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Y36a
Avaliação psicológica e desenvolvimento humano:
Casos clínicos / Denise Balem Yates, Mônia Aparecida da Silva,
Denise Ruschel Bandeira. - 1. ed. - São Paulo: Hogrefe, 2019.
ISBN 978-85-85439-91-0
1. Psicologia clínica. 2. Testes psicológicos. 3. Testes
neuropsicológicos. 4. Neuropsicologia. 1. Silva, Mônia
Aparecida da. II. Bandeira, Denise Ruschel. III. Título.
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma ou
quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópias e gravação) ou arquivada
em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita.
ISBN: 978-85-85439-91-0
Impresso no Brasil.
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\
9 -
Adolescente de 13 anos com queixa de mudança
de comportamento
Beatriz Cancela Cattani
Clarissa Marceli Trentini
Andréia Mello de Almeida Schneider
Denise Ruschel Bandeira
Solicitação da avaliação
A escola na qual Ricardo estudava havia quatro meses antes do começo da
avaliação solicitou que a família procurasse atendimento psicológico em razão
do comportamento do paciente em sala de aula. O menino de 13 anos não fazia
as atividades propostas, além de não copiar a matéria e ficar isolado da turma.
A queixa da família versava sobre a mudança de comportamento do filho,
que estava mais agressivo e isolado. Não estava empenhado nos estudos como
em anos anteriores, não queria ir à escola e estava sendo alvo de bullying pe-
los colegas. Os pais afirmavam que o menino sempre havia sido tímido e tinha
dificuldades de relacionamento. Em casa, o comportamento era agressivo. Res-
pondia aos outros gritando, batia no irmão menor, de 9 anos, e ameaçava bater
nos pais.
1
Todos os nomes são fictícios a fim de preservar a identidade do avaliando e de seus familiares.
2 Avaliada de acordo com o Critério Brasil da hsociação Brasileira das Empresas de Pesquisa (ABEP, 2014).
. . d volvimento humano: Casos clínicos
140 Avaliação ps1cológica e esen
.. e anos, respectivamente
Idade dos pais. 45 48 • ·1· d ·
_ d • . mãe do lar e pai aux1 iar e serviços gerais
Ocupaçao os pais.
GPedro
0
Marta
26 20 13 9
·ndicados
3 Os dados referentes à história cl ' . . . . formantes' mo-
na seção "Pro dº mica do paciente aqui reportados foram coletados com os tn . - 0 das me
ce 1mentos" deste d rnp11aç 8
rias e percepções d . e ocumento. Dessa forma, os fatos aqui descritos são uma co
os m1ormantes en I "d
vo VI os no processo da avaliação psicológica.
9. Adolescente de 13 anos com queixa de muda nça de comportamento 141
. ao pediatra todos os
sou 1r . meses para medir a quantidade de açu' car no sangue e
itorar seu desenvolvimento.
monDepois dos meses _iniciais:
. . . . nunca ~ais. fiicou doente ou teve qualquer proble-
ma físico. Não _nec~ssit~u i~ternaçao e seque~ contraiu gripe. Também nunca
fez uso de med1caçao psiqmatrica. Mamou no peito até os 6 meses, tendo seguido
na mamadeira até os 7 anos.
Ingressou na escola ~os 7 anos. ~pesar do histórico de bom desempenho escolar,
comportamento de Ricardo era diferente do manifestado em casa. Portava-se de
forma tímida, não conversando com ninguém. Não copiava, a matéria, mostrando-se
0
''
. • , havia realizado um eletroencefalograma, o qual não
O memno Jª . . d . ªPonto
de patologi·as. Não havia queixas o pediatra e a famíli u Para
presença h . "d a nego a
doenças, informando que Ricardo sem~re avia· si saudável. u outras
todo O período do atendimento de Ricardo, tentou-
D ura nte . _ se estab
telefônico com a escola do paciente, mas nao houve retorn 0 eleeer
cont at o , "d . Para a
de cinco ligações feitas, mesmo apos ter si o explicada a severidade dO s lllais
.
· ' · da d"1reçao.
tância do contato para fu ncionartos - por tal razão . r caso ea
1mp 0r . , in1orrna .
mais detalhadas acerca da vida escolar do paciente não foram obtida s. Ções
Vale referir que os pais de Ricardo apresentavam baixo nível sacio ,
º . economic0
tendo estudado apenas o 1 ano do Ensmo Fundamental. Houve dificu]d ,
- b ade de
ambos para responder algumas questoes ou mesmo 1em rar de alguma s datas.
