objeto jamais
sunto, é sem dúvida conveniente proceder a algumas considerações se dá desligado de um contexto determinado.
mais minuciosas. Pode a ~~4~:~çã<:>_ _s()~iol~~ica. ser descrita nos 5) Seus suportes são coletivos e não individuais. O sociólogo
seguintes itens. chega à redução sociológica quando torna sua uma exigência de
I) É atitude metódica. É maneira de ver que obedece a regras h'' autoconformação surgida na sociedade em que vive. A redução
e se esforça por depurar os objetos de _elementos que dificultem sociológica é um ponto de vista que tem a consciência de ser
a percepção exaustiva e radical do seu significado. Pretende ser limitado por uma situação e, portanto, é instrumento de um saber
o contrário da atitude espontânea, que não vai além dos aspectos operativo e não da especulação pela especulação. Por- aí se revela
externos dos fenômenos. A atitude natural não põe em questão
i
o ca(áter coletivo dé seus suportes. Para que alguém apreenda e
os aspectos diretos dos dados que lhe são oferecidos. A atitude
I pratique a redução sociológica, carece viver numa sociedade cuja
metódica os "põe entre parênteses", isto é, exime-se de toda a_utoconsciência assuma as proporções de processo coletivo. A
afirmação ou aceitação desses aspectos, invertendo, por assim redução sociológica não é, portanto, em sentido genérico, prima-
dizer, o processo ordinário da atitude natural. riamente um ato de lucidez individual. Fundamenta-se numa
espécie de lógica material, imanente à sociedade.
2) Não admite a existência na realidade social de objetos sem
6) É um procedimento crítico-assimilativo da experiência es-
pressupostos. A realidade social não é uma congérie, um conjunto
desconexo de fatos. Ao contrário, é sistemática, dotada de sen- trangeira. A redução sociológica não implica isolacionismo, nem
exaltação romântica do local, regional ou nacional. É, ao con-
tido, visto que sua matéria é vida humana. E a vida humana ·se
trário, dirigida por uma aspiração ao universal, mediatizado,
distingu~ das formas inferiores de vida por ser permeada de
porém, pelo local, regional ou nacionaCNãO-pretende opor-se
valorações. Portanto, os fatos da realidade social fazem parte
à prática de transplantações, mas quer submetê-las a apurados
necessariamente de conexões de sentido, estão referidos uns aos
critérios de seletividade. Uma sociedade onde se desenvolve a ca-
outros por um vínculo de significação.
pacidade de auto-articular-se, torna-se conscientemente seletiva.
3) Postula a noção de mundo. Isto quer dizer que considera a Diz-se aqui conscientemente seletiva, pois em todo grupo social.
..:.··
consciência à luz da -reciprocidade de perspectivas. O essencial da há uma seletividade inconsciente que se incumbe de distorcer ou
idéia de mundo é a admissão de que a consciência e os objetos reinterpretar os produtos culturais importados, ,conrrariando,
es_!io--reciprocamente relacionados. Toda consciência é inten~ y ·_ muitas vezes, a expectativa dos que praticam ou ~conselham as
cional porque estruturalmente se refere a objetos. Todo objeto, transplantações literais.
enquanto conhecido, necessariamente está referido à consciência. 7) Embora seus sttportes coletivos sejam vivências populares, a
O mundo que conhecemos e em que agimos é o âmbito em que redução sociológica é atitude altamente elaborada. A redução so-
os indivíduos e os objetos se encontram numa infinita e com- ciológica de um produto cultural, de uma instituição, de um
plicada trama de referências. processo, não se alcança senão recorrendo a conhecimentos di-
4) É perspectivista. A perspectiva em que estão .os objetos em versos, principalmente de história. Consistindo em pôr à mostra
parte os constitui. Portanto, se transferidos para outra perspec- os pressupostos referenciais de natureza histórico-social dos
tiva, deixam de ser exatamente o que eram. Não há possibilidade objetos, a pesquisa desses pressupostos leva a indagações com-

72 73
A REouçAo SociOLóGICA

plexas que só são efetivad;j.s, com segurança, mediante estudo


sistemático e raciocínio rigoroso. A atitude redutora não é mo-
dalidade de impressionismo. Para ser plenamente válida, no campo
da ciência, precisa justificar-se, basear-se num esforço de reflexão,
hábil para demonstrar, de modo consistente, as razões nas quais
se fundamenta, em cada caso. Duas Ilust:rações da
Redução Sociológica

Mediante exemplos, o sentido básico da redução sociológica


será mais claramente apreendido. A fim de concretizar melhor o
pensamento aqui exposto, proceder-se-á à redução de um con-
ceito e à de uma técnica sociológica.
No livro Introdução critica à sociologia brasileira, o autor teve
o ensejo de aplicar o método na crítica dos conceitos de "cultura"
e "aculturação" e, de modo geral, na análise da antropologia
anglo-americana. Agora será objeto de consideração outro con-
ceito- o de "controle social". Pretende-se demonstrar o seguinte:
1) que o conceito de "controle social" assume funda-
mental importância na· sociologia. norte-americana em virtude
do caráter altamente problemático da integração social nos
Estados Unidos;
2) que, naquela sociedade, a exploração exaustiva do
tema confere grande funcionalidade e pragmaticidade ao trabalho
sociológico;
3) que, finalmente, para o sociólogo brasileiro, o con-
ceito de "controle social" tem baixa funcionalidade e, assim, deve

74
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA DUAS ILUSTRAÇÕES DA REouÇÃO ••.

ser urilizado subsidiariam~nte nas considerações teóricas rela- nização", é tema de monografias numerosas e de capítulos obri-
cionadas com os problemas específicos de sua realidade social. gatórios em compêndios de sociologia nos Estados Unidos, nos
O "controle social" é tema obrigatório de todo compêndio quais, até há bem pouco, eram encontradas referênc.ias freqüentes
à chamada "brecha cultural" entre pais e filhos de imigrantes, à
elementar de sociologia nos Estados Unidos. Mais do que isso,
é, freqüentemente, assunto de seminários e cursos de mono- delinqüência e aos desajustamentos juvenis, provocados por
gráficos. Em nenhuma parte do mundo se publicam tantos livros conflitos de avaliação entre gerações. É possível talvez ·afirmar
que, não se tendo formado, naquele país, um substrato len-
sobre a matéria. É claro que isso não acontece fortuitamente. A
tamente sedimentado de tradições e costumes, não existe ali
própria formação histórica daquele país o explica. Dado o escasso
propriamente sociedade; existe, antes, um público, isto é, uma
grau de integração da sociedade norte-americana, o controle soei;]
composição societária destituída de atributos estáveis e, por isso,
constitui ali, mais do que em ourra qualquer coletividade, um
extremamente plástica e dotada de pequena resistência aos estí-
desafio permanente, que, para ser satisfatoriamente conjurado,
mulos de manipulações habilmente conduzidas. Ademais, rem
demanda não só o uso intensivo de meios diretos de coação, mas
sido observado nos Estados Unidos o debiliramento do papel dos
também o emprego em massa de técnicas de manipulação indireta
grupos "primários", baseado nos contatos afetivos (a família, a
de condutas, tendo em vista o fortalecimento dfl estabilidade
social. A formação histórica nacional, no caso, foi marcada por vizinhança eté.) e o incremento da influência dos grupos secun-
dários, baseado em contatos superficiais. Nos Estados Unidos,
extrema aceleração. Não há exemplo, no mundo, de coletividade
chegou ao máximo a fragmentação da sociedade em grupos
que, no período de sua existência histórica, tenha percorrido
organizados artificiais, e, portanto, a mecaniz<J.ção social. 1
tantos graus da evolução econômico-social. Essa aceleração his-
tórica tem dificultado a transmissão da experiência coletiva de Como aspecto particular da mecanização social, pode-se citar
geração a geração. Mesmo em estruturas estáveis podem verificar- o papel saliente dos grupos-de-pressão na vida norte-americana.
se hiatos entre gerações, ali, porém, tais descontinuidades, por Compondo uma gama infinitamente variada, esses grupos lutam
motivos óbvios, têm sido particularmente graves. entre si pela participação de vantagens de toda ordem. Finalmen-
te, agravando todo esse panorama de tensões, há que referir o
Em virtude do ritmo acelerado que marcou a evolução norte-
americana, cada geração, enfrentando inovações radicais, adota sistema capitalista norte-americano que, dadas as suas proporções
excepcionais, acentua, mais do que em outra parte, o caráter
necessariamente estilos de vida em grande parte discrepantes dos
competitivo das relações sociais. Todos esses aspectos concorrem
modos de ver da geração anterior. Condição da estabilidade das
representações coletivas de um grupo social é que o seu contexto para fazer do "controle social", nos Estados Unidos, magna
não mude com demasiada rapidez. Não é sem motivo que os questão sociológica. ·
educadores norte-americanos têm sido os mais pródigos em es- Os especialistas norte-americanos, dando-lhe a atenÇão que
tudos sobre o problema da "educação para uma civilização em merece, tornam a sociologia- operativa e funcional. Assim pro-
mudança". Além disso, durante longo período, os Estados Unidos cedendo, respondem a uma exigência do meio. Põem à dis-
receberam sucessivas levas de imigrantes, constituindo agudo posição· da coletividade conhecimentos que pode utilizar para
problema a integração das diferentes psicologias coletivas e fins de autopreservação. Num país onde os gr~pos "organizados"
motivações de que eram portadores. Sob o nome de "assimilação", assumem tamanha impordncia, a não divulgação em massa de
esse problema atrai ainda hoje a atenção dos sociólogos. A "as- conhecimentos sobre o "controle social'? poderia possibilitar o
similação" que, no caso, não passa de eufemismo de. "america- exercício monopolizado da influência sobre as decisões, por parte

76 77
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA D UAS lLUSTRAÇOES DA REDUÇÃO •••

de algum ou alguns grupos privilegiados, em detrimento dos norte-americano com noções como "conflito", "acomodação",
· interesses gerais. É significativo que, no referido p~ís, o princí- "assimilação", "controle social", se literalmente adotado pelo
pio competitivo, exarcebando e generalizando a Iuca pelo acesso sociólogo brasileiro, o leva a distrair-se das questões que tem mais
a parcelas de influên~ia social, tenha atingido a própria vida interesse para a coletividade nacional. Os antagonismos essenciais
privada, garantindo o êxito de obras do tipo Como fazer amigos da sociedade brasileira são atualmente os que se exprimem na ·
e influenciar pessoas. As relações humanas tornaram-se relações polaridade, "estagnação" e "desenvolvimento", representados por
de mercado. classes sociais de interesses conflitantes, e ainda "nação" e "anti-
O frame of refirence, isto é, o sistema de conceitos básicos da nação", isto é, um processo coletivo de personalização histórica
sociologia elementar norte-americana, de que é constitutiva a contra um processo de alienação. Outras contradições que não
noção de "controle social", tem como pressuposto as condições se enquadram nestes termos são, no momento, secundárias.
particulares dos Estados Unidos. Ilustra um dos modos de apli- Pode-se imaginar o que deveria ser um Tratado Brasileiro de
cação conereta do saber sociológico. Ao elaborar aquele sistema, Sociologia, dotado de alto teor de funcionalidade e estritamente
os sociólogos foram sensíveis aos assuntos relevantes em sua ajustado à nossa realidade. Deveria traduzir um esforço de con-
sociedade. No Brasil, porém, não se deveria conduzir prefe- ceituação de matérias dentre as quais estariam as seguintes, que
rencialmente a meditação sociológica para aquela ordem de
passam a ser mencionadas sem preocupação sistemática;lcÍesen-
assuntos. É certo que, na sociedade brasileira, se verificam si-
volvimento, industrialização, mudança social, estrutura social,
tuações que os sociólogos norte-americanos estudam à luz de
conjuntura, sistema social, distrofia, processo em geral, processo
conceitos como "c~ntrole social", "assimilação", "acomodação",
cultural, processo social, processo civilizatório, institucionali-
"conflito", "isolamento", "contato" e, portanto, esses conceitos
zação, estilização, valor, modelo, fundação, instituição, evolução,
são aqui aplicáveis. Mas o importante é assinalar que tais si-·
revolução, totalidade, transplantação, região, dualidade, hete-
ruações, na etapa atual do Brasil, não têm a mesma relevincia
ronomia, historicidade, temporalidade, tempo social e suas
que nos Estados Unidos. Outro é o esquema de prioridade de
modalidades, ideologia, massificação, consciência coletiva, cons-
assuntos que se induz de nossa presente realidade social. Sobre
ciência crítica, consciência ingênua, período crítico e período
aquelas prevalecem aqui situações d istintas. N ão é, acrescente-
se, uma prevalência presumida ou subjetiva. É uma prevalência orginico, desestrututação, reestruturação, fase, época, geração,
objetiva. Na fase atual da sociedade brasileira, oferecem-se ou- principia media, antagonismos sociais, realidade social, realidade
tros assuntos mais salientes à especulação do sociólogo, como . '. nacional, prática social, alienação, país, povo, nação, colônia,
os que dizem respeito à transição pela qual está passando. Existem centro; periferia, personalização histórica, efeito de prestígio,
na sociedade brasileira os mesmos antagonismos que levam os efeito de dominação, efeito de demonstração, classe social, qua-
sociólogos norte-americanos às pormenorizadas indagações sobre dro, elite, memória social, imitação e suas leis, nomos, eunomia,
o mecanismo eficiente para sua contenção- o "controle social". anomia, redução,. etno-centrismo, situação, situação colonial,
Mas, enquanto a exigência do "controle social" supõe o interesse em urbanização, elevação, complexo rural, divisão social do trabalho,
anular as tensões, conservando a estrutura jd estabelecida, a solução oligarquia, clã, clientela, coronelismo, consciência nacional,
dos antagonismos fundamentais da atual sociedade brasileira requer amorfismo, vigência social, poder, princípio de ljeites e possi-
antes a mudança na qualidade de sua estrutura. O modo de es- bilidades, reflexo, quadros sociais da populaçã~ Esse Tratado
peculação sociológica, que justifica a preocupação do especialista seria diferente do Tratado norte-americano, do francês, do inglês,

78 79
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA DUAS ILUSTRAÇÓES DA REDUÇÃO . . .

do alemão, embora baseado em princ1p10s gerais de raciocínio Para corrigir a imprecisão da média per capita, os analistas de
sociológico, válidos univêrsalmente. resultados de pesquisa de padrão de vida têm utilizado as cha-
madas unidades de consumo.
* * * Em geral, as escalas de consumo alimentar tomam como
Cumpre agora proceder à redução sociológica de uma técnica unidade a ração do homem em determinada faixa de idade. Ao
de investigação social. Para tanto, será invocada ocorrência da homem e à mulher em idade não compreendida na faixa etária
vida profissional do autor. No ano de 1952, teve a oportunidade escolhida se atribuem coeficientes variáveis. Nas investigações
de dirigir o planejamento e a execução da Pesquisa Nacional de de padrão de vida, os consumos efetivos das famílias devem ser
Padrão de Vida realizada em vinte e nove municípios rurais e comparados em termos de "adultos equivalentes". Quando, na
em mais de noventa cidades, inclusive todas as capitais. Nessas Europa e nos Estados Unidos, os técnicos enfrentaram esse pro-
investigações, a fim de apurar, nos centros urbanos, o consumo blema, tiveram de criar escalas de consumo adequadas à apuração
alimentar das famílias operárias que constituíram as amostras dos resultados dos seus inquéritos. Lógico seria, portanto, que,
selecionadas, foi utilizado o conhecido processo das cadernetas, no Brasil e em outros países periféricos, também os pesquisa-
Nestas, durante seis semanas, anotaram-se, diariamente, entre dores criassem suas próprias escalas de consumo adequadas à
outras coisas, as despesas com alimentos de cada unidade do- verificação dos resultados de seus inquéritos. Isto, porém, não
méstica. Na fase de apuração dos informes celerados, surgiu o tem acontecido. No Brasil e nos países sul-americanos, têm sido
momento em que as rações efetivas das famílias deveriam ser usadas escalas estrangeiras, sendo a mais generalizada a abaixo
expressas em unidades de consumo. transcrita, proposta em 1932 por uma conferência de higienistas
Como se sabe, as unidades de consumo permitem obviar da antiga Sociedade das Nações.
os incovenientes da média per capita. Por exemplo, suponham-se ·
Escala Internacional estabelecida por
duas famílias de seis pessoas, ambas com uma despesa mensal de uma Conferência de Técnicos, em 1932
Cr$ 7.200,00. Admira-se que uma dessas famílias é constituída
de marido, mulher e quatro filhos menores de dez anos. Admita- IDADE COEFICIENTES
se que a outra família seja constituída de marido, mulher e quatro
SEXO AMBOS OS SEXO
filhos maiores de quinze anos. Ora, .a despesa per capita de cada MASCULINO SEXOS FEMINI NO
uma das famílias é igualmente de Cr$ 1.200,00. Todavia, não
0-2 anos 0.2
é possível, para efeito de mensuração do padrão de vida, que o
2-4 anos 0.3
estudioso se contente com essa média. De fato, ela não propicia
4-6 anos 0.4
conhecimento preciso do padrão de vida, porque, na segunda
6-8 anos 0.5
família, os filhos. maiores de quinze anos devem consumir ali-
8-10 anos 0.6
mentos em quantidades diversas das que se verificam n~ outra
10-12 anos 0.7
família, em que os filhos são todos menores de dez anos. Com
12-14 anos 0.8
a mesma renda, famílias de igual número de pessoas podem 14-59 anos 1.0 - 0.8
ter níveis .de consumo bastante diferentes, conforme a idade e o 60 anos e mais - 0.8 -
sexo dos indivíduos.
Nota: 1.0 = 3.000 calorias bruras

80 81
A REDUÇÃO SOCIOLóGICA
DuAS lLUSTRAÇOÉs DA REDUÇÃO •••

Ora, é legítimo presumir que essa escala de 1932 não seja de refrigeração, no comando da caixa de d.mbio, nos parafusos
adequada à fisiologia de populações tropicais. Tem importância usados na montagem, na colmeia do radiador, na coroa cilíndrica,
assinalar que seus autores eram na maior parte europeus. Tiveram na caixa do diferencial, essas e outras características impostas para
naturalmente de socorrercse de suas respectivas experiências na- ajustar o caminhão a condições ecológicas, econômicas e psico-
cionais e regionais. Perguntar-se-á: um menino de doze anos é, sociais particulares do Brasil. Este é um caso do que se poderia
do ponto de vista fisiológico, a mesma fração do adulto na Europa chamar de redução tecnológica em que se registra a compreensão
e no Nordeste Brasileiro? Tudo indica ser negativa a resposta. e o domínio do processo de elaboração de um objeto, que per-
Condições ecológicas, culturais e econômicas muito peculiares mitem uma utilização ativa e criadora da experiência técnica
devem influir na fisiologia do menino brasileiro e diferenciá-lo estrangeirà. 2
do europeu.
A seguir serão examinados os antecedentes filosóficos e socio-
\ Que relação tem o exposto com o tema do presente estudo?
É que descreve uma situação na qual se impunha ao investigador
1 lógicos da redução sociológica.

brasileiro a prática da redução sociológica de um procedimento


Notas
técnico .. Aquela escala de consumo é produto de trabalho cien-
tífico referido a um contexto particular, no caso, europeu. Não (1) A "mecanização social" é assunto tecnicamente estudado
pode constituir modelo ou paradigma universal, e portanto em sociologia. Sobre o seu conceito e seus efeitos, vide
obrigatório para o pesquisador brasileiro. Este não deve utilizá- Nu~IEZ, Lúcio Mendieta y. Teoria de los Agrupamiento~

