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Como Escrever Histórias

Como Escrever
TV
Irmão do Jorel: Eject Especial
de Raoni Marqs

Em fevereiro de 2017 eu comecei a desenhar o storyboard do último


episódio da segunda temporada do Irmão do Jorel: o "Eject Especial".
Esse episódio foi escolhido entre umas 3 mil produções de quase 200
países pro maior festival de animação do mundo na categoria programa de
tv. Foi por causa dos meus maravilhosos desenhos? Eu gostaria de dizer
que TAMBÉM. Mas no fim das contas, histórias funcionam porque elas
são bem escritas. Então vamos ver como escreveram essa.

A primeira coisa sobre esse episódio: metade dele se passa no Japão; mais
um quarto do episódio é sobre como coisas estão acontecendo no Japão e
o Irmão do Jorel precisa ir pra lá resolver tudo; e o primeiro quarto do
episódio é sobre como ele vai causar as coisas que acontecem no Japão.
Ou seja, a premissa seria: "Irmão do Jorel faz uma coisa e viaja ao Japão
pra resolver". A pergunta é: como eu começo essa história?
Uma ótima dica sobre como escrever histórias é: comece a narrar o mais
tarde possível. No Kit de Ferramentas, disponível para a galera que
financia o canal lá no Apoia-se eu falo sobre isso:

"Conte apenas o necessário. Se você contar sobre um


piloto de corrida, não mostra esse cara na auto-escola,
mostre ele dentro do carro prestes a dar a largada!
Comece a cena tão tarde que se ela começasse um
segundo depois, nós já não entenderíamos nada."

Isso vale só pra cenas, ou pra qualquer unidade narrativa? Qualquer


unidade! Isso vale pra toda a história! Então no caso do episódio do Irmão
do Jorel que se passa no Japão, onde começa o episódio? Com certeza já
começa com alguma coisa sobre o Japão!

Meio que não é esse o caso. O episódio começa na rua da casa dele.

No começo do episódio, o Irmão do Jorel tá parado na calçada, à noite,


pronto pra ir pra escola, esperando a Lara, a amiga dele, chegar pra buscá-
lo de bicicleta.

O que isso tem a ver com o Japão? A Lara, que não é namorada dele, se
mudou pra lá dois episódios atrás.
Como ele está muito triste, os pais dele deixam o Irmão do Jorel ficar
acordado até tarde pra assistir os Microwave Warriors – o desenho japonês
mais legal do mundo, que passa muito tarde e o Irmão do Jorel não pode
assistir porque tem que ir pra cama cedo.

Então a gente tem outra coisa sobre o Japão. O que acontece depois?

O McKee tem esse capítulo em que ele fala sobre a Brecha. O que é a
Brecha? Se você assistiu o nosso vídeo sobre Beats, a Brecha é a Reação
num Beat: a Brecha é quando você faz alguma coisa esperando um
resultado e o universo te devolve um resultado completamente inesperado.
Tão inesperado que você precisa repensar todo o seu plano pra continuar
seguindo em frente.

"Na história, nos concentramos naquele momento, e


apenas aquele momento, no qual uma personagem toma
uma ação esperando uma reação útil de seu mundo, mas,
ao invés disso, o efeito de sua ação é provocar as forças
do antagonismo. O mundo reage diferentemente do
esperado, mais poderosamente do que o esperado ou
ambos."

Quando o Irmão do Jorel ganha autorização para ver o desenho, ele vai até
a sala, mas a vó dele tá assistindo um programa – essa piada acabou não
entrando no episódio final, mas a Vovó Gigi está assistindo o Perdigoto
entrevistar o elenco do novo filme do Steve Magal: "Steve Magal Contra
os 5 mil Samurais Brutais" e ele ainda está no terceiro samurai.

Ou seja, o Irmão do Jorel descobre que não vai conseguir assistir os


Microwave Warriors, porque a vó dele tá vendo outra coisa que vai
demorar bastante pra acabar.

Pra solucionar o problema, a Vovó Gigi fala pro Irmão do Jorel gravar o
desenho usando o videocassete. Pra isso, a Vovó Gigi entrega uma fita em
que tá gravado o aniversário de oito anos do Irmão do Jorel. Se você não
assiste esse desenho, o Irmão do Jorel tem duas avós: a vovó Juju, que é
boazinha; e a vovó Gigi, que é malvada. Então essa é uma piada sobre
como ela é uma avó mau-humorada que não se importa muito com nada
além de ver TV.

Ela explica que, se o Irmão do Jorel começar a gravar agora, a fita vai
pegar o episódio que ele quer ver, mas também vai pegar um programa
que passa logo antes: o programa do Shakespirito – um programa que
ensina a magia da poesia para crianças. É um programa que o Irmão do
Jorel pode assistir – porque não passa tão tarde – mas ele morre de
vergonha de admitir que assiste – porque é educativo.

No dia seguinte, o Irmão do Jorel tenta tirar a fita de dentro do


videocassete, mas não consegue. Então eles precisam usar o botão Eject
Especial. Antes que a vovó Gigi possa contar os riscos de apertar o Eject
Especial, o Irmão do Jorel aperta o botão. A fita sai, e o Irmão do Jorel fica
mais tranquilo porque nada de caótico aconteceu. Mas aí, tudo o que
estava na fita aparece no mundo real. Do ponto de vista da construção do
roteiro, isso é importantíssimo. Por quê?

Porque o roteiro passou mais de três páginas estabelecendo coisas:


– Porquê o Irmão do Jorel não pode assistir o programa.
– O que é um videocassete.
– O programa do Shakespirito.
– O programa dos Microwave Warriors.
– O programa do Perdigoto.
– O que tem na fita cassete.
– O que vai ser gravado na fita cassete.
– e o roteiro ainda cita o Japão (mostrando o Perdigoto
entrevistando samurais que inclusive falam japonês).

