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Denise Balem Yates

Mônia Aparecida da Silva


Avaliação
Denise Ruschel Bandeira
(Orgs.) psicológica e
desenvolvimento
humano:
Casos clínicos

til hogrefe
Copyright© 2019 Hogrefe CETEPP

Editora: Cristiana Negrão


Capa e diagramação: Claudio Braghini Junior
Preparação: Eugênia Pessotti
Revisão: Joana Figueiredo

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

Y36a
Avaliação psicológica e desenvolvimento humano:
Casos clínicos / Denise Balem Yates, Mônia Aparecida da Silva,
Denise Ruschel Bandeira. - 1. ed. - São Paulo: Hogrefe, 2019.
ISBN 978-85-85439-91-0
1. Psicologia clínica. 2. Testes psicológicos. 3. Testes
neuropsicológicos. 4. Neuropsicologia. 1. Silva, Mônia
Aparecida da. II. Bandeira, Denise Ruschel. III. Título.

19-55163 CDD: 155.28


CDU: 159.922

Este livro segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.


Todos os direitos desta edição reservados à

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ISBN: 978-85-85439-91-0
Impresso no Brasil.
\
\

9 -
Adolescente de 13 anos com queixa de mudança
de comportamento
Beatriz Cancela Cattani
Clarissa Marceli Trentini
Andréia Mello de Almeida Schneider
Denise Ruschel Bandeira

Solicitação da avaliação
A escola na qual Ricardo estudava havia quatro meses antes do começo da
avaliação solicitou que a família procurasse atendimento psicológico em razão
do comportamento do paciente em sala de aula. O menino de 13 anos não fazia
as atividades propostas, além de não copiar a matéria e ficar isolado da turma.
A queixa da família versava sobre a mudança de comportamento do filho,
que estava mais agressivo e isolado. Não estava empenhado nos estudos como
em anos anteriores, não queria ir à escola e estava sendo alvo de bullying pe-
los colegas. Os pais afirmavam que o menino sempre havia sido tímido e tinha
dificuldades de relacionamento. Em casa, o comportamento era agressivo. Res-
pondia aos outros gritando, batia no irmão menor, de 9 anos, e ameaçava bater
nos pais.

Dados sociodemográficos do paciente


Nome: Ricardo 1
Idade: 13 anos
Classe socioeconômica: C2, 2 correspondente a uma renda familiar bruta de
aproximadamente 1,4 salários mínimos na época da avaliação
Escolaridade: 6° ano do Ensino Fundamental
Região de moradia: bairro de condição socioeconômica baixa de uma capital
brasileira
Pais: Marta e Pedro

1
Todos os nomes são fictícios a fim de preservar a identidade do avaliando e de seus familiares.
2 Avaliada de acordo com o Critério Brasil da hsociação Brasileira das Empresas de Pesquisa (ABEP, 2014).
. . d volvimento humano: Casos clínicos
140 Avaliação ps1cológica e esen

.. e anos, respectivamente
Idade dos pais. 45 48 • ·1· d ·
_ d • . mãe do lar e pai aux1 iar e serviços gerais
Ocupaçao os pais.

GPedro
0
Marta

26 20 13 9

Renata Roberto Reinaldo Ricardo Rai

Figura 9.1. Genograma da família de Ricardo.


Fonte : Elaborada pelos autores.

Dados da entrevista de anamnese 3


A família do paciente era composta dos genitores, casados havia 30 anos, e
dos cinco filhos: Renata (27), Roberto (26) (ambos não moravam mais com a fa.
mília, mas Renata residia na casa ao lado), Reinaldo (20), Ricardo (13) e Raí (9).
Nos dois anos anteriores à avaliação, a residência principal da família se situava
em uma casa de condição socioeconômica baixa de uma capital brasileira. Ora
os membros da família moravam na casa da avó materna de Ricardo, no interior
de uma cidade da região metropolitana, ora estavam na capital, onde residiam.
Diziam ser "ciganos", em razão das constantes trocas de casa. As mudanças
aconteciam sempre que a mãe de Marta adoecia (o tempo que permaneciam
não foi informado pela família). Assim, ela precisava se mudar com os três filhos
menores para cuidar de sua mãe. Na última vez que isso aconteceu, Marta e os
filhos permaneceram residindo com a avó materna por seis meses. O ma rid ?
ficou na residência da família. Ricardo, mesmo morando em outra cidade, contt·
nuava estuda d
° · 1
n na capita , porque o ônibus escolar o buscava na por
A gesta - d R' d
ta de casa.
d0 o acoI11
.
çao e icar o foi planejada, tendo a genitora realizado to
panhamento pré-nat I N- . . - ntos meses
. a · ao souberam precisar com exatidao com qua ·
0 menmo nasce
O l" (o mentn0
u, mas parto natural ocorreu no "tempo norma , jo
nasceu com 52 c k ) . . t · necessar
. m e 3 ,8 g . Ricardo apresentou glicose baixa e 01 • reci·
fiicar na incubadora p t " d' . . . de vida, P
or res tas. Assim, durante seu pnmetro ano

·ndicados
3 Os dados referentes à história cl ' . . . . formantes' mo-
na seção "Pro dº mica do paciente aqui reportados foram coletados com os tn . - 0 das me
ce 1mentos" deste d rnp11aç 8
rias e percepções d . e ocumento. Dessa forma, os fatos aqui descritos são uma co
os m1ormantes en I "d
vo VI os no processo da avaliação psicológica.
9. Adolescente de 13 anos com queixa de muda nça de comportamento 141