la senão como subsídio na elaboração de nova escala que seja Socialies. México, 1950
funcional e significativa no meio que investiga. São necessárias (2) Nota da 2 1 edição. Essas considerações foram escritas
escalas brasileiras de consumo, embora devam ser obtida$ à luz dos · em 1958. Hoje, 1965, a indústria automobilística do Brasil
apresenta elevada escala de nacionalização, quantitativa e
mesmos princípios científicos gerais de que se serviram os técnicos
qualitativa, de que o exemplo acima dá apenas idéia muito
~~~~ngeiro.::...~ pálida. Vide, ainda, sobre redução tecnológica, as "Obser-
* * * vações Gerais Sobre a Redução Sociológica", em apêndice
Pode-se acrescentar ainda outro exemplo de redução - já deste livro.
agora no nível tecnológico. Sabe-se que o Brasil importava ca-
minhões e ainda os importa em certa medida. Mas já começamos,
graças à Fábrica Nacional de Motores, a produzi-los aqui. O
caminhão FNM é nacional em cerca de 70% de seu peso. No
encanto, mesmo a parte dele não produzida aqui já é ~onfec­
cionada, no exterior, em obediência a certas especificações esta- I
belecidas pelos técnicos brasileiros. Além disso, o caminhão FNM, .!
como um todo, ·em confronto com o caminhão estrangeiro, apre- II
senta características brasileiras. Entre as observações feitas pelo
autor, se incluem as modificações que se verificam no sistema de
molejo, nos calços que suportam o motor, no chassis, no sistema

82 83
Anrecedenies Filos6ficos
da Redução Sociol6gica

Foi a fenomenologia que tornou a redução um dos seus temas


centrais. Husserl, na bus~a de um conhecimento de essências,
procura levar o sujeito a uma experiência transcendental em que
somente pode ocorrer o defrontar-se do eu puro com o objeto
puro. Para elevar-se até aí, ao que chama o "fluxo puro", o sujeito
deve proceder a três reduções: a histórica, pela qual "suspende"
ol!_ exclui as doutrinas e opiniões anteriores a respeito do objeto;
a eidética, na qual elimina a existência individual do objeto; e a
transcendental, mediante a qual encontra a consciência, cuja es-
trutura se nos revela como intencional, "consciência de", isto é,
como essencialmente referida ao objeto. Husserl, no entanto,
opera com a redução (epoché) em nível extremamente abstrato.
Levando às últimas conseqüências"idéias do próprio Husserl,
coube a Marrin Heidegger mostrar, com particular realce, que a
epoché implica o problema do mundo. o eu e os objetos estão
na história e assim a "vivência intencional" que os liga, verifica-
se no mundo. Para Heidegger, o sujeito jamais é um "eu puro",
., "transcendental"; ao contrário, é um "ser-no-mundo"·. É impen-
'
. -.-~!>
A REDUÇ.ÃO SOCIOLÓGICA ANTECEDENT ES FILOSÓFICOS DA REDUÇÃO •.• .

sável um eu que não seja constituído por uma íntima união com A vida social da comunidade define-se como o fonciontt-
o mundo. Não se pode .conceber nenhum momento em que o mmto da estrutura social. A fimção de uma atividade
eU: ··~rifique independentemente daquela ligação ontologi- recorrenre, como a punição de um crime ou uma cerimônia
fiínebre, é o papel que representa na vida social como um
camente fnsuperável. Em qualquer momento de sua existência,
rodo e, portanto, a contribuição que faz à manutenção da
o homem está no mundo "preocupado com suas t;refas, absor- continuidade estrutural.'
vido por seus interesses",' em familiaridade com o complexo de
Mas é preciso observar que a antropologia anglo-americana,
objetos que o circundam. Para Heidegger, cada objeto do mundo 1
viciada pelo naturalismo em que se fundamenta, adora noção
participa de uma estrutura referencial que lhe dá sentido. Impli-
muito estreita de função, enquanto a induz de uma analogia entre
cado nessa estrutura, o homem adquire, no trato com os objetos,
sociedade e organismo. Para efeito de redução sociológica, a
uma compreensão do mundo. Esta, porém, é areórica, pré-
função dos objetos é entendida menos em termos de ·conoração
ontológica. Como alcançar a compreensão teórica? A resposta
material, isto é, enquanto contribuição ao equilíbrio global da
decisiva é a seguinte: pela suspensão das relações refe renciais
comunidade, do que em termos de sentido, de acordo com a
constitutivas dos objetos no mundo, pela "desmundanização" dos
intencionalidade .q ue possuem numa estrutura referencial. Desde
objetos. Eis como se pode entender a redução em Heidegger.
já se torna evidente que, no domínio de redução sociológica, há
Supõe a eliminação do ponto de vista cotidiano, consiste num
duas acepções da palavra intencionalidade, estritamente ligadas,
Entschriinken, na eliminação dos "limites que pertencem aos
para as quais se deve estar sempre alerta. Numa acepção, usa-se
elementos constitutivos da vida cotidiana".2 E é esse tipo de
eliminação que ocorre, quando, por exemplo, consideramos .u m a palavra para esclarecer que a consciência está sempre referida
martelo, "suspendendo" o seu significado referencial, no caso a aos objetos. Husserl, neste caso, fala sempre de Intentiona!itiit. Na
utilidade para martelar. Conduzimo-nos então diante dele como. outra acepção, a palavra designa o conteúdo signifl.c~rivo ou
um eu teórico, reflexivo e não .c omo um eu ingênuo ou pré- referencial dos objetos no mundo, o "para que". Para este segundo
reflexivo submerso na cotidianidade. sentido, existe, no idioma alemão, o termo - Absich. Quando
se tratar mais adiante, do conteúdo objetivo do aro intencional,
A redução sociológica se aproxima do que H eidegger chama
voltar-se-á a focalizar esta dualidade de significações.
de Entschriinken sem confundir-se com esse procedimento. Põe
à mostra a função e as implicações do produto cultural e os Para Heidegger, o sentido de qualquer objeto só se revela a
determinantes de que resulta. Um objeto cultural é constituído partir do momento em que se integra numa unidade de refe-
não só pelos seus elementos objetivos, mas também pela função rências à qual o filósofo chama Bedeutsamkeit. 4 Embora o radical
q~e exerce no sistema de objetos de que faz parte. Esta observação, da palavra seja o verbo bedeuten (significar), em Heidegger ela
aliás, é ponto central da antropologia angfÕ-saxônica, especial- diz respeito às relações referenciais que remetem uns aos outros
mente do chamado "funcionalismo". · Para os funcionalistas, não os existentes no mundo.5 Estamos aqui diante de novo sentido
se podem pensar os objetos da cultura sem relacioná-los com a da palavra mundo. O mundo - eis o que pensa H eidegger -
função que exercem. Não tem sentido para o antropólogo - j á não é mais o que se rem admitido na tradição filosófica, um
notava AdolfBastian- reunir em mostruário objetos de culturas conjunto de coisas ou realidades subsistentes, um dado externo
diferentes, pois cada um deles só pode ser compreendido no seu ao homem. No ensaio Da Origem da Obra de Arte, Heidegger
contexto. Um dos mais autorizados teóricos do funcionalismo, escreve:
A. R. Raddife-Brown, escreve: O mundo é mais existente que as coisas perceptíveis,
com as quais podemos contar, no meio das quais nos acre-.

86 87
.... ; .. ·~·· . . ..... ..:.-...
·,;;:.···~·:

A REDUÇÃO SOCIOLóGICA ANTECEDENTES FILOSÓFICOS DA REDUÇÃO .••

ditamos em casa numa (atmosfera de vida) cotidiana. Mas Notas


o mundo niÍo é, jamais, um objeto que se encontra diante
de nós. Il. o que é, sempre pão-objetivo. Não sendo nem um (1) Cf. BIEMEL, Walter. Le Concept de Monde chez Heidegger.
objeto, nem uma coisa, não é, porém, um termo abstrato. Paris, 1950. p. 75-6. No livro Phenomé110logie et Véríté(Paris,
O mundo é mais concreto que todo objeto concreto, porque 1953), A. de Waelhens expõe algumas observações sobre o
é em realidade nele e a partir dele que tudo que aparece e f. ·"' que seria a idéia de mundo em H usserl. Chama a atenção para
tudo que é presente surge e se coordena. O mundo é o não- l
o fato de que Hume e Husserl teriam descoberco o substrato
objetivo do qual nós dependemos...• de fé que existiria em todo ato de conhecimento. O que Hume
. ,· Sem aceitar o idealismo de H usserl e Heidegger, nada impede e Husserl chamavam respectivamente Beliefe Glaube (crença)
de acolher a atitude metódica por eles perfilhada, a qual, em é um dado prévio à hossa percepção dos objeros. Não atin-
essência, se define por um propósito de análise radical dos objetos gimos o conhecimento do mundo partindo da percepção dis-
no mundo:.. Transpondo essa atitude para o ~mbito da ciência creta dos objetos. O próprio Husserl já entendia que o mundo
"precede a toda visão parcicular do objeto nele contido"
social, pode-se afirmar que cada objeto implica a cotalidade
(Waelhens, p. 52). A. de Waelhens insiste no caráter radical
histórica em que se integra e, portanto, é intransferível, na pie-·
das crenças. "A tendência que temos para crer na realidade
nitude de todos os seus ingredientes circunstanciais. Pode-se, no das "idéias" (leia-se "crenças" - G. R.) é a impossibilidade
entanto, suspender, ou "pôr entre parênteses", as notas históricas em que nos encontramos de conduzir nossa vida psicológica,
adjetivas do produto cultural e apreender os seus determinantes, senão na pressuposição [atual ifacticielle) e exercida de nossa
de tal modo que, em outro contexto, possa servir, subsidia- inserção de numa realidade qualquer {quaisquer que sejam as
riamente, e não como modelo, para nova elaboração. A reduç-ão definições que lhe sejam dadas)" (p. 52). O mundo implica
sociológica se opõe à transplantação literal. ~A prátka das trans- uma visão que não é produto da elaboração intelectual sis-
plantações literais, largamente realizada nos países de formação temática, visão que, garantindo "a unidade intencional de
colonial como o Brasil, implica a concepção ingênua de que os nossa experiência" {p. 44), "constirui verdadeiro a priori de
projeção constitutiva de toda objetividade e fundado sÓbre
produtos culturais produzem os mesmos efeitos em qualquer
a pré-compreensão do ser, característica de todo existente
context<!:: Desde que, porém, se forma, no espaço que deixa de
humano" (p. 44). Nenhum objeto se oferece ao nosso conhe-
ser colonial, a consciência crítica, pelo imperativo da realização cimento como "totalmente indeterminado", como se fosse
de um projeto comunitário, de uma tarefa substitutiva no âm- possível partir do seu "não-conhecimento absoluto" para o ·
bito da cultura - já não mais se trata de importar os objetos seu conhecimento. O sujeito do conhecimento parte sempre
culturais acabados, e consumi-los tais quais, mas, é preciso agora, de um determinado "horizonte mundano" do qual diz de
pela compreensão e pelo domínio do processo de que resultaram, Waelhens: "a natureza do horizonte mundano implicado na
produzir outros objetos nas formas e com as funções adequadas experiência de um objeto é tal que, no momento em que esta
às novas exigências históricas: Por isso a redução sociológica só-. experiência começa, este horizonte a provê de diversos ele-
mentos estruturais." (p. 53)
o_corre e se faz necessária nos países que estão empenhados nu-
ma tarefa substitutiva, de que é mero detalhe a substituição de {2) BIEMEL, op. cir., p. 148.
importações a que se referem os economistas. N este estádio, é (3) Vide PIERSON, Donald. (organizador). Estudos de organÍzafáo
necessário produzir, de acordo coin as imposições do meio, o que social. São Paulo, 1949-.
antes se importava, tanto as idéias quanto as coisas. ' (4) Cf. BIEMEL, op. cit., p. 162.
(5) Cf. B!EMEL, op. ci[., p. 54.

88 89
A REDUÇÃO SOCIO LÓGICA ANTECEDENTES FILOSÓFICOS DA REDUÇÃO •..

(6) Cf. BIEMEL, op. cic., p. 176. Se, como diz Biemel, interpre- é radical neste apriorismo. O pressuposto básico das ciências
tando Heidegger;' "é o projeto que torna possível o objeto" naturais exatas é um projeto matemático da própria natureza.
(p. 150), seria peninente indagar em que medida as ciências É este projeto que torna possível o objeto de cais ciências.
naturais são tributárias de visões de mundo determinadas. H á Expo ndo estas observações do filósofo, escreve Biemel: "O
muito subsídio para essa tarefa nos livros de Collingwood que é importante neste projeto não é tanro sua estrutura
sobre a "idéia da natureza" e a "idéia da história". Um cien- matemática, mas antes o fato que revela uma estrutura a
tista, na linha do pensamento de Heidegger, escreveu um priori. Esta estrutura, colocada a priori, na base de toda
pequeno escudo sobre o "apriorismo" das ciências naturais. pesquisa ulterior, é a condição que permite ao existente tor-
Trata-se de Wilhem Szilasi. Afirma este autor que "o físico, nar-se objeto e segundo a qual se determinam seus caracteres
antes de entrar na consideração de um fenômeno qualquer, "objetivos" fundamentais. Cada ciência possui assim seu
possui um conceito prévio do que quer dizer natureza" (vide projeto particular, fundamento constitutivo do existente que
Q11é es la Ciencia? México, 1951 , p. 42). Um dos grandes cal ciência estuda e é n o seio desce projeto que seus objetos
. avanços da física de nossos dias consiste precisamente em ter se lhe tornam presentes. - É este projeto que torna possível
tomado consciência do relativis mo que afeta as suas catego- a elaboração de um "faro" científico. A "criação" das "ciências
rias, pois converteu em tem a os co nceitos implícitos nas suas de fatos" não foi possível senão no dia em q ue os sábios
perguntas dirigidas à natureza, conceitos como espaço, tempo, compreenderam que não há fatos puros, isto é, que um dado
massa, até bem pouco aproblemácicos em sua validade não se eleva ao nível de fato científico enquanto a ciência não
aprioríscica (Szilasi, p. 51). Para demonstrar o apriorismo da estabelece um esquema preliminar de seu objeto." (Biemel,
ciência da natureza, Szilasi colhe na terminologia de H eidegger p. 149-151). A natureza não teria assim sentido unívoco;
a expressão Miteinandersein, o "ser-uns-com-os-outros". ' O mostrar-se-ia sempre dentro da perspectiva noética e ainda
"estarmos juncos uns com os outros" ou, em o utras palavras, histórica ou existencial em que está o observador. Mostra-se
a total idade a que pertencemos, predecermina a nossa visão de um modo ao grego, de outro ao homem medieval, de outro
da realidade. É o que leva Szilasi a dizer aos o uvintes de urna ao renascentista, de outro ao homem contemporâneo.
sua lição: "Este local (a sala de aula) em que nos achamos
é o que é graças ao nosso "estar uns com outros" e graças
mais especialmente à incencionalidade atual desce estar
juntos. Se pretendêssemos descrevê-lo como algo diferente de
urna sala de aula, teríamos de basear-nos em outra situação.
Mas em qualquer caso, nossa situação real e os propósitos a
ela inerentes de nosso estar reunidos, de nosso "estar Uf?S com
os outros" determinariam de antemão a compreensão daquilo
em que nos instalássemos. Em larim, a condição que precede,
a condição prévia chama-se a priori. A situação efetiva do
"estar uns com os outros" determina a priori, em cada caso,
o que do ente em que se acha instalado nosso "estar uns com
os outros", nossa reunião. Assim, pois, esta reunião cienclfica,
este "estar com os o utros" com fins científicos determina o
que tem que ser o nosso âm bito". (Szilasi, págs. 21-22). Mas
não terminaria aí o apriorismo da ciência natural. Heidegger

90 91
Antecedent-es Sociológicos
da Redução Sociológica

A idéia de redução se encontra em antecedentes próximos


do que, atualmente, se chama de sociologia do conhecimento.
Desde os materialistas franceses, Condillac, Helvétius e Holbach
até Destutt de Tracy, criador da Science des Idées que, ao ser
sublinhada a origem social das idéias, se postulou que o seu
significado essencial não é o que nos dá aparente ou · direta-
mente, mas o indireto, isto é, aquele que se apreende quando
se põe em suspensão os seus aspectos externos, referido, porém,
ao context~ de que são parte. A análise ideológica, tal como a
entendem os marxistas e a sociologia do conhecimento, já se fun-
damenta numa conduta eminentemente redutora. Atualmente,
porém, trata-se de dar um passo adiante, submetendo à reflexão
aquela atitude metódica já implícita no trabalho sociológico.
Porque não se iniciaram neste princípio metódico, é que até
mesmo sociólogos, principalmente nos países coloniais, ainda não
fazem · uso sociológico da sociologia. Para assumir atitude so-
ciológica científica, não basta a informação e o conhecimento das

-
idéias e dos sistemas. Nada pode suprir, na formação da atitude
.
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA ANTECEDENTES SOCIOLÓGICOS DA REDUÇÃO• ••

sociológica científica, a prática da rf!dução. O sociológo não é um processo redutor para descobrir critérios de classificação de
mero alfabetizado em so~iologia, não é somente aquele que formas de sociabilidade. Gurvitch, porém, utiliza a redução
conhece a literatura deste campo do saber. Sociológo é o que fenomenológica, ou mais precisamente, o que Husserl chama a
pratica a redução sociológica. É preciso, po~ém, distinguir re~ "primeira redução", isto é, redução histórica, conduzindo-se como
dução sociológica e fenomenologia do social Esta seria o estudo filósofo, embora tendo em vista atingir o domínio da "sociologia
do modo de ser do sociaL A fenomenologia do social descreveria em profundidade". Aplica simplesmente a redução f~nomeno­
como se dá o social ou mostraria a sua essência, o seu eidos, lógica no domínio do sociaL Procede assim à fenomenologia do
mediante o que Husserl chama o processo de variação. Para social, o que corresponde a "uma decomposição imanente, atra-
Husserl, além do estudo da essência do objeto em geral, ou seja, vessando em profundidade as camadas superpostas da realidade
da fenomenologia tout court (verdadeira mathesis universalis social" em busca de "dados cada vez mais imediatos do social".'
como a concebiam Descartes e Leibniz), existem tantas ciências Luís Recasens Siches entende a fenomenologia do social como a
eidéticas (fenomenologias regionais) quantos sejam os objetos "descoberta e a descrição de cada gênero dos comportamentos
das diversas disciplinas. humanos". 2 Entre estes, em sua obra Leccíones de sociologia
O próprio Husserl tentou aplicar ao estudo dos fenômenos (México, 1948), analisa quatro: o rogo, a pergunta, o mandato
sociais sua teoria da Wesensschau (intuição das essências). Segui- e a promessa. Dos três últimos autores mencionados foi Jules
ram este caminho vários autores, que têm procurado elaborar uma Monnero't que, em sua obra Les foits sdciaux ne sont pas des choses
ciência eidética do social e, assim, há um ramo fenomenológico (Paris, 1946), mais se aproximou das cogitações do presente texto,
na sociologia, representado, entre outros, por Max Scheler, Alfred embora a redução sociológica tivesse permanecido fora do hori-
Vierkandt, S. Kracauer, Theodor Litt, Theodor Geiger, Gerda zonte de sua percepção. .
Walther, Edith Stern, Alfred Schütz, Georges Gurvitch, Jules O esforço de Monnerot é aplicado estritamente na elaboração
Monnerot, Luís Recasens Siches. Entre os autores de língua ale- de uma fenomenologia social, não obstante tenha colocado o
mã, as contribuições mais destacadas no âmbito da sociologia proble~a da "sociologia da sociologia". Na verdade, o interesse
fenomenológica são: a de Max Scheler, sobre a simpatia, como prin:ordial de Monnerot restringe-se antes a uma "psicologia da
condição da sociabilidade, e sobre o condicionamento histórico- sociologia", isto é, tem em vista mostrar o condicionamento dos
/
cultural das formas de saber e do conhecimento, a de Alfred sistemas sociológicos pela psicologia dos seus respectivos cria-
Vierkandt, sobre as formas dos grupos sociais e as disposições dores. A sociologia - escreve - é a psicologia humana deci.:
inatas ou instintivas que os constituem (como, entre outros, dida a colocar entre parênteses os limites individuais. Ainda que,
o ~entimento de si próprio, a vontade de poder, a vontade de mediante a consideração dos fatores psicológicos individuais,
subordinação); a de Theodor Litt, que, utilizando um processo tenha aquele autor, algumas vezes, focalizado o condicionamento
de análise da consciência do eu, descobriu o princípio d~ "reci- histórico-social das idéias so~iológicas, escapou-lhe o problema
procidade de perspectivas", que permite resolver o problema das da atitude redutora como instrumento metodológico de fun-
relações entre o indivíduo e a sociedade. dação da sociologia nacional. A sua própria situação o impediu
Os autores de língua românica Gurvitch, Monnerot e Recasens de vislumbrar essa possibilidade de aplicação . da fenomeno-
são bastante conhecidos 'na América Latina. Em seus livros, logia. Vivendo numa sociedade já fundada, a redução, para ele,
L 'Experience jutidique et philosophie pluralíste du droit, Moral.e seria mero expediente técnico destinado a permitir a discussão
théoríque et science des moeurse Essaís de sociologie, Gurvitch utiliza radical das doutrinas sociológicas, porém apenas em tese. A

94 95
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA ANTECEDENTES SOCIOLÓGICOS OA REDUÇÃO •••

redução, tal como Monnerot a entenderia, lev~ a um relativismo conhecida em francês com o nome de História das doutrinas
à outrance, e somente póderia ser adotada por um amador, em econômicas, na qual, pondo à mostra o condicionamento his-
sociologia, como é o seu caso (o que, aliás, não implica nenhum tórico das idéias econômicas, fundamenta uma atitude de
desapreço) . Para Monnerot, "o que o sociólogo precisa é da restrição em face·da pretensa universalidade da sua vigência. Os
possibilidade de passar de um ponto de vista a outro" (p. 37). estudos marxistas, ou de inspiração marxista, sobre correntes de
Ora, o relativismo é imcompatível com situações nas quais o pensamento, doutrinas e. idéias, fundamentam-se em geral num
.sociólogo pretende atribuir papel o perante à . teoria de que é ponto de vista redutor. Recentemente, nos trabalhos de Georges
criador. Neste caso, a teoria não pode deixar de ter algum con- Luckács e Lucien Goldmann, pode-se verificar a prática da re-
teúdo dogmático empiricamente justificado pelo fato mesmo dução no estudo dos fatores sociais das doutrinas sociológicas.
de que a realidade a que se refere é dotada de sentido. Somente Fora dos quadros marxistas, o sociólogo e economista sueco
uma soçiologia de cátedra ou como diria Hegel, "g~_p_i<:>.fe.ssores»? Gunnar Myrdal tem sustentado em seus estudos uma posição de
poderá adotar um relativismo sem limites. Afora estas restrições, grande alcance crítico em face de teorias e doutrinas do campo
muito há que se assimilar na contribuição do autor. É feliz, apesar de sua especialidade, para cujo background ideológico vem cha-
de um tanto rebarbativo, o conceito de condição humana situada mando a atenção dos estudiosos, principalmente no livro The
e datada, mediante o qual Monnerot contorna as sediças cono- Política! Element in the Development of the Economic Theory. 3
tações do termo individuo. Para compreender o conceito é capital Recentemente, em ~onferências proferidas no Cairo, denunciou
o seguinte enunciado: a inadequação à realidade mundial contemporânea de teorias
; A visão depende dos valores. Só a condição humana econômicas dominantes nos Estados Unidos e em países euro-
situada e datada confere um sentido ao que "vê". Óra, a
condição humana situada e datada é aquilo que valoriza.
peus. As idéias expostas por Myrdal em tal oportunidade estão,
Em toda visão manifesta-se a atividade valorizadora da con" sem dúvida, decididamente muito próximas da redução socioló-
dição humana. Trata-se de descrever corretamente o gica. Tudo parece indicar, no autor, a convicção de que há sempre
aparecimento que é o correlato desta visão, o nóema desta um resíduo ideológico nas ciências sociais, não se apresentando,
nÓtSÍJ. (p. 79).
para ele, a rigor; o problema de uma teoria econômica ideolo-
É precisamente a tomada de consciência, pelo sociólogo, de gicamente neutra. O que importa, para assegurar a qualidade
tais implicações da condição h11mana situada e datada que, segun- científica da ciência econômica, é verificar se está ideologicamente
do Monnerot, o tornaria apto a praticar a verdadeira sociologia, ajustada à realidade. Exprime, na referida conferência, o desejo
a sociologia compreensiva, que permite "passar de um ponto de de contribuir para "o ajustamento ideológico das ciências sociais
vista a outro". à nova situação política do mundo". 4 As reflexões de Myrdal
A redução sociológica, embora permeada pela influência do assumem extrema importância pelas relevantes questões que fo-
pensamento de Husserl, é algo diverso de uma ciência eidética calizam. O autor não trata apenas em tese do condicionamento
do social. Fundá-se numa atitude metódica interessada em des- ideológico da atual literatura do desenvolvimento e do subde-
cobrír as implicações referenciais, de natureza histórico-social, de senvolvimento. Reconhece haver uma tendência na teoria do
toda sorte de produção intelectual e em referir sistematicamente comércio internacional, de generalizada aceitação dos países
essa produção ao contexto em que se verifi~a, para apreender dominantes, para evitar o tratamento a fundo da desigualdade
exaustivamente o seu significado. Ilustração da redução socioló- econômica internacional, em virtude do caráter "embaraçoso" do
gica são, por exemplo, os estudos de K. Marx, reunidos em obra tema. Mais do que isso acredita que· os conselhos dados por

96 97
A REouçAo SocroLóGICA ANT !õC!õD!õNTES S O CIOLÓGICOS DA R EDUÇAO ••.

especialistas e órgãos técnicos de países dominantes sobre a polí- É, todavia, na obra de Karl Mannheim que se enconrram
tica comercial dos países periféricos, e mesmo as "pressões" que referências mais abundantes para a fundamentação teórica da
sobre eles exercem, "são comumente racionalizados em termos de redução sociológica. 10 Embora não usasse a expressão, e não ti-
uma teoria do comércio internacional, baseada em hipóteses sem vesse ocupado em refletir sobre as suas regras, Mannheim aplicou
realidade".5 Pode-se verificar como está longe de ser um devaneio a r~duÇão sociológica no escudo de vários assuntos. É um dos
acadêmico o problema da redução no domínio das ciências so- raros sociólogos contemporâneos que tivéram a preocupação sis-
ciais, quando, mediante um depoimento tão autorizado quanto temática de incorporar as idéias filosóficas atuais à sociologia,
o de Myrdal, somos alerrados para as conseqüências práticas sendo visível sua familiaridade com o pen~amento fenomenológico
negativas da téoria econômica vigente nos países dominantes, e culturalista, ao qual se pre~de a redução sociológica. Inclui-se
pois o autor vê elementos "ideológicos infiltrados" na conduta entre os poucos especialistas de sua época que submeteram as
de organizações internacionais como o Gatte o Fundo Monetário doutrinas sociológicas i uma reflexão radical, na apreensão de
Internacional, que os levam a influenciar perniciosamente os cujo sentido sempre as referia ao seu substrato histórico e cultural.
governos das nações periféricas. Não por acaso Myrdal é um dos Em um dos seus ensaios, aceitandq a observação de Dilthey,
raros economistas capazes de submeter sua especialidade a uma segundo a qual· "a Weltamchauung não é produto do pensa-
reflexão radical. Como se sabe, é também sociólogo e proclama mento", Mannheim afirma que o te.órico é manifestação da-
sem hesitação a impossibilidade do cientista social libertar-se quela "fundamental entidade".11 A Weltanschauung é totalidade
transcendente, à qual devem ser referidos os objetos para serem
inteiramente do que chama "premissas de valor". 6 Uma "ciência
compreendidos. Cada objeto cultural (cultural objectification) é
social desinteressada" - diz ele - "nunca existiu e por motivos
veículo de significação quanto ao seu modo de ser e, por isso,
lógicos não pode existir".7 E adverte que tal contigência não deve
não pode ser inteiramente compreendido nem como "coisa" nem
desesperar o especialista escrupuloso, mas induzi-lo a eleger uma
como conteúdo psíquico. 12 E, numa ilustração de seu pensamen~- -­
premissa de valor "adequada e significativa em relação à sociedade
to, imaginando o ato de suposco amigo que dá uma esmola a um
em que vive".8 O que mais adiante se chamará de a priori exis-
transeunte, comenta:
tencial do trabalho sociológico é ponto pacífico para Myrdal, que
É apenas num contexto social que o homem da esquina
o afirma nos seguintes termos: será um "mendigo"; meu amigo, "alguém que presta assis-
Creio que o nosso pensamento e também nossas ob- tência"; e o pedaço de metal em sua mão- uma "esmola". '~
servações, mesmo quando nos esforçamos em ser objetivos,
Somente situados na configuração referencial de que fazem
são dominados, muito mais do que imaginamos, por certas
idéias muito gerais ou padrões de pensamento. Essas idéias parte, os acontecimentos e os objetos aparecem em seu adequado
gerais são, de algum modo, carregadas de juízos de valor; sentido. Ou como diz ainda Mannheim:
isso influencia nossos esforços intelectuais e tende a excluí- Um produto cultural não poderá ser compreendido
los de nossa atenção e do nosso senso crítico se não traba- em seu próprio e verdadeiro sentido se atentarmos simples-
lhamos com explícitas premissas de valor. Tais idéias são mente para a significação que veicula quando só o olhamos
parte de uma tradição poderosa e, assim, modelam todos como é diretamente - em seu sentido objetivo; devemos
os nossos instrumentos mentais: deram forma não somente considerá-lo como portador de um sentido expressivo e
às respostas, mas determinaram de modo mais funda- documental, se queremos captá-IÓ exaustivamente". 14
mental as perguntas que formulamos e a maneira como as Há, na obra de Mannheim, toda uma teoria, fragmentaria-
formulamos.•
mente expressa, da compreensão indireta da produção sociológica.

98 99
A REDUÇÃO SOCIOLOCICA
ANTECEOENTFS SociOLOCICOS DA REDUÇÃO .••

Particularmente relevantes são os seus estudos sobre a sociologia


nane-americana e alemã, ~5 nos quais caracteriza as singularidades como norma para seu próprio desenvolvimento, modelos de
constrúção e modos de produção que se formaram em outra
dessas disciplinas corno decorrência de particulares condições parte e se acreditaram ali. Nada ganharia, e perderia em
existenciais dos especialistas. troca, se quisesse negar as condições de sua existência e
Menciona-se o nome de Hans Freyer em último lugar porque intentasse resvalar para uma forma alheia. 19
a este autor se deve o esforço mais importante para a elaboração São estes os antecedentes próximos da redução sociológica.
da redução sociológica. Ele está intimamente associado à "so- Esta é indubitavelmente a essênCia do criticismo sociológico mais
ciologia da sociologia", na qual consiste, em essência, a redução radical. Encontrando-se de modo implícito e fragmentário na
sociológica. É fácil tarefa colher, em seus livros, passagens em que obra desses pensadores, o passo que agora incumbe realizar é o
se revela o domínio do método, embora também a este autor não de dar início à sua exposição sistemática. Considerando, porém,
tenha ocorrido a·expressão com que é aqui designado. Para fixar a situação ainda incipiente desta idéia, é em caráter exploratório
a contribuição de Freyer, algumas observações suas são oportunas. que, a seguir, será formulado o que seria permitido chamar de
Em sua obra capital A Sociologia, ciência da realidade, perfilha "leis da redução sociológica".
o ponto de vista de Andreas Walther, para quem "uma sociologia
Notas
é o produto orgânico de certa cultura e por isso não pode trans-
ferir-se simplesmente a outra cultura". 16 (l) a GURVITCH, Georges. Essais de sociologie. Paris, s/d.,
p. 21. Georges Gurvitch é um sociólogo cujo pensamento
Freyer vê uma impregnação histórica no pensamento socio-
se vem depurando e clarificando· progressivamente. Para a
lógico até em suas categorias mais abstratas. 17 À idéia de adotar
compreensão exaustiva desse pensamento, é necessário co-
na Alemanha modelos e modos da sociologia norte-americana, nhecer as obras mais amigas do autor, pois nela se encon-
Hans Freyer reage mostrando a impossibilidade de tal transpo- · tram as primeiras formulações de suas grandes teses atuais.
sição. Contrariamente à sociedade norte-americana- explica- Além disso, nessas obras, há muitas considerações não re-
é a alemã urna sociedade de articulações historicamente compli- tomadas posteriormente, de decisiva importância para carac-
cadas, em que tem caráter muito especial conceitos como classe, terizar a contribuição desse autor. Nos estudos pertencentes
proletariado, artesanato, funcionário, grande cidade, camponês e à fase atual do sociólogo, seu débito a Husserl não é facil-
Estado. 18 Quando aí aparece, a sociologia encontra urna complexa mente identificado. Daí a oportunidade do texto que vai ser
tradição filosófica, o que não acontecera nos Estados Unidos. aqui reproduzido, onde Gurvitch confessa o caráter redutor
.dos seus critérios de classificação pluralista das formas de
Inclusive - acrescenta Freyer - tem importância sociológica
sociabilidade: "Como é igualmente evidente que os critérios
assinalar o fato de que os Estados Unidos são um país sem basalto
da classificação desejada não podem ser trazidos de fora e
e sem castelos vetustos. A razão da intransferibilidade literal dos escolhidos arbitrariamente como simples hipóteses de tra-
procedimentos sociológicos é formulada por Freyer nos seguintes balho, só resta, portamo, uma via para encontrar critérios
termos: objetivos que permitam distinguir as formas de sociabili-
... uma sociologia é a auroconscíência científica de uma dade: é o método da inversão ou da redução fenomenológica
realidade social. Ademais é determinada inseparavdmente (Husserl), da decomposição imanente, penetrando em pro-
por sua história quanto à situação de seus problemas e à fundidade as camadas superpostas da realidade social. Mer-
forma interna de seu pensamento. Por estas razões, é impos- gulhando em etapas sucessivas na direção dos dados cada
sível à nossa sociologia (alemã) .adorar sem maior exame, vez mais imediatos do social, elaborando uma "sociologia em
profundidade", chega-se a um "pluralismo social vertical";
100
101
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA ANT ECEDENTES SOCIOL ÓGICOS DA R EDUÇÃO •••

ora, este plur~lismo das camadas superpostas na vida como isto: a vida não reflexiva se refere inicialmente às
das unidades coletivas reais justifica por si só o "pluralismo experiências concretas, imediatas, e começa in media res. Só
horizontal" das formas de sociabilidade; ao mesmo .tempo, subseqüentemente, na fase reflexiva, são abstraídas as pre-
a camada mais profunda e mais imediata da realidade sociaJ, missas que se ocultam nos estímulos. Mas aquilo que exa-
- os estados espontâneos da consciência coletiva - sendo tamente se percebe na imediatidade "fenomenológica" é, na
regidos por princípios diferentes que constituem seus con- .'Í verdade, já conformado pelo processo histódco; já está
~~ f
juntos, servem de ponto de referência fundamental na dis- permeado pelas categorias conformadoras de uma nova
tinção dos critérios" (p. 2 1) . "razão", de uma nova "psiquê''. Em cada acontecimento há,
(2) Cf. SICHES, Luís Recasens. Lecciones de sociologia. México, então, algo além do próprio acontecimento em "si mesmo".
1948, p. 418. Para 'uma aplicação da fenomenologia ao O acontecimento é moldado por uma totalidade, quer no
fato jurldico, vide )SCHREILER, Fritz. Concepto y. formas sentido de uma lei de enquadramento, quer no sentido de
fondamentales dei derecho. Buenos Aires, 1942. um princípio de sistematização. Por conseguinte, há, con-
(3) Londres, 1953. tidas no simples acontecimento, premissas que podem ser
desentranhadas". Cf. MANNHEIM, Karl. Essays on the Sociolugy
(4) Vide MYRDAL, Gunnar. "Desenvolvimento e Subdesen-
of Knowledge. Londres, 1952, p. 89.
volvimento". In: Revista do Conselho de Economia, n. 47.
Setembro-Outubro de 1957. (11) Vide MANNHEIM, Karl. op. cit., p. 38. " ... se esta totalidade
que chamamos Weltamchauung é entendida neste sentido
(5) Idem.
( 6) Vide MYRDAL, Gunnar. Solidaridad o desintegración. México,
1956, p. 438. "Tem sido um propósito extraviado da ciência
I como algo ateórico e, ao mesmo tempo, como o fundamento
de todas as objetivações culturais, tais como a religião, os
mores, ~ arte, a filosofia, e se, mais ainda, admitimos que
social durante pouco mais de um século tratar de fazer
"objetivos" nossos principais conceitos carregados de valor, .
i estas objetivações podem ser ordenadas numa hierarquia
segundo sua distância respectiva deste irracional, então a
ao defini-los de modo "puramente científico", aparenre- vontade teórica aparece exatamente como uma das manifes-
menre livre de qualquer associação com valorações políticas. tações mais remotas desta entidade fundamental''.
Para isolá-los de tal associação, a miúdo se inventaram e
(12) Op. cít., p. 41.
substituíram novos sinônimos de aspecto inocente. Sobre
uma base lógica, esses propósitos estavam condenados ao (13) Op. cit., p. 45.
fracasso. A carga <le valoraçóes não estava ali sem motivo (14) Op. cít., p. 44.
e sem função; e não tardou em surgir por intermédio das (15) Vide MANNHEIM, Karl. Essays on Sociology and Social
forçadas definições "puramente científicas" e ainda voltou Psychology. Londres, 1953.
a deslizar-se nos sinônimos especialmente fabricados" (16) Vide FREYER, Hans. La Sociologia, ciencia de la realidad.
(p. 438).
Buenos Aires, 1944, p. 21.
(7) Op. cit., p. 438. (17) Op. cít., p. 21. "Toda sociologia que leva a sério sua tarefa
(8) Op. cit., p. 439. de ser uma ciência concreta da realidade social cem de dar-
(9) Vide MYRDAL, Gunnar. "Desenvolvimento" etc. se conta desde o início de que seus conceitos necessitam estar
(lO) "É, entretanto, uma peculiaridade da vida e do pensamento escritos no corpo dessa realidade e portanto impregnados de
vivo que não procedem, como poderia parecer do ponto de história".
vista do sistema completo, do concreto e do particular, (18) Op. cit., p. 21.
deduzindo este último do primeiro. Antes, o processo é algo (19) Op. cit., p. 19.

102 103
J-
1I
Lei do Comprometimento
i
I
i
!
'

Esta lei pode ser enunciada do seguinte modo: nos países


periféricos, a idéia e a prática da redução sociológica somente
podem ocorrer ao cientista social que tenha adotado sistema-
ticamente uma posição de engajamento ou de compromisso
consciente com o seu contexto.
Antes de tentar justificá-la, parecem necessários alguns escla-
t ' recimentos, pois o sentido desta lei se clarifica imediatamente
quando se observa que há uma diferença essencial entre um
engajamento sistemático e um engajamento ingenuo. É bem de
ver que somente em casos aberrantes se registrará a existência de
especialistas em ciência social que não desejem contribuir para
a promoção histórica de sua coletividade. Há, porém, especialistas
que, professando um universalismo não qualificado, pretendem
depurar a sua prática científica do influxo de um compromisso
com a realidade social. Julgam que esse influxo vicia a atividade
cienrífica. Nos países periféricos, os especialistas que adotam esse
modo de ver, não refletindo sobre os pressupostos da prática
científica, ficam indefesos diante da perspectiva implícita na
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA LEr DO CoMPROMETIMENTo

produção científica estrangeira e sucumbem às suas "premissas de idealista, nem se retoma à querela entre o idealismo e o realismo.
valor", como diria Myrdal. A outra posição não aconselha que As concepções do conhecimento, de um lado, como determinação
o sociólogo seja um formulador de "racionalizações", de "cober- do objeto pelo sujeito; de outro, como determinação do sujeito
turas", de auto-.exaltações nacionais, pela manipulação de resí- pelo objeto, não são as únicas possíveis no domínio da gnosiologia.
duo~ emotivos, sob o rótulo de ciência. É preciso adverrir: tal O conhecimento, descritivamente, é uma relação entre a cons-
posição está longe de ser equivalent(\ ao fascismo. A posição de ciência cognoscence e o objeto, na qual se verifica reciprocidade
engajamento nada tem a ver com aquela subalterna atitude. Ao de influência, fato este que não foi visco pelas antigas teorias
invés, é baseada numa crítica radj.cal, ou seja, numa reflexão sobre gnosiológicas. No plano histórico-social, essa reciprocidade de
os fundamentos existenciais da-ciência em ato ou da produção influências permite compreender a idéia de mundo, que torna·
científica. O compromisso de que se fala aqui, na medida em que inteligíveis as relações entre o sujeito e o objeto. O mundo não
seja sistemático, situa o cientista no ponto de vista universal da é uma coleção de objetos que possamos contemplar do lado de
comunidade humana. O regional e o nacional, em tal compro- fora. Estamos necessariamente no mundo e por ele somos cons-
misso, não são termos finais, são termos imediatos de con- tituídos. O homem é iC.T.=11.0.=mundo, não, porém, como um par
cretização do universal. Esta posição confere extrema lucidez de sapatos. está numa caixa, mas enquanto s~as ações implicam
ao cientista, pois o leva a colocar, sob a luz da consciência, as o mundo, ou uma visão prévia do mundo (We!tanschauung).
virtualidades que habitualmente estão obscurecidas na conduta
----------
São de capital import~ncia no presente estudo, os esclareci-
ordinária. É o requisito imprescindível para que surja nos países mentos que nos oferece o conceito contempor~neo do mundo.2
subdesenvolvidos a verdadeira ciência. Ademais, é também a A atual teoria filosófica do mundo é tributária das indagações de
condição indispensável para que o cientista desses países se libere pensadores alemães a respeito do que são as visões do mundo.
da "servidão intelectual", I transcenda a condição de copista e · É comum a esses pensadores o ponto de vista de que a visão do
repetidor e ingresse num plano teórico eminente. mundo não é adquirida por esforço intelectual, nem pode ser
O sociólogo, como qualquer especialista em ciências sociais, exposta como se explica uma doutrina ou um sistema de idéias.
está sempre condicionado, em sua especulação, por um a priori A yisão do mundo, apesar disso, é sistema porque é configuradora
. ~..~·
de caráter exiscendal, tenha ou não consciência disso. Decorre de atos e de idéias, tem organicidade. Mas não é puramente
o fato de que sua consciência se elabora invariavelmente a partir intelectual e, por isso, não se pode neutralizar seu efeito condi-
do trato com ·os objetos e as pessoas do mundo parricular em cionador sobre a atividade científica. Porque nos integramos na
que vive. Não existe um eu acósmico ou a-histórico capaz de totalidade do mundo "de modo não inrelectual"3 é que nossa
postar-se diante do mundo, livre de condicionamentos. O eu e existência supõe um a priori histórico social. Não aceitamos uma
a consciência do eu brotam do "nós" que os antecede lógica e visão de mu!!49 ..C:olllº···çsposamos.. uma..d.ou.trina ..o.u..nüLc.o_qy~r­
historicamente. A consciência ingenua não percebe a implicação te~os. a uma relig~YiYe.moS-necessariamente·a·visão..de.mg~.4~_
recíproca do ser humano e do mundo. Resíduo de ingenuidade e
de . ~ossa época' ·ae:·n_ossa naçiQ.._Jaspers a entende como um
se encontra na atitude do cientista que acredita numa ciência poni:o--<fê-;~~;-~ãoescolhido: "Impõe-se a m!~d!iUÜ,~g.ç~o
imune de condicionamentos. Ao refletir sobre os supostos da histórica concreta em que ~e ~~-ÇÇ_~.f<;i;:-j}(Q.'i$.Ç~ihi qJ.J .C:2EP~!..~­
atividade científica, ver-se-á que está implicada numa teia de país, ta!_.f.~!.~~~r:.--"·4 Eis porque Dilthey afirmava que é a vida a
relações complexas que constituem o mundo cal como aparece "r~Í;.:..dltima" da visão do mundo. !..a parrir de um en~~rgQ
ao cientista que nele vive. Não se toma aqui posição de caráter ~-q_f.!~.as coi~as adq~irem sentido ~-~~E~J:. E o alcance de nossa
-~··-··~--·--··---· "- · ~- · ····--~---- ...... -~. -
106 107
LEI DO COMPROMETIMENTO
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA

e~cre teoria e prática. Por que a sociedade? Porque é um fenô-


relação vital cotidiana não. é algo cuja eliminação fosse de desejar.
meno total. Ê pressuposto essencial da categoria de totalidade,
-N;da ·pa~a o he>mem teria ·senddo se não pudesse ser -referido· a
;~·implicação. O verdadeiro. educador sabe que só con-
··;:;:;;;~;;g~j';g;~~~o vital. fute é, portantõ., condição pa.r:: _gll:e__ as
seguirá levar a efeito a pedagogia que lhe possibilitem as con-
. ;;~~as t~h.ªrn.senrido.. Em Jaspers, esta condição de possibilidade
.. . dições sociais determinadas em que vive. Tem a consciência da
do conhecimento é sustentada: : \.

implicação do homem no mundo. .


é porque estou certo de estar vivo que posso elaborar uma
teoria da vida, porque escou ligado à minha paisagem por mil Tal idéia ericontra-se afirmada, na Europa, em algumas cor-
laços históricos e afetivos que posso edificar uma física da rentes da filosofia, principalmente no his~oricismo e no ex·is-
natureza, porque estou integrado a grupos sociais que posso tencialismo. Mas nem todas as suas conseqüências foram per-
constituir uma sociologia. s cebidas, pois tem sido sustentada principalmente como tese fi-
E em um escrito autobiográfico, dizia o filósofo alemão: losófica. Integrados que se acham os pensadores europeus em
vi claramente que o escudo dos filósofos anteriores servia de estruturas históricas rígidas e seculares ein que praticamente
muito pouco se não ia acompanhado da própria realidade. quase tudo está feito, encontram-se existencialmente limitados
Só partindo desta, compreendemos as questões dos pensado- para tirar, no plano da vivência ordinária, todo partido de tal
res, de sorte que possamos ler seus texcos como se fossem
idéia. ·Um dos que mais longe avançaram neste caminho foi Karl
acuais, como se rodos os filósofos fossem contemporâneos.G
Jaspers que, com a categoria da assunção, caracterizou uma
Reflexões como estas pertencem ao domínio do que Dilthey
modalidade de filosofia e de psicologia que se esforça por incor-
chamava de "~osofia" ou do que atualmente se PO.de
porar ao trabalho teórico a perspectiva existencial do teori-
considerar como redução filosófica da filosofia..
zador. No campo da sociologia, porém, tem sido pouco adotada
Tenha ou não consciência disso, o homem não é um termo . esta diretriz. É certo que representa grande progresso o fato de
isolado da realidade histórico-social. Esta é uma totalidade em ter a sociologia européia contemporânea, principalmente a fran-
que está implicado.7 Todo fazer humano implica uma "interpre- cesa, redescoberto a noção de totalidade. Seja numa conotação
tação" das coisas que manipula, como todo teorizar é extensão:.. "maussiana" (em Guwitch principalmente), seja numa conotação
do fazer ao nível da representação. Não é, pois, legítimo extremar hegeliana (nos trabalhos de Georges Luckacs, Henri Léfebvre,
a distinção entre teoria e prática. Ambas têm sua raiz comum. no . Pierre Naville e Edgar Morin), sociólogos europeus têm ultima-
que Heidegger chama de "cuidado" (Sorge). 8 De certo, sob pena mente feito estudos em que os fenômenos humanos e sociais são
de constituir um Jlatus voeis, o impulso para teorizar jama_is é vistos como fenômenos totais. Para eles, no entanto, a totalidade
gratuito, origina-se na ocupação. Supor que o homem teoriza é ainda uma idéia, ou· se realiza em nível de grande generalidade.
primeiro e age depois é incorrer em erro. O homem não se esgota Quem lê, por exemplo, os estudos de sociologia colonial, de
no pensar, é também sentir e querer. O pensar é apenas um Georges Balandier, verifica, sem dúvida, que o autor já analisa
aspecto particular da vida, que consiste em converter em objeto os problemas das sociedades não-letradas à luz de uma perspectiva
determinado conteúdo do agir humano. A nova· teoria, resultante mais correta e científica do que os "antropólogos culturais" e os
do esforço de pensar, era, no agir humano, uma virtualidade. É estudiosos não iniciados na noção de totalidade. Todavia, esses
precisamente a reflexão que torna explícita e exprime, de modo trabalhos de Balandier, a despeito do seu avanço metodológico,
elaborado, a virtualidade implícita no agir humano. A pergunta refletem atitude ingênua, que se revela como tal àqueles que, nos
famosa: "quem educa o educador?".Jó rem uma respasra- a contextos ordinariamente considerados como objeto de antro-
sociedade;"e não outro educador.~ E ass.im..se desfaz a--pekl'idacle-
----------·--·--·--
109
108
A REDUÇÃO SOCIOLOGICA LEI DO COMPROMETIMENTO

pologia ou etnologia, assumem uma p..«lSlçao de engajamento, mesma que os habilitaria à prática da redução. Esta, no caso, surge
marcada pelo propósito dê transformar, mais do que interpretar, como pormenor da reação global de um país situado no imbito
a realidade histórico-social. - de dominação de outro mais poderoso, no sentido de obter capa-
Há ainda um vicio europoéênêrico em tais estudos, expresso cidade autodeterminativa. Nesses países periféricos, a sociedade
no academicismo que os afeta. Aqui se verifica um limite imposto não está fundada segundo critenos propnos, é algo a-fííiída;,9 e,
ao estudioso europeu. A sua prática social entra em conflito com por ISSO, a assunção;-;;-·eng-;J~me.ntÕ- al)ré,...p-;~;-~ ~~~j~~t-;_;·;cum
a prática do estudioso de regiões subdesenvolvidas. O estudioso horizonte de infinitas possibilidades.
europeu só poderá ultrapassar esse limite se, por um esforço de
"desideologização", adotar, em caráter sistemático, o ponto de Notas
vista universal da comunidade humana. Só assim transcenderá o (1) MYRDAL, Gunnar. Economic Theory and Under-Deve/oped
seu contexto histórico-social particular. É esse ponto de vista que Areas. Londres, 1957.
atualmente torna possíveis, em países dominantes, pensadores
(2) Para uma tentativa de definição de visão de mundo, vide a
como Georges Luckács, Gunnar Myrdal, Paul Sweezy, Paul Baran, contribuição de Lucien Goldmann, em L 'Homme et /'histoire,
Wright Mills e outros. Habitualmente, porém, o projeto de Atas do 6• Congresso das Sociedades de Filosofia de Língua
desenvolvimento de uma região atrasada não afeta, não configura Francesa. Paris, 1952.
o destino de um europeu ou norte-americano. Mas configura (3) WAHL, Jean. Traité de métaphysique. Paris, 1953, p. 660.
normalmente o destino dos naturais dessa região. QJi()m_e m não "Estamos em contato com a totalidade do mundo de maneira
é apenas um "ser-no-mundo", é também um "ser-do-mundo", .em não intelectual". Interpretando a idéia de mundo, escreve
determinada forma histórica particular. Em seus estudos'socio- ainda]. Wahl: "O ser que nós somos ... não pode ser separado
lÓgicos ou antropológicos - sob~e as regiões s-uOdesénvolvldas; õ daquilo que em que nós somos, e que é o mundo" (p. 559).
europeu pode utilizar a categoria de "ser-no-mundo", mas muitos (4) a DuFRENNE, Mikel e RICOEUR, Paul. Karl jaspers et la
aspectos -~arealidade ficam fora do seu alca11q:, que só -podem' Phi/osophie de l'Existence. Paris, 1947, p. 102. Ponto de vista
s~~ -p~r~~bidos à luz do pont~ de vi;t~ da ~omunidade humana semelhante é o de G. Gusdorf (Traité de métaphysique. Paris,
universal, ou na medida em que se verifique no observadoi-_um 1946, p. 350): "O mundo humano é uma consciência do
mundo, a perspectiva de uma consciência situada no tempo
c~~prõmis!io sistemático com as virtualidades do · inundo sobre
sobre a situação que lhe é dada. Mas uma dificuldade nova
_o qual incide a sua especulação.
intervém aqui: o que caracteriza a visão do mundo, no sentido
Nos pafses periféricos, é a adoção sistemdtica de um_p_onto de vista de estilo de vida comum à época, é não ser reconhecida como
o
universal õrientiido pa~a foturoijiiê""p()ssibjÍít~ ~ reduçio ;~~i~ió~ . tal. Impõe-se ames à maneira de um inconsciente coletivo:
i;iêa. É o imperativo de aceÚrai-; 4~ ~odp_ __h.Útoricamente positivo, é a lista de preço dos valores que cada sociedade fornece a
a i~anSformaÇiíQ__4_icontextos subdemzv_olvidos que hrzpõ__e ao .cientista todos os seus membros, por força de uma espécie de pedagodia
drr-pã!Sesp:erif'ér_i_c_os a_ exigência de assimilar não mecanicamente o imanente. Reconheço sempre o pressuposto cultural do outro,
· patri~gnio científico estrangeir~. ' Esta exigência se torna particu- enquanto o meu me escapa de ordinário, meus-preconceitos
Gnnente·a:guda quando;· iúiqüeles países, se deflagram impulsos sendo a forma mesma que a evidência reveste a meus olhos.
Mas a concepção de mundo, própria de outro, será desna-
concretos de ordenação própria ou de articulação interna. En-
turada por uma descrição que a transfira para a ordem da
quanto permanecem ordenados ou articulados para fora, referidos
consciência, modificando assim sua significação existencial".
a um centro dominante que lhes é exterior, carecem da condição

110 111
A REouçAo SocioLóGICA

(5) Op. cit., p. 7 4.


(6) ]ASPER.S, Karl. Bâlance y perspectiva. Madri, 1951, p. 251. "A
condição substancial de nossa verdade - diz Jaspers nesie
livro - é a apropriação de nossa base histórica." (p. 247).
(7) Seria necessário tematizar a noção de implicação, implícita na Lei do Cardter
idéia do homem como ser-no-mundo. É à luz desta noção que
se tornam claras as relações entre teoria e prática. É necessário
Subsidiário da Produção
verificar até que ponto, antes de Heidegger, já Karl Marx Científica Estrangeira
considerava a teoria e a prática à luz da implicação. O autor
pensa que é possível demonstrar que Marx, numa termino-
logia distinta da de Heidegger, concebia, a seu modo, o
homem como ser-no-mundo. Para ele, "as circunstâncias
fazem o homem como os homem fazem as circunstâncias".
Seu modo de conceber a educação parece basear-se na idéia
de implicação recíproca do homem e do mundo. As indi-
cações deste ponto de vista em Marx se encontram em suas
Teses sobre Feuerbach e na Ideologia alemã. Neste livro, diz
Marx: "A produção das idéias, das representações, da cons-
ciência está, em primeiro lugar, imediatamente implicada
·na atividade material e no comércio material dos homens e
Esta lei pode ser enunciada do seguinte modo:
é a língua da vida real". Vide ldéo/Qgia a//emande, oeuvres
philosophiques. Paris: Costes, 1937, p. 157. À luz da redução sociológica, roda produção científica estran-
(8) Vide HEIDEGGER, op. cit.. Vide também Carlos Amada, La geira é, em princípio, subsidiária.
Revolución existencialista. Buenos Aires, 1952. A consciência cognoscente está sempre referida aos objetos. Eis
(9) Há, por fazer, toda uma sociologia da "fundação" e do "fun- uma afirmação abstrata da fenomenologia Ego cogito cogítatum.
damento". É tarefa de grande urgência para o esclarecimento · ~..~· Demonstrando a estrutura intencional da consciência, Husserl
da transmutação por que passa uma sociedade nacional, como caracteriza sua posição em face do método cartesiano. O eu,
a brasileira. para Descartes, é substância, res cogitans, algo hipostasiado. Para
Husserl, o eu está sempre relacionado com os objetos. Mas, a fim
de tirar partido deste enunciado de Husserl, no campo da socio-
logia, é necessário considerar o eu e os objetos do plano empírico
ou no eidético, jamais no plano transcendentaL O sujeito ordi-
nário da vida psíquica é sempre alguém cuja consciência está
referida a objetos concretos de uma circunstância determinada. 1
Estes objetos não estão simplesmente justapostos, constituem
uma totalidade dotada de sentido de que cada um deles participa.
Assim, para o sociólogo, a intencionalidade de que fala Husserl
tem sempre concreticidade. É preciso distinguir a intencionalidade

112
A REDUÇÃO SocrÓLóGICA
LEI DO CARATER SU!lSIDIARIO•••

do eu puro da intencionalidade do eu concreto, episódico, his- de uma atividade lúdica ou ociosa, é sempre elaborada para
toricamente configuradó. O eu puro só é sujeito do ponto de vista atender a uma imposição. Esse para é que constitui o sentido do
da redução transcendental. Para a redução sociológica, o sujeito produto sociológico. O sistema de Spencer cem pleno sentido,
é, porém, o eu concreto, inserido na comunidade.2 O que a sobretudo para os ingleses. Como o de Co~ce, para os franceses,
sociologia cem a fazer é transferir a noção husserliana de inten- o de Max Weber, para os alemães, o de Lester Ward, para os
cionalidade do plano da ontologia pura para o plano regional do norte-americanos. É nesta acepção que se falava aqui na inten-
social, onde os objetos não são intencionais, como pensa Husserl, cionalidade do produto sociológico bruto. O que, neS§es siste-
apenas porque estejam, referidos à consciência. São objetivamente mas, transcende os respectivos contextos imediatos, é a sua con-
intencionais, são intencionais enquanto carregados de determina- tribuição a formar o que mais adiante se chamará de "núcleo
do sentido, de determinado propósito, enquanto veiculam um central do pensamento sociológico". Ao utilizarmos um objeto
"para", enquanto integrados em particular estrutura referencial. ou produto, sem reduzi-lo, somos envolvidos pela intenciona-
Para usar a própria terminologia de Husserl, pode-se dizer que lidade de que é portador. A observância desta lei levará o soció-
a redução sociológica não é uma reflexão sobre o "objeto puro" logo a utilizar a produção estrangeira como matéria-prima de
do ato intencional. É uma reflexão sobre os sentidos dos nóemas, elaboração teórica, condicionada por fatores particulares da so-
ou seja, as formas como os objetos são dados ao ato intencional ciedade em que vive. A redução só se torna possível, portanto,
ou nóesis. O que Husserl 3 chama nóema não equivale à forma quando, na sociedade em que vive o sociólogo, aqueles fatores
aristotélica, àquilo que faz que o objeto seja o que é, à sua essência. operam eferivamente, prevalecendo, de modo objetivo, sobre o ·
Se assim fosse, a cada objeto corresponderia apenas um nórma. condicionamento exógeno. Somenre naquelas sociedades em que
Para Husserl, um objeto pode aparecer à consciência segundo se gera uma prática coletiva (prdxis), é que se pod~ liquidar a
diversos nóemas, mantendo, no entanto, sua identidade apesar de ociosidade do trabalho inrelectual e, portanto, do trabalho soció-
todas as perspectivas. O nóema não é pois a essência do objeto, lógico. Em cais condições, a própria sociedade coloca diante do
é o conteúdo objetivo de um ato intencional. sociólogo as tarefas que deve empreender. Essas tarefas deixam .
Um objeto cultural, por exemplo o Estado, pode ser consi- de ser arbitrariamente selecionadas pelo gosto individual do
derado, no domínio da sociologia, sob várias formas (nóemas). sociólogo e passam a ser determinadas pela comunidade. O caráter
O sociólogo norte-americano o considera de uma forma; o ale- ocioso da especulação sociológica nos países coloniais transparece
mão, de-outra; o francês, de outra, e assim por diante. Cada uma no fato de não ter exigências próprias, mas obedecer às v~riações
dessas formas (nóemas) está referida ao ato referencial (nóesis) do das correntes estrangeiras. Trata-se de fenômeno que pertence
respectivo sociólogo. Os "nóemas" não são paradigmas universais ao domínio da sociologia da moda. É a péácica da redução que
e portanto não podem ser transferidos da perspectiva noética em tonverce o sociólogo de consumidor (colecionador) de idéias em
que se dão para outra. D esde que, mediante a redução socio- produtor de idéias. A produção sociológica estrangeira, para o
lógica, descubramos no contexto onde surgem, o sentido dos sociólogo que fundamenta sua especul~ção na prática social, não
produtos sociológicos (por exemplo, os diferentes nóemas do vale como paradigma ou rÍl'ódelo, mas apenas como subsídio.
Estado), podemos utilizá-los como subsídios, em uma nóesis não
* * *
meramente imitativa, mas dotada, para nós, de autêntica inten-
Dada a grande voga no Brasil da sociologia norte-americana,
cionalidade. Um produto sociológico qualquer (sistema, teoria,
não será demais utilizá-la ainda uma 'vez, a fim de servir como
conceito, técnica de pesquisa, método), a menos que seja fruto
material ilustrativo da lei em discussão. Mostrar-se-á que cal

114 115
A REouÇAo SocioLóGICA LEI DO CARATER SUBSIDIARIO ...

sociologia só tem, para nós brasileiros, utilidade subsidiária. Pode- os indivíduos estejam submetidos a uma instância consuecudiná-·
se, por exemplo, apr~nder muito, examinando a produção ria superior, a um "estatuto de fundação" , 5 ou seja, a um nomos.
sociológica nos Estados Unidos. M as os seus conceitos, métodos Tal sociedade tem, por isso, aguda consciência de quanto é
e processos não constituem paradigmas para o pensador brasilei- problemática a integração das condutas de seus membros e sente
ro. É justo admirar a exigência de quantificação que se impõe a necessidade de promover continuamente de modo dirigido esta
às pesquisas sociológicas nos Estados Unidos, bem assim o de- integração, que não se processa espontaneamente. A possibilidade
senvolvimento considerável que ali tiveram cercos ramos desta desse dirigismo é garantida pelos poderes que a hábil burguesia
disciplina, como a sociologia rural, a urbana, a ecologia social, norte-americana soube conquistar. Wright Mills descreve as
a patologia social, o controle social, e também o sistema de refe- condições que levaram essa burguesia a ocupar o centro do poder
rências conceituais que a disciplina adota. Todos esses e outros como elite praticamente exclusiva, só se registrando, no mundo
aspectos da sociologia norte-americana se explicam pela reali- de hoje, situação equivalente a esta na Rússia Soviética, onde uma
dade social desse país. Os Estados Unidos, porque plenamente burocracia dominante exerce o mesmo dirigismo totalitário. Diz
desenvolvidos, chegaram a um grau extremo na divisão social
Wright Mills:
do trabalho. Os fatores que condicionam os problemas de sua
O fato de que a sociedade norte-americana não haja
complicada estrutura capitalista são de caráter muito refinado. É passado nunca por uma época feudal é de importância de-
óbvio que a estreita interdependência das partes desta estrutura cisiva para o caráter de sua elite, assim como para a dica
exige que as investigações sejam extremamente minuciosas. sociedade em geral, porque significa que nenhuma nobreza,
nem aristocracia, criada antes da era capitalista, sustentou
Impõe-se, assim, que as análises sociológicas se apresentem
uma longa oposição à alta burguesia; que essa burguesia
tanto quanto possível em formas quantificadas. É sabido que a monopolizou não só a riqueza, mas também o presdgio e o
extrema divisão social do trabalho leva a maioria dos membros poder; que nenhum grupo de famílias nobres ocupou as
de uma sociedade a perder o sentido unitário do seu movimento posições mais altas e monopolizou os valores em geral tidos
global. Durkheim chamava de anomia a este estado, em que, por em grande estima, e, desde logo, nenhum grupo o fez expli·
citamente, baseando-se em direito hereditário; significa,
força de uma pronunciada especialização de funções, os indiví-
finalmente, que nem os altos dignitários da igreja, nem a
duos acabam do minados por uma visão fragmentária da coletivi- nobreza cortesã, nem os poderosos latifundiários condecora-
dade.4 A sociedade norte-americana é, internamente, constituída dos com atavios honoríficos, nem os monopolizadores dos
de partes mal-integradas, carece de eunomia, o que explica a altos postos militares se opuseram à burguesia enriquecida,
necessidade de tomar consciência do imperativo de mobilizar, nem fizeram resistência à sua elevação, em nome do nasci-
mento e do privilégio.6
em grande escala, processos coercitivos, diretos e indiretos, para
garantir um mínimo de estabilidade social. A muito peculiar Essa elite não poderia ficar indiferente aos meios eficazes de
formação histórica dos Estados Unidos, embora lhes tenha pro- condicionamento em massa das condutas. Em diversas formas,
piciado um desenvolvimento material que os tornou um país ostensivas ou discretas, administra complicado sistema de prêmi-
economicamente h egemônico no mundo contemporâneo, não os e castigos, cujo objetivo é a conservaçao social. Nao são apenas
lhes permitiu, como já indicamos, uma sedimentação lenta de técnicas sociais, como a propaganda, as "relações pdblicas", as
tradições e usos próprios. Por falta de um substrato de práticas "relações humanas", as únicas armas de autodefesa do vigente
comunitárias longamente decantadas no tempo, a sociedade norte- sistema norte-americano. A "conservaçao social" é, grosso modo,
americana não realiza um modo de coexistência humana, no qual a essência da ideologia em que se fundamentam as ciências sociais

116 11 7
·--~·

A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA LEI DO CARÁTER SUilSIDIÁRIO•••

nos Estados Unidos. Por exemplo, não constituem ciências, mas problemas cuja resolução demande novo esquema de convivência
tecni>logi~s sociais de Índole conservadora, disciplinas como social. A debilidade teórica e o relativo atraso da sociologia norte-
psicologia social, patologia social, problemas sociai.s, desorgani- americana são, assim, no presente, estruturais e justificados, do
zação social, sociologia industrial, controle social, ecologia social ponto de vista norte-americano. Por todas essas razões, a expe-
e, ainda no domÍnio parassociológico, o serviço soCial. o_ pro- riência sociológica desse país é, para nós, subsidiária.
pósit~ eminentemente "acomodativo" que Wright Mills denun-
ciou na "patologia social" 7 não é particularidade desta disciplina, * * *
mas característica dominante da sociologia norte-americana. Na O pensamento sociológico no Brasil tem sido um fenômeno
verdade, apenas dominante e não exclusiva, tanto assim que explicável pelas leis daquilo que Gabriel Tarde chamava de
Wright Mills e outros cientistas conseguem realizar, apesar de imitação-moda. No caso, a assimilação da produção sociológica
tudo, uma carreira universitária. Ademais é curial afirmar-se estrangeira se verifica sob o alcance do "efeito de prestígio". O
que a sociologia norte-americana cem fraca consistência teórica, "efeito de prestígio" é algo análogo ao efeito de demonstração de
a qual, aliás, decorre também de fatores socioculturais globais. J.S. Duesenberry, utilizado pelos economistas. O conhecimento
Enquanto a estrutura capitalista assegurar aos norte-americanos dos padrões de vida dos povos desenvolvidos leva todas· as classes
as condições de vida comparativamente altas que desfrutam, sociais nos países subdesenvolvidos a pretenderem consumos
a tendência a um esforço de radical teorização do social será relativamente altos; que dificultam a acumulação de capiral.8
neutralizada. Nos países periféricos, a propensão a consumir, na escala e mo-
O pleno desenvolvimento que atingiram os Estados Unidos dalidade equivalentes às dos países industrializados, dificulta o
não estimula a formação, no campo das ciências sociais, de seu desenvolvimento, pois desestimula a poupança, ·assumindo
concepções dinâmicas. Na presente etapa do processo histórico; caráter predatório. Propõe-se aqui a expressão "efeito de prestí-
social norte-americano há ainda possibilidades de conjurar os gio" para explicar a vida intelectual das camadas letradas das
principais problemas que afloram à consciência coletiva. Este é regiões subdesenvolvidas. Esse efeito se verifica por força de um
um dos motivos porque a sociologia norte-americana é uma contato a distância entre as pessoas e os grupos, em que deter-
disciplina essencialmente descritiva e tautológica, cujos pro- minados modos de ser e pensar, particulares a um povo, são
fissionais, na maioria, não estão aplicados num trabalho de ela- idealizados, e, graças ao prestígio desse povo, propagados, como
boração conceitual que ponha em questão a estrutura mesma dogmas, aos outros povos. A atitude dos sociólogos que, diante
dos Estados Unidos. A proliferação de estudos e pesquisas que da produção sociológica importada, se comportam como os ele-
realizam para chegar a conclusões óbvias (como é o caso dos gantes e os snobs em face dos figurinos das capitais da moda,
chamados estudos de comunidade) não é fortuita. É uma das também pode ser explicada pela psicologia da "coqueceria". Uns
maneiras de ocupar considerável mão-de-obra de pessoas diplo- e outros, em diferentes r,:raus, é certo, se movimentam no âmbito
madas pelas universidades que, de outra forma, poderiam apli- da consciência ingênua. Ora, o sociólogo genuíno é, exatamente,
car o seu conhecimento para colocar em foco assuntos temerá- aquele que, por profissão, é portador do máximo de consciência
rios. Em conseqüência, é legítimo afirmar que o caráter atual da crítica diante dos fenômenos da convivência human~Poi"lcon­
sociologia norte-americana é historicamente necessário. Só se seguinte, em um país periférico, o avanço do trabalho sociológico
transformará, qualitativamente, quando a estrutura do país, pelo não se deve avaliar pela sua produção de caráter reflexo, mas pela
esgotamento de suas possibilidades, suscitar o aparecimento de proporção em que se fundamenta na consciência dos fatores infra-

118 11.9
/

A REouÇAo SocioLóGICA LEI DO CARÁ TER SU!3SI D IARIO. • •

estruturais que o influenciam. A capacidade de utilizar socio- Notas


logicamente o conheciménto sociológico é o que caracteriza o
(1) Há, na obra do jovem Marx, abundantes subsídios para uma
especialista de real categoria. O sociólogo up to date por sistema,
teoria sociológica d~ inrencionalidade. Para Marx, a cons-
sendo desprovido desta capacidade, ílustra um caso de dandismo ciência é sempre consciência de alguém, "é um produto
no domínio da sociologia. ÍNos países periféricos, a so·ciologia social". "A consciência- diz ele na Ideologia alemã (op. cit.,
deixa de ser atrasada na medida em que se liberta do "efeito-de- p. 157) -jamais pode ser outra coisa senão o ser consciente".
prestígio" e se orienta no sentido de induzir as suas regras do (2) Um tema a desenvolver é o do horizonte, considerado como
contexto histórico-social em que se integra. Esse tipo de socio- "campo onde o eu se personaliza com e por outro". M. A.
logia exige do sociólogo um esforço muito maior que o de mera Lahbadi dedica um capítulo de seu livro ao assumo. Para este
aquisição de idéias e de informação especializadas: exige a ini- autor, a consciência, isolada de seu horizonte, é pura abs-
ciação numa destreza intelectual, numa instância intelectual tração (p. 127). Digna de nora esta observação: "A cons-
que pode ser definida com a palavra habitus, na acepção em que ciência só pode existir no e pelo seu horizonte. Não se trata
de uma relação do quadro englobante ao ser englobado, mas
os antigos a empregavam. Com efeito, é preciso distinguir a
de interconstituição, de enrrecruzamento de implicações
sociologia em hábito da sociologia em ato, nas acepções filosóficas
recíprocas. Dizer que a consciência é conhecimento, ''cons-
dos termos~
ciênCia de", é afirmar que ela é transitiva. Se, ao contrário,
O que Aristóteles chamava hexú e os escolásticos habitm é uma encarássemos uma "consciência em si", obteríamos algo sem
aptidão inata, ou adquirida pelo tr~inamento. A cada ciência extensão, intemporal e não relaciona!. Então, não nos refe-
corresponde um habitus específico. O físico é menos uma pessoa riríamos mais a uma "consciência de si ", o "eu" não estaria
que tenha lido muitos livros de física do que alguém apto a rea- mais ligado ao seu campo de personalização" (p. 157).
gir diante dos fatos, segundo determinadas regras e referências · (3) Cf. HussERL. Ideas relativas a una fenomenologia pura y una
conceituais. Coisa semelhante se dirá de qualquer outro cientista. filosofia fenomenológica. México. 1949. Os sociológos ainda
Dir-se-á também que o mero alfabetizado em sociologia, por mais não tiraram partido da literatura existente sobre o problema
da percepção, visto à luz da fenomenologia. Esta disciplina
exaustiva que seja a sua informação, não é sociólogo. Distinguin-
abre nov~s horizontes para o escudo da ideologia. Particu-
do a arte em hábito da arte em ato, imagina Jacques Maritain, em
larmente importantes neste campo de cogitações são os
seu livro Art et scolastique, um enérgico aprendiz capaz de tra- seguintes livros: MERLEAU-PONTY, M. Phenoménologie de la
balhar quinze horas por dia na aquisição do conhecimento teó- perceptíon. Paris, 1945. GURWITSCH, Aron. Théoríe du champ
rico e das regras de uma arte, mas no qual o habitus não germina. de la conscience. Paris, 1957.
Este esforço jamais fará dele um artista e não o impedirá de per- (4) Vide DuRKHEJM. De1a Division du travail sociaL Paris, 1893.
manecer mais infinitamente afastado da arte do que a criança Le Suicide. Étude Sociologiq11e. Paris, 1897.
ou o selvagem portador de um simples dom natural. Redução é (5) Expressão de Fr. ]. Conde em seu escudo sobre a Polis. "O
precisamente o contrário de repetição. !Ã mera repetição analógica eidos da Polis, sua figura, o que determina sua unidade
de práticas e estudos contraria a essência da atitude científica, interna, sua essência, é o Nomos. Tem cada Polís seu próprio
porque perde de vista a particularidade constitutiva de toda si- Nomos, no qual s~ mostra a peculiaridade de sua essência.
tuação histórica;;t "O povo - dirá Heráclito - deve combater por seu Nomos
como por uma muralha". É como a decantação das tradições
próprias, o espírito de seu estatuto de fundação, usos já

120 121
A REouçAo SOCIOLóGICA

inveterados e consagrados e princípio de distribuição da


terra". Op. cit., ' p. 111-2.
(6) MILLS, Wright. The Power Elite. New York, 1956.
(7) Vide MILLS, Wrighr. Artigo em The American fourna/ of
Sociology. Vol XLIX, n. 2, setembro de 1943, p. 165-80.
(8) Sobre o assunto, vide NüRKSE, Ragnar. Problemas de formação Lei da Universalidade dos
de capitais em países subdesenvolvidos. Rio de Janeiro, 1957.
Enunciados Gerais da Ciência

Esta lei pode ser formulada do seguinte modo: a redução


sociológica só admite a universalidade da ciência tão somente no
domlnio dos enunciados gerais. A redução sociológica não implica,
de modo algum, negar a universalidade da ciência. Seu propósito
é, apenas, levar o cientista a submeter-se à exigência de referir o
trabalho científico à comunidade em que vive. A sociologia, como
toda ciência, é universal em duplo sentido. Em primeiro lugar
porque, no mundo contemporâneo, os povos não estão compar~
cimentados, mas estreitamente relacionados uns com os outros.
Assim, em cada momento, o avanço científico obtido em um país
tende a propagar-se rapidamente por todos os outros países. Mais
do que nunca, a ciência é universal porque resulta de um esforço
organizado de especialistas dispersos por toda parte. F!m qualquer
país; todo verdadeiro homem de ciência está obrigado a manter-
se em dia com o estado geral do conhecimento, principalmente
no domínio ao qual se dedica. E isto é possível graças aos variados
meios de informação que se tornam cada vez mais acessíveis. A
ciência ·é, pois, universal, enquanto patrimônio de aquisições

122
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA LEI DA UNIVERSALIDADE•••

comuns a todos os cientistas do mundo. O estado geral da ciência em parte alguma", mas à qual se chega apenas quando se adquire
influi necessariamente no.cientista de determinado país, como a o habitus em que essencialmente consiste.
elaboração nova de um especialista de determinada nação inevi- A negação da existência de sociologias nacionais quase sempre
tavelmente terá repercussões universais. Em ciência, não há lugar se faz em nome de um universalismo equivocado. Quando, em
para o jacobinismo, ninguém pode realizar progressos senão a trabalho anterior, I o autor afirmou que toda sociologia autêntica
partir do que foi conquistado pelo esforço universal dos cientistas. assume sempre caráter nacional, levantou-se uma celeuma contra
Outro sentido é o seguinte: é universal a ciência enquanto esse ponto de vista. Dois eminentes sociólogos, o professor Ro~er
todos os que a ela se devotam estão, em determinado momento, Bastide 2 e o professor Mario Lins 3 debateram o assunto e multa
em um mesmo círculo semântico, isto é, admitem como válido coisa relevante escreveram em seus respectivos estudos. A questão,
um mesmo repertório central de enunciados. Assim como Alfred porém, não ficou esclarecida. Em que sentido pode ser nacional
Marshall distinguia, no campo da ciência econômica, um "esque- a sociologia?
ma central de raciocínio", ao qual atribuía "universalidade elevada ÍO que caracteriza como nacional uma sociologia não é o fato
e transcendência", assim também podemos admitir no campo da de que os princípios gerais do raciocínio científico variem ~e
sociologia um elenco central de categorias universais. Não é fácil nação para nação, mas tão somente a funcionalidade das cog~­
exprimir esses enunciados gerais, mas os que se dedicam à ciência tações dos sociólogos. Do sociólogo pode-se. afirmar o que se ~Iz
sabem que existem, constituindo os pressupostos fundamentais de toda criatura humana - é um ser em situação, um ser his-
da atividade científica. Por exemplo, nenhum sociólogo contesta toricamente encarnado. Necessariamente terá de apreender os
que os caracteres sociais do homem são adquiridos e não inatos. objetos mediante o ponto de vista de sua situação ou, segundo
Há menos de um século, porém, essa afirmação seria contestada.
Gabriel Mareei, daquilo que tem: seu corpo, sua condição social,
Estava em voga, na antropologia européia, um conceito errôneo ·
seu bairro, sua cidade, sua nação, sua profissão, sua époc.:J Dir-
de raça que só recentemente se tornou insustentável. Mediante
se-á: mas, se o socióiogo é também um ser em situação, por que
a leitura de autores como Karl Marx, Comte, Spencer, Georg
motiva" a sociologia verdadeiramente nacional não tem sido
Simmel, F. Tõnnies, Max Weber, .Max Scheler, Durkheim,
possível no Brasil? Trata-se .de que, neste caso, ~l?l~go s_ç
Gabriel Tarde, Vilfredo Pareto e outros, nos iniciamos numa
encontrava numa situação colonial, na qual tudo part1c1pa da
instância de enunciados gerais que constituem o núcleo central
~~~~;~~~&-;~e fe~ômeno social total, que, em essência, consiste
do raciocínio sociológico. ·Esse núcleo é apreendido menos pela
na alienação. Tudo é colonial na colônia, observa, com razão,
observação literal e direta do que esses autores pensaram que
Roland Corbisier, inclusive a mentalidade dos que nela vivem.
mediante a percepção de como pensaram o que escreveram. Por
Sig~ifica dizer: a situação colonial como um todo, e, po~t:nto, a
diferentes caminhos pode-se chegar ao núcleo central do racio-
consciência do sociólogo colonial, é essencialmente cond1c1onada
cínio sociológico, equivalente ao que, no domínio filosófico, Kant
por fatores externos e secundariamente por fatores inter~os. <?
chamava de "astúcia da razão". Na Crítica da Razão P1,1ra, afir-
sociólogo, também "ser-no-mundo", está incluso na refenda. SI-
mava Kant que a filosofia jamais pode ser apreendida, salvo
tuação e, portanto, não pode superar individualmente, neutralizar
historicamente, porquanto, no que concerne à razão, só se pode
0 seu determinismo global e conduzir-se como "ser-do-mundo"
aprender a filosofar. Também a sociologia, como a filosofia para
particular em que vive. É necessário que um conjunto de fatores
Kant, é sempre uma "ciência possível que não é dada em concreto
favoráveis venha revelar a heteronomia da vida colonial à cons-

