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Carlos Alberto Faraco

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PRATICA DE TEXTO
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIp)


(Câmara Brasileira do Livro, Sp, Brasil)

Faraco, Carlos Alberto


Prática de texto para estudantes universitarios / carlos Alberto
Faraco. Cristovão Tezza.24. ed,. - Petrópolis, RJ : Vozes ,2014.

Bibliografia
rsBN 97 8- 8 5 -326-0842-0

L Porluguês - Estudo e ensino 2. Português - Redação 3. Textos


I. Tezza, Cristovão. 1a Reimpressão
Março/2O16

92-1747 cDD-808.046907

l.
Indices para catäogo sistemático
Prática de texto : Português : Estudo e ensino 808.046907
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virtual será parte do texto. Novamente, privilegiou-se a ideia de roteiro de Cnpirulo Uv
trabalbo, em detrimento do tradicional e tnefícaz "manual de instruções"...
Além dos textos teóricos, presentes na primeira parte, esta Prática to- AS LINGUAGENS DA LINGUA _ I
mou como referência básica - mas não única - textos jornalísticos, de in-
formação e de opinião, dos principais jornais e revistas, que, queira-se ou
näo, representam a língua padrão real do Brasil de hoje. Entretanto, sem-
pre que pertinente, nosso livro lembra aos estudantes, nos aspectos estrita- Alividode I
mente gramaticais, os "desvios" e as diferenças de formas linguísticas em Afinal,oqueéalíngua?
função de variáveis como oralidade, destinatário, intenção etc. Em suma,
trata-se de pensar - e de praticar - a gramática padrão como uma gramâti- A língua é uma das realidades mais fantásticas da nossa vida. Ela está
câ entre outras, tendo clareza, além disso, de que ela não é uma realidade presente em todas as nossâs atividades; nós vivemos entrelaçados (às vezes
estática, mas em contínua transformação. soterrados!) pelas palavras; elas estabelecem todas as nossas relaçées e nos-
Nos capítulos em que discutimos a argumentação e a crítica, o livro se sos limites, dizem ou tentam dizer quemsomos, quem são os outros, onde
detém menos nos temas - de resto rapidamente perecíveis num material estamos) o que vamos fazer, o que fizemos. Nossos sonhos são povoados
didático - e mais nos mecanismos linguísticos e discursivos dos textos ar- de palavras; os outros se definem por palavras; todas as nossas emoções e
gumentativos. Em qualquer caso, a teorizaçáo sobre os fatos da língua es- sentimentos se revestem de palavras. O mundo inteiro é um magnífico e
tará sempre em segundo plano, em favor da atividade prâtica fundamenta- gigantesco bate-papo, dos chefes de Estado negociando a paz e a guerra às
da principalmente na intuição do estudante e na sua experiência sociocul- primeiras sílabas de uma criança em alguma favela brasileira ou numa vila
tural de leitor e praticante da escrita ao longo de sua vida escolar. africana. E pela linguagem, afinal, que somos indivíduos únicos: somos o
que somos depois de um processo de conquista da nossa palavra, afirmada
Enfim, a utopia é esta, repetindo as palavras de Alcir Pécora: "...uma prá- no meio de milhares de outras palavras e com elas compostas.
tica capaz de, reconhecendo a natureza dos problemas a ser enfrentados, re-
novar o papel crítico que cabe ao ensino no processo de conhecimento". Apesar dessa presença absoluta na nossa vida (ou talvez justamente por
isso), ainda sabemos pouco sobre a linguagem e, em geral, temos uma rela-
Os autores ção problemática com ela, principalmente em sua forma escrita. Isto é, em-
bora não sejamos nada sem a língua, parece que ela perïrlanece alguma coisa
estranha em nossa vida, como se ela não nos perterìcesse. Neste primeiro
momento, vamos refletir um pouco sobre alguns dos traços que definem a
língua e por que ela parece muitas vezes alguma coisa "estrangeira".