. ao pediatra todos os
sou 1r . meses para medir a quantidade de açu' car no sangue e
itorar seu desenvolvimento.
monDepois dos meses _iniciais:
. . . . nunca ~ais. fiicou doente ou teve qualquer proble-
ma físico. Não _nec~ssit~u i~ternaçao e seque~ contraiu gripe. Também nunca
fez uso de med1caçao psiqmatrica. Mamou no peito até os 6 meses, tendo seguido
na mamadeira até os 7 anos.
Ingressou na escola ~os 7 anos. ~pesar do histórico de bom desempenho escolar,
comportamento de Ricardo era diferente do manifestado em casa. Portava-se de
forma tímida, não conversando com ninguém. Não copiava, a matéria, mostrando-se
0

distraído. Segundo as professoras, não falava nada ao longo do dia. No passado,


havia chegado a brigar e bater em colegas, algo que não acontecia na época da ava-
liação. A preocupação dos genitores versava sobre uma possível reprovação no ano
em que o psicodiagnóstico estava sendo realizado, algo que nunca havia acontecido.
Ricardo estava frequentando a quarta escola desde o começo de sua vida escolar.
Até em torno dos 10 anos de idade, Ricardo não apresentava queixas de com-
portamento. Após essa idade, se irritava quando era contrariado em casa. Caso
alguém tentasse bater nele, chorava e manifestava comportamento irritado, agi-
tando-se e batendo na parede. Xingava os outros, batia no irmão e se irritava
"por nada". Tinha medo de dormir no escuro e frequentemente dormia na cama
com os pais (informação negada pelo paciente). Tais comportamentos haviam se
intensificado com o passar do tempo.
Sempre foi muito "de dentro de casa", assim como toda a família, não tendo
amizades na vizinhança e nunca saindo à rua para brincar. Como lazer, o menino
gostava de jogar videogame com os irmãos. Fora do ambiente doméstico, o máxi-
mo que fazia era jogar bola com os irmãos no campo de futebol que existia na rua.
Na semana anterior ao início da avaliação, Marta passou a levá-lo para a igreja
com ela. Segundo ela, ele relutava e dizia que não queria ir, mas acabava cedendo.
Ao serem questionados sobre algum evento que acreditavam que poderia ter de-
sencadeado a mudança de comportamento do filho, os pais citaram uma situação
ocorrida na escola. Em certa ocasião, Ricardo chegou em casa "branco e tonto"· Ao
queStionar o que o filho tinha, Ricardo disse que uma colega afirmou saber razão
t
de todos o tratarem mal: ele era muito estudioso e os colegas não goS avam diss~.
. . . · '1 articular o qual disse
Os pais do paciente haviam procurado um ps1co ogo P ' .
que Ricardo "não tinha nada" encaminhando-o para um psiquiatra. O profiss~o-
n 1 1· · ' t elatados: "avaha-
a so tcttou
~ d , o psicodiagnóstico em razão dos comportamen
. , t· d'~ os enciais
r . Ie
do Etxo
1
Çao e smdrome psicótica ' bem como outros d1agnoS tcos • d er 1· ·t uma ava11a- .
ç~ (DSM-IV). Su giro também WISC-1114". O psiquiatra
II . . dam
O
aso tct anormahdade.
lquer ou .
ao neurológica, tendo tal investigação não evidencia qua

4 A av . - . - ai dia nóstico e estatístico de transtornos


mem/haçao foi realizada em 2013, época em que a 4ª ediça~ do Man~sc-Wf eram utilizados.
18 (DSM-IV) e a Escala de Inteligência Wechsler para Crianças (l+'.
"''
• - • olócrlca e desenvolvimento humano: Casos clínicos
142
---------
Ava11açao ps1c e·

''
. • , havia realizado um eletroencefalograma, o qual não
O memno Jª . . d . ªPonto
de patologi·as. Não havia queixas o pediatra e a famíli u Para
presença h . "d a nego a
doenças, informando que Ricardo sem~re avia· si saudável. u outras
todo O período do atendimento de Ricardo, tentou-
D ura nte . _ se estab
telefônico com a escola do paciente, mas nao houve retorn 0 eleeer
cont at o , "d . Para a
de cinco ligações feitas, mesmo apos ter si o explicada a severidade dO s lllais
.
· ' · da d"1reçao.
tância do contato para fu ncionartos - por tal razão . r caso ea
1mp 0r . , in1orrna .
mais detalhadas acerca da vida escolar do paciente não foram obtida s. Ções
Vale referir que os pais de Ricardo apresentavam baixo nível sacio ,
º . economic0
tendo estudado apenas o 1 ano do Ensmo Fundamental. Houve dificu]d ,
- b ade de
ambos para responder algumas questoes ou mesmo 1em rar de alguma s datas.

Dados de observação durante a avaliação


Ricardo apresentou-se como um adolescente quieto e introspectivo. Foi trazi-
do pelo pai em todos os atendimentos, não tendo ocorrido faltas. Demonstrava
asseio, embora eventualmente apresentasse forte odor de suor.
Mantinha-se em silêncio durante a maior parte de todos os encontros, apesar
de sempre realizar contato visual. Muitas perguntas que lhe eram feitas não eram
respondidas e, quando eram, o paciente falava de forma monossilábica ou respon-
dia com assinalamentos com a cabeça.
Tendo em vista não haver possibilidade de comunicação oral, a maneira en-
contrada para se comunicar com o paciente foi a escrita, meio pelo qual Ricardo
demonstrou maior facilidade para se expressar. Em nenhum momento ele se opôs
a entrar na sala de atendimento, mas, por vezes, se recusou a realizar algumas
das atividades propostas (especialmente testagem psicológica), permaneceodo
imóvel na frente do material que lhe era apresentado.