Então quando a Vovó Gigi fala que na fita cassete tem o aniversário de 8
anos do Irmão do Jorel e que a gravação vai pegar o programa do
Shakespirito, parece que é só uma piada – o roteiro ainda tem uma fala do
Irmão do Jorel em que ele ressalta que não gosta do programa do
Shakespirito – mas na verdade o que todas essas coisas estão fazendo é
estabelecer elementos que vão ser importantes para o resto da história.

Os Microwave Warriors aparecem na TV para comentar o aparecimento


do Shakespirito em Tóquio, além de um monte de bolo que deixou o
templo Biluji Wai Hou completamente cremoso. Logo o Microwave
Defrost aparece na casa do Irmão do Jorel e, para consertar tudo, ele
precisa da fita cassete de onde todas as coisas saíram.
O problema é que o Irmão do Jorel não pode entregar a fita, porque nela
ele gravou o último episódio da temporada dos Microwave Warriors para
assistir com a Lara.

Quando eu falei sobre começar as cenas o mais tarde possível, era disso
que eu tava falando: o episódio em que o Irmão do Jorel faz com que
desenhos animados apareçam no mundo real e aí viaja com eles para o
Japão não começa numa cena sobre o desenho ou sobre fita cassete: ele
começa falando sobre como a Lara foi embora pro Japão e o Irmão do
Jorel não está conseguindo lidar com essa realidade.

"Comece as cenas tão tarde, que se elas começassem um


segundo depois, ninguém ia poder entender nada".

Começar o episódio mostrando o Irmão do Jorel sentindo falta da Lara e


fazendo a mãe dele falar sobre como ela não vai aparecer, porque ela agora
mora no Japão te dá todas as informações que você precisa para entender
tudo o que acontece nesse episódio.

Chegando no Japão, eles são atacados pelo Shakespirito e perdem as


esperanças. Mas aí a Lara aparece.

Se você não assiste "Irmão do Jorel", eu preciso te explicar que esse


episódio passou duas semanas depois de um dos momentos mais tristes na
história da televisão nacional: o episódio em que a Lara foi embora. Um
episódio tão depressivamente emocionante que as pessoas ainda estão
indignadas na internet.

A Lara é importante só pra quem assiste o desenho e tava sentindo falta


dela? Não – porque esse roteiro é ridiculamente bem escrito, então todas
as coisas nele são essenciais pra história!

Diante do poder incomparável do Shakespirito, Microwave Defrost perde


as esperanças. Então a Lara sacode o Irmão do Jorel atrás de uma
informação que possa ser usada pra derrotar o Shakespirito – ele precisa
admitir pra ele mesmo que… OK. Isso aqui vai ser complexo pra um
episódio de desenho animado sobre um moleque que ninguém sabe o
nome, viajando com guerreiros que usam microondas como armas,
salvando o Japão de um fantoche gigante de Shakespeare que derruba
prédios e recita poesias, mas…

Normalmente a gente define um herói como "alguém que faz algo que as
pessoas normais não conseguem" – o herói é o protagonista de um épico e
um épico é uma série de grandes feitos ou "esforços de grande
envergadura". Mas o Campbell define o herói como alguém que abdica de
ser uma pessoa, para desempenhar uma função maior que ele em nome do
bem de toda a sociedade.

Assim como um Rei deixa de ser uma pessoa para desempenhar as


funções de líder, o herói deixa o papel de cidadão para assumir o papel de
agente: o resto da galera espera enquanto ele faz o que precisa ser feito.

"Assim como os rituais de passagem tradicionais


costumavam ensinar ao indivíduo que morresse para o
passado e renascesse para o futuro, as grandes
cerimônias de posse o privavam do seu caráter de pessoa
comum e o vestiam com o manto de sua vocação."

Aqui a Lara fala pro Irmão do Jorel que ele precisa deixar de lado o ego
dele – que não suporta ser exposto como uma criança que só pode assistir
programas educativos que passam antes da hora de dormir. A Lara fala que
ele precisa deixar de ser uma pessoa para ser um herói.

E é só depois que o Irmão do Jorel admite que é uma criança, que ele é
capaz de se lembrar de uma fraqueza do adversário. São as limitações do
Irmão do Jorel – no caso, o horário dele ir pra cama e só poder assistir o
programa do Shakespirito – que o tornam o único capaz de derrotar o mal
que aflige a sociedade.

Ok? Ok.

Aí o Irmão do Jorel derruba o Shakespirito por tempo suficiente para que a


Lara apareça com o videocassete e a fita para prendê-lo de volta. O Irmão
do Jorel diz que ele gravou os Microwave Warriors pra poder assistir com
ela e a Lara reconhece que aquilo é fofo. "Mas salvar um país inteiro da
destruição total é MUITO mais fofo!"

Juntos os dois prendem o Shakespirito e salvam o Japão.

Além de ter sido o primeiro episódio do Irmão do Jorel que eu trabalhei,


esse roteiro é muito incrível por fazer coisas aparentemente superficiais do
primeiro ato virarem elementos fundamentais nos atos seguintes. Do
começo ao fim do episódio, cada coisa que você vê e ouve são essenciais
para o funcionamento e o entendimento da história.

Na próxima vez que você for escrever uma história pense muito bem
nisso: estabeleça as regras, os personagens e o conflito. Então use
exatamente esses mesmos elementos na resolução da sua história.

Agora corre lá escrever.

conteúdo da campanha do Apoia-se


"Como Escrever Histórias" – Raoni Marqs, 2018.
apoia.se/comoescrever

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