Exercício 7

A primeira coisa que devemos fazer ao pensar sobre a realidade da Iín-


gua, é separá-la em duas categorias básicas: língua faladø e língua escrita.
Na verdade, a realidade primeira da língua é a falø, tanto na história da
humanidade como na nossa história pessoal. Isto é, a escrita surgiu depois,
e fundamentada na realidade da fala. Adiante veremos mais detalhada-
mente essa separaçäb. Por enquanto, consideremos apenas a fala. Observe
os exemplos seguintes (você pode lê-los em voz alta, porque agora o que
nos interessa é apenas o sorn; não se impressione com os erros de grafia...): "
1. Eu conheço ele dês que a gente era colega de colégio,
2. Eu o conheço desde o tempo em que éramos colegas no colégio.
3. 0 sinhô vai armoçá gorinha memo? Não faiz mar, nóis vorta despois.

I 9
4. 0 senhor vai aumoçá nesse momento? Não faz mau, nós voutamos depois. costuma separar as ocorrências linguísticas em dois grupos: o certo, identi-
5. Vós poderíeis dizer, excelência, que estou equivocado. ficado ra-pra com as formaS gramãticais escolares, e o errad,, que, em ge-
6. Você podia dizê, cara, que eu errei. i"f , à ærllo que a gente fala i ouve o dia inteiro. Essa é uma divisáo táo
7. Comprei um pacótchi di lêitchi. forte que pruiicume.rte todos os falantes da língu.a portuguesa conservam'
B, Comprei um pacote de leite. em algu- grau, uma certa insegurança no uso da linguagem'
9. Mas tu quiria u quê?
10. Porém, tu querias o quê? Frases como Soø bom em matemtiticø, mas péssimo em português, ou
serti que falei certo?, ou N¿io sei nada de gramática, ou Mas .que língua
Eis aí dez enunciados bastante diferentes entre si, diferentes não ape- *aX al¡trit esse tal de português são_muito frequentes em ambientes esco-
nas pelas informações veiculadas, mas também quanto às formas emprega- larizadós. Daí por qrre, e-bóta a palavra ocupe um espâço extraordinário
das. Há diferenças de sons, uocabulário, formas uerbøis, formas de trøtamen- na vida d"S peSto"S, ela mantenhaìe-pte,o Seu toque "estrangeiro", como
to etc. Veja (sempre lembrando da fala, não da escrita): algo que n.tnc" pode ser complemmente dominado'
É claro que há muitos fatores envolvidos nessa questão, em geral rela-
sinhô senhor - você - tu - vós
-
armoçá - aumoçá
tivos a uma certa confusão de conceitos. A primeira confusão nós vimos
despois - depois
a.i-a, a diferença, bastante substanciai, entre língua falada e língua escri-
eu o conheço - eu conheço ele
;;, È- geral, as p.tto"t tendem a julgar a língua apela.s como uma realida-
de escrña. Outrá confusáo frequente decorre do sentido da palavra grqmii-
' l¡"o. Ã" pessoas normalmente ètrtendem "gramâtica" apenas como o livro