124 125
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA LEI DA UNIVERSALIDADE...

ciência dos que dela participam (inclusive o sociólogo) para qu~ infra-estruturais que a condicionam. É cerco que profissionais
se sintam convocados a súperá-la, contrapondo-lhe uma conduta isolados realizaram, nos Estados Unidos, um esforço no sentido
comum autodeterminada. Nessas condições, os problemas do de proceder à análise radical do pensamento sociológico norte-
mundo particular em que vive o sociólogo tornam-se os seus americano, pondo à mostra os seus pressupostos. Enrre eles estão,
problemas e o seu pensamento ganha funcionalidade na medida por exemplo, Wright Mills, Robert S. Lynd, Leslie White, David
em que está referido à sua comunidade. O que diferencia em Bidney, Paul Sweezy e Paul Baran. Apesar destes esforços, porém,
nacionais as sociologias é o caráter necessariamente particular de a sociologia norte-americana, de modo geral, carece de cons-
que se revestem os pontos de vista dos so.ciólogos, tanto quanto ciência crítica de seus suportes objetivos. No Brasil, porém, a
sejam significativa e funcionalmente adequados aos problemas da sociologia hoje reflete sobre si mesma e_, pela atitude eminen-
nação em que vivem. Nas estruturas coloniais, onde os fatores temenre crítica que, dia-a-dia, nela se aguça, torna-se apta a
intelectuais são em grande margem ociosos, os assuntos se tornam descobrir os pressupostos dos sistemas sociológicos estrangeiros. 1
mais ou me!los gratuitos, e mais ou menos decorativa a produção Em outras palavras, a sociologia no Brasil encontra-se numa fàse
de idéias. 'Nas estruturas nacionais dotadas de capacidade de de depuração crítica, de purgação da consciência ingênua, a qual
aurodesenvolvimento, o trabalho intelectual, e, portanto, cientí- ainda caracteriza a sociologia norte-americana. À luz dos padrões
fico, está direta ou indiretamente carregado de funcionalidade, de rigor e exigência da nova sociologia brasileira, a sociologia
enquanto referido a perguntas concretas~ norte-americana padece de baixo nível técnico e científico, pois
Não se poderá, por outro lado, confundir sociologia nacional tende a confundir a dinâmica particular da sociedade dos Estados
com sociologia aplicada.4 A exigência de funcionalidade não exclui Unidos com a dinâmica social geral, além de ser disciplina ex-
das cogitações do sociólogo as tarefas teóricas. Ao contrário; a cessivamente especializada, e, por isso mesmo, exposta a cometer
teoria sociológica, como a cearia científica em qualquer domínio, . grosseiras simplificações dos fenômenos sociais.
só se desenvolve efetivamente quando se funda na prática. E IÃlém disso, podem os temas de uma sociologia ser nacionais
justamente o que o sociólogo mentalmente descolonizado adquire sem que a própria sociologia seja nacional. Tudo depende da
é uma prática social em que fundamenta a sua elaboração teórica. postura de estudioso, de como vê estes temas. Se um sociólogo
Diversamente do que acontecia na situação colonial, abre-se diante brasileiro, ao analisar o nosso processo de desenvolvimento, as-
dele. a oportunidade de contribuir para o desenvolvimento cien- sume, por exemplo, a postura ordinária do seu colega anglo-
tífico, não apenas como fornecedor de material informativo, mas saxônico especializado em antropologia cultural, fará o que em
como criador no plano dos conceitos. Articulando o seu pen- outro estudo o autor chamou de "sociologia consular", pois ten-
samento com a prática social, o sociólogo, que deixou de ser derá a assumir uma atitude estática, imobilista, diante de nosso
mentalmente colonizado, passa de consumidor passivo de idéias contexto. Não é por acaso que rodos, absolutamente todos, os
importadas a instrumenrador e até mesmo a produtor de novas sociólogos patrícios que assim procedem são levados a condenar
idéias destinadas à exportação. l'Provavelmence, em breve, será a industrialização no Brasil, o mais eminente deles tendo chegado
despertada a atenção dos estudiosos para o fato de que remos, a preconizar a fidelidade de nosso país à sua "vocação agrícola.)
hoje, no Brasil, uma teoria sociológica geral mais penetrante e Em tais condições, vê-se o Brasil de um ponto de vista que se
avançada do que a norte-americana, capaz inclusive de envolvê- pretende universal, formulado a partir do contexto de nações
la e explicá-l~Todavia, a sociologia norte-americana ai~da não dominantes, para as quais o quadro mundial quanto menos al-
escreveu as suas Cartas Persas/ não suporta o exame dos fatores terado for, mais ajustado será à sua ótica; não se vê o Brasil do

126 127
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA

ponto de vista particular do projeto de modificar o seu modo de


existência histórica, pâssando de área subdesenvolvida a desen-
volvida. Mais uma vez, ocorre a noção proposta de "ser-do-
mundo", a qual, para o cientista, define a única postura capaz
de tornar a sua produção realmente funcional. É nessa postura
que se fundamenta uma sociologia nacional, mais do que pro-
priamente na natureza dos temas. É nessa atitude, à qual já
Lei das Fases
se chamou de empática, não sem felicidade, que se baseia o que
há de melhor em nossas letras sociológicas, mesmo no passado,
e que está associado aos nomes de Sílvio Romero, Euclides da
Cunha e Alberto Torres, estudiosos que praticaram a redução
sociológica, embora não tenham refletido sobre ela.

Notas

(1) GuERREIRO RAMos. O Processo da sociologia no Brasil. Rio de


Janeiro, 1953.
(2) BASTIDE, Roger. Carta aberta a Guerreiro Ramos. An~embi.
n. 36, setembro, 1953. Esta lei pode ser enunciada nos seguintes termos:
(3) LINS, Mário. Integration os Theory and Research in Sociology.
Paper present ar the First Brazilian Congress ofSociology. São fà luz da redução sociológica, a razão dos problemas de uma
Paulo, 1954. . sociedade particular é sempre dada pela fase em que tal sociedade
(4) Inclinam-se a considerar o autor deste estudo representante se encontra~ · ~ . •
de uma "sociologia aplicada", Pinto Ferreira e Elias Chave A lei das fases pressupoe um estilo de pensar os fenomenos
Neto. Vide respectivamente, "Panorama da Sociologia Bra- soCiais fundamentado no que se pode chamar de razão sociológica.
sileira" (Revista Brasiliense, n. 15) e "Introdução Crítica à
Cada problema ou cada aspecto de determinada sociedade é parte
Sociologia Brasileira" (Revista Brasiliense, n. 10). Pelas razões
de uma totalidade, em função da qual é compreendido. As idéias
aqui expostas, parecem parcialmente verdadeiras as opiniões
desses autores. · de raZão históri~a em Dilthey, ou de razão vital em Ortega lhes
ocorreram porque verifi~aram a imposSibilidade de compreender
(5) Imagem d~')'Edgar Morin, referindo-se à sociologia em
os fatos sem referi-los à realidade em que se acham integrados,
geral. Vide Préliminaires à une sociologie du cinéma, "Cahiers
Internationaux de Sociologie". Vol. XVII, 1954 ao mundo histórico ou à ~ida. Há também UJ'!la razão sociológica,
isto é, uma referência básica, a partir da qual tudo.o que acontece
o
em determinado·momento de uma sociedade adquire seu exato
se.n tido. Tem aqui plena vigência à lei de psicologia da forma
segu~do a qual ."o todo antecede as partes". De fato, é impossível
a compreensão adequada dos fenômenos·mediante o mero conhe-

128
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA LEI DAS FASES

cimento empírico imedia~o ou o somatório de percepções diretas. consciência, o tema da razão histórica, Wilhem Dilthey. Todavia,
O pensamento em termos de fase vem conjurar as falácias a que posteriormente, Marx encaminhou-se para uma caracterização
conduziu o pensamento linear em termos de causa e efeito. Aquilo . das grandes seções do processo histórico-social em termos mais
que. ~ sociologia do século passado se afuguravam causas ou fatores concretos. Era preciso encontrar a explicação dos períodos da
predominantes nadamais foi do que acentuação de aspectos história não mais nas idéias ou numa espécie de espírito
temporários de totalidades histórico-sociais, em permanente trans- antropomorfizado, mas nas condições da vida material. Assim,
formação dialética. A teoria da história e a cearia social foram, passou a descrever as etapas do comunismo primitivo, da es-
pois, levadas a elaborar a categoria de totalidade, descoberta por cravidão, do feudalismo e do capitalismo, reduzindo-as ao que
processos lógicos e empíricos. Em Hegel, com efeito, a totalidade considera como o seu respectivo substrato básico, a sua infra-
é sobretudo uma categoria lógica, retomada em seguida por Karl estrutura econômica. Cada uma dessas etapas, caracterizada por
Marx. Ambos esses autores procuraram apreender o sentido dos um meio de produção fundamental e por determinada modali-
faros histórico-sociais à luz da conexão de fatores de que resultam. dade de apropriação econômica, é uma totalidade aberta para o
Hegel e Marx vêem o processo histórico-social como sucessão de futuro, na qual se influenciam reciprocamente as condições não
épocas, cada uma das quais constituindo totalidade de sen- materiais e as materiais, embora estas constituam a anatomia de
tido, presidida por lei estrutural básica, que dá a razão de tudo cada formação histórico-social e, assim, em última análise, exer-
o que dentro dela acontece. Em Hegel a descrição da época se çam papel dominante na causalidade. É clássico o trecho da
faz em termos ideais genéricos, mais ou menos imprecisos, en- Contribuição à critica da economia política em que Marx descreve
como e porque uma formação econômico-social sucede a outra.
quanto em Marx tal descrição já atinge maior grau de concre-
Diz ele:
tização. Em sua fase hegeliana, Marx concebia a época sem im-
por-se a exigência de sua caracterização propriamente materiaL Na produção social da própria vida, os homens entram
em relações determinadas, necess:lrias, independentes de suas
Num texto· de sua autoria, datado de . 1842, escreveu:
vontades, relações de produção que correspondem a deter-
Os filósofos não saem da terra como cogumelos, são minado grau de desenvolvimento de suas forças produtivas
frutos de sua época, de seu povo, cujas energias mais sutis, materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui
mais preciosas e menos visfveis se exprimem nas idéias filo- a estrutura econômica da sociedade, à base real sobre a qual
o
sóficas. mesmo esplrito que constrói os sistemas filosóficos se eleva uma superestrutura jurídica e polltica e à qual
no cérebro dos filósofos, constrói os caminhos de ferro com correspondem formas sociais e determinadas de consciência.
as mãos dos oper:lrios. A filosofia não é. exterior ao mundo... O modo de produção da vida material condiciona o pro-
Porque toda filosofia verdadeira é a quinta-essência espiritual cesso social, pol!tico e intelectual da vida em geral. Não é
de seu tempo, deve vir a época em que ·a filosofia terá um a consciência dos homens que determina su~ existência, é a
contato, uma reação recíproca com o mundo real de seu sua existência social que determina sua consciência. Em
tempo- não só internamente, por seu conteúdo, mas tam- certo grau de desenvolviment0; as forças produtivas materi-
bém exteriormente, por suas manifestações. A filosofia· ais da sociedade entram em conflito com as condições de
produção existentes ou, para empregar o que não é mais do
cessará então de ser uma oposição de sistema i sistema para
que sua expressão j urfdica, com as relações de propriedade
tornar-se a filosofia em face do M11ndo, a filosofia do mundo
nas quais se haviam desenvolvido até então. De formas
presente... (os grifos são do autor).'
evolutivas das forças produtivas que eram, essas condições se
Eis aí um texto que poderia ser subscrito por um contempo- convertem em obst:lculos. t neste momento que surge uma
râneo de Marx, que, pela primeira vez, propôs, ·com plena época de revolução social.'

130 131
A REouçA.o SociOLóGICA LEI DAS FASES

O importante é assinalar que, para Marx, cada etapa, condi- "estudo das leis de acordo com as quais um estádio da sociedade
cionada por sua infra--estrutura, rem suas leis específicas e, produz o estádio que o sucede e toma o seu lugar".
portanto, seus problemas particulares. Sem dúvida, na exposição Em nossa época, o antecedente mais próximo nesta ordem de
que mais adiante se fará da lei das fases, ver-se-á o quanto foi cogitações é Franz Carl Müller-Lyer (1857-1916). Sua contribui-
importante a contribuição de Marx à elaboração deste estudo. ção nesse terreno merece ser destacada, principalmente os seus
Mas cumpre agora mostrar o processo empírico que levou a estudos, As Fases da cultura (1908), O Sentido da vida e a ciênc_ia
sociologia à descoberta da noção de totalidade. Tal foi o processo (1910) e A Família (1912). Esse autor procurou expor de ~odo
adotado por Mareei Mauss, etnólogo francês, que cunhou a noção sistemátic~ o que chamava de "faseologia~'. É oportuno transcre-
de "fenômeno social total", generalizando observações que indu- ver algumas linhas de.sua obra A Famllia, em que esdarece o seu
zira da análise do potlatch, espécie de comércio entre povos método. Diz Müller-Lyer:
primitivos. O potlatch não é fato que possa ser definido como ... até agora tem sido pouco compreendido o método
estritamente econômico, pois reflete as características gerais da faseológico, apesar de ser sua idéia tão simples. E alguns o
sociedade; é, simulraneamente, um fato econômico, jurídico, interpretaram falsamente, no sentido de dar importância
maior à divisão em fases. Por isso quisera insistir novamente
religioso, estético, militar, político etc. É um fen8meno social total
em que essa divisão é só um meio para o fim. O fim é
Mas não se trata de qualidade especial de um fato da sociedade determinar, mediante o confronto das fases, a direção em
primitiva. É certo que nesta, em virtude da rudimentaridade da que se orienta a evolução da cultura... A vantagem do mé-
organização social, é relativamente mais fácil perceber a compe- todo não está em secionar o devenir histórico (há muito
netração dos diferentes aspectos da sociedade. Esta compene- que se faz isto), matem captar a linha diretriz. Com o mesmo
direito poderia chamar-se, portanto, este procedimento
tração, no entanto, também se verifica nas sociedades mais com-
de investigação, método das /inhat diretrizeJ. •
plexas, nas quais, porém, é mais difícil de ser percebida. Os
Em outra parte do seu livro, acrescenta:
fenômenos sociais são, de modo geral, fen8menos totais. 3
... para a sociologia, a cultura é um processo evolutivo, no
O pensamento em termos de fase fundamenta-se na categoria qual uma fase sucede a outra. E embora algum elo da cadeia
de totalidade. A fase é uma totalidade histórico-social, cujas partes se assemelhe ao precedente, contudo, o movimento não
estão dialeticamente relacionadas. A questão do secionamento do avança ·caprichosamente, mas obedecendo a uma lei, em
direção determinada e determinável. E podemos reconhecer
processo histórico-social tem um longo passado e preocupou
a direção em que se move a cultura se fixarmos, por com-
pensadores como Vico, Turgot, Condorcet, Augusto Comte, paração entre as fases, segundo o "método faseológico", as
Herbert Spencer, L.H. Morgan. A despeito das divergências iinhas diretrizes e derivarmos destas a lei da evolução.s
teóricas entre esses autores, o que há de comum entre eles consiste Karl Mannheim parece ter sido influenciado pela teoria de
em que rodos entendem que a cada uma das unidades do processo Müller-Lyer, notadamente na concepção que expõe em sua obra
histórico-social corresponde um conjunto de características que O Homem e a sociedade em época de transição, traduzida do ale-
só desaparecem pela superveniência de outra unidade à qual mão em castelhano sob o título: Liberdade e planificação sociaL
corresponderão outras características. Nas palavras de Stuart Mil!, Nesse livro Mannheim organiza o processo histórico-social. eu-
"é o todo que produz a todo, antes que a parte a parte". Con- ropeu, no qual distingue as seguintes etapas: a da solidariedade
seqüente com este modo de pensar, Sruarr Mil! chega ao ponto da horda, a da competição individual e a da organização do grupo
de conceber como "problema fundamental'' da ciência social o superindividual ou da planificação. Acentua, a propósito, que a

132 133
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA LEI D AS FASES

planificação social não é apenas um processo tecnológico, mas um tanto, uma categoria lógica, formulada a priori. É caracterizada
estádio que atingiu atualmente a socied~de humana. E, sendo a posteriori, pela observação empírica de fatos selecionados em
uma fase, é somente na medida em que aprendermos os seus diferentes sociedades, e tomando-se uma ou um conjunto delas
principia media que poderemos compreender globalmente o como termo de comparação.
mundo em que vivemos. A fase se delineia com bastante clareza quando se consideram
A definição das fases por meio de "linhas diretrizes" e de · longos períodos do acontecer histórico-social. Pode-se atingir
axiomata, ou principia media deixa margem a imprecisões. É avançado grau de precisão quando se confontam, por exemplo,
certo que tanto Müller-Lyer, como Karl Mannheim, chegam em seções como o paleolítico, o neolítico, a idade dos metais; ou o
suas obras à determinação concreta de tais princípios configu- comunismo primitivo, o escravismo, o feudalismo e o capitalis-
radores quando focalizam períodos históricos determinados. mo. Os acontecimentos da história, à luz destas categorias não
Consideradas, porém, em tese, afiguram-se muito vagas e abs- se apresentam caóticos, mas ordenados, configurados em largas
tratas essas noções. Para os efeitos deste estudo explor~tório, é unidades de tempo, dentro das quais os fatos se relacionam
necessário equacionar concretamente a questão. Tentar-se-á evi- coerentemente uns com os outros. A fase é uma categoria que vem
tar, portanto, os aspectos abstratos que o tema envolve e procurar
atender à exigência de um princípio de coerência na análise dos
uma noção dotada de caráter operativo.
acontecimentos históricos. Resulta da descoberta de que esses
Pode-se definir a fase como uma seção do acontecer no acontecimentos não são fortuitos ou arbitrários, mas ocorrem
nível do que Alfredo Weber chama de sociedade e civilização, como se leis estruturais os governassem. E, portanto, induz a
isto é, no que diz respeito aos aspectos organizacionais da perceber que a interferência nos acontecimentos deve fundar-se
convivência humana e ao domínio prático da natureza. Estes no conhecimento das linhas diretrizes que lhes dão caráter sis-
dois aspectos se compenetram, constituindo o "agregado vital"
temático. Porque os fatos tendem a compor relações de sistema
(lebensaggriegierunjj. 6 Em outras palavras, a alteração das bases
ou de coerência uns com os outros, só é viável operar em deter-
materiais do "agregado vital", decorrente da racionalização, em
minada situação as transformações possibilitadas pelo seu âmbito
gerai e, em particular, do progresso técnico, faz-se . necessaria-
de virtualidades. A lei das fases, contribuindo para formar cons-
mente acompanhar de "mudanças sociológicas", expressão com
ciência de que as diferentes . seções do acontecer histórico têm
a qual são designadas não só as modificações da estrutura social
limites, define um modo sociológico de pensar. É, sobretudo,
quanto as de caráter ideológico, jurídico, político e institucional.
É claro que a convivência social correspondente a um período expediente de formação metodológica.
histórico de economia baseada no trabalho escravo não pode ser A importância desta lei como instrumento de redução so-
· idêntica à prevalecente em outro período, de economia baseada ciológica não é difícil de perceber. Sob a espécie da fase, o sentido
no trabalho livre e assalariado. Os períodos são distintos em seus dos acontecimentos se clarifica. Os acontecimentos não podem ser
aspectos material, ideológico, jurídko, político, social, institu- compreendidos senão quando referidos à totalidade (fase) que os
cional. Ora, é a esses períodos da transformação do "agregado transcende e a que são pertinentes. Por isso que não se verificam de
vital" que se chamam fases. A delimitação das fases é obtida de modo arbitrdrio, estão sujeitos às determinações particulares de cada
modo comparativo. Uma sociedade cuja estrutura se fundamenta seção do fluxo hist6rico-social em que transcorrem.
no latifúndio está comparativamente em fase inferior àquela cuja
estrutura se baseia na economia de mercado. A fase não é, por-

134 135
A REouçAo SOCIOLÓGICA LEI D AS FASES

Notas (5) Idem, p. 315. Em livro anterior, o autor aplicou a faseologia


ao escudo do problema da mortalidade infantiL Vide Socio-
(I) A inspiração hegeliana deste modo de ver é manifesta: Hegel
logia de la mortalidad infantil. México, 1955.
freqüentemente se refere à época em termos muito próximos
(6) Vide WEBER, Alfredo. Sociologia de la historia y de la cultura.
do citado de Marx. Em seu curso de 1823-1827/28, dizia
Hegel: "Ora, para nós, é preciso encarar as coisas de maneira Buenos Aires, 1957.
completamente diferente, a categoria essencial é a da unidade,
da ligação interior de todas estas formas diversas; é preciso
ater-se firmemente à idéia de que só há um espírito, um só
princípio que se exprime no estado político como se manifesta
na religião, na arce, na moralidade, nos modos sociais, no
comércio e na indústria, de sorte que todas estas formas
diversas nada mais são do que ramos de um só tronco. Esta
é a idéia principaL O Espírito é um, é o espírito substancial
de um período, de um povo, de uma época, que, porém, se
forma de maneira múltipla; e estas diversas formações são os.
momentos que foram indicados. Não se deve ·pensar, por-
tamo, que a política, as constituições, a religião etc., sejam
a raiz ou a causa da filosofia, ou que, pelo contrário, esta
última seja razão das outras. Todos estes momentos têm um
caráter comum que se encontram em sua base e tudo penetra.
Por mais diferentes que sejam estas diversas partes, portanto,
nada têm de contraditório. Nenhuma delas possui um ele-
mento. heterogêneo, por maior que seja sua oposição aparente.
São apenas as ramificações de uma mesma raiz e a filosofia
a ela se prende." Cf. Leçom sur l'histoire de la philosophie.
Paris, 1954, p. 134. l~.·

(2) a M ARX, Karl. Contribution à la critique de l'économil:


politique. Paris, 1954, p. 29-30. Como tentativa de com-
preender o processo econômico em termos de fase, vide
GIERSCH, H. "Les Étapes et les Poussés du Développement
Économique". In: Léon Dupriez. Le · Progres Économique.
Institue de Recherches Économiques et Sociales. Louvain,
1955.
(3) Vide "Essai sur le Don, Forme et Raison de I'tchange dans
les Sociétés Archa'iques", indufdo na coletânea Mareei M auss,
Sociologie et anthropologie. Paris, 1950, p. 143-279.
(4) MOttER-LYER, La Família. Madri, 1930, p. 8.

136 137
Crit:érios de Avaliação
do Desenvolvirnent:o

Cumpre fazer agora algumas indagações sobre os critérios


de diferenciação de regiões contempor:l.neas. Neste terreno sur-
gem imensas dificuldades. No mundo de hoje, as sociedades que
atingiram os pontos mais altos de evolução se encontram ou na
fase capitalista ou na fase socialista. Em outras mais atrasadas se
registra o que W. Pinder chamava de ~'contemporaneidade do não
coetâneo", isto é, a simultaneidade de fases. No Brasil ~ncontram­
se todas pelas quais a humanidade até agora já passou, desde o
comunismo primitivo ao capitalismo de Estado. Um dos méritos
de Inácio Rangel em seus estudos 1 consiste em mostrar que não
se pode compreender a economia brasileira sem levar em conta
a multiplicidade dos seus estratos. Mas não é privilégio do Brasil
:\ ···'
este fato. Pode-se observá-lo em outras nações, principalmente
nas periféricas. Em tais condições, o que importa é encontrar uma
base firme para explicar as disparidades de desenvolvimento entre
as regiões ou as nações. Na etapa atual da evolução do mund0 ,
em que os traços do Ocidente penetraram em todas as partes do
planeta, verifica-se. uma tendência crescente, entre todos os povos,
A REDuÇÃo SocioLóGICA
CRITI!R!OS DE AVALIAÇÃO• ••

para atingir os padrões de vida vigentes nos países líderes desta vimento, por mais elevado que seja, haverá sempre outro seguinte
civilização: os da Europa Ócidental e os Estados Unidos. É a atual superior.2
uma época de tempo histórico unificado (Jaspers) em que os Atualmente, é um critério empírico comparativo que dife-
países dominantes constituem, do ponto de vista material, o alvo rencia as comunidades, regionais ou nacionais, em desenvol-
a perseguir das regiões mais atrasadas. vidas e subdesenvolvidas. Estas são assim definidas quando se
Nestas condições, as ciências sociais são chamadas a explicar confronta a sua estrutura econômico-social com a de países que,
em que consiste o desenvolvimento, procurando mostrar o que nas condições atuais do mundo, são considerados, pelo consenso
nele é primário e o que é secundário. É da maior importância universal, os que proporcionam os mais altos níveis de vida às
a distinção destes dois aspectos. No esforço de alcançar um nível suas respectivas populações. Eis porque, nas estatísticas inter-
mais alto de existência mater.ial, as regiões e nações ditas atrasadas nacionais, os ·índices de avaliação do grau de desenvolvimento
devem ser induzidas a instalar dentro delas as condições primá- das nações são ordinariamente referidos às características dos
rias, isto é, as geradoras do desenvolvimento. Se anteriormente Estados Unidos, da Suécia, da Inglaterra, da Suíça, do Canadá
se usava o termo fase para mostrar o caráter sistemático que e ultimamente da Rússia. Considerando os aspectos estritamente
apresentam os fatos contidos nos períodos da história, interna- econômicos, procurar-se-á formular alguns critérios para a carac-
mente articulados, no intuito de caracterizar um modo verdadei- terização dos graus de desenvolvimento. A formulação que se vai
ramente sociológico de pensar, agora, uma vez suposta adqui- apresentar não é exaustiva. Apenas refere alguns elementos fun-
rida essa maneira de ver, tomar-se-.ão como referência básica de damentais que, tendo em vista os objetivos metodológicos deste
raciocínio os diferentes graus de desenvolvimemo das regiõe~ e estudo, afiguram-se satisfatórios na caracterização das estruturas
econômicas. Ademais, nenhum desses critérios vale por si, ou é
nações atuais. Esses graus podem ser também chamados de
suficiente para definir uma estrutura, cuja descrição, para ser
estruturas. Não se deseja, nesta oportunidade, discutir o conceito
objetiva, deve mobilizar uma bateria de critérios. Combinados
de estrutura. Considerar-se-á a estrutura, para efeito deste estudo,
uns com os outros, e, porranto, corrigindo-se e contrabalan-
em sua acepção econômica, isto é, definida basicamente pela
çando-se reciprocamente, permitem avaliar o grau de desen-
distribuição da força de trabalho nos setores de atividade pro- . ~.~.~. volvimento dos diferentes países.
dutiva. Uma estrutura será tanto mais elevada quanto mais força
de trabalho liberar das atividades primárias (agropecuária e ex- Do ponto de vista econômico, a promoção de uma estrutura
tração) e transferir para as atividades secundárias (industriais) e consiste no incremento da produtividade que, historicamente,
tem resultado da divisão social do trabalho e da substituição da
terciárias (serviços). O desenvolvimento é uma promoção me-
energia humana aplicada na produção pela energia mecânica.
diante a qual as regiões e nações passam de uma estrutura a outra
Considerando progresso técnico 3 o aumento da produtividade,
superior. Diz-se que uma região se encontra em desenvolvimento
seja pela utilização da energia mecânica, pode-se dizer que é esse
quando, em sua estrutura, estão surgindo os fatores genéticos de
progresso que promove a melhoria do nível de vida das popu-
outra superior. Da transformação da estrutura atual em outra
lações, isto é, o seu bem-estar social. Os povos que apresentam
superior, decorrerá a substituição dos problema:s atuais por outros
os mais elevados padrões de conforto alcançaram, mediante o
menos grosseiros ou mais refinados. Não há, no domínio da
progresso técnico, o maior domínio relativo dos determinismos
realidade histórico-social, nenhuma idade de ouro, na qual cesse
naturais e, portanto, o maior grau de desenvolvimento. Decorre
a problematicidade da vida humana. Para todo grau de desenvol-
do exposto que avaliar tal progresso é avaliar o desenvolvimento.

140 141
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA CR.IT~R.IOS DE AVA LIA ÇÃO •••

É claro que se poderia, se fosse necessário, avaliar os graus de Caracteres Alto-capitalismo Semicapitalismo Neocapitalismo
desenvolvimento pelo m'ontante do excedente de produção e o
Densidade de
modo de aplicá-lo. 4 Poderia afirmar-se então: para que haja pro-
População elevada elevada fraca
gresso técnico, em primeiro lugar, é preciso que uma parcela do
que produz a população não seja consumida; em segundo, que Consumo de
Máquinas elevado fraco médio
a parcela poupada seja invertida do modo mais racional, a fim
de aumentar o produto do trabalho coletivo. Mas a afirmação Transporte elevado fraco elevado
seria parcialmente verdadeira. No desenvolvimento há uma Industrialização elevada fraca média
causação circular: o excedente de produção e o modo de utili- Comércio
zá-lo determinam o progresso técnico, mas são também por ele Exterior elevado fraco muito elevado
determinados. A noção de progresso técnico parece mais indicada per capita
para solucionar as questões focalizadas neste escudo.
São de fato relevantes os aspectos assinalados, mas é evi-
Que critérios podem ser utilizados para distinguir os diferentes dente o caráter impressionista da classificação. Os critérios de
graus de desenvolvimento das comunidades? A questão tem sido Wagemann não permitem segura gradação dos países. Sua dis-
formulada por mais de um autor. Não há estudo· comparativo de
tinção entre neocapitalismo e semicapicalismo é precária, pois
regiões que, de um modo ou de outro, não utilize referências para
em ambos os casos subsistem setores pré-capitalistas. A prin-
avaliar em que medida elas se distanciam ou se aproximam das
cipal deficiência desta classificação consiste em dar uma idéia
condições de vida consideradas satisfatóriâs em dado momento.
por demais simplificada das condições econômicas dos países
Antes de propor os critérios cuja adoção parece mais adequada
que, na terminologia do autor, não atingiram o alto-capitalismo.
ao propósito deste escudo, serão feitos alguns comentários sobre
Em todos eles, encontram-se em interação diferentes estraros de
aqueles que têm sido aplicados por diferentes autores. É bastante
economia, o que retira a validade de enunciados muiro genéricos,
conhecida, por exemplo, a classificação dos países capitalistas
tais os que adota Wagemann. Poderiam ser mencionadas ainda
proposta pelo economista alemão Ernsc Wagemann. Num quadro
uma segunda classificação de Wagemann e outras de tipo seme-
comparativo, Wagemann considera, por assim dizer, três graus
lhante, como a de Boggs e a de Walter Eücken. 5 Mas devem ser
do capitalismo: o neocapitalismo abrangendo países que, fa-
postas de lado em vista de seu caráter econômico muito especia-
vorecidos pela importação de equipamentos e capitais, estão
lizado. Mais próximos dos objetivos deste estudo são as sugestões
ingressando no sistema capitalista; o semicapiralismo, incluindo
de Alfred Sauvy e Claude Lévy. Esses autores propõem o que
países nos quais o setor capitalista é de importância restrita, e
chamam "testes" do subdesenvolvimento. Alfred Sauvy utiliza dez
onde predomina a economia pré-capitalista; o alto-capitalismo,
"testes" assim discriminados: 6
englobando velhos e novos países que atingiram a plena forma
capitalista de produção como, entre outros, a Grã-Bretanha e os 1 - forte mortalidade (principalmente mortalidade infantil);
Estados Unidos. Wagemann exclui do capitalismo os países vida média baixa (trinta a quarenta anos);
onde predomina a economia natural (da família, d~ tribo ou da 2 - force fecundidade, próxima da fecundidade fisiológica,
aldeia), nos quais praticamente não ocorre pagamento aos fa- ou ao menos ausência de limitação de nascimento;
tores de produção dada a extrema escassez de capitais. No quadro 3 - alimentação insuficiente, inferior a 2.500 calorias e so-
a seguir, Wagemann sintetiza a sua classificação: bretudo fraca em proteínas;

142 143
\

A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA CRITtRIOS DE AVALIAÇÃO..•

4 - forte proporção de iletrados (freqüentemente em corno se defrontam. Esta é a matéria central do problema relativo aos
de 80%); · critérios comparativos das regiões. Os critérios analógicos têm
5 - torce proporção de agricultores ou pescadores; justificado raciocínio como este: os países adiantados exibem
baixas percentagens de analfabetos e reduzidas taxas de mortali-
6 - subemprego por insuficiência de meios de trabalho;
dade porque mantêm em fUncionamento escolas e serviços de
7 - inferioridade social da mulher; ausên~ia de trabalho saúde em proporções elevadas; por conseguinte, os países peri-
fora do lar; féricos devem prover-se de tais facilidades educacionais e sanitárias
8 - -trabalho de menores· a parti'-:_ de dez anos ou mesmo em análogas proporções. Ora, este raciocínio é falso. Altos níveis
mais cedo; de instrução e de saúde são, grosso modo, efeitos, frutos do de-
9 - ausência o u debilidade das classes médias; senvolvimento. As disponibilidades de recursos das regiões
IO- regime autoritário, sob diversas formas; ausência de subdesenvolvidas, sem prejuízo de cercos imperativos humanos
instituições verdadeiramente democráticas; inadiáveis, devem ser aplicadas de modo prioritário no estabele-
cimento dos fatores promocionais do desenvolvimento.
Claude Lévy não se afasta muito desta discriminação. Seus
testes parecem inspirar-se nos de Alfred Sauvy. São os seguintes: Um princípio fundamental a ser aqui formulado é o seguinte:
I ) force mortalidade e principalmente mortalidade infantil; Em determinada região, a qualidade d4s condições gerais de vie/4
2) fecundidade fisiológica no casamento; 3) higiene rudimentar; só se eleva na medie/4 que surgem e operam, na esttrutura em
4) subalimentação, carências diversas; 5) escasso consumo de que se encontra a população, os fatores promocionais da estrutura
energia;- 6) forte proporção de analfabetos; 7). forte proporÇão superior. Os "testes" são enumerados por Alfred Sauvy e Claude
de agricultores; 8) condição inferior da mulher; 9) trabalho de Lévy, sem que distingam quais os primdrios e quais os secundários.
menores; I O) debilidade das classes médias; II) vulco das · Sauvy menciona apenas um teste fUndamental, o n• 5; e Claude
sociedades (échelle des sociétes). 7 Lévy, dois, o n4 5 e o n• 7. Quando os atuais países adiantados,
no que se refere à ocupação de mão-de-obra e ao consumo per
Do ponto de vista da redução sociológica, critérios com-
capita de energia, escavam na situação em que hoje se encontram
parativos como esses (muito generalizados entre especialistas
os países periféricos, apresentavam o mesmo repertório de males
europeus e norte-americanos) conduzem a falsa compreensão
sociais, por exemplo, alta mortalidade, pequena duração média
do desenvolvimento. Tais "restes" traduzem um ponto de vista
de vida, baixo nível de instrução. É necessário, portanto, tratar
de países hegemônicos por motivos expostos mais adiante. Sem
o problema dos critérios comparativos do desenvolvimento tendo
dúvida, em linhas gerais, ao subdesenvolvimento se associam
em vista a sua essencialidade. Esse tratamento pode ser feito em
os fenômenos descritos por esses autores. Mas, na perspectiva de
diferentes níveis de generalidade. Fique, porém, mais uma vez
um país periférico, é necessário que os critérios comparativos
claro que o presente escudo é de natureza metodológica. Propõe-
permitam distinguir as causas e os resultados do desenvolvimen-
se, aqui, um método. Cada problema concreto a ser examinado
to, ou, em outras palavras, as condições geradoras do desen-
exigirá a pormenorização que lhe for adequada. Nesta oportuni-
volvimento e seus frutos ou conseqüências. A falta de consciên-
dade, permanecendo no âmbito exploratório deste trabalho,
cia desta distin~ão estimula o erro em que têm incidido as clas-
adota-se a noção de progresso técnico, tal como foi entendida,
ses dirigentes dos países periféricos e que consiste em tratar com como a referência central para a comparação das estruturas eco-
critérios analógicos os problemas econômicos e sociais com que
nômicas. Ora, pode-se avaliar o progresso técniCo e, por

