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DC EscolaInfantilPraQueTeQuero
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UM POUCO DA HISTORIA...
Durante muito tempo, a educação da criança foi considerada uma responsabilidade das famílias ou do grupo
social ao qual ela pertencia. Era junto aos adultos e outras crianças com os quais convivia que a criança aprendia a
se tornar membro deste grupo, a participar das tradições que eram importantes para ele e a dominar os
conhecimentos que eram necessários para a sua sobrevivência material e para enfrentar as exigências da vida
adulta. Por um bom período na história da humanidade, não houve nenhuma instituição responsável por
compartilhar esta responsabilidade pela criança com seus pais e com a comunidade da qual estes faziam parte. Isso
nos permite dizer que a educação infantil, como nós a conhecemos hoje, realizada de forma complementar à
família, é um fato muito recente. Nem sempre ocorreu do mesmo modo, tem, portanto, uma história.
Este percurso (esta história), por outro lado, só foi possível porque também se modificaram na sociedade as
maneiras de se pensar o que é ser criança e a importância que foi dada ao momento específico da infância. Para en-
tendermos isso, basta perguntar aos nossos pais ou aos nossos avós como eram tratados em sua infância
meninas/meninos, que tipo de educação eles/ elas receberam, quem era a/o responsável imediata/o pela sua
educação. Suas respostas vão demonstrar, tenho quase certeza, como variam, de época para época, nossas
maneiras de encarar os fenómenos sociais, como a educação, e os sujeitos sociais, como as crianças. Quero lembrar
também que, pelo fato de mudarem, tanto a maneira de considerar os fenómenos (a educação, por exemplo) quanto
os sujeitos (as crianças, neste caso), isto não quer dizer que tal mudança represente sempre progresso, melhoria,
aperfeiçoamento, como fomos acostumados a pensar.
O surgimento das instituições de educação infantil esteve de certa forma relacionado ao nascimento da escola
e do pensamento pedagógico moderno, que pode ser localizado entre os séculos XVI e XVII. A escola, muito
parecida com a que conhecemos hoje, organizou-se porque ocorreu um conjunto de possibilidades: a sociedade na
Europa mudou muito com a descoberta;de novas terras, com o surgimento de novos mercados e com o
desenvolvimento científico, mas também com a invenção da imprensa, que per mitiu que muitos tivessem acesso à
leitura (da Bíblia, principalmente). A Igreja teve um papel importante na alfabetização e, em virtude das
disputas religiosas entre católicos e protestantes, os dois lados se esforçaram para gar antir que os seus fiéis
tivessem um mínimo de domínio da leitura e da escrita. É preciso lembrar que, com a implantação da sociedade
industrial, também passaram a ser feitas novas exigências educativas para dar conta das novas ocupações no
mundo do trabalho.
Por outro lado, também foram importantes, para o nascimento da escola moderna, uma série de outras
condições: uma nova forma de encarar a infância, que lhe dava um destaque que antes não tinha; a organização de
espaços destinados especialmente para educar as crianças, as escolas; o surgimento de especialistas que falavam
das características da infância, da importância deste momento na vida do sujeito e de como deveriam se organizar as
aulas, os conteúdos de ensino, os horários, os alunos, distr ibuir recompensas e punições, enfim estabelecer o que
e o como ensinar; e, também, uma desvalorização de outros modos de educação da criança antes existentes.1
As creches e pré-escolas surgiram depois das escolas e o seu aparecimento tem sido muito associado com o
trabalho materno fora do lar, a par tir da revolução industr ial. Devemos lembrar, no entanto, que isto também
esteve relacionado a uma nova estrutura familiar, a conjugal, na qual pai/mãe/seus filhos passaram a constituir
uma nova norma, diferente daquelas famílias que se organizavam de forma ampliada, com vários adultos convivendo
num mesmo espaço, possibilitando um cuidado que nem sempre estava centrado na figura materna. Outro fato
que precisa ser lembrado é que muitas teorias nesta época também estavam interessadas em descrever as crianças,
sua natureza moral, suas inclinações boas ou más. Defendiam ideias de que proporcionar educação era, em alguns
casos, uma forma de proteger a criança das influências negativas do seu meio e preservar-lhe a inocência, em
outros, era preciso afastar a criança da ameaça da exploração, em outros, ainda, a educação dada às crianças tinha
por objetivo eliminar as suas inclinações para a preguiça, a vagabundagem, que eram consideradas "características"
das crianças pobres. O que se pode perceber é que existiram para justificar o surgimento das escolas infantis uma
série de ideias sobre o que constituía uma "natureza infantil" que, de certa forma, traçava o destino social das
crianças (o que elas viriam a se tornar) e justificava a intervenção dos governos e da filantropia para transformar
as crianças (especialmente as dos meios pobres) em sujeitos úteis, numa sociedade desejada, que era definida por
poucos. De qualquer modo, no surgimento das creches e pré-escolas conviveram argumentos que davam
importância a uma visão mais otimista da infância e de suas possibilidades, com outros objetivos do tipo corretivo,
disciplinar, que viam principalmente nas crianças uma ameaça ao progresso e à ordem social.