São somente alguns poucos exemplos. Se saíssemos à rua com um gra-
que contém as regras "certas" da língua.
vador na máo, recolhendo amostras do que as pessoas realmente falam no
dia a dia, passaríamos o resto da vida coletando material sem jamais esgo-
tar a uariedade. Esta é uma palavra-chave para qualquer compreensáo da D iu er si dade linguísti ca
língua, o ponto de partida de nosso estudo: auariedade.
Vamos pensar urn pouco sobre essa variedade. Para uma discussão ini- Tudo isso será visto em detalhes ao longo do livro. Por enquanto, va-
cial, siga o roteiro: mos esquecer momentaneamente os conceitoS de certO e errado, a noçáo
ã. gt";ari.a e os fatos da 1íngua escrita e nos concentrar na imensa diver-
a) Todos os exemplos acima pertencem à língua portuguesa? Por quê?
sidãde linguística da orølidade, isto é, vamos prestar atenção., sem precon-
bl Oue fatores determinam as diferenças? Pense no seu próprio caso: você fala ..irá, or, ¡'rlg"-.trtor prévios, na língua real que vivemos todos os dias.
sempre a mesma linguagem?
c) Em geral, de que modo reagimos diante de um falante "diferente"? Pense em Nós já percebemos que a língua é um imenso coniunto de uøriedades'
alguns exemplos. Tecnicamente, podemos dividir essas variedades em quatro tipos básicos:
d) 0s programas de humor (do tipo "A praça é nossa", ou as "Escolinhas") costumam (e/e
explorar a diferença linguística. 0 que provoca graça? a) diferenças sintáticas, aquelas que decorrem da ordem das palavras na fala
-'r"
e) Faça sua pergunta! ¿"it x ele disse-mä) ou O'e diferentes modos de realizar a concordância
verbal (fu querias xtu queria ou nós estáuamos x nós estaval;
Ul ¿äõiéiçaå morfológióas, aquelas que decorrem da forma da palavra, tomada
individuálmenle lvamos x vamol;
Atividode 2 c¡ Oiieienças lexicais, isto é, diferentes nomes para o mesmo obieto lpandorga
x pipa x raia x PaPagaiol;
Um conjunto de uariedades d) diierenCas ton'étícaé, isto é, pronúncias diferentes da mesma unidade sonora sem
' 'baipira").
Oistinçað ddsignificado (poRta, com erre aspirado x porta, com ene
Nesse primeiro momento, já temos um ponto de partida para definir a
língua: toda língwa é um conjunto de uariedades. Em geral, pela própria E que fatores determinam essa variedade? Isto é, Por. que as pessoas fã-
orientação tradicional da escola e do ensino da escrita, temos uma tendên- lam mãis ou menos diferente umas das outras? Considerando apenas os
cia a imaginar a realidade da língua como alguma coisa homogênea, fixa, exemplos acima, podemos enumerar algumas razóes' Veja:
profundamente uniforme. Também decorre da tradição escolar a ideia que