Planejamento da avaliacão #
. . te e a difi·
Considerando o emudecimento praticamente constante do pacien ei
. d'1 entos io
culdade de mteragir com a avaliadora, toda a comunicação dos aten ~ dia!ll
feita por meio da escrita e de perguntas fechadas pela psicóloga, as qu_ais p~men·
ser respondidas com "sim" ou "não". O paciente, por vezes, respon~t~ or~estes
t · d • 01ur10s.
e, ou assentm o com a cabeça ou com as mãos, e eventuais mur •tados,
verbais, tanto de inteligência quanto de personalidade, precisaram ser evt
Procedimentos
alén1
O . d" , . . utos cada,
psico iagnosttco teve duração de oito encontros, de 60 min
de uma entrevista de devolução.
9. Adolescente de 13 anos com queixa de mudança de comportamento 143 \
Técnicas utilizadas
fontes fundamentais de informação:
• Entrevistas de anamnese com os pais.
• Hora do Jogo Diagnóstica.
• Técnica Projetiva de Desenho H-T-P (Buck, 2003).
• Tarefa de contar histórias (por escrito) .
5
• Teste das Matrizes Progressivas de Raven - Escala Geral (Raven, 2008).
Resultados
Como forma de sintetizar as principais informações encontradas em cada
técnica e instrumento utilizado, as tabelas 9.1 e 9.2 apresentam um resumo
dos resultados. A Tabela 9.1 apresenta as fontes fundamentais de informação e
a Tabela 9.2, as fontes complementares de informação. Posteriormente, é feita
a descrição encadeada desses achados, semelhante à apresentação que é feita
no laudo.
Tabela 9.1
Resumo dos resultados encontrados nos instrumentos aplicados
~s~º ano em que a avaliação de Ricardo foi realizada, 0 referido teste era considerado favorável pelo Satepsi
' stema de Avaliação de Testes Psicológicos). o teste passou a ser desfavorável em 11 de abril de 2018.
. e desenvolvimento humano: Casos clínicos
144 Avaliação psicológica
2
Tabela 9. d ncontrados nos instrumentos complementa
Resumo dos resulta os e res
aplicados
Apesar de o foco desta avaliação não ter sido voltado para as questões cogniti-
vas do paciente, esses aspectos foram avaliados a fim de se descartar a possibilida-
de de haver maiores dificuldades ou transtornos nessa área. Ricardo evidenciou
capacidades cognitivas acima do esperado para sua faixa etária e escolaridade,
apesar de aspectos verbais não terem sido investigados em razão do mutismo do
paciente. Ele demonstrou capacidade de atenção e memorização dentro na mé-
dia, conseguindo finalizar todas as atividades propostas durante os atendimentos,
sem esboçar maiores dificuldades.
Demonstrou contentamento e desenvoltura quando jogou xadrez, tendo evi-
denciado o desejo de jogar em mais de um atendimento. Considerado popular-
~ente como um jogo de maior complexidade, Ricardo demonstrou bastante habi-
lidade e facilidade, afirmando ter o hábito de jogar com um dos irmãos em casa.
eia nos materiais produzidos pelo ~aciente (dados apresentados mais detalhada-
as tabelas 9.1 e 9.2), mas nao foram verbalizados
rnente n . .
O único momento em que Ricardo demonstrou maior emoção deu-se no se-
o atendimento, ocasião na qual chorou ao escrever sua autobiografia. No
gund e • • l
aterial escrito, re1erm uma amiga pe a qual nutria sentimentos amorosos não
rn rrespondidos. O paciente manteve-se em silêncio após o choro e não quis se
co rofundar acerca da situação (falando ou escrevendo). Os relatos dos familiares
ap
sobre d . 'd d d ·
O aumento a agress1v1 a e o paciente não se replicaram durante os aten-
dimentos, nos quais o adolescente adotou uma postura predominantemente de
não querer falar, porém sem sinais de agressividade.
No quarto atendimento, de forma inesperada, o paciente revelou ter sido
vítima de abusos sexuais quando tinha 10 anos de idade. Por escrito, afirmou:
"Minha família é legal, meus primos trabalham, um deles tem uma namorada,
ele sempre foi melhor que eu em tudo, ele é mais velho, mais inteligente, arran-
java amigos onde fosse, ele nunca foi humilhado nem sofreu três vezes abuso
sexual, ele luta melhor que eu, ele sempre se dava bem com as mulheres, ele
sempre teve tênis de marca, ele se achava o melhor só porque eu sempre fui
um fracassado ... ". Sua revelação se deu por escrito, em uma atividade na qual
foi convidado a escrever sobre sua vida, sendo posteriormente confirmada de
forma oral por Ricardo.