144 145
A REDUÇÃO SOCIOLOGICA CRIT~RIOS DE AVALIAÇÃO•••

conseguinte, as estruturas econômicas das regiões, mediante os Percentagem da Mão-de-Obra Ocupada na


seguintes critérios: 1) distêibuição da mão-de-obra pelos ramos Agricultura em Vários Pafses
da atividade produtiva; 2) renda nacional per capita; 3) consumo %
per capita de energia; 4) urbanização; 5) produção industrial.
Estados Unidos (1950) 11,6
DistribuiÇão da mão-de-obra pelos ramos da atividade eco- Canadá (1952) 18,7
nômica.8 Esta é referência clássica para a avaliação das estruturas
Itália (1951) 34,9
econômicas dos diferentes países e regiões. O desenvolvimento
Dinamarca (1952) 19,0
implica necessariamente deslocamento de mão-de-obra do setor
Holanda (1950) 24,6
primário (agropecuária e extração) para o setor secundário (in-
Inglaterra (1952) 04,5
dústria) e o terciário (serviços). Este fenômeno é perfeitamente
Áustria (1951) 18,7
explicável. Verifica-se sempre que há desenvolvimento. Uma das
Japão (1952) 32,6
primeiras formas de divisão social do trabalho é a diferenciação
Chile (1948} 36,0
dos tipos de atividade entre o campo e a cidade. No feudo
Austrália (1950) 16,8
medieval e no latifilndio da época tardia de países periféricos, o
Nova Zelândia (I 947) 20,1
incremento da produtividade pela divisão social do trabalho induz
Brasil (I 950) 57,3
a agricultura a especializar-se e, portanto, força o campo a trans-
ferir para o meio urbano ~uitas de suas atividades produtivas. Fonte: Colin Clark, The Conditions of Economic Progress, 1957
Com a utilização econômica da energia mecânica, ou seja,·· a Renda Nacional per capita. Isoladamente, como já foi obser~
industrialização, essa transferência se intensifica. A industrializa- vado, qualquer dos critérios poderá levar a erro. Este, principal-
ção tem efeitos . positivos sobre a agricultura, impulsionando-a mente. É necessário, pois, combiná-lo com outras referências
também a elevar seu nível de produtividade. Mas a inelasticidade para que se pos~a avaliar mais adequadamente determinada
do consumo de produtos agrícolas impede que permaneçam situação. É claro que a qualidade de uma estrutura econômico-
estáveis as proporções em que se distribui a mão-de-obra pelos social se exprimirá proporcionalmente na grandeza deste índice.
ramos de atividade econômica. O progresso técnico de uma região De modo geral, os países mais desenvolvidos são aqueles que
permite que um número cada vez menor de pessoas ocupadas na asseguram alta renda per capita aos seus cidadãos. Em alguns
agricultura seja suficiente para satisfazer a demanda da população. casos concretos, porém, o enunciado não constituí regra sem
No confronto de situações internacionais e inter-regionais é, exceção. Pode acontecer, por exemplo, que a renda de uma nação
assim, utilizada com muito proveito esta referência. As dispari- seja substancialmente . derivada de um produto extrativo, como
dades de desenvolvimento entre as diversas nações e regiões se acontece com o petróleo da Venezuela. Trata-se de um produto
refletem em suas respectivas estatísticas ocupacionais. Pode-se que se encontra, dir-se-ia, pronto na natureza ou de cuja elabo-
ilustrar o exposto com os dados transcritos na página seguinte. ração não participa co~síderável número de pessoas. A renda
nacional per cápita, em tais circunstâncias, pode ser alta, mas isto
não traduz grande desenvolvimento, pois a base industrial da-
quele país é relatívameiue débil, em comparação com a de paí-
ses como o Brasil, dotado de mais sólida e diferenciada infra-
estrutura, embora de renda nacional per capita menor. Além disso,

146 147
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA CRIT~RJOS DE AVALIAÇÃO .. .

o cálculo da renda de um país nem sempre é de exatidão Os resultados dos restantes municípios foram apurados, mas
satisfatória. Nos países niais adiantados, nas condições atuais do infelizmente até a presente data não tiveram divulgação. Em alguns
mundo, a produção é quase integralmente comercializada, ou desses restantes municípios, o autoconsumo da produção alçava-
seja, entra no circuito monetário, o que permite a sua contabi- se a cerca de 70%.
lização pelos órgãos técnicos. Em tais condições, o aparelho esta-
tístico consegue registrar toda a produção e, portanto, o cálculo Renda Nacional Per Capita em Vários
da renda se aproxima bastante da exatidão. Diversamente, nas Países em US$ (1949)
regiões subdesenvolvidas encontram-se grandes contigentes de-
mográficos que praticam largamente o autoconsumo da pro- Estados Unidos 1,453
dução. Pesquisa realizada em 1952, no Brasil, em municípios Canadá 870
tipicamente rurais, registrou famílias de pequenos agricultores
Itália 235
nas quais o aucoconsumo era bastante alto. Uma idéia da varia-
Dinamarca 689
ção quantitativa do au.toconsumo propicia os informes contidos
na tabela abaixo transcrita, que se refere a apenas 7 dos 29 mu- Holanda 502
nicípios tipicamente rurais estudados pela Pesquisa Nacional de Inglaterra 773
Padrão de Vida, em 1952. Áustria 216
Japão 100
Autoconsumo da Produção em Alguns
Chile 188
Municípios Brasileiros -Ano Agrícola de 1951-52
Austrália 679
Localização do Produção do estabelecimento no ano agrícola de 1951-1952 .
Nova Zelândia 856
estabelecimento Destinado ao mercado Destinado ao cons. próprio
Brasil 112
(Município) Total Valor Cr$ o/o Valor Cr$ o/o
Fonte: W .S. Woytinsky e E. S. Woytinsky, World Population and
Bezerros 5.355 3.275 61,15 2.080 38,84
(Pernambuco) Production: Trends and Ourlook, New York, 1953
Juazeiro 37.922 31.385 82,76 6.5~7 17,23 Tal fato se verifica em todos os países de estrutura predo-
{Bahia)
minantemente primária. Dadas essas circunstâncias, é fácil com-
São Mateus 42.857 22.672 52,90 20.185 47,09
{Espírito Santo)
preender o grau de inexatidão dos cálculos da renda nacional
ltapetininga 29.140 12.260 42,07 16.880 57,92 nos países agrários. Necessariamente, subavaliam o produto
(São Paulo) nacional. Com estas ressalvas, entretanto, o índice em apreço é
Registro . 93.240 80.570 86,41 12.670 13,58 útil para efeito de comparação internacional e inter-regional. A
(São Paulo) o .
comparação dos dados existentes sob r~ a renda nacional per capita
Guaratinguetá 53.476 27.780 51,94 25.696 48,05 coloca o Brasil dentro da faixa em que naturalmente se incluem
(São Paulo)
os países de desenvolvimento econômico relativamente baixo.
Tubarão 25.890 19.740 76,24 6.150 23,75
(Sra.éatarina) Comumo de energia per capita. Esta referência é fundamental.
Nada é mais indicativo do grau de desenvolvimento el;ll que se
Fonte: Pesquisa Nacional de Padrão de Vida, 1952

148 149
A REDUÇÃO SOC IOLÓGICA CRITgRIOS DE A VALIAÇÃO ...

encontra uma nação ou região do _q ue o seu consumo per capita Consumo Per Capita de Energia Equivalente
de energia. O desenvolvimento é tanto maior quanto mais o em Carvão (Libras) (1948)
homem consegue pôr a seu serviço as forças naturais.9 Pela uti-
Estados Unidos 13.310
lização destas, diminui-se o quantum de força humana palicada
Canadá 10.740
no trabalho pesado. É evidente que as populações que não se
Dinamarca 3.940
habilitaram a uma alta utilização da energia mecânica contam
com poucas disponibilidades para produzir os bens de que ne- Holanda 4.930
cessitam. Para liberar-se da servidão às necessidades elementares, Itália 1.370
as populações têm de recorrer a processos que a_u mentem a taxa Inglaterra 9.600
de produtividade do trabalho, entre as quais a divisão racional Áustria 2.310
das tarefas, a utilização racional de recursos e, nas condições atuais Japão 2.340
do mundo, notadamente o emprego crescente de energia me- Chile 3.790
câniça. A luta dos povos pela melhoria de suas condições de Austrália 5.440
vida é, em grande parte, uma luta pela utilização de recursos
Nova Zelândia 4.510
energéticos, petróleo, eletricidade, carvão, energia nuclear. É o
Brasil 680
alto potencial energético dos países qJ.ais adiantados que pos-
sibilita seus níveis de civilização e não o contrário. Trata-se de Fonte: W.S. Woytinsky e E.S. Woytinsky, World Popularion and
um dos fatos primários do desenvolvimento. As disparidades Production: Trend and Oudook, New York, 1953
atuais de civilização entre os países se exprimem, assim, como
disparidades de seus respectivos consum~s per capita de ener- Urbanização. Esta é também uma referência relevante para a
gia. Indiretamente, pode ser avaliado o potencial energético dos caracterização das desigualdades de desenvolvimento entre os
diversos países pelo nível de produtividade expresso em seus diferentes países. É certo que vulgarmente o fato urbano é mal-
índices de mão-de-obra, de renda nacional e urbanização. Cabe compreendido. Tende-se a apreciá-lo em termos de julgamento
observar que nas regiões e nos países subdesenvolvidos é muito de valor, extrapolando para a realidade urbana pontos de vista
elevada a cota da energia muscular. Os dados a seguir transcritos que não lhe correspondem. A urbanização, realmente, subverte
mostram a variação do consumo per capita de energia em dife- estilos de vida típicos e habituais em contextos de base agrária.
rentes países, avaliado em libras de carvão. Mas cria outros estilos de vida. A urbanização só pode parecer
um mal àqueles que não admitem a variação histórica das mo-
dalidades de existência humana. Do ponto de vista técnico-
sociológico, porém, é um fenômeno historicamente positivo, nas
condições do mundo, até agora dominantes. O desenvolvimento
de uma comunidade nacional determina a migração de pessoas
do campo para as cidades e, portanto, a formação e a expansão
de centros urbanos. Os economistas diriam que as indústrias e
os serviços não podem ser instalados senão quando garantidas
condições mínimas de economias externas. E quem diz economias

150 151
A REouÇAo SociOLóGICA
CRIT~R IOS DE AVALIAÇAO ...

externas diz concentração de coisas e pessoas. A validade desse


chamou a industrialização de processo civilizatório. Com efeito,
raciocínio é demonstrada pela evolução demográfica dos Estados
do ponto de vista sociológico, é uma forma superior de equilfbrio
Unidos, como, de resto, também de qualquer outro país que
entre a sociedade e a natureza. Em seu estado pré-industrial, as
tenha passado por idêntica transformação econômica. Com efei-
comunidades estão muito expostas aos impactos do meio natural
to, em 1790 a população urbana nos Estados Unidos representava
e assim suas condições de vida, quando não se verificam no nível
apenas 5,1% da população total. Esta percentagem sobe para 6%,
vegetativo, mal se elevam acima desse nível. Pela industrialização,
em 1800; para 7,3%, em 1810; para 8,8% em 1830; para 10,8%
libertam-se as comunidades dessa dependência e se tornam mais
em 1840; para 15,3%, em 1850; para 19;8%, em 1860; para
ricas e variadas as suas modalidades de existência. A indústria é
25,7%, em 1870; para 28,2%, em 1880; para 35,4%, em 1890;
um modo de fazer as coisas e, conseqüentemente, de ser, superior
para 39,7%, em 1900; para 45,7%, em 1910; para 51,2%, em
ao dominante na fase agrária, em que o homem se encontra em
1920; para 56,2%, em 1930; para 56,5%, em 1940; para 57,4%,
estado quase natural. Note-se que ao falar em industrialização
em 1950. O estado atual da urbanização nos vários países pode
não se está desprezando a agricultura, a qual só eleva sua pro-
ser apreciado no seguinte quadro:
dutividade quando, pelo aumento de suas inversões, se integra
no sistema capitalista de produção. Não tem, pois, sentido a
Percentagem da População Urbana em Diferentes Países polaridade que habitualmente se costuma afirmar entre agri-
%
cultura e indústria.
Quando um país entra em fase de industrialização, os efeitos
Estados Unidos (1950) 57
desta sobre a agricultura são positivos do ponto de vista econô-
Canadá (1951) 62 mico e sociológico. E esses benefícios se traduzem em maior
Itália (1936) 45 rentabilidade do trabalho agrícola, diminuição dos custos da
Dinamarca (1950) 67 produção e melhoria geral das condições de vida dos agricultores,
Holanda (1947) 55 não só pelo aumento de seu poder aquisitivo como pela diferen-
Inglaterra (1951) 82 ciação de seus hábitos de consumo. Os países mais desenvolvidos
. :.:-..
Áustria (1951) 50 são aqueles em que o modo industrial de produção e de existência
Japão (1950) 38 mais se difundem. Em sentido lato, o industrialismo é um estilo
Chile (1940) 52 de existência, caracterizado por especial relação entre o homem
Austrália (1947) e a natureza. Nas nações pouco industriaiizadas a relação entre
69
o homem e o meio natural é predominantemente direta, isto é,
Nova Zelândia (1951) 61
ainda não mediatizada pela tecnologia. O nível de industrializa-
Brasil (1950) 36 ção, em sentido lato, não é pois dado apenas pelos caracteres do
setor industrial, em acepção restrita. É dado pelo caráter geral,
Fonce: Anuário Demográfico das Nações Unidas, 1952.
altamente produtivo, da força de trabalho disponível. É, por
Produção Industrial. Decorre dos critérios anteriores que a exemplo, a avançada industrialização que permite elevada produ-
produção industrial é também referência essencial para caracte- tividade da agricultura e o c!esenvolvimento do setor terciário da
rização das estruturas econômicas. Em trabalho anterior, o autor economia. Nos informes abaixo discriminados, pode-se verificar
esta observação. De modo geral, nos países m ais desenvolvidos,
152
153
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA CRIT~RIOS DE AVALIAÇÃO ...

tende a decrescer percentu al!llente a cota da agricultura na renda enconcrar jamais seu remate definitivo em um estado ideal
nacional. perfeito da humanidade; uma sociedade perfeita, um "Estado"
perfeito são coisas que só podem existir na imaginação; na
realidade acontece o contrário: todos os Estados históricos q ue
Alguns Caracteres da Agricultura e se sucedem não são mais q ue outras tantas fases transitórias
da Indústria em Vários Países no processo infi nito de desenvolvimento da sociedade hu-
mana, do inferior ao superior. Todas as fases são necessárias
Agcicultura Indústria
e, portanto, legítimas, para a época e para as cond ições que
Palses %da renda o/o da mão- o/o da renda o/o da mão- as enged ram; mas t odas caducam e perdem sua razão de ser,
nacional de-obra nacional de-obra ao surgirem condições novas e superiores, que vão amadu-
recendo pouco a pouco em seu próprio seio; têm que ceder
Estados 8,4 11 ,6 32,0 29,2
a vez a outra fase mais alta, para a q ual tam bém chegará, em
Unidos (1950) seu dia, a hora de caducar e perecer." Cf. ENGELS. Feuerbach
Canadá (1952) 16,2 18,7 30,3 27,4 and the End of Classical German Philosophy, incluído Marx
Itália (1951) 32,1 34,9 32,9 35,0 e Engels, Selected Works, 2 vols, 2• vol. p. 328.

Dinamarca (I 952) 25,9 19,0 27,9 17,5 (3) Como subsídio a uma conceituação de progresso técnico, vide
FouRASTI~, Jean. Le Grand espoir du XX si'ecle. Paris, 1950.
Holanda (1950) 17,1 24,6 32,5 24,6
Do mesmo autor também: Méchanisme et bien-être. Paris,
Inglaterra (1952) 5,7 4,5 39,2 39,5 1951.
Áustria (1951) ' 18,2 18,7 42,4 36,0 (4) Sobre este assunto, vide BARAN, Paul A. The Political Economy
Japão (1952) 25,4 32,6 21,8 21,8 ofGrowth. New York, 1957.
Chile (1948)<'> 18,0 36,0 33,0 21 ,0 (5) Vide MARCHAL, André. Méthode Scientifique et Science
Austrália (1950) 25,5 16,8 22,2 28,0
Économique. Vo!. li, p. 192-6. Paris, 1955:
(6) Cf. SAUVY, A!fred. Théorie générale de la popttlation. 2 vols.,
Nova Zelândia 17,1 20,0 24,0 23,6
v. I, 1956, p. 24 1-2.
(1947)
(U )
(7) Cf. L~VY, C laude. Les criteres du sous-développement, incluso
Brasil (1950) 29,0 57,3 22,1 13,2
em BAI..ANDIER, G. (organizador), Le "Tiers Monde". Sous-
Fonte: Collin Clark, The Conditions os Econornic Progress, I 957. développement et Développement. Paris, 1956.
(*) Woytinsky, op. cit. (8) Sobre o uso deste critério, vide CI..ARK, Colin. The Conditions
of Economics Progress. Londres, 1951.
(**) Fundação Getúlio Vargas. Núcleo da Renda Nacional.
(9) Sobre este assunto, vide WHITE, Leslie. The Science ofCulture.
New York, 1949.
Notas
(I) RANGEL, Inácio. Dualidade básica da economia brasileira. Rio
de Janeiro: ISEB, 1958.
(2) Este pensamento é expresso por Engels nos seguintes termos:
"A história, do mesmo modo que o conhecimento, não pode

154 155
/
/'

AP~NDICE I

·:
I
!
/

~ -
-...;

Situação Atual da Sociologia

O objetivo do presente estudo é contribuir para uma revisão


do esquema da divisão das Ciências Sociais atualmente em vigor.
É cada vez mais perceptível que as disciplinas academicamente
definidas como Economia, Sociologia, Antropologia, Ciência
Política, Psicologia Social etc. são diferenciações do saber cien-
tífico decorrentes de imperativos de um período histórico senão
(
já ultrapassado, em vias de ser superado. Corresponde aquele
esquema à fase em que uma minoria de .empresários capitalistas
europeus constituíam não apenas o centro dominante do Oci-
dente como de todo mundo. As Ciências Sociais, na forma que
assumiram nos meios acadêmicos oficiais, são, em grande parte,
uma ideologia dessa dominação, na medida em que os seus
enunciados gerais estão afetados do que· se pode chamar d e
ilusão etnocênrrica ou ptolomaica e, ainda, na medida em que
dificultam a compreensão global do processo histórico-social e
distraem a atenção dos estudiosos para aspectos fragmentários
desse processo.
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA AP~NOICE I - S I TUAÇÃO ATUAL •• . .

As ctencias não são imunes ao condicionamento histórico. Detalhe desta tarefa revisionista é a avaliação do que tem
Elas, também, e principalmente as sociais, variam historicamence, sido considerado no Ocidente como ciência sociológica. É a
e rem de ser examinadas à luz da reciprocidade das perspectivas. sociologia, na forma em que foi concebida por Augusto Comre
As ciências constituem, em cada período, um aspecto inte.grado e na modalidade universitária que posteriormente assumiu, a
numa totalidade de sentido. São tributárias da cosmovisão de culminação de um esforço de elaboração de uma teoria científica
cada período histórico e, conseqüentemente, não se podem pre- que se vinha procurando desde o século XVIII, ou apenas ~m
tender permanentemente válidas. Se é certo que a humanidade episódio desta pesquisa? Vamos suste~tar, neste estudo, precisa-
está entrando num novo período histórico, disto deve decorrer mente, a segunda alternativa. O problema de uma teoria social
uma problematização dos quadros cradicionais do saber cientí- científica foi colocado no século XVIII pelos economistas in-
fico. Com efeito, estamos vivendo numa época em que o Oci- gleses e pelos "filósofos" franceses; a "Sociologia" representa uma
dence não tem mais o monopólio do protagonismo ecumênico. distorção, um desvio daquele projeto. A tensão interna das so-
Até há bem pouco tempo, tinha o Ocidente o privilégio de ver ciedades ocidentais e a presente conjuntura mundial nos per-
os povos não ocidentais sem ser vistos por esses últimos e tal mitem ver o.s pressupostos ideológicos da "sociologia" e das ou-
tras disciplinas· correlatas e, assim, impõem a necessidade de
condição propiciava o alcance universal de seus pontos de vista.
formulação de uma nova teoria social científica. Existem já alguns
Hoje tais pomos de vista revelam-se precários. Novos centros de
materiais esparsos para a constituição dessa teoria que, em larga
domU1ação se encontram em emergência. Povos até há pouco
margem, terá de retomar o fio de uma tradição de pensamento
marginais na História libertam-se de sua antiga servidão e ne-
europeu anterior a Augusto Com te. Estamos agora em condições
cessariamente uma nova imagem do mundo surge da tensão
de passar diretamente ao rema.
universal que promovem.
O pensar sociológico não é uma inovação essencial da so-
A crise do saber em nosso tempo é derivada, em parte,
ciedade européia. Tem, ao conrrário, uma velha tradição. Desde
da dilaceração interna que se registra nas sociedades nacionais
os mais remotos tempos, podemos dizer, com Orhmar Spann, que
mediante as quais se exprimia a expansividade do Ocidence.
sociologia constitui uma parte essencial de toda filosofia, e tam-
Dencro dessas sociedades já se esboçou a reação revisionista
bém, acrescentemos, da teoria política, da religião, da magia, do
contra o esquema de divisão das Ciências Sociais elaborado na
costume. A partir de diferentes formas de saber ao seu alcance,
fase historicamente positiva do capitalismo, sobretudo entre a
o pensar sociológiCo surgiu sempre em toda cultura, nos períodos
segunda metade do século XVIII e a primeira do século XIX. Os críticos, isto é, nos períodos em que se desfaz o consenso coletivo,
promotores da reação têm sido intelectuais que assumiram uma em que os costumes são postos em questão e perdem a sua efi-
posição crítica em face da ordem capitalista e descobriram o cácia social; nos períodos em que a· social aflora à consciência do
caráter histórico de suas leis. Por outro lado, decorre a referida homem. O momenro sociológico é eminentemente este, em que
crise da formação de recentes quadros nos países subdesenvolvi- o social, tornando-se problemático, afiara à esfera da consciên-
dos, dotados de uma consciência crítica que os habilita a tirar cia humana. Mas a consciência é, ela também, constituída pela
partido dos novos horizontes que lhes dá a sua condição, rica de realidade histórico-social e por isto o saber sociológico aparece
virtuaÜdades. Ao assumirem o ponto de vista dessas virtualidades sempre sob a forma do tipo de saber dominante em cada cultura.
aqueles quadros percebem o papel criador que hoje lhes cabe na A sociologia possível numa cultura primitiva terá de ser revestida
revisão do parrimônio científico da humanidade. de magia; na cultura hindu e chinesa terá de ser envolvida pela

160 161
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA AP~NDICE I - SITUAÇÃO ATUAL• . •

religião; no mundo grego, pela filosofia; no mundo ocidental Naturalmente temos empregado aqui os termos sociol<Jgia e so-
tardio, terá de aspirar a ser uma física social. ciológico na acepção lata, não estritamente comtista. Em que
Já houve que.!Il visse analogias entre a obra de Platão e Augusto consiste, porém, a especificidade da Sociologia? ·
Comte 1 Ambos viveram momentos sociológicos, por excelência, Em primeiro lugar consiste em que o saber sociológico se
momentos de "indisciplina de costumes". Ambos tomaram cons- tornou independente de outras formas de saber. Os enunciados
ciência do "social" e procuraram restaurar, em novas bases, um propriamente sociológicos, no passado, tinham caráter incidental
consenso coletivo em crise. Platão vive numa Grécia politicamen- e fragmentário . Em nenhum período da História decorrida havia
te dilâcerada. Depois da vitória sobre Xerxes, se inicia ali um se registrado uma situação que necessitasse ser examinada em
período de guerras civis, nas quais estão de lados opostos o povo termos propriamente sociológicos, distintos da forma de pensar
e a aristocracia, os dóricos e os jônicos. Contra os restauradores ocasionalmente dominante. Há, portanto, uma história específica
da ordem, que conseguem por. algum tempo restabelecer os da disciplina sociológica, que não pode ser feita à maneira de uma
governos aristocráticos, se colocam as camadas populares, uma exposição cronológica que apresente em fila indiana, idéias e
espécie de "terceiro estado", e os sofistas, de modo geral, expri- observações de diferentes autores desde a antigüidade aos nos-
mem, em suas preleções, o ponto de vista revolucionário. Sócrates sos dias. Interessa, é certo, conhecer as observações sociológicas
é um restaurador e sua especulação filosófica tem um objetivo contidas nas obras e nos trabalhos de homens como Gautama,
prático, tal o de encontrar o fundamento moral de nova ordem Confúcio, Platão, Protágoras, Santo Tomás de Aquino, mas ape-
pública. Platão teria compreendido a impossibilidade de retornar nas tanto quanto este conhecimento habilite a compreender
ao antigo regime e tenta uma síntese criadora de tendências os fatores genéticos do pensar sociológico. Aquelas observações
opostas, numa conciliação entre a convenção e a tradição, entre não se incluem, entretanto, no âmbito propriamente histórico
o "i~dividualismo democrático absoluto" de que Protágoras é da sociologia.
representativo e o "tradicionalismo não menos absoluto da Escola Em segundo lugar, a autonomização do pensar sociológico só
Pitagórica". A arre política- escreve Platão em O Político- poderia verificar-se quando o seu objeto se configurasse histori-
é daquelas que tomam como regra a medida, a conveniência, a camente, na modalidade que adiante se descreverá. Neste ponto
oportunidade, a utilidade e justamente o meio colocado à igual é preciso utilizar uma definição operacional de sociedade. Há
distância dos contrários. A luta de conrrários é constitutiva de sociedade e sociedade. A palavra sociedade se aplica a toda e
outros momentos sociológicos e sua conjuração, através de uma qualquer espécie de convivência humana. Nesta acepção, a socie-
síntese criadora, foi a obra de homens como Gamama na Índia dade existe há alguns milênios e sua origem se situa na pré-
do século V antes de Cristo, Confúcio na China do século VI história. Mas a palavra sociedade pode ser empregada de modo
antes de. Cristo, Santo Tomás no século XIII de nossa· história. operacional, como o fazem alguns sociólogos alemães, entre eles
Estes antecedentes mostram, etn última análise, que o pensar principalmente Lórenz von Stein, Fr. Tõnnies e Hans Freyer, isto
sociológico é ordinariamente suscitado pela crise social. To- é, como a esfera da associação humana independente do Estado.
davia, em nenhum daqueles momentos,_ o pensar sociológico É sobretudo Haris Freyer quem atualmente sublinha este sen-
tomou consciência sistemática de si mesmo. Devemos tirar todo tido da palavra. 2 A sociologia, para Hans Freyer, é ela também
o partido desta observação para compreender a especificidade um fenômeno histórico, no sentido de que só com o nascimento
da Sociologia na forma histórica em que ela surge na Europa. da classe burguesa se faz necessária e possível. Ora, é precisamente

162 163
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA APllNOICE I - SITUAÇÃO ATUAL •.•

à sociedade burguesa que se aplica o conceito operacional de não são predeterminadas nem pelo nascimento, nem pelo costu-
sociedade, pois ela assinai; uma época em que o Estado perde me, nem pela norma jurídica. Estas estruturas sociais, de faro,
a capacidade de condicionar os vínculos sociais, deixa de ser o foram implantadas pelas revoluções burguesas. Por isso o objeto
exclusivo protagonista do acontecer histórico e se torna sistemá- da sociologia - a sociedade - só aparece em data relativamente
tica a idéia de que sua legitimidade se fundamenta no consenso recente. A palavra sociedade, no sentido aqui delimitado, se refere
coletivo. É fácil reconhecer, neste modo de ver, a incidência do a um tipo específico de convivência em que as relações entre as
pensamento hegeliano. O que se entende aqui por sociedade é pessoas são eminentemente competitivas, relações de mercado.
o domínio da liberdade tal como descrita por Hegel na sua famosa Em 1842, Lorenz von Srein utiliza, pela primeira vez na
frase: "O Oriente conheceu e até hoje conhece que só um (isto Alemanha, a palavra ."sociedade" para designar uma esfera de
é, o déspota) é livre. No mundo grego e romano algum são movimentos autônomos e independentes do Estado. O conceito
livres; no mundo germânico todos sãolivre!'. O plural "livres" de sociedade - diz Bluntschli- rem sua base natural nos hábitos
e o coletivo "todos" sublinham o fenômeno novo na época de e idéias do terceiro estado. 3
Hegel - a sociedade. Este faro importante - a rutura dos laços Lorenz von Stein, desenvolvendo uma sugestão de Hegel,
que prendiam a sociedade ao Estado - foi claramente perce- descobriu o substrato econômico da "sociedade". O que a cons-
bido por Hegel. titui é o fato de que as relações entre os indivíduos e entre os
É certo que este ·fenômeno - a dissociação entre o estado e grupos deixaram de ser presididas pelo critério do nascimento
a sociedade - não se verificou somente na cultura ocidental em ··'' consagrado juridicamente, e passaram a ser ·objetivas. Para L.
seu período tardio. Esta dissolução é perceptível em períodos von Stein
determinados de outras culturas. A argumentação de Tn!itschke a sociedade é a ordem dos homens, determinada pela re-
contra a sociologia se funda, precisamente, no fato d~ que aquela partição dos bens pelo trabalho entre eles. O lugar que cada
disso.ciação é recorrente, aparece e desaparece, na História. Para um tem no sistema das relações sociais de dependência se
ele, apenas nos períodos de decadência é que o estado se torna
lhe faz consciente como interesse. O interesse é, portanto,
o principio motor da sociedad~.
i:
; .
joguete de movimentos sociais autônomos, tais situações termi- iI.i
·Assim entendida, a sociedade só poderia constituir-se onde
nando sempre revertendo ao predomínio da idéia política.
surgisse o capir~ismo. Foi a transformação econômica por que '
Treitschke fazia esta ad~ertência para negar a possibilidade de
,, passou a Europa, no decorrer da revolução industrial, que mo-
uma ciência social independente da teoria polftica. Pretendia que
dificou os termos do dinamismo histórico até então prevalescente.
aquele dualismo de seu tempo era provisório e que o Estado
Lorenz von Stein foi, provavelmente, um dos primeiros que
poderia reconverrer a sociedade ao seu domínio. Mas a querela
compreenderam, em toda plenitude, as conseqüências no do-
entre teoria polfrica e sociologia não nos interessa aqui. O que
mínio do conhecimento cientifico, da nova modalidade de
é pertinente observar é que, embora a dissociação entre o Estado
convivência social resultante das revoluções burguesas. Suas duas
e a Sociedade tenha se esboçado em diferentes períodos da História
obras principais publicadas em 1842 e 1851 já procuram registrar
decorrida - , só no Ocidente se tornou permanente e por isso
as novas características da sociedade européia, características cujo
aparece como normal, desde o momento em que, pela primeira
aparecimento é, por assim dizer, testemunhado por von Stein, o
Vf:Z na História, se constituem as classes sociais. As sociedades de
qual percebe o que elas significam como fatores de promoção de
classe são aquelas em que a posição e a função dos indivíduos
nova maneira de pensar os fenômenos sociais. Diz Stein:

164 165
A REouçAo SociOLóGICA API!.NDICE I - SITUAÇÃO ATUAL...

Nossa atualidade começou a observar uma nova série de "l'étude des !ois que Dieu a si manifestement gravées dans la
fenômenos ·que anteriormente não tinham lugar na vida
sociéte humaine, du jour de sa création". 6
ordinária, nem na ciênCia, não porque não existissem, mas
porque não se via ou porque não se considerava dotados de A Economia é a primeira forma que assume a ciência da
autonomia; mas agora se revelou um mundo de elementos, sociedade. São, de fato, os economistas que primeiro descobrem
de ordenações, de conexões n~cessárias ... de que se há de que existe uma ordem de fenômenos sociais que não está sujeita
ocupar o conhecimento humano e ao qual se tem designado
com o velho nome de sociedade.
às leis do Estado e desta descoberta resulta a constituição da
ciência econômica. A teoria social científica teria de ser, portanto,
A descrição da nova realidade social se torna mais clara ainda
inicialmente, uma teoria econômica, economia política. Kant já
neste trecho de von Stein: "Não cabe dúvida alguma de que para
tinha percebido que os economistas queriam fazer de sua ciência
a parte mais importante da Europa, a revolução e a reforma
uma verdadeira física social. São, de faro, os economistas que,
política chegaram ao fim; seu lugar foi ocupado pelo social que
primeiro, descobrem que existe uma ordem de fenômenos sociais
ultrapassa todos os movimentos dos povos com sua terrível vio-
que não está sujeita às leis do Estado e desta descoberta resulta
lência e graves incertezas; quem fechar os olhos será devorado e
a constituição da ciência econômica. Esta era, porém, a forma
aniquilado pelo movimento; o único meio de dominá-lo é o
~m estado nascente da ciência da sociedade. O que os fundadores
conhecimento claro e sereno das forças operantes e do caminho
que sobre a natureza superior das coisas segue o movimento". 4 da economia aspiravam fundar era um tipo de saber que explicasse
a nova realidade de modo global. Os estudos realizados pelos
A nova realidade européia teria, necessariamente, de se expri-
filósofos e economistas do século XVIII tinham um objetivo
mir, em primeiro lugar, no domínio econômico. A sociedade
sintético por excelência. Os fundadores da Economia, observa
apareceu inicialmente sob forma econômica. Como observa M.
AdolfLõwe, 8 vincularam a pesquisa econômica à ciência política,
Garcia Pelayo:
ao direito, à psicologia e à história. Adam Smith, na Universi-
Desde o século XVII, se começa na Inglaterra a desen-
dade de Glasgow, ensinava teologia natural, ética, direito na-
volver a tese de que em face do EStado há uma society,
concretamente, uma commercial society que não é criação do cional e internacional e policy, que abrangia o que hoje enten-
Direito, mas da natureza ou da ordem moral; que esta so- demos por ciência política e economia. Sir W. Jevons tinha em
ciedade não só tem norma própria como legalidade em Manchesrer uma cadeira que incluía lógica, filosofia moral e
sentido natural e, por conseguinte, mais poderosa que a economia política. Os economistas são contemporâneos da crise
norma jurldica; que a base desta sociedade são as relações
que, principalmente na Inglaterra e na França, iniciou na Eu-
econômicas; que ela não organiza de cima, mas emerge
de baixo.s ropa a dissociação entre o Estado e a Sociedade: Sob a forma
Na França, o fisiocrata Le Trosne, no século XVIII, con- de uma "ordem" regida por leis da natureza, é na consciência
siderava o &tado como coisa artificial, un état de chois et de deles que aflora o social. É significativo que Quesnay, o autor
convention. 6 Dupont de Nemours, também fisiocrata, em obra de de T ableau Economique, tenha sido um dos principais inte-
1768, emitiu o juízo de que a autoridade do soberano não está grantes da seita dos "filósofos economistas" e do grupo que re-
constituída para fazer as leis, posto que elas estão dadas, de modo digiu a Enciclopédia.9
que as ordenações chamadas positivas não devem ser mais que A Economia, para o dr. Quesnay, é uma doutrina da "ordem
atos declaratórios das leis essenciais da ordem social. Na mesma natural". Como os enciclopedistas, em geral, ele não estava longe
época, Mercier de la Riviere concebia a ciência do governo como de afirmar a "unidade dos conhecimentos humanos" e de aceitar

I66 I67
A REouçAo SOC!OLOG!CA
APt!.NDlCE I - SrTuAçAo ATUAL. ..

"a idéia de um determinismo universal em que tudo está in- daquela teoria. Apesar das diferentes orientações dos economistas
cluído". A idéia de ter úma teoria social científica, de caráter e filósofos, podemos afirmar que elas exibem, pelo menos três
global, estava delineada na França no século XVIII pelos "filó- pontos comuns. Em primeiro lugar, eles descobriram que o
sofos" e "enciclopedistas". Holbach distingue um "sistema social" processo básico da sociedade européia em sua época era o que
dotado de coerência lógica comparável ao "sistema de natureza" estava gerando as novas formas de produção e, por isso, as suas
que os trabalhos dos físicos subentendiam. E D'Alembert se idéias e doutrinas caucionavam as aspirações das classes então
refere a uma "ciência do homem", como posteriormente o faz em emergência: a burguesia, a classe média e o incipiente pro-
Saint-Simon. letariado. Em segundo lugar, o pensamento daqueles homens se
Todo o plano da Enciclopédia estava presidido por um pro- declarava em compromisso com a prática social, era delibera-
pósito fundamental que D'Alembert enuncia em seu famoso damente interferente, instrumento de uma ação social orientada
Discurso Preliminar, tal o de, nas palavras de René Hubert, por um propósito de reforma e reconstrução da sociedade. Em
"estabelecer uma ligação lógica, un ordre et un enchainement, terceiro lugar, utilizavam a razão como instrumento de crítica do
entre todos os aspectos do conhecimento humano", ou seja, de sistema social vigente, ao qual negavam o direito de persistir
formular os "elementos de uma teoria sociológica coerente". porque fundado em preconceitos ou em justificações que lhes
O que mais tarde se chamará de "sociologia" representará um pareciam retrógradas.
desvio desta teoria. É necessário atentar para a gravidade desta Seria ocioso procurar demonstrar que os economistas ti-
afirmação. Ela é de decisiva importância neste estudo. Não se pode nham em mira, com suas teorias, desembaraçar as novas rela-
comiderar a contribuição de Augusto Comte como o coroamento ções de produção dos obstáculos institucionais ainda sobre-
de uma série de esforços para a criação de uma nova ciência. viventes em seu tempo. Esta observação é verdadeiramente cu-
Comparada com os ideais dos economistas e dos filósofos do · ria!. Em Quesnay, por exemplo, esta intenção é clara. O Tableau
século XVIII, ela é um desvio. O sucesso da palavra sociologia Economique não é apenas uma teoria do produto líquido, é uma
pode ter dado a impressão de que o projeto do século XVIII afinal fundamentação da livre concorrência. A idéia de uma harmonia
se concretizava; mas ver-se-á que isro é ilusório. A sociologia, nos universal entre os interesses das classes sociais é elevada por
moldes em que a colocou Augusto Comte, não pode ser aceita Quesnay à categoria de uma verdadeira lei natural. Como Harvey
corno a ciência da sociedade que entreviam os "economistas" e descobrira as leis da circulação do sangue no corpo humano,
os "filósofos", antes é um detalhe, um episódio na evolução do Quesnay um século depois pretende demol).strar a circulação
conhecimento científico do social. Para que se retome aquele dos bens econômicos no corpo social. E em seu Dialogue sur !e
projeto original ou se terá de ampliar o campo do que se enrende commerce ( 1766), diz o fisiocrata:
hoje por sociologia, ou se terá de proceder a um esforço de síntese, La marche de ce commerce entre les différenres classes
de que resulta uma nova teoria social científica. er ses condirions essemielles ne sonr point hyporhériques.
Quiconque voudra y réfléchir, verra qu'ils sont fidélement
A fim de demonstrar a tese deste estudo, parece necessário copiés d'aprés la natttre (o grifo é nosso). 10
proceder inicialmente à caracterização dos aspectos essenciais da
Era essa uma das principais reivindicações da burguesia ascen-
teoria social pré-comtiana. Em seguida, mostraremos em que
dente na França de Quesnay. Análogos compromissos entre as
escala o comtismo significa um bloqueamento das tendências
idéias e a classe burguesa em ascensão podem ser facilmente
mais positivas dos pensadores que contribuíram para a formação identificados nas doutrinas dos economistas clássicos Adam

168 169
A REDUÇÃO SOCIO LÓGI CA AP~NDICE I - S ITUAÇÃO ATUAL...

Smith, Malrhus, Ricardo, Stuarr-Mill, Jean-Bapriste Say. É, porâneo Augusto Comte e seus continuadores se afastam deste
porém, parricularmente significativo que não foram apenas os tipo de globalismo.
economistas que tiveram consciência do positivo caráter histórico Outro aspecto saliente da teoria social pré-comriana é a sua
das formas de produção em estado nascente. Saint-Simon leva as vinculação com a prática social. O conceito de praxis só vai
idéias dos "filósofos" às úlrimas conseqüências. Na fase tardia de adquirir relevo filosófico em Hegel e principalmente em Marx,
sua vida, descobriu que na sociedade européia de seu tempo eram aliás, pensadores influenciados pelo pensamento do século XVIII.
dominantes os fatores econômicos e que, omitindo-os, não seria Mas as doutrinas dos "filósofos" já implicavam a idéia de que a
possível compreender os movimentos sociais. Na indústria, escre- praxis é o fundamento da elaboração teórica. É o que se verifica
veu, se baseiam, em última análise, tod.as as energias da sociedade. nos sistemas de Helvetius, Holbach e do inspirador do movi-
Mais taxativamente, afirma ainda, antecipando Marx e Engels: mento dos "ideólogos", Destutt de Tracy, rodos influenciados
por Condillac, para o qual as faculdades humanas são sensações
a forma de governo não é senão uma forma e a constituição
da prioridade é o fundo, pois é esta constituição que verda- transformadas. Dizer o que pensar é modalidade do sentir, é
deiramente serve de base ao edifício. pouco menos do que reconhecer que o homem é produto da
atividade social. Foram conseqüentes, portanto, os "filósofos" e
Saint-Simon vive a transição entre o século XVIII e o XIX e
como os "filósofos", viu que a contradição fundamental da so~
"ideólogos" quando preconizavam a necessidade de reformas
políticas e pedagógicas como meios indiretos de modificar o
cieda~e francesa era a que existia entre a nobreza e a burguesia.
homem. Nossas idéias, dizia Helvetius em De I' Esprit, são
Parecra-lhe, porranto, que a emancipação desta última classe
conseqüências necessárias das sociedades em que vivemos. Em
acarretaria a emancipação geral da sociedade, a! inclusive ~'la da~e
sua obra De l'Homme afirmava: "a educação pode tudo". Por sua
la plus pauvre e.t la plus nombreuse". Em última análise, pensava
vez, D estutt de Tracy concebe a ciência das idéias, no pressu-
Saint-Simon que o processo-chave da sociedade era a indus- .
posto de que elas não são inatas, mas derivam sempre de sen-
rrialização. A teoria social dos "filósofos" se prolonga ainda,
sações. Se a razão estava dominada por preconceitos, sua liber-
adquirindo forma sistemática, nos trabalhos de Proudhon, que,
tação, para os "filósofos" e "ideólogos", só poderia ser obtida
mais nitidamente do que Saint-Simon, sublinha o substrato
mediante a reconstrução do Estado e da sociedade. Deste modo
econômico do progresso histórico-social. Diz ele, "As leis da
as teorias deles assumiam significado militante. Perfeitamente
Economia Política são as leis da História". Dele também é esta
integrado nesta orientação, disse Saint-Simon:
fórmula: "a Filosofia é a Algebra da sociedade e a Economia é
A política, a moral e a filosofia, em vez de terminar em
a aplicação desta Algebra". Concebe a economia política como contemplação ociosa separada da prática, atingiram à sua
uma teoria social geral, pois afirm a q ue a verdadeira função, tal a criar a felicidade social. Em uma
palavra, elas estão aptas para perceber que a liberdade não
Economia política encerrada desde A. Smith no circulo
é mais uma abstração, nem a sociedade uma ficção. E
restrito da produção, da circulação, do crédito (...) abrang~
Proudhon, na linha daquela tradição, preconizava a neces-
~inda a organização do ateli~r. do gov~rno, a legiJiaçáo, a
sidade de "acordo entre a razão e a prática social".
mstmçáo pziblica, a constituição da fomllia, a ger2ncia do
globo: ~ta é a chav~ da história, a uoria da ord~m. tt Além disto, escreveu que "o trabalho é a força plástica
da sociedade, a idéia-tipo que determina as diversas fases de
. A idéia de Proudhon era a de uma ciência global na qual se seu crescimento em conseqüência, todo seu organismo tanto
mcorporava a Economia Política. Ver-se-á como o seu contem- interno, quanto externo.