1.1
10
a) A região do falante. Esse aspecto talvez seja o mais imediatamente compre- Variedade e uølor
ensível de todos. lsto é, cada região do país tem um conjunto mais ou menos
homogêneo de características fonéticas, um sotaque próprio que dá traços dis- Mais ainda que isso, as variedades mantêm uma relação de ualor wmas
tintivos ao falante nativo, um sotaque que, em geral, passa a ser a sua marca com as outras. Ëm bom português, a verdade é que todas as sociedades hu-
mesmo quando ele não vive mais na sua região de origem. A região determina manas estabelecem uma-bierarquia entre suas variedades, atribuindo ualo-
mais diretamente a pronúncia (leitchi x leitel, mas também pode diferenciar res aeste ou àquele traço da fala. Por motivos sociais e históricos, algumas
pelo vocabulá rio lmandioca x macaxeiral e pela sintaxe (Diga-me , em Portugal variedades são-consideradas boas (a essas damos o nome técnico de uarie-
x Me diga, no Brasil). dades padrões ou língua padrão) e avftas nxás.

b) 0 nível social do falante, sua escolaridade e sua relação com a escrita. Quando alguém nos diz algo, nós não apenas interpretamos as infor-
Esse é outro aspecto fundamental na distinção das variedad-es, e em geral inde- mações que nos são passadas pelas palavras em si, mas também o próprio
pende dos sotaques regionais. Aqui as disiinções tocam diretamentð algumas falante, e costumamos avaliar também rapidamente toda a situação em que
formas da língua reproduzidas pela escola e sustentadas na escrita, como ãlguns a fala ocorre.
pontos de concordância verbal (nós vamos x nóis vail, emprego de alguns ter- Em suma: as palauras nî4nca estão sozinhas. E qualquer discussão sobre
mos estigmatizados (menas x menos), vocabulário mais ou menos literário etc. a linguagem, seu sentido e sua naturezà deuerá, obrigatoriamente, discutir
c) A situação da fala, isto é, todo o conjunto das circunstâncias que cercam tømbém as condições reais em que ela existe.
o
momento do enunciado. 0 mesmo falante empregará variedades diferentes da E, é claro, a relação entre as variedades sociais nem sempre é tranqui-
linguagem dependendo de onde ele está (na sala de aula, no campo de futebol, la.lHát, de certo modo, um conflito permanente entre algumas delas. Pen-
em casa), da pessoa ou pessoas com quem ele está falando (o chefe, a mãe, se na sua experiência pessoal: anos e anos sofrendo na escolapara apren-
um assaltante, o vizinho, um desconhecido no ponto de ônibus), a sua intenção der uma variedade que nos dizem ser a certa, mas sempre vivenciando uma
ao falar (dar uma ordem, convencer alguém, fazer um pedido, recusar um p,ãdi- certa insegurança, certas incertezas no uso de algumas formas da língua. Co-
do, pedir alguém em casamento, mentir), a situação específica (um incêndio, mo resolver essa questão?
um entardecer à beira do mar, com pressa atravessando a rua) - e as possibili-
dades aqui são virlualmente infinitas. Enquanto pensamos na resposta, vamos aprofundar ainda mais a defi-
nição de língua a partir de suas variedades, enfrentando agora outra fonte
Apesar dessa imensa variedade, parece que, de uma forma ou de outra, de confusão: o conceito de gramática.
.
todos (ou quase todos!) costumamos nos entender razoavelmente, peló
menos em situações básicas de comunicaçáo. Há, ainda, um outro fato
bem interessante: em geral, as variedades linguísticas são éapazes de inter- Atividode 3
comunicação, isto é, grande parte das variedades conuersam entre si. Em
alguns casos, umas comentam as outras, como ocorre quando brincamos com Variedade e gramática
-o
o s.otaque $e uln.amigo ou nas festas juninas em que falante urbano tenta Para aprofundar um pouco os diferentes sentidos da palavra "gramâtíca",
rmrtar a tala catpl,ra.
vamos observar as ocorrências abaixo. Como até aqui estamos considerando
Nessa cozuersa enlre as variedades, u[ìas podem, inclusive, exercer apenas a linguagem oral, é interessante você ler as frases em voz alta.
certa influência sobre outras, muclando-lhes progressivamente características
a) Nós vamos agora e voltamos depois.
mais tradicionais. As pesquisas linguísticas iê.n"rnortrodo que formas típi-
b) Nós vamo agora e voltamo depois.
cas de variedades menos prestigiadas socialmente estão entiando na língïa
c) Nóis vamo agora e voltamo depois,
padrão (a fala paclrão, por exemplo, já admite amplarnente a ocorrência-de d) Nóis vai agora e vortamo dispois.
construções como .Ess¿ foi o filme que eu møis gostei em conrraste com a cons-
e) Vamos voltamss depois agora nós e.
trução padrão clássica Esse foi o filme de que møis gostei).
Por outro laclo, é perceptível que o intenso contato nas nossas cidades
entre variedades rurais e urbanas do por:tuguês brasileiro, decorrente da Exercício 2
maciça migração da população clo campo para a cidade, está redundando
na substituição progressiva da pronúncii ruial típica de palavras como ueia, Considerando a sua experiência como falante de português, responda
paia, teìa pela urbana típica (uelha, palha, telhai. a essas questões preliminares:

1.2 13
(ísto
1. Das frases acima, quais delas de fato ocorrem no dia a dia, e quais delas não (sintáticos, morfológicos, fonéticos) de uma forma regular e .reitertiuel
0correm nunca? é. as formas são recorreátes). Em outras palavras, por trás de todas as fra-
2. Considerando as frases que de fato ocorrem na vida real, qual delas seria a de ;¿r-;f*;"-ente proferidas pelos falantes da língua existe uma organiza-
uso mais frequente no meio em que você vive? Você tem certeza?
ção; existe uma gramática.
3, Como falante da língua, você se identifica com qual ocorrência? Só essa ou
. mais alguma? Ninguém inuenta regras por contø própria; mesmo o rna'is miseráuel dos
4. Faça um rápido perfil do falante das frases que você assinalou como ocorren- fatanteí que iamais ,rirou n *o ,t"ol, e ¡amøis conuiueu com falantes de
tes (isto é, classe social, escolaridade, regiã0..,),
'o,L¿ttra.s
rri¡rdod6 sociais, domina wma gramdtica completø, domina todo o
5. Assinale quais ocorrências você acha "corretas" e quais você acha "erradas", coniunto de regrøs que comanda a sua uariedøde natiua, um coniunto que
a se cõtsoliãar a purtir dos dois anos de idade'
_ Justifique.
"o*rço
Diante da imensa variedade â que nos referimos acima, já deve ficar
Agora que você já investigou as frases acima, vamos desenvolver um claro para você que existem muital gram.áticas para a mesma língua e, se
pouco mais a noção linguística ðe gramáticø. E muito importante que te- qu.r.-or deserrvälver um bom domínio da escrita, precisamos saber corno
nhamos uma noção clara do que significa essa palavra que o uso comum
nos orlentar em melo a esSa diversidade. Por isso, vamos explorar bastante
define apenas como "linguagem certa". O sentido mais usual da palavra
essa questão no correr do livro.
você já conhece: gramática é o conjunto de regras da língua, definidas
num livro escolar, que decidem o que é "certo" e o que é "errado", Mas
de qual "língua"? Bern, da lista acima, a gramática escolør vai reconhecer Exercício 3
como "certa" apenas a ocorrência "a", como você já deve ter notado.
suponha agora que você é um cientista da língua, um linguista, e está
E o que fazemos com as outras ocorrências? Bem, descartada a ocor-
diante das cinðo ocó.rências apresentadas acima. A sua tarefa é tentar le-
rência "e", que, como tal não existe em português, as outras acabam por
vantar as regras que comand"- .tt.s enunciados' isto é, o princípio de re-
ser muito mais usadas na vida real que a ocorrência "a". Precisamos, en-
gularidade,que sé revela neles' Siga o roteiro abaixo'
tão, entender melhor essa questão, o que faremos em mais detalhes nos plural?
próximos capítulos, estudando a noção de língua padrão ou norma cwlta. 1, No item b, qual a regra que comanda o uso da primeira pessoa do
princípio poderíamos propor para.dar conta da
Z. fssa ¿ Oitii¡t: no itäm ä, que ;nós
Por enquanto, vamos insistir um pouco mais na noção de gramática, - forina vai" e, em-seguida, "vortamo" (e não "nóis
*õuen.iã, primeiro, da
agora não do ponto cie vista normativo ou escolar, mas do ponto de vista vorta" - embora ela também pudesse ocorrer)?
científico, isto é, do ponto de vista da linguística, a cíência que estuda as "nóis"?
3. Como dirát arroz, paz e mas o falante que em geral diz
línguas humanas. Para o cientista da língua, não interessa, a princípio, se 4. Em b e c, por qué o falante corta o s de vamoi evoltamos, mas não de nós e de
uma frase é julgada "certa" ou "errada", mas se ela ocorre ou não de fato depois? Oual a "lógica"?
na vida real. Do ponto de vista linguístico, é a ocorrência que determina a
gramaticalidade. Assim, a expressão frase gramatical, para o linguista, tem
um sentido bastante diferente do sentido que terá para o professor de por- , Atividqde 4
tuguês e pata as gramáticas normativas, interessadas fundamentalmente nâ
língua padrão escrita.
Leitura
Para encerrar essa breve introduçáo às noçóes.de !íngqa, variedade e
O princípio da regularidade
nr"-ãii.". vamos ler dois textos. O primeiro, do linguista brasileiro Sírio
F*rã"ii d.-onr,r" didaticamente o-fato de que não existem línguas uni-
E que traço vai definir a gramaticalidade das ocorrências consideradas ¡;t-.;ä;set¡t"tldo exemplos extraídos da nossa linguagem diâria, e dtz
"erradas" pela escola, mas que existem em profusão na vida real? por que a variedade é Positiva.
O princípio fundamental de todas as gramáticas, tanto a da língua pa- O segundo texto apresenta trechos de uma obra do pensador russo Mikhail
"(l.Sgg-tgZS),
Bakhtin q,r. u.rr"* sobre a língua e sua e$tratificação em dife-
dráo como as das variedades não padrões, é a regularidøde. lsto é, todas as
rentes linguagens sociaii, assinalando o fato de que, na vida real, a apreensão
variedades da língua se organizam, em todos os seus aspectos estruturais
d^ púauí^ dõs outros ná- ,.-pr. significa simplesmente decifrar um sinal