Planejamento da avaliacão #

. . te e a difi·
Considerando o emudecimento praticamente constante do pacien ei
. d'1 entos io
culdade de mteragir com a avaliadora, toda a comunicação dos aten ~ dia!ll
feita por meio da escrita e de perguntas fechadas pela psicóloga, as qu_ais p~men·
ser respondidas com "sim" ou "não". O paciente, por vezes, respon~t~ or~estes
t · d • 01ur10s.
e, ou assentm o com a cabeça ou com as mãos, e eventuais mur •tados,
verbais, tanto de inteligência quanto de personalidade, precisaram ser evt

Procedimentos
alén1
O . d" , . . utos cada,
psico iagnosttco teve duração de oito encontros, de 60 min
de uma entrevista de devolução.
9. Adolescente de 13 anos com queixa de mudança de comportamento 143 \
Técnicas utilizadas
fontes fundamentais de informação:
• Entrevistas de anamnese com os pais.
• Hora do Jogo Diagnóstica.
• Técnica Projetiva de Desenho H-T-P (Buck, 2003).
• Tarefa de contar histórias (por escrito) .
5
• Teste das Matrizes Progressivas de Raven - Escala Geral (Raven, 2008).

fontes complementares de informação:


• Inventário de Organização da Personalidade (IPO-Br) (Oliveira & Bandeira,
2011).
• Entrevista estruturada para avaliação diagnóstica com a mãe (Child Behavior
Checklist 6-18 - CBCL) (Achenbach, Dumenci, & Rescorla, 2001).

Resultados
Como forma de sintetizar as principais informações encontradas em cada
técnica e instrumento utilizado, as tabelas 9.1 e 9.2 apresentam um resumo
dos resultados. A Tabela 9.1 apresenta as fontes fundamentais de informação e
a Tabela 9.2, as fontes complementares de informação. Posteriormente, é feita
a descrição encadeada desses achados, semelhante à apresentação que é feita
no laudo.

Tabela 9.1
Resumo dos resultados encontrados nos instrumentos aplicados

ETPC Matrizes Progressivas


Hora do jogo HTP
deRaven

Extroversão: Percentil 84 (méd io


Silêncio e seriedade Conteúdos mais
percentil 30 . superior) . Quociente
Raramente respondia frequentes:
Psicoticismo: Intelectual 115.
questionamentos ansiedade,
Opção por jogar estresse, tensão, percentil 18.
xadrez: bom tristeza e Neuroticismo:
desempenho e retraimento. percentil 100.
compreensão das Sociabilidade :
~egras. percentil 33 .
Nota: Hora do Jogo= técnica lúdica semiestruturada com brinquedos diversos; HTP = teste projetivo de
desenho para avaliação de personalidade; ETPC = questionário de avaliação de traços de personalidade.

~s~º ano em que a avaliação de Ricardo foi realizada, 0 referido teste era considerado favorável pelo Satepsi
' stema de Avaliação de Testes Psicológicos). o teste passou a ser desfavorável em 11 de abril de 2018.
. e desenvolvimento humano: Casos clínicos
144 Avaliação psicológica

2
Tabela 9. d ncontrados nos instrumentos complementa
Resumo dos resulta os e res
aplicados

Tarefa de contar Inventário de Organização Child Behavior


histórias (por escrito) da Personalidade (IPO-Br) Checklist (CBCL)
Respostas sucintas, Escalas clínicas primárias: Escore clínico em
a maioria com final 1. Difusão de identidade: ansiedade/depre _
percentil 60. ssa 0
triste ("porque estava retraimento que· '
, 1xas
sozinho'; "tristeza·: 2. Defesas primitivas: percentil
somáticas, problemas
"triste, porque estava 90. sociais, problemas
infeliz'; "triste porque 3. Teste de realidade: percentil 60. de pensamento,
tem que deixar os Escalas adicionais:
problemas de atenção
amigos·: "assustado"). 4. Agressividade: percentil 85. e comportamento
5. Valores morais: percentil 85.
------------------------------ agressivo.
Nota: IPO-Br =Inventário de Organização da Personalidade ; CBLC =Child Behavior Checklist aplicada nos
responsáveis para identificar problemas de comportamento.

Avaliação das funções cognitivas

Apesar de o foco desta avaliação não ter sido voltado para as questões cogniti-
vas do paciente, esses aspectos foram avaliados a fim de se descartar a possibilida-
de de haver maiores dificuldades ou transtornos nessa área. Ricardo evidenciou
capacidades cognitivas acima do esperado para sua faixa etária e escolaridade,
apesar de aspectos verbais não terem sido investigados em razão do mutismo do
paciente. Ele demonstrou capacidade de atenção e memorização dentro na mé-
dia, conseguindo finalizar todas as atividades propostas durante os atendimentos,
sem esboçar maiores dificuldades.
Demonstrou contentamento e desenvoltura quando jogou xadrez, tendo evi-
denciado o desejo de jogar em mais de um atendimento. Considerado popular-
~ente como um jogo de maior complexidade, Ricardo demonstrou bastante habi-
lidade e facilidade, afirmando ter o hábito de jogar com um dos irmãos em casa.