Todo este conjunto de ideias, com os conflitos que existem entre elas, vieram a influenciar as instituições
que surgiam e marcaram de forma muito forte as propostas e a forma de atuação dos educadores, em cada creche e
pré-escola. Outro dado que é preciso lembrar é que a expansão destas instituições, especialmente no final do século
XIX na Europa e mais para a metade do século XX no Brasil, recebeu também grande influência das ideias dos
médicos higienistas e dos psicólogos, que traçavam de forma bastante estrita o que constituía um desenvolvimento
normal e quais as condutas das crianças e de suas famílias que deveriam ser consideradas normais ou patológicas. O
que se poderá perceber, num retrospecto histórico, revendo como tais noções se disseminaram e marcaram gerações,
é que este conjunto de ideias se baseou em concepções particulares, algumas marcadas de forma acentuada pêlos
preconceitos. Estas ideias vieram a fazer com que muitas práticas discriminatórias fossem exercidas em nome do que
era "certo", "normal", "adequado", em relação às condutas humanas, levando à exclusão daqueles que eram
"diferentes", por uma mera impossibilidade de tolerar algo que fugisse a uma norma estabelecida de forma
arbitrária e que acabava por se tornar não discutível (não podia ser posta em dúvida). Um exemplo disso é a
discriminação sofrida pelas crianças denominadas de "excepcionais", consideradas por longo tempo incapazes de
certas aprendizagens e de adaptação a grupos de crianças ditas "normais".
O que se pode notar, do que foi dito até aqui, é que as creches e pré-escolas surgiram a partir de
mudanças económicas, políticas e sociais que ocorreram na sociedade: pela incorporação das mulheres à força
de trabalho assalariado, na organização das famílias, num novo papel da mulher, numa nova relação entre os
sexos, para citar apenas as mais evidentes. Mas, também, por razões que se identificam com um conjunto de
ideias novas sobre a infância, sobre o papel da criança na sociedade e de como torná-la, através da educação, um
indivíduo produtivo e ajustado às exigências desse conjunto social.
Discutidas as condições que possibilitaram a "invenção" das creches e pré-escolas, acho importante nos
voltarmos para examinar a que objetivos elas se propõem e, a partir daí, verificar como elas se organizam para
cumprir esta função.
Cada época tem a sua maneira própria de considerar o que é ser criança e de caracterizar as mudanças que
ocorrem com ela ao longo da infância. Nos últimos três ou quatro séculos, a criança passou a ter uma importância
como nunca havia ocorrido antes e ela começou a ser descrita, estudada, a ter o seu desenvolvimento previsto,
como se ele ocorresse sempre do mesmo jeito e na mesma sequência (de forma linear e progressiva). Uma série de
transformações que estão ocorrendo hoje, nos modos de pensar a experiência humana, nos permite dizer que as
descrições feitas pêlos psicólogos, por exemplo, de como se dá o desenvolvimento humano, nada mais são do que
uma explicação entre muitas outras possíveis deste fenómeno. Portanto, a ideia de sujeito em formação e de como é
vivida a experiência da infâ ncia podem variar de época para época (são históricas) e as escolhas que fazemos para
dirigir este processo, também. Assim, aquilo que vou descrever como uma experiência possível e desejável de
educação infantil e as teorias que vou escolher para justificar as minhas escolhas nada mais são do que escolhas
arbitrárias, aquilo que acredito, hoje, como o mais adequado quando penso a educação da crian ca pequena.2
Foi a pensadora alemã Hannah Arendt3 que afirmou:
Com a concepção e o nascimento, os pais não deram somente a vida a seus filhos, eles, ao mesmo tempo, introduziram-nos em
um mundo. Educando-os eles assumem a responsabilidade da vida e do desenvolvimento da criança mas também da continuidade do
mundo.
Também os currículos têm a pretensão de ser neutros, isto é, servir igualmente a todos, sem considerar que o
sujeito que aprende é menina ou menino, negro/branco/amarelo/mestiço, nasceu na zona rural ou urbana, vem de
uma família de migrantes ou de outra que vive há muito tempo na comunidade... Enfim, que as crianças envolvidas
pela experiência curricular são caracterizadas pelas diferenças.
Penso que o nosso desafio está em conceber novas experiências no campo do currículo, incluindo as múltiplas
manifestações culturais (da experiência política, dos modos de viver e de relacionar-se, do folclore, da literatura,
da arte, da música, da TV, do cinema, das revistas e jornais...) que são expressão da riqueza do mundo humano. Não
existe apenas um conhecimento, uma tradição que deve ser compartilhada por todos, na sociedade. Portanto, não
existe apenas um currículo, válido para todos. Tomando como exemplo alguns fatos hoje correntes, tanto podem
fazer parte da experiência curricular as eleições para escolha de um novo prefeito, governador ou presidente, um
furacão no Caribe, a maneira como nascem os bebés, a construção de um teatro de bonecas ou marionetes, a
organização de uma festa, quanto o programa favorito da TV os novos animais que nasceram num parque da
cidade, a reorganização dos cantinhos da sala... O que temos que deixar de lado é uma visão "escolar" do
currículo que toma como modelo as formas de trabalhar o conhecimento que herdamos do ensino fundamental.