15
1.4

L
"Brasiu", com uma semivogal,
neutro que vem de fora, mas algo que nos envolve por inteiro - e por que que fala "Brasil" com um "1" no final (ao invés de falar
às vezes sentimos nossa própria língua como "estrangeira". ,oro ,f.|1 geral ocorre com 0s mais iovens). 0u seja, as línguas fornecem meios
pã" a identificaçáo social. Éor isso, é frequentemente. estranho, quando
t.*n¿r
nãoi¡Oir,ilo, um velño falai como uma criança, uma autoridade falar como uma pes-
querem vsar a
,ðã i*pfri etc. por exemplo, muitos meninos não podem ou não
na escola, sob pena de serem objeto de gozaçáo por
Texto 1 chamadä linguagem conetä
marca
pãrtr Oo5çoi.gui, porque em nossa sociedade a correçáo é considerada uma
NÁo Exrsr¡M LÍNGUAS UNrorur¡es ' feminina.
Sírio Possenti 0u seja, a va-
Também háfatores internos à língua que condicionam a variação'
Por isso, não
riuçao ãã ulgr*u forma regrada poiuma gramática interior da língua'
O
"errãr"em ceftos casos. Em outras palavras,
Alguém que estivesse desanimado pelo fato de que parece que as coisas não ¿ pìã.iro estJdar uma línguã para não
¡í;Liror'; que ninguém iomete, porque a língua náo permite' Por exemplo, ou-
dão certo no Brasil e que isso se deve ao "povinho" que habita esse país (conhecem
uãr-r. prnúncias-alternativas de'palavras cgmo caixa, peixe, outro: a pronúncia
a piada?), poderia talvez achar que tem um argumento definitivo, quando observa
que "até mesmo para falar somos um povo desleixado". Esse modo de encarar os a pronúncia não-padrão a eliminaria (caxa, pexe, otro)'
páãraã inciuiria a semivãlal,'Oizòr
iMá, nrn.u se ouve algudm peto ou ieto ao invés de peito e l:t!9' Por que será
fatos da linguagem é bastante comum, infelizmente. Faz parle da visão de mundo
que as pessoas têm a respeito dos campos nos quais não são especialistas. Em ou- qrãor ræ*os falantés ora eliminam e ora mantêm a semivogal? Alguém pode ex-
tras palavras, é uma avaliação falsa. Mas como existe, e como também é um fato pli;.;ì;q; o i cai antes de certas consoantes e não diante de outras? Alguém
de f (otro) e o i náo cai no mesmo contexto (pei-
social associado à linguagem, deve ser levado em conta. Por isso, para quem pre- þode explicar por que o u cai antes
tende ter uma visão mais adequada do fenômeno da linguagem, especialmente para io, ieitoil Ceriamente, entä0, o tipo de semivogal (i ou u) e a consoante seguinte
os profissionais, dois fatos são importantes: a) todas as línguas variam, isto é, não ;ãr'p;;r d* futor6 internos relevantes para explicar esse fato que, de alguma for-
existe nenhuma sociedade ou comunidade na qual todos falem da mesma forma; b) ma, todo falante conhece'
país, do
a variedade linguística é o reflexo da variedade social e, como em todas as socieda- 0utro exemplo: podem-se ouvir várias pronúncias, em vários lugares do
auguma' argu-
des existe alguma diferença de sfafus ou de papel entre indivíduos ou grupos, essas Som que Se escreve com a letra / em palavras como alguma: a/guma,