Avaliação dos aspectos afetivos e de personalidade

Durante todos os atendimentos Ricardo mostrou-se como um adolesce~te


retraído e inibido Ti d'fi ' muito
. · eve 1 tculdades de se comunicar e interagir. Express 00 _
pouco sua opmião e . . . , e do raramen
' apenas seguia as onentações da ps1cologa, 1a1an
te. Seu ocasional d • xpressoe5
. . escontentamento pôde ser observado por eventuais e
fac1a1s de desaprovação.
o paciente
. evide · • . • ção, tris. te-
nciou sma1s de baixa autoestima forte desva1oriza •n-
za constante e apaf 11 . . , m {regue
ta. ais sentimentos de inferioridade apareceram co
9. Adolescente de 13 anos com queixa de mud d
ança e comportamento 145

eia nos materiais produzidos pelo ~aciente (dados apresentados mais detalhada-
as tabelas 9.1 e 9.2), mas nao foram verbalizados
rnente n . .
O único momento em que Ricardo demonstrou maior emoção deu-se no se-
o atendimento, ocasião na qual chorou ao escrever sua autobiografia. No
gund e • • l
aterial escrito, re1erm uma amiga pe a qual nutria sentimentos amorosos não
rn rrespondidos. O paciente manteve-se em silêncio após o choro e não quis se
co rofundar acerca da situação (falando ou escrevendo). Os relatos dos familiares
ap
sobre d . 'd d d ·
O aumento a agress1v1 a e o paciente não se replicaram durante os aten-
dimentos, nos quais o adolescente adotou uma postura predominantemente de
não querer falar, porém sem sinais de agressividade.
No quarto atendimento, de forma inesperada, o paciente revelou ter sido
vítima de abusos sexuais quando tinha 10 anos de idade. Por escrito, afirmou:
"Minha família é legal, meus primos trabalham, um deles tem uma namorada,
ele sempre foi melhor que eu em tudo, ele é mais velho, mais inteligente, arran-
java amigos onde fosse, ele nunca foi humilhado nem sofreu três vezes abuso
sexual, ele luta melhor que eu, ele sempre se dava bem com as mulheres, ele
sempre teve tênis de marca, ele se achava o melhor só porque eu sempre fui
um fracassado ... ". Sua revelação se deu por escrito, em uma atividade na qual
foi convidado a escrever sobre sua vida, sendo posteriormente confirmada de
forma oral por Ricardo.
Nos atendimentos subsequentes, o adolescente forneceu mais informações,
sempre respondendo "sim" ou "não" para as questões que lhe eram feitas, visto
que não falava de outra forma, ou seja, não iniciava sentenças ou conversas de
forma espontânea. Ricardo se referiu aos abusos sem evidenciar sentimentos de
raiva ou tristeza. O paciente afirmou ter sido abusado pelo irmão Reinaldo, des-
tacando que seu irmão mais novo (Raí) também sofrera abusos. Disse que tais
abusos não ocorriam mais e não forneceu mais informações sobre a situação
vivida. Destacou que seus pais não sabiam de nada sobre o ocorrido.

Conclusão
A avaliação de Ricardo foi motivada por uma série de comportamentos do
paciente que haviam se modificado ao longo dos últimos três anos, como isola-
mento, piora no desempenho e interesse escolar e agressividade. No entanto, com
ª revelação de abuso sexual no quarto atendimento, a demanda inicial deixou de
ser O foco da avaliação, passando a ser o bem-estar do adolescente.
Ao longo dos atendimentos e antes da revelação do abuso sexual, aventou-se
ª hipótese de transtorno depressivo persistente para explicar os comportamentos
do a~olescente. Tal hipótese surgiu a partir das observações clínica~ ?e Pº stur~
abatida do paciente seu mutismo seletivo e os conteúdos dos materiais produzt-
d ' . . .
os em atendimento, os quais apontavam para tristeza, baixa autoestima e tso-
. .
• e des envo1VJmen to humano·· Casos clínicos
146 Avaliação pstcológica

· l Tais. smtomas
. poderiam estar relacionados ao contexto ern qu
lamento so~ta · . t'gação tornou-se bastante complexa pela dificuld e
vivia o menmo, mas a mveos ~re o que ·se passava com ele. ade
d R· rdo em conversar s .
e Além
ica disso,
. . do também apresentava traços de _iso1amento
R1car . social' exPres-
.
são emocional . e desconforto agudo nas relaçoes
restrita . mterpessoais.
. Ta.is as-
pectos po denam . m . dt'car O desenvolvimento
. de psicopatologias
. mais
_ graves no
fu turo (p. ex., transtornos de personahdade), caso o dpaciente1 nao recebesse
0
deVI'do acompan hamento · Porém ' por tratar-se de um a o. escente , . em processo de
formação, não foi possível concluir acerca de qua!quer diagnost~co .d: transtorno
de personalidade, visto a revelação do abuso ter d~ficultado a ~tnbuiçao de causas
diretas às características do funcionamento emocional do paciente.
Levando em conta o desempenho de Ricardo dentro da média esperada na
avaliação cognitiva, além de sua boa capacidade de reflexão e lógica durante os
atendimentos, considerou-se a possibilidade de que seu desempenho abaixo do
esperado na escola possivelmente estivesse ligado a outros fatores, como o abuso
sexual sofrido pelo irmão. Tal violência veio a somar com aspectos da personali-
dade de Ricardo, como introspecção e dificuldades de socialização, além de baixa
autoestima e tristeza, potencializando-se.
Em virtude da dificuldade do paciente no que diz respeito à abertura e comu-
nicação, não foi possível aprofundar a declaração acerca do abuso sexual. Além
disso, a veracidade de tais confissões ultrapassava os limites da própria avaliação.
Seguindo as orientações da Nota de Orientação sobre a Atuação das/os Psi-
cólogas/os em casos de violência contra criança e adolescente (Conselho Regional
de Psicologia [CRP], 2018) e do Conselho Regional de Psicologia do estado (via
telefone), a conduta adotada pela psicóloga foi a de sensibilizar o adolescente
quanto à necessidade de contar para seus pais sobre o abuso. Após a recusa ini-
cial de Ricardo quanto à quebra de sigilo, ao menino foi explicitada a importância
de ~uscar ajuda, mesmo ele tendo afirmado que os abusos não mais ocorriam.
st
h m, seus pais foram chamados para um encontro adicional ocasião na qual ª
denúncia do m · 101 e · · e1 ' , · o
enmo m ormada. Os responsáveis realizaram a denuncia n
Conselho Tutelar de s ·- AI , . . l R' ardo
ua regiao. em disso, o serviço-escola no qua tc
estava sendo atendido também entrou em contato com o Conselho Tutelar, infor-
mando quea família faria a denúncia.