170 17 1
A REouÇÃo SocroLOGtCA
I AP~ND!CE 1 - SITUAÇÃO' ATUAL.••

Marx dará o passo decisivo na exploração sistemática dessa com a natureza e o progresso da razão. O princípio da percepção
idéia. · sensível como base de verificação era usado pelos "filósofos" para
Os enciclopedistas, como mais amplamente os iluministas,' em protestar contra o sistema absolutista prevalecente. Afirmavam
geral eram racionalistas, pretendiam descobrir e formular as leis que desde que os sentidos são órgãos da verdade, e desde que a
que presidem ao curso dos fatos históricos e sociais. Para eles satisfação dos sentidos é a motivação da ação humana, a promo-
~..~~ - ção da felicidade material do homem é o próprio bem que o
é insuficiente permanecer satisfeito com a simples exis-
tência de fatos como se apresentam na moral, nos costumes, 1 governo e a sociedade desejam colimar. A forma de governo e
na estrutura política, na conduta social, nos códigos de lei de sociedade existentes contrariava esse objetivo, de maneira
e artigos da fé religiosa; óbvia; em última análise, este era o "fato" ao qual os positivistas
a origem desses fatos "deve ser descoberta e sua validade provada, /_., da ilustração faziam apelo. Eles pretendiam não uma ciência bem
pelos critérios da razão, de outra maneira não podendo ser acei- ordenada, mas uma prática política e social, permanecendo
tos" (Cassirer). Nessa discussão objetiva dos fatos históricos e racionalistas no genuíno sentido de que tentavam a prática
sociais, serviam-se já dos livros que circulavam na época contendo humana pelo critério de uma verdade transcendente à ordem
informes etnográficos sobre povos primitivos. Naturalmente,.esse social estabelecida; o critério representado por um ordenamento
racionalismo era uma poderosa arma utilizada para minar os social que não existia como um fato, mas como um fim. A
fundamentos da sociedade antiga, que consagrava privilégios da "verdade" que eles viam, uma sociedade em que indivíduos livres
aristocracia e do clero, em detrimento das cias$es em ascensão. pudessem usar suas aptidões e satisfazer suas necessidades, não
Ao preconizarem a necessidade de torna,r racionais as instituições, era derivada de nenhum fato ou fatos existentes, mas resultava
justificavam os propósitos de reconitrução sociãl, de substituir a de uma análise filosófica da situação histórica, que exibia um
ordem vigente por outra. Viam, portanto, a organização social sistema político e social opressivo. A Ilustração afirmava que a
como algo historicamente precário, como organização que deveria razão pode governar o mundo e que os homens podem alterar
transformar-se e dar lugar a outra superior, isto é, racional. A as formas absolutas da vida, se eles agem livremente na base de
razão afigurava-se-lhes um instrumento de crítica sistemática da suas capacidades e de seus conhecimentos." 12
realidade social. A teoria social do século XVIII era, pois, uma As características da teoria social do século XVIII a habilita-
teoria negativa, enquanto negava racionalidade ao estabelecido, vam a tornar-se um instrumento intelectual, arma eficiente a ser
ao dado, ao aparente, assumindo assim o ponto de vista do vir utilizada por aquelas camadas que na sociedade européia re-
a ser, do futuro, um ponto de vista essencialmente dinâmico. presentavam as tendências ascendentes. Com esta teoria, a classe
Habitualmente se considera como positivista o pensamento burguesa procurava fazer desaparecer todos os impedimentos·
dos "filósofos" do século XVIII. Mas aquele positivismo, como institucionais que se antepunham aos seus interesses.
esclarece Marcuse, era militante e revolucionário. Diz Marcuse: Este fato é muito importante. Existe entre a teoria social e a
Seu apelo aos faros importava en;ão num ataque direto classe burguesa do século XVIII um perfeito acordo. Em outras
às concepções religiosas e metafísicas que constitulam o palavras: os suportes históricos que davam a validade àquela teo-
·suporte ideológico do ancitn rlgim(. ria se resumiam na posição periférica que ocupavam na sociedade
O ponto de vista do positivismo em relação à História ~ra européia, a burguesia, a classe média e o incipiente proletariado.
então desenvolvido como prova positiva de que o direito do ho- Ora, após a Revolução de 1789, a sociedade francesa se orga-
mem para alterar a organização política.. e social estava de acordo nizara conforme um esquema de convivência de classes, em que

172 173
A REDUÇÃO SOCIOLOGICA AP~NOICE I - S!TUAÇ'.ÁO ATUAL.. o

a burguesia, aliada a conçigentes da antiga nobreza, passava a longe de poder comtituir a sociedade, o homem, por sua
ocupar uma posição dominante. Na periferia da sociedade fica: intervenção, não pode senão impedir que a sociedade se
constitua ou, para falar mais exatamente, não pode senão
vam a classe média e a proletária. Para completar o quadro ha
retardar o êxito dos esforços que ela realiza para atingir à sua
que mencionar também a vigorosa ação restauradora que se constituição natural."
registra na sociedade francesa, empreendida pela ~ristocracia
É nesta tradição de pensamento que se integra Augusto Comte,
remanescente, que pretendia o retorno ao regime antenor a 1789.
embora, à diferença de De Maistre e De Bonald, não seja pro-
Nestas circunscancias, a teoria social do século XVIII perde priamente um restaurador, mas um conservador. Comte tenta
os suportes históricos anteriores. A burguesia agora diminui o seu conciliar a ordem e o progresso, tal como convinham à nova classe
ímpeto revolucionário e vê a possibilidáde de da~ satisfação ~s s.uas dominante francesa dá primeira metade do século XIX. Ele muda
necessidades pela realização de medidas gradauvas que nao Im- o acento da teoria social do século XVIII. Esta era negativa. A
plicassem grandes abalos. As tendências revolucionárias são teoria de Com te é positiva. Isto é, preconiza que os fatos sociais
representadas, com oscilações, pela classe média, e, ordina:iamen- e históricos sejam considerados como dados objetivos. Para ele,
te, pela classe proletária, que decide, por exemplo, de movimentos a socied.ade deve ser vista sob a espécie de uma ordem objetiva,
subversivos como os que se verificam em 1830 (queda de Carlos transcendente ao indivíduo, não ·como teatro de tensões e anta-
X), em 1848 (queda de Luís Felipe), em 1871 (A Comuna) .. Os gonismos.
contigentes da antiga aristocracia, procurando conter os ef~Itos
Sob o nome de Socíologia, Augusto Comte cria uma disciplina
da Revolução Francesa, passam a idealizar o Velho Regime,
nova que não pode ser considerada como a amadurecimento da
estigmatizando como heréticas as tendências r~volucionárias~e teoria social do século XVIII.
preconizando·, com veemência, o que lhes parecia a restauraçao .
da ordem. Os interesses desses contigentes se exprimem não ape- Por quê? Em primeiro lugar porque a "sociologia" "reifica",
nas na aliança que promoveu a queda de Napoleão em 1815; no ou "coisifica" a sociedade, apresentando-a como algo transcen-
Congresso de Viena, no chamado Sistema Metternich, na Santa dente ao indivíduo. As relações sociais, para a "sociologia", são
Aliança, e na Quíntupla Aliança. Exprimem-se também, na e~fera antes relações necessárias entre coisas do que entre indivíduos.
ideológica, através de teorias que encontram em Joseph de Marstre Abstrai-se assim, a mediação humana e se atribui objetividade
ao que é produto desta mediação. Não compete, assim, ao ob-
e De Bonald os seus mais legítimos representantes.
servador, "nem admirar, nem condenar os fatos políticos, mas
Estes dois autores sistematizaram os princípios teóricos de
considerá-los ... como simples objetos de observação". Comte fula
refutação da teoria social revolucionária do século XVIII. Negam
numa dinâmica social, mas esta sua noção supõe simplesmente
que a úzão possa ser um critério de organização social e afirmam
uma transformação de ordem, gradativa, lenta, contínua, ver-
a anterioridade da sociedade em relação ao indivíduo. A razão,
dadeiro processo natural (Progrés naturel) que se realiza de ma-
dizia De Maistre, nada ac~escenta à felicidade dos Estados ou
'. neira transcendente ao indivíduo. "Le progrés esc !e dévelopment
dos indivíduos. Estes dois autores são apologistas da ordem à qual
de l'ordre."
atribuem um "substrato ontológico" (Bunschvicg). De Bonald
Confrontemos o sistema de Comte com a teoria social que
escrevra:
tentaram elaborar os seus predecessorés.
eu acredito ser possível demonstrar que o homem não pode
dar uma contribuição à ·sociedade da mesma maneira que Augusto Comce, como observa Jean Lacroix 14 "proscreveu
não pode dar peso aos corpos, ou extensão à:matéria, e que, radicalmente a economia polltica". M ais do que isto, pretendeu

174 175
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA AP~NDICE I - SITUAÇÃO ATUAL.••

ter criado uma ciência da sociedade em cujo horizonte o econô- Jean Lacroix, por uma "promoção do espírito científico". A reor-
mico era relegado a um plano secundário. Enquanto homens ganização final - diz Comte - deve operar-se primeiramente
como Saint-Simon e Proudhon, continuadores do pensamento do nas idéias e depois passar aos costumes e, em último lugar, às
século XVIII, chegaram à nítida percepção de que não se podia · instituições.
entender o processo histórico-social europeu sem que se consi- Constitui hoje lugar comum afirmar-se que o comtismo é uma
derasse o seu substrato econômico, Augusto Com te tomou posição sociologia da ordem. Com efeito, para Comte a sociedade é algo
hostil à própria economia política. Aparentemente essa hostili- objetivado, um cosmos transcendente e superior ao indivíduo. No
dade se justificava, pois era editada porque a Economia Política pensamento do século XVIII, o progresso era um pretexto para
lhe parecia uma metafísica, uma vez que tentava isolar o econô- propor a reforma social. Comte esvazia o conteúdo reivindicativo
mico dos "diversos elementos sociais". "A análise econômica e do progresso e o subordina à ordem. Não vê oposição entre os
industrial da sociedade - dizia Com te - não pode ser realizada dois termos, antes os considera complementares. Vê o progresso
positivamente, abstração feita de sua análise intelectual, moral e como movimento de transformação contínua e gradativa da ordem
política, · seja no passado, seja no presente." Esta exigência no e julga nefasta a pretensão liberal que atribui um papel criador
sentido de dar à teoria social um caráter onicompreensivo não à atividade coletiva do homem. Aproxima-se, portanto, de De
deve induzir a equívoco. Maistre e De Bonald e disto não faz reserva. No 34 volume do
A "sociologia" não supera a Economia no sentido em que hoje
Sistema de polltica positiva escreveu:
buscamos esta superação, isto é, conservando o que dela resu!ta Tem-se desconhecido a escola imortal que surgiu no
começo do século XIX sob a nobre presidência de De
como verificação objetiva e incorporando este resultado numa Maisrre, dignamente completada por Bonald com a assistên-
teoria científica mais compreensiva. Ao contrário, a "sociologia" cia de Chateaubriand.
afirma de palavra a necessidade de inter-relacionar os "diversos Pode-se afirmar que Augusto Comte identificou a sociedade
elementos sociais", mas de fato contribui para privilegiar o moral com o que hoje se chama a sociedade produzida e, por isso, não
e o intelectual, em detrimento dos outros aspectos. Para Comte, reconheceu o papel da praxis, e da mediação humana. A teoria
as questões sociais são em última análise questões morais. Apesar social do século XVIII exprimia um ponto de vista dinimico, o
das declarações de Comte contra toda forma de estudo isolado da burguesia em ascensão. Comte é, porém, o sociólogo de uma
dos elementos sociais, a "sociologia" é, por excelência, uma ci- burguesía recém-instalada no poder e está interessado em deter
,.
ência do social separado do econômico, e mais ainda se tornará as tendências revolucionárias, estas agora corporificadas nas
com os sociólogos de carreira universitária, após a morte do autor reivindicações de uma nova classe, o proletariado. Seu ponto de
do Curso de Filosofia Positiva. Em nome de certo voluntarismo, vista eminentemente estático e conservador lhe impedia de ver
que superestima os fatores intelectuais na causalidade histórico- a sociedade em ato ou em produçáo, 15 cujo sujeito era o proleta-
social, Augusto Comte nega a validade à economia política, riado. A ordem social é sempre relativa e a ocultação de s.u a
disciplina que lhe parecia votar "a indústria moderna à sua própria precariedade histórica só interessa à classe eventualmente domi-
espontaneidade". Comte reserva à ação dos fatores intelectuais nante. A idealização da ordem e do consenso coletivo, tal como
um papel maior do que o da indústria. Para ele, a questão social o faz Augusto Comte em sua época, o desvinculava da prática
se resolveria não pela transformação objetiva da sociedade, mas social, entendida esta como a atividade da camada majoritária da
pelo progresso do saber, ou mais exatamente, como observa sociedade, excluída do restrito âmbito do poder.

176 177
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA .AP/;NDICE I - SITUAÇÃO ATUAL • • •

Conseqüente com o seu ponto de vista conservador, Comte Entregue à sua própria índole, a "sociologia" isola o "social"
mudou o sinal do positivismo. No século XVIII, como se disse artificialmente dos outros aspectos da sociedade e assim contri-
anteriormente, o positivismo era uma filosofia negativa. Os "fi- bui para que se perca de vista a compenetração concreta destes
lósofos" se utilizavam da análise racional para negar a legitimidade aspectos. Na medida em que a "Sociologia" ganha adeptos e se
da ordem vigente. A razão, para eles, era um instrumento de torna atividade universitária institucionalizada, estes caracteres
crítica, mediante o qual justificavam o projeto de transformação se acentuam. Durkheim leva, por exemplo, ao exagero a coisi-
da sociedade, vivido pelas novas classes. Seu ponto de vista era ficação social, como outros "sociólogos", mantendo-se fiel ao pro-
o da liberdade. Comte pretende justamente conjurar a atitude pósito de restringir a "Sociologia" ao estudo do "social", caem
crítica e passa a exaltar o "consenso"., á "conciliação", a "harmo- no formalismo estéril.
nia", a "coerência mental", a "coesão social" e "unidade" contra Nestas condições, a "Sociologia" é um desvio que sofre o
o que denomina a "invasão anarquista", a "normal insurreição do projeto, esboçado no século XVIII, de criação de uma ciência
espírito contra o coração". A tônica de sua doutrina é posta. na nova, global, onicompreensiva da sociedade e do homem.
idéia de submissão, "resignação", "dever", "obediência". Diz ele: É certo que, em parte, Comte é continuador do positivismo
"Agora é ao espírito do conjunto que cabe exclusivamente presidir do século XVIII. Como observa Freyer, desde D'Alembert, es-
à reorganização social"'6. O sistema de Comte é uma defesa do tava já traçada em seus aspectos fundamentais a série escalonada
social, que lhe parece ser a essência do espírito positivo, contra das ciências positivas: matemática, astronomia, física, química,
o individual. O que vai caracterizar a "sociologia" é exatamente biologia e o que na época de Diderot se chamava Física Social,
uma certa atitude quietista diante do social, a regra metódica de Moral Positiva, Política Positiva, His~ória Positiva e que Comte
submissão ao dado, ao posto, o realismo que considera o fato vem a chamar de "Sociologia". Mas observe-se que os filósofos
social como coisa. Este realismo, entretanto, é um imobilismo do século XVIII com aquelas expressões designavam uma teo-
travestido de ciência, como de resto, o será toda corrente da ria global da sociedade. Comte não fala em outra ciência social
sociologia que se pauta nesta regra metódica. Em estudo sobre além da sociologia, mas fazendo desta uma ciência do "social",
Comte, Jean Lacroix assinalou esta característica fundamental do exclusivamente, deixou aberto o caminho para outras disciplinas
positivismo. Diz Lacroix: particulares.
Comte deseja fazer da inteligência o espelho da cons- Depois da morte de Proudhon, praticamente se desfaz, na
ciência. A fórmula tradicionalista da submissão ao objeto é França, a tradição da teoria social originada no século XVIII. Ou
igualmente comtiana: a lógica é subordinação ao objeto- . melhor, naquele país essa tradição continua a existir implicita-
natureza como a moral é a subordinação ao objeto-sociedade.
mente na ação de pollticos ou revolucionários militantes, porém
Social se opõe essencialmente a pessoal e as pal.avras pessoal
não encontra mais homens de espírito sistemático como Saint-
e personalidade .têm sempre um sentido pejorativo em
Comte. Todo erro, como toda falta, provêm da predominân- Simon e Proudhon, interessados na formulação, no plano das
cia do sujeito sobre o objeto; toda verdade, comO)fl).çlo bem, idéias, da "nova ciência" projetada.
da predominância do objeto sobre o sujeito. 17 Ao invés disco, a palavra "Sociologia", inventada por Comte
Eis como o antigo racionalismo positivista sofre uma mudança se difunde rapidamente. Depois de sua morte, em 1857, aparece
de cento e oitenta graus em seu significado: de revolucionário na França, como em outros países europeus, uma forte tendência
passa a ser conservador. universitária no sentido de consagrar a Sociologia. As classes

178 179
A REouÇAo SoCIOLóG ICA APaN DICE l - S ITUAÇÃO ATUAL •••

dominantes desse período estão naturalmente interessadas na sociólogos universitários na França, tem sido ultimamente objeto
difusão da "Sociologia" p'ois que, desta maneira, elas, de um lado, de cursos e teses nesse país. É o caso do curso .de Gurvitch na
divertem as preocupações pelos problemas sociais para o plano Sorbonne, "Les classes sociales de Karl Marx à nos jours", e das
teórico; de outro lado, sob a camuflagem da ciência, obtém in- reses de Roger Garaudi e Pierre Naville, defendidas na Univer-
diretamente cobertura ideológica. sidade de Paris. De resto, se algo caracteriza a sociologia francesa
N estas condições, a Sociologia pôde encontrar, na França, hoje, é a sua cada vez maior propensão para tornar-se uma teoria

l,
ambiente propício para adq uirir grande prestígio. Émile dinâmica. Nesta direção se inclinam os estudos que ali podem
Durkheim (1858-1917), 41 anos depois da morte de Comte, em ser considerados mais representativos, tais como os de Georges
1898, inicia a publicação de uma importante revista, L 'Année Friedmann, Georges Balandier, Edgar Morin, Lucien Goldmann,
Sociologique, e reúne em torno dela uma brilhante equipe Maurice Merleau-Ponty, Henrí Léfebvre e outros.
de estudiosos. Antes de terminar o século XIX, Durkheim já A tradição da teoria social do século XVIII, interrompida na
í Fr;mça, no século passado, encontrou, entretanto, continuadores
publicara algumas obras, De La Division du travail social (1893), i
Les Régles de la méthode sociologique (1895), Le Suicide. Etude 1 na Alemanha. Todo idealismo alemão com Karit, Fichte, Schelling
! e Hegel pode ser considerado como um esforço de tradução
sociologique (1897), que lhe vão permitir ser o primeiro soció-
logo oficial da França. D esde 1906, é professor de Sociologia e filosófica do liberalismo burguês. Condições históricas pecu-
Pedagogia na Sorbonne. liares da Alemanha tornam isto possível. A Alemanha, ainda no
A Sociologia na França, na época de Durkheim e posterior- século XIX, apresentava um panorama social semelhante ao da
mente, constitui um quadro acadêm ico importante no qual se França no século XVIII. Ela é um dos últimos países europeus
integram vários intelectuais provenientes da classe média aco- a integrar-se na revolução comercial e industrial, assim que, em
modada e se caracteriza predominantemente pelo seu caráter períodos avançados do século passado, ainda ostentava sobrevi-
conservador. vências medievais.
Em nossos dias, o declínio do capitalismo nacional e a A teoria social do século XVIII se transforma, na centúria
pauperização das classes médias na França estão suscitando uma seguinte, na Alemanha, em dialética hegeliana a qual traduz as
reorientação do trabalho sociológico naquele país. Assiste-se, hoje, aspirações da classe média e da burguesia em formação, desejosas,
nesse país, ao aparecimento de correntes de pensamento que estão como observa Augusto Cornu, 18 de libertar-se do regime feudal
recolocando a teoria social nos termos pré-comtianos, embora I ainda preponderante, mas impotentes para subvertê-lo como já
sem desprezar a imensa contribuição científica de profissionais ·j o havia feito a burguesia francesa e, assim, obrigadas a acomodar-
dos quadros universitários da sociologia, principalmente de ins- se às sobrevivências do passado.
piração durkheimiana. É significativo que o professor Georges A dialética hegeliana, como a teoria do século XVIII, era
G urvitch tenha ministrado em 1952-1953, na Sorbonne, um globalista e racionalista. De fato, para Hegel, o mundo histórico
curso sobre Saint-Simon e P. J. Proudhori, sob o título de Os J é uma totalidade que se desenvolve de modo dialético, sem que
Fundadores da Sociologia Francesa Contemporânea e ainda aí se possam cindir os diferentes aspectos, econômico, político,
que, a despeito de sua posição oficial eminente na Universidade I social, psicológico. Por outro lado, para Hegel, é à luz da razão
de Paris, venha ultimamente contribuindo para a valorização que se tem de discutir a validade dos objetos no mundo. histó-
acadêmica da obra de Karl Marx a quem considera um "príncipe
I rico. Assume assim caráter eminentemente negativo a dialética ·
l hegeliana. Escreve Hegel, em Ciência da légica:
dos sociólogos". O tema das classes sociais, antes omitido pelos

180 181
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA
AP~ND! CE 1 - SITUA ÇÃO ATUAL...

A única coisa necessária para realizar o progresso cien-


tífico e reconhecer a sua necessidade é a compreensão desce Há cerca de cento e vime anos, Augusto Comte criou a palavra
princípio 16gico segundo o qual o que se contradiz não se sociologia. O êxito da inovação parece ter impedido a muitos de
reduz a zero, ao nada abstrato, mas à negação de seu con- ver que o sistema positivista não ultimava o processo de formação
teúdo particular. Uma cal negação não sendo negação pura da teoria social científica. Em certo sentido, esse processo não se
e simples, mas negação de um elemento determinado do
ultimará nunca, pois se trata de um processo histórico. Mas se
real, tem um caráter determinado e, encerrando enquanto
resultado, essencialmente aquilo de que ela resulta, rem um não há esperança de um aprisionamento definitivo da realidade
conteúdo determinado. Ela constitui um novo conceito, mas social, num sistema, há sempre, em cada época, um máximo de
um conceito mais elevado e mais rico que o precedente, consciência possível da realidade, que se pode atingir. A doutrina
porque se enriqueceu de sua negação e do conrdrio.•• de Comte está longe de representar este máximo de consciência
Todavia, a doutrina hegeliana, apesar de seu caráter negativo, possível da realidade histórico-social na época do filósofo. Ela é
encerrava uma contradição que se torna transparente, sobretudo um ponto de vista entre outros, alguns dos quais abrangendo um
depois da morte do filósofo. É que ela, considerando como m~ior horizonte. Muito mais pr6ximo do limite da consciência
definitivo o Estado Prussiano, não dava resposta à necessidade possível da sua época estava a doutrina de Saint-Simon. Escolheu
de resolver, no mundo concreto, as contradições que começam Saim-Simon a perspectiva que o habilitou a ver mais objeti-
a tomar vulto na Alemanha depois de 1830. vamente do que Augusto Comte a sociedade em que viveu. A
A burguesia alemã depois de 1830 entra numa fase de rápido doutrina de Saim-Simon, mais vinculada à prática social do que
desenvolvimento. Os estabelecimentos industriais se multiplic;am a de Comte, tem por isso mesmo grande atualidade. Outros
na década de 1830-1840. A União Aduaneira se forma em 1834. autores, além de Saim-Simon, simbolizam contribuições para a
As primeiras estradas de ferro aparecem a partir de 1835. As novas formação da ciência da realidade histórico-social, tais como Karl
Marx, Friedrich Nietzsche, Wilhelm Dilthey. Augusto Comte é
condições econômicas e sociais promovem a reorientação da
um episódio, relevante é certo, mas um episódio, um capítulo da
doutrina de Hegel no sentido do realismo ou da eliminação de
seu idealismo. história do conhecimento sociológico em que tomaram parte
aquelas figuras citadas e ainda outras.
É através da esquerda hegeliana que se empreende esse esforço.
Na presente época está em vias de configurar-se nova concep-
Não podemos aqui expor em que consiste o movimento da
ção do que seja a ciência da sociedade. Ainda não é possível
esquerda hegeliana. Apenas, a fim de demonstrar até onde vai o
enfeixá-la numa doutrina sistemática. Ela está se formando, por
fio da tradição hegeliana observemos que os vultos desta corrente
assim dizer, graças a um esforço de crítica de algumas correntes
são D. F. Strauss (1808-1874), Bruno Bauer (1809-1822), L.
de pensamento que vêm do século passado e que são, principal-
Feuerbach (1804-1877), Moses Hess (1812-1875), Karl Marx
mente, a dialética, a sociologia do conhecimento, o historicismo
(1818-1883), e Fr. Engels (1820-1895).
e o culturalismo.
Para completar o quadro da ciência social na Alemanha,
Para concluir o presente estudo, parece oportuno fixar alguns
observamos· que aí também surge uma corrente acadêmica, pontos do nosso pensamento. Tais são os seguintes:
equivalente à de Durkheim na França. Seus vultos mais signi-
1) as ciências, principalmente as ciências sociais, se formam
ficativos são F. Tonnies (1855-1936), G. Simmel (1858-1918)
e se transformam historicamente e jamais ocorre um momento
e Max Webei' (1864-1920).
em que possam ser consideradas definitivamente estabelecidas;

182
183
AP~NOICE I - SITUAÇÃO ATUAL...
A REOUÇÁO SOCIOLÓGICA

(9) Em vários trabalhos, no campo da história das idéias, A.


2) o atual esquema d~ divisão das ciências sociais, constituído
Cuvillier tem assinalado o valor sociológico de Quesnay e
no século XIX, está obsoleto e carece de ser superado na base de
outros enciclopedistas. Vide especialmente CUVILLIER.
um esforço de integração de disciplinas particulares.; . "Sociologia de la Connaissance et ldéologie Économique".
3) os economistas e os "filósofos" do século XVIII iniciara~ In: Cahiers Inumationaux de Sociologie, v. VI, 1951.
um esforço de elaboração de uma teoria científica da realidade (10) Vide BARRE, R., op. cit. p. 35.
social que ainda hoje não atingiu a fase de culminação; (11) Sobre e revalorização da obra de Saint-Simon e Proudhon,
4) a "Sociologia", na forma em que a colocou Augusto Comte, e sua atualidade, vide GURVITCH, Georges. Les Fondateurs
é um desvio da evolução da teoria social do século XVIII e seu de la sociologie contemporaine, 2 fasclculos. Curso
êxito universitário se explica fundamentalmente em virtude de seu mimeografado pelo Centro de Documentação Universitária.
sentido mais conservador do que revolucionário; Paris, 1955.
(12) MARcliSE, Herbert. Reason and Revolution. Hegel and the
5) na presente época, está em vias de formar-se nova teoria
Rise o/Social Theory. p. 341-342. New York, 1941.
científica da realidade social. Para sua elaboração contribuem,
(13) Vide BRUNSCHV!CG, Léon. Le Progrés de la conscience
em grande parte, correntes de pensamentos oriundas do século
dans la philosophie occidentale. Tomo li. p. 487. Paris, 1953.
passado, a dialética, a sociologia do conhecimento, o historicismo 1' (14) Vide LACRO!X, Jean. La Socíologie d'Auguste Comte. p. 26.
e o culruralismo.
Paris, 1956.
(1958)
(15) As categorias de sociedade produzida e sociedade em ato ou
em produção têm sido desenvolvidas por Gurvitch.
Notas
(16) Sobre o significado conservador do pensamento de Comte,
(I) Vide LASBAX, Emille. La Cité humaine. Esquisse d'une consulte LACROIX, Jean. op. cit.
sociologique dialéctique. Tomo L Paris, 1927.
(17) Vide LACROIX, op. cit. p. 51.
(2) Vide FREYER, Hans. lntroducción a la sociologia. Madrid,
(18) Vide CORNU, Augusre. Karl Marx et la pensée moderm:.
1945. Também consulte La Sociologia, cíencía de la realidad
Contribution à l'écude de la formation du marxisme. Paris,
Buenos Aires, 1944.
1948.
(3) Sobre a história do conceito da "sociedade" vide HELLER
(19) Citado por CORNU, A., op. cit. p. 53-54.
Hermann. Teoria da de/ Estado. México-Buenos Aires, 1947:
(4) T rechos de Stein, citados por Manuel Garcia Pelayo, "La
Teoria de la Sociedad en Lorenz von Scein". In: Revista de
Estudos Politicos. Madrid, Ano IX, n. 47, p. 44-45.
(5) Idem, p. 48.
(6) Idem, p. 48.
(7) Vide !l~RE, Raymond. iconomie Politique. Tomo I. Paris,
p. 34~35. . (.
"·!
(8) Vide LOW, Adolf. Economia e sociologia. Rio de Janeiro,
1956.

184 185
- - - -- - -- ·-- --··-···-··· ··-··-·- -- - - - -- -

AP~NDICE II

.liÍ
.

v'~.· .:~=·
.,:
.~ :1
.: ;
Considerações sobre
a Redução Sociológica
Benedito Nunes

O professor Guerreiro Ramos afirma em seu livro, A Redução


sociológica, há pouco publicado pelo ISEB, que existe, atualmente,
uma consciência crítica, como "estado de espíri.to generalizado",
--~--~··.'
refletindo as condições objetivas do desenvolvimento da socie-
dade brasileira, que sai hoje de sua antiga posição, dependente
ou reflexa, para conquistar uma personalidade histórica.
Os fatores do desenvolvimento do país, como a industriali-
zação, vêm determinando profundas transformações sócioeco-
nômicas, que repercutem no povo, e que o levam a tomar uma
atitude crítica e ativa, de participação nos acontecimentos, como
se o povo, daqui por diante, começasse a fazer e a dirigir a sua
própria história.
É essa atitude de participação no "novo sentido da história
do país" que o professor Guerreiro Ramos transporta para o
campo das Ciências Sociais, onde ela deverá inspirar um método
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA AP€NDICE li - CONSIDERAÇÕES SOBRE..•

adequado de pesquisa e de teorização sociológicas, que tenha por momento, as relações entre o homem e o mundo produzem
pressuposto o conhecimênto nas condições acuais da sociedade vivências, que exprimem o sentido das coisas e dos aconteci-
brasileira. mentos. "Dessa maneira - escreve Dilthey - surgem, a cada
À assimilação literal e passiva dos produtos científicos instante, interpretações da realidade: as concepções do mundo"
importados ter-se-á de opor a assimilação crítica desses pro- (Weltanschauungen). 1
dutos. Por isso propõe-se aqui o termo de redução sociológica A concepção do mundo não é um simples produto intelec~
para designar o procedimento metódico, que procura tornar
tua!. Elabora-se com a vida, à custa de suas contingências e con-
sistemática a assimilação crítica.
tradições, determinando, quando aparece, a vigência temporal de
O sociólogo deverá repensar, d<; acordo com as circuns-
relações teleológicas que configuram o pensamento e a sensibi-
tâncias que caracterizam a realidade brasileira em fase de desen-
lidade de uma época. Ela define, por isso, um estágio da expe-
volvimento, as categorias elaboradas pelas Ciências Sociais, e
riência humana. A experiência humana ou, para falarmos como
fazer o rebatimento crítico dessas categorias, do plano puramente Dilrhey, a experiência da vida, não é apenas ilustrativa. Ela é
teórico que têm ocupado, para o de nossa existência como povo, significativa, porque se origina da vida, que possui, além de
que vive um momento significativo de sua História. A cons- uma dimensão individual, outra dimensão que é histórica. "A
ciência crítica, que se torna receptiva às vivências do meio finalidade subjacente e imanente nos indivíduos expressa-se, na
sócio-histórico, e que adota uma atitude metódica para inter- história, como desenvolvimento." 2
pretá-la, é a própria redução sociológica, que o ensaísta define,
.O~ess.o.r_G_~~:.reiro Rª-ffiQL3.P.roveitª-o~o de u_niv~~a~
descreve, sistematiza e fundamenta.
!idade dessa doutrina para uma com~e.!!§i9__!!_l!Í.fr9dQr.'!.. cl_as
Limit~mo-nos, nestas notas, a comentar os fundamentos, a ~ências do desenvolvimento social e histórico do Brasil.
estudar a natureza conceptual, e a calcular o alcance propriamente . Essedesenvolviffier{(~, conduzido por fatores objetivos, alte.rando
filosófico da redução. A nosso ver, as conseqüências filosóficas as circunstâncias ambientais culturais, da infra à superestrl!tura,
do método propugnado pelo professor Guerreiro Ramos garan- PE~;i~~ir;L ~m . nov~ ~lstema d~ .. ~elaçõe; ;~ci~i~, - e<:on?.:nic~~ e
tem, por si só, à obra desse sociólogo, uma posição altamente políticas. Tais relaçõesacham-se carregadas desentido, pois que,
significativa no panorama da cultura brasileira. o
-segundo di:i autor de A Redução sociológica, a realidade social,
"não é uma congérie, um conjunto desconexo de fatos". Os fatos
II
· da realidade social, .acrescenta ele, descrevendo o método de
Dois fundamentos teóricos, de igual importância; asseguram red~ção, "fazem parte, necessariamente, de conexões de sentido,
a validade do princípio de redução. O primeiro é a·razíio h#túrica .estão referidos uns aos .Ol!tros por UIJ1 vínculo de significação". 3
de Dilthey que, reformulada, veio dar ~ razão sociológica; o se- A fase atual da vida brasileira, corresponderiam, pois, certas
gundo é a idéia de mundo, tal como se encontra, hoje, na filosofia conexões teleológicas, de sentido, que cumpre ao sociólogo pes-
de Heidegger, depois de uma elaboração demorada, que princi- quisar e recolher, num esforço de interpretação teórica, neces-
piou quando o métoqo fenomenológico já estava ultimado, no sário à solução prática dos problemas de toda uma comunidade. ·
período das Meditações Cartesianas de Husserl. Assim fazer:tdo, chegará a captar as vivências culturais e a perceber,
A razão sociológica procede, sem dúvida, da razão histórica, no fluxo do processo histórico, uma finalidade imanente, a pró-
que, segundo Dilthey, constitui uma finalidade subjacente, pria razão histórica, que Dilthey concebeu como força anímica,
anímica ou vital de todo processo histórico. Em determinado plasmadora e propulsiva. A razão sociológica, defendida por

190 191
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA APe.NOICE l i - CONSIOERAÇÓES SOBRE...

Guerreiro Ramos, é a mesma razão histórica, sem os seus fun- III


damentos vitalistas primitivos, compreendida num sentido
A idéia de mundo, que vamos encontrar na filosofia de
estruturador, dinâmico e até mesmo dialético, de acordo com
Heidegger, é o segundo pressuposto teórico importante da redu-
outra linha de pensamento, que é a de Hegel e Marx.
ção. Para melhor compreensão do modo como surgiu e se impôs
Há, cambém, uma razão sociol6gica, isco é, uma refe-
essa idéia, temos que recorrer à gênese da atitude fenomenológica
rência básica, a partir da qual tudo o que acontece em deter-
minado momento de uma sociedade adquire· ó seu exato na obra de Husserl, mostrando, em seguida, o desdobramento que
sentido.4 foi sofrendo.
A razão sociológica, como se vê, é .estruturadora. Não se trata A redução é conseqüência da atitude fenomenológica deter-
de uma entidade abstrata, mas da forma global, da totalidade dos minada pela epoke. Com a suspensão da realidade natural, epoke,
fatos inter-relacionados que compõem um dado contexto. Por conquistamos, diz Husserl, aquele domínio amplo que Descartes
isso é que ela se fundamenta numa espécie de "lógica material" não quis ou não pôde explorar: o domínio da consciência e de
imanente à sociedade, e só é concebível em correspondência suas vivências, que aparecem com objetividade e que, para o
estrita com um "âmbito em que os indivíduos e os objetos se fenomenólogo, devem ser consideradas assim como aparecem. O
encontram em complicada e infinita trama de referência". 5 transcurso das vivências oferece-nos os fenômenos por si mesmos,
Compreende-se, então, porque a redução deve ser pers- em seu puro acontecer, já descomprometidos com a percepção
pectivista, e porque os seus fundamentos são coletivos e não natural das coisas, posta entre parênteses, mas não demitida.
individuais. O comportamento adequado diante dos fenômenos não é
O perspectivismo de Ortega reconhece que "o sentido de um nem crítico, nem teórico. As vivências se apresentam. Os seus
objeto jamais se dá desligado de um contexto determinado".6 Esse conteúdos têm objetividade própria, intencional, e são apreen-
contexto é a sociedade como situação objetiva, em que o soció- didos pela reflexão intuitiva e, depois, descritos. Finalmente, por
logo se acha enraizado, e onde os acontecimentos adquirem meio de sucessivas descrições, pode-se chegar ao núcleo essen-
sentido pelas suas conexões naturais, dentro da totalidade que cial dos fenômenos, desengastado da acidencalidade de suas
integram. A razão sociológica será, nesse caso, a significação manifestações.
predominante, que permite articular os fatos entre si, e exprimir A intuição está no princípio, no meio e no fim do processo
com toda objetividade possível, essas mesmas significações. Tra- de conhecimento (compreensivo e não explicativo) fenomeno-
duzido o sentido dos acontecimentos, chega-se a uma forma de lógico. A última fase desse conhecimento, a Wesenschau, é o
conhecer que, tal como a Weltanschauung, resulta das próprias derradeiro termo da redução, começada pela epoke, que modificou
condições da vida e tende, em movimento reverso, a assumir o a atitude natural, levando a reflexão ao mundo da consciência
domínio da realidade na qual teve origem. Essa espécie de sabe-
intencional , e de suas viv2ncias puras.
doria que emerge da sociedade, e cujos suportes são coletivos, é
Do ponto de vista fenomenológico, os conteúdos vívidos, pelo
operativa. Explica Guerreiro Ramos:
fato mesmo de serem vividos, têm significação imanente. Mas as
A redução sociol6gica é um ponto de vista que tem
consciência de ser limitado por uma situação e, portamo, é
significações, assim intuídas, em vez de pertencerem somente ao
instrumento de um saber operativo e não da especulação pela Eu, como Husserl queria, no esboço de sua filosofia fenomeno-
especulação ",1 lógica, são partícipes, também, do ser mesmo da realidade.

192 193
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA AP~NOICE l i - CONSIOERAÇÓES SOilRE..•

Essa tese, pelo que enuncia, supõe uma radical mudança no a dimensão temporal dos atos e valores humanos estruturados em
próprio conceito de realidade, onde deixa de subsistir o corte processo histórico.
realista-idealista que a dividia em duas secções ontológicas anta- A nossa realidade, portanto, a realidade que conhecemos,
gônicas, opondo-se o Eu às coisas, pelo idealismo, e as coisas ao vivendo e agindo, não é a natureza substancializada, estática, mas
Eu, pelo realismo. O mundo, nos limites dessa antinomia, era a realidade cultural, com o seu dinamismo próprio e a imanência
uma secção da totalidade do existente, em meio do qual o E~, de suas formas e valores. .
solitário, também existente, defrontava-se com as coisas, de
Para retomarmos a perspectiva fenomenológica inicial, usando
modo passivo, ou afirmava-se, hegemônico, numa posição que o
a linguagem de Husserl (das Idéias e das Meditações Cartesianas),
titanismo moral de Fichte ilustra exemplarmente.
diremos que o Eu e o Mundo não são antitéticos, mas correlativos,
Em vez do Eu inserido no mundo essencialmente coisificado, interativos, coetâneos. A realidade-humana é ser-no-mundo.
a fenomenologia estabelece, como verdade, o seu enraizamento
O professor Guerreiro Ramos recorreu a esse esquema básico
ontológico na totalidade do existente. Essa noção concretizar-se-
do pensamento de Heidegger para fundamentar a redução so-
ia, depois, na "realidade-humana", de Heidegger, histórica por
ciológica que, segundo ele nos diz, postula a noção de mundo.
natureza e que, pela sua transcendência constitutiva, introduz no
"O essencial da idéia de mundo é a admissão de que a consciência
meio do existente, a diversidade dos valores que se estruturam
e os objetos estão reciprocamente relacionados." E essa conclusão
como processo histórico.
é uma resultante do princípio da intencionalidade que, através da
O mundo, por outro lado, não é exterior ao homem. É uma fenqmenologia, e no âmbito da filosofia da existência, foi inter-
projeção originária das possibilidades humanas, uma abert~ra pretada de modo a servir de vínculo entre o mundo interior e
ontológica no meio do existente. Projeção que é história, mas · a realidade exterior.
história, como categoria existencial da temporalização que, em Todos os conteúdos de nossas vivências estão carregados de
seu aspecto objetivo, pertence ao domínio da ciência histórica. sentido. As vivências, como fenômenos, possuem significação
A História, como temporalização e abertura ontológica, é a imanente, por motivo de sua qualidade intencional. Dizia Husserl
dimensão fundamental da "realidade-humana" que Heidegger qu~ a consciência é a fonte de todo sentido ou significação. Ela
chama de "histórico" (das Geschehen), pois que não está para os objetos como um molde em que eles se impri-
na essência de seu ser a realidade humana é configuradora mem, nem os objetos nela se encaixam, como dados que se
de um mundo e "configuradora" num semido múltiplo: ela ,· oferecem ao nosso conhecimento.
rnz com que o mundo se hisrorialize; ela se apresema, jun-
A consciência é intencional; é sempre consciência de objetos
rameme com o mundo, por uma figuração original que, por
não ser expressamente apreendida, não deixa de exercer, que não se apresentam à consciência como que de fora, mas que
por isso, o papel de uma prefiguração para todo o existente formam com ela uma só estrutura significativa. É o que Guerreiro
manifestado, ao qual pertence, sempre, de cada vez, a Ramos exprime, dizendo: "todo objeto, enquanto conhecido, está
realidade-humana.'
necessariamente referido à consciência".
o conceito de mundo traduz um novo conceito de realidade, Como as demais noções básicas da filosofia da existência, o
que só foi possível formular graças ao instrumento que a análise conceito de mundo possui aquela universalidade concreta de que
fenomenológica pôs à disposição dos filósofos. O mundo não é são dotadas as essências de Husserl e as categorias ontológicas de
mais concebido como sucessão de fatos naturais; inclui, também, Hartmann. As essências de Husserl não sacrificam o individual,

194 195
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA AP!l.NDICE li - CONSIDERAÇOES SOBRE.•.

o específico, do mesmo modo que as categorias ontológicas de e históricas, e a aproveitar essas vivências como base preliminar
Hartmann, de acordo com o que ele mesmo diz em sua A Nova de suas formulações teóricas de caráter universaP
ontologia, não foram obtidas por dedução de princípios univer- o sociólogo alcançará o universal através do particular.
sais, mas "recolhidas passo a passo, das relações do real".
IV
Assim, o conceito de mundo, longe de impor-se em conse-
qüência de uma dedução, foi constituído graças ao exame feno- Resta avaliarmos o sentido da redução sociológica, comparada
menológico da realidade humana concreta, e não atraiçoa as com a redução fenomenológica de Husserl.
condições efetivas da existência. Respeitada a sua forma universal, Na acepção fenomenológica pura, a redução que princ1p1a,
que conta a realidade-humana e o ser existente em situação, o conforme vimos, pela atitude característica da epoke (colocação
mundo se verifica onde quer que haja um processo histórico e da realidade natural entre parênteses) é meio de acesso aos fe-
uma estrutura social. Inversamente, quando refletimos sobre as nômenos em sua pureza essencial. É processo de apreensão das
condições efetivas da existência do ser humano, que está vincu- vivências, complementado pela descrição objetiva do fluxo de
lado a um determinado momento da história e a uma determinada nossa experiência vivida, que tem duplo aspecto, noético-
sociedade, podemos chegar à noção universalmente válida de noemático.
mundo, como lugar de engagement e posição ontológica do ho- Esse processo metódico pode conduzir a uma análise obje-
mem. Aqui, portanto, o universal e o particular se entrelaçam. tiva, fenomenológica, das vivências sociais, como fenômenos de
Podemos atingir um deles pelo outro. contexto, que podem ser descritas e conhecidas em sua forma
Na terminologia de A Redução sociológica, mundo e contexto essencial, na medida em que são descritas, através de aproxima-
sócio-histórico se equivalem. Os fundamentos da redução fortale- ções sucessivas. Isso nos levaria à constiruição de uma "ciência
cem-se mais em razão dessa equivalência. . eidética" do social, ligada, originariamente, portanto, à redução
A consciência crítica, que faz parte da natureza da redução, fenomenológica pura.
é um compromisso intelectual, representando, porém, um com- A redução sociológica, para Guerreiro Ramos, não serve de
promisso radical, como engagement do sociólogo com o seu fundamento a uma ciência eidética do social. Ele distingue entre
mundo. O sociólogo está ligado ao seu mundo, isto é, ao contexto redução e fenomenologia do sociaL
em que existe, onde os objetos estão intencionalmente referidos
Esca seria o escudo do modo de ser do social. A
à sua consciência, onde os fatos guardam entre si conexões fenomenologia do social descreveria como se dá o social ou
teleológicas que estruturam a sociedade. moscraria a sua essência, seu ddos, mediance o que Husserl
O princípio de intencionalidade e as noções de mundc e chama o processo de variação.
engajamento, entrelaçados, reforçam a justificativa da redução, na A redução, como "introdução ao estudo da razão sociológica",
teoria e na prática. tem, segundo e;tendemos, duas funções que se complementam,
Porque é um ser engajado com uma determinada realidade, não podendo uma delas ser concebida independentemente da
o sociólogo, compreendendo esse comprometimento, que é exis- outra. São ambas etapas dialéticas de um procedimento, que é
tencial e não doutrinário, deverá exercitar a redução, como método essencialmente crítico e funcional, dado o seu objetivo: "tornar
que o habilite a reconhecer a importância das vivências sociais sistemáti.ca a assimilação crítica".