planta: p/anta ou pranta (mas
diferenças se refletem na língua, 0u seja: a primeira verdade que devemos encarar lå. Ä-".r¡.ðåo também existirá em palavras como
de frente é relativa ao fato de que em todos os países (ou em todas as "comunida- palavras como /ata. 0u
nunca ouviremos puanta). Mas, o / será sempre um./ em
des de falantes") existe variedade de língua. E não apenas no Brasil, porque sería- ,ðir, rr ¡r
da sílaba, ele varia; no meio, também (embora não com o mesmo núme-
e incultos.
mos um povo descuidado, relapso, que não respeita nem mesmo sua rica língua. A ro de variantes). Mas, no início, nunca. E isso vale para falantes cultos
segunda verdade é que as diferenças que existem numa língua não são casuais. Ao "os boi", "dois cara", "Comédia dos Eno"'
Mais exemplos: poderemos ouvir
contrário, os fatores que permitem ou influenciam na variação podem ser detecta- "o "um caras" ou "Comédia do Enos"' 0uviremos muitas vezes
mas nunca Ëois",
dos através de uma análise mais cuidadosa e menos anedótica.
"nós vai", mas nunca "eu vamo(s)". Assim, as variações linguísticas são condicio-
por ambos ao mesmo
Um dos tipos de fatores que produzem diferenças na fala de pessoas são exter- nadas por fatores internos à língua ou por fatores sociais, ou
nos à língua. 0s principais são os fatores geográficos, de classe, de idade, de sexo, tempo.
de etnia, de profissão etc. 0u seja: pessoas que moram em lugares diferentes aca- repressiva ou
Alguns sonham com uma língua uniforme. Só pode ser por mania
bam caracterizando-se por falar de algum modo de maneira diferente em relação a que dãs melhores coisas que a humanidade inventou' E a
medo ãa variedade, é uma
outro grupo. Pessoas que pertencem a classes sociais diferentes, do mesmo modo as variedades mais funcionais que existem' Pode-
variedade linguística'está entre
(e, de certa forma, pela mesma razão, a distância - só que esta é sociallacabam ca- quanto mais numero-
*ot prntur ña variggão como fonte de recursos alternativos:
racterizando sua fala por traços diversos em relação aos de outra classe. 0 mesmo
vale para diferentes sexos, idades, etnias, profissóes. De uma forma um pouco sim-
toitãitÃ, mu¡s ei'piessiva pode ser a linguagem humana' Numa.língua uniforme
iulurr toi* possívei pensar, dar ordens e initruçoes. Mas, e a poesia? E o humor?
E
plificada: assim como certos grupos se caracterizam através de alguma marca (di- Teriam que avisar (di-
como os falantes fariam paia demonstrar atitudes diferentes?
gamos, por utilizarem certos trajes, por terem determinados hábitos etc.), também "vou traiá-lo formalmente")?
zer, por exemplo, "estou initado", "estou à vontade",
podem caracterizar-se por traços linguísticos. Para exemplificar: podemos dizer que
Por que (não) ensinar gramática na esco/a, p' 33
fulano é velho porque tem tal hábito (fuma cigarro sem filtro, por exemplo), ou por-