Indicações terapêuticas
• Acompanhamento pst· l , • . . l con·
•d d . co ogico mdividual de frequência mínima semana ' d
s1 eran o as dificuldades d l . ssida e
d lh e re acionamento e interação social, a nece
Ae me orha da autoestima e dos sentimentos advindos do trauma do abuso,
compan amento psi · , • • tomas,
fi d 'd . quiatrico,
a tm e 1 enttficar a nec 'd d levando em conta a intensidade dos stn
o
essi a e de iniciar tratamento medicamentos ·
y
9. Adolescente de 13 anos e .
om queixa de mud 1
-----------~-------~==~a~nç~a~de~c~om~p:or~ta:me:n~to_~~4~7

entendimento crítico da avaliação


A família de Ricardo buscou avaliação psic 1, .
o og1ca para o filho l d
tre outros sintomas, uma mudança significativa d , a egan o, en-
. . e • e comportamento O ·
videnciava d 1stanciamento aietivo de seus famili d . . · menmo
e • . ares e e atividade · l'
de queixas escolares e smais de agressividade ta t s usuais, a em
°
' n em casa quant
s sintomas apresentavam-se de forma crescente e 0 ado1escente j' oh na· esco a.
l
O
do por outros profissionais da área da saúde ment 1
. h" , d' , .
ª. avia passa-
a sem ter recebido qualquer
diagnóstico.
. , As
. 1poteses iagnosticas versavam sobre d'fi 1 tcu ld ades cogmttvas
.. ou
mesmo mdicios de algum transtorno de humor.
Levando em conta o contexto
. familiar
. do avaliando , pond erou-se que R'1cardo
era membro , . de uma famíha
. que tmha
. , . o isolamento
. social com o uma importante
·
caractenstica. A~ora idas eventuais a igreJa e à casa da avó materna de Ricardo,
não foram mencionados outros ambientes sociais frequentados por Pedro, Marta
e seus filhos. As amizades eram escassas e todos os filhos eram "de dentro de
casa", assim como os pais. A família comunicava-se pouco e, portanto, o lar não
era um local de trocas. O adolescente pouco falava em casa, sendo bastante fecha-
do e reservado sobre sua vida, anseios e desejos.
A partir desse cenário, refletiu-se sobre a possibilidade de que tal distancia-
mento social e, consequentemente, emocional, pode ter sido um fator que influen-
ciou os sintomas apresentados por Ricardo nos últimos anos. Após a vivência de
abuso, passaram-se três anos até que Ricardo fosse encaminhado para avaliação
psicológica e pudesse ter seu silêncio quebrado com o uso de lápis e papel.
Mesmo assim, seu silêncio parece não ter sido compreendido nos primeiros
contatos com profissionais de saúde mental. Sua chegada ao serviço-escola foi
acompanhada por um encaminhamento que suspeitava de "síndrome psicótica".
Tal hipótese também foi considerada, mas outros diagnósticos também passaram
a ser aventados. Os sintomas de Ricardo podiam, assim, guiar diversas com-
preensões sobre seu funcionamento emocional, cognitivo e de personalidade.
O acolhimento que recebeu e o respeito por sua sintomatologia foi fundamental
para que Ricardo se sentisse mais à vontade para pedir ajuda com ª voz que
tinha: a escrita
A profissio~al que atendeu o paciente leu o texto que continha informações
sobre O abuso sofrido por Ricardo às 19 horas de uma sexta-feira, após ª saída
d d 1 . d p · l ·a estava encerrando as
0 ª 0 escente e em horário no qual o serviço e sico ogt
atividades da semana Mobilizada com a revelação do abuso e preocupada com o
be · · formação além das poucas
m-estªr do paciente visto não ter qualquer outra m . , .
linh . ' b ·0 de outra psicologa mais
as escritas anteriormente a psicóloga rece eu apoi b
exp • ' . . fundamente as etapas su se-
enente, sua supervisora, que conhecia mais pro . , ·
quent d • maior conhecimento teonco
, es em situações como a vivida, além e possmr
e tecnico.
~_::_~==-------------------
. d lvimento humano: Casos clínicos ""-.
148 Avaliação psicológica e esenvo

. d C processo de avaliação tomou outro rumo, tendo .