196 197
A REouçAo SOCIOLOGICA
AP!!NDICE Il - CONSIDERAÇOES SOBRE •• •

Precisamos distinguir, no entanto, as duas funções que garan-


existenciais da realidade humana em situação. Ela toma o seu
tem ao conceito de reduÇão uma eficácia instrumental para além impulso na convivência com os problemas. É um<L reflexão in-
do campo da sociologia.
tensiva e extensiva, como diálogo do homem com a sua existência,
A primeira função é restrita. Define uma atitude da consci- e que se confunde com a reflexão filosófica.
ência crítica, visando colocar entre parênteses as premissas de
valor e os elementos ideológicos de que se acha impregnada a v
sociologia estrangeira. É, sob esse a~pecto, "maneira de ver que É forçoso concluir que a redução sociológica não tem alcance
obedece a regras, e se esforça por depurar os objetos de elementos sociológico restrito. Por meio dela o pensamento transita, ines-
que dificultem a percepção exaustiva e radical de seu significado". peradamente, da filosofia para a sociologia e da sociologia para
Essas regras (ou leis) enunciam as condições objetivas sob as quais a filosofia. Nisso está a sua importância filosófica e a razão de
a consciência crítica deve funcionar, para que venha a "descobrir seu valor cultural, como veremos em seguida.
os pressupostos referenciais, de natureza histórica, dos objetos e
Em seu primeiro aspecto, a redução sociológica, que tem na
fatos da realidade social". São as leis do comprometimento (com-
consciência crítica o seu pressuposto, objetiva a depuração das
promisso consciente do sociólogo com o seu contexto), do caráter
tendências implícitas nos postulados e nos princípios da socio-
subsidiário da produção cientlfica estrangeira, da universalidade dos logia estrangeira. Esses elementos ficariam entre p;~rênteses,
enunciados gerais da ciência e a lei das fases, segundo a qual "a porque adventícios relativamente ao nosso contexto. Seguir-se-ia
razão dos problemas de uma sociedade particular é sempre. dada a compreensão dos fatos e relações específicas da sociedade bra-
pela fase em que tal sociedade se encontra".
sileira, objetivamente considerados como fenômenos que devem
Cumprida a exigência de crítica, que suspende a vigência dos ser apreendidos e descritos tal como aparecem, segundo o critério
conceitos sociológicos importados e considera, subsidiariamente,· fenomenológico.
os princípios e noções da produção científica estrangeira (em A medida, porém, que a redução se efetua, depois da primeira
matéria de Ciências Sociais), a redução não cessa. Ela continua fase, de depuração, e alcançada a segunda, de compreensão,. o
como atitude do sociólogo engajado que, munido apenas dos teorizador defronta-se com a realidade humana instigadora e com
enunciados gerais de sua ciência, volta-se, de ·mente aberta, para a urgência de seus problemas em aberto.
considerar os fatos próprios de seu contexto, inerentes à vida
O problematismo· da existência solicita o homem a procurar
histórica da sociedade. Aí começa a segunda função da atividade
entender o significado implícito em suas vivências. Isso já é o
redutora: depois de critica, ela se torna essencialmente reflexiva.
com~ço da filosofia .. Pois a filosofia começa quando percebemos
O ciclo de aplicação da redução sociológica principia, portan- as "coisas enlaçadas na raiz dos problemas". A necessidade da
to, por uma exigência crítica que leva à reflexão. E a reflexão, por filosofia é inseparável da experiência do ser humano concreto.
sua vez, é recondicionada para apreender os fenômenos sociais
A redução sociológica, em última análise, afirmando a pree-
e históricos em sua pureza, como fatos deu~ dad~ contexto, com
minência do ser humano em situação, num dado contexto
a sua originalidade própria, a sua universalidade concreta e as suas
condições específicas de ocorrência. . sócio-histórico, exige que o sociólogo adote, antes de mais nada,
a atitude receptiva e lúcida do filósofo que formula e maneja as
A reflexão, conduzida por essa forma, torna-se ampla pelo seu categorias da" pensamento para aplicá-las onde elas se tornem,
objeto, eminente em razão de sua incidência sobre os fenômenos
além de válidas, férteis e produtivas.

198 199
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA

O livro do professor Guerreiro Ramos, A Redução sociológica


(Introdução ao estudo ck razão sociológica) constitui o primeiro
ensaio de importância, que conseguiu aplicar à realidade brasi-
leira, sob a instigação de sua problemática social, as intuições
válidas que estão incorporadas hoje, definitivamente, à trajetória
do pensamento filosófico contemporâneo. Além disso, parece-nos
que esse livro aponta uma perspectiva alentadora para o desen- .AP~NDICE UI
volvimento da filosofia no Brasil, que sempre ocupou entre nós
uma posição indigente, de alienação acadêmica e de marginalismo
cultural.
Rio, 9/8/58

Notas
(1) DILTHEY. La essencia de la filosofia (Das Wesen der
Philosophie) p. 134-133. Trad. Eisa Taherni. Ed. Losada,
2• Ed. 1952.
{2) DILTHEY. Idem. p. 129.
{3) Dal porque a redução não admire "a existência, na realidade
social, de objetos sem pressupostos" - A Redução sociológica.
{4) O autor apela para a Gestaltheorie. "Tem aqui plena
vigência a lei da psicologia da forma segundo a qual o todo
antecede as partes".
{5) "O mundo que conhecemos e em que agimos é o âmbiw
em que os indivíduos e os objetos se encontram numa infi-
nita e complicada trama de referências".
(6) "A perspectiva em que estão os objetos em parte os constitui".
(7) V. op. cit. pág. 46.
(8) HEIDEGGER. "Ce qui fait l'être-essentiel d'un fondement"
.(Vom Wesen des Gnmder). In: Qu'est ce que la méthaphysique.
Trad. Henry Corbin Gallimerd. 2• ed. 1951.
(9) "O regional e o nacional, em tal compromisso, não são termos
finais, são termos imediatos de concretização do universal".

200
Correntes Sociológicas
no Brasil
Jacob Gorender

Ao abordar a realidade social, não pode aquele que se dedica


ao seu estudo, prescindir de um aparelho conceitual previamente
elaborado, isto é, de uma teoria da vida social, com as suas
categorias básicas, os seus pontos de vista, os seus princípios e
processos metodológicos daí decorrentes. Mesmo o pesquisador
de espírito mais empírico já parte para o trabalho com um estoque
qualquer de conceitos e julgamentos, ainda que somente para
justificar o seu empirismo. A necessidade de instrumentos teó-
ricos previamente elaborados para o estudo da realidade social
não significa, entretanto - cumpre adverci-lo - , subordinação
obrigatória a sistemas apriorísticos de qualquer ordem ou fixação
das categorias teóricas em moldes imutáveis. Compreende-s~ que,
refletindo a natureza dos faros objetivos e aplicado a eles, o
aparelho conceitual de mais elevado nível científico, precisamente
porque o conhecimento atinge essências sempre mais profundas,

·':.
A REDUÇÃO SOCIOLOG!CA APl~NDlCE Ill - CORRENTES SOCIOLOGICAS . ..

não resiste à imposição de incorporar novas categorias ou de causas dos fatos que estudavam e de levá-los, aqui e ali, a cons-
aplicar diferentes processos metodológicos. É o que nos dirá a truções despropositadas pelo seu caráter artificioso e chocantes
história das ciências, se a ela recorrermos. pelo seu sentido reacionário.
Coloquemos, então, a seguinte questão: pode a realidade social Se nos voltarmos presentemente para a Sociologia, como
brasileira ser estudada através das categorias, dos princípios e dos disciplina universitária de difusão já considerável e objeto de
pontos de vista inerentes a teorias, ·que se constituíram à base do múltiplos estudos no Brasil, encontraremos com facilidade a
conhecimento da realidade social de. outros países? influência da sociologia oficial norte-americana, não somente com
A questão seria considerada absurda, não resta dúvida, se se as· suas concepções gerais e processos de pesquisa, mas até mesmo
tratasse das Ciências Naturais. No que se refere, porém, às Ciên- com a sua temática. Será legítima esta influência, pode ela pro-
cias Sociais, a sua postulação, ao menos para fins polêmicos, é duzir resultados benéficos para o desenvolvimento dos estudos
justificável. E, no caso brasileiro, ela tem demasiado cabimento sociológicos num plano científico?
se considerarmos a ausência de suficiente espírito crítico mesmo A este problema, como a toda questão da aplicação das
de alguns dos melhores entre os nossos pensadores do passado diversas teorias sociológicas à realidade brasileira, pretende
diante de teorias importadas. Freqüentemente, estas teorias já responder o sr. Guerreiro Ramos, com uma obra recente.' Pre-
eram falsas no próprio meio de origem, mas o seu aparecimento cisamente por ter dado ao assunto um tratamento bastante
ali obedecia a qualquer motivação social intrínseca, correspondia sistemático, que se centraliza em torno de uma série de afirmações
a certo condicionamento histórico direto, o que não acontecia, conclusivas, tomaremos essa obra para ponto de referência inicial
senão talvez de modv muito indireto, com a sua transplantaÇão no exame da questão que levantamos acima.
literal, ao meio brasileiro. Um exemplo típico, parece-nos, foi o Desde logo, concordaremos com o sr. Guerreiro Ramos quan-
de homens como Nina Rodrigues, Euclides da Cunha e João · do afirma: "Um estado de espírito generalizado não surge
Ribeiro. Deles não se pode dizer que tivessem uma inclinação arbitrariamente. Reflete sempre condições objetivas que variam
para o obscurantismo. Bem ao contrário, foram inovadores
de coletividade para coletividade." 2 Estas condições objetivas são
dos estudos históricos e sociais em nosso país. Apesar disto, na
os fatos materiais, os fatos da vida econômica, como a indus-
busca de orientação teórica, receberam influências diversas (de-
trialização, a urbanização e as alterações do consumo popular
terminismo geográfico, culturalismo histórico alemão), mas o que
que caracterizam, segundo aquele autor, a nova etapa do pro-
fere, em especial, a atenção, é a influência, identificável em
cesso histórico-social do povo brasileiro. Daí a sua afirmativa:
todos três, de teorias antropológicas e sociológicas reacionárias de
No Brasil, essas condições objetivas, que estão suscitan-
fundo racista, prestigiadas, em sua época, nos meios universitários do um esforço correlato de criação intelectual, consistem
europeus. Homens de tendência sob muitos aspectos progressis- principalmente no conjunto de transformações da infra-
tas, a sua própria obra, na medida que se aprofunda nos facos, estrutura que levam o país à superação do caráter reflexo de
I
desmente aquelas teorias, a que entreçanto prestaram tributo. Mas l sua economia. Desde que nele se configurou um processo de
industrialização em alto nível capitalista, converteu-se o
a aceitação não crítica delas devia prejudicar, e em cercos passos
espaço nacional num funbito em que se verifica um processo
completamente, o esforço de interpretação e generalização que há mediante o qual o povo brasileiro se esforça em apropriar-
em Os Africanos no Brasil, em Os Sertões ou nos estudos históricos se de sua ci(cunstância, combinando racionalmente os fatores
de João Ribeiro. As concepções derivadas do determinismo racial que dispõe. O imperativo do desenvolvimento suscitou a
não podiam deixar de contribuir para afastá-los das verdadeiras consciência crítica.'

204 205
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA APllNDICE li! - CORRENTES SOCIOLÓGICAS •••

A consciência crítica lembra a velha autoconsciência hegeliana provida de criticismo às idéias produzidas nos chamados grandes
e é empregada pelo sociologo patrício no sentido de tomada de centros da cultura.
consciência coletiva dos fatores e da problemática do desenvol- O esforço crítico do sr. Guerreiro Ramos se valoriza especial-
vimento nacional, no sentido de aspiração explícita da nação mente ao considerar o panorama atual da sociologia universitária
brasileira à sua completa autodeterminação. no Brasil, com o predomínio que sobre ela exercem os critérios
Como apreender, em termos cientÍficos, o que há de essencial sociológicos de origem norte-americana. Tais critérios se expli- ·.
nesta realidade, isto é, o seu processo. de transformação encami- cam nos Estados Unidos, em virtude dos interesses de classe de
nhado para um desenvolvimento nacional independente, uma poderosa burguesia, que "controlam" a vida social norte-
aplicando-lhe, sem qualquer adaptação, critérios teóricos e americana. o seu objetivo não é senão o de "... anular as tensões,
metodológicos que surgiram de condições sociais inteiramente conservando a estrutura já estabelecida ..."\ sendo justo, pois,
diversas? concluir com o sr. Guerreiro Ramos: "A 'conservação social' é,
As melhores páginas de A Redução sociológica são, segundo grosso modo, a essência da ideologia em que se fundamentam
pensamos, aquelas em que o seu autor expõe à crítica este vício as Ciências Sociais nos Estados Unidos".5
tão constante. em nossa história intelectual e que consiste em Em nosso país, porém, a sociologia deve estar voltada para
submeter-se servilmente à produção intelectual estrangeira e copiá- direção oposta, pois
la de modo mecânico. É certo que esta constante não deve ser ... a solução dos antagonismos fondamtntais da ama! sociedade
exagerada ao ponto de deixar de perceber que, nos p~nsadores de brasileira requer antes a mudança na qualidatú de sua esmt-
tura... O modo de especulação sociológica, que justifica a
verdadeiro espírito criador como Euclides da Cunha, as más
preocupação do especialista norce-americano com noções
teorias estrangeiras se combinaram a profundas observações e como "conflito", «acomodação~'. "assimilação", "controle
apreciações da vida social do país. Além disto, o julgamento dos social", se literalmente adorado pelo sociólogo brasileiro,
pensadores do nosso passado não pode ser feito sob o critério o leva a distrair-se das questões que têm mais interesse
exclusivo da originalidade de sua contribuição no plano da teoria, para a coletividade nacional. Os antagonismos essenciais da
tão difícil, aliás, em esferas elevadas da cultura, como a filosofia sociedade brasileira são atualmente os que se exprimem na
polaridade "estagnação" e "desenvolvimento", representados
e a sociologia. Aqueles que lutaram contra preconceitos obscu- por classes sociais de interesses conflicances, e ainda "nação"
rantistas, geralmente clericais, nas condições de uma sociedade e "antinação", isto é, um processo coletivo de personalização
muito ~trasada como era a do Brasil no século XIX e mesmo em histórica ~onera um processo de alienação. Outras contradi-
princípios do atual, buscando na produção estrangeira, · embora ções que não se enquadram ne~te termos são, no momento,
sem assimilá-la criticamente, novos caminhos de orientação secundárias.•
progressista para a investigação histórica, social e filosófica, O sr. Guerreiro Ramos alcança, desta maneira, uma contrac
prepararam o terreno - e nisto está um grande mérito - para dição essencial inerente ao atual processo histórico brasileiro.
o esforço original que devia vir mais tarde. Feita esta ressalva, Nós, comunistas, consideramos, e já o dissemos numa Declara-
cabível porque não acreditamos se inicie somente agora, com o ção, que esta contradição se tornou a prin~ipal, a dominante da
ISEB, a legítima cultura nacional, parece-nos, porém, indiscu- sociedade brasileira, no atual período de sua vida. Trata-se de uma
tível, que a fraqueza teórica, a reduzida altitude filosófica, por contradição que polariza a nação em desenvolvimento, . com as
assim dizer, que assinala a história intelectual brasileira foi, ao suas forças progressistas e revolucionárias em expansão (dentro
mesmo tempo, causa e efeito de uma receptividade pouco de marcos capitalistas, únicos possíveis no momento), em opo-

206 207
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA APtlNDICE !li - CORRENTES SoCIOLóGICAS ...

sição ao imperialismo norte-americano e aos círculos econômicos teórico significa elaborar os critérios, na esfera das categorias,
e sociais, que o apóiam· internamente. Este antagonismo, que dos princípios metodológicos e da temática, que conduzam à
ainda deverá atingir mais elevados graus ~de tensão, estende a interpretação da realidade social brasileira com objetivo de
sua influência sobre todas as esferas da vida econômico-social transformá-la.
brasileira e é parte in~egrante do antagonismo mais vasto, que Esta tarefa, para ser cumprida, exige o que o se. Guerreiro
está liquidando o colonialismo e o semicolonialismo no mundo Ramos denomina, por motivos filosóficos, que deveremos ana-
inteiro. O sr. Guerreiro Ramos chegou à essência do processo lisar, de "redução sociológica". Visa esta, segundo o seu autor,
histórico, porém, como veremos adiante, não o fez sem padecer dar às Ciências Sociais no Brasil um ponto de vista naciona4
de estreiteza específica. substituindo a "assimilação literal e passiva dos produtos cien-
Disto resulta claro que a sociologia no Brasil não pode se tíficos importados" por um "procedimento metódico que procura
subordinar aos critérios orientadores nem à temática da grande tornar sistemática a assimilação crítica" .7 Não se trata, frisa o
maioria dos sociólogos norte-americanos. Estes não se propõem autor, de isolar os estudos sociológicos brasileiros de tudo o
transformar a estrutura social existente no seu país, mas conservá- que, neste terreno, se faz fora de nosso país. O caráter universal
la e, no melhor dos casos, submetê-la a algumas reformas. da ciência não é negado e o sr. Guerreiro Ramos se refere a uma
Consciente ou inconscientemente, o seu propósito não é superar "instância de enunciados gerais que çonstituem o núcleo central
contradições, o que significa atingir um estádio mais alto do do radocínio sociológico."8 ·

desenvolvimento, mas atenuá-las, anular ou limitar, tanto quanto O que é necessário é que a sociedade brasileira tenha, nos
possível, os seus efeitos. É perfeitamente compreensível, por isso, estudos sociais, uma função "centrípeta" e não "reflexa", de acordo
que esses sociólogos norte-americanos evitem ascender a planos çom as exigências do novo processo histórico. Por este motivo,
teóricos mais elevados, onde possa ser posta em causa a estrutura· ao invés de simplesmente transplantada, através da cópia ou da
da sociedade, que é objeto dos seus estudos. Garantem as suas imitação, a produção sociológica estrangeira deverá ser "reduzida"
carreiras universitárias, manejando um aparelho conceitual de aos critérios nacionais, isto é, submetida ao procedimento da
tipo empírico e pragmático, que fragmenta ao máximo a vida depuração crítica, do qual poderão resultar categorias e conceitos
social e focaliza isoladamente aqueles aspectos e problemas, cujo adequados ao estudo em profundidade da realidade social do
exame, superficialmente empírico e para fins pragmáticos de . nosso país.
curto alcance, a burguesia norte-americana pode admitir. É certo A "redução sociológica" só pode ser praticada, frisa a obra que
que também existem nos Estados Unidos os sociólogos não con- estamos comentando, por aqueles que assumem um "compromis-
formistas, que submetem à crítica, çom maior ou menor pro- so" com a sociedade em que vivem, que. se põem numa atitude
fundidade, inclusive do pomo de vista do marxismo, a sociedade de "engajamento" sistemático para coin as necessidades geradas
do seu país. Mas estes constituem minoria, à qual o sr. Guerreiro pelo seu meio nacional. Aquele que prefere ser "neutro" diante
Ramos não deixa de fazer referência. dessas necessidades, não poderá, pelo menos de modo s.istemático
Já diante dos sociólogos brasileiros, que desejam dar "fun- e consciente, "reduzir" a elas, às particularidades de sua sociedade,
cionalidade", como se expressa aquele professor do ISEB, à sua as categorias e os princípios metodológicos das Ciências Sociais
ciência se apresenta o imperativo de ascender audaciosamente no das Ciências Sociais. O autor tocou aqui num preconceito muito
plano teórico, a fim de captar os processos fundamentais e as difundido pela sociologia universitárià: o preconceito do "desin-
necessidades históricas de nossa sociedade. Ascender no plano teresse", da "imparcialidade" das Ciências Sociais. Sucumbir
!.
208 209
A R.EouçAo SociOLóGICA AP~NDICE III - CoRRENTES SociOLóGi cAs..•

diante dele, num país qu.e luta para se emancipar, é aceitar a Esta é também a contradição de rodo um grupo de professores
"servidão intelectual", é não transcender da·"condição de copista do ISEB. Enquanto não se decidem a superar a contradição,
e repetidor".· preferem acomodá-la em construções ecléticas, que não se reco-
mendam por especial mérito teórico.
O sr. Guerreiro Ramos formula na sua obra o que considera
as "leis da redução sociológica". Mais apropriado, segundo pen- Já vimos que a "redução sociológica" resulta de considerações
samos, seria falar de princípios metodológicos. Enumeremos, bastante objetivas, que se referem a problemas concretos da vida
porém, aquelas "leis": lei do comprometimento (adoção siste- do país, e, em particular, à linha de desenvolvimento de sua
mática de uma posição de engajamento ou de compromisso cultura. Ainda que se possa discordar de certas afirmações ou da
consciente com o seu contexto); lei do caráter subsidiário da esquematização que o sr. Guerreiro Ramos deu à questão, cum-
produção cientÍfica emangeira; ·lei da universalidade dos prin- pre reconhecer que ela tem oportunidade, que é uma questão
cípios gerais da Ciência; e lei das fases (a razão dos problemas fecunda. Ao mesmo tempo, porém, a "redução sociológica" se
de.uma sociedade particular é sempre dada pela fase em que tal inspira diretamente na "redução fenomenológica" de Husserl.
sociedade se encontra). Qual o significado que isto pode ter?
Até aqui nos detivemos no comentário do que chamaríamos Com a sua "redução", Husserl, que não foi propriamente
de "núcleo racional" de uma obra, que nos parece típica da atual existencialista, mas precursor desta corrente, pretendeu· superar
produção ideológica do ISEB. Serão, no entanto, suficientes estas a oposição entre o materialismo e o idealismo na esfera da gno-
idéias para dar solução ao problema proposto? Veremos que _elas siologia. A realidade objetiva não é negada, como o faz o idea-
apenas se aproximam da solução, sem atingi-la. Ficam a meio lismo subjetivo conseqüente. Apenas o filósofo abstrai do ca-
caminho e por isto contêm a possibilidade de desvios e recuos_ ráter exterior ao sujeito desta realidade, "suspende" ou "põe entre
inaceitáveis, que anulariam o avanço já conseguido. Daí porque parênteses", como dizem os fenomenólogos, a questão de um
a própria A Redução sociol6gica não se "reduza" somente àquele mundo material independente do sujeito consciente. As coisas
"núcleo racional", nem este se apresenta em estado puro, de fácil objetivas passam a ser focalizada~.,.exclusivamente no fluxo da
identificação. Ao racional se mistura o irracional e a este último atividade consciente, que as apreende e incorpora a si mesma,
também é indispensável referir-se para a indispensável crítica. "reduzidas" a fenômenos da consciência. Esta, por sua vez, deixa
de ser estudada como substância que se basta a si mesma, à
li maneira do velho idealismo, sendo substituída pelos "estados" ou
Uma determinante do pensamento do sr. Guerreiro Ramos é "atos" de consciência, que se sucedem sem descontinuidade como
uma realidade social objetiva, onde consegue apreender os pro- consciência disto ou daquilo. Não se mira simplesmente da in-
cessos de desenvolvimento capitalista e de luta pela emancipação fluência recíproca entre sujeito e objeto, fato que o sr. Guerreiro
nacional. Outra determinante,' de caráter puramente intelectual, Ramos9 julga não ter sido "visto pelas antigas teorias gnosio-
é a filosofia existencialista. A interpretação de dados estatísticos lógicas" e, entretanto, muito antes de Husserl, foi uma questão
sobre o crescimento da indústria nacional se associa, sem tran- · dialeticamente tratada por Hegel e Marx. A fenome~ologia pre-
sição, às categorias elaboradas pelo subjetivismo exacerbado de tende evitar todos os relativismos possíveis ~a distinção entre
Husserl, Heidegger e Jaspers. Pode ser considerada legítima tão sujeito e objeto para atingir a certeza filosófica absoluta através
estranha simbiose? da fusão integral entre o sujeito, que só é consciência do objeto,

.i
210 211
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA APJ!NDICE III - CORRENTES SociOLóGICAS •••

e objeto, que não pode ser descrito senão como "objeto da Este é o "terceiro caminho" filosófico que não conduz algo
consciência". Esta fusãô ou confusão é carregada de "intencio- propriamente origina[, mas ao mesmo velho idealismo. Daí a
nalidade", tanto por parte do ato consciente para com o seu afirmar com razão Luckacs, tratando precisamente de Husserl:
objeto como deste para com aquele. Ambos são possíveis somente E"xistirá um "terceiro caminho", fora do··idealismo e do
coexistindo. O fil6sofo desiste de analisar, abandona os processos materialismo? Para aquele que considere a questão de modo
discursivos de raciocínio, os conceitos e as categorias, tudo enfim scírio, no espírito dos grandes filósofos do passado, desde-
nhando as frases vazias de certos pensadores modernos, a
que leva~ pensamento a distinguir sujeito de objeto, a seccionar
resposta não pode ·ser senão negativa. Não há, com efeico,
conceitualmente a realidade e prete~der atingir a sua essência de senão duas possibilidades: primado da existência sobre a
modo mediato. O pensamento não deve se voltar mais do que consciência ou inversamente primado da consciência sobre
para os dados imediatos da consciência, visando não mais do que a existência. Os sistemas filosóficos em voga, que se orien-
descrevê-lcs intuitivamente no seu fluxo subjetivo unitário e total. tam para o "terceiro caminho", põem habitualmente a
correlação da existência e da consciência, proclamando que
A essência absoluta seria atingida nesta simples descrição do uma não poderia existir sem a outra. Com esta afirmação,
imediato da experiência subjetiva, ou seja, dos fenômenos da chega-se a expul;ar o idealismo pela porta para làzê-lo voltar
consciência (vale observar que estes são considerados muito além pela janela, uma vez que, admitindo que a existência não
dos simples dados empíricos, sensoriais). pode existir sem a consciência, abandona-se o materialismo
segundo o qual a existência é independente da consciência. 10
Teremos aí, de fato, a superação do materialismo e do idea-
O sr. Guerreiro Ramos se apóia, por conseguinte, num pés-
lismo na gnosiologia?
simo suporte filosófico, que, no plano dos princípios, tira a
Na verdade, Husserl não fez mais do que adaptar o idealismo
legitimidade de sua especulação sobre a atividade sociológica n~
subjetivo a certas circunstâncias contemporâneas decorrentes do Brasil. É verdade que o sr. Guerreiro Ramos tenra estabelecer uma
progresso científico em nossa época: em primeiro lugar, a im-
distinção:
possibilidade do idealismo objetivo, exceto em sua forma ex-
é preciso distinguir a intencionalidade .do eu puro da
pressamente religiosa; em segundo lugar, a impossibilidade de intencionalidade do eu concreto, episódico, historicamente
um idealismo subjetivo conseqüente até o fim, isto é, até o configurado. O eu puro s6 é sujeito do ponto de vista da
solipsismo. Daí porque Husserl e outros tenham procurado redução transcendental. Para a redução sociológica, o sujeito
"completar" o idealismo subjetivo com uma espécie de "pseudo- é, porém, o eu concreto, inserido na comunidade. 11
objetividade", como diz Georges Luckacs. Esta ressalva não é suficiente, porém, para resolver a questão.
O ponto de partida de Husserl é o mesmo de Descartes: Ego Continuamos no plano da subjetividade, sobre o qual é impos-
cogito. Mas enquanto Descartes, mesmo por uma via racionalista, sível lançar as bases de uma sociologia científica. Substituído o
partiu desta primeira evidência existencial para evidências do "eu puro" d~ Husserl pelo "eu concreto", isto nos permitirá talvez
mundo objetivo, Husserl segue em direção oposta e se endausura apreender certos fatores sociais, ampliar ~elativamente .o campo
na subjetividade, pois somente dentro dela, "reduzindo-a" o mais de observação, mas a premissa fundamental continua a ser a
que se pode, concebe a possibilidade legítima de apreender o consciência individual sobre cuja perspectiva "intencional" são
objeto do conhecimento. O mundo objetivo se transforma assim colocados os fatos sociais. E, embora o sr. Guerreiro Ramos faça
no "mundo da consciência". As coisas não são vistas fora de n6s, também passageira objeção a respeito do relativismo, é inevitável
mas de dentro de nós, introspectívamente. que este se torne o seu princípio gnosiol6gico superior, desde

212 213
A REDUÇÃO SOCIOLOG JCA APJ;:NDJCE III - CoRRENTES SociOLóGICAS...

quando fundamenta a pesquisa sociológica no eu individual, por deve ser praticada no "mundo" em que o ser (individual) se
mais conteúdo histórico' concreto lhe atribua. Não é casual, por encontra. Qual é, porém, o caráter deste "mundo"? Novamente
isso, que considere Karl Mannheim, com sua "sociologia do nos defrontamos com aquela espécie de "pseudo-objetividade" tão
saber", um precursor do método de "redução", Preocupado le- procurada pelo idealismo subjetivo atual. O s;. Guerreiro Ramos
gitimamente em combater o espírito dogmático na Sociologia, se encarrega de nos informar "o mundo - eis o que pensa
que impede o estudo da sociedade brasileira nas suas ricas par- Heidegger - não é mais o que se tem admitido na tradição
ticularidades, o sr. Guerreiro Ramos acaba aceitando, do ponto filosófica, um conjunto de coisas ou realidades subsistentes, um
de vista de princfpios, um relativismo extremado demais para ser dado externo ao homem".
compatível com a ciência. E, assim, enquanto Husserl, com a sua Assim, pois, quando se diz que o homem é um "ser-no-mundo"
"redução fenomenológica", pretendia salvar alguns valores filo- de modo algum se afirma que a essência do homem, como dizia
sóficos absolutos, a mesma noção, transferida para o campo da Marx, é o conjunto das relações sociais, que o ser humano está
Sociologia, produz um relativismo sem limites. O que não é senão na dependência de meio social que o cerca e no qual ele se integra
a dialética da transformação no próprio contrário. objetivamente. Ao contrário, continuamos por inteiro no plano
Poderão dizer-nos que a relatividade já penetrou todas as da subjetividade. O "mundo" é a trama não-objetiva da cons-
ciências, mesmo as mais exatas. Mas isto demonstra somente a ciência individual com os "outros", isto é, com os outros indi-
superioridade do pensamento dialético, indispensável às ciências víduos. Mais uma vez, sujeito e objeto se confundem e só existem
modernas. Uma coisa é a relatividade como elemento dialético coexistindo. Além disto, o "mundo" é um a priori do conheci-
necessário ao processo do conhecimento - o que não é conce- mento, um "sistema de referências" que predetermina para o
bido pelos dogmáticos - e outra coisa é o relativismo consti- indivíduo a perspectiva intencional da sua percepção da vida
tuído em princípio gnosiológico supremo, Eis o que a respeito social. Por isto, os mesmos fatos não poderiam ser vistos da
afirmou Lênin: a dialética, como. já o explicava Hegel, inclui mesma m aneira, com igual "intencionalidade", por um francês
como um dos seus elementos, o relativismo, a negação, o ceti- e por um alemão, por um brasileiro e por um americano. E por
cismo, mas, não se reduz a isto; ela admite a relatividade de isto também Spencer tem sentido para os ingleses, Comte para
todos os nossos conhecimentos, nunca no sentido da negação :...... · os franceses, Marx Weber para os alemães, e assim por diante.
da verdade objetiva, mas no sentido da relatividade histórica Se as palavras não são para tergiversar, aí temos o puro idea-
dos limites da aproximação de nossos conhecimentos em relação . lismo a· que, afinal, se reduzem todas as chamadas filosofias da
a esta verdade." 12 "existência". O resultado de sua aplicação à sociologia não será
Que a transição do "eu puro" para "eu concreto" não altera outro: subjetivização radical das relações sociais (em cuja crítica
substancialmente a situação se comprova com o largo emprego não devemos passar à objetivação absoluta tentada por D urkheim)
que o sr. Guerreiro Ramos faz das noções heideggerianas de e relativismo à outrance. A verdade objetiva se torna uma impos-
"ser-no-mundo" (in-der-Welt-sein) a "ser-com-outro" (miteinan- sibilidade, o que nos impõe substituir a ciência por um qualquer
d ersein). Aqui já estamos em plena filosofia existencialista. sucedâneo especulativo pragmático. Mas isto absolutamente não
Retomando temas de Kierkegaard e aplicando o método da nos levará àquele iluminado conhecimento da realidade social
fenomenologia, H eidegger "reduz" a existência ao imediatamente brasileira, que tantos buscam, inclusive o sr. G uerreiro Ramos.
vivido pela consciência absolutamente pessoal, despojada de tudo A partir de tais premissas filosóficas, se formos coerentes com
o que lhe é estranho (o social, o racional). Mas esta "redução" elas, o esforço para assimilar categorias cientificamente, aplicáveis

214 215
A REDUÇÃO SOCIOLOGICA AP~NDICE III - CORRENTES SOCIOLOGICAS ...

à vida social em nosso país, se desviará pelos caminhos mais O sr. Guerreiro Ramos poderá dizer que não se trata de sim-
contraditórios, podendÔ chegar ao absurdo. ples transplantação, mas de_ assimilação através da "redução
Na verdade, o que salva o sr. Guerreiro Ramos e os demais sociológica". Somos de opinião, porém, que nada tão estéril no
existencialistas do ISEB é que, sob a influência de uma "deter- terreno da teoria do que este esforço para acondicionar os autores
minante objetiva" no trato das questões nacionais, não são e não existencialistas e deles extrair a superestrutura ideológica de um
podem ser coerentes com as suas premissas filosóficas. Mas esta movimento que, mesmo dentro de marcos burgueses, se volta
é apenas uma salvação pela metade. para a emancipação nacional e o progresso social.

* * * Não há, por isto, porque aceitar como benfazejo para a cultura
Não estenderemos a análise a outras noções da filosofia brasileira o fato de que o ISEB tenha iniciado a sua coleção de
existencialista - como a de "projeto" - a que se recorre far- textos de filosofia contemporânea com a tradução de uma obra
tamente em A Redução socio/Qgica. Limitamo-nos a assinalar este de Karl Jaspers: Razão e anti-razão em nosso tempo. Ao contrário
fenômeno bem brasileiro: ideólogos da burguesia de um país de "genuína obra de filosofia", como afirma o sr. Vieira Pinto
subdesenvolvido, a qual ainda tem um papel progressista a de- nela temos o exemplo, se é possível dizer, integral do mau filo-
sempenhar, aceitam como padrão espiritual a filosofia decadente sofar. Os grandes idealistas alemães da época clássica, sobretudo
da burguesia imperialista. O existencialismo constitui, precisa- Kant e Hegel, nem sempre foram co~rerites, mas possuíam dig-
mente, o ponto culminante da linhagem irracionalista e niilista, nidade intelectual para respeitar a verdade dos conceitos. Os seus
que prevalece na filosofia burguesa da época do imperialismo. sistemas são por isto marcos elevados na história do pensamento
Não foi de maneira alguma casual a receptividade que encontro}' e não frutos pecos da arte de sofismar. Esta dignidade intelec-
na Alemanha de Hitler. tual não existe em muitos idealistas modernos como Jaspers. Com
Não teremos aí, por ventura, mais uma manifestação daquela espantosa sem-cerimônia, que somente um sofista se permitiria,
"mentalidade colonial" que o sr. Guerreiro Ramos com tanta apropria-se do imenso prestígio que é inerente à Razão em nosso
razão combate? tempo e o transfere, qual mágico de circo, para o irracionalismo
Os intelectuais da burguesia republicana do século passado ansioso de salvação metafísica. A razão não é a Razão da ciência
transplantaram da Europa para o Brasil o positivismo, filosofia, moderna, pois se encontra acima e além da ciência (esta deve ser
característica de uma burguesia que passara já de revolucionária aceita e mesmo respeitada, porém conformada com a sua limi-
a conservadora. É desnecessário insistir aqui no que isto encerrava tação, com a sua impotência), a Razão é ç inapreensível, o não-
de "servidão intelectual". Nos meados do nosso século, a burgue- conceitual, adquire-se por uma decisão misteriosa, voltada para
sia brasileira é mais forte e tem à sua frente, ao lado de outras o Ser absoluto e supra-histórico. E assim julga Jaspers possível
forças sociais, tarefas mais elevadas, mais amadurecidas do que convencer-nos que, ao contrário do geralmente admitido, o ir-
no século passado. Por sua vez, a burguesia da Europa Ocidental, racional é que é a verdadeira Razão, o grau mais alto do conhe-
com o imperialismo, atingiu o máximo da degradação reacioná- cimento. Não surpreende, por isto, que, inversamente, considere
ria. E é justamente o produto ideológico dessa degradação - o o marxismo uma espécie de magia.
existencialismo - que cerra parte dos intelectuais burgueses
Tão absurda inversão de conceitos o próprio existencialismo
do presente transplanta para o nosso país. Novamente - e em
proporções muito mais graves - a mesma "servidão intelectual". não havia atingido.

216 217
A REouçAo SocioLóGICA
AI'~NDICE III - CORRENTES SOCIOLÓGICAS •••

Que proveito poderá haver em infiltrar no pensamento pro- Para atingir a coerência teórica no terreno da sociologia, é
gressistà brasileiro uma componente irracional? preciso abandonar duas idéias caras do sr. Guerreiro Ramos e a
Esta é a responsabilidade que assumem os ideólogos do ISEB. ourros professores do ISEB: as idéias da ideologia do desenvolvi-
Voltamos à questão original: onde encontrar a teoria so- mento e da sociologia nacional.
ciológica adequada ao estudo científico do devenir essencial da Elaborar a "ideologia do desenvolvimento", a "ideologia do
sociedade brasileira, com tudo o que ela tem de próprio, de progresso nacional" e até mesmo a "filosofia do desenvolvimento"
particular? · - esta a aspiração anunciada há dois anos atrás pelo sr. Álvaro
O sr. Guerreiro Ramos se refere à "instância de enunciados Vieira Pinto. "Não se trata aqui - dizia então - de defender
gerais que constituem núcleo o central do raciocínio sociológico." nenhum i~teresse particular ou de grupo, mas de exprimir o
5
Mas eis os autores dos quais julga deva ser extraído esse núcleo interesse geral da sociedade brasileira, o interesse nacional."' O
de enunciados gerais: Karl Marx, Comte, Spencer, Georg Simmel, sr. Guerreiro Ramos, por sua vez, tem se referido à "ideologia
F. Tonnies, Max Weber, Max Scheler, Durkheim, Gabriel Tarde, global da nação" e o sr. Roland Corbisier, numa conferência,
Vilfredo Pareto e outros ... 13 A isso se acrescentam esforços afirmando que o nacionalismo devia ser esta ideologia global,
especiais para combinar o existencialismo com o marxismo. O explicava que a ela cabia "traduzir os interesses e as expectativas
ecletismo não se detém aí diante de qualquer limite. Seria este da burguesia industrial, da lavoura de base tecnológica (ou seja,
um dos piores pontos-de-partida para chegar a uma teoria socio- dos agricultores capitalistas- J. G.), do proletariado e da classe
lógica íntegra e correta. média esclarecida".
Certo, também seria muito mau optar pelo dogmatismo, como Nas sociedades divididas em classes, as ideologias são siste-
ponta oposta de um dilema. Pensadores de diferente orientação mas de idéias que refletem a realidade social do ponto de vista
teórica podem contribuir, embora em grau desigual, para o acervo dos interesses de determinadas classes. Podem classes socialmente
das verdades científicas. Este ou aquele aspecto da realidade contrapostas aceitar uma ideologia única, global?
objetiva pode se refletir com relativa fidelidade, com maior ou A sociedade brasileira possui, na verdade, na atual etapa do
menor refração, mesmo numa teoria falsa no seu conjunto ou por seu processo histórico um interesse geral: o de se emancipar
seus princípios. Se bem que em proporções mais limitadas do que nacionalmente da opressão imperialista norte-americana. Este
nas Ciências Naturais, isto não deixa de ocorrer no campo das interesse geral desperta, estimula e fortalece a autocomciência
Ciências Sociais. Daí não se segue, todavia, qualquer justificação nacional, que é comum a todo povo brasileiro. Deste interesse
da indiferença ·teórica. Muito mais do que os empíricos e os geral surgiu o movimento nacionalista, ou seja, uma aliança
ecléticos, contribuíram para a histórica do pensamento os sábios polltica, que abrange o proletariado, os camponeses, a burguesia
que aspiraram à coerência teórica e souberam realizá-la no plano
e o~tras forças sociais. É utópico, porém, como fazem alguns
superior dos conhecimentos de sua época. Engels muitas vezes
professores do ISEB, extrapolar a aliança política para o plano. da
ridicularizou a estreiteza empírica das Ciências Naturais do seu
ideologia. Se o interesse geral é a questão principal desta fase,
tempo, demonstrando como ao avanço delas era indispensável o
entretanto não elimina as contradições de classe. e estas se refletem
pensamento teórico. E dizia ainda que os cientistas que desprezam
inevitavelmente nas contradições ideológicas. A aspiração a for-
a Filosofia (entendida como teoria do pensamento) não estavam
mular, pretensam.ente acima das classes, a ideologia global para
menos escravizados a ela, " mas infelizmente na maioria dos casos
uma nação, dividida em classes, constitui, consciente ou incons-
à pior filosofia" ... 14

218 219
A REDUÇÃO SOCIOLóGICA AP~NDICE IIJ - CORRENTES SOCIOLÓGICAS •••

cientemente genuína aspiração burguesa. O seu objetivo social racterísticas específicas, o seu movimento relativamente autôno-
consiste em ganhar para á ideologia da burguesia aquelas massas, mo. O .norce-americano Lewis Morgan chegou a descobrir e
cuja ação o sr. Vieira Pinto, como nacionalista e conio demo- esboçar o materialismo histórico independente de Marx e por um
crata, sabe e proclama indispensável ao desenvolvimento na- caminho bem. diverso. IG Nem por isto deixaremos de reconhecer
cional. A este objetivo não pode deixar de se opor o proletariado as grandes linhas de classe quando comparamos Marx a Comte
consciente, que possui a sua ideologia própria, muito mais avan- e Spencer e verificamos a imensa superioridade científica do ponto
çada, voltada, além da emancipação nacional, para o socialismo de vista. proletário do primeiro.
e a sociedade sem classes. Daí porque o proletariado, aliando-se
Cumpre dizer que hoje nó Brasil há campo para uma socio-
à burguesia na luta pela emancipação nacional, não só deverá
logia e uma economia política desenvolvidas de um ponto de
permanentemente defender-se do agravamento da exploração
vista burguês nacionalista. Esta sociologia e esta economia polí-
capitalista, como empenhar-se, no seu papel de força de -van-
tica já produziram contribuições para o estudo do processo capita-
g~arda, por um curso conseqüente da revolução antiimperialista
lista brasileiro, que nenhum marxista pode desconhecer e deixar
e antifeudal.
de valorizar. É de esperar que contribuam ainda mais na · me-
As mesmas considerações são válidas para a idéia de uma dida em que consigam se libertar da influência de teorias pro-
sociologia nacionaL Ao ponto de vista teórico, parte das premissas cedentes da burguesia norce-americana e européia em decadência,
idealistas e relativistas, que já examinamos acima. Do ponto de sofrendo os males tremendamente agravados da época do impe-
vista do seu conteúdo de classe, é também uma idéia burguesa. rialismo. O pensamento teórico da burguesia imperialista não
O sr. Guerreiro Ramos reclama do sociólogo uma atitude· pode convir aos setores mais av~nçados de uma burguesia, como
engagé para com a sua sociedade nacional. Esta posição se encon- a brasileira, que ainda vive num estádio historicamente pro-
tra, sem dúvida, acima da falsa imparcialidade pretendida · gressista (à influência do existencialismo, já comentada acima,
principalmente pelos seguidores da sociologia norce-americana. acrescente-se, por exemplo, a de Keynes entre os economistas).
Apesar, porém, das possibilidades _que encerra, aquela tese do Dirigidos contra aquele pensamento teórico, os princípios meto-
sociólogo isebiano é falsa, em virtude da estreiteza específica (de dológicos formulados pelo sr. Guerreiro Ramos poderão desem-
classe) que o leva a focalizar, com bastante acuidade, a contradição penhar um papel profícuo.
nacional e ao mesmo tempo a subestimar as contradições entre as
Seríamos, porém, unilaterais se não levássemos em conta a
classes sociais. Mas é no terreno destas que o sociólogo deve tomar
estreiteza e a inconseqüência de toda a orientação intelectual
partido com o máximo de consciência. A objetividade científica
burguesa. A sua superação foi realizada pelo pensamento marxis-
~ que a pseudo-imparcialidade não consegue salvaguardar -
ta. Em nosso país, o próprio processo capitalista, desenvolvendo
não depende aí diretamente do partidarismo como tal, mas do
o proletariado e incrementando a sua importância política, torna
caráter social do parcidarismo, ou seja, do caráter da força social
uma necessidade (n~ sentido filosófico do termo) as ciências sociais
cujo ponto de vista é adotado pelo sociólogo. O papel desta força
de orientação marxista. O fato de que o pensamento burguês
social na etapa histórica dada condicionará d~cisivamente, em-
ainda se encontra em condições de produzir certos frutos de
bora sem determinar em toda a linha (o que seria impossível), o
modo algum torna o marxismo menos necessário.
grau de objetividade do trabalho sociológico. Naturalmente, não
cabe esquecer como o faz o raciocínio mecanicista vulgarizador Não iremos aqui esmiuçar as causas que até agora freiaram o
do marxismo, que o processo do conhecimento tem suas ca- desenvolvimento do marxismo no Brasil. Na ordem de conside-