1.7
16
Texto 2 discurso não se encontra em uma língua neutra e impessoal (pois não é do dicioná-
rio que ele é tomado pelo falante!), ele está nos lábios de outrem, nos contextos de
[SonnE A ESTRATTFTcAÇÃo DA LINGUAGEM] outrem e a serviçQ das intençoes de outrem: e é lá que é preciso que ele seja isola-
Miþhail Bakbtin do e feito próprio. Nem todos os discursos se prestam de maneira igualmente fácil a
esta assimilação e a esta apropriação: muitos resistem firmemente, outros perma-
A língua. enquanto meio vivo e concreto onde vive a consciência do artista da necem alheios, soam de maneira estranha na boca do falante que se apossou deles,
palavra, nunca é única. Ela é única somente como sistema gramatical abstrato de não podem ser assimilados por seu contexto e escapam dele; é como se eles, fora
formas normativas, abstraída das percepçoes ideológicas concretas que a preen- da vontade do falante, se colocassem "entre aspas". A linguagem não é um meio
chem e da contínua evolução histórica da linguagem viva. A vida social viva e a evo- neutro que se t0rne fácil e livremente a propriedade intencional do falante; ela está
lução histórica criam, nos limites de uma língua nacional abstratamente única, uma povoada ou superpovoada de intenções de outrem. Dominá-la, submetê-la às próprias
pluralidade de mundos concretos, de perspectivas literárias, ideológicas e sociais, intenções e acentos é um processo difícil e complexo.
fechadas; os elementos abstratos da língua, idênticos entre si, carregam-se de dife- Ouesfoes de literatura e eqréfrca, p. 96s
rentes conteúdos semânticos e axiológicos, ressoando de diversas maneiras no in-
terior destas diferentes perspectivas.
(...)

Cada época histórica da vida ideológica e verbal, cada geraçã0, em cada uma
das suas camadas sociais, tem a sua linguagem: ademais, cada idade tem a sua lin-
guagem, seu vocabulário, seu sistema de acentos específicos, os quais, por sua vez,
variam em função da camada social, do estabelecimento de ensino (a linguagem do
cadete, do ginasiano, do realista são linguagens diferentes) e de outros fatores de
estratificaçã0. Trata-se de linguagens socialmente típicas por mais restrito que seja
o seu meio social. (...)
Enfim, em cada momento dado coexistem línguas de diversas épocas e perío-
dos da vida socioideológica. Existem até mesmo linguagens dos dias: com efeito, o
dia socioideológico e político de "ontem" e o de hoje não têm a mesma linguagem
comum; cada dia tem a sua conjuntura socioideológica e semântica, seu vocabulá-
rio, seu sistema de acentos, seu s/ogan e suas lisonjas. (...)
Como resultado do trabalho de todas estas forças estratificadoras, a língua não
conserva mais formas e palavras neutras "que não pertencem a ninguém"; ela tor-
na-se como que esparsa, penetrada de intençoes, totalmente acentuada. Para a
consciência que vive nela, a língua não é um sistema abstrato de formas normati-
vas, porém uma opiniâo plurilíngue concreta sobre o mundo. Todas as palavras evo-
cam uma profissã0, um gênero, uma tendência, um partido, uma obra determinada,
uma pessoa definida, uma geraçã0, uma idade, um dia, uma hora. Cada palavra evo-
ca um contexto ou contextos, nos quais ela viveu sua vida socialmente tensa; todas
as palavras e formas são povoadas de intenções. (...)
Em essência, para a consciência individual, a linguagem (...) coloca-se nos limi-
tes de seu território e nos limites do território de outrem. A palavra da língua é uma
palavra semialheia. Ela só se torna "própria" quando o falante a povoa com sua in-
tençã0, com seu acento, quando a domina através do discurso, torna-a familiar com
a sua orientação semântica e expressiva. Até o momento em que foi apropriado, o

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