Nos atendimentos subsequentes, o adolescente forneceu mais informações,
sempre respondendo "sim" ou "não" para as questões que lhe eram feitas, visto
que não falava de outra forma, ou seja, não iniciava sentenças ou conversas de
forma espontânea. Ricardo se referiu aos abusos sem evidenciar sentimentos de
raiva ou tristeza. O paciente afirmou ter sido abusado pelo irmão Reinaldo, des-
tacando que seu irmão mais novo (Raí) também sofrera abusos. Disse que tais
abusos não ocorriam mais e não forneceu mais informações sobre a situação
vivida. Destacou que seus pais não sabiam de nada sobre o ocorrido.
Conclusão
A avaliação de Ricardo foi motivada por uma série de comportamentos do
paciente que haviam se modificado ao longo dos últimos três anos, como isola-
mento, piora no desempenho e interesse escolar e agressividade. No entanto, com
ª revelação de abuso sexual no quarto atendimento, a demanda inicial deixou de
ser O foco da avaliação, passando a ser o bem-estar do adolescente.
Ao longo dos atendimentos e antes da revelação do abuso sexual, aventou-se
ª hipótese de transtorno depressivo persistente para explicar os comportamentos
do a~olescente. Tal hipótese surgiu a partir das observações clínica~ ?e Pº stur~
abatida do paciente seu mutismo seletivo e os conteúdos dos materiais produzt-
d ' . . .
os em atendimento, os quais apontavam para tristeza, baixa autoestima e tso-
. .
• e des envo1VJmen to humano·· Casos clínicos
146 Avaliação pstcológica
· l Tais. smtomas
. poderiam estar relacionados ao contexto ern qu
lamento so~ta · . t'gação tornou-se bastante complexa pela dificuld e
vivia o menmo, mas a mveos ~re o que ·se passava com ele. ade
d R· rdo em conversar s .
e Além
ica disso,
. . do também apresentava traços de _iso1amento
R1car . social' exPres-
.
são emocional . e desconforto agudo nas relaçoes
restrita . mterpessoais.
. Ta.is as-
pectos po denam . m . dt'car O desenvolvimento
. de psicopatologias
. mais
_ graves no
fu turo (p. ex., transtornos de personahdade), caso o dpaciente1 nao recebesse
0
deVI'do acompan hamento · Porém ' por tratar-se de um a o. escente , . em processo de
formação, não foi possível concluir acerca de qua!quer diagnost~co .d: transtorno
de personalidade, visto a revelação do abuso ter d~ficultado a ~tnbuiçao de causas
diretas às características do funcionamento emocional do paciente.
Levando em conta o desempenho de Ricardo dentro da média esperada na
avaliação cognitiva, além de sua boa capacidade de reflexão e lógica durante os
atendimentos, considerou-se a possibilidade de que seu desempenho abaixo do
esperado na escola possivelmente estivesse ligado a outros fatores, como o abuso
sexual sofrido pelo irmão. Tal violência veio a somar com aspectos da personali-
dade de Ricardo, como introspecção e dificuldades de socialização, além de baixa
autoestima e tristeza, potencializando-se.
Em virtude da dificuldade do paciente no que diz respeito à abertura e comu-
nicação, não foi possível aprofundar a declaração acerca do abuso sexual. Além
disso, a veracidade de tais confissões ultrapassava os limites da própria avaliação.
Seguindo as orientações da Nota de Orientação sobre a Atuação das/os Psi-
cólogas/os em casos de violência contra criança e adolescente (Conselho Regional
de Psicologia [CRP], 2018) e do Conselho Regional de Psicologia do estado (via
telefone), a conduta adotada pela psicóloga foi a de sensibilizar o adolescente
quanto à necessidade de contar para seus pais sobre o abuso. Após a recusa ini-
cial de Ricardo quanto à quebra de sigilo, ao menino foi explicitada a importância
de ~uscar ajuda, mesmo ele tendo afirmado que os abusos não mais ocorriam.
st
h m, seus pais foram chamados para um encontro adicional ocasião na qual ª
denúncia do m · 101 e · · e1 ' , · o
enmo m ormada. Os responsáveis realizaram a denuncia n
Conselho Tutelar de s ·- AI , . . l R' ardo
ua regiao. em disso, o serviço-escola no qua tc
estava sendo atendido também entrou em contato com o Conselho Tutelar, infor-
mando quea família faria a denúncia.