220 221
A R.EouçAO SOCIOLÓGICA APllNDICE III - CORRENTES SOCIOLÓGICAS .••

rações que estamos faze~do, apenas queremos assinalar que os norte-americanos e brasileiros. Esta universalidade teórica reflete
marxistas brasileiros não escaparam à limitação que marca, no seu corretamente a realidade objetiva e tem a sua base ideológica de
conjunto, a história do pensamento teórico em nosso país. O classe no caráter internacionalista do proletariado.
marxismo foi transplantado para cá em sua generalidade. Faltava Mas à concepção marxista da vida social é inerente a dialética
e ainda falta a assimilação crítica, ou seja, dialética, desta gene- entre o geral, o particular e o singular. Esta dialética, que já existia
ralidade a fim de concretizá-la nas particularidades nacionais. Às em Hegel, tornou-se materialista com Marx e Engels. Ela está
causas de ordem interna que influíram para isto acrescentaram- presente, desde o início, na obra de Lenin, que, por isto, p6de
se outras de ordem externa, porque o marxismo se difundiu no superar criadoramente o dilema revisionismo-dogmatismo. A
Brasil n~ma fase em que a ele aderiram - apenas aderiram, sua polêmica contra o primeiro foi sempre acompanhada, ou
porque lhes são substancialmente estranhas - componentes melhor, penetrada da mais severa refutação do segundo. Dizia
deformadoras de natureza dogmática e até mesmo mística, rela- Lenin em 1899:
cionadas, como se sabe, ao culto da personalidade de Stalin. O Em absoluro, não consideramos a teoria de Marx como
fen6meno, .está claro, se manifestou de modo muito variado em algo acabado e imutável: estamos convencidos, pelo contrá-
cada país. Entre nós, chegou a atingir proporções inflacionadas. rio, de que esta teoria não fez senão colocar as pedras
angulares da ciência que os socialistas devmz impulsionar em
No processo autocrítico que tanto vem enriquecendo o pen- todos os sentidos, sempre que não queiram ficar atrasados
samento marxista nos últimos anos, não faltou em nosso país, com relação à vida. Pensamos que para os socialistas russos
como em outros, quem enveredasse pela revisão dos princípios é particularmente necessário impulsionar indepmdmremmu
do marxismo para deformá-lo em definitivo, ou simplesmente a teoria de Marx, porque esta teoria dá somente os princfpios
dir.tivos gerais, que se aplicam em particular à Inglaterra d.e
o rejeitasse como inadequado para o estudo da realidade nacional.
modo diferente do que à França; à França de modo diferente
Atitude marcada pela fraqueza e até pelo ridículo porque de· do que à Alemanha; à Alemanha de m odo diferente do que
muitos que se fizeram portador~ do pior espírito dogmático e à Rússia17 (os grifos são de Lenin).
abandonam o marxismo precisamente quando, desembaraçado ·Lenin soube aplicar ao particular da Rússia o que é geral na
desse espírito, pode ser restituído a toda a sua formidável potência teoria de Marx e Engels, extraindo daquele particular todo um
criadora. E ainda sem refletir - o que é primordial - sobre a acervo de novos elementos para o geral da teoria marxista. Esta
ação prática do marxismo na história mundial, sobre o seu gran- dialética foi seriamc;nte violada por Stalin, apesar de ter sido
dioso triunfo numa área habitada por um terço da humanidade. importante marxista. Não é preciso insistir em que ficou, du-
O materialismo histórico é teoria sociológica do marxismo. rante muito tempo, praticamente desconhecida para os marxistas
Representa uma teoria geral sobre a sociedade humana. As suas brasileiros. Desvinculado das particularidades· e das singulari-
categorias fundamentais tem caráter universal. As categorias dades em que deve se manifestar e concretizar, o geral se afasta
analisadas e sintetizadas em O Capital são para todos os países, da realidade objetiva em devenir, rende a se transformar e acaba
como o é o desenvolvimento que lhe deu Lenin, ao estudar a fase se transformando em pura abstração, adquirindo afinal um cará-
imperialista do capitalismo. Nenhum relativismo pode impedir, ter de entidade metafísica. Este desvio gnosiológico se fez acom-
por exemplo, que um conceito como o de imperialismo seja panhar de outro ainda: a arbitrária elevação à categoria de gene-
compreendido, no sentido mais concreto possível, exatamente da ralidade do que não representava senão particularidade e, às vezes,
mesma maneira pelos comunistas franceses e argelinos ou pelos apenas singularidade. Perdeu-se de vista que entre geral, particular

222 223
A REDU('.ÁO SOCIOLÓGICA
APllNDICE Ill - CORRENTES SOCIOLÓGICAS •..

e singular não há somente unidade, mas também contradição. A concreta da realidade concreta. Pois, como dizia Hegel, com
preocupação se concentr;va em encontrar os exemplos brasileiros ironia, são os indivíduos inteiramente ignorantes q ue racioci-
das teses marxistas, os que se agregassem mecanicamente aos nam de modo abstrato ...
exemplos de outros países, e não o modo particular de manifestação
de leis universais na realidade social de nosso país. Notas
Era inevitável que tudo isto conduzisse a certas fixações {1) A Redução sociológica. Rio de Janeiro: edição do Instituto
Superior de Estudos Brasileiros, 1958.
dogmáticas, que afastavam os marxis.tas do estudo concreto da
NOTA: O presente artigo já estava composto quando se
realidade concreta, frei ando o desenvolvimento da teoria e reper-
verificaram no ISEB os fatos relacionados com a publicação
cutindo nocivamente, em conseqüê~cia, na ação prática. A de uma obra do sr. Hélio Jaguaribe. Daf porque não fa-
dialética deixava de sê-lo, tornava-se seu contrário- a metafísica. zemos referências a estes faros nem à posição que diante
Aqui se encontram, segundo nos parece, alguns dos principais deles assumiu o sr. Guerreiro Ramos. Pensamos, porém,
aspectos gnosiológicos do dogmatismo que impregnou o pensa- que isto não afeta a validade das opiniões aqui expen-
mento marxista no Brasil. didas O.G.).
(2) Idem, p. 19.
Compreende-se que não deve ser negligenciado o mal contrá-
rio: a absolutização dm particularidades, que passariam a constituir (3) Idem, p. 20.
o grau máximo do conhecimento. Ficaria vedado desta maneira (4) Idem, p. 52.
o caminho para descobrir o geral que se contém em todo o (5) Idem, p. 89.
particular. Teríamos uma forma bastante característica de impo- (6) Idem, p. 52 e 53.
tência teórica, própria do revisionismo. (7) Idem, p. 43.
As categorias de geral e particular estiveram, por assim dizer, (8) Idem, p. 95
no centro das discussões que se· travaram recentemente no mo- (9) Idem, p. 77.
vimento comunista mundial. O tema é inesgotável, como o (10) LucKAcs, Georges. Existencialisme ou marxisme?, p. 76-77.
Paris: Edition Nagel, 1948.
próprio devenir da realidade objetiva, mas o esclarecimento que
(11) GuERREIRO RAMos, op. cit. p. 83 e 84.
já se alcançou a respeito trouxe nova riqueza para a filosofia e
(12) LENIN. Materialisme et empíriocriticisme, p. 149. Moscou:
a sociologia marxista. Surgiram sobretudo melhores condições
Edition en langue étrangéres, 1952.
teóricas para o desenvolvimento do pensamento marxista no maior
(13) GuERREIRO RAMos, op. cic., p. 95.
número de países, ao contato com as mais variadas particulari-
(14) ENGELS, F. Dialectics of Nature, p. 58, 273, 279 e outras.
dades . de realidades nacionais extremamente diversas. Moscou: Foreing Languages Publishing House, 1954.
Há, sem dúvida, o que aprender com os resultados parciais (15) VIEIRA PINTO, Alvaro. Ideologia e desenvolvimento naciona~
alcançados por outras correntes de pensamento. Isto não nos p. 43. Rio de Janeiro: Edição do ISEB, 1956.
afasta, porém, da convicção de que somente o materialismo (16) ENGELS, V. In: Obras escogidas de Marx y Engels. Tomo
dialético e histórico fornece o instrumental verdadeiramente !I, p. 157 e 475. Mciscou: Editiones en Lenguas Extranjeras,
científico de leis gerais, categorias e princípios metodológicos 1952.
para a investigação e o conhecimento da vida .social brasileira. (17) LENIN V. I. Marx, Engels y el Marxismo, p. 117. Moscou:
A questão é aprender a manejar este instrumental na pesquisa Editiones en Lenguas Extranjeras, 1947.

224 225
AP~NDICE IV
Observações Gerais sobre
a Redução Sociológica 1

Em uma estrutura colonial também existe prátíca mas há


diversos setores onde as idéias consumidas são importadas. Por
uma questão de "economia intelectual" é mais rendoso adotar
idéia_s do que estudar os problemas nacionais e produzir soluções
originais. Compram-se roupas usadas e po.r isso se pode dizer em
muitos casos que "o defunto era maior". Mas a roupa sob medida
é mais cara: ela só se torna possível quando há excedentes na
sociedade e quando esta se complica a ponto de tornar inescapável
a necessidade de_soluções originais. Este fenômeno ocorre desi-
gualmente em diversos setores.

* * *
Outro fator a produzir a transplantação é a alienação da elite
intelectual. Ela se "identifica" com as elites dos países adiantados.
Como se trata de um problema de psicologia social, a transplan-
tação se realiza nos setores onde o "prestígio" entra em ação. Mas
a prática obriga à redução. O compromisso é "fingir" que se está
A REDU ÇÃO SOCIOLÓGICA AP~NDI CE IV - OBSERVAÇÕES GERAIS •••

aplicando urna idéia estrangeira e na realidade reduzi-la à rea- chama de "redução tecnológica". A redução tecnológica tem baixo
lidade brasileira. · "teor ideológico". Esta seria urna conseqüência da lei do com-
Um conceito auxiliar a introduzir: "teor ideológico" do pro- prometimento: esta lei é tanto mais válida quanto mais elevado
blema. A redução sociológica necessita de "energia" para ser feita o teor ideológico". Nos casos de "teor ideológico" fraco, a
na razão do "teor ideológico". Este "teo.r ideológico" estaria redução pode ser feita até por estrangeiros.
condicionado pelo "prestígio". Na agricultura, na engenharia
etc., os problemas práticos têm menor "teor ideológico", a não PESQUISA NO jORNAL DO AGRICULTOR (1879/1884)
ser em casos especiais (preciosismo tecnológico, planejamento de
obras faraônicas etc.). Onde hd prdtica, hd redução
* * * ... simples noras do que recolhe a observação e a experiência:
tal planta cresce mais em terreno seco que úmido, tais frutos
As exigências da prática obrigam a criação. Se as massas não dão mais à sombra do que ao sol, tais sementes se conservam
estão politizadas, urna pequena elite que detém o poder im- e germinam melhor deste que daquele modo, em resumo:
porta figurinos e finge aplicá-los. Quando as massas começam a rodas as descobertas do acaso ou sistemas seguidos geralmen-
se politizar (em conseqüência do desenvolvimento, da industria- te no lugar em que se vive, ou particulares que a experiência
lização, urbanização etc.), começam a surgir problemas práticos. tem ensinado .... D este modo se trocarão as descobertas e
Isso força o estudo da realidade. A redução será feita mais cedo por todos serão aproveitados. A conftaternizaçlio nas idéias,
a permuta dos conhecimentos, nestes casos, podem influir mui-
ou rna1s tarde. tas vtzes mais no aperfeiçoamento e progresso que os proceiJos
implantados de palses estranhos de climas tiúJ diftrentts do
* * * nosso. ... Todo aquele, diz o h istoriador Abreu Lima, que
A transplantação e a alienação são características do diletan- concorre para a feitura deste grande edifício, que se chama
tismo, da falta de ligação com a prática e das conseqüências -nacionalidade- ainda que carregando a mais pequenina
desprezíveis do desconhecimento da realidade. Quando tudo pedra para as paredes inferiores, presta um bom serviço ao
pals. Operário das sombras, o fama/ do Agricultor vem trazer
isso se transforma, surge a redução. O "lavrador da corte" sugere
o seu monolito rude e informe para lançar no embasamento
métodos agrícolas que causaram sucesso no estrangeiro. Mas
dessa grandiosa edificação, que ainda os arquitetos não aca-
o lavrador do campo, que conhece a realidade, e que suporta baram de delinear (Intrqduçáo, ano I, n. I, p . 3-4).
diretamente as conseqüências das transplantações desastrosas,
ignora-lhe as recomendações e cria uma técnica nacional. O fato Obstdculo ao nosso progresso intelectual: pequeno intercâmbio de
de a técnica ser nacional · não implica, contudo, que seja neces- experiências
~ariarnente urna boa técnica, rendosa e produtiva. Mas reflete as ... uma parte do nosso programa: derramar pelos estudiosos
condições sociais, culturais, econômicas etc., do país. os frutos da experiência dos observadores, esperando tam-
bém que estes se dignem de nos honrar coin os frutos de sua
experiência, para que possam ser aproveitadas todas essas
A escala da redução deve ir da "redução pura" de urna ideo- lições que se perdem ou ficam no estreito círculo do m uní-
dpío, quando não do próprio descobridor (A Plantação do
logia estrangeira ou um produto intelectual condicionado pelo
cafeeiro, ano I, n. 3, p. 35).
contexco estrangeiro à simples adaptação técnica que Guerreiro

230 231
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA ArllNDICE IV - OllSERVAÇóES GERAIS ...

justificação da poda n_.as condições brasileiras estimular a produção: é caso, então, de aplicar a cultttra
extensiva (Os Sistemas de Cultura, C. B., ano I, n. 14,
Quando os cafeeiros deveriam estar mais robustos e
p. 209)
ativos faltam-lhes ar e luz suficientes e carregam menos, não
só por estarem muito próximos uns dos outros, como por Não obstante, a transplantação também é encontrada na
rerem os seus ramos ramada um desenvolvimentq exagera- agricultura
do. Esre excesso de vegetação, devido à riqueza nutritiva do Insistimos nestas questões porque, sendo a economia
solo - terra roxa ou massapê - torna necessário no Brasil, rural uma ciência quase que desconhecida no Brasil, qutrt-
mais ·do que nos países em que se acha adaptado de há mos pôr os agricultores de prtvenção contra teorias prtconizadas
muit~, o emprego metódico da poda (A Cultura do cafteiro pelos admiradores da agricultttra ing!tsa, qtlt não olham senão
nti prtwlncia de São Paulo. Extratos do Relatório do dr. Luiz para os rtsultados, sem se dar ao trabalho dt txaminar se o
Couty, ano I, n. 11, p. 162). Brasil, no ponto de vista agrlcola, acha-st nas condições da
Inglaterra (C. B., A Cultura pelo Capital e a Cultura pelo
Um engenheiro francês mostra a prática como base da redução Tempo, ano I, n. 16, p. 241, 18 de outubro de 1879)
... experiências de pouco custo e facílimas darão a conhecer
um processo d~ poda adaptado às condições de vegetação no Redução sociológica completa, incluindo o caráter consciente e
Brasil" (Idem, p. 163). nacionalista
Para produzir barato e com lucro é preciso ser de seu
Um engenheiro francês pode fozer redução de baixo teor
tempo e de seu país; por isso, os agrucultores que aplicam
ideológico no Brasil uma cultura extensiva adequada às circunstâncias econô-
... parece-me de faro, evidente, que os arados, as grades etc., micas do Brasil merecem, ao nosso ver, o rículo de lavradores
muito próprios para as culturas nos solos arenosos ou progressistas, ao mesmo título que os agricultores ingleses
calcáreos da América do Norte ou da Europa, não poderão que, em circunstâncias opostas, têm abraçado com dpida
ser aplicados sem modificação, ao solo do Brasil, solo argi- energia a via da cultura intensiva (Idem, p. 242)
ioso, muito higroscópico, muito permeável à água, porém,
endurecido com o menor calor (Idem, p. 163). Um latifundiário consciente fazendo redução sociológica
...por um destes saltos da natureza que matamos a nossa
Consciência das condições brasileiras na agricultura nascente indústria de construção naval, a nossa nascente
Nos países de adiantado progresso agrkola e industrial, marinhagem, decretando a cabotagem livre.... por uma má
eleva-se o preço da terra a tal ponto que, para explorá-la com interpretação do procedimento da Inglaterra supunha-se
resultado, acha-se o lavrador na necessidade de lançar mão, que o comércio livre viria trazer-nos a prosperidade que
em proporção sempre mais larga, da mão-de-obra e dos aquela nação havia alcançado. Esqueceram-se que a Ingla-
estrumes, isto é, do capital. Em tais condições. não se pode terra só se lembrou do fru-trade quando verificou que ainda
mais hesitar, não há cultura possível a não ser a cultura com o comércio. livre poderia exercer um como que mono-
intensiva.... Mas, estando o progresso abaixo de um cerro pólio manufatureiro e comercial. Não repararam que os
nível, de maneira que as terras estejam quase sem valor, Estados Unidos, apesar de roda a sua prosperidade, acham
como acontece em vários pontos da Europa, e na maior parte ainda oporcuno conservarem-se sob o regime protetor.
dos países :irnericanos, então o probltma agrlcola não st Não observam, os nossos secdrios desta idéia, os apuros em
fundamen~a nos mesmos dados. A terra rem pouco valor, a que se acham a Inglaterra e a França, com seu comércio livre,
população vive derramada em vastos espaços, a mão-de-obra depois que a carne e o trigo dos Estados Unidos vão inun-
é escassa e inábil, pouco laboriosa, conseguintemente cara; dar-lhes os mercados, perturbar-lhes as indústrias simi-
as estradas; os mercados, as relações comerciais faltam para lares, provocando na opinião pública uma tendência a sanar

.232 233
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA AP~NDICE IV - 0 BSERVAÇ0ES GERAIS ...

estes inconvenientes com direitos compensadores, que vão do qual é dada uma notícia na edição de 15 de oucubro de 1881,
diretamente ao sistema protetor. Nada pior, JT. Redator, do ano III, n. 120, p. 250.
que julgar as nossas coisas mcarando-as à luz dos prindpios de
autores que escrevem para outros palses, em cirmnstdncias mui Onde há prática pode-se formar uma técnica nacional
diversas- ou com as observações feitas neste mundo flores- No Jornal do Agricultor há vários exemplos de fazendeiros
cente que se chama corte, onde, de certo, não se reflete o pais realizando estudos e observações práticas e chegando a conclusões
agrlcola, tal como ele é.... Querer legislar para o pais com
que refletem as características brasileiras de solo, clima, métodos
observações feitas nestes estreitos e enganadores recintos é
querer legislar, como se diz, para inglês ver (C. da S., Ecos
de trabalho, estágio econômico etc. Na edição de 29 de outubro
da Roça, ano 11, n. 65, p. 193-194, 25 de setembro de 1880). de 1881, ano IH, n. 122, p. 282-284, há uma carra do fazendeiro
Augusto de Souza Brandão, típica e reveladora, onde ele relata
Embora hoje pareça retrógrado, este era o ponto de vista certo suas experiências com diversas sementes de café importadas, o
na época sucesso da qualidade Maracugipe, os fracassos do Java e do Libéria,
embora clamem os nossos teoristas pela pequena lavoura, dando as razões climáticas, de solo etc.
como a mais produtiva, é faro incontroverso no Brasil que
a iniciativa, a energia e o progresso pertencem à grande A ignorância e a falta de prática estão na base da transplantação
lavoura. ... Para a pequena lavoura ser no Brasil o que é na
Se tiveSsem os nossos partidos políticos grupos de ho-
Bélgica e em outros palses, convém antes de tudo educar e mens independentes, dedicados ao bem público, que se
instruir o homem rústico. Este, entre nós, mal cultiva o
revezassem na administração, de longa data estas e muiras
necessário para não morrer de fome, e aqui temos em várias outras questões estariam resolvidas; mas pelo caminho que
freguesias próximas muitas lavouras pequenas que podem
vamos, ministérios sucedendo uns aos outros, em curtos
ser estudadas pelos nossos teoristas que falam sem conhecer intervalos, compondo-se na maior parte de aprendizes de
as circunstâncias peculiares do país (C. da S., Ecos da roça, administração, encaixotados em um baú de livros franceses
ano 11, n. 70, p. 275, 30 de outubro de 1880). - nem ao menos ingleses ou mesmo americanos do norte;
- com tal gente não se progride, não há questão séria que
A psicologia dos agricultores leva-os à redução se resolva.... Os nossos lavradores literatos da rua do Ouvidor
Os nossos lavradores são essencialmente conservadores, ou de salão, habituados a frases jurídicas, inventaram as
em coisas da lavoura... Assim, não lhes bastam as teorias definições de lavoura intensiva e extensiva, sobre as quais
escritas, por mais belas que sejam, para alterarem os proces- fazem suas dissertações filosóficas, e com isso grande mal. ...
so~ agrícolas que receberam de seus avós; 'querem ver,' querem Quando homens ilustrados se metem a lavradores, não ten-
observar, querem se convencer, enfim, de ser o novo proces- do conhecimentos elementares da ciência agrária, defendem
so melhor que o outro, que as máquinas que têm diante dos e sustentam absurdos (Numa, A agrir:ultura e sttts verdadeiros
olhC:,. são as que dão os resultados prometidos U. P. L. S., interesses, Extratos do folheto citado, ano IV, n. 197, p. 218,
Estolas agronômitas, ano 11, n. 75, p. 360, 4 de dezembro 7 de abril de 1883),
de 1880).
Um engenheiro francês foz redução sociológica
Projeto e construção de equipamento nacional no século. .. . as tarifas do tráfego foram organizadas sob a influência das
A prática na agricultura levou até à produção de equipamento idéias que guiavam naquela época o procedimento das com-
panhias de vias férreas européias, e que nem as diretorias
nacional. O Jornal do Agricultor cita vários exemplos. Um deles
residentes em Londres, na mais completa ignorância de
é o secador de café dos engenheiros brasileiros T aunay e Telles, nossas peculiares circunstâncias, nem os seus agentes no

234 235
A REDUÇÃO SOCIOLOGICA AP~ND ICE IV - OnsERVAÇOES GERAIS ...

Brasil, que se achavam no mesmo caso, se deram ao trabalho Papel duplo da ignorância: traz a rransplancação e traz
de indagar a5 causas da insuficiência das receitas..... QÚando a prátic~. A ignorância da prática traz a transpiancação. A dos
principiou a Europa a cobrir-se de vias férreas, já se havia livros desenvolve. uma prática nossa.
verificado ali a substituição dos transportes por carros, em In the development of techniques, fazendeiros had few
boas estradas de rodagem, ao transporte às costas de animais, manuais and such as they had were based on inadequate
e a conseqüente diminuição dos fretes; a produção triplicara practice and poor theory. Even those few were resrricted in
e a soma dos transportes existentes já era tal que bastava às influence, for rhe number of literate fazendeiros was small.
companhias de vias férreas realizá-los sobre seus trilhos para Consequently the methods used by early coffee growers
obterem lueros ... Por isso, tomaram elas por base, na orga-
were those of criai and error (Stanley J. Stein, VasJourar,
nização de suas tarifas, os preços dos transportes nas estradas A Brazilian Co.lfu County, 1850-1900, Harvard, Cambridge,
de rodagem, sujeitando-os apenas ao abate indispensável 1957, p.23).
para obter o fim desejado.... & nossas circunstâncias não
eram as da Europa, ainda não saímos da fase primitiva dos
transportes às costas de animais... nenhuma (das vias férreas)
A prdtica rndimentar desenvolvida sem esplríto cientifico
podia encontrar na produção acuai da mesma rona transpor- Left to their own devices, planters fell back upon the
tes suficientes.".. Força lhes era contar com o desenvolvimento common agricultura! /ore that droeloped with the 1pread of
da p~odução resulrance da diminuição do custo dos transpor- coffie cultivation: che color ofthe soil, elevation of the terrain,
tes, e com este fim deviam organizar suas tarifas tomando and its exposure in relation to the sun (Stein , Vasrourar,
por base, em lugar do preço dos transportes às costas de p. 6).
animais, a quarta ou quinta parte destes preços... Se destarte
houvessem procedido as administrações de nossas vias fér- Redução .no ·principio da século XIX
reas, teriam decuplicado em poucos anos, numa área muito
Borges de Barros in one of the first Brazilian coffee
mais extensa que a em que hoje faz sentir a sua ação, a
manuais offered a shorr bibliography of French authors who
produção (H. A. Miller, Estradas de Ferro Brasileiras)
wrote on coffee planting in the Antilles. In closing his
As Alras tarifas, ano IV, n. 205, p. 357-358, 2 de junho
artides he gave advice... "It's not wise to read these materiais
de 1883). ·
wichout fim understanding the necessary principies for
reasoning with them, and to avoid following blindiy what
NOTAS DE FONTES DIVERSAS they say, for other-wise it is very easy to Jose time and money
becau.se there authors who publish readiy what chey imagine
Trabalhos originais na agricultura without the stam experience... we must cherefore read
No setor da agricultura no Brasil, como houve muita prática, carefully but never practice what we get from our reading
pode-se observar a presença de exemplos de redução sociológica, without Jtudying the local Jiruation". "Memória sobre o Café",
adaptação (mesmo para pior) de técnicas estrangeiras etc., e O Patriota, VI {]une, 18 13), 43. Padre João Jóaquim Ferreira
de Aguiar, who lived in the municípios of Vassouras and
produção original. Em um livro recente (Edgard Fernandes
Valença, attacked the most importam Brazilian agricultural
Teixeira, O Trigo no Sttl do Brasil, São Paulo, 1958) há notícia periodic of the rime, the Auxiliitdor da Jndúrtria Nacional,
do desenvolvimento de variedades b~asileiras de trigo de grande because it had puhliJhed "jitze theorieJ and the practim of
rendimento e resistência utilizadas nos Estados Unidos, Canadá, foreignm; bm Jaid nothing on the theory and practice of
México e até na Argentina (vide p. 171-173). Essas variedades Brazilians~ Pequena Memória Jobre a Plantação, Cultura e
Colheita do Cafl na qual Je expõe 01 procmoJ Jeguidor pelor
são quase todas resultado do trabalho da Estação Experimental
fazendeiro! dma Provlncia derde que u planta até ur expor-
de Veranopólis, Rio Grande do Sul, pertencente ao Ministério tado para o Comércio (Rio de Janeiro, 1836) p. 5-6 (Stein,
da Agricultura. Vasrouras, p. 23-24).

236 237
A REDuçAo SocioLóGICA Ar~NDICE IV - ÜBSERVAÇóES GERAIS . ..

A técnica dos homens educados na Europa era nacional na Uma epígrafe nacional para A Redução Sociológica
agricultura ... é lastimávd que ainda hoje procuremos nas velhas páginas
de Saim-Hilaire notícias do Brasil. Alheamo-nos desta terra.
In a trace written by one affluent fazendeiro for his
Criamos a extravagância de um exílio subjetivo, que dela nos
European-educated son, ignoram of Brazilian agricultura!
afusta, enquanto vagueamos como sonâmbulos pelo seu seio
practices, and empirical correlation was made becween
desconhecido (Euclides da Cunha, Contrll!tes e Conftontos,
various crees and the soil in wich they grew. "F rom afar thc 6• ed., Porto, 1923, p. 85).
qualicy of rhe land can be judged by rhe foliage, especially
in spring, when blossoming aids thc classification of
vegetation" he wrire. "Give accention co rhe foliage, rhe
Outra epigrafo nacional
shape and height of the branches, rhe color of the flowers, ... o cosmopolitismo - essa espécie de regime colonial
if there are any (Francisco Peixoto de Lacerda Wernwck, do espírito que transforma o filho de um país num emigrado
Memórja sobre a fondaçiío e costeio de uma fazenda na virtual, vivendo estéril, no ambiente fictício de uma civi-
Provfncia do Rio de janeiro (4th ed., Rio de Janeiro, 1878), lização de empréstimo (Euclides da Cunha, Contrasus e
p. 1, 3-4. rhe first edition was written before 1847) (Stein, Conftontos, p. 178).
V4!souras, p. 31 -32).
M arx e a "Mentalidade colonial"
Desenvolvimento de uma técnica
T o rhe present moment Political Economy, in Germany,
The practice of planting coffee in rows that climbed and is a foreign science:.. This "science" had to be im ported
descended the hillsides evolved from local expcrience. from England and France as a ready-made artiele; its German
...Agostinho Rodrigues Cunha believed that "the way· of professors remained schoolboys. The teoretical expression of
plaming coffee groves without order... was rejected because . a foreigrt realicy was rurned, in cheir hands, imo a collection
ir made hoeing and harvesting difficulr; rhen rhere carne rhe o f dogmas, interprered by chem in terms o f rhe petcy rrading
system of planring in !ines. Arte da mlh.ra e preparação do world around them, and therefore misimerpreted (Katl
caft, Rio de Janeiro, 1844, p. 29 (Stein, Vassourll!, p. 33). Marx, O Capital, Modem Libracy, New York, p. 16-17,
(No mesmo livro, p. 34, discutem-se os aspectos negativos Preface to the second edition).
dessa técnica. O importante, porém, não é sua qualidade, e
sim o fato de ser um produto da prática nacional). A inércia social da transplantação: apesar das denúncias,
permanece
Um engenheiro franâs contra a transplantação na alimentação
Não há, assim, uma razão forre para se apegar inflexi-
Coucy exhorted fazendeiros to maintain t he basic velmente em especificações dadas, podendo variar um pouco,
Brazilian diet by changing only minor details of preparation. desde que sejam, naturalmente, respeitadas as condições
"I deplore", he wrote in 1881, "this mania for evecything fundam entais. Há mesmo necessidade de que no Brasil
European spreading to rural centers and obligaring people to façamos as nossas experiências, para verificar quais as moda-
range far and wide for new foods and condiments wich do lidades que dão melhores resultados. É preciso que percamos
not harmonize with rheir necessities and are perhaaps bad os receios de alguns fracassos e executemos quanto antes
for public health (Louis Coury, "L'Aiimentation au Brésil et serviços deste gênero, em grande quantidade, para que pos-
dans les Pays Yoisins", Rem<e d'hygiêne et de police saniraire, samos fixar os elementos que mais nos convenham. Só com
III (1881), 183-195, 279-294, 470-486) (Stein, Va.ssortrll!, · fracassos é posslvel fazer o estudo correspondente e sde-
p. 79). cionar o q ue é bom. Os outros países já passaram por esta ·

238 239
AP~NDICE IV - ÜBSERVAÇÓES GERAIS ...
A REDUÇÃO SociOLóGICA

fase e nós não podemos pretender transplantar experiên- Redução sociológica na agricultura
cias estrangeiras esperando resulrados lOOo/o satisfatórios. É Não é fácil estabelecer uma rotação de culturas para o
indispensável fazer a adaptação de acordo com os nossos Nordeste (como supõem os críticos dos agricultores nordes-
recursos, as nossas condições naturais e os elementos de tinos), por causa do clima e das culturas permanentes. A
que dispomos. (Os engenheiros brasileiros) não devem ficar rotação ganhou grande popularidade nos climas frios por-
receosos e sim trabalhar com o que dispõem, para que pos- que, ali, há elevado número de culturas de vida curta (idem).
samos formar a nossa técnica própria.
Improvisação, ignorância, transplantação
O caminho do desenvolvimento da técnica nacional No Brasil tudo se costuma fazer por adivinhação; desde
Peco Vaz Caminha, que, depois de ter visto meia dúzia de
No Brasil temos de seguir os bons exemplos e conselhos,
léguas de terras inculcas, ~divinhou que "a terra querendo-
embora simplificados dos exageros para os tornar de mais
a aproveitar, dar-se-ia nela tudo"; até tantos dos nossos
fácil aceiração; devemos estudar os nossos rios, fazer obser-
ilustres e improvisados administradores que, sem terem tido
vações metódicas das chuvas e das descargas, formar, nestes
tempo de estudar os problemas, adivinham-lhes genialmente
rrabalhos, a competência técnica nacional (F. Saturnino de
as soluções definitivas que duram quatro anos .... Tudo,
Brino, Melhoramentos do Rio Tiet2, Rio de Janeiro, 1926).
porém, que se diz e que se afirma, ou quase iudo, é fruto da
observação superficial, da repetição rotineira, dos palpites
Mesmo na agricultura o ensino foi alienado mais ou menos otimistas, da ignorância que . se ignora
Através do ensino agrícola saturado com idéias e teorias (Paulo Sá, Indústrias de Construção, Instituto Nacional de
Tecnologia, Rio de Janeiro, 1948).
expostas por professores estrangeiros; de publicações. di-
fundindo as últimas novidades agrícolas em continentes
frios - , foi a nossa Agricultura orientada, embora bem Quando hd prdtica e preparo técnico, não hd transplantação
intencionalmente, para um choque com o ambiente Uosé· Nos detalhes é que há a novidade~ a diferença entre nós
Guimarães Duque, Solo e água 110 polfgono das secas, Depar- e os países mais desenvolvidos. É inútil procurar grandes
tame~to nacional de obras contra as secas, publicação 148, diferenças no estrangeiro. Nenhum de nós lá irá para ver
Fortaleza, 1949). coisas espantosas ou receitas infal(veis para resolvermos nos-
sos problemas (Milton Vargas, A Tecnologia na engenharia
rodoviária, Aula no Curso de Pavimentação promovido pelo
De como a prática vira técnica científica
Departamento de Estradas de Rodagem do Distrito Federal,
Antes de inovar, de·introduzir processos que carecerão Rio de Janeiro, 1955) (Mimeografado).
de ajuste aos hábitos da população, é mais prudente verificar
:~
se a rotina local está em conflito com as necessidades do A razão dos técnicos estrangeiros poderem fazer "redução
momento, em desarmo~ia com o sincronismo do meio ou
tecnológica"
com o trabalho humano. Aquilo que a tradição tem de
respeitável, após passar pelo crivo da análise, depois de afe- ... não há dois problemas técnicos diferentes: o das es-
rido pela investigação, merece a sanção do fundamento tradas "metropolitanas" e o das estradas "coloniais". Há dois
aspectos de um mesmo problema de base enfrentado por
científico (idem).
~odos os engenheiros rodoviários. Considerando-se o clima,
o tráfego, os materiais, os recursos financeiros e de equi-
A falta de quadros dificulta o progresso intelectual
palt)enro disponíveis, que tipo de obra se deve executar,
Devido à acumulação de serviço e deficiência numérica e como conservá-la? U.L. Bonnenfant, "Consrruction et
de pessoal, o SAI ainda não tem uma classificação dos tipos Entretien des routes en pays peu peuplées ou dont l'economie
de solos que ocorrem nas bacias de irrigação (idem).

240 241
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA Al'~ND!CE IV - 0BSERVAÇ0ES GERAIS•••

esc encore peu developpée '; Revu( Génirale des RouteJ (f adornada que ela seja, abre a porca a milhares de desgraças.
Aerodrom(S, dezembro 1953) ... Os publicisras e homens de Estado da Europa (referia-se
à mensagem da Junta de Emancipação Francesa) não conce-
O desenvolvimento não implica necessariamente na criação bem a situação dos países que têm escravidão. Para cá n ão
científica nacional servem suas idéias (João Cruz Costa, Contribuição à História
das idiias no Brasil, José Olímpio, 1956).
& a people, our strenght has lain.in practical application
of scientific principies, rather than in original discoveries....
Extratos do Prefácio escrito para a Y edição do Guia
We h ave imporred ou r theory from abroad and concenrrated
on its applicacions to concrete and immediate problems Médico Para Uso dos Habitantes do Interior da Amazô-
(Scienu and Public Policy, Repore, Scienrific Research Boacd, nia, pelo Capitão-Médico Hermenegildo Lopes de Campos.
Washington, 1947). . A ]Sedição iria sair em 1926. A 1~ edição saiu no final
do século XIX.
A alienação da elite litorânea não deve obscurecer a atividade
prdtica do povo Alguns oficiais do mesmo ofício qualificaram o Guia como
livro de pagelança porque ensinam-se remédios caseiros, feitos
Historians have recendy waked up to the exrene to which
rhey have been document bound. ... Even as lace as the com plantas! Tais sabichões deveriam conhecer a história das
eighreen cenrury, what do we really know - and in terms plantas presentemente adaptadas no receituário ... que foram em
of rhe wrirten records what can we know - about nine- princípio empregadas pelo povo .... Mas os tais criticastros pre-
rhenths of the people, even in literate socieries, who were ferem aplicar preparações duvidosas, remédios estrangeiros, quase
thewmselves iliterate and voiceless? ... There is a vast
sempre caros, sem terem a certeza da eficácia dos mesmos ... O
subhistory which is like prehisrory. lt must be explored if we
ace to have a history of humaniry rather than just of rhe dr. Monteiro da Silva, em artigo publicado em A Noite de 12
aristocracy.... There was much originaliry and creative force de fevereiro de 1923, sob o título "Considerações sobre a Flora
inrhose who did not get inro rhe records. ... This sort of Brasileira", diz que nós, médicos, por uma espécie de dignidade
ching bothers many historians, professionally rrained as they profissional mal compreendida, desdenhamos os remédios da
are to provide a documenrary footnote to "prove"every
nossa flora, tão simples e enérgicos, em favor de produtos mi-
statemenr. But much of life escaped the documenrs (Lynn
White Jr., "The Changing Past", In: Frontim ofKnowledge, nerais de ação duvidosa... " Diz ainda: "o que seria desta população
harper. New York, 1956). sertaneja, se não fossem as plantas medicinais que brotam por
toda a parte... ?" ... Outro sobredito cujo disse a alguém: "O Campos
Não se pode estudar a redução sociológica sem estudar a prdtica devia ter mencionado o nome científico do vegetal!" Mas, digo
nos vdrios setores
eu, de que serve para o habitante do interior saber que o camapu
!I fali ai r d'abord étudier les choses avanr de pouvoir
é uma psallis edulis... ? Referi na. 2• edição que os tais me censu-
étudier les processus" (F. Engels, "Ludwig Feuerbach et la
fin de la philosophi~ classique allemande". In: Karl Marx e ravam porque eu falava em sovaco, barriga da perna, boca do
Friedrich Engels, Étttdes philosophiqu(s, Editions Sociales, estômago etc. Querem eles que para pessoas sem cultura científica
1951). eu fale em região gasrro-quinemea, axila, sternum...

Quando hd interesses em jogo, a consciência crítica se aguça,


Nota
faz-se a redução
(1) Pelos motivos explícitos no Prefácio à Segunda Edição,
O Marquês de Olinda, em 1867, dizia que "uma só
ocultamos o nome do autor deste trabalho.
palavra que deixe perceber a idéia de emancipação, por mais

242 243
r
.APE.NDICE V

i:
~ ;
. '

.,
I

I
·r
!
O Papel das Patentes na
Transferência da Tecnologia
para Países Subdesenvolvidos

Em 1960, na qualidade de Delegado do Brasil a XVI


Assembltia Geral das Nações Unidas, proferimos o dismrso
abaixo transcrito, encaminhando a discussãó do projeto
intitulado: O Papel das Patentes na Transferência da Tecno-
logia para Pa!ses Subdesenvolvidos. Esse projeto se transformou
na Resolução n• 1713 (XVI) da referida Assembltia.