A partir e en ao, O d , . em vist
. . . . . passaram a ocupar um 1ugar secun ano no trab lh a
que as queixas m1c1ais a o co
mento era fundamental colocar o bem-estar imediat0 111
Ricardo. Naquele mo ' . - b' , _ do pa
. . 'dade do trabalho, p01s nao se sa 1a ate entao se os ah ·
ciente como a pr1or1 . . . Usos s0-
. d m Com O consentimento do paciente, seus pais foram eh
fridos per urava • . amados
e Ricardo e ao serem mformados sobre a revelação d b
sem a presença d ' . o a uso
muito surpresos, chateados e constrangidos. Pontuaram qu '
mostraram-Se . ,. . , . . . e não
tinham qualquer suspeita sobre a V1vencia traumat1ca expenenc1ada pelo filho
destacando que não associavam sua mudança de comportamento à violência ·'.
vida no âmbito familiar. Seu pai'. após o choque inicial_ proveniente da revelaçã:,
mostrou-se enraivecido com Reinaldo (a quem o paciente apontou como autor
dos abusos), dizendo que iria tirá-lo de casa "imediatamente".
Algumas semanas depois, no atendimento de devolução dos resultados da ava-
liação, Pedro informou à avaliadora que Reinaldo não morava mais com a família
e que já havia contatado o Conselho Tutelar da região para tomar as medidas
necessárias (inquérito policial). O pai de Ricardo não se mostrou aberto para
aprofundar a queixa trazida pelo menino, ressaltando que "já estavam resolven-
do tudo". Esse comportamento e o modo como informaram que "resolveram" a
situação corrobora com a percepção de que o contexto familiar não era de muita
abertura para conversas que pudessem permitir a elaboração do abuso ocorrido.
Talvez a maior prerrogativa era partir para o ato. Distante de uma compreensão
de que a família fosse negligente ou mesmo resistente para receber a notícia do
abuso, entendeu-se que faltavam recursos psicológicos para acompanhar e esti-
mular o desenvolvimento dos filhos de modo mais afetivo.

Tema para reflexão: Quebra de sigilo em psicodiagnósticos e


flexibilidade do profissional frente a casos complexos
A pouca experiência prática e a falta de suporte teórico de alguns profissio-
nais para trabalhar com avaliação psicológica e com suspeita de abuso sexual
tornam mais difícil ao psicólogo ter flexibilidade para lidar com o inespera~o
durante um processo psicodiagnóstico. Em tais contextos complexos (e q~e
cada vez mais comuns), o tripé conhecimento teórico, psicoterapia e superVIsa or
fu nd amental para que a qualidade do trabalho realizado não seja atravessada pde
e ·
ques oes pessoais do profissional que está responsável pelo caso nem
por falta
conhecimento técnico e teórico (Krug Trentini & Bandeira, 20l 6 ). oJll
- ' ' balhar e
Com relaçao ao conhecimento teórico destaca-se que, para tra áticas
avaliaç-ao psico
· l'og1ca,
· ' ,
é de fundamental importância o domimo s· obre tel11
. 111etria,
como desenvolvimento humano, psicopatologia, fundamentos em ~::~to está
teS tes e construtos a serem avaliados. A importância de tal conheci oria, sa·
relacionada ao eiato d e que o profissional,
. conhecendo amp la mente a te
9. Adolescente de 13 anos com queixa de mud ança de comportamento 149

berá O que é esperado para cada fase do desenvolvimento típico, podendo com-
preender quando algum aspecto avaliado no paciente merece maior atenção. Já
0
conhecimento técnico versa sobre como colocar em prática, por meio de inter-
venções e manejo, a compreensão teórica na prática clínica.
A psicoterapia do profissional é importante para que a problemática do ava-
liando não mobilize sentimentos e questões mal resolvidas do avaliador. Quando
isso acontece, podem ocorrer reações emocionais não controladas ou inadequa-
das do avaliador em relação ao avaliando (contratransferência negativa), podendo
confundir e acabar por comprometer o resultado da avaliação ou mesmo facilitar
uma conduta não permeada pela ética. Como afirmam Rigoni e Sá (2016), um
processo de avaliação psicológica depende da formação, da sensibilidade clínica
e de uma postura ética.
Para complementar o tripé, a supervisão é compreendida como aspecto dife-
rencial na qualidade do trabalho realizado. Obrigatória durante a formação pro-
fissional, mas opcional para psicólogos formados, a supervisão proporciona ao
avaliador que este desenvolva suas competências e habilidades de forma a exercer
um trabalho mais qualificado e com maior assertividade (Silva & Yates, 2017).
Ao longo da formação como psicólogos, os estudantes de graduação aprendem
que um psicodiagnóstico é realizado a partir de uma queixa inicial, seja ela cog-
nitiva, emocional ou comportamental (Cunha, 2000; Krug, Trentini, & Bandeira,
2016). Segundo Rigoni e Sá (2016), o trabalho investigativo envolve uma extensa
coleta de dados a fim de confirmar ou refutar a queixa trazida pelo paciente ou
por sua família. O planejamento da avaliação ocorre desde os primeiros encon-
tros, quando ainda se tem poucos dados do paciente. A partir do maior número
de dados coletados, pode-se intensificar a investigação para aspectos mais espe-
cíficos e que demandem maior atenção clínica do profissional. Mas e se, no meio
desse longo caminho, algo modificar significativamente o planejamento inicial?
Partimos do pressuposto de que um psicodiagnóstico é um processo que parte
de uma pergunta (queixa), a qual guia o avaliador ao longo dos encontros. Porém,
entendemos que O profissional não deve ficar preso a essa pergu~ta, ignorando
fatos que podem ser determinantes para a compreensão do caso. E preciso flexi-
bilidade, escuta atenta e observação ampliada. Na avaliação de Ricardo, a profis-
sional responsável pela avaliação, inicialmente, buscou respostas para a queixa
apresentada pela família do paciente na triagem realizada no serviço-escola: iso-
lamento, agressividade e queda no desempenho escolar.
Logo nos primeiros encontros, 0 comportamento do jovem em atendimento
exigiu da avaliadora uma mudança de paradigma em relação à forma de coleta
de dados e condução da avaliação. Como avaliar um paciente q~e nã~ falav~? O
caso de Ricardo não se enquadrava em uma deficiência: o menmo nao sofna de
mudez. Nos atendimentos além de pequenos murmúrios, o máximo que pronun-
ciava era "sim" e "não", ~empre de forma retraída e desconfortável. Tratava-se,
150 . - · lo' oica e desenvolvimento humano: Casos clínicos
Aval1açao ps1co o·