Indicações terapêuticas
• Acompanhamento pst· l , • . . l con·
•d d . co ogico mdividual de frequência mínima semana ' d
s1 eran o as dificuldades d l . ssida e
d lh e re acionamento e interação social, a nece
Ae me orha da autoestima e dos sentimentos advindos do trauma do abuso,
compan amento psi · , • • tomas,
fi d 'd . quiatrico,
a tm e 1 enttficar a nec 'd d levando em conta a intensidade dos stn
o
essi a e de iniciar tratamento medicamentos ·
y
9. Adolescente de 13 anos e .
om queixa de mud 1
-----------~-------~==~a~nç~a~de~c~om~p:or~ta:me:n~to_~~4~7
berá O que é esperado para cada fase do desenvolvimento típico, podendo com-
preender quando algum aspecto avaliado no paciente merece maior atenção. Já
0
conhecimento técnico versa sobre como colocar em prática, por meio de inter-
venções e manejo, a compreensão teórica na prática clínica.
A psicoterapia do profissional é importante para que a problemática do ava-
liando não mobilize sentimentos e questões mal resolvidas do avaliador. Quando
isso acontece, podem ocorrer reações emocionais não controladas ou inadequa-
das do avaliador em relação ao avaliando (contratransferência negativa), podendo
confundir e acabar por comprometer o resultado da avaliação ou mesmo facilitar
uma conduta não permeada pela ética. Como afirmam Rigoni e Sá (2016), um
processo de avaliação psicológica depende da formação, da sensibilidade clínica
e de uma postura ética.
Para complementar o tripé, a supervisão é compreendida como aspecto dife-
rencial na qualidade do trabalho realizado. Obrigatória durante a formação pro-
fissional, mas opcional para psicólogos formados, a supervisão proporciona ao
avaliador que este desenvolva suas competências e habilidades de forma a exercer
um trabalho mais qualificado e com maior assertividade (Silva & Yates, 2017).
Ao longo da formação como psicólogos, os estudantes de graduação aprendem
que um psicodiagnóstico é realizado a partir de uma queixa inicial, seja ela cog-
nitiva, emocional ou comportamental (Cunha, 2000; Krug, Trentini, & Bandeira,
2016). Segundo Rigoni e Sá (2016), o trabalho investigativo envolve uma extensa
coleta de dados a fim de confirmar ou refutar a queixa trazida pelo paciente ou
por sua família. O planejamento da avaliação ocorre desde os primeiros encon-
tros, quando ainda se tem poucos dados do paciente. A partir do maior número
de dados coletados, pode-se intensificar a investigação para aspectos mais espe-
cíficos e que demandem maior atenção clínica do profissional. Mas e se, no meio
desse longo caminho, algo modificar significativamente o planejamento inicial?
Partimos do pressuposto de que um psicodiagnóstico é um processo que parte
de uma pergunta (queixa), a qual guia o avaliador ao longo dos encontros. Porém,
entendemos que O profissional não deve ficar preso a essa pergu~ta, ignorando
fatos que podem ser determinantes para a compreensão do caso. E preciso flexi-
bilidade, escuta atenta e observação ampliada. Na avaliação de Ricardo, a profis-
sional responsável pela avaliação, inicialmente, buscou respostas para a queixa
apresentada pela família do paciente na triagem realizada no serviço-escola: iso-
lamento, agressividade e queda no desempenho escolar.
Logo nos primeiros encontros, 0 comportamento do jovem em atendimento
exigiu da avaliadora uma mudança de paradigma em relação à forma de coleta
de dados e condução da avaliação. Como avaliar um paciente q~e nã~ falav~? O
caso de Ricardo não se enquadrava em uma deficiência: o menmo nao sofna de
mudez. Nos atendimentos além de pequenos murmúrios, o máximo que pronun-
ciava era "sim" e "não", ~empre de forma retraída e desconfortável. Tratava-se,
150 . - · lo' oica e desenvolvimento humano: Casos clínicos
Aval1açao ps1co o·
Referências
osM-IV
Achenbach, T. M., Dumenci, L., & Rescorla, L. A. (2001). Ratings of relations between . of
d' . VT· Univers1tY
zagnostzc categories and items of the CBCL/6-18, TRF, and YSR. Burlington, ·
Vermont.
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