Senhor Presidente: Em nome da Delegação do Brasil e à guisa


de esclarecimentos sobre o projeto ora em vias de ser discutido,
intitulado O Papel das patentes na transferência da tecnolcgia para
palses subdesenvolvidos (Doc. A1C.2/1.565), cumpre-me proceder
a algumas considerações ·preliminares.
A matéria pode ser examinada em vários níveis de profundi-
dade. Creio, porém, não ser necessário, nesta ocasião, acentuar
os seus aspectos analíticos. Sei quanto ela é delicada. Tenho
alguma experiência das desagradáveis controvérsias que costu-
ma suscitar, notadamente no círculo restrito dos que têm grandes
interesses investidos no vigente sistema internacional de patentes.
Em tais círculos, posso dizê-lo com conhecimento de causa, é por
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA
APllNDICE V - 0 PAPEL D AS PATENTES •••

assim dizer difícil, senão impossível, conseguir uma discussão


fenômeno local. Nos tempos clássicos da industrialização, nela
inteligente do assunto. Aí, muito pouco se logra ir além dos
madrugaram a Inglaterra, a seguir os países da Europa Ocidemal
reflexos condicionados, prevalecem pontos de vista biased, distor-
e mais tardiamente os Estados Unidos.
cidos por wishfol thinking, ém resumo, esclerosados, como se não
admitisse revisão o que até agora tem sido praxe no domínio da Todavia, no mundo de hoje, na medida que a tecnologia se
uansferência da tecnologia para os países subdesenvolvidos. depura no elementar empirismo que marcava sua fase anterior e
Anima-me, porém, o fato de . que nos imegrantes desta II Co- se torna crescentememe científica, emancipa-se do localismo,
missão reconheço homens que, não só por dever de ofício, como adquire caráter universal. É dizer, nela podem ter acesso direto
por treino acadêmico e por vocação humanística, vivem perma- todos os povos. A tecnologia amadureceu como atividade sistt;-
nentemente sob o imperativo da objetividade. mática. Sua essência revela-se hoje a todo homem devidamente
treinado e educado, onde quer que esteja. E, o que é verdadei-
Os motivos que levaram o Governo do Brasil a propor às
ramente auspicioso para a humanidade, acabamos de descobrir,
Nações Unidas uma investigação sobre patentes não são român-
como já se observou, que a essência da tecnologia não é tec-
ticos. A investigação lhe interessa de perto e aos países que, na
nológica. Que quer isso dizer? Quer dizer que o que define a
América Latina, África e na Ásia, iniciaram, na presente época,
tecnologia é uma atitude metódica, antes que somatória de
o seu processo de industrialização, mas também atende às neces-
inventos ou materiais tecnológicos. Foi-se o tempo do inventor-
sidades nacionais dos povos materialmente avançados.
vedete, do invemor considerado à maneira das primeiras baila-
A atitude dos povos no tocante ao problema tem variado rinas dos conjuntos coreográficos, como ente raro, dotado de pre-
historicamente. Houve tempo em que na Grã-Bretanha as pa- dicados singulares, capricho da natureza. Embora hoje como
tentes eram impopulares e ordinariamente condenadas como sempre não se possa e não se deva negligenciar a importância
"monopólio". Então eram concedidas a favoritos políticos antes dos fatores que predispõem uns indivíduos mais do que outros
que propriamente aos inventores. Entre os ingleses, a atitude para o invento, este se torna cada vez mais resultado de trabalho
mudou por volta de 1775 quando Watt obteve patente de seu de equipe, produto da pesquisa socialmente organizada. Vivemos
invento. Progressivamente passaram a ser admitidas como meios numa era de planificação do invento, em que o inventor se forma
de premiar e encorajar o esforço criador no domínio tecnológico. no laboratório. A novidade radical da presente fase da tecnologia
No presente momento da evolução histórica, as patentes ad- consiste ~m que ela se tornou inseparável da ciência. No passado,
quirem novo significado, à luz do qual é necessário examinar o ela se desenvolvia independentemente da ciência, o que, em nossos
tradicional sistema internacional que tem regido a sua utilização. dias, não mais se verifica.
Com ef~ito, até bem pouco, a tecnologia se formava pre- Jamais a antiga tecnologia empírica seria capaz de resolver os
valecentemente por um esforço pedestre de acumulação de in- problemas que a indústria atual apresenta. As respostas para os
ventos, cada um deles representando largamente soluções empí- grandes problemas tecnológicos cabem à Ciência pura: oferecer.
r.icas obtidas por cidadãos industriosos, a braços com imperativos Um capítulo da matemática, por exemplo, a teoria estatística dos
e necessidades ~streitamente relacionadas a objetivos tópicos. Em valores exuemos assegura a solução de problemas que, sem ela,
tais condições, se os inventos não eram propriamente descobertas implicari~ infindáveis ·tentativas e erros do inventor isolado e
casuais, decorriam de desafios que se apresentavam sobretudo em empírico. Entre esses problemas se incluem o da fadiga dos metais
locais ou zonas privilegiadas. Em outras palavras, a tecnologia era e do controle e predição dos fenômenos meteorológicos, como

248
249
. .
'"l
A REouçAO SOCIOLÓGICA l APt.NDICE V - 0 PAPEL DAS PATENTES •••
r
secas periódicas, pressão e temperatura atmosférica, nevada e
chuva. Também, no projet~mento e na manufatura de instrumen-
de permanente pesquisa de inovações e melhoramentos .tecno-
lógicos, a cargo de quadros profissionais institucionalizados.
l
,,

tos, o predomínio da ciência é marcante, sem o qual não seria Apenas para ilustrar o que digo lembro que é isto que ocorre em
possível, por exemplo, o goniômetro, usado na indústria química companhia como a Du Pont Co., a Eastman Kodak Co., a Gen~:ral
para determinar o índice refrativo dos fluidos; o polarímetro, Eletric, a American Telegraph and Telephone Co., que, desde
usado para fins médicos, para determinar a quantidade de açúcar 1925, mantém em Nova York os famosos Bell Laboratories.
na urina; o pirômetro que, no fabrico de lâmpadas elétricas e de Mas a institucionalização da tecnologia no nível das empresas
utensílios de ouro e de prata, serve para medir altas temperaturas; privadas nem sempre coincide com os interesses públicos, dos
o refrarômerro de açúcar que, na manufatura açucareira, se des- quais os governos devem ser zeladores. Chego aqui a um ponto
tina à leitura de percentagens de peso do açúcar; e do mesmo importante da filosofia de nosso projeto de resolução. O uso e
modo outros aparelhos como o elerroscópio, o anomaloscópio, difusão da tecnologia é questão que requer tratamento à luz de
o focômerro. Não fossem os avanços da ciência pura, e seria critérios públicos. Poderia mencionar exaustivamente ocorrências
impossível o que conseguimos hoje na indústria farmacêutica comprovadoras de que o atual sistema internacional de patentes
e biológica, na produção de aço, alumínio, petróleo, gasolina, não rem podido evitar abusos de roda ordem, que sacrificam
penicilina, eletricidade e oxigênio, dos sintéticos em geral, bem interesses públicos. Se, no decorrer da discussão do projeto, for
como no projetamento e métodos de construção que caracte- necessário referir concretamente os flagrantes de tais abusos, ·não
rizam a engenharia moderna. Inventa-se, hoje, o que se quer, deixarei de fazê-lo. Faço votos, porém, de que procedamos a uma
desde que se disponha de adequadas condições materiais. O discussão alta da matéria, sem levar a constrangimentos os dis-
próprio problema do segredo, no tocante às invenções, perde tintos Delegados integrantes desta Comissão. Em rodo caso,
relevância. Cada vez mais nos aproximamos do dia em que se permito-me afirmar em tese que o vigente sistema internacional
poderá dizer que não existem segredos no domínio tecnológico. de patentes ainda sofre, em apreciável escala, de interferências
Sabemos que, o que eventualmente confere a determinado país monopolísticas ou oligopolísticas, que é preciso eliminar. É sa-
lugar de destaque, neste ou naquele setor, é menos um avanço bido que em certos casos patentes são requeridas por não-nacionais
no terreno científico propriamente do que no terreno material. sem nenhuma intenção de manufaturar localmente o produto
Grande parte do atraso tecnológico que hoje afeta muitos países patenteado ou de aplicar a nova técnica, o que restringe o campo
pode ser sanado, se forem tomadas decisões políticas e medidas aberto à indústria e à iniciativa locais. E ainda que concessões
institucionais pertinentes. Não seria de todo injustificado afirmar de licenças pelas quais uma firma local ou um grupo de firmas
que a capacidade política dos governantes gera a capacidade é autorizado a utilizar invenção patenteada freqüentemente con-
tecnológica em suas respectivas nações. têm cláusulas restritivas, tais como: a) restrição na liberdade do
Na discussão do projeto de resolução em pauta é necessário beneficiário da licença de vender o produto licenciado em certas
não perder de vista o ineditismo da tecnologia em nossa época. áreas; b) exigência de que o licenciado compre matérias-primas
A tecnologia se institucionalizou. Subordinada à Ciência, progri- do titula·r da patente ou seus componentes manufaturados; c)
de tanto mais quanto acentue o caráter de instituição social. Em exigência de que o licenciado utilize pessoal técnico empregado
muitos países, as grandes empresas privadas planificam a criação .pelo titular da patente; e d) restrições sobre preço e nf:eis de
de inventos, no seu interesse, e o ê~ito dos seus negócios depe.n de produção, que impedem uso optimum de recursos, penalizam o

250 251
A REDUÇÃO SOCIOLOCICA
A PllNDICE V- 0 PAPEL DAS PATENTES .••

consumidor e criam injustificáveis pressões monopolísticas na engeneering, tendo já, mais de uma vez, oferecido soluções bra-
economia. Documentos do Comitê de Patentes do Senado e da sileiras para problemas de construções de refinarias e de portos,
Anti-Trust Division of the Department of Justice, nos Estados que antes seriam impossíveis sem o concurso alienígena. Come-
Unidos, contêm abundantes informes sobre práticas nocivas ao çamos já a exportar patentes. A maior fábrica de tornos no mundo
público, adotadas por grandes corporations, sob a proteção de ocidental é brasileira. Está localizada no município de Santa
patentes. Assim é que se tem observado a aplicação da chamada Bárbara !lo Oeste em São Paulo. Foi fundada por um imigrante
patent blitzkrieg, no setor da indústria de rádio, produtos quí- i italiano, há algumas décadas, e é hoje dirigida pelos seus filhos
micos, metais, objetos de ótica e elétricos. Recorrendo a patent brasileiros. Desta empresa brasileira utilizam patentes fábricas
blitzkrieg, carréis aniquilam os seus competidores menores ou \ que operam aqui nos Estados Unidos e na Alemanha Ocidental.
independentes, dominam indústrias inteiras, usando "ações de Como no México, na Argentina e em diversos outros países da
infrigimento", procedimento que tem danosas conseqüências América Latina, Ásia e África, vivemos hoje no Brasil um mo-
financeiras, pois os bancos não costumam fornecer ajuda credi- mento que se verifica febril surto de inovações tecnológicas. Os
tícia a empresas que estejam ameaçadas de tais ações e muito que trabalhamos nos órgãos governamentais de programação
menos que nelas estejam efetivamente envolvidas. Não desejo econômica, a todo instante recebemos notícia dos progressos
fatigar os membros desta Comissão expondo-lhes as minúcias do tecnológicos que se registram no interior das fábricas. Não há
que se poderia chamar de patologia do sistema de patentes, o que muito, tive conhecimento de que uma fábrica de m eias em São
levaria a aprofundar-me na cabalística das umbrellas patents, patent Paulo, premida pelas dificuldades cambiais que impossibilitavam
pools, bottleneck patents, accordion patents. o reparo de suas instalações, logrou, não somente obviar seus
Do exposto, não se deve concluir que a Delegação do Brasil problemas de reinstauração de peças, como ainda, graças a uma
jl!lgue necessário extinguir o sistema de patentes. Não somos · equipe de operários diligentes, conseguiu criar novo tipo de má-
idólatras, cumpre esclarecer. É possível que um dia, no futuro, quina têxtil, melhor ajustada às propriedades do fio de algodão
desapareça o sistema de patentes. Então terá cumprido sua missão brasileiro que as estrangeiras e que, por isso, produz meias de
histórica. A nós parece ingênuo e insensato levantar esra tese nesta melhor qualidade do que as obtidas com equipamento impor-
Comissão. Não temos objetivos polêmicos. O sistema de paren- v-· tado. A companhia Cobrasma, há poucos anos, foi vitoriosa numa
tes, nas atuais condições históricas do mundo, ainda é útil, e concorrência internacional para fornecer vagões à Argentina,
apenas carece de ser expurgado de suas deficiências. De qualquer ,,,· concorrência da qual participou um país da Europa Ocidental.
Um jovem recém-formado por uma escola de química v~m
modo, para confirmar o caráter não radical ou revolucionário do
projeto talvez seja elucidativo observar que o meu governo rem
I de descobrir e aperfeiçoar no Brasil um processo revolucionário
como ponto básico de sua política a defesa da indústria brasi- ! de exploração de nossas jazidas de zinco em Minas Gerais. Nossa
leira. Necessidades de toda ordem, entre as quais avultam as primeira fábrica de zinco, a ser construída em fins de 1962, pro-
dificuldades de aquisição de equipamentos no exterior, têm le- duzirá, em 1963, 7.200 toneladas em lingotes, o que represen-
vado os industriais brasileiros em suas empresas a empresta~ . tará 20% do consumo interno e uma economia de divisas da
rem grande encorajamento às inovações tecnológicas. Mantêm, ordem de US$ 1.800.000,00.
por exemplo, em São Paulo, a Associação Brasileira de Indús- Relato esses incidentes da indústria brasileira, entre uma in-
tria de Base, que se ocupa com problemas de nacionalização do finidade de outros, para frisar . que o Governo brasileiro não

252 253
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA

perfilha, no presente mo~ento, nenhum ponto de vista radical


contrário à existência de um sistema internacional de patentes.
Reconhece, porém, que nele se verificam abusos que merecem
acurado exame, da parte de entidades como as Nações Unidas,
não comprometidas com os seus vícios de origem.
A Delegação do Brasil distribuiu, em caráter informal, aos
distintos Delegados de outros países, um memorandum sobre o
I AP~NDICE VI
projeto. Creio que ~ intenções do meu Governo estão ali devi-
damente esclarecidas. Aguardo, porém, os pareceres dos meus j

distintos colegas e reservam-me o direito de tomar a palavra ·'1-


para voltar ao assunto quando isso for necessário na defesa do
projeto. Agradecido, Senhor Presidente.

··-
.•

254
--~

Análise do Relatório das


Nações Unidas sobre a
Situação Social do Mundo

I
- -j
!

Durante a XVI Assembléia Geral das Nações


Unidas, coube-nos, como delegado brasileiro na li!
Comissão, analisar o Relatório de 1961 do Con-
selho Econômico e Social Sobre a Situação Social do
Mundo. Reproduzimos, em seguida, o pronunciamento
em apreço.

Senhor Presidente: no ensejo 'em que, em nome da Delegação


do Brasil, pàsso a examinar a matéria Q.o Relatório do Conselho
Econômico e Social, . relativa a esta III Comissão, cumpre-me
inicialmente p~oceder a algumàs considerições gerais, que, espero
eu, melhor esclarecerão o sentido ' das apreciações que formularei
a respeito de pontos concretos desse documento.
A lei cura do Relatório Sobre a Situação Social do Mundo (1%1)
me inspira um sentill1ento de admira:ção pela sua qualidade e pelo
esforço de objetividade que nele transparece e, de cerco, as in-
formações que contém, ainda que possam suscitar restrições,
quanto a alguns de seus aspectos, contribuem para o avanço do
A REDUÇÃO SOCIOLOGICA ·:y AP~NDICE VI - ANALISE DO RELATÓRIO •.•

conhecimento dos problemas mundiais, no momento atual. de vista de Sirius no exame das questões econômicas e sociais.
Ademais, o Relatório do Comeiho Econômico .e Social constitui No diagnóstico e na terapêutica dessas questões, tenha-se ou não
informe de elevado nível, que apresénta com sobriedade e clareza consciência disto, parte-se, necessariamente, de interesses, de pre-
o teor das discussões ali havidas a respeito de várias questões, missas po!Iticas. Não é lícito negar essa contingência insuperável.
inclusive daquelas cujo exame incumbe à III Comissão. O que é lícito, em cada momento, é indagar qual a premissa
Todavia, há que observar preliminarmente que ambos os historicamente mais válida, do ponto de vista do interesse do
documentos refletem ainda, em considerável escala, uma compo- gênero humano e, enquanto assim o for, adotá-la, sistematica-
sição das Nações Unidas, predomÍnante, até bem pouco, mas mente no exame dos assuntos. Por conseguinte, a positiva mu-
agora, significativamente modificada. Na verdade, e o que vou dança na correlação de forças que se vem operando no interior
dizer honra os que há dezesseis anos fundaram esta Organização, das Nações Unidas deve traduzir-se num~ mudança de ótica, de
a igualdade, neste parlamento de povos que é as Nações Unidas, perspectiva, na análise dos fatos. Se somos um parlamento, é a
cada vez menos vai se tornando princípio formal e abstrato e diretriz política nele dominante que determina os alvos finais
tende a adquirir, em nossos dias, plena eficácia no domínio de todo trabalho realizado nesta Organização, no campo econô-
prático. Vários indícios dessa auspiciosa tendência parecem ine- mico, social e cultural. Essas ponderações não são fortuitas. Na
quívocos, entre eles, a atitude hoje prevalecente nesta Organização, II Comissão .várias delegações têm assinalado, não sem motivo,
relativa ao impostergável direito de autodeterminação dos povos, os embaraços opostos a uma efi~iente cooperação internacional,
à não discriminação contra povos que adquiriram na luta requi- particularmente no campo financeiro e econômico, por ilegítimas
sitos nacionais de fato, e à solução que, dentro do espírito da inteiferências particularistas e bloquistas. Nos assuntos de nossa
Carta, foi adotada para o problema administrativo surgido com III Comissão, a incidência desse parcicularismo, embora mais
o falecimento do eminente Secretário Geral Dag Hammarskjoeld. sutil, nem por isso deixa de se fazer sentir.
Estas ocorrências refletem a crescente força do critério da comu- Senhor Presidente, Distintos Delegados: não faltarei ao dever
nidade humana universal e o declínio de qualquer bloco ou de demonstrar, louvando-me em lances específicos dos relatórios
particularismo no interior das Nações Unidas. Assistimos hoje em pauta, as minhas considerações anteriores. Por exemplo,
:_:_·
ao nascer da nova forma de convivência internacional, em que Sen~or Presidente, o Relatório s<Jbre a situação social do mund~ é
hegemônicas pretensões caducam e predominam os interesses prova de que não faltam aos peritos das Nações Unidas, refinado
concretos do gênero humano. Somos um parlamento sui generis, ,l treino acadêmico, destreza técnica, inventividade, continência
onde pequenas e médias potências ganham estatuto político, verbal nas assertivas, tal como convém aos trabalhos dessa natu-
inédito na história das relações internacionais, ao constituírem reza. No estágio atual da informação a respeito da vida dos povos,
conjuntamente fator decisivo na elaboração de resoluções. A a atualização dos peritos chegou ao limite. Não obedeço a um
consciência deste fato tem primordial importância para nossos imperativo protocolar, ao emitir esse parecer, Senhor Presidente.
trabalhos, pois dela decorrem conseqüências que direi meto- Faço justiça e presto merecida homenagem a esses funcionários
dológicas. Senhor Presidente, desejo assinalar que esta afirmação anônimos muitos deles, aos quais os nossos agradecimentos nunca
de princípio tem plena oportunidade no contexto dos trabalhos serão excessivos. A despeito disso, Senhor Presidem~, e não desejo
desta Comissão. Com efeito, é falácia pensar que existe um ponto disfarçar a gravidade da afirmativa que vou fazer, apesar disso,
de vista desencarnado da história de cada um de nós, um ponto o Relatório apresenta deficiências que precisam ser assinaladas.

258 259
· ·~ T
.A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA APeNOICE VI - ANÁLISE DO RELATóiÜO •••

!
São por assim dizer deficiências extrínsecas aos seus autores, graças do desenvolvimento. Mas infelizmente todo o capítulo em que
a Deus e, portanto, facilmente superáveis, se as condições de que se encontra esta frase é urna série de enunciados harnletianos,
resultam não continuarem a permanecer inconscientes e forem sucessão de vários "se", "mas" ou "quando" em que aspectos do
trazidas ao plano da reflexão. Em que consistem? Consistem em crescimento das Filipinas, da União Soviética, da Federação da
Malaia, da Venezuela, da Polônia, do Paquistão, da Iugoslávia,
que o Relatório, embora bem acabado quanto à forma, é larga- .! dos Países Baixos, da Noruega, da Áustria, de Porto Rico são
mente urna exposição difusa, esgarçada, sem rosto quanto ao
fundo. Não se lhe descobre, se for permitida a expressão -:- o referidos, confo rme o princípio de que "à noite todos os gatos
vetor mestre, a espinha dorsal, a linha central. É urna exposição são pardos". Sobre Porco Rico, afirma-se nesse capítulo, o n2 V:
em que as considerações se sucedem em nível notadamente Em Porto Rico, a eliminação do desemprego foi, certa
abstrato, em que coisas de diferentes sentidos e valores são jus- v~, considerada objetivo primordial de desenvolvimento
econômico, mas, depois, a ênfase foi mudada para o au-
tapostas em horizontal e, por conseqüência, de escasso teor
mento per capita da renda (p. 83).
conclusivo. Há, no meu país, um dito, segundo o qual "à noite
todos os gatos são pardos". O Relatório apresenta os. fatos numa E a seguir passa a diante corno se não valesse a pena discutir
espécie ·de "noite em que todos os gatos são pardos"! É certo que essa alteração de tônica. É de perguntar-se: "As Nações Unidas
não têm preferência firmada por urna daquelas alternativas?" Mais
assim mesmo represema imenso serviço a todos nós, pelas in-
formações minuciosas e idôneas que contém. É lícito, porém, adiante, Senhor Presidente, retornarei essa questão.
observar que o domínio das instrumentalidades científicas e A página 58 do Relatório sobre a situação social do mundo,
técnicas que revelam ter esses peritos poderá ser utilizado com lê-se:
crescentes resulcados práticos, tanto mais quanto se clarifique o muitas diferenças nos padrões econômicos podem ser
fato de que a vocação das Nações Unidas é tornar-se, de modo explicadas apenas em rernios da subjacente estrutura econô-
mica e social da distribuição da renda entre diferentes grupos.
sistemático, agência militante em favor de interesses concretos do
(os grifas são meus).
gênero humano em sua episódica situação atual.
E prossegue (p. 58):
Com efeito, Senhor Presidente, lá estão no Relatório como
a disparidade entre os indicadores economtcos e soctats,
disjecta membra, como pérol~s esparsas de um colar partido, em casos em que os úl~imos se apresentam atrasados, é
proposições-chaves que, se fossem desenvolvidas com a sistema- freqüentemente indicação de derigualdade na distribuição
tícidade que merecem, saneariam o texto em exame do defeito I
•'
da renda (o grifo é meu).
de invercebração de que padece. !
.: Seria desejável que o Relatório tivesse utilizado mais extensa
A página 82, lê-se: e profundamente essa correlação axiomática entre distribuição da
Se o crescimento econômico é ou não benéfico, e em ! renda e bem-estar, pois assim o texto ganharia em teor conclusivo
que escala o é, depende do modo conforme se realiza e i e atributos de instrumento pedagógico de formação de .u ma
das direções que se lhe imprime - circunstâncias que são consciência clara das verdadeiras causas dos problemas sociais.
largamente determinadas pelo arcabouço político, social. e
cultural em que transcorre.
·! Receio que a referência ocasional a um ponto de vista correto e
tão capital no esclarecimento dos problemas sociais dilua e até
Aqui se menciona, em primeiro lugar, a circunstância política. anule a sua força persuasiva. Desejo que chegue depressa o dia
É tímido o perito, mas, afinal, se não estou enganado, o texto em que as unidades técnicas das Nações Unidas se sintam enco-
me comunica a convicção de que reconhece a premissa política

260 261
,. í
'
A REDUÇÃO SOCI O L ÓGICA VI -
I
A P!>NDICE ANALISE 00 RELATóRIO •••

rajadas para, de maneira analítica, tirar todo partido dos mag-


níficos levantamentos que vêm realizando no mundo, à luz do
ponto de vista metódico implícito na referida correlação. O
l ensejo de observar que a dica anomalia é, em grande parte, re-
sultante de irracionalidade no campo internacional. Muito do que
a determina poderia ser obviado, se houvesse menos confina-
Relatório informa que, por volta de 1950, um décimo da popu- mentos, de várias ordens, na divisão internacional do trabalho,
lação de países como os Estados Unidos, a Inglaterra e o Canadá ora vigente no mundo. As relações econômicas entre os países,
recebiam cerca de 30% da renda total; que se pode estimar que
80% da população recebem apenas 55% da renda social, na Ásia,
e 40%, na América Latina; que em 1957, pode-se estimar, ade-
mais, que apenas 16% da população mexicana recebiam 56,5%
I nesta segunda metade do século XX, estão marcadas de inatua-
lidade e irracionalidade. Em nossa época, todas as condições
objetivas existem já, que permitem nova divisão internacional
de trabalho, em que não haja o que alguns parecem acreditar
da renda nacional; que a 17% da população do Brasil se destinava constitua desígnio da natureza, quando é tão-só reflexo de ana-
63% da renda total; e ainda que apenas 12% da população crônica forma histórica de intercâmbio - a famosa tendência
venezuelana se apropriavam de quase metade da renda cocal. secular para a deterioração dos termos de rroca dos países
O "problema do desenvolvimento econômico social equilibrado" subindusrrializados. No seio das Nações Unidas, devemos agir
jamais terá solução, enquanto esses desníveis não forem elimi- para que amadureçam as condições subjetivas de que resulte o
nados. As Nações Unidas são um parlamento incumbido de advento de nova divisão internacional do trabalho, em que de-
homologar e encorajar os esforços dos povos, em todo o mundo, sapareça aquela tendência.
no sentido de abreviar o desaparecimento dessas desigualdades.
O registro que mais aplaudi no Relatório assim diz (p. 2 1 ) ~ I Passarei, em seguida, a examinar assunto específico de nossa
Comissão, isto· é, "o problema do desenvolvimento econômico e
Governos de alguns países têm procurado proteger i social equilibrado". Sem dúvida, mais uma vez, a consciência
ou estabilizar as rendas dos produtos de bens agrícolas, ex-
portáveis, mesmo às custas de pesadas compras excedentes;
como no Brasil. Estas medidas, todavia, têm ajudado em
II sistemática do condicionamento eminentemente político de tal
problema não deve ser perdida de vista. Em seu parágrafo 483,
geral apenas aos mais prósperos fazendeiros. i o Relatório do Conselho Econômico e Social informa que:
Senhor Presidente, o governo do meu país não é monolítico. certos membros (do Conselho) julgaram que a maneira
Dele participa também a categoria dos "prósperos fazendeiros". ·:--· 1 como os autores do Relatório (Rtlatório Iobrt a IÍtuação Iocial
do m1111do, 1961) tinham analisado a situação nos países
~
Mas está aberto a esse tipo de crítica honesta, judiciosa e pro- I
recém-independentes deixava a desejar, notadamente en-
cedente. Essa crítica, prestigiada pelas insígnias das Nações j quanto não levava em conta os fatores pol!ticos ligados à
)
Unidas, constitui sólido amparo às forças progressistas do meu abolição do regime colonial.
país, que hoje dão ao governo o suporte para extinguir os tra- A Delegação do Brasil apóia esse reparo e formula o voto de
tamentos favorecidos, quando não têm mais razão de ser, do que no próximo Relatório sobre a situação social do mundo, que
ponto de vista público. O governo do meu país está, neste mo- •I se anuncia para 1963, seja dedicada parte substancial à matéria.
mento, comando as medidas tendentes a dirimir a anomalia ·i Está por fazer-se, em verdadeiro nível científico, a sociologia do
referida no Relatório. Mas é preciso dizer que essas providências equilíbrio econômico e social nos países periféricos.
implicam, para o Brasil, não apenas um problema interno, mas O desenvolvimento econômico e social nos países subindus-
também um problema externo. Não julgo oportuno, agora, ir ao trializados é, deve ser, sucessão de desequilíbrios, contínua substi-
fundo desce último aspecto. Não quero, porém, deixar passar o I
tuição dos desequilíbrios existentes, por outros, menos onerosos,
·.-I
262 263
A REDUÇÃO $OCIOL 0GICA
AP~NDICE VI - ANALISE DO R ELATÓRIO . ..

do ponto de vista humano e social. Se se abstrai esse ponto de cionais de vastas parcelas da coletividade, cuja superação é incon-
vista, é ideológico, Qão é científico, o requisito do equilíbrio entre cebível sem a desconcentração compulsória da renda social, em
o econômico e o social. Direi mesmo que é utópica a esperança resumo, sem a expansão do setor público no sistema econômico.
de um estágio de desenvolvimento em que se atinja, afinal, Esse raciocínio, que não põe entre parênteses os fato res pqlíticos,
definitivo equilíbrio entre o social e o econômico. Todo momen- é igualmente indispensável para objetiva e correta clarificação de
to de superação d~ determinado desequilíbrio é início de outro. outros aspectos das chamadas questões sociais.
Os problemas sociais que o desenvolvimento cria, só o desenvol-
Não se pode negar seried ade ao requisito de equilíbrio entre
vimento pode resolver. Senhor Presidente, começo a perceber que
o social e o econômico. M as é preciso qualificá-lo devidamente.
entro em indagações em que me sinto inseguro. Não tenho
Quem quer que tenha realizado funções em ó rgãos de programa-
pendores filosóficos. Volto. depressa à esfera de raciocínio para
ção eco nômica, sabe que são interdependentes os avanços nos
a qual minha competência é menos limitada. Desejo frisar que
diversos setores da atividade produtiva. É sabido que determinada
os problemas sociais não podem ser decifrados, se a pesquisa de
meta num setor pode deixar d e ser cumprida, quando os setores
seus determinantes poliricos não consriruir parte (e parte saliente)
auxiliares não realizam, por qualquer motivo, a produção de bens,
do esforço do estudioso. Apresentar a situação social de diferentes
nos níveis quantitativos adequados. O cálculo dessas interde-
países, em termos quantitativos, omitindo certas considerações
pendências é capítulo da técnica econômica e dele nenhum
qualitativas é tarefa insatisfatória e equivale a pouco mais do q ue
çompetente programador pode descurar. Mas enquanto as cor-
permanecer na superfície dos faros. Poderia aproveitar o ensejo
respondências entre os vários setores da atividade propriamente
para ilustrar o meu pensamento. Por exemplo, um dos aspectos
econômica se prestam mais facilmente a tratamentos quantitati-
da situação social é o das condições habitacionais. .
vos, já as correspondências entre o social e o econômico envolvem
Pois bem, deixemos de lado o fato de que a significação social · prioritárias indagações, pertinentes ao terreno da decisão política.
da moradia é histórica e socialmente variável. Visitei regiões
Nenhum cérebro eletrônico pode responder às perguntas que
cujas moradias, segundo os meus critérios pessoais, me pareciam suscitam as correspondências entre o social e o econômico, as
execráveis, e, no entanto, o fato de que os habitantes dessas regiões quais necessariamente refletem a força das diferentes categorias
estavam empolgados numa gigantesca tarefa coletiva, partici-
sociais, na competição pelo poder.
pando da qual cada um encontrava tarefa criadora, razão de
Convém advertir, lealmente, que, no contexto de países
viver que antes não tinham, esse fato lhes bastava para transcender
subindustrializados, a referência enfática ao "problema do de-
uma circunstância que se me afigurava insuportável, e para lhes
senvolvimento econômico e social equilibrado" pode prestar-se a
dar a certeza, não ilusória aliás, de que podiam contar com segu-
. interpretações sibilinas e encorajar a sabotagem de programas
rança, com a eliminação, em prazo útil, de suas precariedades
habitacionais como resultado inevitável de seu esforço produtivo.
Alongar-me-ia demais, porém, se entrasse em pormenores, neste
..í governamentais de industrializaÇão, sabotagem em que se aplicam
habitualmente círculos do patronato, interessados na conserv~ção
de anacrônicas estruturas latifundiárias. À nós latino-americanos,
particular. Quero dizer que o problema habitacional de muitos
asiáticos e africanos, aquela expressão lembra o clamor que, .em
países é insolúvel, sem modificação nos suportes do poder em
certos meios retrógrados de nossos países, se tem levantado contra
seus respectivos regimes políticos: Certos regimes políticos deter-
a industrialização, sob o pretexto de que promove desequilíbrios,
minam, de modo irremediável e crônico, más condições habita-
de que distorce o sistema econômico. Não rem faltado mesmo,

264
265
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA
AP!;.NCICE VI - ANALISE DO RELATÓRIO •..

para dar curso a essas tes~s. o apoio de nacionais e estrangeiros, elevada prioridade. É, no entanto, menos relevante nos sistemas
que exibem títulos de sociólogos e economistas. Ocorre-me re- econômicos precários. Argumento de má fé seria o de quem ale-
latar que, há quase duas décadas, quando o governo brasileiro gasse que essas observações implicam apologia do desequilíbrio
tomou a iniciativa de criar Volta Redonda, hoje ainda a nossa nos países subinduscrializados. Na verdade, nos sistemas eco-
maior unidade siderúrgica, conheci&> economista de fama inter- nômicos nacionais que, n~ América Latina, na Ásia e na África
nacional declarou, na imprensa do meu país, que a considerava estão iniciando a fase de take-off de sua industrialização, o de-
"criminosa". No período de demarragem da industrialização sequilíbrio entre o econômico e o social é doença infantil, que
em alto nível capitalista, surgiu, em meu país, enorme celeuma pode ser tratada com remédios caseiros.
em corno do chamado "êxodo rural", de que não escava ausente A condição mesma para que se chegue à idade adulta, em boas
o intuito de minar a aprovação pública aos programas gover- condições de saúde, é ter sofrido, nas idades adequadas, as
namentais de desenvolvimento. Creio que Delegados de países doenças infantis que constituem o cortejo clássico do período de
africanos e asiáticos poderão trazer ao conhecimento desta Co- crescimento. As estruturas econômicas dos países latino-ame-
missão ocorrências semelhantes. Evidentemente os proprietários ricanos, africanos e asiáticos são comparativamente grosseiras
de latifúndios anacrônicos têm razões para dramatizar o "êxodo e o tratamento de muitos de seus problemas pode ser feito com
rural", esse desequilíbrio crônico e inevitável de rodo processo de processos simples e empíricos. Aí se descobrem, sem grandes
industrialização. dificuldades, esses desequilíbrios, de sorte que distrair, além do
Com efeito, a industrialização, com a sua vocação greg~ria limite necessário, a atenção de técnicos para o esrudo monográfico
para concentrar-se ali onde existem economias externas e overhead desse assunto, em alto nível analítico, pode resultar em perda de
socia4 cria empregos, oferece salários mais altos do que os vigentes . tempo e malbaratamento de recursos humanos. Os critérios de
no campo, politiza as camadas populares, e rudo isso é desfavo- alocação do pessoal técnico em cada país devem ser induzidos de
rável ao patronato latifundiário, habituado a utilizar mão-de-obra suas peculiaridades estruturais, imunes ao que seria permitido
a preço vil e a toda sorte de vantagens pecuniárias e sociais, que chamar de "efeito e prestígio". O prestígio dos meios técnicos e
o desenvolvimento econômico lhe subtrai, enquanto persista em universitários cênrricos é imenso nos países periféricos que, em
:.:-
não querer modernizar os processos de produção ou converter os diferentes graus, ainda são mais consumidores do que produtores
seus negócios em outros mais ajustados aos reclamos globais da de culrura, Esse prestígio cem raízes · profundas, que não· posso
economia nacional. A questão do equilíbrio, nos países periféricos examinar agora.
da África, da Ásia e da América Latina requer cercas qualificações Comento-me em observar que, freqüentemente, tem levado
técnicas. É pertinente considerar que o equilíbrio pode constituir os governos de países subindustrializados a adotarem, na política
.uma ideologia, um bias do pensamento econômico nos meios de formação de pessoal técnico e da educação em geral, critérios
universitários de países cêntricos, cujas estruturas econômicas simétricos aos vigentes em nações da vanguarda ocidental, os
maduras necessitam um balanço de fatores, no qual o mais pe- quais nem sempre se compadecem com as exigências efetivas das
queno grau de instabilidade assume significado calamitoso. Dado coletividades subindustrializadas. Algumas formas de assistência
o caráter refinado dos seus fatores, essas estruturas respondem, técnica e educacional têm agravado essa deplorável situação.
com extrema sensibilidade, às pequenas modificações conjun- O trabalho educacional, as atividades científicas e técnicas se
turais. O tema do equilíbrio, em tais circunstâncias, deve ter frustram quando se orientam por critérios de organização, de

266 267
A REDUÇÃO SOCIOLÓGICA APtlNDICE VJ - ANALISE . DO RELATÓRIO .••

fundo e forma, não específicos em cada pais. No tocante aos males decorrentes de levianas avaliações de prioridades "sociais"
países subindustrializados, hi muito que fazer, no campo da teoria ou de mecânicas transplantações de critérios. Há algumas déca-
e da prática, quanto à questão do saber. Temos que confessar que das; quando se iniciou em meu país o movimento de moder-
apenas começamos a dar alguns passos seguros nesse terreno. As nização dos serviços de saúde pública, o governo enviou médicos
correspondências entre o social e o econ8mico constituem assunto 1): ao estrangeiro, a fim de estudarem os novos métodos e processos
delicadíssimo. Extrapolações imprudentes, no aconselhamento
pelas Nações Unidas aos países subindustrializados, podem levar
I san itários. Com isso, muita experiência ganharam os nossos
sanitaristas e suas iniciativas foram e têm sido crescentemente
a irracionais alocações de recursos humanos e de toda natureza. benéficas. Mas, no começo, cometemos erros palmares; vítimas
Por exemplo, é preciso não confundir as necessidades acadêmicas dos efeitos de prestígio de instituições modelares em países adi-
de conceituação e refinamento, abstratamente legítimas, com as antados, da má aplicação dos princípios de analogia e simetria.
nece~sidades concretas dos povos subindustrializados. Procurei Calcularam-se as necessidades de alguns serviços de saúde pú-
em vão, no Relatório dos peritos, considerações claras a respeito blica pelo processo da regra de três. Procurou-se, então, reproduzir
da relevância do "social" nos países subindustrializados, em com- no Brasil a mesma proporcionalidade que, nos países adiancados,
paração com os da vanguarda ocidental. Esclareço, não me refiro as despesas governamentais diretas com serviços médicos tinham
à comparação por meio dos chamados "indicadores", em que é em relação ao número de habitantes, ou à sua renda nacional.
admirável a virruosidade dos peritos, verdadeiros paganinis da Alguns desses cálculos, observou um crítico, foram publicados em
sociometria. Refiro-me ao fato, que me parece necessário ressaltar, meu país, não em moeda nacional, mas em dólares.
de que num gradient, o "social" tem pesos diversos, conforme a
Assim, dizia-se que o governo devia gastar em serviços de
etapa de desenvolvimento econômico. Quanto mais alta esta etapa,
saúde três dólares por pessoa. Estimou-se que devíamos ter um
mais relevância tem o "social". Quanto mais baixa, mais se dilui
posto de puericultura para cada 10.000 pessoas, um leito para
o "social", à vista da eminência do aspecto econômico. Em muitos
cada óbito de tuberculose, cinco leitos de hospital geral para
países de condições materiais extremamente precárias, o aspecto
cada mil habitantes, 60.000 médicos, 100.000 enfermeiras de alta
econômico é tão contundente, que torna bizantinas cogitações
qualificação . e até 165.000 leitos para doentes mentais. Poste-
analíticas sobre o "social". Aí, qualquer melhoria econômica
riormente essas estimativas se revelaram primárias e equivoca-
reverte-se auromaticamente em melhorias sociais. Neste nível, não
das, uma vez que seus autores não tinham consciência clara das
se coloca mesmo o "problema do desenvolvimento econômico e ,, . relações entre a saúde e as condições econômicas globais do país.
~ocial equilibrado" ou dos "investimentos humanos", porque o
A vida mostrou que aquelas avaliações eram ingênuas. Um exem-
que há a fazer é promover as populações, do ponto de vista da
plo apenas, para ilustrar. Como é sabido, o número de doentes
existência material. O resto vem por acréscimo, como se diz no
Evangelho. Talvez seja perigoso levar demasiadamente a sério a mentais em virmde de fatores sociológicos óbvios assume con-
distinção entre o "social" e o "econômico", ali onde as popu- siderável expressão nos países altamente industrializados, onde é
lações se encontrem em ínfimo nível material. Nunca é demais extrema a heterogeneidade e diferenciação social, determinando
prevenirmos contra a tentação de confundir ficções didáticas em o que os peri tos do Relatório chamam de "anomia". Não quero
faros concretos. dizer que doenças mentais sejam luxo, privilégio de países ricos.
Quero acentuar que sua incidência em relação ao número de
A significação relativa do "social" é assunto de m áxima serie-
habitantes não apresenta nos países pobres a proporcionalidade
dade. A D elegação do Brasil pode ilustrar concretamente alguns

268 269
.- ··......

A R EDUÇÃO SOCIOLÓGICA APll.NDICE VI - ANÁLISE DO RELATÓRIO . ..

que tem nas nações da ~anguarda ocidental. Aqueles cálculos, no Relatório, se chama de "indicadores" da situação social. À
como outros, por motivos de várias naturezas, eram viciados. De página 38, diz-se ali que:
modo geral, eram tributários de cercas concepções ainda acolhidas O mais exato approach para compreensiva medida do
infelizmente em determinados círculos, que professam exagerado desenvolvimento econômico e social é o índice de renda
nacional pu capita.
otimismo quanto aos efeitos dos gastos diretos com serviços
médicos sobre a saúde do povo. Otimismo, aliás, cuja ausência A Delegação do Brasil, neste particular, não concorda ple-
de objetivo fundamento é possível demonstrar, com apurações namente com os peritos das N ações Unidas. O indicador é útil,
que se encontram no próprio Relatório , em sua página 42. Assim, mas de exatidão precaríssima. H á a muito que aperfeiçoar na
enquanto o coeficiente de correlação entre mortalidade infantil metodologia da contabilidade da renda nacional, adorada pelo
e o número de habitantes por médicos é de 0,43; é de 0,69, o Relatório e por outros documentos das N ações Unidas. As defi-
mesmo coeficiente entre consumo de energia e mortalidade in- ciências do índice são sobejamente conhecidas e o presente Rela-
fantil; de 0,81, o coeficiente entre mortalidade infantil e consumo tório menciona algumas. Presumo, porém, que não seja desca-
calórico; e finalmente de 0,84, o coeficiente entre renda nacional bido insistir em opormnas advertências.
per capita e mortalidade infantil. Aqueles modos simétricos de Em primeiro lugar, parece necessário apressar a ultimação dos
pensar causam hilariedade entre os nossos competentes sanitaris- escudos que visam a tornar mais próxima da realidade a apuração
tas e o atual Ministro da Saúde o prescreveu defini~ivamente de da renda social nos países subindustrializados, nos quais apreciá-
nossas repartições governamentais. Disso é elucidativo o recém- vel parcela da produção deixa de ser registrada pelas estatísticas,
elaborado Programa de meu governo, cujo capítulo sobre saúde de vez que não chega ao mercado e é consumida diretamente pelos
afirma que procurará, entre outros objetivos, produtores. Sabemos que o fato tem preocupado a equipe técnica
estabelecer uma política de escudos e pesquisas dos chama- das Nações Unidas. Seria desejável que a O rganização, talvez
dos problemas de medicina colonial , pois, sendo estes recorrendo a algum processo engenhoso de amostragem, realizas-
particulares aos paCses subdesenvolvidos, suas soluções têm se, em breve, escudo em que se pudesse ter mais corretos informes
de ser encontradas pelos cie ntistas desses países.
a cerca da renda nacional nos países subindustrializados. No
M as até recentemente ainda .tinha vigência a antiga menta- tocante ao meu país, posso assegurar que os quantitativos de sua
lidade, levando governos da Federação Brasileira ao superdi- renda nacional, até agora p ublicados, não são plenamente exa-
mensionamenco dos serviços médicos. N um dos estados do Brasil tos, embora ainda não se tenha podido determinar o grau dessa
' ,.,. '
registrou-se, em 1955, que das 38 cam as existentes num hospital, imprecisão. As únicas pesquisas diretas sobre autoconsumo no
apenas 14, em média, eram ocupadas; que em outro hospital dos meio rural, em meu país, correspondentes ao ano agrícola de
50 leitos existentes, apenas 22, em média, eram utilizados, e, em 1951-1952, justificam minha ponderação. Registraram percen-
mais dois outros, se verificava também subutilização em alta tagens de alto consumo na produção de famílias camponesas, da
escala, faro aliás que se repetia, naquela data, em diversas unidades ordem de 39% no município de Bezerros (Pernambuco); de 47%
da Federação Brasileira. Espero que o relato desses erros do meu no município de São Mateus (Espírito Santo); de 58% no mu-
país aproveite a outros que se fazem representar nesta III Comis- nicípio de Itapetininga (São Paulo). É de esperar-se que a mudança
são e os acautele contra as excrapolações perigosas. de nossa capital, do Rio de Janeiro para Brasília, determine sig- --···
Para terminar, Senhor Presidente, focalizarei, em seguida, nifi cativo aumento dos quantitativos da renda social do inte-
alguns problemas técnicos intimamente relacionados com o que, rior do país, a serem apurados. Novas estradas, ligando os diversos

270 271
---~~---· .

A REouçAo SociOLóGICA APtNDICE VI - ANALISE DO RELATÓRIO .••

pontos do país a Brasília, vieram propiciar o ingresso no mercado contribuem diretamente para a produção material. É comum
de grupos populacionais que antes se encontravam mais ligados admitir-se existir correlação positiva entre o terciário e desenvol-
à economia natural. vimento econômico e social. Não se lhe pode negar fundamento,
Os índices de renda per capita podem produzir pessoas menos em plano genérico. Mas talvez já seja tempo de darmos cuidadosa
avisadas a avaliar, sem as necessárias reservas, a situação social dos atenção ao que se poderia chamar de problema de patologia do
diferentes países. A certos países de economia pouco diferenciada, terciário. Em outras palavras, é necessário refinar a análise do
mas providos de setores isolados de alta produtividade, como o terciário. Aproveitaria o ensejo para lembrar casos de terciário
petrolífero, nem sempre correspondem situações sociais aparen- pervertido tanto em países cêntricos, como em países periféricos.
temente supostas pela sua renda nacional per capita. O Relatório No terciário desses últimos, há, por vezes, distorções graves, que
procurou corrigir essa falha do "indicador" no tópico Aspectos da dificultam a alocação produtiva dos recursos disponíveis. Em tal
Distribuição da Renda e do Bem-Estar (capítulo III, páginas 58 terciário, costuma existir elevadas taxas de subemprego ou mesmo
a 61) onde apresenta esclarecimentos inestimáveis. A Delegação de desemprego disfarçado. Expressiva parcela dos orçamentos de
do Brasil louva particularmente este esforço dos peritos e exprime nações periféricas destinada à remuneração da mão-de-obra
a esperança de que no próximo Relatório, de 1963, esse tipo de subutilizada no setor dos serviços, situação que poderá ser
análise se estenda ao maior número possível de países, para que corrigida por critérios de política econômica mais ajustados às
se tenha mais precisa idéia das correlações entre distribuição da peculiaridades dos povos que sofrem escassez· de capital. Meu
renda e produtividade. Governo executa atualmente um programa de austeridade e
Por vezes, a corrente metodologia de contabilidade da renda desenvolvimento econômico e social, que contempla a urgência
conduz a resultados aberrantes. Ciro o Relatório: de corrigir a anomalia do terciário supérfluo.
Na Algéria ... o índice do produto nacional bruto per Senhor Presidente, permiti-me ainda último reparo. Formulo-
capitaa preços constantes aumentou de 100, em 1953, para o no fim de minha intervenção neste debate geral, mas espero
130, em 1957. Isso, no entanto, apenas ilustra uma das que isso não obscureça a sua gravidade. Quero salientar, Senhor
limitações do indicador, se usado para medir o bem-estar; o
Presidente, que o Relatório deixou de recorrer a um dos "indi-
aumento derivou largamente do crescimento de serviços,
transportes etc.; necessários em virtude da presença de con- cadores" sistemáticos da situação social no mundo, o coeficiente
sideráveis conrigentes militares (p. 17). de emprego, quando, ao que pa~ece, não existem dificuldades
Ressalto esse aspecto para sugerir que, nas comparações inter- insuperáveis para o seu cálculo, pelo menos em grande número
nacionais, os peritos das Nações Unidas venham, em breve, a de nações. No entanto, é irrerorquível sua essencialidade como
focalizar, de modo sistemático, o problema das distorções das parâmetro destinado a medir a situação social. Não atino com
atividades terciárias. Poder-se-ia perguntar se essas comparações os motivos que levaram os peritos das Nações Unidas a subes-
não seriam mais fidedignas, se · determinadas atividades ter- timar esse "indicador", e espero que no próximo Relatório, de
ciárias fossem excluídas do cálculo da renda nacional. De rodos 1963, isso não ocorra. Por mais excelente que pareça, do ponto
os modos,· é necessário atentar para este fato, a fim de que nos de vista de alguns "indicadores", um sistema econômico, ele não
futuros relatórios das Nações Unidas se possa ter melhores in- é efetivamente racional e sadio senão assegura atividade produ-
formes, quanto ao confronto entre países capitalistas e países tiva, trabalho, a todos os cidadãos. A riqueza material não rem
socialistas, pois, como assinala o Relatório, estes últimos ordina- méritos intrínsecos. Só importa onde e quando esteja a serviço
riamente excluem do cômputo da renda atividades que não do homem.

272 273

Você também pode gostar