de certa forma de uma recusa a comunicar-se. Assim, desde a escolh


, d l - · a de ·
trumentos até a forma de fornecer a evo uçao para o paciente preci •ns-
. ,, e . , . saram
repensa d o S. O famoso "J' ogo de cmtura 101 _necessano
. para
_ que fos se Pos ,ser
· dados que permitissem a compreensao da situaçao clínica em srveJ
ext rair . . quesr
uma vez que nas entrevistas com os pais, ficava evidente que o ato de não f l ao,
' • , • a ar d
Ricardo não era decorrente de transtornos psicotlcos ou transtorno do e
• e ·1· - . l espectro
autista (TEA). É certo que o ambiente 1ami iar nao estlmu ava "conversas"
. - ( d t' h · d ' tnas
até poucos anos antes da ava liaçao quan o m a aproxima amente 10 anos de
idade) Ricardo falava normalmente. A falta de retorno da escola não p ..
' . . errn1t1u
investigar como ele se comunicava no ambiente escolar, mas, pela escrita fi .
,. b ,O)
possível verificar que o voca bl u ano era po re e que, por vezes, a comunicação
era bastante confusa.
Em nenhum momento cogitou-se não realizar a avaliação de Ricardo. Apesar
das dificuldades presentes em situações como as aqui descritas, a experiência
demonstrou que é possível avaliar pacientes que evitam falar, mas que podem
se expressar de outras maneiras. De forma a respeitar o paciente, é fundamental
compreender que o mutismo seletivo (ou outra característica que torne a coleta
de dados mais complexa), muito antes de representar exclusivamente um empeci-
lho ao trabalho do psicólogo, pode ser um sintoma. O silêncio de Ricardo era en-
surdecedor: de forma desconfortável, deixava evidente que algo não estava bem.
Assim, psicóloga e supervisora optaram por instrumentos não verbais (p. ex.,
avaliar a inteligência por meio do Teste das Matrizes Progressivas e não da escala
WISC-III como havia sido solicitado no encaminhamento do psiquiatra). Tales-
tratégia serviu tanto para os testes que avaliam aspectos de personalidade quanto
para os que investigam questões cognitivas. Além disso, mesmo não sendo um re-
curso previsto inicialmente, a maior parte da comunicação com o paciente deu-se
pela via da escrita, forma de comunicação com a qual Ricardo mostrava-se mais à
vontade e pela qual também demonstrava mais detalhes sobre seu funcionamento
emocional, uma vez que, de acordo com os preceitos éticos da profissão e levan~o
em conta as resoluções que regulamentam o trabalho do psicólogo, tais ~o.difi-
cações no fazer são percebidas como positivas e agregadoras ao trabalho chnico.
No decorrer do processo de avaliação, com a revelação do provável abuso se-
xual sofrido por Ricardo, o cenário modificou-se. Além da necessidade de serem
tomad as me d'd 1 as legais
· (as quais serão aprofundadas a seguir), foi· neces sário lan-
Çar mão de
uma compreensao - do caso que passasse a incluir a h'1po'te se de que ·0
. d orrenc1a
menmo e stava se mostrando excessivamente fechado justamente em ec dm
do trauma sofrido. Ou seja, seu comportamento, distante de ser apenas da or eo-
dos tran st0 rnos emocionais (apesar de diversos sintomas estarem presentes), p
<leria ser uma reação à situação vivida anos antes. d nǪ
A aval'iaçao- de R'1cardo contou com um fato grave que provocou a mu força a
de plane1·amento·· uma d enuncia , • de suspeita °
. de abuso sexual. Bn·t (2010 re
9. Adolescente de 13 anos com queixa de mu dança de comportamento 151

que é postul~d~ p~lo artigo 13 do Est_atuto da Criança e do Adolescente (ECA):