Quero ressaltar que da experiência curricular não resultam apenas o que temos considerado tradicionalmente
como conhecimento: o domínio de informações e o desenvolvimento do raciocínio, de formas de pensar, que a
gente quer cada vez mais complexas, aperfeiçoadas, abstraias. A experiência que a criança vive na escola infantil é
muito mais completa e complexa. Nela a criança desenvolve modos de pensar, mas também se torna um ser que sente
de uma determinada maneira. O desenvolvimento da sensibilidade, o fato de reagir de uma certa maneira frente
aos outros e às experiências vividas, o gosto por determinadas manifestações culturais em vez de outras..., não
são resultados que devem ser desprezados, quando pensamos no tempo e nas experiências que a criança vive ao
longo da educação infantil. Também é preciso destacar que a criança neste período se torna cada vez mais capaz
do domínio das operações com o próprio corpo, um sujeito que faz coisas, que desenvolve habilidades,
destrezas, que se expressa de variadas formas, que se manifesta como um ser ativo e criativo. Todas as ações,
formas de expressão, de manifestação do gosto, da sensibilidade infantil são marcadas pelo que é vivido e
aprendido nas creches e pré-escolas (mas também fora delas). Tudo isso constitui conhecimento escolar, na
educação infantil. Tudo isso faz parte da experiência curricular.
A maneira como hoje vejo as crianças, como seres ativos, que podem se tornar cada vez mais competentes
para lidar com as coisas do seu mundo, se tiverem oportunidades para isso, me faz defender algumas ideias que
não são absolutamente minhas, nem totalmente originais.
Ao considerarmos que vivemos em contextos culturais e históricos em permanente transformação, podemos
incluir aí também a ideia de que as crianças participam igualmente desta transformação e, neste processo, acabam tam-
bém transformadas pelas experiências que vivem neste mundo extremamente dinâmico. Portanto, penso que é de
extrema importância nos darmos conta de que as mudanças que ocorrem com a crianças, ao longo da infância, são
muito importantes e que algumas delas jamais se repetirão. Em razão disso, considero da maior relevância defender
o direito da criança à sua infância, o que tem sido negado a muitas delas.
Continuo pensando que a criança nos desafia porque ela tem uma lógica que é toda sua, porque ela encontra
maneiras peculiares e muito originais de se expressar, porque ela é capaz através do brinquedo, do sonho e da
fantasia de viver num mundo que é apenas seu. Outro desafio que as crianças nos fazem enfrentar é o de
perceber o quanto são diferentes e que esta diferença não deve ser desprezada nem levar-nos a tratá-las como
desiguais.
Tudo isso leva-me a pensar que a experiência da educação infantil precisa ser muito mais qualificada. Ela deve
incluir o acolhimento, a segurança, o lugar para a emoção, para o gosto, para o desenvolvimento da sensibilidade;
não pode deixar de lado o desenvolvimento das habilidades sociais, nem o domínio do espaço e do corpo e das
modalidades expressivas; deve privilegiar o lugar para a curiosidade e o desafio e a oportunidade para a
investigação.
Por tais razões, as instituições de educação infantil são hoje indispensáveis na sociedade. Elas tanto
constituem o resultado de uma forma moderna de ver o sujeito infantil quanto solução para um problema de
administração social, criado a partir de novas formas de organização da família e de participação das mulheres na
sociedade e no mundo do trabalho.
Para além disso, porém, penso que as creches e pré-escolas vão ainda, por muito tempo, constituir um
importante espaço de "descoberta do mundo" para um sem-número de crianças. Ora, cumprir esta
responsabilidade social de compartilhar com as crianças esta descoberta tão instigante não é pouca coisa. Ela
nos desafia, nos compromete e nos convoca. Cabe a nós a opção.
NOTAS
1
Estas condições de aparecimento da escola nacional são desenvolvidas de forma bastante extensa por Varela e Alvarez-Uría, 1992.
'Com relação a este argumento ver também o texto de Jane Felipe: "O desenvolvimento infantil na perspectiva sociointeracionista:
Piaget, Vygotsky, Wallon", nesta coletânea.
3
Cf. Forquin, 1993, p. 13.
4
Esta concepção de currículo foi bastante desenvolvida no Parecer da Faculdade de Educação da Ufrgs, 1996.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FELIPE, Jane. O desenvolvimento infantil na perspectiva sociointeraáoniíta: Piaget, Vygotsky,
Wallon. Nesta coletânea.
FORQUIN, Jean-Claude. Escola e cultura. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. Parecer da FACED/UFRGS. Educação & Realidade, v.
21, n. l, p. 229-241, jan./jun., 1996. VAREI.A, Júlia; AI.VAREZ - URIA, Fernando. A maquinaria escolar. Teoria & educação, v. 6,
p. 68-96, 1992.