0
suspeitas de v10lencia sexual contra crianças devem ser notificadas ao Conselho
Tutela r da localidade da vítima (Lei nº 8.069 , 1990) • Mas como fazer isso,
· consi-•
derando-se que há um contrato de sigilo entre paciente e psicólogo?
0 ECA, em seu artigo 131, afir~a que o Conselho Tutelar é O órgão responsá-
vel da sociedade por zelar o cumprimento dos direitos da criança e do adolescen-
te. Estabelece que, mesmo em casos de haver apenas a suspeita de maus-tratos
os profissionais devem obrigatoriamente comunicar ao Conselho Tutelar. Se ess~
órgão entender necessário o afastamento do convívio familiar, por exemplo, atua-
rá em conjunto com o Ministério Público. Assim, compreende-se que não cabe ao
psicólogo emitir qualquer decisão sobre os fatos, restando apenas comunicar a si-
tuação de maus-tratos de forma embasada e consistente. Neste sentido, o próprio
laudo psicológico serve como documento que embasa a denúncia. Salienta-se que
não é o psicólogo que atesta a veracidade do que foi dito em contexto avaliativo
ou de tratamento, mas sim o órgão competente para tal.
Compreende-se, então, que o profissional deve repassar apenas informações
pertinentes ao caso, não fornecendo informações desnecessárias e que possam
expor o paciente em demasia. No caso de Ricardo, ao Conselho Tutelar foi infor-
mado que, ao longo da avaliação, o menino havia contado que havia sido abusa-
do por um familiar e que, naquele momento, os pais já haviam sido informados
e orientados a também procurar o órgão. Detalhes sobre a avaliação, como a
problemática referente à comunicação ou mesmo as relações sociais, não foram
repassados ao órgão, pois compreendeu-se que, naquele momento, tinham menor
importância e não tinham relação direta com a denúncia. Mesmo com a recusa
inicial do paciente em prosseguir com a denúncia, a psicóloga que o atendia sen-
sibilizou-o, mostrando que aquele era o caminho que deveria ser seguido para
poder protegê-lo. Foi necessário paciência e respeito aos sentimentos do paciente.
De acordo com a Nota de Orientação emitida pelo CRP do Estado do Rio
Grande do Sul, emitida em abril de 2018 (CRP, 2018) o objetivo da notificação é a
extinção da violência ou do risco, de modo a proteger a criança ou adolescente. A
obrigatoriedade dessa notificação foi reafirmada por meio da Lei n. 10.498/2000
promulgada no Estado de São Paulo, e, posteriormente, pela Portaria 1968/2001,
do Ministério da Saúde. A Lei 13431/2017 também dispõe que qualquer pessoa
que tome conhecimento de situação de violência contra criança ou adolescente
deve comunicar o fato imediatamente (Lei n. 13.431, 2017). Ainda, conforme 0
:rtigo 2 do Código de Ética do Profissional Psicólogo (Resolução CFPl0/2005)
~o psicólogo é vedado praticar ou ser conivente com quaisquer atos que caracte-
rizem negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade ou opressão".
Dessa eiorma, caso psicólogo suspeite de ou ident1'fi1que a v10 • contra crian-
· IAencia ·
O
ça ou ad o1escente, deverá comunicar a quem de d'ire1to, · · o responsave
ou seJa, ' 1
pela criança ou adolescente, e notificar a autoridade competente.
152 Avaliação psicológica e desenvolvimento humano: Casos clínicos

Alguns psicólogos iniciantes confundem-se nesse m o m e n ~


,
o Código de Etica aponte para a necess1'd ade do s1g1
. ·1 o profissional (s tnesn, o qu
, . art, 9) e
bra de sigilo pode ocorrer e sera feita sempre que se mostrar neces , . , a que.
sar1a (a
(Conselho Federal de Psicologia [CFPJ, 2005). Compreende-se com rt, 10)
• • 0 nece
a quebra de sigilo em contextos nos quais os pacientes podem estar 8sária
maus-tratos, negligência, vivências de abuso ou outras formas de vio/º~rend0
,.
coloquem sua integridade f1s1ca . 1, .
e ps1co .
og1ca em risco. enc1a que
Assim, mesmo que um dos preceitos básicos da profissão de psicóJ .
. . • e - e 'd
manutenção do sigilo perante as m1ormaçoes 1ornec1 as pelos pacient ogo se 1a a
. - . 1, . es e familia
res em contexto de ava1iaçao psico ogica ou tratamento, o bem-estar em . ·
. 1 d . . .
físico da pessoa atendida deve ser co oca o acima disto. A insegurança (b oc1ona1 e
. 'l d 'lh
natural) de ta1postura do psico ogo po e ser comparti ada por meio da , . astante
.. d fi . . . . pratica
superV1s1ona a por pro issionais mais experientes, que permitirão ao psicól
sentir-se mais respaldado diante de situações como as vividas com Ricard ogo
º·
Considerações finais
Ricardo foi um paciente emblemático. Por meio de sua avaliação, propiciou
diversas reflexões para o grupo que atuava no serviço-escola da universidade
reflexões estas relativamente novas para a equipe e que versavam sobre flexibili-'
dade profissional, sigilo e denúncia perante situações de violência.
Ao receber um paciente para avaliação, nem sempre o psicólogo tem a dimen-
são da situação que encontrará pela frente. O motivo manifesto pode não ser a
razão da busca por atendimento. O caso de Ricardo é um exemplo. Em razão
disso, profissionais menos experientes podem sentir-se desamparados em relação
ao que é possível fazer, caso a situação avaliativa modifique de cenário. Eles te-
mem ferir os preceitos éticos da profissão. Entretanto, o bem-estar do paciente e
de outras pessoas envolvidas é o valor ético principal e não pode estar em risco.
A5sim, este capítulo buscou auxiliar na reflexão sobre o nosso fazer diário nos
consultórios e serviços-escola, especialmente em contextos que parecem fugir do
padrão. O profissional deve saber que tem todo o respaldo do Conselho Federal
e dos Conselhos Regionais de Psicologia, os quais fornecem orientações técnicas
por e-mail e telefone para situações como a relatada aqui. A equipe envolvida no
caso recebeu orientações de um conselheiro, que embasou as informações pre-
sente no Código de Ética do Profissional Psicólogo e nas Resoluções.

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